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7/24/2019 Só Shakespeare Salva http://slidepdf.com/reader/full/so-shakespeare-salva 1/6 IMPRIMIR Imprimir matéria Tamanho do texto: HAROLD BLOOM Só Shakespeare salva O crítico americano Harold Bloom ensina onde buscar a sabedoria e que o caminho passa longe da filosofia e da religião LUÍS ANTÔNIO GIRON O crítico americano Harold Bloom, de 75 anos, nutre o fascínio por montar listas de autores que considera fundamentais para a cultura humana. Assim publicou o ensaio que lhe deu fama internacional e o transformou no superastro da crítica contemporânea: Ansiedade da Influência (1973), traduzido no Brasil sob o título bizarro  Angústia da Influência.  Nesse livro, como nos que se seguiriam décadas afora, elaborou a teoria de que a história da literatura forma um emaranhado instável, no qual os poetas se influenciam das mais variadas maneiras, desde o plágio involuntário até a tentativa de superação. Em O Cânone Ocidental  (1994) e Gênio: um Mosaico de Cem Mentes Criativas Exemplares  (2003), o escritor releu a tradição para descobrir em cada gênio a contribuição ainda válida. Bloom adoeceu gravemente e, diante da perspectiva do esgotamento de suas capacidades racionais, restringiu o campo de ação para buscar um saber essencial, apropriado para consolá-lo dos traumas da velhice e da perda dos amigos. Surgiu, em 2004, o mais pessoal de seus tratados, o denso e saboroso Onde Encontrar a Sabedoria? (Objetiva, 319 págs., R$ 44,80), agora publicado no Brasil. Remexeu em tudo o que havia aprendido na longa aventura intelectual para retirar dali os textos que lhe serviram como degraus na escada do auto-aperfeiçoamento. A escolha é excêntrica e pessoal: um coquetel de textos bíblicos e obras de poetas e romancistas, ensaístas e um dramaturgo: William Shakespeare, o bardo inglês que, segundo o estudioso, está no centro do cânone ocidental. Nesta entrevista a ÉPOCA, concedida por telefone de sua casa, em New Haven, Connecticut, Bloom ensina onde qualquer pessoa pode encontrar a sabedoria e critica a situação mundial e a degradação da cultura letrada por causa da tecnologia. HAROLD BLOOM  Nascimento Em Nova York, em 11 de julho de 1930. Morou com os pais no bairro do Bronx  Carreira

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HAROLD BLOOM

Só Shakespeare salvaO crítico americano Harold Bloom ensina onde buscar asabedoria e que o caminho passa longe da filosofia e dareligião

LUÍS ANTÔNIO GIRON

O crítico americano Harold Bloom, de 75 anos, nutre o fascínio por montar listas de autores que considera fundamentais para a culturahumana. Assim publicou o ensaio que lhe deu fama internacional eo transformou no superastro da crítica contemporânea: Ansiedade

da Influência (1973), traduzido no Brasil sob o título bizarro

 Angústia da Influência. Nesse livro, como nos que se seguiriamdécadas afora, elaborou a teoria de que a história da literaturaforma um emaranhado instável, no qual os poetas se influenciamdas mais variadas maneiras, desde o plágio involuntário até atentativa de superação. Em O Cânone Ocidental  (1994) e Gênio:

um Mosaico de Cem Mentes Criativas Exemplares (2003), oescritor releu a tradição para descobrir em cada gênio acontribuição ainda válida.

Bloom adoeceu gravemente e, diante da perspectiva do

esgotamento de suas capacidades racionais, restringiu o campo deação para buscar um saber essencial, apropriado para consolá-lodos traumas da velhice e da perda dos amigos. Surgiu, em 2004, omais pessoal de seus tratados, o denso e saboroso Onde Encontrar 

a Sabedoria? (Objetiva, 319 págs., R$ 44,80), agora publicado noBrasil. Remexeu em tudo o que havia aprendido na longa aventuraintelectual para retirar dali os textos que lhe serviram como degrausna escada do auto-aperfeiçoamento. A escolha é excêntrica epessoal: um coquetel de textos bíblicos e obras de poetas eromancistas, ensaístas e um dramaturgo: William Shakespeare, o

bardo inglês que, segundo o estudioso, está no centro do cânoneocidental. Nesta entrevista a ÉPOCA, concedida por telefone de suacasa, em New Haven, Connecticut, Bloom ensina onde qualquer pessoa pode encontrar a sabedoria e critica a situação mundial e adegradação da cultura letrada por causa da tecnologia.

HAROLD BLOOM

 Nascimento

Em Nova York, em 11 de julho de1930. Morou com os pais no bairro doBronx

 Carreira

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''A nova reencarnação de Bush éum monstro e o pior presidenteamericano de todos os tempos.Ele governa para os ricos. Nos

furacões, ele deixou os negros epobres entregues à própria sorte''

Dedicou-se ao ensino na Universidadede Harvard e atualmente dá aulas emYale

 Obra mais famosa Angústia da Influência (1973), entre31 livros

 ConfrontosNa universidade, combateu asfeministas. Uma delas, Naomi Wolf,acusou-o de assédio sexual

Foto: Eammon Mc Cabe/Camera Press/Keystone

ÉPOCA - No ensaio Onde Encontrar a Sabedoria, o senhor afirma que achou autores sábios quando se viu 'diante dosportões da morte'. Como foi essa experiência?

Harold Bloom - Aos 75 anos, tenho consciência de meu fim. Tiveum problema sério no coração há três anos e sofri muito. Fuisubmetido a cirurgias, tive hemorragias e cheguei ao limite deminhas capacidades intelectuais. Percebi, deprimido, que poderiaperdê-las a qualquer momento. Além disso, perdi gente querida,amigos e parentes. Eu, que tive uma atividade de reflexão, estudo eensino, rodeado de pessoas que amava, me vi cada vez maissolitário. Quando vivemos uma crise assim, a sabedoria vai emborae perdemos o rumo de nossas reflexões. De que valeram os 31livros que publiquei? O que sobra de tudo o que a gente aprendeunum momento-limite? Eu estava escrevendo um livro sobre ocânone da crítica, mas resolvi mudar de assunto por causa dochoque. Depois de ter sido operado e de passar por umaconvalescença de quatro meses, saí à procura de um tipo desabedoria que me ajudasse a suportar a velhice e compreendê-lacom serenidade. Algo que me consolasse da perda de pessoasessenciais em minha vida. Foi assim que o livro surgiu.

ÉPOCA - É quase um livro de auto-ajuda, não?Bloom - Não, porque absorver os ensinamentos daqueles queconsidero os maiores sábios não traz consolo para ninguém. O que

chamo de 'literatura sapiencial' colabora para que o homem se tornemais sereno e resignado, sem que com isso perca a consciênciaamarga e crítica em relação ao próprio fim.

ÉPOCA - Que critérios o senhor usou para estabelecer o elencode escritores do livro?Bloom - Estabeleci pré-requisitosbastante simples. São mais ou

menos os mesmos critérios queregem minha atividade como crítico literário. As obras deviam ser esteticamente excelentes, possuir força intelectual e conter liçõesessenciais. Precisavam suprir as necessidades que as pessoas têmde conhecer, de sentir enlevo e chegar a alguma conclusão

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verdadeira.

ÉPOCA - O senhor cita a definição de sabedoria de Michel deMontaigne, para quem o sábio é aquele que aprende a morrer.O senhor concorda?Bloom - Montaigne possui uma concepção serena da morte. Eleacha que aprender a morrer é ignorar a morte e vivê-la quando elaacontecer. Como jamais poderemos saber o que se passa quando

morremos, o melhor é se despreocupar com a perspectiva damorte.

ÉPOCA - Qual sua definição de sabedoria?Bloom - Trata-se de uma noção pessoal, fruto do sofrimento e daexperiência. Sou eclético. Tomo exemplos de várias fontes, dostextos bíblicos aos dos poetas e filósofos. Em certa medida,Homero, Platão, o Livro de Jó e Shakespeare afirmam que asabedoria deve ser austera e se equilibrar entre a ironia e atragédia. Tal equilíbro nos leva a aceitar os próprios limites.

Concordo com o verso de Stéphane Mallarmé: 'A carne é triste, aide mim! E já li todos os livros'. E a sabedoria não se encontra sónos livros. Muitos filósofos são capazes de dizer grandes besteirasachando que produzem saber. E vice-versa, a aparentedespretensão de poetas os mais simplórios contém a sabedoria queserve para todo mundo. Qualquer grande poema contém sabedoria,mesmo que não esteja pretendendo isso. O inverso não éverdadeiro. Nem toda filosofia contém poesia. Ninguém precisa ser filósofo para obter a sabedoria. Ela resulta da meditação solitária.

ÉPOCA - Em outras palavras, a sabedoria é um atoindividualista.Bloom - Nem poderia ser diferente. Só o indivíduo pode meditar convenientemente. A comunidade dos sábios é impossível. Lembro-me do dinamarquês Sören Kierkegaard, que afirma que suafilosofia se dirige dele, um sujeito único, para outro indivíduo.

ÉPOCA - E qual o caminho mais direto para chegar lá?Bloom - Considero os textos do Oriente mais apropriados paraquem queira encontrar conforto místico. Nesse ponto, os indianosBaghavad Gîta e Mahabarata, o xintoísmo e a tradição chinesa são

incomparáveis. É provável que nós, ocidentais, não tenhamos aindaabsorvido a profundidade da literatura sapiencial do Oriente. Mas,como meu campo de estudo é a literatura ocidental, vejo comocaminho mais rápido para a sabedoria a poesia, embora a gentepossa achar valia em textos bíblicos, como o Eclesiastes - mais pelasensibilidade poética que pelo dogmatismo. Sou um velho inimigodo historicismo. Não existem superações em arte. O que existeentre as linhagens e gerações é uma batalha pela supremacia deum discurso sobre o outro. Às vezes, os antepassados vencem seuspósteros. #Q#

ÉPOCA - Como assim?Bloom - É interessante que Platão hoje nos pareça menos sábioque Homero, 300 anos mais velho que ele. A República, de Platão,está ultrapassada porque postula que a música e a poesia sejam

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banidas de um Estado ideal, governado por filósofos. Tal utopia soacomo um pesadelo. Em compensação, a Ilíada ainda hoje nos dálições de persistência, heroísmo e ética. O que vale em Platão é apoesia do texto. Nesse campo, no entanto, Homero é bem melhor.Do Velho Testamento, o meu favorito é o Livro de Jó, pelapungência do sofrimento do protagonista. Defendo a tese de que oLivro de Jó foi escrito por uma mulher, uma sábia hitita anônima. Éa obra mais densa do Velho Testamento.

ÉPOCA - Repetir de cor poemas é um dos métodos que osenhor utiliza em suas aulas. Por quê?Bloom - Só encontro consolo quando recito para mim mesmo, bembaixinho, os poemas e passagens que sei de cor. A repetição éuma forma arcaica de conhecimento, ainda eficaz, sobretudo nummomento de domínio da tecnologia e do consumismo. Cada alunointeressado acaba aprendendo coisas importantes para si próprio.

ÉPOCA - Por que sua fascinação por William Shakespeare?

Bloom - Porque Shakespeare não é apenas a figura central docânone ocidental - ao lado de Cervantes e de Dante Alighieri. Elecriou a noção que temos do que é humano. Sua obra tornaacessível a qualquer um a sabedoria que só um filósofo podepossuir, mas que o cidadão comum não pode alcançar por meiosconvencionais. É uma filosofia imediata, que se dá nos dramas, namistura de tragédia e comédia, nas passagens em que Hamlet tocano problema da metafísica e Lear conclui que o mundo éirrecuperável. Hamlet é o personagem mais sábio de toda aliteratura. Shakespeare escreve tudo da forma mais natural. E não

basta uma vida para abarcar tudo o que o bardo ensina. Ele é osupremo artífice da sabedoria. Sempre descubro uma nova liçãoem poemas e aforismos embutidos em seu teatro. Só Shakespearesalva.

ÉPOCA - Mas, conforme o senhor afirma no livro, Rei Lear  lheinculcou o niilismo. O senhor é tão niilista assim?Bloom - Como escrevi, sou niilista porque dou aulas. E auniversidade americana virou um campo de teóricos doressentimento, que acham que o saber pode ser reduzido a

questões de sexo e minorias. Não posso ter humor diante daignorância e dos horrores do mundo. Busco paz na literatura. Meuniilismo é paradoxal, porque reza pelo breviário do humanismo.

ÉPOCA - Mesmo assim, o senhor não ousa imitá-lo. Seu estilolembra mais Montaigne que Shakespeare.Bloom - É verdade. Até porque me devotei ao gênero queMontaigne fundou, o ensaio, para mim o veículo ideal para minhasreflexões, por causa da liberdade que ele dá.

ÉPOCA - Qual sua opinião sobre o estado da cultura mundial?

Bloom - O mundo experimenta uma degradação do conhecimentopor causa da conversão da cultura em produto. Apesar de todas asvantagens que trouxeram, computadores, internet e televisão estãolevando os jovens a se desacostumar dos livros. A longo prazo, acultura como conhecemos hoje vai desaparecer. Por causa do

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''William Shakespeare criou anoção que temos do humano.

Personagens como Hamlet e Lear 

não são apenas um papel a ser representado. Eles trazem liçõespara a vida. O bardo é o supremo

artífice da sabedoria''

mundo digital, as pessoas estão perdendo até a capacidade decompreender um texto a fundo. E ainda não inventaram veículomelhor que o texto escrito em papel.

ÉPOCA - O saber virou umaespécie de commodity? 

Bloom - Virou. Hoje o saber virou

propriedade de uma certa elite,não exatamente uma eliteeconômica, mas intelectual. Osaber atualmente é um tesouropara poucos. Considero-me um 'penetra' nessa elite, já que nascinum bairro pobre - o Bronx - e meus pais não eram sábios.Demorei para ler livros em inglês, porque fui criado falando iídicheem família. Comecei lendo para mim mesmo. Jamais pensei quefaria no futuro parte de uma elite. O que me entristece é perceber que o conhecimento só poderá florescer em guetos de saber nos

Estados Unidos, na Europa, na China e até no Brasil.

ÉPOCA - O senhor acha que existe hoje um choque culturalentre Ocidente e Oriente?Bloom - Sim. Vejo isso com tristeza, pois as duas tradiçõesdeveriam se completar, mas estão envolvidas em uma espécie deconfronto final. Por força do império do fundamentalismo cristão deGeorge W. Bush e asseclas, criam-se guerras injustas como a doIraque e se praticam monstruosidades em nome de valores que sedizem civilizados. A nova reencarnação de Bush é um monstro e o

pior presidente americano de todos os tempos. Ele governa para osricos. Ele tem um caráter vil. A Guerra do Iraque é o pior dosconflitos patrocinados pelos Estados Unidos. E olhe que tivemos atomada de territórios mexicanos na década de 1860, a GuerraHispano-Americana em 1898 e a Guerra do Vietnã. No Iraque, aguerra contra o terror não passa de uma cruzada contra o Islã.

ÉPOCA - Na era do combate ao terror, como ficam os direitoscivis?Bloom - Hoje experimentamos um enorme retrocesso em relaçãoaos anos 60. Bush é contra tudo aquilo por que lutei: o direito aoaborto e à união entre homossexuais, a justiça social e a dignidadedos negros. Veja o que ocorreu na Louisiana. Bush não fez nadapara evitar a catástrofe e deixou negros e pobres abandonados àprópria sorte.

ÉPOCA - Por que o senhor nunca veio ao Brasil?Bloom - Recebi inúmeros convites para viajar para o Brasil,consigo ler em português, admiro a literatura brasileira, em especialMachado de Assis, mas estou muito doente para fazer viagenslongas. Gostaria de conferir o que meus amigos dizem do Brasil.

Como os americanos, os brasileiros estão amargando o fim de umsonho libertário. O presidente Lula, esperança da esquerda, agorase encontra paralisado por causa das denúncias de escândalos eparece ter renunciado a seus ideais. Até o presidente doCongresso teve de se exonerar por denúncias de corrupção. Em

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cidades como Rio e São Paulo, crianças e mendigos continuamsendo mortas por traficantes e policiais. O Brasil não tem muito doque se orgulhar. Nós, americanos, também não. Aqui tambémacontece corrupção, injustiça e violência. A sabedoria provoca essetipo de consciência - e, com ela, o pessimismo.

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