sobre a diferença entre heróis e justiceiros
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Tese de conclusão do curso de Graduação em História na Universidade Federal Fluminense.O autor Pedro Henrique Castro Teixeira da Silva aborda aspectos de personagens em quadrinhos como Capitão América e Justiceiro para tratar de temas sociais contemporâneos.TRANSCRIPT
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Universidade Federal Fluminense
Instituto de Cincias Humanas e Filosofia
Monografia de Concluso do Curso de Graduao em Histria
PEDRO HENRIQUE CASTRO TEIXEIRA DA SILVA
SOBRE A DIFERENA ENTRE HERIS E JUSTICEIROS
Niteri
2014
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Universidade Federal Fluminense
Instituto de Cincias Humanas e Filosofia
Monografia de Concluso do Curso de Graduao em
Histria
PEDRO HENRIQUE CASTRO TEIXEIRA DA SILVA
SOBRE A DIFERENA ENTRE HERIS E JUSTICEIROS
Monografia de Concluso de Curso apresentada graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como parte dos requisitos para a obteno do grau de bacharel e licenciado
Orientadora: Prof. Ceclia Azevedo
Niteri 2014
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTRIA CURSO DE GRADUAO EM HISTRIA
PARECER Leitor-crtico
SILVA, Pedro Henrique Castro Teixeira da. Sobre a diferena entre heris e justiceiros; monografia de bacharelado; orientao de Ceclia Azevedo. Niteri, UFF, 2014. O trabalho possui um objeto de estudo bem recortado em torno da Histria das Histrias em Quadrinhos nos Estados Unidos da Amrica. A exposio bem estruturada e clara. A anlise desenvolvida se apia em bibliografia especfica, inclusive estrangeira, explorada de modo pertinente e demonstrando amplo domnio dos dados da pesquisa. Alm disso, a parte final se concentra num recorte particular, permitindo uma explorao aprofundada pela pesquisa. Por fim, cabe louvar a coragem de enfrentar campo de estudos pouco frequentado pela historiografia, o que confirma a originalidade do estudo realizado, e configura o esprito de um pesquisador interessado pela inovao historiogrfica. Nota: 10 (dez) Niteri, 3 de julho de 2014.
Prof. Paulo Knauss (Leitor-crtico) matr. SIAPE 0311345
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Sumrio
Introduo....................................................................................................................07
Captulo I: O Mito Americano e a Evoluo das Histrias em Quadrinhos................14
Captulo II: Dr. Jekyll & Mr. Hyde.............................................................................33
Bibliografia..................................................................................................................57
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INTRODUO
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1 MINHA INICIAO NAS HISTRIAS EM QUADRINHOS
At 2010, eu no entendia nada de Histrias em Quadrinhos (HQs). Foi no inverno
desse ano que seria lanado o filme Thor. Quando fui assisti-lo, podia jurar que estava
indo ver a verso hollywoodiana do deus nrdico do trovo. Na verdade, porm, era uma
adaptao cinematogrfica da Marvel Comics para um dos seus personagens mais
populares. O nobre Thor participava de uma disputa shakespeariana com seu irmo
preterido e acabava exilado na terra, onde descobriria sua vocao heroica.
Para ser sincero, no entendi nada da trama e deveria ter ficado frustrado por gastar
meu dinheiro de forma to equivocada. Mas no fiquei. Senti-me muito instigado pela
estria e curioso por tudo aquilo que no conseguia compreender. Meu amor por HQs
comeou com uma pesquisa sobre o personagem Thor. Thor me levou aos Vingadores e
os Vingadores me levaram primeira srie completa que li: Guerra Civil.
Na minha cabea, Guerra Civil at hoje a melhor HQ de todos os tempos. Foi
atravs dela que conheci o Capito Amrica e os outros integrantes da equipe. Em
relativamente pouco tempo, li todas as mais de seiscentas revistas do Capito e as mais
de quatrocentas dos Vingadores. Comecei a ler outros personagens e passei a conhecer
todas as principais sries e edies. A Marvel relanava suas publicaes histricas e isso
facilitava muito o acesso.
Enfim, resolvi que tinha de assistir todos os filmes baseados em HQs. Foi assim
que conheci Alan Moore. Moore sempre critica muito os filmes feitos com base em seus
quadrinhos, logo, ele deveria ser muito bom ou exageradamente convencido. Optei pela
primeira opo depois de ter contato com suas obras A Liga Extraordinria; V de
Vingana e Watchmen.
Esses quadrinhos foram os primeiros na minha formao a se afastaram do que eu
estava acostumado a ler. O primeiro sobre uma super-equipe formada por lendas
vitorianas; o segundo a histria de um anarquista em um futuro distpico e o terceiro
conta a histria de um grupo de vigilantes durante a Guerra Fria. Sem substituir nada,
minhas leituras ficaram mais diversificadas. Passaram a incluir autobiografias histricas
como Maus, de Art Spiecelman e Perspolis, de Marjani Satrapi; romances histricos
como Habbibi; quadrinhos de guerra como Os Protocolos dos Sbios de Sio e Apocalipse
Meow; contos romnticos como Retalhos; quadrinhos japoneses ou Mangs como
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Samurai X e Death Note; quadrinhos de histria do Brasil como Dom Joo Carioca;
ademais personagens tradicionais como Tintim, Fantasma, Asterix e Obelix.
O prximo passo foi estudar a arte sequencial1. Os livros em portugus sobre o
tema se resumem a uns poucos ttulos. Depois de t-los lido, foi necessrio importar a
maior parte da bibliografia. Sempre que algum viajava Inglaterra ou aos Estados
Unidos, eu aproveitava para pedir uma lista de cerca de dez livros, cujas referncias
acumulara esperando pela oportunidade. Nesses pases, h uma produo acadmica
abundante sobre o assunto.
2 A EXPERINCIA DAS HQS NA ESCOLA
Normalmente, aqueles que gostam de histrias em quadrinhos foram
alfabetizados lendo gibis. No foi o meu caso. Comecei a apreciar as HQs mais velho.
J era estudante da graduao em histria e professor comunitrio. O que me
impressionou foi a complexidade dos enredos e personagens, que aumentou muito,
especialmente desde a dcada de 1970. Jamais teria imaginado, sozinho, que um
passatempo tido como infantil poderia ser to rico.
Resolvi levar as HQs para as minhas salas de aula e o resultado foi incrvel. Mais
alunos do que eu imaginava conheciam as estrias. Mesmo aqueles que no tinham
tomado conhecimento dos personagens por leitura, haviam os visto em outras mdias
populares como o cinema e jogos eletrnicos. Alguns at escreviam contos prprios
utilizando os personagens das HQs, as chamadas fan fictions. Podemos destacar trs
benefcios flagrantes do uso de quadrinhos nas aulas de histria:
I. O interesse dos estudantes maior se eles entendem que esto aprendendo
coisas relativas ao seu cotidiano. O objetivo dar significado ao que eles leem
todos os dias.
1 Uma das coisas mais importantes para se estudar HQs trata-las como uma linguagem autnoma.
Quadrinhos no so uma espcie de leitura, nem um tipo de imagem. Para diferenci-los, alguns roteiristas,
desenhistas e estudiosos desenvolveram expresses como Nona Arte ou Arte Sequencial. O conceito
de Arte Sequencial pode ser encontrado em EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial: princpios e
prticas do lendrio cartunista. So Paulo: Editora Martins Fontes, 2012.
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II. Se o aluno tem conhecimento sobre o tema trabalhado, ele se sente mais
vontade para participar e debater com o professor. Esse conhecimento pode
vir de uma HQ, basta que a escola legitime esse tipo de saber.
III. Trazer uma forma de expresso diferente ajuda a dinamizar a aula e aumentar
a interdisciplinaridade. O contedo tradicional, na HQ, vem junto com temas
importantes como relaes sociais, moralidade, arte, tempo, linguagem,
cultura e etc.
3 USOS E ABUSOS DAS HQS
Tentei levar minha experincia com arte sequencial para a universidade. Tive
algumas experincias iniciais na graduao e na iniciao cientfica, mas foi na iniciao
docncia que pude me aprofundar melhor. Nesse caso, o trabalho era prtico e realizado
sempre em colgios pblicos do municpio de Niteri.
A base terico-metodolgica do projeto era a tese do intelectual Hans Gumbrecht2.
Segundo o autor, a prtica nuclear das cincias humanas, influenciadas frequentemente
pela filosofia, tem sido a produo de sentido. Assim, as instituies de ensino optam por
um conhecimento terico das cincias humanas, tentando identificar o sentido dos
acontecimentos, o que acaba nos afastando dos fenmenos contemporneos, que so
percebidos pela presena. Gumbrecht mostra que impossvel abrir mo da produo de
sentido, mas que ela fica fragilizada sem a produo de presena. Produzir presena
manter o contedo abstrato ligado percepo material do mundo atravs dos cinco
sentidos humanos.
Portanto, a funo era organizar projetos extracurriculares que estimulassem os
alunos a produzir presena e oficinas que atingissem os educadores. Em conjunto com o
professor orientador, criamos um grupo de trabalho sobre HQs. Da perspectiva de
Gumbrecht, elas serviriam como estmulo visual para criao de conhecimento.
Logo percebi que alguns professores de histria utilizavam as HQs. O grande
problema que as apropriaes eram quase sempre duvidosas. Gostaria de citar dois casos
2 Hans Ulrich Gumbrecht professor de literatura da Universidade de Stanford. Foi professor convidado
da PUC-RIO e tem trabalhos importantes tambm nas reas de Filosofia e Histria. autor do livro
Produo de presena: o que o sentido no pode transmitir.
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flagrantes a ttulo de ilustrao. No primeiro, assisti a uma apresentao de slides sobre a
Guerra Hispano-Americana, de 1898. O ttulo de um dos slides era Imperialismo, mas
logo abaixo vinha uma grande imagem do Capito Amrica, escudo em riste, avanando
para cima da tela. Levando em conta que o Capito ainda nem sequer existia, a associao
, no mnimo, problemtica. Depois, um dos professores alegou que o Thor fazia parte da
mitologia germnica e por isso demonstraria a simpatia do americano pelo nazismo.
Nesta ltima situao, bastava saber que o deus Thor provm da mitologia nrdica.
Aparentemente, os educadores tinham consideraes que desejavam fazer a priori
e, para reforar seus argumentos, tomavam as HQs em mos no que fosse possvel, a
posteriori e sem muita preocupao por preservar o sentido original das estrias. Por
conta disso, acabavam criando representaes dos personagens como emissrios ou
garotos-propaganda das polticas exteriores do governo dos Estados Unidos. Isso
especialmente verdade no caso do Capito Amrica.
A adoo desse tipo de imagem pr-concebida dos personagens pode desestimular
os alunos a l-los ou pelo menos coibir quaisquer comentrios sobre o assunto no
ambiente escolar e durante as aulas, o que, de qualquer modo, no positivo. O resultado
direto que o aluno passa a se envergonhar da sua leitura. Sua histria em quadrinhos
no foi legitimada pelo educador, porque mera panfletagem do governo norte-
americano.
Isso especialmente preocupante se pensarmos que muitos alunos tem gibis como
suas nicas leituras e outros tantos esto sendo alfabetizados pelo seu interesse em HQs.
Desestimul-los a conhecer arte sequencial, especialmente com base em argumentos
frgeis ou mal embasados, pode significar o fim do prazer em ler ou mesmo do gosto pelo
aprendizado.
4 OBJETIVOS E METODOLOGIA
Passei a trabalhar cada vez mais divulgando as possibilidades das HQs e a
importncia de no banaliza-las. Comecei a conhecer outros estudiosos que tinham os
quadrinhos como objeto e aceitei cada oportunidade para palestrar sobre o assunto. Em
uma dessas chances, levei alguns dos meus HQs favoritos para debater sua relevncia
histrica. Entre eles, um exemplar do Homem-Aranha lanado recentemente, que se
ambienta na Crise de 1929.
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Ao final de tudo, fui procurado por uma senhora que aparentava ter seus cinquenta
anos. Ela me contou que tinha filhos e que os havia proibido de ler HQs. A pessoa havia
vindo minha palestra acreditando que eu iria falar sobre os malefcios dos gibis.
Contudo, ela mudara de opinio e veio me dizer que sairia dali direto para a livraria, onde
compraria alguns ttulos que anotou dentre os vrios que mencionei. Um deles era o tal
Homem-Aranha.
Neste momento, acredito ter encontrado um tema em histria que pode dialogar
com o presente. Afinal, este o grande desafio do historiador: fazer de seu ofcio algo
vivo e dinmico. Por isso, escolhi fazer uma introduo voltada para justificar minha
pesquisa. O objetivo foi dar uma satisfao de porqu estudo HQs e como acredito que
isso pode influenciar na apreenso do que vivo3.
Esta Monografia de Concluso de Curso (TCC) da graduao em histria tem dois
objetivos principais:
I. Analisar o desenvolvimento do mito americano, associado indstria de
Comics e o seu pblico alvo.
II. Tomar um dos personagens mais mal interpretados das HQs como objeto: o
Capito Amrica.
O primeiro objetivo corresponde ao primeiro captulo. A principal dificuldade
que as HQs comumente so apresentadas como elementos subsidirios em grandes
estudos sobre mdia. Consequentemente, existem pequenos trechos tratando do assunto
em um grande nmero de obras. Aglutin-los exige um esforo adicional para pesquisar
a ordem dos acontecimentos e outros dados possivelmente deixados de lado.
O segundo objetivo corresponde ao segundo captulo. Esse foi sensivelmente mais
complicado do que o primeiro. A principal dificuldade era definir como trabalhar um dos
heris mais antigos das HQs no curto espao de uma TCC. A sada foi realizar um
trabalho comparativo com outro personagem, o Justiceiro.
O Justiceiro um personagem controvertido. um tpico anti-heri, defensor de
execues extralegais, perversor da lei e sempre em busca de vingana contra o crime
organizado. Ele um vigilante fora da lei, que s vezes dependendo de quem escreve o
3 A apreenso do que vivo uma preocupao em BLOCH, Marc. Apologia da histria ou o ofcio do
historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2002.
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roteiro - percebe as consequncias destrutivas de seus atos. Houve alguns encontros entre
o Justiceiro e o Capito Amrica. Neles, o Capito se viu obrigado a defender o que
acreditava, criando uma tima oportunidade para estuda-lo.
Na comparao entre Capito Amrica e Justiceiro, espero que fiquem claras, pelo
contraste entre os dois, algumas das principais caractersticas, motivaes e discursos do
Capito. Alm disso, espero demonstrar que o Justiceiro um personagem muito mais
criticvel do ponto de vista analtico. Ele seria muito bem recebido pelos conservadores
da sociedade carioca que apoiam os grupos de justiceiros agindo margem da lei.
Mesmo assim, o Capito Amrica continua gerando mais averso.
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CAPTULO 1
O MITO AMERICANO E A EVOLUO
DAS HISTRIAS EM QUADRINHOS
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1 O MITO CLSSICO DE CAMPBELL E O MITO
AMERICANO DE LAWRENCE E JEWETT
Acorrentado a uma rocha, Prometeu tinha tempo de sobra para pensar sobre o que
havia feito. Roubar o fogo dos deuses e dar aos homens foi um ato de coragem. A
humanidade, dali em diante, podia desfrutar da superioridade sobre os outros animais.
Sua desobedincia, no entanto, foi punida por Zeus. Os grilhes, agora, machucavam seus
pulsos. Mas Prometeu um heri e sabe que deve passar pelas provaes. pena no
poder contar a todos suas faanhas, afinal, sua nica companhia a guia que lhe devora
o fgado durante o dia. noite ele se regenera, para que tudo se repita assim que a luz do
sol vier incomodar seus olhos pela manh novamente. O ciclo seria eterno, no fosse
Hrcules a salv-lo. Finalmente, Prometeu pode voltar ao mundo que ajudara a
transformar, sabendo que seus protegidos jamais teriam de se curvar ao Olimpo como ele.
Casou-se e teve um filho, pronto para contribuir com a comunidade de outras maneiras.
Dizer que isso um mito, seria a concluso mais bvia possvel. No to fcil
seria explicar o porqu, porm, far-se- necessrio. um mito, pois ajuda a produzir uma
interpretao sobre o mundo. Prometeu filho do ciclo de vida humano, neto do cu e da
terra. Sua estria uma alegoria para a descoberta do fogo, que tambm representa a
inteligncia. Levada ao p da letra, ela chega mesmo a ser absurda.
Ento, outra pergunta que poderia ser levantada , se falta verossimilhana
externa, como resiste uma fico contada pela primeira vez no sculo VIII a. C. e
recontada desde a? Em verdade, o mito um relato socialmente construdo, que pode
divergir sensivelmente da realidade que busca retratar, desde que reflita os valores e a
cultura do meio onde foi produzido. Esta relao permite que ele seja testemunho
histrico ad hoc.
Examinando com calma o furto da chama divina, veremos que o mito clssico
trata essencialmente dos ritos de iniciao da antiguidade grega (CAMPBELL, 1992). O
indivduo chamado a deixar seu estado de inrcia para adentrar no mundo sobrenatural.
Uma vez l, ele ser testado e sofrer at aprender tudo que precisa para voltar sua
comunidade. De volta, vitorioso, ele porta sua beno ou conquista e j pode contribuir
para o bem comum de outras maneiras.
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Por conseguinte, possvel identificar um padro narrativo. A bordo da nau Argo,
Jaso junto aos argonautas - trouxe o toso de ouro, para que pudesse assumir o trono
de Iolco. Perseu cortou a cabea de Medusa, a grgona que poderia t-lo petrificado com
um s olhar, e na viagem de volta casou-se com Andrmeda. Enfim, Teseu teve de
derrotar o minotauro para livrar a cidade de Creta. Em comum, todos eles voltaram ao
convvio cotidiano nas suas comunidades.
Ora, se a funo principal do mito produzir um sentido metafsico para
determinado agrupamento populacional e o mundo ocidental, desde Descartes, associa o
existir ao exerccio igualmente metafsico do pensar, logo a fico funciona na realidade
atual, contanto que siga produzindo um sentido amplamente compreensvel. Dito isso,
duas concluses podem ser tiradas:
I. O desenvolvimento do racionalismo no fez desaparecer a mitologia nas
sociedades contemporneas.
II. O mito se transformou ao longo do tempo e de acordo com o espao
geogrfico. No fosse esta flexibilidade, ele teria perdido coerncia com o
passar dos anos, conforme fossem verificadas mudanas no grupo que o
criou.
Assim, interpretaes para a vida coletiva continuaram a proliferar. Com o
advento da globalizao, o mito americano se tornou a mais conhecida e difundida
delas. Como era de se esperar, muita coisa mudou no caminho, a comear pelo ocaso
dos ritos de iniciao. A mudana de paradigma se aceleraria com a expanso do
cristianismo.
Todos os anos, na pscoa, a vida de Jesus Cristo relembrada. A recepo
triunfante em Jerusalm, seguida de sua priso, julgamento e condenao. Ao morrer
na cruz, o sacrifcio do filho de Deus redimiu a humanidade dos pecados, da se d
sua ressurreio e ascenso aos cus. Esse o centro da vida crist. O que pode parecer
a reiterao de um fato infeliz , na verdade, uma celebrao de uma forma de amor
incondicional e de doao absoluta.
O mito americano foi concebido em um corpo social onde Jesus existe como fato
social. Logo, a redeno melhor compreendida que a iniciao. Ela faz parte da
mentalidade coletiva, pois possui um paralelo com o elemento mais forte da vida
cotidiana. Cristo o exemplo a ser seguido. Isso transcende o aspecto meramente
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religioso para se tornar um dado cultural mais amplo e menos circunscrito a
determinadas instituies. Contudo, jamais o modelo poder ser alcanado por
algum na condio humana, ao menos no na ordem concreta.
O heri pode abrir mo de seu bem estar para salvar pessoas que no conhece,
mas sobre as quais se sente responsvel. Ele pode ser altrusta, de maneira a provocar
a catarse no interlocutor. O mito americano , essencialmente, um conto de redeno
(LAWRENCE; JEWETT, 2002). Veremos o protagonista a salvar, redimir ou
expurgar determinada coletividade, de maneira objetiva ou subjetiva. O heri faz o
que ns gostaramos de fazer em nossos melhores momentos.
A sociedade americana deve servir de espelho para a humanidade, destinada a
representar um papel moral nico no mundo. O mito americano - descendente direto
desse conceito de city upon a hill - deve resgatar a cidade ou a comunidade de toda
perverso moral que possa leva-la para longe do caminho de modelo a ser seguido.
Assim, fica preservado o excepcionalismo americano.
2 ERA DE OURO: O MITO AMERICANO NO
NASCIMENTO DO GNERO SUPERHERICO
O ano de 1929 havia mergulhado os Estados Unidos na grande depresso.
Derrotado nas eleies de 1932, o Presidente Herbert Hoover pagou o preo por no
conseguir reverter o quadro que se apresentava. Seu sucessor, Franklin Delano Roosevelt,
assumiu a opo de intervir na economia. O sistema comeava a dar sinais de
sobrevivncia graas ao pacote de medidas conhecido como New Deal. Ainda que
demorasse at a Segunda Guerra Mundial para serem completamente apagados os efeitos
da crise, j era possvel falar em uma retomada da confiana na economia.
A dcada de 1930 o ponto de inflexo na formao do mito americano4.
Roosevelt, j em 1935, foi bem sucedido em mudar a relao entre Estado e sociedade,
4 As transformaes do modelo heroico na dcada de 1930, assim como outras informaes sobre o mito
americano, a indstria de Comics e o pblico alvo podem ser encontradas em: LAWRENCE, John Shelton;
JEWETT, Robert. The myth of the american superhero. USA: Wm. B. Eedirmans Publishing Co., 2002.
Mas principalmente em: ASHBY, LeRoy. With amusement for all: a history of american popular culture
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de sorte que o tipo gangster dos anos da depresso foi substitudo, na cultura popular5,
por um cowboy solitrio, ou pelo agente do governo a servio da lei. A confiana no
poder central veio custa dos poderes paralelos.
Desde Walt Disney - que lanou seus primeiros trabalhos conhecidos na dcada
de 1920 - o pblico infantil era considerado o principal alvo do entretenimento, no
considerando apenas os nmeros absolutos, mas principalmente pela influncia que
exercem as crianas sobre o contedo consumido por seus pais e responsveis. Visando
educa-las, muitas famlias optam por diverses mais compreensveis ao seu nvel de
desenvolvimento cognitivo ou por contedos que tragam lies de moral e tica
desejveis. Portanto, podemos averiguar uma transposio do mito para formatos infanto-
juvenis.
Nesse contexto, as histrias em quadrinhos (HQs) ou Comics para usar o termo
em ingls, comearam a se consolidar nos EUA. Os primeiros lanamentos eram similares
s tirinhas de jornal, normalmente, comdias. Algumas editoras as publicavam como
complemento, em turnos alternativos. Era o caso da Eastern Color Print Company, que
em 1933 levou s bancas Funnies on Parade. No ano seguinte, a 10 cents cada, a Eastern
vendeu mais de duzentos mil exemplares de sua nova revista, Famous Funnies. Apesar
de recentes, as vendas estabilizaram, atingindo um lucro mensal de trinta mil dlares. No
era muito, mas representava capital e emprego nos idos da crise econmica.
A princpio, era raro que as pginas trouxessem qualquer contedo indito.
Mesmo quando outras editoras entraram no negcio, apostando em ir alm das piadas, os
personagens das HQs mais vendidas ainda vinham dos tabloides. Era o caso de Tarzan,
Flash Gordon e Popeye. As reedies eram muito comuns, assim como os casos velados
de plgio. A primeira revista em quadrinhos a trazer somente contedo original foi a New
Fun.
Em 1937, comeou-se a aplicar o modo de produo fordista ao mercado editorial.
Os roteiristas criavam as tramas, os locutores, encadeavam tudo e passavam o roteiro
since 1830. Kentucky: The University Press of Kentucky, 2006 e HOWE, SEAN. Marvel Comics: a
histria secreta. So Paulo: Editora LeYa, 2012.
5 Segundo Robert Jewett e John Lawrence, a cultura clssica de hoje provavelmente j foi cultura popular
no passado. No deve haver qualquer forma de hierarquia entre estas duas formas de expresso, que compe
um mesmo espectro mais amplo: o da cultura em geral.
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pronto aos desenhistas. Estes dividiam as tarefas, de modo a produzir o esboo, inserir os
dilogos e fazer a arte final. Ao final do servio, a publicao era feita em uma grfica
parte, que ficava encarregada de terminar tudo. Nesse momento nasceu a indstria de
Comics.
A relao da grande depresso com esta indstria foi sempre paradoxal. Se por
um lado, a necessidade de gerar capital extra levou muitas editoras a rodar quadrinhos
fora do horrio comercial e com isso nasceu o novo produto, por outro, a cautela impedia
uma posio mais agressiva e limitava as possibilidades de evoluo do mesmo. A arte
sequencial nasceu na crise e por causa dela permaneceu marginalizada. As incertezas do
mercado levavam os grandes investidores a no colocarem seu dinheiro naquilo que
consideravam como uma aposta arriscada, mas o desemprego permitia s pequenas
editoras contratarem artistas e roteiristas por baixos salrios, suprindo seus quadros de
funcionrios. Em resumo, o dficit financeiro manteve as histrias em quadrinhos como
uma possibilidade, nem mais, nem menos.
Foi pelo tambm mdico valor de cento e trinta dlares que Jerry Siegel e Joe
Shuster venderam a ideia do Super-Homem para a National Allied Publications. Ele seria
lanado em Action Comics #1, de 1939. O personagem se tornaria instantaneamente
popular e j no ano seguinte teria um ttulo prprio. O homem de ao, como ficaria
conhecido, gerou quase um milho de dlares em lucro, alm de pilhas de produtos
relacionados ao seu nome, como programas de rdio e bonecos de ao.
O Super-Homem foi uma verdadeira revoluo, tanto na indstria de Comics,
quanto no mito americano. Esse lanamento seria o marco inicial da chamada Era de
Ouro6 dos quadrinhos. Seu conceito era uma mistura de histrias de extraterrestre, fico
cientfica e pulps7. Sozinho, ele criou o gnero superherico. Isso significa que o contedo
produzido seria substantivamente modificado, o que implica dizer que as editoras
deveriam ousar mais. O heri do mito, por sua vez, ganhou poderes inumanos e virou
super.
6 O uso da diviso em eras usual na indstria de Comics, tendo se tornado parte da cultura das HQs.
difcil determinar como surgiram essas expresses, mas elas so usadas at hoje por autores de quadrinhos
como Will Eisner e Alan Moore.
7 Pulps so estrias impressas em material de baixa qualidade a preos baixssimos, contendo gneros
populares como os westerns. At hoje fazem parte do imaginrio da cultura pop.
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Inequvoca foi a atuao do Super-Homem contra os viles da crise e inimigos do
New Deal. Enfrentou a ganncia das grandes corporaes, a m f dos empresrios, a
corrupo dos funcionrios pblicos, ajudou os necessitados e, principalmente, os
oprimidos. Em ltima instncia, defendeu o reformismo social. Mais uma vez, cabia ao
heri realizar o desejo que o homem comum era incapaz de alcanar sozinho.
Pela primeira vez, superpoderes seriam amplamente divulgados na cultura popular
norte-americana. A fora descomunal, pele prova de balas e a habilidade de realizar
saltos incrveis que evoluiria para a capacidade absoluta de voar quando fosse feita a
primeira adaptao para a televiso. Todas estas caractersticas, embora potencialmente
violentas, convergem para que o Super-Homem nunca precise tirar a vida de ningum.
Sua superioridade suficiente para dominar o inimigo, seja ele quem for. Esse aspecto
especialmente importante, pois, como j mencionado, as histrias eram voltadas para um
pblico infantil, supervisionado por um ambiente familiar sensivelmente mais
conservador do que o padro atual.
Esta no a nica contradio do mito. O heri luta pela democracia, mas age
unilateralmente; ele lidera, sem ter sido escolhido para esta finalidade; admirado e pode
at corresponder, mas no se deixa levar pela pulso sexual. Essa configurao asctica
e contraditria pode ser entendida em funo do contexto da dcada de 1930. Roosevelt
e o New Deal criticaram o liberalismo exacerbado da dcada anterior, garantindo os
direitos coletivos pelo recurso a um poder central e executivo mais forte, o que
contraditoriamente reforou a ideia do indivduo providencial, com capacidade redentora.
Futuros autores mudariam esse modelo em definitivo, humanizando o heri. Outros
satirizariam esta idealizao, com personagens como Deadpool8.
A dcada de 1930, consolidou o mito do heri americano e permitiu que histrias
em quadrinhos se fixassem como passatempo entre as crianas dos Estados Unidos.
Durante os anos da grande depresso e mesmo quando as coisas aparentavam melhorar,
os quadrinhos funcionaram como um escapismo. Uma compilao dos elementos destas
fugas que mais chamavam a ateno dos jovens deu origem ao Super-Homem. De fato,
o ano de 1939 deu poderes sobre-humanos ao mito, transformando-o em super-heri,
atravs dos Comics. Surgia um novo gnero de HQs e um modelo diferente de heri.
8 Anti-heri criado por Rob Liefeld e Fabian Nicieza. Se popularizou graas a sua postura irreverente e
politicamente incorreta.
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A National Comics se fundiria criadora do Batman, Detective Comics, para
formar a DC Comics. Enquanto isso, Martin Goodman fazia o possvel para alavancar sua
prpria editora, a Timely Comics. Finalmente, a primeira revista em quadrinhos da Timely,
intitulada Marvel Comics #1, saiu em 1939. A editora seria responsvel pelas publicaes
de Namor, o prncipe submarino, e do Tocha Humana original. A revista vendeu quase
novecentos mil exemplares, superando a mdia da DC Comics. Estava lanada a maior
rivalidade do mercado editorial de HQs.
3 EM GUARDA: OS HERIS NA GUERRA
Apesar do sucesso inicial, a Timely Comics havia largado em segundo e, pela
lgica do mercado, precisava inovar se quisesse ganhar espao entre os consumidores. A
instituio optou por aproximar seus produtos do pblico. Um dos meios para atingir esta
finalidade era se utilizar de espaos familiares.
Os universos ficcionais costumavam apresentar cidades imaginrias como a
Metrpolis do Super-Homem ou a Gotham City do Batman. Ficava a impresso de que
os heris no habitavam o mesmo universo que o nosso e sequer o mesmo universo entre
si. Ao contrrio, na arte da Timely era possvel distinguir a silhueta de Manhattan.
Algumas vezes, monumentos eram destrudos nas brigas entre mocinhos e bandidos. Uma
delas poderia acontecer de frente para a Esttua da Liberdade, por que no? Ademais, os
personagens possuam conhecidos em comum. A amiga do Tocha era a mesma mulher
por quem Namor se apaixona na trama.
Esses elementos davam a entender ao leitor que todas as estrias se passavam
dentro de um mesmo fluxo espao-temporal: aquele contemporneo ao leitor.
Eventualmente, era plausvel, e at certo ponto esperado que protagonistas diferentes se
encontrassem. Isso poderia acontecer na esquina da sua casa, no seu colgio, ou prximo
a algum ponto turstico de interesse particular.
Com esta inovao, os heris passavam a deter o potencial para influenciar os
fatos do mundo real. A possibilidade ainda no havia deixado o campo da teoria. O fato
das pginas conterem criminosos comuns no significava que eles pertencessem ao
mundo real. Eram identidades, rosto e personalidades inventadas. Entretanto, j se
indicava a iminncia de inimigos reais. Afinal, se tudo fazia parte de uma mesma
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realidade, como as HQs poderiam ignorar eventos de grandes propores, como uma
guerra, por exemplo?
Seria insensato dizer que os viles fictcios da DC Comics no faziam sucesso.
Muito pelo contrrio. Acontece que o nazi-fascismo exercia sobre o americano uma
mistura de averso e fascnio (WEINER et al., 2009). Era um inimigo to espetaculoso
por seus ritos e demonstraes de fora, quanto odiado por sua ameaa liberdade. Fora
do Congresso Nacional, o apoio entrada do pas na guerra era quase absoluto e inclua
mesmo o Partido Comunista dos Estados Unidos, que alterou sua posio aps a invaso
da URSS (KARNAL et al., 2010). Quando a Timely trouxe o conflito europeu para as
revistas em quadrinhos, o sucesso foi imediato.
No entanto, a incorporao dos nazistas aos Comics deu-se de maneira gradual no
seio da editora. Sua presena comeou a ser sentida em aparies pontuais, como quando
Namor desviou um submarino alemo prximo costa. Uma proposta muito mais
agressiva foi lanada quando o Marvel Boy9 enfrentou um malevolente ditador
estrangeiro, de nome Hiller. A trama trazia, inclusive, referncias a aspectos concretos,
como uma meno Blitzkrieg10. Mas porque no estampar uma capa com nazistas de
uma vez?
Efetivamente, a continua relutncia se deveu excessiva precauo do dono da
empresa, Martin Goodman. Ele temia que as estrias por ele publicadas fossem rejeitadas
pela expressiva comunidade alem que residia nos Estados Unidos. Na pior das hipteses,
Goodman tinha ainda de se preocupar com um possvel processo judicial.
Joe Simon e Jack Kirby criariam o personagem que romperia definitivamente com
a discrio dos anos anteriores. Os autores negociaram um acordo diferente para leva-lo
s bancas, desta vez, receberiam royalties referentes aos lucros da venda, sinal de que
tinham alguma dimenso do que haviam acabado de criar. Em 1941, o Capito Amrica
estreou com um ttulo prprio, Captain America Comics (CAC). Na capa, o heri dava
um soco no rosto de Hitler. Nada de pseudnimos ou subterfgios.
A economia de guerra poderia ser um empecilho cultura popular como um todo.
Alguns itens bsicos para a produo poderiam ser requisitados, encarecer ou escassear.
9 Personagem criado por Joe Simon e Jack Kirby. Foi lanado pela Timely Comics em 1940.
10 uma ttica militar utilizada pela Alemanha de Hitler, que consistia em um ataque coordenado
sequencial, com foras terrestres e areas, visando desestabilizar as defesas do oponente e reduzir sua
capacidade de reorganizao. O termo significa guerra-relmpago, em alemo.
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O papel, essencial para a produo de revistas em quadrinhos, havia sido racionado. No
obstante, o Presidente Roosevelt reconhecia no entretenimento um elemento importante
para o esforo de guerra e garantiu que o processo criativo continuasse sem censura ou
limitaes maiores.
Mesmo que mantendo sua liberdade de escolha, muitas editoras optaram por
apoiar a luta contra o totalitarismo. Podemos destacar quatro motivos:
I. A censura familiar era um dos principais empecilhos s vendas. A defesa
do patriotismo era uma forma de mostrar a pais preocupados que Comics
no eram uma m influncia e podiam trazer bons exemplos.
II. A Segunda Guerra Mundial dominava algo em torno da metade do espao
de todas as mdias disponveis. Trazer esse assunto aumentou a
identificao do pblico com as HQs. Muitos americanos gostariam de
golpear Hitler como o Capito Amrica.
III. Roteiristas e artistas judaico-americanos, como Jack Kirby, tinham uma
dupla motivao para apoiar a luta contra o nazismo. Desprezavam a
perseguio aos judeus e desejavam inserir-se no pas ou, s vezes,
agradec-lo pela hospitalidade.
IV. Enfim, dada a aceitao da guerra em vrios setores norte-americanos,
seria difcil pensar em uma postura diferente.
A primeira edio de CAC vendeu mais de um milho de exemplares. Enviando
10 cents, o leitor podia se inscrever no grupo dos sentinelas da liberdade e receberia,
em adio, um distintivo com o rosto do Capito. Foram milhares de pedidos. Naquela
conjuntura, o discurso nacionalista era uma mina de ouro.
Joe Simon ficou encarregado de capitalizar a euforia patritica, bem como o
sucesso do personagem, em novas empreitadas. Surgiram ttulos como USA Comics; All
Winners Comics e Young Allies. Este ltimo era dedicado aos jovens parceiros, como
Bucky, ajudante do Capito Amrica.
O consenso da guerra, amplamente estimulado por outros ramos do
entretenimento como Hollywood, pelo Poder Executivo e por amplos segmentos sociais,
formou um mercado consumidor mais homogneo para as editoras que souberam ler seu
pblico. A entra o trabalho de indivduos como os j mencionados, Simon e Kirby. Mais
importante do que o esforo criativo em si, era o senso de oportunidade. Nesse sentido, a
indstria de Comics tambm ajudou a criar o consenso. Ao explorar o sentimento
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patritico, ela o estimulou, semelhante a um ser humano que coloca lenha na fogueira
para se manter aquecido. A indstria estava aquecida e pretendia se manter desse jeito.
Depois do ataque a Pearl Harbor, CAC no deixou mais a liderana de vendas da
Timely. E no era pouco, pois o comrcio de HQs estava em pleno crescimento. Juntando
todas as editoras, chegava-se ao nmero de cento e vinte e cinco ttulos diferentes. As
vendas somadas pularam de quinze milhes de gibis no comeo de 1942 para vinte e
cinco milhes no final de 1943. semelhana do que fez com economia norte-americana
no geral, a Guerra nos quadrinhos sepultou a crise de 1929 e alavancou as vendas.
Uma boa parte dos compradores era das foras armadas. Nos campos de
treinamento, para cada revista de alta circulao como a Life, havia dez HQs. A leitura
acompanhava os efetivos no exterior. Uma em cada quatro revistas enviadas para a
Europa e Pacfico era uma HQ. Militares representavam 25% dos leitores de Capito
Amrica. Esse dado da composio dos consumidores levava as estrias a serem ainda
mais nacionalistas. Quanto maior fosse a vitria, mais fcil as edies esgotariam. No
exrcito, o combate quinta coluna, espies, traidores e Alemanha nazista era muito
bem-vindo. At o final da guerra se daria a consolidao da narrativa da vitria, seja sobre
a depresso ou sobre o eixo.
Os bons ventos, claro, no soprariam eternamente e muito breve se seguiriam
tempos de uma inquietante calmaria. Durante esses tempos difceis, muitos editores e
leitores remanescentes comeariam a se referir ao perodo que comeou em 1939, de uma
maneira nostlgica, como a Era de Ouro das histrias em quadrinhos. Esta Era de Ouro
comearia a dar sinais de esclerose j em 1945, mas s seria sepultada definitivamente
nove anos depois, por motivos que abordaremos a seguir. Como saldo desse perodo,
temos a criao de importantes personagens como Namor; Tocha-Humana; Capito
Amrica; Aquaman; Arqueiro Verde; Batman; Besouro Azul; Lanterna Verde; Mulher
Maravilha; Robin; Flash; Tio Sam e Capito Marvel.
4 AS METAMORFOSES DO PS- SEGUNDA GUERRA
GUERRA FRIA
Aps o Dia D data do desembarque das tropas aliadas na Normandia e os
ataques nucleares a Hiroshima e Nagasaki, a guerra finalmente chegou a seu termo. Nos
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Estados Unidos, passados trs anos de intensas transformaes, a indstria de Comics
vivia uma situao completamente diferente. Internamente, era uma indstria mais
sofisticada, com uma infraestrutura produtiva muito superior quela da dcada de 1930.
Externamente, no entanto, enfrentava a diluio do seu mercado consumidor.
Quando as tropas americanas comearam a avanar na Europa, a preocupao com
a verossimilhana externa das HQs j era recorrente. que na poca, uma revista em
quadrinhos demorava em mdia quatro meses para ser publicada. Quando isso
acontecesse, a guerra j poderia ter acabado. A presena dos nazistas nos enredos foi
diminuindo gradativamente e depois de maneira acentuada com a capitulao da
Alemanha. O principal tema das estrias havia desaparecido. Subitamente os heris no
tinham mais tanto sentido assim. Como j foi ressaltado anteriormente, o mito, sem um
amplo respaldo na sociedade que o criou, tende a enfraquecer.
A queda nas vendas de CAC explicada pela ausncia de um objetivo claro,
considerado nobre e necessrio por uma parcela majoritria dos leitores. De fato, seria
necessrio algo verdadeiramente legtimo para atrair a ateno da populao naquele
momento. Os leitores das Foras Armadas estacionados na Europa retornavam para casa,
preocupados com questes essenciais como as possibilidades de emprego ou a
reconstruo de lares deixados para trs h tanto tempo. Por sua vez, o pblico infantil
atingia a maturidade e comeava a questionar a qualidade das histrias de super-heris,
que eram at ento marcadas por uma absoluta simplicidade de trao e trama.
Muitas demisses foram realizadas guisa da diminuio dos lucros at 1950,
pelo menos. Isso ajudou a consolidar o nome dos que conseguiram continuar. O principal
nome da Timely - que passaria a se chamar Atlas Comics desde que a editora decidiu
distribuir as revistas por conta prpria em 1952 era Stanley Lieber ou Stan Lee, um
parente relacionado ao dono da empresa, Martin Goodman.
No vazio deixado pelos super-heris, novas tendncias comearam a surgir. Gibis
de guerra ficaram populares desde o incio da Guerra da Coria, em 1950. O gnero de
terror tambm foi amplamente difundido depois que a EC Comics publicou sucessos
como Vault of Horror; Tales from the Crypt e Haunt of Fear. Para se ter uma ideia, CAC
mudou de nome aps sua 73 edio, passando a se chamar Captain America Weird Tales.
Duas edies foram publicadas sob esse ttulo, sendo que a ltima chegava ao ponto de
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no trazer o heri na capa ou em qualquer uma das estrias. Em 1951, a revista do Capito
Amrica foi cancelada.
preciso ressaltar que, no ps-guerra, as autoridades nos Estados Unidos
comearam a se preocupar com o problema da delinquncia juvenil, estreitamente ligado
luta maior contra a subverso comunista. Nesse contexto, as HQs de guerra e terror,
com suas temticas criminosas, violentas e sexualmente permissivas no ajudaram na
imagem dos Comics como um todo. Histrias em quadrinhos passaram da boa fama
patritica do esforo de guerra ao posto de vils em poucos anos. Pequenas cidades
fizeram fogueiras com as histrias em quadrinhos, revistas importantes como a Time e a
Colliers publicaram artigos crticos a elas e algumas cidades como Detroit tiveram
projetos de lei para bani-las.
Dada a gravidade da situao, um grupo de editores reuniu-se com a finalidade de
estabelecer conjuntamente uma srie de normas que deveriam nortear a produo de
histrias em quadrinhos de bom gosto. As estrias policiais, por exemplo, foram
substitudas por romances e estes por tirinhas engraadas. Isso arrefeceria os nimos
temporariamente.
Logo, no entanto, a situao voltaria a se deteriorar. Em 1954, Fredric Wertham,
um psiclogo infantil que j havia cruzado o pas em palestras e depoimentos alertando
sobre o perigo das HQs, publicou seu livro A Seduo do Inocente. O livro era um
escrutnio de vrios ttulos venda. As pginas incluam ilustraes de espancamento de
cnjuges, sadomasoquismo e assassinatos. Wertham estimulou a criao de um subcomit
no Senado sobre o assunto, do qual foi perito. Ainda que o subcomit tenha paralisado
suas atividades, o objetivo de atacar a credibilidade das HQs fora alcanado. O sentimento
paranoico de muitos americanos sobre a possibilidade de gibis influenciarem
comportamentos delinquentes em seus filhos e na juventude em geral se espalhou
rapidamente.
Ainda em 1954 vrias editoras fecharam as portas. Os editores que resistiram
formaram a Comics Magazine Association of America. Agora no era mais uma questo
de esforo preventivo, mas uma tentativa de sobrevivncia. As medidas, portanto, foram
muito mais profundas. As palavras horror e terror foram banidas dos ttulos; vampiros,
zumbis e lobisomens foram proibidos nas estrias; no era permitido desenvolver
qualquer tipo de simpatia por criminosos; a santidade do casamento devia ser preservada
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e, por fim, o bem deveria sempre vencer o mal. As revistas que se adequassem ganhariam
o famigerado selo do Cdigo de tica. Sem o selo, as distribuidoras se recusariam a fazer
a distribuio dos exemplares.
O selo era concedido pela Autoridade do Cdigo dos Quadrinhos (Comics Code
Authority). O principal efeito dessa medida era congelar artificialmente o mito
americano. No momento em que o pblico pedia estrias mais maduras, mais complexas
e mais sombrias, nomes importantes da sociedade advogavam com sucesso a necessidade
de manter as histrias simples onde o bem vence o mal como forma de combater a
subverso juvenil. O Cdigo de tica trataria de manter o mito americano imutvel
perante todas as turbulncias, levando inmeras editoras falncia.
Com o mercado passando pelo seu pior momento, os Comics se viram ofuscados
ainda pela ascenso da televiso e do Rock n Roll. As editoras reagiram de maneira
diferente ao momento. Enquanto a Timely fez severos cortes nos gastos, a DC Comics
iniciou um processo de enobrecimento dos seus personagens, que passaram a ser
autoridades respeitadas como policiais ou cientistas. Outra marca que liderava as vendas
era a Dell, com as licenas vitalcias dos personagens da Disney e da Warner Bros.
nesse contexto que temos a volta do Capito Amrica. Aparentemente era
desejvel do ponto de vista do cdigo aplicar o modelo patritico da Segunda Guerra ao
novo contexto da Guerra Fria. Em 1954 foram publicadas trs edies do personagem sob
autoria de John Romita Senior. Cada revista trazia trs histrias, totalizando nove contos.
Absolutamente todos os nove viles presentes nas estrias so comunistas. A capa trazia
as inscries Capito Amrica, esmagador de comunistas (Commie Smasher). As
vendas foram mnimas e o ttulo foi cancelado. A editora rapidamente percebeu que a
ameaa vermelha no era um consenso.
Quando o Capito Amrica surge de novo nas pginas da Marvel, a editora
publicaria uma nova verso dos eventos, segundo a qual o personagem fora congelado no
final da Segunda Guerra e descongelado apenas na dcada de 1960. Assim, todos as
estrias do esmagador de comunistas teriam sido perpetradas por um falsrio vestindo
as estrelas e listras. Esta ideia de um impostor demonstra vergonha ou repulsa com relao
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ao Capito de 1954. Essa vergonha se assemelha ao prprio sentimento com relao ao
Cdigo de tica e ao prprio Macarthismo11.
5 ERA DE PRATA: O RETORNO DO GNERO
SUPERHERICO
Alguns anos aps o lanamento do Cdigo, o gnero superherico comearia a
voltar tona. A DC Comics passara a publicar heris advindos de profisses respeitveis
na sociedade. Em 1956, era lanado o novo Flash, logo mais, em 1959, o novo Lanterna
Verde e, enfim, em 1960, a Liga da Justia se tornava o pice desse processo. Esse retorno
ficaria conhecido como Era de Prata.
Acontece que a volta de Jack Kirby Marvel Comics, agora em parceria com Stan
Lee, provocaria uma revoluo dentro da restaurao. Em 1961, foi lanado o Quarteto
Fantstico, tendo a corrida espacial como pano de fundo. Em 1962, nascia o Hulk,
baseado na temtica nuclear. No mesmo ano, chegariam s HQs os personagens Thor,
Homem-Formiga e Homem-Aranha. Em 1963 era a vez do Homem de Ferro fazer sua
estreia. Os principais personagens da editora com exceo do Homem-Aranha foram
finalmente reunidos em uma mesma equipe em 1964, quando debutaram os Vingadores.
A Marvel Comics voltava firme aos negcios, com uma impressionante
quantidade de novos heris, comparvel apenas aos ttulos criados pela concorrente DC
Comics na dcada de 1940. As equipes de super-heris modelo inaugurado pela DC
Comics fizeram especial sucesso na Marvel. Quarteto Fantstico, Vingadores e X-Men
se tornaram extremamente populares entre o pblico em geral.
Na quarta edio dos Vingadores, lanada no final de 1963, os produtores
decidiram relanar o Capito Amrica. Preso no gelo desde a Segunda Guerra Mundial,
o heri reencontrado pela equipe e descongelado para se tornar um dos seus lderes e
principais integrantes. A deciso era muito arriscada. Trazer o sentinela da liberdade para
o contexto complicado da Guerra Fria e tentar vend-lo para um novo pblico alvo,
11 O Macarthismo foi a perseguio de intelectuais, roteiristas, atores, escritores, publicistas e funcionrios
pblicos supostamente ligados com o comunismo. As investigaes foram associadas figura pblica do
Senador Joseph McCarthy.
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universitrio e mais adulto, podia redundar em outro grande insucesso como aquele de
1954.
Entretanto, o Capito Amrica, embora ainda inspirasse honra e coragem, era
muito menos resoluto. O personagem vivia atormentado por ter sido tirado de seu tempo,
vagava pelo mundo sem entender bem no que os Estados Unidos haviam se transformado.
Ele tinha dvidas sobre o seu papel e questionava aquilo que fazia. Alm disso,
permanecia assombrado por problemas pessoais como a morte de seu parceiro Bucky ou
a incapacidade de lidar com sua esposa independente, Sharon.
Na dcada de 1960 o Cdigo de tica dos Quadrinhos ainda era forte e, portanto,
influenciava as HQs no sentido de favorecer uma espcie de consenso da guerra fria.
Mais do que isso, entre o final da Segunda Guerra Mundial e os primeiros desafios
impostos pelos movimentos sociais a partir de 1968, havia ainda otimismo, derivado do
progresso econmico. Desse modo, o Capito Amrica, mesmo complexado e confuso,
far ainda algumas aparies na luta contra comunistas duas mais precisamente - e
contra o prprio Mao Tse-Tung.
Conforme o Cdigo enfraquecesse e os movimentos sociais pelos direitos das
minorias se fortalecessem, a estrias do Capito Amrica mudariam em definitivo. Isso
j era perceptvel no final da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970. O novo Capito
era muito mais crtico e engajado. Foi o principal personagem branco a se envolver com
o movimento negro nas HQs. Passou a criticar os rgos do governo, fossem eles fictcios
ou reais. Sua revolta era cada vez mais dirigida prpria nao. Se anunciava o fim da
Era de Prata. Em 1971, as primeiras edies do Homem-Aranha foram publicadas sem o
Selo da Autoridade do Cdigo dos Quadrinhos.
6 ASPECTOS DA ERAS DE BRONZE E MODERNA:
No alto de um prdio, Gwen Stacy fora feita refm do Duende Verde12. Gwen era a
namorada de Peter Parker e Peter era ningum menos que o Homem-Aranha. O leitor que
via a cena, ficava apreensivo. Mas era a mesma apreenso clich de sempre. O Homem-
Aranha logo apareceria para salvar sua amada. E no momento em que o Duende jogou
Gwen da cobertura, l estava ele, se balanando em sua direo.
12 O Duende Verde o arqui-inimigo do Homem-Aranha.
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Sem dificuldade, o heri interrompeu a queda livre, segurando-a em seus braos.
Mesmo assim, ela no abria os olhos e no dava nenhum sinal de vida. Poderia ser que
tudo no passasse de suspense. Poderia ser um engano. Porm no era, Gwen estava
morta. O Homem-Aranha novamente lamentava aos prantos a perda de mais uma pessoa
querida.
A morte de Gwen Stacy chegava s bancas em 1973, escrita por Gerry Conway. Em
sentido literal, a jovem teria morrido devido ao susto. O prprio Homem-Aranha sustenta
esta verso. Contudo, o roteirista deixou uma marca sonora no quadrinho em que Gwen
amparada. Esta onomatopeia, tpica de HQs, sugere que Gwen pudesse ter quebrado o
pescoo ao ser apanhada pelo Homem-Aranha, quer dizer, durante o resgate (Marvel
Chronicle, 2008).
Desde 1971, as edies do Homem-Aranha j no usavam mais o Selo da Autoridade
do Cdigo dos Quadrinhos. A morte de Gwen Stacy era um passo adiante. Ela mostrava
que nem sempre o bem vencia o mal. Enfim, abria-se caminho para uma srie de estrias
de super-heris muito mais sombrias e para personagens muito mais indefinidos. As
categorias de heri e vilo passariam a ser confusas. Em adio, Gwen no retornaria nas
prximas revistas, demonstrando que as falhas dos heris produziam danos efetivos e
irreversveis. Era o fim da chamada Era de Prata e o Comeo da Era de Bronze.
Nas dcadas de 1970 e, principalmente 1980, o mito americano se tornaria mais
pessimista e mais ativista. O inimigo no estava mais vindo de fora do sistema, como era
o caso dos estrangeiros ou dos criminosos margem da lei. O inimigo do mito americano,
aps 1970, estava no prprio sistema. A comunidade ainda precisa ser redimida. No
entanto, para que isso ocorra, ela precisa ser salva de seus prprios lderes. O governo
passa a ser um fonte de opresso, corrupo e perverso (LAWRENCE; JEWETT, 2002).
Nas HQs, esse cenrio j vinha sendo preparado desde o final da dcada de 1960,
quando os personagens comearam a ter suas primeiras dvidas sobre seu papel no
mundo. Na dcada de 1970, as Editoras flexibilizaram o Cdigo de tica, que passou a
permitir a luta contra a corrupo do Estado. Ao mesmo tempo, algumas revistas j no
usavam mais o Selo. Tambm ficou comum a crtica situao das minorias.
Em 1970, o Capito Amrica manifestou expressamente seu apoio pelos protestos
que aconteciam nos Estados Unidos. Em 1974, devido ao escndalo de Watergate, foi
publicada uma estria na qual ficava implcita a ideia de que o Capito havia descoberto
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que seu inimigo era na verdade o Presidente dos Estados Unidos em pessoa. O heri,
ento, abriu mo de seu uniforme de estrelas e listas e adotou a identidade de Nmade,
o homem sem ptria. Em 1980, o Capito Amrica declinava convite para ser candidato
presidncia. Alegou o personagem que os atos recentes do governo dos Estados Unidos
eram incompatveis com o sonho americano. O compromisso do presidente seria manter
a realidade pas como estava, o compromisso do Capito era com o sonho e incompatvel
com o primeiro.
O preo das edies ficava mais caro. Passara de dez cents para vinte e depois para
cinquenta. Edies especiais podiam custar ainda mais. A indstria de Comics dependia
cada vez mais de quem possua alguma renda. No muita, pois muita renda poderia
comprar um passatempo melhor, mas alguma. O pblico era cada vez mais adulto e as
estrias precisavam ser mais elaboradas.
Desde 1968, a Marvel havia sido comprada pelas gigantes Indstrias Cadence. A
nova dona tinha que lidar com a reduo do pblico leitor e, ao mesmo tempo, com o
desaparecimento das bancas de jornal e pequenas lojas. Os shoppings que as substituram
quase no trabalhavam com HQs. Para suprir esta necessidade, comeavam a aparecer as
primeiras lojas de quadrinhos. O surgimento de um espao especializado em HQs
permitia que algumas revistas ganhassem espao onde antes no teriam.
As lojas especializadas so grandes lojas de rua, facilmente encontradas em qualquer
cidade. Como apenas vendiam artigos relacionados ao mundo dos quadrinhos, atraram
um pblico muito especfico, disposto a comprar revistas. A existncia desses
compradores em potencial, mais a grande disponibilidade de espao, levou os donos
desses estabelecimentos a aceitarem HQs independentes. Era o comeo do movimento
underground dos quadrinhos que influenciaria at as grandes editoras.
Um dos aspectos mais marcantes da Era de Bronze juntamente com a crtica social
seria a volta dos superviles. Estas caractersticas seriam importantes na etapa seguinte.
Em 1984, a publicao da srie Guerras Secretas marcaria um novo comeo nas HQs. Os
superviles voltariam a ser recorrentes. A crtica social se tornaria um embate direto com
o Estado e as instituies pblicas. Isso acompanhava o desenvolvimento do mito
americano, que comeava a exaltar patriotas inconformados, desobedecendo ordens
diretas do governo. O grande diferencial da srie era a participao da grande maioria dos
personagens em uma mesma trama.
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Dessa maneira, temos o ponto de partida da chamada Era Moderna. A criao de um
universo unificado, o Universo Marvel, gerou um novo aproveitamento dos personagens.
As interaes entre eles se tornaram mais frequentes e foram a base para as maxi-sries
subsequentes da editora. A crtica ao Estado continuaria como uma constante. O Capito
Amrica ressaltaria a responsabilidade dos Estados Unidos na propagao do terrorismo,
depois enfrentaria o governo contra o registro de super-heris na srie Guerra Civil.
Finalmente, esse processo chegaria ao pice na morte do Capito Amrica, em 2007,
representada como o fim do sonho americano.
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CAPTULO 2
DR. JEKYLL & MR. HYDE
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1 SOBRE MDICOS E LOUCOS
Em 1886, Robert Stevenson, autor de A Ilha do Tesouro, publicou seu mais novo
livro, O Mdico e o Monstro. A obra contava a estria de Dr. Jekyll, um mdico cheio de
virtudes, empenhado em isolar cientificamente seus impulsos selvagens e perversos.
Nesta tentativa, ele acaba criando um outro ser dentro de si mesmo. Esta criatura,
chamada Mr. Hyde, rene todas as inclinaes malignas que Jekyll pretendia inibir.
Ambos os lados passam a conviver e a chamar a ateno da Scotland Yard, na trama
sombria de suspense que alcanou enorme sucesso.
Stevenson fez um retrato da Londres do final do sculo XIX, muito influenciado
pelas teorias do inconsciente que comeavam a surgir. O Dr. Jekyll era um homem
valoroso, um tpico cavalheiro londrino, frequentador de um espao social rico, povoado
por uma elite abastada. Mr. Hyde, por outro lado, caminhava melhor entre os degradados.
Ele convivia com os esquecidos, conversava com os ladres e assassinos. O pblico alvo
era a populao em geral. O livro recm-lanado deveria ser to popular quanto o primeiro
do autor. E foi.
At hoje os ingleses utilizam a expresso Jekyll e Hyde para identificar dois
indivduos prximos ou similares, mas com caractersticas e moral diametralmente
opostas. Tambm no foi a ltima vez que a interao entre polos opostos foi utilizada
como recurso literrio. Temos alguns exemplos nas HQs, como Homem-Aranha e
Wolverine; Capito Amrica e Homem de Ferro; Robin (Dick Grayson) e Robin (Jason
Todd); Batman e Super-Homem.
Ao longo deste captulo, pretendo trabalhar com outra famosa relao de alter ego
das revistas em quadrinhos. Refiro-me aos personagens Capito Amrica e Justiceiro13.
Meu objeto principal o Capito. Entretanto, resta claro que, diante da contraposio
clara entre ambos, um estudo comparativo pode ajudar a destacar algumas das
caractersticas bsicas presentes no discurso e na ao do objeto de estudo. Ao final,
espero que fiquem claras as questes de origem, motivao e discurso, que devero ser
problematizadas conforme seja dado seguimento pesquisa.
13 Nesse caso, a traduo do nome do personagem tira parte de seu sentido original. A verso em ingls
The Punisher. Embora a palavra no tenha correspondncia direta na lngua portuguesa, significaria aquele
que pune.
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2 UM CERTO CAPITO AMRICA
Em maro de 1941, a ento Timely Comics lanava seu mais novo personagem,
Steve Rogers. Na histria, escrita por Joe Simon e desenhada por Jack Kirby, Steve um
menino recusado pelo exrcito devido fragilidade de sua estrutura fsica que encontra
sua oportunidade de servir seu pas como cobaia para a pesquisa do Dr. Reinstein. O
mdico alemo, que trabalhava para o governo dos Estados Unidos, havia recm-
concludo seu experimento, culminando no soro do supersoldado que, uma vez aplicado
em Steve Rogers, moldaria seu corpo e tecidos cerebrais, at que sua estatura e
inteligncia aumentassem a um nvel espetacular14. Steve seria o extremo de si mesmo
por fora e por dentro, sua fora e inteligncia, assim como seu carter, seriam
multiplicados pelo soro, tornando-se vezes o que eram antes.
Para o bem da trama, logo aps batizar seu voluntrio como Capito Amrica
porque, como ele, a Amrica deveria ganhar a fora e a vontade para defender sua
terra15 o doutor assassinado por um agente infiltrado da Gestapo e sua frmula,
destruda. Com esta sada, ao mesmo tempo garantiu-se a singularidade do primeiro e
ltimo - at o momento - supersoldado do mundo e se lhe deu sua primeira misso: caar
o espio nazista que no tem outra opo, seno sucumbir aterrorizado. O Capito
rapidamente tornou-se um smbolo e passou a preservar sua identidade secreta como um
soldado situado em Camp Lehigh, uma base militar dentro do territrio nacional norte-
14 SIMON, Joe; KIRBY, Jack. Captain America #01. Nova York: Timely Comics, 1941, p. 5, traduo
minha.
15 Idem, p. 5, traduo minha.
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americano. Quando o mascote do regimento, Bucky Barnes16, descobre Steve vestindo
seu uniforme de estrelas e listras ele passa a dividir seu segredo, tornando-se seu jovem
aliado nas batalhas.
Na capa da primeira edio, o Capito Amrica executava o desejo de quase -
todo americano, desfechando um soco no rosto do prprio Hitler. A transformao do
franzino Steve Rogers no heri da Segunda Guerra Mundial faz parte do novo gnero
superherico criado pelo Super-Homem, indivduos que podiam, sozinhos, mudar o curso
da humanidade e salvar o mundo. Eles eram escolhidos por mrito, ambio e desejo de
se tornar algo mais, no melhor estilo do Self-Made Man17 norte-americano, mas no
circunscrito a ele. Na verdade, como vimos atravs do mito da redeno, em boa parte da
cultura ocidental podemos perceber a tradio do homem que vence a natureza e a prpria
sorte rumo vitria (MACDONALD, Andrew; MACDONALD, Virginia, 1976).
Em sua adaptao para o cinema, Steve Rodgers questionado pelo Dr. Erskine18
se gostaria de matar alguns nazistas, por ocasio de outra de suas tentativas de
alistamento, ao que Rodgers responde: No quero matar ningum. No gosto de
valentes, seja l de onde venham19. Assim, o Capito Amrica um escolhido, um
16 James Buchanan Barnes.
17 O self-Made Man o arqutipo do indivduo de origem pobre, que, apesar das dificuldades, consegue
vencer na vida devido ao seu esforo pessoal.
18 Os doutores Erskine e Reinstein so a mesma pessoa.
19 JOHNSTON, Joe. Captain America: the first avenger. Estdio: Marvel Studios; Distribuidora:
Paramount Pictures. Estados Unidos, 2011.
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homem de impressionante vontade e fibra moral, um incansvel que j possua grandes
ideais, mas teve suas qualidades exponencialmente ampliadas pela melhor tecnologia
cientfica do mundo, destinado a lutar em uma guerra que no quer, mas da qual no pode
fugir pelos mesmos princpios que o levaram a ser quem . Ele o soldado-cidado
definido por Gary Gerstle20, um bom membro do corpo social, chamado a agir por fora
de seu dever cvico.
3 JUSTIA COM AS PRPRIAS MOS
Trinta e quatro anos depois, a editora, agora j com o nome atual de Marvel
Comics, lanava o Justiceiro. Frank Castle (seu nome civil) foi criado por Gerry Conway,
inspirado nos crescentes filmes de mfia como O Poderoso Chefo e Caminhos
Perigosos (Marvel Chronicle, 2008). Frank um vigilante urbano, disposto a burlar a
lei para punir aqueles a quem considera como maus. Ele fez sua estreia na revista The
Amazing Spider-Man #129, quando convencido pelo vilo Chacal21 de que o Homem-
20 Gary Gerstle professor de Histria da Vanderbilt University. O autor fala da construo do americano
que luta no para dominar ou assassinar, mas por um compromisso com a ptria e a repblica. O conceito
de soldado-cidado pode ser encontrado em: GERSTLE, Gary. Na sombra do Vietn: nacionalismo liberal
e o problema da guerra. Niteri: Revista Tempo, volume 13, n25, 2008.
21 O Jackal, ou Chacal em portugus, um inimigo tradicionalmente ligado s histrias do Homem-Aranha,
que fez sua estreia como vilo em The Amazing Spider-Man #129, em 1974, junto com o Justiceiro. Em
revistas anteriores, antes de ficar insano, ele era professor do aracndeo.
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Aranha um criminoso culpado pela morte de Norman Osborne22 e, sendo assim, um
dos que merecem ser assassinados23. Sem saber que Norman era, na verdade, o
malfeitor Duende Verde24, Frank Castle sai caa do Aranha. Em sua primeira apario,
Castle no tanto o vilo da histria, quanto uma vtima das maquinaes do Chacal.
Mas o certo que no passava de um coadjuvante e, por esse motivo, sua histria e
motivaes no so reveladas.
O que fica claro a disposio do Justiceiro para apagar o crime organizado das
ruas de Nova York, incluindo o uso de fora letal, o que no significa, contudo, que ele
no tenha sua prpria moralidade. Ao ser indagado por Chacal sobre o motivo de querer
atirar no Homem-Aranha ao invs de v-lo cair do prdio, responde que se for pra viver
comigo mesmo, tenho que saber que estou fazendo a coisa certa... e deixar um homem
morrer por acidente no se qualifica25.
Visualmente, Capito Amrica e Justiceiro so muito diferentes. Jack Kirby,
desenhista do Capito, percebia em sua poca que o Batman fazia mais sucesso por seus
incrveis viles do que pelo homem-morcego em si. Sua ideia foi pensar primeiro o vilo,
para, em seguida, desenhar o heri como sua anttese perfeita. Ora, o vilo estava na
Europa: era Hitler, com todo fascnio e temor que provocava nos americanos. O Capito
Amrica, portanto, veste as estrelas e listras da bandeira dos Estados Unidos, em cores
claras e com um fentipo de imigrante judeu, como eram seus prprios criadores. J o
Justiceiro um imigrante italiano inspirado nos filmes de mfia. Seu uniforme preto com
o desenho de uma caveira branca no peito indica um objetivo muito mais sombrio para si
mesmo e deixa no ar certa dvida sobre a moralidade de quem o veste.
A primeira revista a trazer a origem do Justiceiro foi Marvel Preview #2: The
Punisher. Frank Castle era um veterano condecorado da guerra do Vietn que, de volta
aos Estados Unidos, assiste seus familiares serem mortos por criminosos, logo depois de
acidentalmente serem testemunhas de uma execuo. Sua busca por vingana o leva a
uma guerra particular, um interminvel ciclo de vtimas dos dois lados que o mantm
22 O milionrio Normam Osborn a identidade secreta do vilo Duende Verde.
23CONWAY, Gerry; ANDRU, Ross. The Amazing Spider-Man #129. Nova York: Marvel Comics, 1974,
p. 2, traduo minha.
24 O Duende Verde um dos mais tradicionais inimigos do Homem-Aranha.
25 CONWAY, Gerry; ANDRU, Ross. The Amazing Spider-Man #129. Nova York: Marvel Comics, 1974,
p. 23, traduo minha.
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inequivocamente ligado sua funo de fazer justia com as prprias mos, no
importando os meios, que incluem do homicdio tortura. Na edio, ao caar membros
da Aliana Industrial Internacional, ele escreve em seu dirio de guerra uma comparao
entre esta e sua situao anterior: no Vietn, eu lutei porque eu precisava, era meu
trabalho. Aqui diferente. Aqui eu sabia por que lutava: porque esse lodo era similar
aos homens que mataram minha mulher e filhos26.
Aps ser trabalhado por Frank Miller, o anti-heri se tornou extremamente
popular, no coincidentemente durante a dcada de 80, quando a onda de crime que
assolava a cidade de Nova York fez muitos leitores se identificarem com seus mtodos
no convencionais. Acabou ganhando trs adaptaes para o cinema, regadas a
ultraviolncia27: em 1989 - quando ainda no era comum que quadrinhos ganhassem a
grande tela - depois em 2004 e 2008, j em meio aos primeiros filmes com heris Marvel.
4 DISPUTAS DE MTODO E IDEOLOGIA
O Justiceiro no foi concebido para ser protagonista, mas certamente passou a s-
lo. Ele parece a anttese perfeita do Capito Amrica. No um escolhido, um
desgraado que lutou em uma guerra que no queria e no entendia, no por princpios,
mas porque era seu trabalho, s para voltar para casa e sofrer com a fatalidade que o
atormentaria pela vida. Passou a lutar contra marginais porque era tudo que lhe restava,
sem nenhum pudor que o impedisse de agir fora da lei. To certo quanto os opostos se
atraem, era que os caminhos dos dois se cruzariam. O primeiro desses encontros
aconteceu na revista Captain America Comics #241.
Na HQ, a Senhora Kapplebaum avisa a Steve Rogers - sem saber que ele na
verdade um heri mascarado - que acredita ter visto um nazista na vizinhana. Mais tarde
naquela mesma noite, Steve ouve o barulho de um tiro e coloca seu uniforme, tornando-
se a personificao viva do American Dream28, apenas para descobrir que o suposto
nazista era, de fato, o Justiceiro, prestes a executar um courier do crime organizado. Ele
26 WOLFMAN, Marv. Marvel Preview #2. Nova York: Marvel Comics, 1975, p. 30-31, traduo minha.
27 A expresso ultraviolncia uma referncia ao livro Laranja Mecnica, de Stanley Kubrick. A
palavra faz parte do incomum vocabulrio do personagem principal, Alex.
28 BARR, Mike W. Captain America Comics #241. Nova York: Marvel Comics, 1980, p. 11, traduo
minha.
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diz conhecer e admirar o Capito, mas, em um tom ameaador, lhe pede que no interfira.
Em resposta, o heri das estrelas e listras lana seu escudo, que facilmente dominado
por seu oponente, demonstrando a existncia de um equilbrio de foras. O Capito
Amrica, ento, tenta convenc-lo da necessidade do devido processo legal Justiceiro,
escute! Voc no pode matar esses chefes da mfia a sangue frio! Mesmo eles tm
direitos!29 ao que o anti-heri responde: Direitos?! Eles abriram mo de seus direitos
quando escolheram o caminho do crime! Agora meu dever puni-los30.
29 Op. Cit., p. 15, traduo minha.
30 Op. Cit., p. 15, traduo minha.
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O inflexvel e misterioso indivduo consegue escapar, com o Capito no seu
encalo. Perseguindo seu rastro, o Capito Amrica pensa consigo mesmo: Agora tudo
faz sentido! Anna Kapplebaum viu o uniforme negro do justiceiro e o confundiu com um
nazista! Hmmm, ela pode no estar to enganada assim31. A senhora Kapplebaum do
incio da estria confundiu o Justiceiro com um nazista devido ao seu traje escuro e
caveira desenhada em seu peito. Isso nos leva mais uma vez questo da imagem.
Enquanto o uniforme do Capito Amrica o inverso do que se esperaria de um nazista,
o Justiceiro veste um uniforme bem mais dbio, que inspira mais medo do que confiana.
Enquanto o Justiceiro tenta eliminar dois dos maiores chefes da mfia do
Brooklyn, ele e o Capito se engajam novamente em combate, enquanto o ltimo tenta
convenc-lo uma vez mais de seus princpios: Eles tem direitos, assim como voc!
Nenhum homem pode ter esses direitos negados ou nenhum de ns tem direito algum!32.
Mas o vigilante vestido em preto s reconhece o seu jeito de lutar a guerra contra o crime
e faz referncia s suas origens: Eu tambm j acreditei nisso Capito, mas isso foi antes
de todos aqueles que eu amava morrerem nas mos de facnoras do submundo33. A
lenda viva da segunda guerra responde com sua prpria experincia: Acorde soldado,
voc pensa que o nico que j perdeu algum querido? claro que uma guerra, mas
se nos rebaixarmos, no seremos melhores que eles34.
31 Ibidem, p. 19, traduo minha.
32 Ibidem, p. 23, traduo minha.
33 Ibidem, p. 23, traduo minha.
34 Ibidem, p. 23, traduo minha.
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O desentendimento dos dois termina por atrair a ateno da mfia, o que acaba
unindo seus esforos, apesar dos mtodos continuarem em questo. Isso ocorre, por
exemplo, em um determinado dilogo, quando o Capito Amrica diz: Eu manejei
algumas armas em minha carreira, mas eu nunca tirei uma vida de bom grado... e nunca
o farei. Isso algo que voc deveria refletir (...)35.
Uma vez derrotados os mafiosos, o Justiceiro tem sua priso decretada por uma
agente federal infiltrada que conseguira escapar em meio ao tiroteio e que ele
ironicamente teria matado, caso tivesse cumprido sua misso inteiramente. A priso,
porm, no dura muito e o Justiceiro consegue fugir. Ele no consegue evadir-se
inclume, no entanto. J sozinho, permanece se questionando sobre a oportunidade que
teve de gerar uma exploso e matar a todos os seus inimigos, ao que no realizou, pois
tiraria, em adio, a vida do Capito Amrica, o que ele no pode fazer - Eu percebi que
no podia apertar o boto36 - por considerao ou fraqueza, na sua viso. No ltimo
quadrinho da histria o Capito Amrica conclui: Ns somos... muito parecidos, o
Justiceiro e eu... cada um de ns est lutando uma guerra pessoal. Mas ele deve ser detido
se nos encontrarmos de novo37.
O que podemos perceber por esta HQ que Capito Amrica e Justiceiro possuem
elementos constitutivos semelhantes. Ambos so soldados acima da mdia. Alis, a fora
dos dois comparvel, como vimos pelo episdio do escudo. Ambos foram guerra no
exterior. O Capito Amrica reivindica a perda de seu parceiro Bucky morto no final
da segunda guerra como justificativa para suas batalhas contemporneas, assim como o
35 Ibidem, p. 27, traduo minha.
36 Ibidem, p. 30, traduo minha.
37 Ibidem, p. 30, traduo minha.
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Justiceiro evoca a perda de sua famlia. Por fim, ambos combatem o crime organizado e
os superviles. Acima de tudo, os dois se respeitam e compreendem mutuamente.
Vimos tambm que todas as semelhanas param por a. Os fins parecidos no
levam a meios semelhantes. essa diferena dos modos que coloca os personagens em
campos opostos. por isso que o Justiceiro confunde admirao com fraqueza. por esta
razo mesmo compreendendo seu alter ego, o Capito Amrica no pode deixar de
impedir o Justiceiro. O Capito um cidado exemplar. Seu discurso inclui o direito, a
justia e a liberdade.
Esses conceitos presentes no discurso do Capito Amrica so ideais amplos e
muito relativos dependendo do referencial utilizado. Isso significa que diferentes autores
utilizaram esse personagem altamente representativo para construir perfis diversos. No
devemos imaginar que o personagem funciona como mero reprodutor de discurso.
Veremos, a seguir, um caso de interao entre Capito Amrica e Justiceiro, agindo contra
o governo dos Estados Unidos. Pretendo demonstrar as vrias utilizaes dos ideais de
justia e liberdade e, ao mesmo tempo, analisar as origens dos personagens.
5 GUERRA BOA E GUERRA M: A INFLUNCIA DA
ORIGEM NO DESENVOLVIMENTO DOS PERSONAGENS
A atitude crtica com relao ao governo dos Estados Unidos da Amrica levaria
ambos a investigaram o mesmo caso na srie Punisher and Captain America: Blood and
Glory, de 1992. Esta srie foi produzida em trs edies e faz referncias claras ao final
do governo Reagan.
Seis anos antes do lanamento da srie, em 1986, estourava nos Estados Unidos o
caso Ir-Contras, divulgado pela mdia. A CIA fornecia armas a grupos no Ir, atravs da
mediao de Israel, em troca da libertao de refns de grupos fundamentalistas islmicos
e recolhia os lucros da venda de armamentos. O Coronel Oliver North, do Conselho de
Segurana Nacional dos Estados Unidos, inseriu um novo elemento ao esquema de armas
por refns. Os lucros da transao passaram a ser utilizados para financiar os contras da
Nicargua, grupo contrrio Frente Sandinista de Libertao Nacional. No esquema
estavam envolvidos funcionrios pblicos de alto nvel e o escndalo ainda encontra
referncias recentes na cultura popular. Referncias ao caso so abundantes na trama da
estria envolvendo Capito Amrica e Justiceiro.
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A HQ traz um jornal nacional norte-americano, fazendo crticas ao General
Navatilas, ditador de um pas chamado Medisuela localizado na Amrica Central,
enquanto o Estado americano secretamente desvia para o autoritrio governante, recursos
provenientes da venda de narcticos, apreendidos em operaes policiais antidrogas. Em
contrapartida, espera que Navatilas utilize os recursos para comprar equipamento blico,
a ser utilizado contra seus vizinhos mais radicais. A conspirao oficial, realizada
secretamente, levou o nome simblico de Projeto Democracia.
Entretanto, os mtodos questionveis do Justiceiro o levaram a ser enganado por
uma funcionria de alto escalo do governo, fazendo-o crer que o Capito Amrica era o
mandante de todo este esquema. O vigilante s percebe que fora ludibriado aps perpetrar
um atentado quase fatal ao heri. Mal-entendido solucionado, os dois unem foras para
encarar a situao. A aliana novamente marcada por diferenas e desconfiana, mas
tambm por reconhecimento. Desde o princpio, o Capito Amrica deixa claro que (...)
no gosto de voc e desprezo o que voc faz. Seus mtodos me do nojo38, mas sua
reputao deixa claro que eu no teria sido um alvo sem um porque bem grave39. Na
selva medisuelana, mais diferenas: enquanto o Justiceiro se arma com diversos
elementos letais, o Capito apenas utiliza seu escudo. O primeiro faz a pergunta, deixe-
me adivinhar, voc tambm no acredita em armas?40 e recebe a resposta No isso.
Eu apenas no preciso delas41, para sua indignao.
Pela anlise das origens e dos encontros entre os dois personagens, podemos tirar
algumas concluses. O Justiceiro e o Capito Amrica no so to diferentes quanto uma
anlise preliminar pode sugerir, ambos so cnicos com relao ao governo e ordem
vigente, mas lutam pelos mesmos ideais dos pais fundadores, quando criaram a nao; os
dois desejam justia, protegem inocentes e carregam a culpa de no terem podido salvar
entes queridos; eles dialogam, se modificam/influenciam mutuamente; por fim, e mais
bvio de tudo, os dois foram criados na guerra; a diferena parece estar em como eles se
adaptam a ela (WEINER, 2009). O Justiceiro mata, elimina, no se preocupa com os
38 JANSON, Klaus. Captain America & Punisher: Blood and Glory #2. Nova York: Marvel Comics,
1992, p. 28, traduo minha.
39 Ibidem, p. 28, traduo minha.
40 Ibidem, p. 41, traduo minha.
41 Ibidem, p. 41, traduo minha.
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meios; sua busca um fim em si, porm, o Capito entrega lei, regenera, trava uma
guerra ideolgica paralela ao confronto fsico e d a mesma importncia aos meios e fins.
Talvez, para alm de uma anttese, o Justiceiro seja um alter ego do Capito
Amrica. Da mesma maneira que Mr. Hyde em relao ao Dr. Jack, o Capito Amrica
guarda semelhanas com relao ao Justiceiro, contudo, a maneira de agir
diametralmente oposta. Apesar da trajetria comum, experincias semelhantes e dos
mesmos fins, os dois possuem uma diferena flagrante quanto maneira como exercem
sua funo.
No obstante esta divergncia, nenhum deles deixa de ser legtimo aos olhos do
pblico. Ambos so personagens populares, rentveis e transportados para revistas, filmes
e jogos eletrnicos. Essa a complexidade e o significado dos dois personagens. Ambos
parecem representar a Amrica de alguma forma42. Esta observao foi feita por Robert
G. Weiner. Segundo o autor, tanto o Justiceiro como o Capito Amrica desprezam o
governo e suas aes extralegais, mas o fato do Justiceiro acreditar que pode lidar com o
problema de maneira tambm violenta e extralegal demonstra que o personagem
representa um lado mais obscuro de grupos americanos (WEINER, 2009).
Essa discusso especialmente importante quando percebemos que ela poderia
tranquilamente se passar no Rio de Janeiro. Recentemente o caso de um jovem
acorrentado a um poste levou segmentos mais conservadores da sociedade a defender
execues extrajudiciais para combater o problema da violncia e da corrupo na Polcia
Militar, enquanto defensores dos direitos humanos atentavam para a necessidade do
devido processo legal. Esta diviso, presente nos dois pases, que permite que ambos os
personagens sejam populares, embora em meio a grupos diferentes.
As primeiras abordagens sobre os fundamentos da psique de ambos os
personagens so dadas ainda em Punisher and Captain America: Blood and Glory.
Como vimos, suas gneses esto ligadas guerra, mas a nfase na diferena entre as
duas guerras de gestao que permite explicar as motivaes para cada um. O Capito
Amrica reflete o que a Segunda Guerra Mundial representa no imaginrio coletivo dos
EUA, uma guerra boa, travada pelo povo em nome da liberdade contra o autoritarismo e
42 WEINER, Robert G (Org.). Captain America and the Struggle of the Superhero: Critical Essays.
Carolina do Norte: McFarland & Company, 2009, posio 2435.
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o racismo, que bateram s portas da nao, no desastroso episdio de Pearl Harbor; a
guerra uniu at o Partido Comunista dos Estados Unidos e promoveu a mobilizao
patritica (KARNAL et al., 2007). O Justiceiro remete a um conflito que no poupou
mulheres nem crianas, no mediu os meios nem debateu os fins, um massacre de civis,
contra o qual, at a dcada de 1970, se opunham a maior parte da populao norte-
americana: a malograda Guerra do Vietn (KARNAL et al., 2007).
Na primeira edio da srie, os dois no chegam a conversar, assim, suas
perspectivas so dadas apenas em pensamento, o que no diminui sua densidade. Na
verdade, cada um faz um pequeno discurso, uma lembrana dos tempos de soldado,
lutando no front. Primeiramente, o Capito Amrica diz:
No h uma guerra justa. Exceto, talvez, aquela que me fez o que sou. A
guerra boa, A guerra necessria ns chamamos. Talvez. Mais do que japoneses e
americanos morreram naqueles ltimos dias da Segunda Guerra Mundial. Eu assisti e
me preocupei enquanto ttica e preciso comeavam a dar lugar para a intensificao
da brutalidade. Coragem e imaginao viraram casualidades para a fora esmagadora...
enquanto ousadia e inteligncia foram mortos em favor de completar o servio, no
importando os meios. A guerra tomou o controle naqueles dias finais, exigindo ser levada
sua concluso. Pondo em movimento coisas, por vezes, alm do controle de qualquer
um. (...) Um bom soldado precisa da sua causa para se ancorar ao que ele representa...
a quem ele . A quem eu sou. Eu visto minha causa. Est tecida na prpria malha do meu
uniforme. As estrelas e listras da liberdade e justia43.
43 JANSON, Klaus. Captain America & Punisher: Blood and Glory #1. Nova York: Marvel Comics,
1992, p. 28, traduo minha.
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O Capito Amrica faz uma clara crtica Guerra e, especialmente ideia de uma
guerra justa. Ele ressalva, porm, que a guerra na qual lutou a Segunda Guerra
Mundial tem importantes elementos que a diferenciam. O Capito participou de um
conflito por ideais justos, uma batalha que forjou sua honra. Esta mesma honra faz com
que o personagem tenha averso aos ltimos eventos da guerra, tecnologia da bomba
atmica e ao crescente nmero de baixas brutais e inocentes.
A Segunda Guerra faz parte de um conjunto de guerras mitificadas, juntamente
com as Guerras de Independncia e Secesso. Ainda assim, a guerra de independncia
dividiu legalistas e revolucionrios; a Guerra de Secesso dividiu Norte e Sul. A Segunda
Guerra tem a vantagem do consenso. Ela mobilizou setores diversos da sociedade norte-
americana, foi a guerra que fez de Steve Rodgers o que ele hoje, aquela que formou
suas virtudes e princpios.
A bandeira um instrumento puro, fruto do consenso daqueles tempos simples,
onde bem e mal eram bem definidos como preto e branco. O Capito no veste a bandeira,
ele a bandeira pelos ideais daqueles dias, mesmo que os tempos sejam outros, esperando
que eles ainda tenham igual significado para o povo. No entanto, nem tudo foi puro, os
instantes derradeiros do conflito viram o esvaecer dos antigos valores pelos novos
objetivos da grande potncia mundial que emergia. A humanidade foi substituda pela
tecnologia, a individualidade pela fora opressora e tudo que importava era atingir o
objetivo ltimo, no importa como.
Quando passamos ao discurso do Justiceiro, percebemos que a falta de virtude e
os objetivos mesquinhos da Guerra do Vietn esto presentes desde o princpio,
contrastando com o caso do Cap