sobre a pedagogia kant

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INTRODUO

KANT, Immanuel (1724-1804) Sobre a pedagogia. Traduo de Francisco Cock Fontanella. 3. Ed. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2002.

O homem a nica criatura que precisa ser educada. Por educao entende-se o cuidado de sua infncia (a conservao, o trato), a disciplina e a instruo com a formao. Conseqentemente, o homem infante, educando e discpulo. Os animais, logo que comeam a sentir alguma fora, usam-na com regularidade, isto , de tal maneira que no se prejudicam a si mesmos. de fato maravilhoso ver, por exemplo, como os filhotes de andorinhas, apenas sados do ovo e ainda cegos, sabem dispor-se de modo que seus excrementos caiam fora do ninho. Os animais, portanto, no precisam ser cuidados, no mximo precisam ser alimentados, aquecidos, guiados e protegidos de algum modo. A maior parte dos animais requer nutrio, mas no requer cuidados. Por cuidados entendem-se as precaues que os pais tomam para impedir que as crianas faam uso nocivo de suas foras. Se, por exemplo, um animal, ao vir ao mundo, gritasse, como fazem os bebs, tornar-se-ia com certeza presa dos lobos e de outros animais selvagens atrados pelos seus gritos.

___________________________________________________* Observaes: os nmeros que aparecem margem do texto nesta edio brasileira correspondem paginao da edio da Real Academia Prussiana de Cincias (1923); quanto aos ttulos margem, so da edio original, exceto o que aparece entre colchetes; no interior do texto, as expresses entre colchetes so do tradutor brasileiro; as linhas dividindo pargrafos tambm constam da edio original

A disciplina transforma a animalidade em humanidade. Um animal por seu prprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razo exterior a ele tomou por ele antecipadamente todos os cuidados necessrios. Mas o homem tem necessidade de sua prpria razo. No tem instinto, e precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta. Entretanto, por ele no ter a capacidade imediata de o realizar, mas vir ao mundo em estado bruto, outros devem faz-lo por ele. A espcie humana obrigada a extrair de si mesma pouco a pouco, com suas prprias foras, todas as qualidades naturais, que pertencem humanidade. Uma gerao educa a outra. Pode-se buscar o comeo da humanidade num estado bruto ou num estado perfeito de civilizao. Mas, neste ltimo caso, necessrio admitir que o homem tenha cado depois no estado selvagem e no estado de natureza rude. A disciplina o que impede ao homem de desviar-se do seu destino, de desviar-se da humanidade, atravs das suas inclinaes animais. Ela deve, por exemplo, cont-Io, de modo que no se lance ao perigo como um animal feroz, ou como um estpido. A disciplina, porm, puramente negativa, porque o tratamento atravs do qual se tira do homem a sua selvageria; a instruo, pelo contrrio, a parte positiva da educao. A selvageria consiste na independncia de qualquer lei. A disciplina submete o homem s leis da humanidade e comea a faz-Io sentir a fora das prprias leis. Mas isso deve acontecer bem cedo. Assim, as crianas so mandadas cedo escola, no para que a aprendam alguma coisa, mas para que a se acostumem a ficar sentadas tranqilamente e a obedecer pontualmente quilo que lhes mandado, a fim de que no futuro elas no sigam de fato e imediatamente cada um de seus caprichos.

Mas o homem to naturalmente inclinado liberdade que, depois que se acostuma a ela por longo tempo, a ela tudo sacrifica. Ora, esse o motivo preciso, pelo qual conveniente recorrer cedo disciplina; pois, de outro modo, seria muito difcil mudar depois o homem. Ele seguiria, ento, todos os seus caprichos. Do mesmo modo, pode-se ver que os selvagens jamais se habituam a viver como os europeus, ainda que permaneam por muito tempo a seu servio. O que neles no deriva, como opinam Rousseau e outros, de uma nobre tendncia liberdade, mas de uma certa rudeza, uma vez que o animal ainda no desenvolveu a humanidade em si mesmo numa certa medida. Assim, preciso acostum-lo logo a submeter-se aos preceitos da razo. Quando se deixou o homem seguir plenamente a sua vontade durante toda a juventude e no se lhe resistiu em nada, ele conserva uma certa selvageria por toda a vida. Tampouco uma afeio materna exagerada til aos jovens, uma vez que mais tarde lhes surgiro obstculos de todas as partes e recebero golpes de todos os lados, logo que tomarem parte nos afazeres do mundo. Um erro, no qual se cai comumente na educao dos grandes, o de no se Ihes opor nenhuma resistncia durante a juventude, porque esto destinados a comandar. No homem, a brutalidade requer polimento por causa de sua inclinao liberdade; no animal bruto, pelo contrrio, isso no necessrio, por causa do seu instinto. O homem tem necessidade de cuidados e de formao. A formao compreende a disciplina e a instruo. Nenhum animal, quanto saibamos, necessita desta ltima, uma vez que nenhum deles aprende dos seus ascendentes qualquer coisa, a no ser aqueles pssaros que aprendem a cantar. De fato, os pssaros so treinados no canto por seus genitores; e,

admirvel ver, como se fosse numa escola, os pais cantarem com todas as foras diante dos filhotes, enquanto estes se esforam por tirar os mesmos sons das suas pequenas goelas. Para convencer-se de que os pssaros no cantam por instinto, mas que aprendem a cantar, vale a pena fazer a prova: tire dos canrios a metade dos ovos e os substitua por ovos de pardais; ou tambm misture aos canarinhos filhotes de pardais bem novinhos. Coloque-os num cmodo onde no possam escutar os pardais de fora; eles aprendero dos canrios o canto e assim teremos pardais cantantes. estupendo o fato de que toda espcie de pssaros conserva em todas as geraes um certo canto principal; assim, a tradio do canto a mais fiel do mundo. O homem no pode se tornar um verdadeiro homem seno pela educao. Ele aquilo que a educao dele faz. Note-se que ele s pode receber tal educao de outros homens, os quais a receberam igualmente de outros. Portanto, a falta de disciplina e de instruo em certos homens os torna mestres muito ruins de seus educandos. Se um ser de natureza superior tomasse cuidado da nossa educao, ver-se-ia, ento, o que poderamos nos tornar. Mas, assim como, por um lado, a educao ensina alguma coisa aos homens e, por outro lado, no faz mais que desenvolver nele certas qualidades, no se pode saber at aonde nos levariam as nossas disposies naturais. Se pelo menos fosse feita uma experincia com a ajuda dos grandes e reunindo as foras de muitos, isso solucionaria a questo de se saber at aonde o homem pode chegar por esse caminho. Uma coisa, porm, to digna de observao para uma mente especulativa quanto triste para o amigo da humanidade ver que a maior parte dos grandes no cuida seno de si mesma e no toma parte nas interessantes experincias sobre a educao, para fazer avanar algum passo em direo perfeio da

natureza humana. No h ningum que, tendo sido abandonado durante a juventude, seja capaz de reconhecer na sua idade madura em que aspecto foi descuidado, se na disciplina ou na cultura (pois que assim pode ser chamada a instruo). Quem no tem cultura de nenhuma espcie um bruto; quem no tem disciplina ou educao um selvagem. A falta de disciplina um mal pior que falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo de que no se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina. Talvez a educao se torne sempre melhor e cada uma das geraes futuras d um passo a mais em direo ao aperfeioamento da humanidade, uma vez que o grande segredo da perfeio da natureza humana se esconde no prprio problema da educao. A partir de agora, isso pode acontecer. De fato, atualmente se comea a julgar com exatido e a ver de modo claro o que propriamente pertence a uma boa educao. entusiasmaste pensar que a natureza humana ser sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educao, e que possvel chegar a dar quela forma, a qual em verdade convm humanidade. Isso abre a perspectiva para uma futura felicidade da espcie humana. O projeto de uma teoria da educao um ideal muito nobre e no faz mal que no possamos realiz-lo. No podemos considerar uma Idia como quimrica e como um belo sonho s porque se interpem obstculos sua realizao. Uma Idia no outra coisa seno o conceito de uma perfeio que ainda no se encontra na experincia. Tal, por exemplo, seria a Idia de uma repblica perfeita, governada conforme as leis da justia. Dir-se-, entretanto, que impossvel? Em primeiro lugar, basta que a nossa Idia seja autntica; em segundo lugar, que os obstculos para efetu-la no sejam absolutamente impossveis de superar. Se, por exemplo, todo

mundo mentisse, o dizer a verdade seria por isso mesmo uma quimera? A Idia de uma educao que desenvolva no homem todas as suas disposies naturais verdadeira absolutamente. Com a educao presente, o homem no atinge plenamente a finalidade da sua existncia. Na verdade, quanta diversidade no modo de viver ocorre entre os homens! Entre eles no pode acontecer uma uniformidade de vida, a no ser na medida em que ajam segundo os mesmos princpios, e seria necessrio que esses princpios se tornassem como que uma outra natureza para eles. Podemos trabalhar num esboo de uma educao mais conveniente e deixar indicaes aos psteros, os quais podero p-las em prtica pouco a pouco. V-se, por exemplo, nas flores chamadas "orelhas de urso" que, quando as arrancamos pela raiz, tm todas a mesma cor; quando, ao invs, plantamos suas sementes, obtemos cores diferentes e variadssimas. A natureza, portanto, deps nelas certos germes da cor e, para desenvolv-las, basta semear e transplantar de modo conveniente estas flores. Acontece algo semelhante com o homem. H muitos germes na humanidade e toca a ns desenvolver em proporo adequada as disposies naturais e desenvolver a humanidade a partir dos seus germes e fazer com que o homem atinja a sua destinao. Os animais cumprem o seu destino espontaneamente e sem o saber. O homem, pelo contrrio, obrigado a tentar conseguir o seu fim; o que ele no pode fazer sem antes ter dele um conceito. O indivduo humano no pode cumprir por si s essa destinao. Se admitimos um primeiro casal,realmente educado, do gnero humano, preciso saber tambm de que modo ele educou os seus filhos. Os primeiros genitores do a seus filhos um primeiro exemplo; estes o imitam e assim se desenvolvem algumas disposies naturais.

Mas no podem todos ser educados desse modo, uma vez que as crianas vem os exemplos ocasionalmente. Normalmente os homens no tinham idia alguma da perfeio de que a natureza humana capaz. Ns mesmos ainda no a temos em toda a sua pureza. certo igualmente que os indivduos, ao educarem seus filhos, no podero jamais fazer que estes cheguem a atingir a sua destinao. Essa finalidade, pois, no pode ser atingida pelo homem singular, mas unicamente pela espcie humana. A educao uma arte, cuja prtica necessita ser aperfeioada por vrias geraes. Cada gerao, de posse dos conhecimentos das geraes precedentes, est sempre melhor aparelhada para exercer uma educao que desenvolva todas as disposies naturais na justa proporo e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim, guie toda a humana espcie a seu destino. A Providncia quis que o homem extrasse de si mesmo o bem e, por assim dizer, desse modo lhe fala: "Entra no mundo. Coloquei em ti toda espcie de disposies para o bem. Agora compete somente a ti desenvolv-las e a tua felicidade ou a tua infelicidade depende de ti". O homem deve, antes de tudo, desenvolver as suas disposies, para o bem; a Providncia no as colocou nele prontas; so simples disposies, sem a marca distintiva da moral. Tornar-se melhor, educar-se e, se se mau, produzir em si a rnoralidade: eis o dever do homem. Desde que se reflita detidamente a respeito, v-se o quanto difcil. A educao, portanto, o maior e o mais rduo problema que pode ser proposto aos homens. De fato, os conhecimentos dependem da educao e esta, por sua vez, depende daqueles. Por isso, a educao no poderia dar um passo frente a no ser pouco a pouco, e somente pode surgir um conceito da arte de educar na medida em que cada gerao transmite suas experincias e seus conhecimentos gerao seguinte, a qual lhes acrescenta algo

de seu e os transmite gerao que lhe segue. Que grande cultura e que experincia, portanto, esse conceito supe? Na verdade, tal conceito no poderia ter surgido seno muito tarde e ns mesmos ainda no o elevamos ao seu mais alto grau de pureza. Deve a educao do indivduo imitar a cultura que a humanidade em geral recebe das geraes anteriores? Entre as descobertas humanas h duas dificlimas, e so: a arte de governar os homens e a arte de educ-los. Na verdade, ainda persistem controvrsias sobre esses assuntos. Ora, de onde comearamos a desenvolver as disposies naturais dos homens? Deveremos comear pelo estado rude ou pelo estado j culto? No fcil conceber um desenvolvimento, partindo do estado rude (da tambm a dificuldade de formar uma idia do primeiro homem); e vemos que, sempre que se partiu desse estado, o homem sempre recaiu na rudeza e novamente se levantou a partir da. At nos povos bastantes civilizados reencontramos ausncia de limites para a rudeza, o que atestado pelos mais antigos monumentos escritos que nos foram legados - e que grau de cultura a escrita j no supe? -, de tal modo que se poderia propor a inveno da escrita como o comeo do mundo com respeito civilizao. Uma vez que as disposies naturais do ser humano no se desenvolvem por si mesmas, toda educao uma arte. A natureza no depositou nele nenhum instinto para essa finalidade. A origem da arte da educao, assim como o seu progresso, : ou mecnica, ordenada sem plano conforme as circunstncias, ou raciocinada. A arte da educao no mecnica seno em certas oportunidades, em que aprendemos por experincia se urna coisa prejudicial ou til ao homem. Toda arte desse tipo, a qual fosse puramente mecnica, conteria muitos erros e lacunas, pois que no obedeceria a plano algum. A arte da educao ou pedagogia deve, portanto, ser

raciocinada, se ela deve desenvolver a natureza humana de tal modo que esta possa conseguir o seu destino. Os pais, os quais j receberam uma certa educao, so exemplos pelos quais os filhos se regulam. Mas, se estes devem tornar-se melhores, a pedagogia deve tornar-se um estudo; de outro modo, nada se poderia dela esperar e a educao seria confiada a pessoas no educadas corretamente. preciso colocar a cincia em lugar do mecanicismo, no que tange arte da educao; de outro modo, esta no se tornar jamais um esforo coerente; e uma gerao poderia destruir tudo o que uma outra anterior tivesse edificado. Um princpio de pedagogia, o qual mormente os homens que propem planos para a arte de educar deveriam ter ante os olhos, : no se deve educar as crianas segundo o presente estado da espcie humana, mas segundo um estado melhor, possvel no futuro, isto , segundo a idia de humanidade e da sua inteira destinao. Esse princpio da mxima importncia. De modo geral, os pais educam seus filhos para o mundo presente, ainda que seja corrupto. Ao contrrio, deveriam darlhes uma educao melhor, para que possa acontecer um estado melhor no futuro. Mas aqui se deparam dois obstculos: os pais no se preocupam ordinariamente seno com urna coisa, isto , que seus filhos faam urna boa figura no mundo; e os prncipes consideram os prprios sditos apenas como instrumento para os seus propsitos. Os pais cuidam da casa, os prncipes, do Estado. Uns e outros deixam de se propor como fim ltimo o bem geral e a perfeio a que est destinada a humanidade e para a qual esta tem as disposies. O estabelecimento de um projeto educativo deve ser executado de modo cosmopolita. Mas o bem geral uma Idia que pode tornar-se prejudicial ao nosso bem particular? Nunca! J que, ainda que parea que lhe devamos sacrificar alguma coisa, na verdade trabalhamos desse modo

melhor para o nosso estado presente. E, ento, quantas conseqncias nobres se seguem! Urna boa educao justamente a fonte de todo bem neste mundo. Os germes que so depositados no homem devem ser desenvolvidos sempre mais. Na verdade, no h nenhum princpio do mal nas disposies naturais do ser humano. A nica causa do mal consiste em no submeter a natureza a normas. No homem no h germes, seno para o bem. Assim sendo, de quem deve provir o melhoramento do estado social? Dos prncipes, ou dos sditos, no sentido de que estes se aperfeioem antes por si mesmos e faam meio caminho para ir ao encontro de bons governos? Se, pelo contrrio, esse aperfeioamento deve partir dos prncipes, ento, comece-se por melhorar a sua educao; esta sempre teve graves erros, uma vez que no resistiu jamais aos prncipes durante a sua juventude. Uma rvore que permanece isolada no meio do campo no cresce direito e expande longos galhos; pelo contrrio, aquela que cresce no meio de uma floresta cresce ereta por causa da resistncia que lhe opem as outras rvores, e, assim, busca por cima o ar e o Sol. Com os prncipes acontece o mesmo. Mais vale que sejam sempre educados por algum dos seus sditos do que pelos seus pares. No se pode esperar que o bem venha do alto, a no ser no caso em que l a educao seja primorosa. Aqui necessrio, portanto, contar mais com os esforos particulares do que com a ajuda dos prncipes, como julgaram Basedow e outros; uma vez que a experincia ensina que os prncipes,' para atingir seus objetivos, se preocupam no com o bem do mundo, mas com o bem do seu Estado. Se prestam auxlio educao com dinheiro, reservam-se o direito de estabelecer o plano que lhes convm. O mesmo diga-se de tudo aquilo que diz respeito cultura do esprito humano e ao incremento dos conhecimentos

humanos. Estes dois resultados no so conseguidos pelo poder e pelo dinheiro, mas so no mximo por eles facilitados. Na verdade poderiam faz-lo, se o Estado no arrecadasse impostos unicamente destinados ao interesse do seu errio. Nem mesmo as academias produziram estes resultados, e hoje em dia, mais que nunca, no se vislumbra o menor sinal de que essas os produziro. A direo das escolas deveria, portanto, depender da deciso de pessoas competentes e ilustradas. Toda cultura comea pelas pessoas privadas e depois, a partir destas, se difunde. A natureza humana pode aproximar-se pouco a pouco do seu fim apenas atravs dos esforos das pessoas dotadas de generosas inclinaes, as quais se interessam pelo bem da sociedade e esto aptas para conceber como possvel um estado de coisas melhor no futuro. Entretanto, alguns poderosos consideram, de certo modo, o seu povo como uma parte do reino animal e tm em mente apenas a sua multiplicao. No mximo desejam que eles tenham um certo aumento de habilidade, mas unicamente com a finalidade de poder aproveitar-se dos prprios sditos como instrumentos mais apropriados aos seus desgnios. As pessoas particulares devem em primeiro lugar estar atentas finalidade da natureza, mas devem, sobretudo, cuidar do desenvolvimento da humanidade, e fazer com que ela se tome no somente mais hbil, mas ainda mais moral e, por ltimo - coisa muito mais difcil -, empenhar-se em conduzir a posteridade a um grau mais elevado do que elas atingiram. Na educao, o homem deve, portanto: 1. Ser disciplinado. Disciplinar quer dizer: procurar impedir que a animalidade prejudique o carter humano, tanto no indivduo como na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a selvageria.

2. Tornar-se culto. A cultura abrange a instruo e vrios conhecimentos. A cultura a criao da habilidade e esta a posse de uma capacidade condizente com todos os fins que almejamos. Ela, portanto, no determina por si mesma nenhum fim, mas deixa esse cuidado s circunstncias. Algumas formas de habilidade so teis em todos os casos, por exemplo, o ler e o escrever; outras so boas s em relao a certos fins, por exemplo, a msica, para nos tornar queridos. A habilidade de certo modo infinita, graas aos muitos fins. 3. A educao deve tambm cuidar para que o homem se torne prudente, que ele permanea em seu lugar na sociedade e que seja querido e tenha influncia. A essa espcie de cultura pertence aquela chamada propriamente de civilidade. Esta requer certos modos corteses, gentileza e a prudncia de nos servirmos dos outros homens para os nossos fins. Ela se regula pelo gosto mutvel de cada poca. Assim, prezavam-se, faz j alguns decnios, as cerimnias sociais. 4. Deve, por fim, cuidar da moralizao. Na verdade, no basta que o homem seja capaz de toda sorte de fins; convm tambm que ele consiga a disposio de escolher apenas os bons fins. Bons so aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um. O homem pode ser ou treinado, disciplinado, instrudo, mecanicamente, ou ser em verdade ilustrado. Treinam-se os ces e os cavalos; e tambm os homens podem ser treinados. (Tal palavra, em alemo, derivada do ingls, to dress, "vestir". Da se origina tambm Dresskammer, "lugar onde os pregadores trocam as vestes", e no Trostkammer1.) Entretanto, no suficiente treinar as crianas; urge que aprendam a pensar. Devem-se observar os princpios dos quais todas as aes derivam. Fica claro, portanto, quantas coisas1

uma verdadeira educao requer! Contudo, na educao privada, o quarto ponto - que o mais importante - , de modo geral, descuidado, pois que ensinamos s crianas aquilo que julgamos essencial e deixamos a moral para o pregador. Mas como infinitamente importante ensinar s crianas a odiar o vcio por virtude, no pela simples razo de que Deus o proibiu, mas por ser desprezvel por si mesmo! De outro modo, elas pensariam facilmente que o vcio poderia ser praticado e que seria permitido, se Deus no o houvesse proibido, e que Deus bem poderia fazer uma exceo em seu favor. Deus o ser soberanamente santo e no quer seno o que bom, e exige que pratiquemos a virtude pelo seu valor intrnseco e no porque Ele o ordena. Vivemos em uma poca de disciplina, de cultura e de civilizao, mas ela ainda no a da verdadeira moralidade. Nas condies atuais pode dizer-se que a felicidade dos Estados cresce na mesma medida que a infelicidade dos homens. E no se trata ainda de saber se seramos mais felizes no estado de barbrie, no qual no existiria toda essa nossa cultura, do que no atual estado. De fato, como poderamos tomar os homens felizes, se no os tomamos morais e sbios? Desse modo, a maldade no ser diminuda. necessrio fundar escolas experimentais antes de poder criar escolas normais. A educao e a instruo no devem ser puramente mecnicas, mas devem apoiar-se em princpios. Entretanto, no devem fundar-se no raciocnio puro, mas, num certo sentido, tambm no mecanicismo. A ustria no tem quase seno escolas normais, institudas segundo um propsito contra o qual se levantaram muitas objees, com fundamento, e ao qual se reprochava sobretudo um mecanicismo cego. Todas as outras escolas deviam regular-se por aquelas e chegava-se a recusar promoo a quem no as havia freqentado.

Nota do Tradutor (N.T.): do alemo antigo, literalmente sala de consolao.

Tais prescries demonstram com quanta influncia o governo se imiscui em certos assuntos; e no se pode chegar a nada de bom com tais coaes. Cr-se geralmente que no preciso fazer experincia em assuntos educacionais e que se pode julgar unicamente com a razo se uma coisa ser boa ou m. Quanto a isso erra-se muito e a experincia nos ensina que as nossas tentativas produziram de fato resultados opostos queles que espervamos. V-se, pois, que, sendo nesse assunto necessria a experincia, nenhuma gerao pode criar um modelo completo de educao. A nica escola experimental que at agora comeou de algum modo a trilhar esse caminho foi o Instituto de Dessau. Apesar dos muitos defeitos que se lhe podem assacar, defeitos que se encontram em todas as obras pioneiras, cabe-lhe essa glria: ele no cessou de fazer novas tentativas. De certo modo, essa foi a nica escola em que os mestres tiveram a liberdade de trabalhar segundo seus prprios mtodos e intentos, e na qual estiveram unidos entre si e mantiveram relaes com todos os sbios da Alemanha. A educao abrange os cuidados e a formao. Esta : 1. negativa, ou seja, disciplina, a qual impede defeitos; 2. positiva, isto instruo e direcionamento2 e, sob esse aspecto, pertencente cultura. O direcionamento a conduo na prtica daquilo que foi ensinado. Daqui nasce a diferena entre o professor3 - que simplesmente um mestre - e o governante4, o qual guia. O primeiro ministra a educao da escola; o segundo, da vida. O primeiro perodo para o educando aquele em que deve mostrar sujeio e obedincia passivamente; no segundo, lhe 2 3

N.T.: no original, Arfuerung. N.T.: no original, informator. 4 N.T.: no original, Hofmeister.

permitido usar a sua reflexo e a sua liberdade, desde que submeta uma e outra a certas regras. No primeiro perodo, o constrangimento mecnico; no segundo, moral. A educao privada ou pblica. Esta ltima se refere s informaes, e pode permanecer sempre pblica. A prtica dos preceitos fica reservada primeira. Uma educao pblica completa aquela que rene, ao mesmo tempo, a instruo e a formao moral. Seu fim consiste em promover uma boa educao privada. Uma escola na qual isto praticado chama-se Instituto de Educao. No possvel haver um grande nmero desses institutos, nem poderiam admitir um grande nmero de alunos; na verdade, so carssimos e a simples montagem desses colgios acarreta grandes despesas. O mesmo se diga das Casas de Misericrdia (Santas Casas) e dos hospitais. Os edifcios necessrios, o pagamento dos diretores, dos supervisores e dos serviais absorvem a metade do oramento; e j est provado que, se esse dinheiro fosse distribudo aos pobres em suas casas, eles seriam muito melhor cuidados. Por isso tambm difcil conseguir que outras crianas, que no as dos ricos, participem nesses institutos. A finalidade desses institutos pblicos o aperfeioamento da educao domstica. Se os pais, ou aqueles que lhes assistem na educao dos seus filhos, tivessem recebido uma boa educao, poderia no ser mais necessria a despesa com os institutos pblicos. Estes devem se prestar a realizar certas experincias e a formar pessoas aptas para que possam dar uma boa educao domstica. A educao privada dada pelos prprios pais ou, caso no tenham tempo, capacidade ou no o queiram, por outras pessoas que os ajudem nessa tarefa, mediante uma recompensa. Mas tal educao, ministrada por auxiliares, tem a

gravssima circunstncia de dividir a autoridade entre os pais e esses governantes. A criana deve regular-se pelos preceitos de seus governantes e, ao mesmo tempo, seguir os caprichos de seus pais. Nesse tipo de educao necessrio que os pais deponham toda a sua autoridade nas mos dos governantes. At onde, porm, deve-se preferir a educao privada educao pblica, ou vice-versa? Em geral, educao pblica parece mais vantajosa que a domstica, no somente em relao habilidade, mas tambm com respeito ao verdadeiro carter do cidado. A educao domstica, alm de engendrar defeitos do mbito familiar, os propaga. Quanto tempo deve durar a educao? At o momento em que a natureza determinou que o homem se governe a si mesmo; ou at que nele se desenvolva o instinto sexual; at que ele possa se tornar pai e seja obrigado, por sua vez, a educar: at aproximadamente a idade de dezesseis anos. Passada essa idade, poder-se- recorrer a expedientes culturais e especializ-lo, submet-lo a uma disciplina especial; mas no se trata mais de uma educao regular. A sujeio do educando pode ser positiva: enquanto deve fazer aquilo que lhe mandado, enquanto no pode ainda julgar por si mesmo, tendo apenas a capacidade de imitar. Negativa: enquanto o educando deve fazer aquilo que os outros desejam, se quer que eles, por sua vez, faam algo que lhe seja agradvel. No primeiro caso, est sujeito a ser punido; no segundo, a no conseguir o que deseja: e aqui, se bem que j possa refletir, ele no fica menos dependente dos outros quanto prpria satisfao. Um dos maiores problemas da educao o poder de conciliar a submisso ao constrangimento das leis com o exerccio da liberdade. Na verdade, o constrangimento

necessrio! De que modo, porm, cultivar a liberdade? preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem essa condio, no haver nele seno algo mecnico; e o homem, terminada sua educao, no saber usar sua liberdade. necessrio que ele sinta logo a inevitvel resistncia da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto difcil bastar-se a si mesmo, tolerar as privaes e adquirir o que necessrio para tomar-se independente. Aqui se deve ter presente as seguintes regras: 1. preciso dar liberdade criana desde a primeira infncia e em todos os seus movimentos (salvo quando pode fazer mal a si mesma, como, por exemplo, se pega uma faca afiada), com a condio de no impedir a liberdade dos outros, como no caso de gritar ou manifestar a sua alegria alto demais, incomodando os outros. 2. Deve-se-lhe mostrar que ela pode conseguir seus propsitos, com a condio de que permita aos demais conseguir os prprios; por exemplo, nada se far que lhe seja agradvel, se no fizer o que desejamos, ou seja, aprender o que lhe ensinado, e assim por diante. 3. preciso provar que o constrangimento, que lhe imposto, tem por finalidade ensinar a usar bem da sua liberdade, que a educamos para que possa ser livre um dia, isto , dispensar os cuidados de outrem. Esse pensamento o mais tardio, porque as crianas nos primeiros anos no imaginam que devero um dia providenciar por si mesmas sua prpria manuteno. Elas acreditam que mais tarde acontecer como no lar paterno, onde elas tm o que comer e beber sem preocupao. Sem esse tratamento, as crianas, sobretudo as dos ricos e os filhos dos prncipes, permanecero a vida toda como os habitantes do Tahiti, isto , como crianas. A educao pblica tem aqui manifestamente as

maiores vantagens: a se aprende a conhecer a medida das prprias foras e os limites que o direito dos demais nos impe. A no se tem nenhum privilgio, pois que sentimos por toda parte resistncia, e nos elevamos acima dos demais unicamente por mrito prprio. Essa educao pblica a melhor imagem do futuro cidado. H ainda uma dificuldade que no deve ser aqui esquecida, e se refere experincia precoce do sexo, a fim de preservar do vcio os adolescentes, antes da idade madura. Tornaremos a esse assunto.

TratadoA pedagogia, ou doutrina da educao, se divide em fsica e prtica. A educao fsica aquela que o homem tem em comum com os animais, ou seja, os cuidados com a vida corporal. A educao prtica ou moral (chama-se prtico tudo o que se refere liberdade) aquela que diz respeito construo (cultura) do homem, para que possa viver como um ser livre. Esta ltima a educao que tem em vista personalidade, educao de um ser livre, o qual pode bastar-se a si mesmo, constituir-se membro da sociedade e ter por si mesmo um valor intrnseco. Portanto a educao consiste: 1. na cultura escolstica, ou mecnica, a qual diz respeito habilidade: , portanto, didtica (informator); 2. na formao pragmtica, a qual se refere prudncia; 3. na cultura moral, tendo em vista a moralidade. O homem precisa de formao escolstica, ou da instruo, para estar habilitado a conseguir todos os seus fins. Essa formao lhe d um valor em relao a si mesmo, como indivduo. A formao da prudncia, porm, o prepara para tornar-se um cidado, uma vez que lhe confere um valor pblico.

Desse modo ele aprende tanto a tirar partido da sociedade civil para os seus fins como a conformar-se sociedade. Finalmente, a formao moral lhe d um valor que diz respeito inteira espcie humana. A formao escolstica a mais precoce. Com efeito, a prudncia pressupe a habilidade. A prudncia a capacidade de usar bem e com proveito a habilidade prpria. Por ltimo vem a formao moral, enquanto fundada sobre princpios que o prprio homem deve reconhecer; mas, enquanto repousa unicamente no senso comum, deve ser praticada desde o princpio, ao mesmo tempo que a educao fsica, pois, de outro modo, se enraizariam muitos defeitos, a ponto de tornar vos todos os esforos da arte educativa. Com respeito habilidade e prudncia, tudo deve acontecer a seu tempo com o passar dos anos. Mostrar-se hbil, prudente, paciente, sem astcia como um adulto, durante a infncia vale to pouco como a sensibilidade infantil na idade madura.