sobre as origens raizes e consciencializaqao

10
SOBREAS ORIGENS DE UMA LITERATURA AFRICANA DE EXPRESSAO PORTUGUESA : RAIZES E CONSCIENCIALIZAQAO ILIDIO ROCHA Escritor l. O primciro cscritor dc lfngua portugucsa nascido cm ivloqam- biquc cra, sobrct,udo, pocla. Prcnunciava o quc viria dcpois : trlclgarnbiquc, tcrra dc p<x'tas,quasc n5o tcm prosadorcs. Chamava-secssc pionciro Josc Pcdro da Siiva Campos Oliveira, nasccu numa localidadc frontcira i Ilha dc Moqiirbiquc, dc nomc Cabaccira, crn 1847, cra filho dc gcn-tc abastada c ao quc parcce tambd'm aii nascida, Egrou ,scrn 0.rito um !Ih"I9!-al-o-sm--eggr!gr, virou funcionario priblico primciro na India e depois cm lv{ogambiquc, colaborou no Altnattuquc dc Lunbratryas, publicou no scu pais natal um jornal litcririo - o primeiro r- c com- punha sonctos ou vcrsos aparcntados a uma distante e ingrata amada, is criangas, a Dcus. Um secuio depois do nascimento de Campos Oliveira que versejava pela bitola do Almanaque de Letnbranqas de larga circuiaEao nas coio- .nias portuguesas e de influ€ncia cenhecida, o mais importante jornal de Mogambique, o Noticias, pubiicava sonetos na sua primeira p6,gina, quase sempre piores do que os do po€ta da Cabaceira, escritos por hancos como ele, cantando como ele amores impossiveis e criancinhas -r- trreais ou, quando muito, a moga negra que passa, tanagra de dbano polido ou uma Africa que de semelhanga com a real apenas tem as palmei.ras balotryando ao vento ou a selva onde sozinha, d noite anda rugindo a fera. Floclore no mau sentido da palavra, a Africa e o negro vistos de fora, bizarros, sem alma, sem vida pr6pria, paisagem t6o somente. - 2. No acaso de este entrementes de quase um s6culo de literatura abusivamente classificad,a de mogambicana, mas sintomaticamente cha- mada por criticos e concursos oficiais de n literatura coionial ), acont+ ceram dois ou tr6s rebates mais ou menos falsos. Sobre as origens de uma literatura africana de expressão portuguesa: raízes e consciencialização / Ilídio Rocha. Actas do Colóquio Internacional, realizado no Centro Cultural Português de Paris, de 28 de Novembro a 1 de Dezembro de 1984. In: Les litteratures africaines de langue portugaise: a la recherche de l'identite individuelle et nationale. - 2a. - Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 1989. p.407-416.

Upload: others

Post on 19-Nov-2021

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

SOBRE AS ORIGENSDE UMA LITERATURA AFRICANADE EXPRESSAO PORTUGUESA :RAIZES E CONSCIENCIALIZAQAO

ILIDIO ROCHAEscritor

l . O pr imciro cscr i tor dc l fngua portugucsa nascido cm iv loqam-biquc cra, sobrct ,udo, pocla. Prcnunciava o quc vir ia dcpois : t r lc lgarnbiquc,tcrra dc p<x' tas, quasc n5o tcm prosadorcs. Chamava-se cssc pionciroJosc Pcdro da Si iva Campos Ol iveira, nasccu numa local idadc frontci rai I lha dc Moqiirbiquc, dc nomc Cabaccira, crn 1847, cra fi lho dc gcn-tcabastada c ao quc parcce tambd'm aii nascida, Egrou ,scrn 0.rito um

!Ih"I9!-al-o-sm--eggr!gr, virou funcionario priblico primciro na Indiae depois cm lv{ogambiquc, colaborou no Al tnat tuquc dc Lunbratryas,publ icou no scu pais natal um jornal l i tcr i r io - o pr imeiro r- c com-punha sonctos ou vcrsos aparcntados a uma distante e ingrata amada,is criangas, a Dcus.

Um secuio depois do nascimento de Campos Oliveira que versejavapela bi to la do Almanaque de Letnbranqas de larga circuiaEao nas coio-.nias portuguesas e de influ€ncia cenhecida, o mais importante jornalde Mogambique, o Noticias, pubiicava sonetos na sua primeira p6,gina,quase sempre piores do que os do po€ta da Cabaceira, escritos por

hancos como ele, cantando como ele amores impossiveis e criancinhas- r -

trreais ou, quando muito, a moga negra que passa, tanagra de dbanopolido ou uma Africa que de semelhanga com a real apenas tem aspalmei.ras balotryando ao vento ou a selva onde sozinha, d noite andarugindo a fera. Floclore no mau sentido da palavra, a Africa e onegro vistos de fora, bizarros, sem alma, sem vida pr6pria, paisagemt6o somente.

- 2. No acaso de este entrementes de quase um s6culo de literaturaabusivamente classificad,a de mogambicana, mas sintomaticamente cha-mada por criticos e concursos oficiais de n literatura coionial ), acont+ceram dois ou tr6s rebates mais ou menos falsos.

Sobre as origens de uma literatura africana de expressão portuguesa: raízes e consciencialização / Ilídio Rocha. Actas do Colóquio Internacional, realizado no Centro Cultural Português de Paris, de 28 de Novembro a 1 de Dezembro de 1984. In: Les litteratures africaines de langue portugaise: a la recherche de l'identite individuelle et nationale. - 2a. - Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 1989. p.407-416.

' 909 , uma comiss io maqon ica chc f iada pc lo . , he : -c : je pac i -

,*u,r major Roque de Aguiar, I inencia a cr tec: io c. lc ' - : : : jornal

dcd icado i popu laqac l n io b ranca, e l labc t izada, cu ja ma icn : ' i smaca-

dora i dc -mula tos como mula tos s io os i rmaos . - \ lbas i r : : - : cs tos af rcnre do nor ;o per iod ico , O , ' l l r i cu t tc t dc scu t i tu lo . (Jose A, : . . in i c r f ,dcspachante of ic ia i c scu i rmicl Joi<.1 cra funcioner io c los C::- : :hos dcFerro; crem nctos dc Joio i \ lbasini , ncr:ociantc c consul po:- . - : ' - : . 's n i rpr inrc i ra Rcpubl ica do Trans+'al . ) Poucos anos dcp<-r is, O .- i ; : : - ' : r :o erao jo rna l rna is l ido cm l locambiqr rc , rn ts a sue tcmat ica pou ic . iu nat inha a vcr com o nomc c i l maior ia dos scus lc i tc.rrcs e ' l r i rance.E,m l9l8, os i rmiros , \ lbasini - ! - ! i9t . c lc_'_o__quc rnuiro ebus: ' . :xrg_n!c,

9.ol!!-o5ll l_'-Ulgitos jornelistas cicl 'cnsorcs clos intcrcsscs ,-las i,: i i_ecdcs

_i" q-gr- u"nJi"- O ; l f ' r icut t ts c [ 'urrc lavam O Bt ' , . tJ i . l t - | r i l , , , r . r .uc sc: . t t r t t t rc iava come orgic l do Grc' : t t io . \ l ' r ' icerrc l c i . rp l 'c . . ,cnt : t \ : l . i - : : t i tu l t - r

c le Scn l ru tc i r io a ,n p ro l , lo p ro l rcsso , i t t s t r t t< . ' t io . ' . je /c .sa ! - ( , - : : - ; i / r , ' a lsd o U I t r u , , u t r . . O s i s t c m a , c o l t ' l o . s c v c l l c l o l n r - r n c i o r t u c u s : . , r , : t . . : : u r g c mrro pcrnt<.1 dc v ista dc Lisboa - \ 'cr IJ l t r tut tur - n io cre posto r= cause,.Ncm podia. No Grdmio , \ [ r iceno, t . rs i rm:rr :s , \ lbasini l 'oram . t r : t rar-sc,pera a fc i tu ra do jo rna l , r .Es t ic i r - r D ias , [unc ion l r io pub l i c : : . : . rna istarclc, ao Dr. Karcl Pott , edr '< lgadcl c t ' i lho c lo cr . rnsul l ro l ; rnci , - .s ; . :e rcco-lhcu Kt 'ugcr e t ratou do scu cxi l io pxra a I {o lancia. Toclos =' : letos ccducados nas cscolas da tr lagonar i l , inst i tu ic; l i r . r d ingida peio" : - :us paisl : rancos, como mulatos eram os rcstantcs mcmbros, , l ( r I r { r r ; t - { jJ tJ l t ra-tnQr, c laquclc Grcmio Afr icano ondc os ncsros nio poci ia= entrar.Todos per tcnccntcs a uma c i l i t c quc , pe lc l rncnos ard 1933,3 . :o e rn qu .a Iv laqonar ia fo i d issolv ida, t inha o csraturo dos pais -- ce l r : rncos,portanto - e dcstacando-se entrc cstes pelas suas proeza,s :os des-portos, na danEa t e no amor.

Dizer-se, portanto, que nasceu ai un' l jornal ismo moc::-: icano,( revoltado ,r, mesmo que entr-e aspas, e anti_colonial, c ies.-:nhecelcompletamente o meio social em que se desenr-olveu e u-\s valoresque defendia. E esquecer, por exemplo, que os brancos de -\1o;:=bique,muitos deles casados com mulheres de cor, consti tuiam e:-;o umaburguesia em ascensi,o, radicada, que nunca pos em causa o colonia'i ismo, mas que estet 'e sempre em oposiEio, atravds inclusi latnerte dasua imprensa, ao Ggverno de Lisboa, mas apenas por esre corn eiadeixar concorrer os interesses do comdrcio metropolitano ou a mandaratacar pelo fisco. E fizeram-no sempre mais violentamente oue seusfilhos mulatos, instalados os mais deles no funcionalismo, quiEe maisburgueses que os pais, mas agora gabados pelos seus Africanos, Bradose Clamores.

rcssdo portLtg,csa

,3. Um outro trombeteado acontecimento nasceu com a estreia narevista Miragem, €Ir l 1931, de um poeta muitas vezes aprcsentado comoncgr', mas na realidade mula.to e integrante do grupo sociai d" q;;;;falamos. (coincidentemente, a .rrr"io= J.u-r" quando aquera revistasemanal da entSo cidade de Lourengo Nlarques era dirigida por doisdestacados magios : Josc Rocrrigue, iunio., grande amigo e corega dopoeta??o capitdo Ant6nio pereira Galante). € _chamava-r: o.pgeta R*), de Noronha, viveu de r9o9 a rg43, foi' funciondrio p6blic6 - estava, porranto, do lado da administraEio emseus rcditos - e tambem fazia sonetos a anrores impossfveis, situando-sc'i.-num scgundo romant,isrno-rordio, de forma e contqtdo a denunciaremqugsc em e.xcesso as influgncias de Antnr,;n Nsbr*'3 a" entOni;;;;; ';arcldc. Antero de euantal. g*o:.,,*fri* dasjrsuas:,"muiras paix6es €xrrx:eciffislffirgpgEgdgsb:sqqTry&o -.te g .Eg! u9 9u s, s o n er e s s s u s p.i ro s, d c i.* '

rqngl . , - ' t ' \ ' ' ' : 'Y ' t ' rv ' . * lv) F

- Agarraram'sc a csta cxccpqio quc lhcs apaziguava as almas todosos dc icnsorcs c la d i ta < l i t c ra tu ra co lon ia l o . D isputaram- lhe mcsmo ac:rniqa, dcp<- l is c ic mo' to, an,s a [ iq l , cm cntrc ' is tas, "rr i fo,

; - l ; ; ; " ;tud<l mais ou mcnos of ic ia l oU of ic ioso. E. quc, 6 sortc, para aldm dosso?i'dtb('qdE.rlhi,'.0nChcram um Jivro. portumo, dc zaragatcacio apaclrinha_rncnt6'rc'qlgumgs:Plrfid.ias;:o mulator (clito ncgro quando convcm) cscrc.vera um pocmi bascado no ant igo r i tual rongachanganc da aprcscn-taqSo dc um rocd.m-nascido I Lua : etrcngtdl iqt f tzcl- pocma quc, nodizcr c lc um crf t ico mctropol i tano . i tado por Rocir igucs Jr jn ior noNo'ti 'cias mas sem llte escrever o nome, cra a grinrcira ntarti lcstagao d.(:t!fi#Iiq:W:il*lW9s.!a'::1.1:1ge!,J\b,y_c.qn$ Ficil e a. ver, m"is uma 'cz,o rolclorc ' istorpor brancos.,. , l ,1! i i tas de passagem, mesmo que meionegro o seu auror. cffi'Iieciilr-ufqldd"'rito- por'via'de reitir; r, que niop'qJuy.w€ncia#iqou'sefdo ladrjlde fora a ir'o-Doogas fantdsticas f ptuiltant

. W:?M*lbf,*goes:'elfistibas; :/ f_g.br.is, / eytdea.nd.o venrres, tro,Tcos'WtSr'-4tiizdrist... :

o poerna fora publicado no Brado At'ricano, jornar da burguesiamestiga de que ja faiamos, na._qual Ruv de Noro"r,^ ,"' ' irrr.gr"uo, € ?cuias coiunas o poeta se acolhera ap6s ter deixado de publicar-se aMiragem do seu coleiga e grande u-igo noJrig,r.s J6nior.

4. E era isto a literatura ..* ygEurrbique, desde que em 1g6g,no primeiro' jornal n6o oficiar da c"r;;;, o progresso, Jos6 pedro- campos oliveira se estreia como po.ru tnl

,.,u terra - je pubricaraversos, crdnicas, um .. romance o a "-l*.rraques em Goa _ atd aos suces-sos atriis resumidos o-rjos assim eram aind'a por volta de 1945 ou 1946.- ora foi exactamente l roda de rgast;" a ad,versidade atira para' Mocambique com

.um cavalei,ro d.e esperanlas, sotthad.or irremed.tavel-

31

Ilidio Rocln

mente ad,olcsecnte, .D. ettixotJ, a pcrsegtir, de peito em chatna, millonnas de perdtrar ne numdo dos vivos. Estou a citar Fe:::adoNamora, que no seu livro IJm'Sino na Montanhat explica como foi queesse berrdo cisttttitico, de wn lirisnto destetnperaclo, de nome Au=:stodos santos Abranches, fundou em coimbia a portugalia Editor", Li",iniciativas lanEaram nomes=qrmo os do proprio Fernando Namora, d.eJoSo Jose Cochofcl, de Polibio Gomes dos Sintos, de Jose iVlarnelo esi lva e de alguns mais, no que vir ia a scr o fcrmento de colec;des-e continuamos a citar Namora - qtrc crcrant Lt,tt cariz diferer::e a\;idu intclccttml porttryttc.sa. Nascia pcla mio dcsse visionario que escre-via poentas, cQrttos, ensaios, ntuna desgovernada prolixitlade, dcseni3r.a,expqrimentava novas tdcnicas dc gravura e -ate pintava, para alc:a delcr livros sobre livros, em fcbre, crn urg0ncia, semprc, nascia pela suanliro, dizfamos, a possibi l idadc do l ivro, cla rcvisra i , dos cadcn,cs ,,para os primciros do grupo dc coimbra dos que vicram a charn::-scos nco-real istas.

Foi c-ssc combatcntc, lcvando- na bagagc-m dois livros dc p€n::s eum dc tcatro cditados na sua batalha dc C<;imbra e a antologia poelasNovos de Portugal, de Cccilia t{circles 7, gnclc vinha inclufdo, que ..:rrldia dcscmbal'cou em Mogambiquc, maltratacio cla vicia, mas se:af,recavalci.ro clc csperangas. Emprcgou-se nurna livraria, a maior da ,.:;.,c logo atravLrs dcla cditou um cotttorno clc EQa, em corncmor:joatrasada do ccntcnir io do grande escri tor. Dcdica-o ao l ivreiro e bi: jo-[ i lo, rcpublicano l ibcral c dir igente pagio que lhc dera cmprcgo - JoioAntonio de carvalho - e tambem ao director e proprietdrio co ,"Ija falado Noticfas, o capitio lvlanuel sim6es vaz, magio tambem, peioque o livreiro muito deve ter tido a ver com o primeiro moinho aque o Abranches se atirou em Africa : um supiemento liter6rio, rnai-sa mais a chamar-se Srr/co, instalado entre as pdginas do jornal oficioso,o primeiro verdadeiramente complacente com a ordem estabeleci& esoneto de amor. na portada como j6 diss.-ir.

O Abranches era tudo no -Srrico; escrevia, desenhava, gravava li:o-leos, paginava mas, mais importante, abria portas para a leira de for=aaos novos, desafiava os amigos de Portugal a mandarem-ihe artigos epoemas, permutava o suplemento com iniciativas semeihantes de CaboVerde, de Angola, do Brasil. Ent5eabria janelas para terrenos insuspg!-tados e empurrava para essas n&gas de h.rz os olhos d,os jovens gueia conhecendo: negros, mulatos, indianos, brancos. A iniciativa, natu:zl-mente e Por motivos dbvios, durou pouco. Mas o rastilho ficou ac6o,e tdo forte e-longo, que oito a dez anos depois testemr:nhei ainda a'chegada ao Noticias de correio, jornais, revislas liter6rias, liwos, diri-gidos ao Sulco ou ao Abranches. Iam de portugal, de Cabo verde,de Angola, do Brasil.

32

Sobre as origcns de uma l i tcratura mogambicana dc exprcssd,o portuguesa

o sulco deixa de publicar-se, que ndo morre como vimos, masSantos Abranches ndo desarma. Ao balcio da liwari a f,az saber, aosinteressados, dos neo-realistas portugueses; mas conhece-lhes os probie-mas eencaminha-os.para temas mais afins: os dos brasiieiros da denrj.n-cia social do Nordeste'(Graci l iano Ramos, Jorge Amado, Lins do Rego)ou outros como os tratados por Steinbeck nas Vlnhas da lra. Tudoem ediE6es brasi leiras idas de barco juntamente col l t O Crttzeiro eoutras revistas do Rio de'Janeiro. (E nd,o foram menos lidos e dige-ridos os cronistas espahtosos enteo a pontificar naqueie semandriocarioca). Quando o esfomeado de ler ndo tinha dinheiro, o Abranchesemprestava, fazia circular, dava o que comprava com custo, generoso,sempre sem cuidar de si.

Entretanto, na capital.de MoEambique, uma Publicagdo mensal deletras, artc, ciLncia e criti.ca, o Itinerd.rio, deixara de publicar-se. Como togo atcado pelo Abranches volta a aparccer. Nas suas colunas podemlcr-se, cntre outros, Siddnio Muralha, l \ , t igucl Torga, Casais Monteiro.

_E, logo a scguir, um .dos novos poctas dc Mogambiquc: FonseceAmaral. Estivamos a dcixar 1916.

5. Com 1947, ccm anos exactos sobrc o nascimcnto do primeirocscri tor dc l ingua portugucsa natural dc Mogambiquc, a pigina dossonctos dc amor e do ncgrcpaisagem vai scr voltada. E por Augustodos Santos Abranchcs. O nosso cavalciro de esperanQas.

A Socicdadc de Estudos de Mogambique, uma n academia o debrancos fundada cm 1930 e ati entio ocupadg, apenas com cicncias outccnicas como a matematica, a geologia, a_ medicina tropical, as enge-nharias, cria uma Secgio de Literatura. O Abranches, atento, salta-lhepara dentro. Meses depois, em Setembro de L947, essa Sociedade realizao seu primeiro Congresso. Augusto dos Santos Abranches inscreve-secom duas teses : Mogambique lugar para poesia e Sobre < LiteraturaColonial ".

' -

Assinalemos as datas, que foram decisivas para a historia liteririada ex<oi6nia portLrguesa: a primeira foi lida no dia 8 de Setembro deL947, de tarde, € a segunda no dia 11, de manhd.

Desprevenidos, os criticos oficiais nd,o se aperceberam muito bemonde queria,'chegar a primeira e dedicaram-lhe meia duzia de linhas- ali6s tiradas da pr6pria comunicagio - noN oticias de 9 de Setem-bro. Nesse respigo, o Abranches falava na necessidade de conhecerda exist€,ncia do negro o seu aspecto htrmane, mas parece ndo teremdado por nada.

Mas j6 ndo sucedeu a mesma desatengS,o com a segunda tese - Sobre< Literatura Colonial , - a cuja leitura foram assistir, de faca na liga,os sonetistas da primeira p6grna do Noticias e mais 06 premiados

33

Ilidio Rocha

pela Ag€ncia Geral das Coldnias no seu concurso de o Literafr:ra Colo-nial ,. Augusto dos Santos Abranches nega-llrcs nas bochechas a eris-t€ncia de uma verdadeira c literatura colonial o portuguesa (exceptuaFernSo Mendes Pinto e Castro Soromenho, cste com restrigio, e ndoconsidera literatura colonial as cronicas dc viagem), afirmandolhesperemptoriamente ndo haver ainda literatur;, *ofu*bicana e. E 'ai-sed falada n literattka colonfal o para dizer entrc outras coisas quiEa mais

, duras de digerir por aquele bando de l i terar,s espantados:

nabra-se um l ir .ro e veja-se. Repar,.r l no, personagens apresen-tados -brancos e pretos, como cempre t io di i i intamente siodescritos ! Siga-selhes as ac96es c. as reac96es, mega_se-lhes ospensamentos. De brancos e pretos, o que sc erl@ntra de inrimo,de panicular a cada um ? Nada. Apenas o exrerior das pessoas,o descri t ivo da paisagem, se irct l , , . hi paisagem. Unicamenre o

.preqoncei to .dc cor , do p igmcnto. , t : r pc ic , " i " ,

idc ias fe i ras. "

Adver te I laureada p la te ia de que uma vc, r lac lc i ra l i te rarura moqam_bicana ter i de ser fc i ta por a f r icanos, uma

( l i tc ra tura onde o ncgro fa lassc c r rpandissc con l a mcsma ycr -dadc ptr icol6gica, emotiva c social ( ( ,mo a clo curopcu. n

C i t a o excmp lo da l i t c ra tu ra ncg ra no r t c .an rc r i cana , a t ray i s da qua l ,

e pcla' suas obras, pclas suas rcartuirq'cs sc podc comprccndcrpara ondc e como o caminho cra r i tc ra tura a i r rcana sc rasc3r . rum dia. '

E termina . !

r !-:':

segtir, ncste c-r'so conhcccr (, cluc ainda nio conhcccmos,esta-se lmpondo como um dos mai; fortes prcnfncios clc futuroa que o homem nio sc podcr i fun l1 ; ! ; to

Relembro que corr ia ainda o ano dc 194./ c que o folheto poesianegra de expressd.o portugrrcsa, de Franciscr, Josd Tenreiro e lvlarioPinto de Andraderr, alii is circulado em MoE;,rnbique pelo Abranches,sempre ele, s6 sair ia em 1g53. Daf a estupel,, .gao

" i_inaignagio daplateia perante.o dbsaforo, dai a reportag€rrr nfr11a j6 atenta do Noticiasdo dia 12 de Setembro, com titulo

" 1.*to um primeira p:igina e aescorrer para dentro em mais duas colunas. 4 literatttra foi o prato

forte do dta de ontem no congresso da sociatrade a, irtuaos, dizia o- trrulo, que i noticia 'abria

logo a espadeirar : "i;;r;- "Ttirrorr,ra Colo-nial ,, 'f alou o sr. Augttsto dos santos Abratrrt,rr, q;r, f o;-o,torod.o, ,o^ironia contundente, pelo Sr. Eduardo Correia clt, Uiror.l: O ;r. Ed,uardocorreia de Matos era um dos laureados corn fr primio de < Literatura

34

Sobrc as origens dc utna l i tcratura mogambicana cle expressd,o portt tgttesa

Colonial , , pelo que sc percebe a sua contund€ncia e o destaque eespago que lhe dava o Noticias. E foi de tal forma o reagir, que o pre-sidente da sessio, houve por bem encernlr o debate e espalhai cautelase iigrra na fenn:ra. Segundo o Noticias, o presidente frisou que o Sr.Abranches nd.o procurara f erir nem ds l iteratos premiados em literaturacolonial, nem os jf ir is, nem o governo qtte criara os conclffsos... O dis-curso do presidente, a avaliar pelo espaqo que o jornd*lh-e dedica, foilongo e sempre num esti io meio incomodado meio concil iadcs- -I/ ia-seque adiv inhara onde ia dar o rast i lho eue se acendera.

6. E que nada ia ficar na mesma. As n glorias D passaram a sercontestadas pelos novos e- uma poesia realmente mogamLi.*ro ensaiavapassos decisivos. Diz'nos o exemplar, oferecido- pelo Abranches - maisuma vez ele -- da edigao ciplosril ida, clandestina, clos poemas de No€-mia

'de Sousarz, eue os versos mais anrigos deisa colectinea da jovem

poetisa ncgra - f irme primciro passo de uma poesia nova - t6m adata de I dc Dczembro dc 19-t8, a maioria sio de 1949 e os scus poemash'Iagaiga c Dii.ra passar g ,,tctt povo, rinicos poemas moqambicanosincluidos na j i c i tada antologia dc Tcnrciro e Pinto dc Andradc, foramcscr i tos cm Janciro de 1950. Pclas dcdicator ias, ao Josc Craveir inha, ao

-Joio Mcndcs, ao Duartc Galvio (Virgil io dc Lemos), ao Rui Guerra,ao Ruy Knopfli e, tambc.m I memoria dc Joio Dias, vemos que se for-nava ja um grudo tenrando consciencializar-se.'t " ?elos versos, que citam e ate sio is vezes ded.icados a JorgeAmado, que falam do Carnaval do Rio, do Harlem e dos cantores de

i* qttt.ricanos, compreendemos o quanto do caminhci preconizado efacil i tado pelo Abranchcs fora seguido. E senrimosJhes ai raizes, quiqdmais claras num Rui Nogar (ivloniz Barreto) ou num Jose Craveirinha,que ficaram e continuaram : os neo-realistas portugueses, a prosa d,osbrasileiros da denrincia nordestina, a podtica em muito d.e Jorge Amadodessa altura e as cronicas e is vezes cronicas-poerr(a d,o Cruzeiro e d,aManchete (Carlos Drumond de Andrade, Cecilia Meireles, Fernandosabino, Rubem Braga' e, atd, Manuel Bandeira). Rafzes que d.eramcomo fmto runa poesia ainda hoje talvez mais de Mogambique do quemogambicana - mas declaradamente de denuncia do colonialismo e doracismo e agora sim, definitivamente, n6o o colonial ,.

.,- A prop6sito daqueias rarzes exteriores, brasileiras no caso e nasua maioria, pergunto com M6rio Dionisio quantos dos neo-realistaspbrtugueses as n6o tiveram tambdm, mesmo que em menor grau ? rl

E a prosa? Em lg4g, {ui Guerra, entdo ainda muito jovem, ensaiaalgrrns contos clrrtos (ibspirados - em Zavattini ?) q,r" trao t6m conti-' nuagdo. Em 1952, um grupo -de estudantes universitiirios mogambicanosedita em Coimbra o livro Godido do seu ex€olega Jodo Dias, morto

35

Ilidio Rocha

de tuberculose em Lisbqa, tr€s anos antesr{. Trata-se de contos escritosno final dod seus escassos vinte e dois arlos de vida. Filho do jon:alistamuJato Est6cio Dias, de quem j6 falamos a prop6sito do Brado Africano,estudante universit6rio-em Coimbra e em Lisboa, Jo6o Dias comeEavaent6o a trilhar um caminho que .levaria quase de certez a uma afir-mag6o como verdadeiro prosador mogambicano. o grupo de que emergepioneira Nodmia de Sousa con.hece-lhe os escritos, pelo menos j6 ero1950, mas o exemplo ndo foi seguidors. Seria necessdrio esperar 19ile a ediEio do livro de contos, Nos matamos o cdo tinlrcso do negroronga Luis Bernardo Honwanatt, para ler a primeira aut€ntica pros3africana de expressd,o portuguesa escrita em Mogambique e d; urnponto de vista mogambicano. 56 que, em prosa, a litetutlrtu mogarn.bicana ficou praticamente por ali.

7, Assirn, teremos de voltar b poesia e ao Augusto dos sanrosAbranches. Tal como em Coimbra, o Ab'ranches cuidou dos outros maisdo que de si, e f€-los publicar, sernpre quc apanhava a censura dis-traida e um espago que ele proprio aEiia : no Agora, semanario de1948 de que,foi chefe da redacgdo e quc o Governo da Colonia suprimiuao dccimo sdtimo nr.imero; no ltincrdrio quc por mais dc Luna vezconseguiu que renascesse nem se sabe por que artes; nluna pdginelitcraria douinical do diario Guardian, crn 1949 na Tribttna de l95lpor onde tambini andou metido; e nas folhas de Angolas e Brasisonde tinha acesso por direito e teimosia. Ele quc, como diz FcrnandoNamera, nu,tca deixott a slta candcia apagar-sc

. Em 1956, acossado por azares e pides, desandou para o Brasil,onde viveu ainda- cerca de dez a4osr expedincio cartals, espeftrngas,sonhos e projectos, sabe-se 16, a que pio roubado o d.inheiro dos seios.Mas deiiara para tr6s, nascida, ,r*" poesia mogambicana afirmada-mente'nio colonial, gragas 'ao fermento que dela foi a sua militanciaqulxotesca, teimosa e aiumiadora. Dai que essa poesia - e com ela -a literatura mogambicana nio colonial - tenha dutr de nascimento,8 de setembro de 7947, e padrinho, Augusto dos santos Abranches.

Daquela. data para a frente, p6de esireuer-se com Noemia deSousa, em consci€ncia, mesmo que clandestinamente : oh deixa pas-s a r o m e u p o v o ! , _ -

36

Sobrc as origcns dc urna litcratura ntogatnbicana de exprcssdo portuguesa

NOTAS

1. \evbtaAfricana, Mogrmbique, 1881 (n.or I a3), lgg5 (n.or I ez),e 1gg7 (n."2).

2. A inarrabcnta, ?anga mogambicana tida como ncgra, i uma criagio dosanos 30 do mulato Jaime da Graga Palxio, .cc!,hgcicio por 2ogurta, nos bailes dosbairros brancos onde os mestiggs se movimentavam entio como estrelas. Zigrr"iiera, no dizer de Jose Craveirinha, c emdrito-pugilista, emdrito futebolista,

"rrr..itobailarino e einirito amoroso r. Q vocdbvlg marrabenta e formado da corn:ptelada palavra portuguesa, arrebenta e do prefixo ronga rra (preflxo verbal por" utcrccira pessQa do plural) e era p grito dc inciramenro aos bailarinos langadopor Zagucta

3. O rito QuenguElEquize de aprescruaEi,o do recim-nascido i hla vem d,es-crito na obra do missionirio suiqo Hcnri A. Junod, The Life of a South AlricanTribe, traduzida para portugu0s sob o tfrulo dc (Jsos e Cosiutnes clos Bantos(traduEio fcita cla cdiq:io franccsa), c ccliracla pcla primcira vez em Neuchatel,cm 1912. Quando Ruy dc Noronha tomeu conhccimcnto daquele r i to j i o mesmosc n5o pratic-1va. Junxl rccolt tcu os ctcmcnros para aquclc importante trabalhodurantc a sua cstada

'no Sul dc Moqambiquc, ,corno missionir io, cle lggT a 1909,

ano cm quc nasccu Ruy dc Noronha. E intcrcssante corcjar a dcscriqio do r i tofcita por Junod cary o flocma dc Ruy clc Noron}a.

4. Fcrnando Namora, urrr sino na l'[ontanlta, s,n cd., pp. 2s5-265, LivrariaBcrtrand, Amadora, lg7g,

,t . ' '1..5: -Attt tudc. Bolct im dc l i tcrarura e artc. coimbra, n.o l , Fev. 1939; a.o z,Abiil 1939. Dircctorcs: JoSo Josc Cqchofcl, Coriolano Fcrreira, Fernando Namorae Joaquim Namorado. Editor: Augusto dos Sanros Abranches. Colaboradores,aJCm dos dircctores e do editor: Manuel da Fonseca, Ant6nto prado, Carios deOliveira, Afpnso .Ribciro, fuit6nio Ramos de Almeida, Manuel de Azevedo eMario Dionrzio.

6, Cadernos da Juventude. Coimbra (s6 foi puUicado r:ne ntmero, do qual,segu'ndo Namora, escaParam tr€s exemplarer -tr restantqs for"r' queimadosuo p:ltio do Governo Civil). Directores: Joaquim Namorad,o, polibio Gomes d.os

,S4ntos, 'Joio Josi Cochofel e outros. Editor: Augusto dos Santos $branches.

7. C.ecilia Meireles, Poetas Novos de Portttgal, pp. l0 e 304. Ed.ig6es DoisMundos,.Rio de Janeiro, 1944.

' 8. Augusto dos Santos Abranches, Contorno d,e Ego- Desenho da capa doAutor. O,

I, lvlinerva Central, lourengo Marques, 1946.

Pg-Fg,r" Portuguesa, claro, pois j6 existiarrr eutSo manifestagdes impor-lagles d'e uterattrra escrita eln chaugaue. Embora acredite que nem Augr:stodgs Santos Abranches

'nesr o setr ptblico daquele coDgresso as coul:,ecessem.

. fu. panifestag6es litenirias em hnguas locais ioru- *-pr" c d,esencorajad,as >pelas autoridades portuguesas e c viviam o na clas6sstinidade ou ... Do estran.geira. A liog,* changane abrange uma 6rea populacionai importante do Sul deMogambique e do Transval do Norte (Africa do SuI).

37

Ilidio Rocha

10. Augusta dos santos Abranches, $obrc u Litcratura colonial o, 5 p., Socic.dade de Esrudos da col6nia de Mogambique, Lourengo lvlarques, 1947.

11. Francisco Tenreiro e Miir io Pinto de Andrade, Poesia negra d.e expressdtsportuguesa. Vinheta e arranjo de Antonio Doming:es. l8 p. Livraria Escolar' Editora, Lisboa, 1953.

t2- Trata'se de um caderno de 49 pdginas, ciclostilado, sem titulo nem nomeda autora, incluindo quareuta e tr€s poemas, o mais anrigo de I de Dezembrode 1918 e o mais moderno'de'Fde illaio de 1951. Circulou clandestinamente emLourengo Marques (agora Maputo; em l95l.

13. M6rio Dionisio, Descoberta(s) do BrasiL n JL D, r.o 39, Lisboa, 17-30 deAgosto de 1982.

14. Jo6o Dias, Godido e outros contos, 103 p. Secado de Moqambique daCEI, Coimbra-, 1952.

15. No c"rderno a que nos referimos na nota 12 vem inclurdo, na p. 43, umpoema datado dc 8 de Junho de 1950 int i tula<lo Goctido e cledicaclo n i memoria{c Joio Dias o. \

16, Lrr is Bernardo Honwana, Nos tnatanros o Cito Tinhoso, 135 p. LourcngoMarqucs, 196{.