soares 2010 letramento001

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MAGDA SOARES PRÁTICAS DE LETRAMENTO E IMPLICAÇÕES PARA A PESQUISA E PARA POLÍTICAS D E ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Diante do tema que me foi proposto, e sendo eu a única con- ferencista brasileira neste Colóquio, julgo que me cabe assumir a responsabilidade de apresentar uma reflexão sobre os conceitos de letramento no Brasil, em comparação com esses mesmos conceitos em outros países. Destaco que não estou usando o plural para a palavra letramento, mas para a palavra conceito: pretendo propor uma reflexão não sobre os vários letramentos, mas sobre os vários conceitos de letramento, para, a partir desses vários conceitos, che- gar à segunda parte do tema, as implicações deles para a pesquisa e para políticas de alfabetização e letramento no Brasil. Convém inicialmente justificar por que discutir mais uma vez conceitos de letramento. Afinal, quantas vezes já fiz isso... quan- tas vezes já fizemos isso... quanto já escrevemos sobre isso... Não, meu objetivo aqui não é mais uma vez conceituar letramento, mas colocar em questão nossa ap|*^priação da palavra letramento, interpelar os sentidos com que temos usado essa palavra e esse conceito no Brasil. A partir de um rápido histórico da trajetória dessa palavra e conceito entre nós, pretendo sugerir a hipótese de que há diferenças entre os usos que fazemos da palavra letramento e o uso que outros países fazem dela. Durante os mais de 500 anos de existência deste país, nós nos satisfizemos com a palavra alfabetização', não existia em nosso léxico a palavra letramento. A palavra surgiu em meados dos anos .1980, portanto, há não mais que 20 anos, e só foi dicionarizada no começo do século XXI. Nesses 20 anos, creio que temos nos ocu- pado com duas ações que, em princípio, parecem contraditórias. A primeira ação tem sido a de esclarecer o conceito de letra- mento. Estamos sempre discutindo o que é letramento... e acredito que ainda não chegamos a um consenso. Um levantamento na bibliografia académica e na bibliografia de formação do professor, e mesmo uma investigação com professores, revelaria uma grande diversidade de sentidos atribuídos a essa palavra. A segunda ação remete a uma aparente contradição em relação à primeira, pois, sem termos chegado a um consenso sobre o que entendemos por letramento, temos já nos ocupado em traduzir esse conceito em atividades de letramento nas escolas, temos nos dedicado a avaliar níveis de letramento, a construir instrumentos de avaliação de letramento de alunos e mesmo da população em geral. Parece-me, então, que já é tempo de refletirmos não propria- mente sobre o que é letramento, ou sobre como desenvolver o letramento nas escolas ou no país, mas sobre o uso que vimos fazendo dessa palavra, sobretudo neste momento em que temos o privilégio de ter conosco o professor Brian Street, autor daquilo que se tem chamado, com grande razão, uma "revolução conceitu- ai" nos estudos de literacy. E uso aqui a palavra em inglês para já adiantar uma hipótese que vou propor: a^hipótese de que o con- ceito de letramento, tal como nós o temos usado no Brasil, não é exatamente idêntico ao conceito de literacy em outros países. Nem é idêntico ao conceito de literacy em Brian Street e nos New Lite- racy Studies, embora Brian Street e seu grupo dos NLS sejam uma permanente referência em nossos estudos e pesquisas. O conceito de letramento no Brasil e os vários conceitos de literacy, em países de língua inglesa, são conceitos semelhantes, mas não idênticos. Essa diferença na conceituação de letramento resulta em diferentes impUcações para a pesquisa e para políticas educacionais. Quais são esses conceitos e essas diferenças? Huqaiya Hasan, no livro Literacy in Society, pubUcado em 1996,^ afirmava que literacy é uma palavra "semanticamente saturada", ,uma palavra que "não só significou diferentes coisas para diferentes gerações, como também diferentes coisas para diferentes pessoas 55

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Concepções de letramento e alfabetização

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  • M A G D A S O A R E S

    PRTICAS DE LETRAMENTO E IMPLICAES PARA A PESQUISA E PARA POLTICAS DE

    ALFABETIZAO E LETRAMENTO

    Diante do tema que me foi proposto, e sendo eu a nica con-ferencista brasileira neste Colquio, julgo que me cabe assumir a responsabilidade de apresentar uma reflexo sobre os conceitos de letramento no Brasil, em comparao com esses mesmos conceitos em outros pases. Destaco que no estou usando o plural para a palavra letramento, mas para a palavra conceito: pretendo propor uma reflexo no sobre os vrios letramentos, mas sobre os vrios conceitos de letramento, para, a partir desses vrios conceitos, che-gar segunda parte do tema, as implicaes deles para a pesquisa e para polticas de alfabetizao e letramento no Brasil.

    Convm inicialmente justificar por que discutir mais uma vez conceitos de letramento. Afinal, quantas vezes j fiz isso... quan-tas vezes j fizemos isso... quanto j escrevemos sobre isso... No, meu objetivo aqui no mais uma vez conceituar letramento, mas colocar em questo nossa ap|*^priao da palavra letramento, interpelar os sentidos com que temos usado essa palavra e esse conceito no Brasil. A partir de um rpido histrico da trajetria dessa palavra e conceito entre ns, pretendo sugerir a hiptese de que h diferenas entre os usos que fazemos da palavra letramento e o uso que outros pases fazem dela.

    Durante os mais de 500 anos de existncia deste pas, ns nos satisfizemos com a palavra alfabetizao', no existia em nosso lxico a palavra letramento. A palavra surgiu em meados dos anos .1980, portanto, h no mais que 20 anos, e s foi dicionarizada no

    comeo do sculo XXI. Nesses 20 anos, creio que temos nos ocu-pado com duas aes que, em princpio, parecem contraditrias.

    A primeira ao tem sido a de esclarecer o conceito de letra-mento. Estamos sempre discutindo o que letramento... e acredito que ainda no chegamos a um consenso. Um levantamento na bibliografia acadmica e na bibliografia de formao do professor, e mesmo uma investigao com professores, revelaria uma grande diversidade de sentidos atribudos a essa palavra.

    A segunda ao remete a uma aparente contradio em relao primeira, pois, sem termos chegado a um consenso sobre o que entendemos por letramento, temos j nos ocupado em traduzir esse conceito em atividades de letramento nas escolas, temos nos dedicado a avaliar nveis de letramento, a construir instrumentos de avaliao de letramento de alunos e mesmo da populao em geral.

    Parece-me, ento, que j tempo de refletirmos no propria-mente sobre o que letramento, ou sobre como desenvolver o letramento nas escolas ou no pas, mas sobre o uso que vimos fazendo dessa palavra, sobretudo neste momento em que temos o privilgio de ter conosco o professor Brian Street, autor daquilo que se tem chamado, com grande razo, uma "revoluo conceitu-ai" nos estudos de literacy. E uso aqui a palavra em ingls para j adiantar uma hiptese que vou propor: a^hiptese de que o con-ceito de letramento, tal como ns o temos usado no Brasil, no exatamente idntico ao conceito de literacy em outros pases. Nem idntico ao conceito de literacy em Brian Street e nos New Lite-racy Studies, embora Brian Street e seu grupo dos NLS sejam uma permanente referncia em nossos estudos e pesquisas. O conceito de letramento no Brasil e os vrios conceitos de literacy, em pases de lngua inglesa, so conceitos semelhantes, mas no idnticos. Essa diferena na conceituao de letramento resulta em diferentes impUcaes para a pesquisa e para polticas educacionais. Quais so esses conceitos e essas diferenas?

    Huqaiya Hasan, no livro Literacy in Society, pubUcado em 1996,^ j afirmava que literacy uma palavra "semanticamente saturada",

    ,uma palavra que "no s significou diferentes coisas para diferentes geraes, como tambm diferentes coisas para diferentes pessoas

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  • na mesma gerao". Tambm entre ns, atualmente, letramento uma palavra semanticamente saturada, uma palavra que significa diferentes coisas para diferentes pessoas de diferentes contextos culturais e acadmicos, para diferentes pesquisadores e para di-ferentes professores.

    Letramento, todos sabemos, uma palavra calcada sobre o in-gls literacy. Tal como no Brasil, tambm em outros pases foram criadas novas palavras para traduzir o ingls literacy. interes-sante o fato de essas tradues terem ocorrido na mesma poca em diferentes pases: em meados dos anos 1980 introduzimos a palavra letramento no Brasil, surgiu literacia em Portugal, littracie, ou littratie, em alguns pases de lngua francesa, sobretudo no Canad; illettrisme, na Frana que, como se v, preferiu o negati-vo. Essa coincidncia no tempo mereceria uma reflexo que no possvel nem oportuna neste momento.

    A reflexo que aqui interessa que so no s palavras diferentes, mas conceitos diferentes nesses diferentes contextos. E mais: conceitos diferentes da mesma palavra no mesmo contexto, dependendo do ponto de vista que se assuma.

    De forma bastante simplificada - perigosa, porque a simplifi-cao pode trazer o risco da falsificao - , vou propor diferentes pontos de vista sob os quais o letramento tem sido considerado, de que resultam diferentes conceitos nomeados com essa mesma palavra, letramento.

    De um ponto de vista antropolgico, letramento so as prticas ^ sociais de leitura e escrita e os valores atribudos a essas prticas em determinada cultura. Sob esse ponto de vista, ora se analisam dife-renas entre culturas letradas e no letradas, como faz Goody, ora identifica-se o carter ideolgico que permeia o estabelecimento dessas diferenas - 6 representante aqui , claro, Brian Street, que realizou, como j dito anteriormente, uma "revoluo conceituai" nos estudos antropolgicos do letramento, a partir de seu livro seminal Literacy in Theory and Practice (1984),^ revoluo que vem progredindo e se aprofundando com os New Literacy Studies. Parece-me que, nos estudos e pesquisas sob a perspectiva antro-polgica, a melhor traduo para a palavra literacy seria cultura

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    escrita, e no letramento. A traduo de literacy por cultura escrita tem sido usada algumas vezes entre ns, como, por exemplo, na traduo do livro de Ong, Orality and Literacy,^ em que, desde o ttulo {Oralidade e cultura escrita), a palavra literacy traduzida por cultura escrita; n entanto, por outro lado, a traduo do livro de Graff, The Labyrinths of Literacy,'^ a palavra literacy sempre inadequadamente traduzida por alfabetizao, tambm desde o ttulo (Os labirintos da alfabetizao).

    De um ponto de vista lingustico, a palavra letramento designa ; os aspectos da lngua escrita que a diferenciam da lngua oral. No Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na Frana, h um grupo de pesquisa denominado Equipe Litracie, coordenado por LiUane Sprenger-Charolles, que assim define li-tracie, que d nome ao grupo: "La notion de litracie designe les aspects linguistiques, psycholinguistiques et sociolinguistiques des pratiques de lecrit. Ce terme, calque sur langlais literacy (du latin litera ou littera) est galement crit littratie ou littracie."^ Ou seja: letramento, sob a perspectiva lingustica, palavra que remete para os aspectos lingusticos, psicolingusticos e sociolingusticos das prticas da escrita.

    j De um ponto de vista, psicolgico, a palavra letramento designa as habilidades cognitivas necessrias para compreender e produzir textos escritosJ Um dos mais significativos representantes dos estu-dos de letramento sob esse ponto de vista David Olson; seu livro O mundo no papel tem como subttulo: As implicaes conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. uma perspectiva psicolgica que considera literacy - letramento - como o processo cognitivo de compreenso e de produo de textos.

    I Finalmente, e sem esgotar os pontos de vista possveis, se a perspectiva educacional, pedaggica, letramento designa as habilidades de leitura e escrita de crianas, jovens ou adultos, em prticas sociais que envolvem a lngua escritaj este o conceito de letramento que, entre ns, est presente nas prticas escolares, nos parmetros curriculares, nos programas, nas avaliaes que vm sendo repetidamente feitas em diferentes nveis - nacional, estaduais, municipais. Este o sentido que tem literacy na

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  • linguagem corrente educacional nos pases de lngua inglesa, tal como se comprova na bibliografia sobre ensino da lngua, nos currculos e nos programas.

    Seja qual for, porm, o conceito de letramento, em decorrncia do ponto de vista sob o qual seja considerado, quase sempre, pode--se mesmo dizer que sempre, exclui-se do conceito a aprendizagem inicial da tecnologia da escrita. Na lngua inglesa, h uma designao especfica para essa aprendizagem inicial da tecnologia da escrita: reading, s vezes early reading; e no campo educacional, nos pases de lngua inglesa, usa-se literacy para designar algo alm de reading palavra que indica, basicamente, a aprendizagem do sistema alfabtico como sistema de representao.

    O que importante destacar que literacy e reading so dois fenmenos diferentes, em pases de lngua inglesa. Lembre-se que o recente relatrio (2001) produzido nos Estados Unidos, que tanta influncia vem exercendo sobre a questo da alfabetizao, em numerosos pases, o Reading Panei, tem como ttulo e como tema reading, no literacy. Um outro exemplo o relatrio que vem orientando o ensino da lngua escrita na Austrlia: Teaching Reading, no literacy. Na introduo desse relatrio, declara-se que reading um elemento-chave (a key element) da literacy, ou seja, reading no literacy, mas um componente essencial da literacy. Tambm no Reino Unido, o recente relatrio de Jim Rose sobre a aprendizagem inicial da lngua escrita tem como ttulo Independent Review ofthe Teaching of Early Reading - reading, no literacy.

    Avanando um pouco mais nessa reflexo sobre os usos de reading e literacy, em pases de lngua inglesa, significativo que, enquanto se usa a palavra reading para designar a aprendizagem formal do sistema de escrita na escolaridade obrigatria, usa-se a palavra literacy quando a referncia , mais amplamente, a insero inicial da criana no mundo da escrita, nas etapas que antecedem a aprendizagem formal do sistema de escrita. A expresso ento emergent literacy, letramento emergente, fase anterior fase deno-minada reading. A diferena entre reading e literacy fica evidente quando se analisam as prticas pedaggicas que so desenvolvidas na etapa de emergent literacy - letramento emergente - e as que

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    so desenvolvidas na etapa designada reading - alfabetizao. O letramento emergente pe o foco na insero da criana no mundo da escrita, promove o convvio com diferentes portadores de texto, diferentes gneros de escrita, no contexto de diferentes eventos de letramento, enquanto a alfabetizao, na fase inicial da escolarizao formal, pe o foco na aprendizagem sistemtica do sistema de escrita.

    Antes de concluir esta reflexo sobre conceitos de letramento, preciso ainda comentar o uso que se vem fazendo com muito frequncia, em lngua inglesa, da palavra literacy no plural - lite-racies - , plural que comea a ser usado entre ns tambm - letra-mentos. Um plural que tem sido usado para designar diferentes tipos de letramento. De um lado, considera-se que cada sistema de representao exige um letramento especfico, e ento se fala em letramento matemtico, letramento musical, letramento miditico, letramento digital etc. Por outro lado, considera-se que cada rea de conhecimento exige um letramento especfico, e ento se fala em letramento geogrfico, cientfico, histrico etc. No vou me deter em comentrios sobre a propriedade, ou no, desses usos da palavra letramento no Brasil, e da palavra literacy, nos pases de lngua inglesa, para referir-se a outros sistemas de representao ou a outras reas de conhecimento, porque, nesta exposio, tomo o plural letramentos para me referir no a esses diferentes tipos de letramento, mas aos mltiplos conceitos da palavra, os vrios significados com que essa palavra usada.

    no contexto da multiplicidade de significados que tm sido atribudos a letramento que proponho uma reflexo sobre a histria e o uso do conceito no Brasil. Essa reflexo necessria para fundamentar a segunda parte do tema desta exposio: as implicaes de prticas de letramento para a pesquisa e para as polticas de alfabetizao e letramento no nosso pas.

    A palavra letramento foi introduzida entre ns em meados ' dos anos 1980. Surgiu nos campos da Lingustica Aplicada e da

    Educao, em obras de Mary Kato, a quem se atribui o uso pela primeira vez da palavra em portugus, de Leda Verdiani Tfouni, de ngela Kleiman e tambm de uma certa Magda Soares... obras

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  • todas elas publicadas em meados dos anos 1980. Apesar de essas autoras atriburem a letramento significados nem sempre concor-dantes, um ponto tm em comum: so significados fortemente contextualizados no campo do ensino da lngua escrita. Ou seja: letramento - a palavra e o conceito - surgiu entre ns no campo do ensino da lngua escrita, quer ensino para adultos, quer para crianas. No foram, pois, as perspectivas antropolgica e histrica que introduziram a palavra e o conceito entre ns. At agora, essas perspectivas, a antropolgica e a histrica, so apenas incipientes, na pesquisa e nos estudos, no Brasil; comeam apenas a ser assumi-das, sobretudo como decorrncia da questo, posta recentemente, de introduo da escrita em grupos indgenas remanescentes no territrio brasileiro.

    Entretanto, embora tendo surgido no campo educacional, no campo do ensino, s muito lentamente o conceito de letramento vem sendo incorporado por professores e professoras, s muito lentamente vem chegando s escolas. E isso se expHca pelo fato de esse conceito ter sido incorporado e desenvolvido no campo acadmico, por pesquisadores e professores universitrios. interessante observar que letramento est distante no s dos professores, da escola; tambm a mdia resistiu por muito tempo ao uso dessa palavra. Comprova isso o fato de que o dicionrio de Francisco Borba, Dicionrio dos usos do portugus, construdo com base no levantamento da frequncia de palavras em material escrito de grande circulao - jornais, revistas, livros de grande tiragem etc. - no registre a palavra letramento. S nos ltimos anos, talvez nos dois ou trs ltimos anos, a palavra letramento comea a ser usada na mdia. Lembre-se ainda que a pesquisa realizada nacionalmente sobre o nvel de domnio e de prticas de leitura da populao brasileira denomina-se Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF); alfabetismo, no letramento.

    H uma peculiaridade na introduo do conceito de letramento no Brasil. Aqui, o conceito surgiu em estreita relao com o conceito de alfabetizao. De certa forma, em contraponto com o conceito de alfabetizao. Historicamente vnhamos denominando alfabetizao, de forma genrica, a aprendizagem da lngua escrita, sem distino entre uma aprendizagem inicial - aquisio da

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    tecnologia da escrita - e o uso da escrita em prticas sociais. Em outros pases, a aprendizagem inicial considerada com independncia em relao s prticas de leitura e de escrita. Como j disse, essa aprendizagem inicial chamada reading em ingls; em francs, usa-se, para designar essa aprendizagem inicial, a expresso apprendre/enseigner lire et crire (j que os franceses reservam a palavra alphabtisation para o ensino do sistema de escrita a jovens e adultos analfabetos). Nesses contextos, a aprendizagem inicial da lngua escrita no contraposta, nem comparada, nem relacionada, com os estudos e as pesquisas sobre as prticas sociais de leitura e de escrita, nem at mesmo com o ensino dessas prticas.

    Entre ns, ao contrrio, tem havido uma contaminao entre alfabetizao e letramento. Ora se rejeita o uso da palavra e do conceito letramento, com o argumento de que bastam a palavra e o conceito alfabetizao, pois deve-se entender por alfabetiza-o muito mais do que a aprendizagem da tecnologia da escrita, posio defendida por ningum menos que Emlia Ferreiro. Ora, ao contrrio, se rejeita o uso de alfabetizao, com o argumento de que aprender a ler e escrever muito mais que aquilo a que essa palavra tradicionalmente se refere, sendo conveniente que haja um outro nome que evite atribuir sentido restrito aprendizagem da lngua escrita. H ainda quem defenda que a alfabetizao precede o letramento: primeiro aprende-se a ler e a escrever, verbos conside-rados como intransitivos, sem complementos, para s depois ler e escrever, agora atribuindo complementos aos verbos - ler e escrever diferentes gneros, em diferentes portadores etc. E h quem, ao contrrio, defenda - e esta a minha posio - que alfabetizao e letramento so processos diferentes, mas indissociveis: embora se diferenciem quanto s habilidades cognitivas que envolvem, e, consequentemente, impliquem formas diferentes de aprendizagem, so processos simultneos e interdependentes.

    Em sntese, essa breve histria do surgimento e do uso do con-ceito de letramento no Brasil evidencia que temos privilegiado a perspectiva da educao, da pedagogia, do ensino, nos estudos, nas pesquisas, nas aes relativas ao letramento. E evidencia tambm que temos considerado o letramento sempre em relao alfabe-tizao, ora para afirmar, ora para negar essa relao.

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  • Convm destacar que a ausncia ou quase ausncia da perspec-tiva antropolgica, em estudos, pesquisas e aes de letramento, em nosso pas, cria uma lacuna que me parece sria. Lacuna de estudos, pesquisas e aes no propriamente sobre diferentes culturas, o que s se aplica, em nosso pas, s remanescentes po-pulaes indgenas, mas sobre as muitas subculturas que estas, ns as temos, em um pas to grande como o nosso, com tantas e to marcadas diferenas culturais e lingusticas, entendendo aqui por subculturas as culturas de grupos de diferentes condies sociais e econmicas, com diferentes nveis de acesso aos bens culturais, com diferentes graus de acesso a material escrito, portanto, grupos que atribuem diferentes valores s prticas de leitura e escrita, que vivenciam prticas sociais de leitura e escrita peculiares. Por exemplo: uma queixa recorrente entre os professores, sobretudo os de escolas pblicas, a pouca familiaridade das crianas das cama-das populares com a leitura e a escrita, atribuda ausncia de livros e material escrito, em geral, em seu contexto familiar, social, cultural. Na verdade, o que nos falta conhecer os usos da leitura e da escrita nessas camadas, suas diferenas em relao aos usos escolares, que so aqueles valorizados pelas camadas hegemnicas. Ou seja: o que nos falta so estudos e pesquisas na perspectiva antropolgica dos eventos de letramento em camadas populares, estudos e pesquisas que venham esclarecer as diferenas nas relaes com a cultura escrita entre as diferentes subculturas a que pertencem os alunos presentes nas salas de aula.

    Chegando finalmente segunda parte do tema desta exposio - as imphcaes do conceito de letramento para a pesquisa e para polticas de alfabetizao e letramento no Brasil - , comeo por esclarecer que vou entender por "implicaes" algumas inferncias sobre a situao da pesquisa em letramento e alfabetizao na rea educacional, suas lacunas e carncias. Cito apenas as que me parecem mais relevantes, sempre tomando como referncia os conceitos de alfabetizao e letramento.

    Uma primeira constatao que o nosso olhar sobre a alfabe-tizao e o letramento tem sido predominantemente o olhaiuia avaliao: parece-me que o que mais temos feito avaliar, seguindo, preciso reconhecer, a tendncia mundial de avaliao de nveis

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    dc alfabeti/ao e de letramento, acompanhada sempre daquilo que os canadenses tm chamado de "a obrigao dos resultados" (cf. o livro Vobligation des resultais en ducation, coletnea orga-nizada por Claude Lessard e Philippe Meirieu, 2005^). o que tem acontecido entre ns: avaliar sempre, e impor s instituies educativas a obrigao de obter bons resultados. Eu diria que te-mos aYalado muito, e pesquisado pouco ou nada, sobre as causas e as circunstncias que podern explicar ^ ^^^^^^ fracasso das nossas crianas em leitura, os baixos nveis de letra-mento da populao jovem e adulta. Uma primeira impHcao para os estudos e as pesquisas na rea da alfabetizao e letramento , pois, a necessidade deesquisajsiohr.a&.cajLi&as.e^ desses baixos nveis de alfabetizao ejeietranaento^iealunos, de crianas, e da populao em geral.

    Suponho que, entre essas causas, esto as diferenas entre gru-pos socioculturais quanto ao acesso a materiais escritos, quanto natureza do material escrito disponvel, quanto aos valores atribudos escrita, quanto aos usos que so feitos da escrita e da leitura. Faltam-nos pesquisas como aquela clssica de Shirley Heath, relatada no livro Ways with Words, e como vrias que vm sendo desenvolvidas no quadro dos New Literacy Studies. Assim, uma segunda impUcao para a pesquisa sobre letramento, no Brasil, a neessidade de estudos sob a perspectiva antropolgica.

    Uma terceira implicao decorre da constatao de que temos nos dedicado bastante a pesquisas na,ja.daalfabetiza - o que se justifica se considerarmos que ainda temos problemas srios na rea da aquisio da tecnologia da escrita por crianas, jovens e adultos - , mas t]|ios nos dedicado pouco a pesquisas que com-plementariam e elucidariam as pesquisas sobre alfabetizao: no temos desenvolvido pesquisas que identifiquem e busquem com-preender as prticas de leitura e escrita (o letramento) presentes e desenvolvidas na escola - as prticas escolares - em suas relaes com as prticas sociais de leitura e escrita para alm das paredes da escola; no temos desenvolvido pesquisas sobre as prticas de leitura e escrita etn outras reas do currculo, que no o ensino do portugus; no tem~os desenvolvido pesquisas sobre as prticas de leitura e escrita de jovens e adultos que, embora analfabetos, vivem

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  • em um mundo letrado, e atribuem - ou no atribuem - valores ao domnio da leitura e da escrita. Nessas reas, temos assumido o "modelo autnomo" de alfabetizao. So implicaes para a pesquisa.

    Passemos a refletir sobre as implicaes das prticas de letra-mento para as polticas de alfabetizao e letramento; um tpico delicado, porque no se pode negar que, no Brasil, se so muitas as iniciativas de intervenes no campo da alfabetizao e letra-mento - em nvel nacional, estadual e municipal - so poucos, e precrios, os resultados. Como o tema que me foi proposto associa pesquisa e polticas, discuto estas sob a perspectiva daquela.

    Comeo com uma crtica a ns mesmos, pesquisadores. Temos praticado uma poltica de pesquisa que, acredito, fica subjacente nossa prtica de pesquisadores, o que no , claro, consciente. Pen-so que temos sido etnocntricos em nossas atividades de pesquisa - em educao em geral, e especificamente em nossas pesquisas sobre alfabetizao e letramento. Tenho participado com grande frequncia de bancas de avaliao de teses e dissertaes sobre alfabetizao e letramento, tenho lido com regularidade artigos sobre esses temas, publicados em nossos peridicos, e sempre me surpreendo com como so poucas, pouqussimas, as referncias, em nossa produo cientfica, a pesquisas desenvolvidas em ou-tros pases, em que pesquisas sobre alfabetizao e letramento so numerosas e poderiam orientar, aprofundar ou ampliar mui-to a nossa prpria atividade de pesquisa. Muitas vezes estamos reinventando a roda, por desconhecermos rodas que j foram inventadas anteriormente... Talvez isso se explique pela dificul-dade que temos, neste nosso pas, de acesso produo cientfica estrangeira, sobretudo na rea da educao, em que a produo ainda, em sua maioria, uma produo impressa, pubHcada em papel, ao contrrio do que ocorre nas chamadas "cincias duras", em que a produo j predominantemente on-line, o que torna o acesso fcil e rpido. Assim, penso que uma poltica importante para a pesquisa no Brasil seria a ampHao do acesso produo estrangeira e, naturalmente, do reconhecimento da importncia de considerar essa produo, ainda que para contest-la.

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    Se fao essas crticas a ns mesmos, pesquisadores, no me atrevo a igualmente criticar os formuladores de polticas na rea da alfabetizao e do letramento. Poderia criticar sua precipitao em querer alterar imediatarnente a realidade e, para isso, impor programas que nem sempre encontram apoio no estado do conhecimento sobre a questo. Mas disse que no me atrevo a criticar os que formulam e implantam essas polticas porque creio que aqui, de novo, a responsabiUdade mais nossa, pesquisadores, que deles, responsveis por polticas educacionais. que no temos sabido como fazer chegar os resultados das nossas pesquisas aos formuladores de poltica, que tm urgncia, e natural que tenham, entre outras coisas, porque precisam "mostrar servio" na durao do mandato que tm... mas preciso reconhecer que a urgncia de solues exige interveno imediata, enquanto a pesquisa lenta. No se pode ter urgncia na pesquisa. A impHcao desse descompasso que talvez caiba a ns, pesquisadores, usar ou descobrir estratgias que faam a ponte entre nossas pesquisas e os formuladores de polticas.

    Mais uma crtica a ns, pesquisadores, nesta autoanlise que fao, analisando-nos, em vez de analisar os formuladores de polticas pblicas. Merecemos mais uma crtica sobre nossa relao com a formulao de polticas de alfabetizao e letramento. que temos ignorado temas cuja investigao necessria para fundamentar polticas ou para explicar o fracasso delas. Por exemplo: diante dos maus resultados dos alunos em avaliaes de alfabetizao e letramento, avaliaes realizadas por iniciativa de polticas educacionais, estamos sempre discutindo hipteses de explicao, mas no as temos submetido comprovao, por meio de pesquisas. H pouco ou quase nada de pesquisas que busquem identificar as causas dos resultados negativos das avaliaes que vm sendo feitas neste pas. Talvez por isso as polticas tm sido medidas emergenciais que no atacam as causas, porque no as temos esclarecido - fixam-se patamares a serem alcanados dentro de um prazo prefixado, obrigam-se as escolas a reformular seus projetos de ensino... e continuamos chegando a maus resultados de alfabetizao e letramento. Um outro exemplo so os resultados de programas de alfabetizao de jovens e adultos. O fracasso do

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  • Brasil Alfabetizado ficou comprovado recentemente; na ausncia de pesquisas que identificassem as causas do frequente fracasso de programas de alfabetizao de adultos, a soluo que logo se apresenta a reformulao do projeto: vamos tentar outras alternativas, s vezes, quem sabe, acertamos. Os pesquisadores que teramos de buscar as causas do fracasso, para que as polticas agissem sobre elas; no cabe ao poder pblico investigar, mas agir.

    Para terminar, penso que fica evidente, de minha posio sobre as relaes entre pesquisa e polticas, na rea da alfabetizao e do letramento, que vejo como indissociveis pesquisa e polticas, talvez porque meu lugar o de pesquisadora, no de formuladora de polticas. Mas desse lugar, e do lugar de quem vem enfrentando as questes de alfabetizao e letramento na pesquisa, e tambm na prtica cotidiana das escolas pblicas, que lano a ns, pesqui-sadores, o desafio de darmos uma real contribuio s polticas, levando de forma adequada aos formuladores delas os resultados de nossas investigaes, ou voltando nossas investigaes para os problemas que se apresentam a eles - so problemas que, mais que a eles, se apresentam ao Brasil, problemas que se apresentam s nossas crianas, aos nossos jovens e aos nossos adultos.

    (Confernc ia no I C o l q u i o Internacional Letramento e C u l t u r a

    E s c r i t a , realizado e m agosto de 2007. P r e s e r v a r a m - s e carac-

    terst icas impostas pela oralidade do texto e pela s i tuao e m

    que foi apresentado. N o t a dos organizadores: A g r a d e c e m o s a

    c o l a b o r a o de K e l y C r i s t i n a N o g u e i r a Souto, no trabalho de

    t r a n s c r i o da c o n f e r n c i a . )

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    NOTAS

    ' I l A S A N ; W I M . I A M S . Literacy in Society.

    ' S'\'\Ui\\\'. IJtcracyin Theory and Practice.

    ' ONC;. Oralidade e cultura escrita: a tecnologizao da palavra.

    ' CRAFK The Labyrinths of Literacy.

    ' A noo de letramento designa os aspectos lingusticos, psicolingusticos e sociolingusticos das prticas de escrita. Esse termo, baseado no termo ingls, literacy, (do latim littera) aparece tambm como littratie ou littracie.

    " l .HSSARD; M E I R I E U . Lobligation des resultais en ducation: volutions, perspectives et enjeux internationaux.

    REFERNCIAS

    ( ] R A F F , Harvey J. The Labyrinths of Literacy. Philadelphia: Falmer Press,

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    H A S A N , Hukaiya ; W I L L I A M S , Geoffrey (Ed. ) . Literacy in Society. London:

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