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MORTE E ANACRONISMO: A “CALAVERA” COMO SOBREVIVÊNCIA DA FÓRMULA Leonardo Bento de Andrade 1 RESUMO O presente artigo tem como objetivo discutir acerca a pertinência do anacronismo para a análise histórica, através da obra do gravador mexicano José Guadalupe Posada. A série “Calaveras” de Posada, indica a irrupção de uma força gestual no século XX, que remonta à “danse macabre” do século XVI. Rastreando esse fluxo, é perceptível a aplicação de uma fórmula de retratar a morte que perpassa os séculos, aparecendo em alguns momentos e desaparecendo em outros. Partindo das discussões de autores como Jacques Rancière, Georges Didi-Huberman e Giorgio Agamben, pretende-se articular às “Calaveras”, outras produções que seguem as premissas de Holbein. Palavras-chave: Calavera; Posada; Nachleben; Anacronismo. Introdução José Guadalupe Posada (1852-1913), ao produzir a série de gravuras Calaveras, possibilita a irrupção de forças gestuais antigas, que remontam inclusive à danse macabre de Holbein. Hans Holbein, produz as quarenta e uma gravuras para Les simulachres et historiées faces de la mort, autant élégamment pourtraictes, que artificiellement imaginées, livro publicado em 1538, onde apresenta as diferentes facetas da morte em sua interação com os vivos. A obra circula pela Europa, ganha popularidade e o conjunto de gravuras passa a ser conhecido como A Dança da Morte de Holbein, servindo como referência para diversas obras posteriores com a mesma temática. Pintores, desenhistas e gravadores como Pieter Bruegel (1525-301569), Alfred Rethel (18161859), Paul-Albert Besnard (18491934), Robert Bryden (18651939) e William Strang (18591921), tomaram as fórmulas de Holbein para a 1 Mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]. Bolsista CAPES.

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MORTE E ANACRONISMO: A “CALAVERA” COMO

SOBREVIVÊNCIA DA FÓRMULA

Leonardo Bento de Andrade1

RESUMO O presente artigo tem como objetivo discutir acerca a pertinência do anacronismo para a análise histórica, através da obra do gravador mexicano José Guadalupe Posada. A série “Calaveras” de Posada, indica a irrupção de uma força gestual no século XX, que remonta à “danse macabre” do século XVI. Rastreando esse fluxo, é perceptível a aplicação de uma fórmula de retratar a morte que perpassa os séculos, aparecendo em alguns momentos e desaparecendo em outros. Partindo das discussões de autores como Jacques Rancière, Georges Didi-Huberman e Giorgio Agamben, pretende-se articular às “Calaveras”, outras produções que seguem as premissas de Holbein.

Palavras-chave: Calavera; Posada; Nachleben; Anacronismo.

Introdução

José Guadalupe Posada (1852-1913), ao produzir a série de gravuras

Calaveras, possibilita a irrupção de forças gestuais antigas, que remontam inclusive à

danse macabre de Holbein. Hans Holbein, produz as quarenta e uma gravuras para

Les simulachres et historiées faces de la mort, autant élégamment pourtraictes, que

artificiellement imaginées, livro publicado em 1538, onde apresenta as diferentes

facetas da morte em sua interação com os vivos. A obra circula pela Europa, ganha

popularidade e o conjunto de gravuras passa a ser conhecido como A Dança da Morte

de Holbein, servindo como referência para diversas obras posteriores com a mesma

temática.

Pintores, desenhistas e gravadores como Pieter Bruegel (1525-30–1569),

Alfred Rethel (1816–1859), Paul-Albert Besnard (1849–1934), Robert Bryden (1865–

1939) e William Strang (1859–1921), tomaram as fórmulas de Holbein para a

1Mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]. Bolsista CAPES.

produção de suas danses macabres. No entanto, Posada apresenta a Morte de outra

forma, infundindo em uma única entidade oprimido e opressor, assim se distanciando

das obras de seus contemporâneos.

Em “Anacronismos e concordâncias”, a proposta teórica que guia o artigo será

articulada à série de gravuras de Posada, introduzindo as discussões de Jacques

Rancière, Georges Didi-Huberman e Giorgio Agamben. Em “A Morte, entre Posada e

Holbein”, a série Calaveras será relacionada com outras produções de diversos

períodos. Por fim, em “A sobrevivência em Posada”, a série Calaveras será

relacionada ao conceito warburguiano de Nachleben.

Anacronismos e concordâncias

O anacronismo é tomado por Lucien Febvre como o mais grave erro cometido

pelo historiador, incorrer no anacronismo, seria cometer um pecado mortal. Atribuir

uma percepção à uma época não condizente, assim como imprimir no objeto

“[...]nossas maneiras particulares de sentir, classificá-lo taxativamente sob uma das

rubricas que usamos hoje para catalogar os que pensam ou não pensam como nós[...]

(FEBVRE, 2009, p. 33) é inconcebível, mas também é impossível. Na apresentação à

edição brasileira de 2009, da obra Le problème de l’incroyance au XVIe siècle (1942),

Hilário Franco Júnior tenciona a célebre passagem de Febvre, fazendo referência as

discussões de Jacques Rancière.

Rancière (2011), considera o anacronismo como uma das forças motrizes para

os processos de movimentação social, mas também como um conceito anti-histórico,

ser conservador quanto ao anacronismo é cegar-se “para as condições mesmas de

toda historicidade”. Para o autor, o anacronismo está mais relacionado a uma questão

de “partilha do tempo”, do que de sucessão da ordem do tempo – ou contra ela. Essa

“partilha do tempo”, diz respeito à iniquidade da cronologia, cada indivíduo toma do

tempo na medida e intensidade que lhe é necessária. As épocas não determinam essa

partilha, não existe uma hierarquia, o antigo pode irromper no contemporâneo

desordenando a eucronia, se fazendo assim anacrônico, “[atravessando] todas as

contemporaneidades. A concordância dos tempos - quase - não existe.” (DIDI-

HUBERMAN, 2015, p. 21), o que existe é um mosaico de experiências situado no

eterno.

Lucien Febvre, ainda em sua crítica ao anacronismo, afirma que

Cada época fabrica mentalmente seu universo. Ela não o fabrica apenas com todos os materiais de que dispõe, todos os fatos (verdadeiros ou falsos) que herdou ou que acaba de adquirir. Fabrica-o com seus dons próprios, sua engenhosidade específica, suas qualidades, seus dons e suas curiosidades, tudo aquilo que a distingue das épocas precedentes. (FEBVRE, 2009, p. 30)

Didi-Huberman questiona esse processo de engenho da época – ou do espírito

dela: “[...] como o historiador poderia sair totalmente de seu ‘universo mental’ e pensar

com uma única ‘ferramenta’ de épocas terminadas? (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 35).

O contemporâneo não é totalmente inédito, o fabrico das épocas não se dá sem os

insumos do tempo e para escrever/contar a história, é necessário trazer à tona os

elementos mais densos (memória), da mistura (tempo) já decantada (anacronizada),

“[...] a memória é psíquica em seu processo, anacrônica em seu efeito de montagem,

reconstrução ou "decantação" do tempo (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 41).

Lucien Febvre lança a hipótese da fabricação do universo, das visões de

mundo, ocorrerem simultaneamente ao decorrer da própria época. Michael Baxandall,

é criticado por Didi-Huberman ao propor em Painting and Experience in 15th century

Italy (1972) – no Brasil, O olhar renascente –, a pertinência da leitura de Cristoforo

Landino sobre a obra de Fra Angelico, tendo em vista a proximidade temporal de seus

trabalhos, corroborando com a leitura de Febvre. O corre que Landino não dá conta

de explicar a parte inferior do fresco Madona das Sombras (c.1440).

Madonna delle Ombre (c.1440) – Parte inferior (detalhe)

Fonte: Acervo Akg-images.

Os quatro painéis “abstratos” compartilham com a Madonna o espaço do

corredor vazio no Mosteiro de San Marco. Eles escapam de quaisquer categorizações

existentes no período, ou seja, documentos eucrônicos não são suficientes para

entende-los, o que de nenhuma forma os limita. Resta então, pensar a obra sobre um

movimento an-acrônico, atentando para os seus desencontros e desvios. No entanto,

as críticas do autor francês são acidas em demasia, Baxandall já fizera sua mea-culpa

em Patterns of Intentions (1985), onde afirma tentar evitar o sufocamento da pesquisa

história e assinala a possível inconsistência do uso da bibliografia eucrônica para a

análise. Baxandall (2006), salienta que não há problema em utilizar evidências

eucrônicas, desde que o pesquisador tenha claro que determinada noção, mesmo

comum no período estudado, pode “jamais ter sido usada em determinado gênero”.

No entanto, não aceita o anacronismo como faz Didi-Huberman, ele se atém a

examinar “[...] um quadro de um pintor à luz de outros quadros do mesmo pintor, na

expectativa de que, a despeito de muitas mudanças, haja uma continuidade de fundo”

(BAXANDALL, 2006, p. 175).

Assim como os quatro painéis de Fra Angelico, as calaveras de José

Guadalupe Posada e a dança da morte de Holbein, em certa medida, se constituem

como obras que divergem do “universo da época”, mas que também são

contemporâneas, na medida em que o e “contemporâneo” se dá

[...] numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide

perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 58-59)

Dessa forma, o “contemporâneo” se dá em um processo de apreensão quase

que pendular. Posada o é na medida em que tomar da dimensão eterna

necessariamente implica afastar-se de seu mundo e, simultaneamente, aplicar o

apreendido dentro de suas possibilidades. Nesse processo pendular de aproximação

e afastamento, Posada apresenta-se como um legítimo “contemporâneo de seu

tempo”. O gravurista mexicano, exibe uma atitude deslocada de outros autores do

mesmo período, ao representar a personificação da Morte a partir de uma fórmula

diferente, mas partilhando em certa medida, da mesma influência de seus pares.

A Morte, entre Posada e Holbein

Nascido em Aguascalientes em 1852, trabalhou desde jovem em oficinas

litográficas em sua cidade natal, em León de los Aldamas e em Ciudad de México.

Ficou postumamente reconhecido como principal expoente da produção de gravuras

categorizadas sob o título calaveras, devido ao resgate de sua obra por intelectuais

como Diego Rivera, Jean Charlot e Francis Toor, em meados do século XX. Posada

se especializou em duas temáticas para a produção de gravuras: o retrato de

costumes e a crítica política. Em seu período na capital mexicana – de 1888 até sua

morte em 1913 – surgem as calaveras como personificações do ato de cessão da

vida, na forma de esqueletos animados.

O início da série se dá com duas produções nos anos de 1888 e 1889, em

homenagem ao Dia dos Mortos, para o periódico La Patria Ilustrada. Onde, um crânio

aparece cercado por um arranjo de flores e ao lado de uma vela. No ano seguinte ele

mantém o crânio, mas atribui um tom mais festivo, adicionando adereços à calavera.

Nos anos seguintes, esses crânios ganham corpos e passam assumir personagens,

como em Calavera de la Adelita (1900-13), Calavera de Dn. Juan Tenorio (1900-13)

e Calavera del Catrín (1900-13).

Calaveras (1900-30) – Adelita, Don Juan Tenorio e Catrín

Fonte: Catálogo da exibição Posada Printmaker to the Mexican People.

Para Durán (2009) e Esparza (1995), Posada toma como referência as danças

da morte medievais, mais do que as representações das culturas pré-hispânicas, no

fazer de suas calaveras. No entanto, a concepção de morte no México antigo, embora

seja fundamentalmente diferente da danse macabre, ainda possui algumas

aproximações com a tradição europeia. “No México antigo, a imagem do crânio refere-

se a passagem para a verdadeira existência. [...]; o eterno foi concebido como um

movimento permanente” (BÁEZ-JORGE, 1994, p.76, tradução nossa)2. Mesmo

cíclico, o imaginário sobre morte no cenário pré-hispânico, é marcado pela mesma

inevitabilidade da dança da morte cristã.

As calaveras não tomam partido em sua atuação, Posada “[...] teve o poder de

converter em ‘calaveras’ um general ou presidente, erudito ou toureiro, em uma

formiga ou em uma espiga de milho, em ladrão ou em um dândi” (GAMBOA, 1944, p.

28, tradução nossa)3. Não por acaso, a descrição de Gamboa em muito se assemelha

à das danses macabres, preocupadas em lembrar “[...] aos espectadores a fragilidade

e a vaidade das coisas terrenas, [...] nivelando as várias categorias sociais e

profissões” (HUIZINGA, 1985, n.p.).

2 “En el México antiguo la imagen de la calavera referia al trânsito a la existência verdatlera.[...]; lo eterno se concebia como permanente movimiento.” (BÁEZ-JORGE, 1994 p.76). 3 “[...] had the power of converting into ‘calaveras’ a general or a president, a scholar or a bull-fighter, an ant or an ear of corn, a petty thief or a dandy” (GAMBOA, 1944, p. 28)

Johan Huizinga, em O declínio da Idade Média (1985) cita, como um exemplo

de danse macabre, a série de gravuras presentes no livro Les simulachres et

historiées faces de la mort, autant élégamment pourtraictes, que artificiellement

imaginées (1538), produzidas por Hans Holbein, o Jovem. Les simulacres, também

conhecido como A dança da Morte de Holbein, teve grande repercussão, sendo

republicado, traduzido e adaptado ao menos doze vezes, ao longo de cento e

dezesseis anos. Essas gravuras, exploram um viés que até a época fora pouco

explorada. Holbein, apresenta uma personificação da morte que se traveste múltiplas

vezes, ela é uma aia, um soldado, um bufão, um camponês ou um clérigo, “[...] cada

um encontra a morte dentro da sua esfera de vida, portanto ele a representa várias

formas, o que encontrou sequência nos séculos posteriores” (ROSENFELD, 2003,

p.454).

Les simulacres (1538) – A Rainha, A Imperatriz e O Cavaleiro

Fonte: Acervo Gallica.

As gravuras de Holbein, estão dispostas ao longo das cento e treze páginas,

cada uma delas é acompanhada de um trecho da bíblia, que endossa seu caráter

didático. A rainha, é acompanhada da passagem bíblica do livro de Isaias (32:9-10),

alertando às mulheres opulentas para tomarem cuidado, pois inevitavelmente sua

punição chegará e ela de fato chega para a rainha. A punição dela se dá na forma de

um saltitante bufão, este infiltra-se na corte da dama e a toma pela mão, conduzindo-

a para seu inevitável fim. Menos atrevida é a Morte em A Imperatriz, disfarçada como

uma de suas aias, ela segue lado a lado com a imperatriz e seu cortejo. A passagem

de Daniel (4:37), que complementa a gravura, exalta a execução da justiça divina

sobre os soberbos, tanto que a Morte indica com sua mão, o inevitável e repentino

destino de sua senhora, a cova. Repentinamente também foi atacado o nobre em O

Cavaleiro, gravura que faz referência a Jó (43:20). Nela, um cavaleiro com uma

armadura completa é empalado no flanco por um lanceiro esquelético, como o trecho

da bebia indica, a estirpe não é uma virtude, até mesmo os nobres sofrerão o castigo

divino.

Les simulacres populariza uma outra possibilidade de representar a morte, o

cadáver decomposto envolto por sua mortalha ou até mesmo nu, começa a parecer

trajado de outras maneiras. Em 1562, Pieter Bruegel pinta O Triunfo da Morte, onde

uma horda de cadáveres ataca, pilha e tortura os vivos, expandindo

[...] a convencional mensagem da mortalidade humana em uma cena de escopo universal e opressivo. No primeiro plano, esqueletos aproveitam-se, zombam ou atacam personagens religiosas e seculares de todos os extratos sociais: imperador, cardeal, camponesa, peregrino, bufão, nobre e um casal cortesão, todos são iguais perante e morte. (THON, 1968, p. 290, tradução nossa)4.

Nesse cenário de desordem, ainda que timidamente, Bruegel retrata três

cadáveres ambulantes, também em primeiro plano, vestidos de forma diferente: um

bufão, um soldado e um mascarado. O bufão serve um crânio em uma bandeja e o

soldado saqueia um barril cheio de moedas, enquanto a figura mascarada derrama o

conteúdo de duas ânforas no chão. Peter Thon (1968), argumenta que Bruegel foi

influenciado por Les simulacres, sinalizando que parte da inventividade do pintor

flamengo deveu-se a uma prerrogativa de Holbein.

De Triomf van de Dood (1562-3) – (Detalhes)

4 “[...]the conventional message of human mortality into a scene of universal scope and overwhelming power. In the immediate foreground skeletons seize, mock, or attack both secular and religious personages of all social stations: emperor, cardinal, peasant woman, pilgrim, fool, nobleman, and two courtly lovers are all equal before death.” (THON, 1968, p. 290).

Fonte: Acervo digital do Museu do Prado.

Cronologicamente mais próximo de Posada está Alfred Rethel, que em 1849

retrata a intervenção da Morte na Primavera dos Povos. A série de revoltas contra a

monarquia e a hierarquia social ocorridas um ano antes, impeliu o autor a aproximar

a Morte da revolução na série Auch ein Todtentanz. Segundo Boime (1991), a Morte

de Rethel tenta passar uma mensagem diferente da de Holbein – e Bruegel –,

assumindo uma postura mais “conservadora” frente as revoluções de 1848.

Disfarçada com casaco, botas de cavalgada e chapéu, o cadáver sinaliza a desgraça

e degenerescência dos movimentos revolucionários, incitando a violência e o conflito.

Auch ein Todtentanz (1849) – Der Tod auf der Barrikade

Fonte: Acervo digital do Museu de Arte da Filadélfia.

A Morte retratada por Rothel distancia-se das anteriores, ela mente, ludibria e

incita seus alvos. Desvelando seu disfarce apenas em seu triunfo, quando expõem

seus ossos sobre a barricada, em meio a troca de tiros. O êxito da Morte em nada

assemelha-se ao retratado por Holbein ou Bruegel, a personagem coloca os vivos

contra eles próprios, não existe a necessidade de um exército de cadáveres ou da

própria Morte buscar suas vítimas, os homens o farão por meio das revoltas. Assim,

a característica de equidade das produções do século XVI é substituída na danse

macabe de Rothel, por uma prerrogativa de conservação da ordem social. Embora

mantenha a forma da protagonista, o autor subverte o sentido atribuído a ela,

diferentemente de Posada, que modifica tanto seu sentido quanto a sua forma.

A sobrevivência em Posada

Posada sente o sopro do tempo empurrar os cristais de Holbein, Bruegel e

Rothel em sua direção, mas não aplica totalmente as fórmulas do século XVI e XIX,

embora cultive seu caráter didático. Nas suas calaveras, a relação entre o cadáver

decomposto e a personagem viva não existe, ela é a polimerização do atormentador

com o atormentado. Segundo Félix Báez-Jorge (1994), a morte nivela os extratos

sociais ao converter um vivo em calavera, para então poder falar livremente de suas

condutas, defeitos e virtudes.

Em meio a essa união do vivo com a Morte, uma orientação didática se faz

presente e, assim como na evocação do Salmo 90 – “Ensina-nos a contar nossos dias,

para que tenhamos coração sábio” – pensar sobre morte possibilita, inclusive, uma

perspectiva para a salvação da alma. No entanto, esse mérito não é exclusivo de

Posada, autores como Paul-Albert Besnard, Robert Bryden e William Strang, estão

cronologicamente mais próximos dele e também expressam essa mesma

preocupação. No entanto, em Indifférente (1900) de Besnard e Death and the

husbandman (1901) de Bryden e Strang a fórmula aplicada na mise-en-scène e na

ação da Morte, remonta à um estilo compatível entre si, mas não com o de Posada.

Indifférente (1900) Death and the husbandman (1901)

Fonte: Acervo digital do British Museum. Fonte: Acervo digital do British Museum.

Diante das duas gravuras, a tradição europeia da danse macabre

inevitavelmente vem à tona, o cadáver atormentador irrompe novamente, agora na

passagem entre os séculos XIX e XX. Por sua vez, Posada ao criar suas calaveras

realiza um duplo movimento, aproxima-se de Holbein, enquanto se afasta de seus

contemporâneos. “[...] os contemporâneos, com frequência, se compreendem menos

do que indivíduos separados no tempo: o anacronismo atravessa todas as

contemporaneidades.” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.21). De Holbein a Posada, vê-se o

que Aby Warburg chamou de Nachleben.

A Nachleben – a sobrevivência, o pós-vida – compreende pensar o tempo

atravéz da recepção, transmissão e polarização de sintomas (Agamben, 2015). “[...] a

ideia de sobrevivência seria, no campo das ciências históricas e antropológicas, uma

expressão especifica do rastro” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 48). O rastro, o sintoma,

é a indicação da existência de algo que passou, mas que deixa sua impressão, assim

também é a obra de Holbein, que ao apresentar a Morte travestida de uma

personagem advinda do mesmo meio de sua vítima, abriu o precedente para Posada,

séculos mais tarde, travestir a sua Morte de tal maneira que a presença da figura viva

se tornou dispensável. Posada, oferece a seu interlocutor um reflexo e não uma

previsão

Considerações Finais

As máculas do retratado de Dorian Gray, no romance homônimo do escritor

inglês Oscar Wilde, são testemunhas do resultado de uma vida degenerada e sem

redenção. No romance, o protagonista atormentado por seu reflexo encontra sua

redenção – e também o seu fim – ao danificar o retrato. Também como o retrato é a

calavera, desvelando a real face de seu interlocutor. Como dito por Félix Báez-Jorge

(1994), a calavera é trânsito para a verdadeira existência. Ela é o próprio “retrato de

Dorian Gray”, um espelho do vanitas.

Na danse europeia, o que se apresenta é o retrato de uma situação bem

definida: o momento em que a Morte surge para arrastar, tomar o vivo de sua

realidade. A ação está congelada no tempo, o que acontecerá posteriormente,

efetivação da morte da vítima, fica subentendida para o interlocutor. Nas calaveras a

situação se inverte, o que é exposto é a própria efetivação da morte, o que se

apresenta é a situação eterna do personagem, ela é um portal para o que estará

manchado pela eternidade e é por meio dessa descontinuidade o gravador mexicano

é, efetivamente, “contemporâneo de seu tempo”.

Posada é um dissonante de seu tempo, justamente por ter estabelecido uma

relação diferente com ele. “Aqueles que coincidem muito plenamente com a época,

que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos

porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar

sobre ela” (AGAMBEN, 2009, p. 59). Fixar o olhar sobre – e sob – à época,

compreende em perceber e aplicar a miríade de movimentos, forças, influências que

constituem o momento.

REFERÊNCIAS

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Textos

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