sobre funes o memorioso
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7/23/2019 Sobre Funes o Memorioso
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SOBRE FUNES O MEMORIOSO
Trazemos aqui uma pequena resenha reflexiva a respeito de um dos mais interessantes
contos de um dos meus escritores preferidos: Jorge Luís Borges. Funes, o memorioso ou
a memória (em tradução portuguesa) foi publicado pela primeira vez em 1944 em um livrointitulado ficciones (ficções). Devo confessar que o mesmo sempre me pareceu perfeito
para se trabalhar com algumas questões chaves que me debruço como historiador, talvez
até mesmo além, como ente humano sujeito ao tempo. A obra do escritor argentino é um
dos mais importantes exemplos do realismo fantástico, gênero que também foi construído
por Júlio Cortazar e Gabriel Garcia Márquez.
RECORDO-O (NÃO TENHO O DIREITO DE PRONUNCIAR
ESSE VERBO SAGRADO, APENAS UM HOMEM NA
TERRA TEVE O DIREITO E TAL HOMEM ESTÁ MORTO)
COM UMA OBSCURA PASSIFLÓREA NA MÃO, VENDO-A
COMO NINGUÉM JAMAIS A VIRA, AINDA QUE A
CONTEMPLASSE DO CREPÚSCULO DO DIA ATÉ O DA
NOITE, UMA VIDA INTEIRA. RECORDO-O, O ROSTO
TACITURNO E INDIANIZADO E SINGULARMENTE
REMOTO, POR TRÁS DO CIGARRO. RECORDO (CREIO)
SUAS MÃOS DELICADAS DE TRANÇADOR. RECORDOPRÓXIMO DESSAS MÃOS UM MATE, COM AS ARMAS
DA BANDA ORIENTAL, RECORDO NA JANELA DA CASA
UMA ESTEIRA AMARELA, COM UMA VAGA PAISAGEM
LACUSTRE. RECORDO CLARAMENTE A SUA VOZ; A
VOZ PAUSADA, RESSENTIDA E NASAL DE ORILLERO
ANTIGO, SEM OS ASSOBIOS ITALIANOS DE AGORA.
O conto de Jorge Luís Borges nos transporta até uma pequena cidade Uruguaia onde
reside um estranho personagem, Ireneo Funes, cuja memória é tão poderosa que
sobrepõe todas as outras faculdades do mesmo. Prisioneiro de sua capacidade, o homem
acaba por se tornar incapaz de racionar sobre o que vive, preso que está aos detalhes.
Como o narrador afirma no final do texto “pensar é esquecer diferenças, é generalizar,
abstrair”, tal afirmação nos leva a diversas reflexões sobre a forma de viver de Funes.
Fato que se agrava quando o mesmo foi um personagem que sofreu um processo de
transformação, ou seja, sua condição somente se deu por causa de um acidente, fazendo
com que ele possuísse ciência da forma mais “trivial” de memória (aquela utilizada por
todos nós).
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O tempo, para ele, era uma realidade que aparecia em uníssono. Sua vivência do
passado era tão real quanto o presente e estava atada a sua forma olhar o mundo. Tudo
o que ele enxergava era imediatamente guardado ao mesmo tempo em que era
projetado, formando na sua mente um caleidoscópio de imagens memoriais. Algo que
para nós deveria ser tão semelhante entre si, a ponto de não nos importarmos (portantoesquecermos), para ele era inteiramente novo, para o memorioso havia diferença entre o
cão de perfil das três e quatorze e o cão de frente das três e quatro. Seu tempo era uma
grande massa que continha todo o tempo do mundo inserido na mesma, viver era reviver
lembranças e Funes gastava dias inteiros lembrando de outros dias por completo.
A verdade para Funes era a sua existência, tão convicto da inefabilidade da sua memória
ele acreditava que vivenciara tudo com muito mais detalhes do que todos e que isso o
fazia de certa forma melhor do que os outros (o que pode ser atestado quando o mesmose refere a sua vida antiga). Sua verdade estava nos detalhes. Sua vida era se perder nos
pormenores da percepção e se deleitar com o avanço da umidade e com a forma das
nuvens em um dia passado. Portanto, para ele viver era tão somente lembrar (incluindo
em lembrar o ato de criar novas lembranças). Seu aprofundamento era tanto a ponto de
reprovar nossa semiótica como imprecisa e demasiadamente generalista, para Funes
deveria haver um sistema capaz de dar um signo único para cada coisa, cada expressão,
observada em cada momento preciso. Seus fatos eram limitados a uma memorização
sem um real raciocínio, apenas o total e completo registro de tudo que acontecera
ausente de distinções ou afastamentos. Na verdade é difícil até mesmo dizer que ele era
capaz de formular fatos visto que os mesmos já estavam impressos de forma automática
em sua psique.
Apesar de sua condição parecer ideal para que fosse um grande historiador do mundo,
visto que era incapaz de esquecer, o mesmo nunca seria apto para produzir história por si
próprio, pois a mesma está inegavelmente ligada ao presente. Toda história é uma
história contemporânea e Funes estava irremediavelmente preso ao passado para isso.
Vivia-o sem distancias portanto era incapaz de refletir e abstrair sobre o mesmo, não
havia problematização no mundo do personagem e isso o incapacitava como historiador,
e além disso, o incapacitava como ser pensante. É impossível refletir sem esquecer.
No fim Funes teria sido o ser com mais memórias do mundo, e ainda com 19 anos, havia
vivido muito mais do que todos os homens, preso para sempre em seu calabouço de
detalhes.
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HAVIA APRENDIDO SEM ESFORÇO O INGLÊS, O
FRANCÊS, O PORTUGUÊS, O LATIM. SUSPEITO,
CONTUDO, QUE NÃO ERA MUITO CAPAZ DE PENSAR.
PENSAR É ESQUECER DIFERENÇAS, É GENERALIZAR,
ABSTRAIR. NO MUNDO ABARROTADO DE FUNES NÃO
HAVIA SENÃO DETALHES, QUASE IMEDIATOS. A RECEOSA CLARIDADE DA MADRUGADA ENTROU
PELO PÁTIO DE TERRA.
ENTÃO VI A FACE DA VOZ QUE TODA A NOITE HAVIA
FALADO. IRENEO TINHA DEZENOVE ANOS; HAVIA
NASCIDO EM 1868; PARECEU-ME TÃO MONUMENTAL
COMO O BRONZE, MAIS ANTIGO QUE O EGITO,
ANTERIOR ÀS PROFECIAS E ÀS PIRÂMIDES.
PENSEI QUE CADA UMA DAS MINHAS PALAVRAS (QUE
CADA UM DOS MEUS GESTOS) PERDURARIA EM SUA
IMPLACÁVEL MEMÓRIA; ENTORPECEU-ME O TEMOR
DE MULTIPLICAR TREJEITOS INÚTEIS