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GERCIEL GERSON DE LIMA SISTEMA PRISIONAL PAULISTA E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS: A PROBLEMÁTICA DO PCC PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL. Piracicaba, SP 2009

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  • 1

    GERCIEL GERSON DE LIMA

    SISTEMA PRISIONAL PAULISTA E ORGANIZAES

    CRIMINOSAS: A PROBLEMTICA DO PCC PRIMEIRO

    COMANDO DA CAPITAL.

    Piracicaba, SP

    2009

  • 2

    GERCIEL GERSON DE LIMA

    SISTEMA PRISIONAL PAULISTA E ORGANIZAES

    CRIMINOSAS: A PROBLEMTICA DO PCC PRIMEIRO

    COMANDO DA CAPITAL.

    Orientadora: Profa. Dra. ANA LCIA SABADELL DA SILVA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao (Mestrado em Direito) da Universidade Metodista de Piracicaba UNIMEP, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito, sob orientao da Professora Doutora Ana Lcia Sabadell da Silva.

    Ncleo: Estudos de Direitos Fundamentais e da Cidadania.

    Piracicaba, SP

    2009

  • 3

    Dados para catalogao:

    LIMA, G. G. de. Sistema prisional paulista e organizaes criminosas: a problemtica do PCC Primeiro Comando da Capital. Universidade Metodista de Piracicaba, 2009. Dissertao (Ps-Graduao, Curso de Mestrado em Direito). Orientadora: Professora Doutora Ana Lcia Sabadell da Silva.

    1. Organizaes criminosas; 2. PCC; 3. Sistema prisional paulista; 4. Direitos humanos.

  • 4

    SISTEMA PRISIONAL PAULISTA E ORGANIZAES CRIMINOSAS: A PROBLEMTICA DO PCC PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL

    Autor: Gerciel Gerson de Lima Orientadora: Professora Doutora Ana Lcia Sabadell da Silva

    B A N C A E X A M I N A D O R A

    06/06/2009

    ______________________________________________

    Professora Doutora Ana Lcia Sabadell da Silva Presidente/Orientadora

    _______________________________________________

    Professor Doutor Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez Orientador

    _______________________________________________

    Professor Doutor Jair Aparecido Cardoso Membro Convidado

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    A concretizao deste trabalho somente foi possvel graas s bnos de Deus,

    bem como aos muitos colaboradores diretos ou indiretos, dos quais sou eterno devedor.

    Agradeo a todos e, em especial:

    Primeiramente a DEUS, por no ter atentado para minhas deficincias e

    limitaes; por ter colocado em minha vida pessoas como meus mestres que, com

    pacincia e determinao, me fizeram compreender o quo til pode ser o educador,

    de todos eles espero refletir um pouco pelo resto de minha existncia;

    minha companheira Tnia Camargo, pela compreenso, companheirismo e

    pacincia;

    minha ex-esposa Maria Ap. de Moura e ao nosso filho Felipe, participantes

    diretos de cada passo desta jornada, iguais sofredores pelas dificuldades e

    ansiedade que antecedeu o final deste trabalho;

    Professora Doutora Ana Lcia Sabadell da Silva, pelas aulas, orientaes e,

    principalmente, pela amizade e exemplo de vida;

    Ao Professor Doutor Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez, pelas coerentes

    intervenes quando de minha banca de qualificao;

    Ao Professor Doutor Jair Aparecido Cardoso, pelo aceite em participar de minha

    banca de defesa pblica de dissertao de mestrado;

    Ao amigo Neemias Moreti, companheiro do Curso de Mestrado em Direito, a

    quem no posso deixar de homenagear pela sempre pronta palavra amiga e de

    incentivo.

    Secretrias do Curso de Mestrado em Direito da UNIMEP, Dulce Helena dos

    Santos e Sueli Catarina Verdichio Quilles, pela disposio, competncia, colaborao e

    simpatia no atendimento ao alunado em geral;

    A todos que colaboraram para que eu conseguisse chegar a este estgio de minha

    carreira profissional.

  • 6

    EPGRAFE

    O protesto contra os suplcios encontrado em toda parte na segunda metade do sculo XVIII: entre os filsofos e tericos do direito; entre juristas, magistrados, parlamentares; nos chaiers de dolances e entre os legisladores das assemblias. preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontao fsica entre soberano e condenado; esse conflito frontal entre a vingana do prncipe e a clera contida do povo, por intermdio do supliciado e do carrasco. O suplcio tornou-se rapidamente intolervel. Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingana e o cruel prazer de punir.

    (Michael Foucalt)

    Um bom parlamento condio sine qua non para combater o crime. O crime s tem medo de uma coisa: que a maioria das pessoas entrem na legalidade e ele no tenha com quem negociar. Mas em vez de tentar solucionar a desigualdade e a misria, de trazer as pessoas para a legalidade, os polticos vivem no oportunismo e no eleitoralismo.

    (Juranidr Freire Costa)

  • 7

    RESUMO O presente trabalho discorre sobre a problemtica que envolve as organizaes criminosas no interior dos presdios do estado de So Paulo. Prope analisar qual a intensidade do PCC Primeiro Comando da Capital no que se refere a sua forma de atuao e, para isso, alerta para as condies de cumprimento de pena dos presidirios, bem como promove um resgate histrico acerca das prises no Brasil. Tambm faz uma interveno a respeito da LEP - Lei de Execues Penais e o desrespeito no seu integral cumprimento, alm do que critica a inconstitucionalidade do RDD Regime Disciplinar Diferenciado. Resgata a historicidade das rebelies promovidas em 2001 por aquela faco criminosa e, ainda, os ataques realizados no ano de 2006. Por fim, questiona a possibilidade de a queda dos homicdios no interior nas prises paulistas serem reflexo da nova dinmica estabelecida pelo PCC, no que se refere adoo de regras de comportamento at ento desprezadas pelo Estado. Palavras-chaves: Organizaes criminosas; PCC; Sistema prisional paulista; Direitos

    humanos.

  • 8

    ABSTRACT This work speaks about the problematic that involve criminal organizations on the So Paulo state prisons. Try to analyze what the intensity from PCC First Capital Command and your actuation method. To do that, warning about how the prisoners accomplishment their penalty and to promote a historic redemption about brazilian prison system. Also make an intervention about the LEP Penal Execution Law and yours disrespect on the totality, and make critics upon unconstitutionality from RDD Discipline Differentiation Regime. Rescue the historicity of rebellions on the 2001 from that criminal organization and, also, the attack they are on the 2006. To finish, says about the possibility of murder reduce on the jails So Paulo state been reflex of new dynamic to set up from PCC, especially in the adoption of news humans behavior rules that was disregard from State. Key-words: Criminal organizations; PCC; Prisional system from So Paulo; Human rights.

  • 9

    LISTA DE ABREVIATURAS ADA - Amigos dos Amigos.

    ADITAL - Agncia de Informao Frei Tito para Amrica Latina.

    CDH - Comisso de Direitos Humanos da Cmara de Deputados.

    CDL - Conselho Democrtico da Liberdade.

    CNPCP - Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria.

    CRBC - Comando Revolucionrio Brasileiro do Crime.

    CV - Comando Vermelho.

    DECRIM - Departamento Tcnico de Apoio ao Servio de Execues Criminais.

    DEIC - Departamento de Investigaes sobre Crime Organizado.

    DEINTER-5 - Departamento de Polcia Judiciria do Interior.

    DOI-CODI - Destacamento de Operaes de Informaes - Centro de Operaes de Defesa Interna.

    FUNAP - Fundao Nacional de Amparo ao Preso.

    GAECO - Grupo de Atuao Especial e Represso ao Crime Organizado.

    GATE - Grupo de Aes Tticas Especiais.

    LEP - Lei de Execues Penais

    NEV - Ncleo de Estudos da Violncia.

    OEA - Organizao dos Estados Americanos.

    ONU - Organizao das Naes Unidas.

    PCC Primeiro Comando da Capital

    PRONASCI - Programa Nacional de Segurana com Cidadania.

    RDD Regime Disciplinar Diferenciado

    ROTA - Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar.

    SAP - Secretaria de Administrao Penitenciria.

    SS - Seita Satnica.

    STF - Supremo Tribunal Federal.

    STJ - Superior Tribunal de Justia.

  • 10

    SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................... 12

    1 OS TRS Ps INDESEJADOS: PENITENCIRIA, PRISIONEIRO E PENA..... 17

    1.1 O sistema prisional brasileiro: resgate histrico e legislao pertinente... 18

    1.2 Sobre a legislao que normatiza os crimes, as prises e os prisioneiros.. 33

    1.2.1 As leis de ocasio e o regime de exceo no tratamento da questo penitenciria........................................................................

    34

    1.2.2 O regime de exceo no tratamento da questo penitenciria..... 40

    1.2.3 Consideraes a respeito da Lei 7.210/84: Lei de Execues Penais..................................................................................................

    45

    1.2.4 A Lei 10.792/2003: Lei do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)..... 54

    1.2.4.1 Sobre o Regime Disciplinar Especial (RDE)....................... 59

    1.2.5 A gesto Nagashi Furukawa (1999 a 2006) como um divisor na filosofia administrativa penitenciria: caracteres positivos e suas contradies.............................................................................................

    62

    1.3 Sobre o prisioneiro e seus direitos.......................................................... 66

    1.3.1 Na esfera internacional (ONU/OEA)................................................. 77

    1.3.2 Conjunto de princpios para a proteo de todas as pessoas sujeitas a qualquer forma de deteno ou priso...........................

    82

    1.3.3 Princpios bsicos relativos ao tratamento de reclusos em outras normas brasileiras.......................................................................................

    87

    1.4 Sobre a pena e sua finalidade................................................................... 89

    2 CRIME ORGANIZADO: UM PROBLEMA NA CONCEITUAO DA TERMINOLOGIA... 95

    2.1 O crime organizado e suas diferentes categorias na doutrina e legislao: territorialidade, categoria e poder variante - as dificuldades para uma definio unvoca..........................................................................................................

    100

    2.2 Tentativas internacionais de definio da terminologia......................... 104

    2.3 Documentos internacionais sobre crime organizado............................. 110

    2.4 As tentativas da legislao e a doutrina brasileira na conceituao do crime organizado: confuso com formao de quadrilha ou bando...........

    112

    2.5 As principais caractersticas do crime organizado e as poucas convergncias no estabelecimento de um conceito universal..............................................................

    115

    2.6 Conceituao (ou tentativa) de crime organizado na Lei 9.034/95, na doutrina e na jurisprudncia.....................................................................

    123

    2.7 Projetos de leis em trmite........................................................................ 132

  • 11

    3 NASCIMENTO E MOTIVAO DE ORGANIZAES CRIMINOSAS NO SISTEMA PRISIONAL: O EXEMPLO DO PCC..........................................................................................

    136

    3.1 Breves consideraes sobre o direito de resistncia............................ 137

    3.2 Das condies do cumprimento de pena no estado de So Paulo....... 144

    3.2.1 A falta de assistncia jurdica e a superlotao............................. 150

    3.3 Sobre o surgimento da criminalidade organizada no sistema prisional brasileiro.................................................................................................................

    154

    3.3.1 Casa de Custdia de Taubat/SP: o surgimento do PCC.............. 163

    3.3.1.1 A rebelio de 2001.................................................................. 169

    3.3.1.2 O massacre do Carandiru.................................................. 176

    3.4 Presdios de segurana mxima (regime disciplinar diferenciado)...... 185

    3.5 Primeiro Comando da Capital: poder paralelo ou ineficincia do Estado?. 191

    3.5.1 Estatuto, hierarquia, organizao e demonstrao de fora......... 194

    3.5.2 Principais atividades, rendimentos e sua destinao.................... 205

    3.5.3 Clientelismo: presena na deficincia estatal............................. 209

    3.5.4 Os tribunais de exceo e a burocracia do PCC dentro e fora do sistema prisional...................................................................................

    216

    3.5.5 Os ataques de 2006........................................................................... 223

    3.6 A queda no ndice de homicdio dentro do sistema ps 99 e seus provveis motivos................................................................................

    233

    3.6.1 Diminuio das taxas de homicdios fora das prises.................. 240

    4 CONSIDERAES FINAIS............................................................................ 243 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................. 251

    ANEXOS............................................................................................................. 263

    Anexo 1 - Estatuto do PCC.

    Anexo 2 - Resoluo SAP n 026, de 04 de maio de 2001.

    Anexo 3 - Conjunto de Princpios para a Proteo de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer forma de Deteno ou Priso.

  • 12

    INTRODUO

    A escolha do assunto objeto de estudo para o desenvolvimento desta

    pesquisa no se d ao acaso, pois foi definida pela experincia adquirida pelo autor

    na condio de policial, atuando em boa parte dos nove anos que serviu junto ao 14

    Batalho da Polcia Militar na cidade de Osasco; primeiramente como segurana nas

    muralhas do presdio e aps fazendo parte do peloto de escolta do Frum daquela

    comarca. Aps deixar os quadros da policia, em 1994, quando foi iniciado o Curso

    de Direito e, posteriormente, j atuando como advogado na rea criminal foi possvel

    de constatar in loco, a situao de calamidade por que passam as instalaes e

    condies carcerrias do estado de So Paulo, alm de vivenciar na prtica como o

    Judicirio trata a questo e as normas de exceo no escritas, mas que tm sido

    aceitas pela prtica quando se trata de sistema prisional.

    A discusso a que se pretende suscitar e chamar a ateno no fato novo,

    haja vista que o sistema carcerrio paulista, para aqueles que acompanham a

    problemtica, tido como ultrapassado tanto no aspecto estrutural quanto na poltica

    de ressocializao do preso, sendo o que acontece internamente em relao a

    violao dos direitos bsicos e fundamentais da pessoa humana, motivo de revoltas,

    rebelies e manifestaes que, na maioria das vezes, so combatidas com mtodos

    e punies violentas.

    Em recente relatrio, a ONU Organizao das Naes Unidas classificou o

    sistema prisional brasileiro como aquele que pratica tortura sistemtica; tal relatrio

    foi, em um primeiro momento, motivo de esforos do governo no sentido de no

    permitir sua divulgao, tpica atitude de governos que procuram manter a

    sociedade informada somente em relao ao que interessa.

  • 13

    Embora o presente estudo tenha como objetivo o sistema prisional paulista,

    vale ressaltar que no restante do pas a situao no muito diferente, sendo que

    em alguns estados (entre eles Bahia e Acre) a situao vivida diz respeito a um

    verdadeiro caos, com presos amontoados, tornando, assim, o ambiente propcio a

    proliferao de doenas; em Minas Gerais, por exemplo, vrios presos adquiriram

    escabiose em funo da superlotao.

    Sem espao suficiente para sequer dormir na horizontal, o preso comum,

    servial da cela, dorme muitas vezes em p, naquilo que os prprios chamam de

    dormir no boi; tal expresso, antiga no meio da populao carcerria, remete ao

    fato de que, ao dormir em posio vertical, o preso amanhece com os ps em forma

    arredondada pelo inchao, assemelhando a pata do referido bovino.

    Assim, no se vislumbra como desassociar o caos do sistema prisional com o

    nascimento da faco criminosa intitulada PCC no interior dos presdios paulistas,

    sendo que tal surgimento atribudo exatamente ao histrico desrespeito que se

    pratica contra o preso, no se observando sequer direitos e princpios consagrados

    mundialmente, como o da dignidade humana.

    Para uma melhor compreenso por parte do leitor a respeito do assunto, o

    primeiro captulo ser iniciado com a apresentao dos trs Ps indesejados, a

    saber: a penitenciria, o prisioneiro e a pena, o que materializa o reflexo de uma

    cultura que marginaliza sua populao carcerria e no lhe oferece as mnimas

    condies de ressocializao e posterior insero no tecido social. Neste momento

    ser promovido um pequeno resgate histrico do sistema prisional brasileiro, bem

    como da legislao pertinente ao assunto. Tambm sero expostas as normas que

    regulamentam os crimes, as prises e os prisioneiros. nesta fase inicial da

    presente pesquisa que se propiciar ao leitor um primeiro contato terico com as

  • 14

    chamadas leis de ocasio e com o regime de exceo a qual submetido o

    tratamento da questo penitenciria. Aqui tambm sero tecidas algumas

    consideraes sobre a Lei 7.210/84, ou seja, a Lei de Execues Penais, para logo

    em seguida se abordar a Lei 10.792/2003, que diz respeito ao Regime Disciplinar

    Diferenciado, o RDD, completando-se o tema com uma rpida exposio sobre tal

    Regime.

    Na busca de fornecer subsdios a respeito da administrao penitenciria, o

    leitor poder, ainda no primeiro captulo, verificar como a gesto de Nagashi

    Furukawa pode ser entendida como um divisor na filosofia administrativa daquela

    administrao. Em seguida, coerentemente ser levado a efeito um pequeno estudo

    sobre o prisioneiro e seus direitos no mbito brasileiro e, tambm, na esfera

    internacional, alm do que apresentar-se- alguns comentrios acerca do conjunto

    de princpios para a proteo de todas as pessoas sujeitas a qualquer forma de

    deteno ou priso, bem como aqueles relativos ao tratamento de reclusos no que

    diz respeito a outras normas brasileiras. Para finalizar o captulo, a pena e sua

    finalidade sero objetos de apreciao.

    O segundo captulo foi reservado a um estudo sobre o crime organizado e a

    problemtica que envolve sua conceituao. Aqui sero apresentadas suas

    diferentes categorias na doutrina e na legislao, alm da dificuldade em se obter

    uma definio unvoca a respeito do assunto e como se do as tentativas

    internacionais de estabelecimento da terminologia. nesta fase da pesquisa que

    sero referenciados os documentos internacionais sobre o crime organizado e a

    confuso que se cria ao se tentar conceitu-lo na legislao e doutrina ptrias,

    gerando confuso com o crime de formao de quadrilha ou bando. Para finalizar

    esta fase da pesquisa, apresentar-se- uma tentativa de conceituao do termo na

  • 15

    esfera da Lei 9.034/95, assim como na doutrina e na jurisprudncia brasileira; o leitor

    aqui tambm ter a oportunidade de manter um primeiro contato com os projetos de

    lei sobre o tema atualmente em trmite na esfera legislativa brasileira.

    Na condio de principal objeto de estudo, o terceiro captulo destina-se a

    oferecer condies de entendimento sobre o nascimento e motivao de

    organizaes criminosas no sistema prisional brasileiro, exemplificando com o caso

    que diz respeito ao PCC Primeiro Comando da Capital, mas antes de adentrar de

    forma substancial ao assunto sero tecidas algumas breves consideraes sobre o

    direito de resistncia, bem como a respeito das condies do cumprimento de pena

    no estado de So Paulo. A falta de assistncia jurdica tambm ser alvo de crticas,

    pois contribui sistematicamente para a superlotao do ambiente prisional.

    Feitas tais consideraes, ser promovido neste mesmo captulo um estudo

    sobre o surgimento da criminalidade organizada no sistema prisional brasileiro,

    ocasio em que o leitor ser levado a entender como o PCC delineou seus primeiros

    contornos na Casa de Custdia e Tratamento de Taubat, localizada no interior

    paulista, para posteriormente promover rebelies sincronizadas em vrios ambiente

    prisionais de So Paulo, evento de propores assustadoras e que ficou conhecido

    no meio como a megarebelio. Para ilustrar com maior preciso o assunto, o

    episdio conhecido como massacre do Carandiru tambm ser objeto de estudo,

    assim como a questo que envolve os presdios de segurana mxima, onde o RDD

    praticado de forma abusiva e inconstitucional.

    Um pouco mais a frente deste mesmo captulo, ser levado a efeito um

    questionamento sobre a possibilidade de o PCC ser um poder paralelo ao do

    Estado, ou existir simplesmente em funo da ineficincia do Estado em gerir seu

    sistema prisional. Ser nesta fase do trabalho que o estatuto, a hierarquia, a

  • 16

    organizao e a demonstrao de fora desta faco criminosa sero expostos,

    assim como suas principais atividades, rendimentos e destinao de recursos. O

    clientelismo desta organizao criminosa tambm ser mostrado no contexto da

    deficincia da presena estatal no ambiente prisional, o que permitiu o surgimento

    dos tribunais de exceo e de uma burocracia criminosa intra e extra-muros das

    prises.

    Propiciando a necessria continuidade ao estudo, este mesmo terceiro

    captulo ainda prover um resgate histrico sobre os ataques ocorridos no ano de

    2006, que foram planejados e coordenados no interior dos presdios paulistas,

    incidindo num perodo de puro terror sociedade civil, quando ocorreram inmeros

    atentados e assassinatos de agentes sociais pertencentes aos quadros da polcia

    judiciria. Num declive de intensidade sobre o assunto especfico, este mesmo

    captulo ser encerrado com uma abordagem sobre a queda no ndice de homicdios

    dentro do sistema prisional ps 99, assim como seus provveis motivos, alm do

    estudo sobre tal diminuio tambm fora das prises.

    Como exigncia inerente a qualquer trabalho cientfico, o estudo ser

    finalizado com a apresentao de algumas consideraes de cunho pessoal do

    autor, alm da exposio da bibliografia que forneceu os subsdios tericos

    necessrios consecuo do trabalho como um todo.

  • 17

    1. OS TRS Ps INDESEJADOS: PENITENCIRIA, PRISIONEIRO E PENA

    A presente pesquisa tem como objetivo suscitar a discusso sobre o crime

    organizado ou organizao criminosa, com foco maior no PCC Primeiro Comando

    da Capital poderia configurar-se um despropsito adentrar ao tema sem antes

    promover uma abordagem acerca dos assuntos relacionados, mesmo porque a

    referida faco criminosa emerge do interior dos presdios paulistas.

    Nesse sentido, este captulo visa transportar ficticiamente o leitor ao universo

    criminolgico, permitindo que ele tenha um maior contato terico com este trio que

    guarda estreita relao entre eles.

    Existe uma mxima popular no Brasil afirmando que a cadeia foi criada com a

    funo de abrigar sujeitos sociais cujas terminologias iniciam-se com a letra p, a

    saber: preto, pobre e prostituta. Da a inteno de desenvolver este captulo

    utilizando-se, para isso, outra forma figurada de mostrar ao leitor que existem outros

    trs Ps que sofrem profunda rejeio por grande parte da sociedade, a

    penitenciria, o prisioneiro e a pena, sendo esta ltima especificamente quando se

    agente ativo em determinado delito.

    No necessrio um exerccio de reflexo muito exagerado para se entender

    que o sistema penitencirio/prisional brasileiro carrega em sua histria um profundo

    descaso e omisso por parte do Estado, haja vista que de domnio pblico a

    mxima popular que define as prises como escolas ou faculdades do crime.

    A problemtica que envolve o sistema prisional brasileiro s tende a se

    agravar, o que ser demonstrado no s com argumentos, mas, com nmeros,

    atribui-se a esta situao precria a falta de investimento em preveno, tendo

    nossos governantes optado pela represso em detrimento da preveno, o aumento

  • 18

    do Estado penal e a diminuio do Estado social, havendo criticas em qualquer

    iniciativa de formar-se uma rede de proteo social, promovendo alteraes nas

    legislaes que regulam o setor com clara influncia de legislaes internacionais,

    voltadas criminalizao da pobreza e ao encarceramento em massa.1

    O investimento no social, com raras excees, nunca foi prioridade por parte

    de nossos governantes, sendo abordada geralmente quando do discurso em

    campanhas que visam angariar votos para a ocupao de cargos nos poderes

    Legislativo e Executivo, mas esse assunto no dever ocupar muito espao nesta

    pesquisa, pois a relao da criminalidade e condio social, embora seja um

    assunto atual e atrativo, poderia desvirtuar a ateno do assunto principal e

    comprometer sua qualidade.

    1.1 O sistema prisional brasileiro: resgate histrico e legislao pertinente

    Num primeiro momento preciso ficar claro que a crtica a ser promovida

    quanto ao sistema prisional brasileiro no deve ser entendida como se a conjuntura

    ptria fosse o nico vis negativo num contexto visto sob uma tica globalizada. H

    que se entender que, assim como existem prises em pases de primeiro mundo

    que atendem as exigncias mnimas dos princpios da dignidade humana em

    comparao com o caso brasileiro, tambm possvel encontrar naes que, na

    mesma comparao, possuem sistemas de crcere que fariam o Brasil se destacar

    em relao a questo.

    A realidade atual vivenciada pelos detentos no sistema prisional brasileiro

    nada mais que um reflexo concreto de seu passado, motivo pelo qual se enseja,

    1 WACQUANTE, Loic. As prises da misria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.p.92.

  • 19

    no momento, a necessidade de se resgatar, mesmo que de forma superficial e no

    linear, sua historicidade e origens.

    Primeiramente preciso entender que o encarceramento de indivduos

    confunde-se com a prpria histria da humanidade, mas sua finalidade inicial no

    coaduna com a funo exercida na sociedade contempornea. No princpio, o

    crcere era utilizado como meio especificamente para o controle do homem sobre o

    prprio homem, ou seja, num sistema escravagista, aqueles que no tinham

    liberdade eram submetidos a esse tipo de situao para continuar na condio de

    propriedade. Alie-se a essa questo o fato de que prisioneiros de guerra, quando

    no descartados, tambm eram mantidos na privao da liberdade, haja vista a

    necessidade de controle do contingente inimigo nas batalhas, geralmente realizadas

    em campo e sem a possibilidade de acesso s tecnologias blicas disponveis na

    atualidade. No que diz respeito ao aspecto penal, a priso era considerada mais um

    meio que um fim, se for considerado que as penas num passado nem to remoto

    no abarcavam a perda da liberdade. O fato de se manter um indivduo preso tinha

    como consoante apenas evitar a fuga, j que as penas variavam entre a morte, o

    suplcio, a amputao, a perda de bens e/ou trabalhos forados.2

    Antes do atual estgio da priso, e da evoluo das cincias criminais, o

    corpo dos supostos transgressores era o objeto principal do castigo, ou melhor, por

    intermdio da tortura fsica que se fazia a justia, sendo natural a cada poca a

    prtica de mtodos hoje considerados atrozes e desumanos. A ttulo de ilustrao,

    Michel Foucault transcreve uma das formas de suplcio ocorrido na Frana, no ano

    de 1.757. O autor relata que um detento de nome Damiens foi condenado:

    2 CARVALHO FILHO, Lus Francisco. A priso. So Paulo: Publifolha, 2002. p.20.

  • 20

    [...] a pedir perdo publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroa, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroa, na Praa de Grve, e sobre um patbulo que a ser erguido, atenazado nos mamilos, braos, coxas, e barrigas das pernas, sua mo direita segurando a faca com que cometeu o dito parricdio3, queimada com fogo de enxofre, e s partes em que ser atenazado se aplicaro chumbo derretido, leo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo ser puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzido a cinzas, e suas cinzas lanadas ao vento.4

    A forma como o autor resgata a questo do suplcio sofrido por Damiens,

    facilmente passvel de aterrorizar aqueles que hoje gozam do direito fundamental

    vida, mas basta recorrer aos livros brasileiros de Histria para verificar que Joaquim

    Jos da Silva Xavier (Tiradentes) tambm sofreu tortura, mesmo no havendo

    cometido parricdio, mas apenas se voltado contra o status quo poca.

    Retornando questo da historicidade das prises, tem-se que, na cidade de

    So Paulo, at o incio da dcada de 1.780, ainda no havia uma cadeia que

    pudesse ser considerada como tal no sentido literal da terminologia. At ento, os

    detentos ficavam presos em lugares espordicos, que mais se assemelhavam a

    quartos do que a celas. Isso porque a administrao da segurana ficava a cargo da

    prefeitura, que tinha a incumbncia de alugar casas ou destinar salas para a

    recluso dos criminosos e/ou transgressores, geralmente compostos por escravos

    em fuga, ndios rebelados, entre outros tipos de agentes que no cumpriam as

    normas estabelecidas naquele momento histrico. Foi apenas em 1.787 que surgiu

    no municpio uma construo slida, que abarcasse as caractersticas necessrias

    para ser denominada priso; o prdio, de dois andares, foi instalado no largo de So

    3 Parricdio significa o assassinato do prprio pai.

    4 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes, 1987. p.9.

  • 21

    Gonalo, mantendo-se no primeiro andar a cadeia propriamente dita e, no segundo,

    a Casa de Cmara.5

    Alguns estudiosos da Histria acreditam que a priso, vista sob uma tica

    relativamente moderna, tem sua origem no contexto das prises eclesisticas e nas

    casas se correio. As primeiras dizem respeito a um posicionamento da Igreja

    Catlica no intuito de punir os religiosos que cometiam infraes, enquanto as

    segundas tiveram seu incio a partir da segunda metade do sculo XVI; na

    Inglaterra, estas eram ento conhecidas como houses of correction e bridewells; tal

    fenmeno tambm se deu na Holanda, no mesmo perodo, cujas denominaes

    eram rasphuis (para homens) e spinhuis (para mulheres).6

    A histria da criao das houses of corrections guardam certa semelhana

    com o caso brasileiro, pois surgiram da necessidade de o Estado determinar lugares

    para a recluso de agentes que migravam em massa do campo para as regies

    metropolitanas. Fato comum ao modo de produo capitalista atual, naquele

    momento o mercado tambm no conseguia absorver toda a mo-de-obra originria

    do feudalismo e, dessa forma, um grande contingente de indivduos viam-se

    repentinamente margem social e, dessa forma, o crime e a mendicncia

    supostamente eram a nica via de sobrevivncia.7 A comparao com o caso

    brasileiro tambm se d no caso da migrao macia dos estados mais pobres

    (Norte e Nordeste) para as regies prsperas (Sul e Sudeste) brasileiras.

    Marginalizados, eles passavam a habitar cortios8, promovendo o surgimento de

    5 SALLA, Fernando. As prises em So Paulo. Fernando Salla: Annablume; Fapesp, 2006a. p.37:

    este autor tambm explica que a Cmara era composta por um conjunto de oficiais, com atribuies estipuladas pelo Livro I das Ordenaes: um juiz ordinrio, trs vereadores, um procurador, um ou dois almotceis e um escrivo. 6 CARVALHO FILHO, Lus Francisco. op. cit. p.22.

    7 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Crcere e fbrica. Rio de Janeiro: Renavan: ICC, 2006. p.34-35.

    8 A denominao cortio j no mais utilizada na atualidade, mas h alguns anos servia para

    conceituar habitaes coletivas de populaes muito pobres. A terminologia mais atual para este substantivo masculino favela.

  • 22

    uma nova gerao de agentes sociais sem expectativa de futuro e/ou respaldo

    governamental, os quais, guardadas as devidas propores, optavam pela

    criminalidade como forma de subsistncia.

    Entretanto, a experincia inglesa em muito difere da brasileira, haja vista que,

    devido ao grande nmero de mendigos que pediam esmolas no centro de Londres,

    bem como em funo dos ociosos e criminosos de menor periculosidade, o rei

    autorizou, em 1530, a utilizao do castelo de Bridewell para acolhimento de tais

    indivduos. A disciplina e o trabalho obrigatrio eram as principais caractersticas das

    bridewells e seu resultado prtico foi to surpreendente que, num curto perodo de

    tempo, elas foram disseminadas por todo o territrio ingls, j que os trabalhos

    forados e com baixa remunerao, geralmente baseados no ramo txtil, forneciam

    retorno financeiro sem nus ao regime da poca.9

    No contexto do surgimento dos primeiros sistemas penitencirios, destaca-se

    que sua origem se deu nos EUA Estados Unidos da Amrica, especificamente no

    estado da Filadlfia, num perodo de transio compreendido entre o final do sculo

    XVIII e incio do sculo XIX. Nesse sistema o detento ficava isolado dos demais e a

    socializao se dava apenas nos momentos em que trabalhava (posteriormente foi

    adotada a refeio conjunta), sob a vigilncia constante dos agentes encarregados

    de impedir qualquer contato humano entre as pessoas reclusas. A nica leitura

    permitida era a Bblia Sagrada e este modelo utilizado guardava estreita relao com

    a filosofia dos Quakers10, religiosos que praticavam o movimento do cristianismo

    carismtico. A ideologia praticada era a de que o isolamento, aliado leitura da

    9 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. op. cit. p.36.

    10 O que so os quakers. Disponvel em: . Acesso em: 18

    dez. 2008: um dos movimentos cristos em que os mesmos acreditam que as formalidades externas e a aceitao de determinadas doutrinas especificas no so um pr requisito para a comunho de Deus. Qualquer ser humano que tenha o desejo sincero de ouvir a voz de Deus dentro de si ser capaz de encontrar a Deus como uma realidade viva e descobrir um significado mais profundo para

  • 23

    Bblia, injetava incentivo no que tange ao remorso e ao arrependimento, o que,

    teoricamente, era a melhor soluo para a recuperao do interno que, em

    determinado ponto de sua vida, desviou-se do caminho do bem. Tal pensamento

    ainda pregava que o isolamento contribua para evitar as influncias malficas

    inerentes ao convvio com os demais internos.11

    Essa prtica, nunca foi adotada no Brasil, haja vista que o sistema

    substancialmente oneroso e, tornaria impraticvel face ao nmero elevado de presos

    que diariamente adentram ao sistema prisional.

    Um retrocesso temporal significativo permite aferir que na cidade de So

    Paulo, em 1829, j se apontava a convivncia na cadeia de criminosos condenados

    e detentos aguardando julgamento. Redigido por cidados probos, um relatrio da

    poca acusava o espao fsico reduzido na priso para o nmero de presos naquele

    perodo histrico, bem como o ambiente insuportavelmente abafado. Em sntese,

    outros relatrios posteriormente apresentados vieram a detectar que os locais onde

    se mantinham os detentos eram carentes de higiene; alm disso, no havia

    assistncia mdica, a alimentao era escassa e de qualidade duvidosa, e o

    acmulo de lixo transformava o local no exemplo mais fiel falta de respeito para

    com a dignidade humana.12

    sua vida. Por esse motivo, os quakers costumam falar do "Deus que h em todos os seres humanos" e da "luz interior". O Culto quaker uma devoo silenciosa que dura uma hora. Nesse perodo, uma ou mais de uma pessoa pode ser impelida a dizer algumas palavras, talvez recordar uma passagem da escritura, fazer uma orao em voz alta ou compartilhar sua experincia religiosa com os outros. O amor, segundo os quakers, constitui o principio mais profundo da vida e relevante em qualquer situao. Um ponto de vista fundamental como esse produz um sentimento de responsabilidade pelo bem estar fsico e espiritual dos outros. Isso se expressa em vrios tipos de trabalho assistencial, bem como em iniciativasde reformas sociais e compreenso intercultural. Os Quakers tiveram grande responsabilidade na abolio da escravatura nos Estados Unidos no sculo XIX, assim como na reforma dos presidios. No sculo XX, envolveram se em trabalhos humanitrios durante as duas guerras mundiais e depois, trabalhos que foram reconhecidos quando sua igreja, a Sociedade dos Amigos, recebeu o prmio nobel da Paz em 1947. Os quaker so sempre pacifistas. 11

    CARVALHO FILHO, Lus Francisco. op. cit. p.24-25. 12

    SALLA, Fernando. op. cit., 2006a. p.48-49.

  • 24

    Em 1841, aproximadamente doze anos aps a emisso do documento, outro

    relatrio vinha a denunciar as pssimas condies da Cadeia de So Paulo, nos

    mesmos moldes da anlise anterior. poca, Nuto SantAnna apontava que:

    Este estado de cousas porem no somente indecoroso para um Estado, que alardia de Christo, e de civilizado; mais: uma verdadeira violao do Cdigo Penal. Ninguem negar, que elle agrava as penas legalmente impostas aos ros, far-lhes soffrer maior soma de males do que a lei respectivamente preestabeleceu para seus crimes; e esses males so o sofrimento moral, e physico de todos os momentos produsido pela impureza do ar; e dos aposentos, a deteriorao da saude, e por conseguinte o encurtamento da vida dos presos, males que elles no sofririo, si o estado das Prizes fosse tal, como a Razo, a Constituio o prescrevem, entretanto no licito (Cd. Crim. art. 33) que um crime seja punido com penas diversas, ou maiores do que as para elle estiverem decretadas.13

    Evidencia-se, da, que o sistema prisional brasileiro j teve seu incio sem a

    devida preocupao para com a dignidade do detento e, tambm, completamente

    descompromissado com a questo condizente ressocializao. No de se

    surpreender que a prtica de armazenar indivduos sem o menor compromisso e

    suporte do Estado, pode ter criado o estigma de que o preso escria e, como tal,

    assim deve ser tratado no ambiente prisional.

    Para uma melhor elucidao sobre a manuteno conjunta de presos com e

    sem condenaes, cabe aqui explicar que os presos so aqueles que ainda esto

    confinados enquanto aguardam que o delito praticado seja devidamente apurado e a

    sentena seja emitida. J, a terminologia condenados refere-se aos que foram

    julgados e contra eles j foi emitida uma sentena definitiva, devendo tais agentes

    cumprir a pena nos moldes estabelecidos pelo juiz/norma penal.14

    Retornando ao objeto de estudo deste captulo, tem-se que a historicidade do

    sistema prisional brasileiro permeada pelo descaso, mas tal fenmeno merece ser

    13

    Apud. SALLA, Fernando. op. cit., 2006a. p.58-59. 14

    THOMPSON, Augusto. A questo penitenciria. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p.97.

  • 25

    devidamente vinculado questo social no Brasil. Tal fator remete ao prprio ttulo dessa

    fase da presente pesquisa, que indica que a priso para pobres, pois de domnio

    pblico que neste pas raro algum com alto poder aquisitivo sofrer as mazelas

    inerentes ao sistema carcerrio brasileiro. Se a priso para pobres, h que se inferir que

    a problemtica gira em torno da m distribuio de renda, que ocorre desde a poca do

    Brasil Colnia. Alis, este territrio j teve sua colonizao com fins exclusivamente

    exploratrios, o que desde o princpio j criou uma grande lacuna nos centros de poder e

    desembocou num abismo significativo entre os mais ricos e os menos favorecidos.

    Sob essa tica, entender a superlotao nas prises brasileiras muito

    simples, haja vista que basta uma mera operao matemtica para chegar a uma

    concluso, ou seja, a adio. Os clculos seriam, em sentido figurado, os seguintes:

    poucos ricos + muitos pobres = m distribuio de renda; Injustia social + falta de

    oportunidades = alta incidncia de criminalidade; alta incidncia de crimes + dficit

    em nmero de prises = superlotao carcerria.

    Os ltimos nmeros do DEPEN15 sobre o total de presos no Brasil, de

    Dezembro de 2007, divulgado no inicio de 2008, informa que so 422.590 de

    pessoas encarceradas, sendo pertinente observar que a no esto inclusos os

    nmeros daqueles que se encontram recolhidos em delegacias. Os nmeros

    nacionais e paulistas sero objeto de anlises mais cuidadosas no 3. Captulo.

    Observando os nmeros de encarcerados, conclumos que a situao do

    sistema carcerrio brasileiro extremamente problemtica, e nem preciso um olhar

    mais crtico para notar que o entrave atinge gradativamente patamares mais

    acentuados. Diante disso, possvel compreender que as condies de vida nas

    prises sofrem maior agravamento e, de acordo com Fernando Salla:

    15

    Dados consolidados do sistema prisional 2008. Disponvel em: . Acesso em: 8 jul. 2008.

  • 26

    [...] seus principais componentes so: a superlotao de muitos estabelecimentos, a manuteno de prticas de torturas e maus tratos, a ecloso de rebelies, a exigidade dos servios prisionais (alimentao, asseio e higiene pessoais), vesturio, assistncia jurdica, programas de reabilitao, etc.), alm da presena cada vez mais intensa de grupos criminosos no interior das prises16.

    Os dados so realmente preocupantes, ainda mais se levando em conta que

    existe um dficit muito grande de vagas no pais, apesar dos investimentos que so

    feitos na construo de novos estabelecimentos prisionais. O que leva a essa

    saturao do sistema so trs itens que, somados, contribuem de forma conjunta

    para a problemtica em questo. Primeiramente existe o fato de que o brasileiro est

    adentrando ao caminho da delinqncia em maior nmero de casos; em segundo

    lugar, compreende-se que o aparato de represso estatal (leia-se polcia) vem

    agindo com eficincia (e truculncia) cada vez maior, o que fatalmente incide num

    nmero maior de detenes; por fim, a prpria Justia brasileira equivocadamente

    tem adotado um sistema de julgamento que procura fazer mais justia do que o

    necessrio, condenando priso, em muitos casos, sujeitos que praticaram crimes de

    baixo teor ofensivo.17

    No fica muito imperceptvel que, ao condenar cidados recluso por

    motivos muitas vezes no to graves ou mesmo em funo de crimes famlicos,

    16

    SALLA, Fernando. op. cit., 2006b. p.290. 17

    Idem. p.C-1.

  • 27

    Ministrio Pblico e magistratura esto indiretamente contribuindo para a

    manuteno e acirramento do problema que envolve o sistema penitencirio

    brasileiro, ainda mais se a tica da situao for direcionada questo da

    reincidncia de presos libertos. A falta de oportunidades laborais e o estigma que

    atinge diretamente o condenado que cumpriu pena, no lhe deixa qualquer

    alternativa outra seno a de voltar a delinqir. Descarta-se aqui a necessidade de

    um exerccio profundo de reflexo para entender que a reincidncia contribui para

    aumentar substancialmente o problema da superlotao carcerria.

    Diante do breve resgate histrico que ora se prope a fazer neste captulo,

    convm aqui explicar que existe muito pouca documentao disponvel que permita

    apresentar um leque de informaes detalhadas acerca da historicidade das cadeias

    no Brasil, mas o que se encontra disposio suficientemente claro para entender

    que nunca houve, por parte dos governantes, qualquer compromisso com o respeito

    aos direitos humanos do prisioneiro. A histria comprova que os projetos brasileiros

    referentes ao sistema prisional realmente lograram parcos resultados, na maior parte

    dos casos em funo do carter enganoso que permeia as reformas liberais

    oriundas do sculo XVIII, as quais foram absorvidas com veemncia pela cultura

    jurdica luso-brasileira da poca.18

    Nesse contexto, compreensvel que nada de positivo se tenha a declarar a

    respeito das prises no Brasil, haja vista que o sistema est sobrecarregado e

    herdou um legado maldito de um passado nem to remoto, o que reflete atualmente

    no mbito prisional e afeta, direta e indiretamente, todos os demais segmentos da

    sociedade.

    18

    MARTINS, Srgio Mazina. Problemas dos sistemas penitencirios brasileiros em face das redes e organizaes criminosas. Direito e Cidadania. So Paulo: Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, mai.-dez. 2004. p.47-48.

  • 28

    Ainda no contexto de se retomar a historicidade acerca do assunto, convm

    aqui destacar a entrevista concedida por Carlos Guilherme Mota19 ao jornal O

    Estado de So Paulo, quando afirmou ao jornalista Fred Melo Paiva que:

    Quando houve a Inconfidncia Mineira, ou mesmo a Revolta dos Alfaiates, as condies carcerrias eram miserveis. H descries disso. E olha que foram presos ouvidor, desembargador, advogado. [...] Eram pessoas, digamos, de alto coturno, tiveram alguns privilgios. Ainda assim seus testemunhos do crcere so uns horrores. Durante todo o sculo 19 as condies so, sim, de barbrie. No h a idia de cidadania como a temos hoje, nem minimamente.20

    E completa o entrevistado explicando que:

    Os presdios, hoje, comportam pelo menos o dobro de gente que deveriam. No tem nenhum projeto consistente de reeducao. Dizer que no h verbas para tal besteira. Para a sociedade civil burguesa, seria muito mais barato bancar isso do que ficar pagando automveis blindados e seguranas. Mas no: essas figuras fora da lei so colocadas tambm para fora do direito, e assim podem ser mortas. desse jeito desde a poca da Colnia uma jurisprudncia rstica do mundo real.21

    Apenas a ttulo de promover um raciocnio crtico acerca da questo,

    possvel indagar a seguinte questo: - se as mazelas da priso ocorreram

    naturalmente com presos que no estavam ligados diretamente criminalidade,

    mas apenas tomaram posicionamento contrrio ao status quo de determinados

    perodos histricos brasileiros, o que, ento, h de se esperar do tratamento dado

    queles que porventura vieram a cometer algum delito? A resposta simples. Se o

    Estado pouco se importava com sua imagem institucional ao deter, prender e

    19

    Carlos Guilherme Mota professor titular de histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi diretor-fundador do Instituto de Estudos Avanados da USP. pesquisador da Escola de Direito da Fundao Getlio Vargas. Autor, entre outros, da obra Ideologia da Cultura Brasileira. 20

    PAIVA, Fred Melo. Voc tambm est atrs das grades. O Estado de So Paulo. Caderno Alis. So Paulo, 9 dez. 2007. p.J-5. 21

    Idem. p.J-5

  • 29

    torturar presos polticos (no se esquecendo aqui do perodo militar que se encerrou

    h poucas dcadas, promovendo prises ilegais, sem posterior julgamento ou direito

    de defesa), encarceramentos estes muitas vezes baseados em denncias annimas

    e sem real comprovao de culpa, fica de fcil absoro que o preso comum,

    aquele que realmente cometeu determinado crime, est fadado a conviver num

    sistema prisional retrgrado, desumano, e carente de reformas que ofeream

    minimamente a dignidade ao detento.

    O histrico de desrespeito aos direitos bsicos do preso, no ocorre s no Brasil, na

    Europa, a situao tambm no um exemplo de respeito ao presidirio. Utilizando-se a

    Espanha como base para tal afirmao, possvel buscar guarida em Carmen Ruidiaz

    Garcia22 para entender que los internos (poblacin reclusa) pertenece a estratos sociales

    bajos, que apenas han superado los niveles mnimos de instruccin, que carecen de una

    formacin professional adecuada, alm do que, la mayora de la poblacin reclusa es

    reincidente, politoxicmana, com enormes problemas de salud y que las prisiones

    espaolas estan incapacitadas para realizar un tratamiento de reinsercin social de los

    internos favoreciendo en muchos casos la carrera delictiva [...]

    De qualquer forma, o ttulo do presente captulo, apesar de esdrxulo, continua

    guardando relao com os outros trs Ps j citados (pobre, preto e prostituta). Como

    tratamento diferenciado destinado queles de situao financeira privilegiada, citamos

    caso conhecido, do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, que foi condenado por crimes

    contra o sistema financeiro e adentrou a Cadeia de Guarulhos, municpio da grande

    So Paulo, em 26 de maio de 2006. Em entrevista concedida Mnica Bergamo,

    colunista do jornal Folha de So Paulo, ele relata a experincia vivida no sistema

    22

    GARCIA, Carmen Ruidiaz. Una mirada a la vida en las prisiones: los recursos y su mundo. Cuadernos de Poltica Criminal. Madrid: Universidad Complutense de Madri; Instituto Universitario de Criminologia; Edersa, 1994. p.1444-1445.

  • 30

    prisional brasileiro, o que se deu em duas fases (muito) distintas, sendo a primeira na

    referida cadeia e a segunda na Penitenciria II de Trememb.

    Ferreira destaca que sua chegada Cadeia de Guarulhos proporcionou-lhe

    muita apreenso e tenso, uma vez que no sabia qual seria a reao dos demais

    detentos com sua chegada no ambiente prisional. Ele foi isolado durante dois dias

    na Enfermaria local e posteriormente recolhido a uma cela com o dobro de detentos

    (24), se levado em conta o nmero de camas (doze) disponveis na poca. Tambm

    explica que s vezes o nmero de presos to alto que nem no cho d para

    dormir. Voc tem que dividir as camas com outras pessoas, fazendo o que chamam

    de valete.23

    Alguns dias aps sua chegada, Ferreira foi transferido para a Penitenciria II

    de Trememb, onde a situao era significativamente mais confortvel em

    comparao com a Cadeia de Guarulhos. Ele informa que nesta penitenciria os

    presos dispem de celas que abrigam de dois a quatro detentos e o presdio tem

    como destinatrios presos especiais como, por exemplo, justiceiros, ex-agentes

    penitencirios, ex-policiais, entre outros. Destaca, ainda, que havia salas de aula

    para alfabetizao. No h superpopulao. Ningum est dormindo no cho. Tem

    campo de futebol, lugar para jogar bocha, malha, voleibol, uma sala de ginstica

    com equipamentos que eles mesmos fabricaram [...] Os visitantes tm um carinho

    especial pelo local, inclusive h um ambiente adequado para visitas ntimas, como

    se fosse um motel [...].24 Resumindo, o local mais se assemelha a um SPA do que a

    um presdio, mas porque tais regalias so propiciadas apenas aos presos

    especiais e ao preso comum oferecido somente o caos? A resposta no difcil

    de ser encontrada, pois, como j afirmado, a cadeia no Brasil, em seu sentido real,

    23

    BERGAMO, Mnica. Mmrias do crcere. Folha de So Paulo. So Paulo, 14 set. 2008. p.E-2. 24

    Idem. p.E-2.

  • 31

    tem como funo abrigar menos favorecidos. A propsito, Edemar Cid Ferreira ficou

    encarcerado por somente 89 dias, aps ser favorecido por uma deciso do STF

    Supremo Tribunal Federal, que o colocou em liberdade.

    A situao atual do sistema prisional tambm pode ser verificada sob o ponto

    de vista de outro caso, que em muito difere do recm apresentado. Trata-se do

    vivido por Bruno (nome completo mantido em sigilo por segurana) que, para ir de

    carro ao trabalho, em maio de 2006, alterou com fita isolante o nmero da placa de

    seu automvel, visando burlar o sistema de rodzio na cidade de So Paulo. Ao

    passar por uma blitz policial e ser ordenado a parar, achou por bem tentar fugir, mas

    foi perseguido, detido e fichado por falsidade ideolgica e resistncia priso. Aps

    os procedimentos iniciais foi encaminhado a um corr, ou seja, celas de delegacias

    para onde so enviados aqueles sujeitos que acabam de ser detidos.25

    O local para onde Bruno foi encaminhado era uma cela com capacidade para

    abrigar dois presos, mas l havia quatro. Sem banheiro, privada ou torneira, ainda tinha

    o adicional de no dispor de camas, sendo tal deficincia sanada com pedaos de

    papelo. O rapaz de 28 anos, casado e com uma filha de nove anos, ainda explica que

    nos xadrezes maiores a situao a mesma: h casos de celas para 20 homens

    abrigando 120, o que d 60 cm2 para cada um. E completa ilustrando que ali, s

    cotoveladas, tm de se revezar para dormir ou tentar pegar no sono de joelhos. Mas,

    mesmo onde todos so iguais, alguns so mais iguais: os bandidos mais poderosos

    costumam ficar em redes bem no alto, pertinho das grades, onde mais arejado.26

    25

    SOUZA, Ftima; VERSIGNASSI, Alexandre. A cadeia como voc nunca viu. Super Interessante. So Paulo: Editora Abril, mar. 2008. p.55. 26

    Idem. p.55-56.

  • 32

    Pertinente observar que pela legislao penal brasileira, qualquer cidado

    deve ficar no mximo por trinta dias na delegacia para, posteriormente, ser

    transferido para um CDP Centro de Deteno Provisria ou para uma cadeia

    pblica, visando aguardar a sentena de seu ilcito penal. Se condenado, deve ser

    enviado para um presdio. Infelizmente, o sistema atual no funciona dessa maneira,

    haja vista a superlotao de delegacias, CDPs e penitencirias, que contribuem,

    para transformar o sistema num verdadeiro atentado contra a dignidade humana.

    Essa problemtica no atingiu diretamente Bruno, pois ele conseguiu custear as

    despesas de um advogado e foi transferido para um CDP em Franco da Rocha,

    na grande So Paulo. Recm-chegado, Bruno recebeu uma ordem direta do piloto

    local, ou seja, pagar para no ter que dormir no banheiro, o que foi feito (pagou caro) e

    permitiu que ele dormisse num canto menos ftido da cela, a qual foi, durante 21 dias,

    dividida com mais 23 reclusos.27

    Sobre a questo do mercado imobilirio intra-muros, Ftima Souza e

    Alexandre Versignassi explicam que:

    Nas penitencirias os preos costumam ser mais camaradas. As celas para quem est cumprindo pena so projetadas para abrigar menos gente do que as de deteno provisria. So para 4 a 6 pessoas, em espaos que vo de 9 a 16 m2. Mas chegam a ficar 12 em cada xadrez as vezes mais de 20. [...] Nele, um canto numa cela menos abarrotada custa de R$ 100 a R$ 200. Por 50 voc fica numa com mais gente. Se no tiver moral no

    meio da bandidagem nem nada para dar, fica sem sada: vai ter que dormir na cela mais lotada. De preferncia no banheiro.28

    Os casos apresentados so dois lados bem distintos de um mesmo fenmeno

    nacional e, somados s demais informaes at aqui, pretendem fazer com que o

    27

    SOUZA, Ftima; VERSIGNASSI, Alexandre. op. cit. p.55-56. 28

    Idem. p.56-57.

  • 33

    leitor deste trabalho tenha a oportunidade de absorver, mesmo que minimamente, as

    informaes bsicas e parciais acerca do tema estudado.

    Entretanto, outros assuntos que guardam relao com o presente tpico

    devem ser abordados, principalmente as leis que regem o sistema prisional, o que

    ser feito a seguir.

    1.2 Sobre a legislao que normatiza os crimes, as prises e os prisioneiros

    No se compactua aqui com o entendimento de alguns defensores da

    possibilidade de uma sociedade sem normas, pois o homem necessita, enquanto ser

    humano, de certas regras preestabelecidas para o convvio em sociedade, mas s

    est disposto ceder minimamente naquilo que julga de seu interesse para exigir do

    outro o mximo que lhe possa favorecer. Pertinentes a afirmao de Cesare

    Beccaria no sentido de que a tendncia do homem to forte para o despotismo

    que ele procura, incessantemente, no s retirar da massa comum a sua parte de

    liberdade, como tambm usurpar a dos outros.29

    O conjunto de posturas a serem seguidas e respeitadas, que faz com que o

    tecido social no se esgarce e permita que no impere de forma generalizada a lei

    do mais forte, o que, se ocorresse, fatalmente remeteria toda a contemporaneidade

    ao status da barbrie, j vivenciada pelo homem quando do incio dos primeiros

    agrupamentos humanos.

    Neste momento no se est apenas tratando da norma positiva, aquela

    escrita e que incide sobre todo e qualquer cidado, independentemente do extrato

    social a que pertence. A referncia tambm se d nos aspectos abstratos de

    29

    BECCARIA, Cesare. op.cit. p.84.

  • 34

    padres de comportamento a serem seguidos como, por exemplo, aqueles ditados

    pelos costumes, pela moral e pela tica, mesmo que tais caractersticas no sejam

    absorvidas e materializadas na ntegra pela totalidade de indivduos que compem a

    sociedade como um todo.

    Assim, tem-se que o Brasil um pas que guarda estreita relao com o

    direito positivo, pois, desde o incio de sua colonizao, absorveu conceitos do

    Direito portugus e, a partir da, boa parte da cultura jurdica romana e alem, o que

    permite afirmar que o Direito ptrio detm, em boa parte de sua estrutura, heranas

    dos sistemas jurdicos europeus.

    Todavia, a presente pesquisa guarda ntima relao com o direito penal,

    motivo pelo qual no se aventa aqui, a necessidade de se enveredar por outros

    caminhos que no o condizente a esta ramificao especfica do Direito e, para isso,

    o leitor deve ser conduzido com iseno a temas que digam respeito ao objeto da

    pesquisa.

    Promovendo a continuidade ao que se prope estudar neste captulo, cabe

    agora ofertar algumas consideraes sobre a legislao que orienta e normatiza a

    esfera penal e, no obstante, o ambiente prisional brasileiro, o que ser feito na

    seqncia.

    1.2.1 As leis de ocasio e o regime de exceo no tratamento da questo

    penitenciria

    Uma das caractersticas essenciais do Direito seu dinamismo, haja vista que

    o homem possui a capacidade de alterar seu meio ambiente e, ainda, difundir

    socialmente a alterao de condutas padro, muitas vezes de encontro s normas

    de comportamento estabelecidas como aceitveis pela coletividade.

  • 35

    Nesse sentido, o Estado, enquanto alavanca propulsora (e repressora) do

    convvio social deve primar pela viglia constante de seus protegidos, haja vista que

    a ausncia de um posicionamento crtico frente s novas posturas referentes ao

    comportamento humano pode incidir em um estado de coisas de difcil

    administrao.

    de domnio pblico, principalmente em funo da vasta cobertura pelos

    meios miditicos, que certas prticas entram em conflito direto com o ideal de

    Estado posto, considerando-se que a populao tambm possui voz ativa no que diz

    respeito aos acontecimentos e fenmenos, quando no compactua com a ideologia

    praticada em determinado perodo histrico. Prova disso o surgimento de

    legislaes que vm a normatizar (provisria ou definitivamente) situaes que

    despertam a ira, o desgosto ou a insatisfao da populao.

    Aqui possvel citar como exemplo duas situaes que originaram a criao

    de normatizaes especficas para regularizar disfunes sociais adquiridas no

    decorrer da histria brasileira, a saber: a Lei Maria da Penha30 e a Lei do

    Racismo31, ambas originadas de clamores sociais que exigiam posicionamentos do

    legislador, no sentido de reprimir a prtica de comportamentos no mais condizentes

    com status quo vivenciado pela populao num determinado momento de sua

    historia. Outro exemplo a ser exposto a Lei contra a Pedofilia (ainda em trmite),

    que pretende transformar em crime hediondo, entre outras posturas, a prtica de

    atos sexuais abusivos contra crianas e adolescentes.

    30

    Lei n 11.340, de 7 de agosto de 2006: Cria mecanismos para coibir a violncia domstica e familiar contra a mulher, nos termos do 8

    o do art. 226 da Constituio Federal, da Conveno sobre

    a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra as Mulheres e da Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher; dispe sobre a criao dos Juizados de Violncia Domstica e Familiar contra a Mulher; altera o Cdigo de Processo Penal, o Cdigo Penal e a Lei de Execuo Penal; e d outras providncias. 31

    Lei n 7.716, de 5 de janeiro de 1989: Define os crimes resultantes de preconceito de raa ou de cor.

    http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2011.340-2006?OpenDocument

  • 36

    Tal prtica, ou seja, a criao de leis especficas para determinadas situaes

    suscitadas pela sociedade como um todo, apresenta uma terminologia prpria, ou

    seja, leis de ocasio, tambm conhecida como direito penal simblico32, de

    emergncia ou de pnico. Porm, necessrio que se tenha muita ateno quanto

    a essa postura do legislador, pois no incoerente afirmar que por traz de algumas

    legislaes podem estar ocultos objetivos nem sempre voltados ao fim precpuo, ou

    melhor, a norma estaria sendo utilizada de forma oportunista com a finalidade de

    projeo poltica de seu proponente e com pretenses puramente eleitoreiras, de

    barganha poltica ou de desfocagem da realidade, mas essa uma discusso

    que no ser levada adiante, sob pena de desvirtuar o objeto de estudo dessa fase

    da presente pesquisa.

    Fica compreensvel neste momento a importncia das legislaes citadas, que em

    um primeiro momento e s vezes, por um curto perodo, surte algum efeito, mas h que

    se ter em mente que, de acordo com Gamil Foppel El Hireche:

    [...] o Direito Penal exerccio de poder, de potestade, poder que s pode ser aplicado de forma racional se houver uma determinada finalidade e, sobretudo, quando h limitaes ao Direito de punir. Estudar o Direito Penal pressupe, por conta disso, analisar as suas prprias funes e limites. Direito sem limite, sem fundamentao, tirania, despotismo.33

    Sob o manto do discurso de garantia de tranqilidade sociedade, o Estado

    toma iniciativas pouco ortodoxas na elaborao de algumas legislaes que pendem

    32

    Cf. QUEIROZ, Paulo. Sobre a Funo do Juiz Criminal na Vigncia de um Direito Penal Simblico. Boletim do IBCcrim. n. 74. So Paulo: Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, janeiro de 1999. p.26: este auto, citando Garcia-Pablos, entende que um direito penal simblico carece, evidentemente de toda legitimidade, pois, manipula o medo ao delito e insegurana, reage com rigor desnecessrio e desproporcionado e se preocupa, exclusivamente com certos delitos e infratores, introduzindo um sem fim de disposies penais, apesar de inteis ou de impossvel cumprimento, desacreditando o prprio sistema penal. 33

    HIRECHE, Gamil Foppel El. Anlise criminolgica das organizaes criminosas. Rio de Janeiro: Lmen jris, 2005. p.29.

  • 37

    mais ao casusmo do que sua real funo: a de garantir a harmonia da vida em

    sociedade. Tambm preciso frisar que a sensao de insegurana por parte da

    sociedade civil, aliada exposio diria pela mdia da situao da criminalidade no

    pas, incide no fenmeno de criao de uma tcnica legislativa que projetam o direito

    penal condio de instrumento de controle com carter mais acessrio que principal.

    Ana Elisa Bechara34 explica que os tipos penais distanciam-se dos requisitos clssicos

    da generalidade e da abstrao, transformando-se em instrumentos de administrao

    de situaes particulares, de emergncias concretas, criando um direito penal de

    emergncia caracterizado principalmente pela perda do carter subsidirio e

    fragmentrio e pela mistura de instrumento poltico de segurana.

    Ainda sobre o assunto, eficaz se torna buscar amparo em Olga Lucia Gaitn

    Garcia, para quem:

    O direito penal moderno tende a refugiar-se em encargos meramente simblicos, como instrumento para a sensibilizao social, para satisfazer demandas por atuao, para mostrar um Estado forte, etc., mas o simblico no neutro, no sentido crtico em que o tratadista alemo Hassemer d ao termo, pois deve ser associado com engano, na medida em que existe uma oposio entre o que realmente se quer e o que de fato se aplica. Engano porque parte de uma aparncia falsa de efetividade e instrumentalidade e, com isso, legitima-se o endurecimento das sanes, a extenso do controle penal e a necessidade de recorrer a este instrumento em primeira e ltima instncia. Direito penal simblico significa que as funes latentes das normas predominam sobre as funes manifestas; ento de se esperar que com elas e sua aplicao realiza-se algo diferente do disposto na mesma lei.35

    Arrisca-se aqui a denominar as leis de ocasio como leis de aparncias,

    pois em muitas situaes elas praticamente surgem da incapacidade do Estado em

    cumprir seu papel de provedor e mantenedor da ordem e da paz. Ao normatizar

    determinado assunto, ele transmite um posicionamento aparentemente em

    34

    BECHARA, Ana Elisa. Os discursos de emergncia e o comprometimento da considerao sistmica do direito penal. Boletim do IBCCrim. So Paulo: Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, set. 2008. p.17. 35

    Apud. HIRECHE, Gamil Foppel El. op. cit. p.30.

  • 38

    consonncia com os anseios da populao, que se sente segura diante da nova

    legislao quando, na realidade, o problema em si continua na mais absoluta

    plenitude. Um exemplo disso a questo da maioridade penal, pois todos os dias os

    meios de comunicao de massa incutem na mente do cidado comum, que os

    menores de idade esto adentrando cada vez mais cedo esfera do crime, e isso

    nada mais que a pura realidade. Tal fenmeno, aliado insuficincia

    governamental em propiciar locais que abriguem os menores infratores, tem levado

    a sociedade logo aps divulgao exaustiva de crimes cometidos por menores, a se

    manifestar pela aprovao de lei que altere a maioridade penal de dezoito para,

    dezesseis anos. Se levado a efeito, o direito penal simblico nesse caso especfico

    teria repercusses distintas, imediatas e de mdio prazo, a saber:

    a) o autor do Projeto de Lei seria alado ao nvel de heri nacional (e, tambm,

    vilo), pois teve a coragem de enfrentar um problema que aparentemente era

    insolvel - imagine-se a projeo poltica de tal representante do Legislativo;

    b) ao ser detido, o indivduo a partir dos dezesseis anos no seria levado a qualquer

    Fundao C.A.S.A.36, devendo ser recolhido na condio de responsvel

    penalmente e, assim, contribuir ainda mais para o problema da superpopulao

    carcerria brasileira;

    36

    A Fundao Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA) uma instituio ligada Secretaria de Estado da Justia e da Defesa da Cidadania. Tem como misso primordial aplicar em todo o Estado as diretrizes e as normas dispostas no Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), promovendo estudos e planejando solues direcionadas ao atendimento de adolescentes autores de atos infracionais, na faixa de 12 a 21 anos. A Fundao CASA presta assistncia a adolescentes em todo o Estado de So Paulo. Eles esto inseridos nas medidas socioeducativas de privao de liberdade (internao), semiliberdade e meio aberto (Liberdade Assistida e Prestao de Servios Comunidade). As medidas so aplicadas de acordo com o ato infracional e a idade dos adolescentes. Disponvel em: . Acesso em: 1 dez. 2008.

    file:///E:/Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Unimep/Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/BYSFZXSL/paginas.php%3fsess=1&sessID=63

  • 39

    c) a populao sentir-se-ia segura, crente de que o Estado tomou um

    posicionamento frente a um problema que tomava a vida em sociedade

    insuportvel;

    d) o ECA Estatuto da Criana e do Adolescente seria desrespeitado e

    provavelmente alterado, visando dar espao soluo de um entrave (de carter

    puramente social) que chegou propores inaceitveis;

    e) a Comisso de Direitos Humanos, os Conselhos Tutelares e organismos

    internacionais iriam a pblico manifestar indignao com a postura brasileira,

    havendo ampla cobertura da mdia ao acontecimento;

    f) os intelectuais de planto iriam utilizar-se do fato para dar entrevistas e publicar

    artigos contrrios (ou favorveis) ao posicionamento estatal frente ao problema

    do menor infrator;

    g) num curto perodo de tempo, o interesse dos meios de comunicao sobre o

    assunto seria esgotado e a deteno/priso de menores no mesmo espao fsico

    onde se encontram condenados pela Justia passaria a ser comum no cotidiano

    brasileiro;

    h) a populao voltaria a acreditar no potencial de segurana do Estado brasileiro, o

    qual poderia, por intermdio de aes sociais, principalmente a educao,

    diminuir a significativa distncia entre uma minoria rica e uma grande maioria

    pobre;

    i) por fim, em mdio prazo seria verificado que a aprovao da norma foi apenas

    um paliativo para uma situao de fundo mais especfico (social), pois

    gradativamente jovens menores de dezesseis anos entraro no universo do

    crime e o crculo vicioso novamente se fechar, infelizmente com a sociedade

    civil em seu interior.

  • 40

    Feitas essas consideraes sobre as leis de ocasio, cabem agora algumas

    consideraes sobre o regime de exceo no tratamento da questo penitenciria.

    1.2.2 O regime de exceo no tratamento da questo penitenciria

    Recentemente gerou polmica, tendo sido amplamente divulgada pela grande

    mdia, a deciso do Juiz das Varas de Execuo de Tup/SP, Gerdinaldo Quichaba

    Costa que, contrariando a regra que impera no sistema prisional, que a de ignorar

    os desrespeitos s normas referentes ao tratamento do preso, denunciou a

    existncia de um regime de exceo nos presdios paulistas.37 Ele formalizou a

    denncia em Portaria na qual determina que presos detidos nos quatro presdios sob

    sua jurisdio, penitencirias I e II de Pacaembu, de Junqueirpolis e de Luclia,

    possam tomar banho de sol por pelo menos duas horas por dia. Segundo o mesmo

    magistrado, trata-se de um regime de pena cruel, que fere as principais resolues

    internacionais de proteo dos direitos humanos e que vai contra a legislao penal

    e Constituio Federal, vigora h dcadas nas penitencirias do estado de So

    Paulo.38

    O mesmo magistrado tambm determinou que no seriam mais aceitos em

    sua jurisdio detentos acima dos limites estabelecidos em lei, bem como no seria

    considerado falta grave o uso de entorpecente no interior destes estabelecimentos,

    baseando-se na nova poltica criminal, que no pune com priso o porte de drogas,

    sendo ento a aplicao de falta grave, que implica em perdas de benefcios como a

    progresso de regime. Tal posicionamento, por ser raro e, neste caso nico a partir

    37

    Cf. SIQUEIRA, Chico. Juiz denuncia regime de exceo nas prises de SP. Disponvel em: . Acesso em: 23 fev. 2009. 38

    Idem.

    http://noticias.terra.com.b/

  • 41

    de uma autoridade do sistema, foi duramente criticado, havendo pouco e tmido

    apoios ao seu posicionamento.

    Todavia, mesmo com relativa mudana de foco do rumo iniciado, preciso

    destacar que a Carta Magna de qualquer pas deve ser respeitada e entendida como

    fundamento para as demais normas que porventura venham a ser editadas. Some-

    se a isso o fato de que qualquer postura tomada pelos agentes da segurana

    pblica, e que entre em choque com os princpios estabelecidos na Lei Maior,

    inconstitucional e no deve ser admitida e/ou tolerada.

    A norma penal tambm possui suas regras prprias e elas no foram

    elaboradas simplesmente para complementar o quadro brasileiro de leis. O acesso

    por criminosos a armamentos qualitativa e quantitativamente superiores em

    comparao aos fornecidos aos membros da polcia, no autoriza as mortes

    praticadas nos famosos confrontos pelos agentes policiais.

    Durante o perodo militar brasileiro, que se encerrou h algumas dcadas, era

    comum a deteno e o desaparecimento de presos polticos. Os chamados anos de

    chumbo do Brasil39 deixaram resqucios na herana histrica brasileira, ou seja,

    ainda hoje a polcia atua de forma truculenta e, muitas vezes, sem respeitar os

    ditames penais, num esquema de total incongruncia com as normas estabelecidas

    pelo direito penal e pela tica profissional da polcia. O mesmo ocorre com os

    administradores da segurana pblica e at da Justia, agindo de forma dissonante

    legislao vigente e criando um regime de exceo.

    Comum o uso de leis e regras de exceo no sistema prisional, rus primrios

    que so detidos e, pela lei, deveriam aguardar julgamento em CDPs, mas a

    39

    Os chamados Anos de Chumbo no Brasil configuraram o perodo mais repressivo da ditadura militar, estendendo-se basicamente do fim de 1968, com a edio do Ato Intitucional n 5, em 13 de dezembro daquele ano, at o final do governo Mdici, em maro de 1974.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-1985)http://pt.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-1985)http://pt.wikipedia.org/wiki/1968http://pt.wikipedia.org/wiki/AI-5http://pt.wikipedia.org/wiki/13_de_dezembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/13_de_dezembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9dicihttp://pt.wikipedia.org/wiki/1974

  • 42

    superlotao nesses Centros permite aos agentes da segurana pblica transferir

    o acusado para penitencirias, que abrigam em sua grande maioria presos j

    condenados. No Judicirio o abuso no uso e manuteno da priso cautelar, quando

    no preenchidos os requisitos da custdia cautelar, previstas Cdigo de Processo

    Penal ptrio; a segregao do acusado por longos perodos sem julgamento, ferindo

    tambm o dispositivo constitucional previsto no artigo 5, inciso LXV, da Carta

    Magna, prescrevendo que ningum ser levado priso ou nela mantido quando a

    lei admitir a liberdade provisria, com ou sem fiana. sem dvida um dos fatores

    responsveis pela superlotao carcerria. A sntese desta questo e o grande

    argumento que as prises cautelares tm sido usadas de forma anmala, de

    exceo tem se transformado em regra.

    Quando essa prtica se torna uma constante, aparentemente se est

    vivenciando um fato comum, mas isso nada mais significa que um regime de

    exceo e cuja adoo acaba adquirindo certa legitimidade. A prpria Constituio

    Federal brasileira vigente, no caput de seu artigo 5, prev que todos so iguais

    perante a lei, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a

    inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e

    propriedade [...]. Todavia, essa igualdade muito relativa quando aplicada na

    prtica, pois os exemplos de deteno apresentados anteriormente (Edemar Cid

    Ferreira versus Bruno) demonstram claramente o abismo existente entre o

    tratamento de ricos e pobres no Brasil.

    O que ocorre no caso brasileiro que a situao de insegurana se tornou de

    tal forma to insustentvel, que a sociedade passou a reproduzir com mais

    intensidade a ideologia de que o criminoso inimigo da populao e,

    conseqentemente, do Estado. Nesse sentido, a adoo de qualquer prtica que

  • 43

    possa garantir mais segurana (e legitimidade ao direito de punir) passa a ser

    compreendida como legal, mesmo que em total contrariedade s normatizaes

    ptrias que garantem a estabilidade da vida num Estado Democrtico de Direito.

    Sobre esse assunto, convm buscar amparo em Gamil Fppel El Hireche

    para compreender que:

    Esta a sociedade que se convencionou chamar de sociedade do risco. uma sociedade traumatizada, neurtica, que busca combater o risco onde quer que ele possa estar, ainda que os perigos imaginados por eles inexistam. As pessoas tm medo: medo dos crimes que verdadeiramente ocorrem, medo dos fatos que jamais ocorreram. Este medo, que justifica cada vez mais modificaes no Direito Penal, visceralmente ligado ao apelo feito pela mdia em relao violncia.40

    No se devem aceitar os excessos no que diz respeito ao instituto da priso

    cautelar, haja vista que a regra geral a liberdade e no a priso. O indiciado no

    deve ser preso se contra ele no prevalecer o periculum liberatis (perigo em

    liberdade), j que essa a caracterstica essencial para se manter a priso cautelar

    e no a gravidade do delito cometido. No entanto, a regra geral deste tipo de priso

    vem sendo desrespeitada e o regime de exceo, produzido e reproduzido em larga

    escala, corrobora para a manuteno aparente de contornos de legalidade. Dcio

    Menna Barreto de Arajo Filho, j afirmava que prefervel absolver um culpado do

    que condenar um inocente41, assim como Ulpiano afirmava que prefervel deixar

    impune o delito de um culpado do que condenar a um inocente.42

    preciso ter em mente que a lei ordinria, em especial a Lei Maior ptria, tm

    suas relevncias e deve seguir no ordenamento jurdico como fundamento principal

    (e no acessrio) no que se refere ao atendimento de situaes pontuais surgidas

    40

    HIRECHE, Gamil Foppel El. op. cit. p.12. 41

    Apud. BELO, Warley. A priso preventiva e a presuno de inocncia. Revista Del Rey Jurdica. Belo Horizonte, MG: Del Rey, ago.-dez. 2007. p.52-53. 42

    Idem. p.52-53.

  • 44

    com a contemporaneidade, com a supresso de valores outrora incrustados no

    tecido social, e com a deficincia estatal em cumprir seu papel social.

    Resgatando o tema que diz respeito a este tpico especfico deste trabalho,

    tem-se como exemplo a questo penitenciria, a qual no pode ser relegada ao

    ostracismo e indiferena scio-estatal, haja vista que o detento no preso

    apenas, mas est preso e, em algum momento, lograr liberdade e retornar, ao

    convvio com os demais agentes que compem a esfera social nos mbitos micro e

    macro.

    Os reclusos, em sua maioria, tem se mobilizado, mesmo dentro da priso,

    para interferir na realidade externa ao ambiente carcerrio, o que indubitavelmente

    causa temor a maior parte da sociedade devido ao poder paralelo estabelecido no

    interior das instituies correcionais. Esse fator deve ser adicionado questo do

    aprendizado desenvolvido intra-muros, arriscando-se aqui at mesmo a afirmar que

    alguns libertos saem com um conhecimento jurdico-penal superior ao absorvido por

    muitos egressos de cursos de Direito.

    Isso significa inferir que o detento sabe (ou cientificado pelos companheiros)

    de seus direitos e benefcios, ou seja, dos prazos de execuo, dos regimes, da

    vinculao dos tipos penais aos artigos previstos no Cdigo Penal, em suma, os

    reclusos no ficam debruados na prpria ignorncia e submetidos passivamente

    omisso estatal de lhes conferir os direitos e garantias previstas na legislao penal,

    principalmente nos concernentes LEP - Lei de Execues Penais.

    Assim, tratar a questo penitenciria em regime de exceo tambm significa

    contradizer a norma e desrespeitar os ditames estabelecidos com vistas a proteger

    os direitos daqueles que muitos acreditam no lhes serem devidos. Formas

    desumanas de tratamento, desrespeito aos prazos de execuo, presos com direito

  • 45

    liberdade e ainda reclusos, torturas e maus tratos por funcionrios entre outros

    exemplos da m administrao do sistema penitencirio, so fatores que no

    preocupam a sociedade num contexto mais geral. Isso propicia a produo e a

    reproduo do referido regime de exceo e, dessa forma, mesmo contrariando a

    LEP, mantm um estado de coisas que faz com que a dignidade humana do interno

    seja objeto de stira em alguns crculos sociais.

    No entanto, entende-se aqui a necessidade de levar o leitor a um contato

    mais prximo com a LEP, motivo pelo qual o tpico seguinte ser destinado a esse

    intento, ou seja, expor de forma relativamente crtica alguns conceitos e preceitos

    relativos a esta norma infraconstitucional.

    1.2.3 Consideraes a respeito da Lei 7.210/84: Lei de Execues Penais

    A Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, Lei de Execues Penais LEP -

    abreviada como LEP, fruto de um estudo coerente do legislador sobre

    necessidade dos detentos que, at a poca de sancionamento da norma, estavam

    relegados apenas aos ditames previstos no Cdigo de Processo Penal Brasileiro.

    Entretanto, uma analise apressada permite detectar muitas contradies entre os

    direitos ali inseridos e a pratica nas instituies prisionais, embora todos os nmeros

    que se refere aos presdios brasileiros, de forma especial em So Paulo sejam

    controversos, os poucos que se tm nos permitem afirmar que esta a norma mais

    descumprida em nosso pas.

    natural no Brasil a produo de legislaes que coadunam perfeitamente, e

    em sentido literal, com o papel onde foram impressas, mas que, na prtica,

    apresentam inconsistncias e promovem apenas a descrena na iniciativa

  • 46

    legislativa. Tome-se como exemplo a Lei Maria da Penha. A esposa ou

    companheira agredida denuncia o agressor autoridade policial, mas ao sair da

    Delegacia da Mulher, quando existente na localidade onde reside, retorna para casa

    ao encontro do agente ativo na relao de violncia domstica. E, pior, retorna

    delegacia para retirar o boletim de ocorrncia, uma vez que, cientificada de que seu

    marido ou companheiro pode ser recolhido priso, entra em desespero por no

    possuir, na grande maioria dos casos, qualquer meio de subsistncia, alm de ter

    filhos que necessitam minimamente dos recursos bsicos para sobrevivncia, que

    geralmente so oriundos do pai. Da ser coerente a afirmao de que o Brasil edita

    leis de primeiro mundo, mas oferece contrapartida de terceiro mundo.

    Retomando o devido norte do presente subttulo, tem-se que a LEP cumpre

    sua funo no que diz respeito a normatizar a questo da execuo penal, mas do

    ponto de vista prtico ela deixa a desejar em alguns de seus tpicos. Isso porque

    no se faz necessrio um exerccio de reflexo muito aprofundado para cientificar-se

    de que alguns de seus ttulos, captulos e sees mais se assemelham a uma

    utopia, sendo que a nosso ver, primeiro teria que se mudar a mentalidade daqueles

    que aplicam essa norma, dos executores desde o policial que atua na escolta do

    preso, at o agente a quem legalmente cabe no s atitudes de represso, mas a

    destinao de um tratamento respeitando as regras inerentes a todo ser humano

    independente de sua condio.

    Pela experincia pessoal do autor da presente pesquisa, reservada a questo

    da regionalidade e sem possibilidade emprica de generalizao, pode-se citar como

    exemplos de ineficcia da LEP, alguns de seus artigos e incisos, a saber:

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    a) Do Captulo II (Da Assistncia)

    A Seo IV (Da Assistncia Jurdica), composta pelos artigos 15 e 16,

    extremamente falha. Em que pese ser praticado em sua grande maioria pela

    FUNAP Fundao Nacional de Amparo ao Preso, mas com muito afinco e zelo,

    tal auxlio nfimo em comparao ao contingente carcerrio brasileiro. Na

    maioria dos casos so utilizadas peas em modelos padro, o que nem sempre

    reflete a situao individual do detento e pode facilmente incidir em falha de

    interpretao do texto por parte do MP e magistrados;

    No que diz respeito Seo V (Da Assistncia Educacional), que abarca os

    artigos 17 a 21, o nico (e suficiente) comentrio a ser promovido que ela

    praticamente inexiste. No h uma preocupao com a educao do presidirio,

    mesmo porque a idia geral que impera no mbito do senso comum, ressalvando

    poucas e timidas excees, a de que no h que se preocupar com esta

    questo, j que o preso est fadado a continuar no mundo do crime. Assim,

    investir em sua educao seria gastar vela com mau defunto;

    Sobre a Seo VI (Da Assistncia Social), comportando os artigos 22 e 23, tem-

    se que ela quase nula. Se o cidado comum menos favorecido tem uma

    contrapartida pfia por parte do Estado, o que dir ento do encarcerado, que

    tido como um estorvo, um problema relegado marginalizao social? fato

    comum o preso indultado no possuir sequer os mnimos recursos financeiros

    para tomar um nibus e ir passar o feriado com seus familiares. O mesmo ocorre

    com aqueles que saem em liberdade provisria ou condicional. A preocupao

    aqui com a questo social tambm se torna suprflua em relao aos detentos;

    A Seo VIII (Da Assistncia ao Egresso), representada pelos artigos 25 a 27,

    tambm outro fator preocupante, o ex-presidirio no conta com qualquer

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    assistncia por parte do Estado, pelo menos no que prev os artigos retro

    citados. Um destaque positivo nesta Seo a preocupao do CNJ - Conselho

    Nacional de Justia, que recentemente lanou uma campanha para absoro,

    por sociedades empresrias, de mo-de-obra oriunda de egressos de

    estabelecimentos prisionais. O incentivo fiscal um atrativo para as

    organizaes empresariais, mas aparentemente a questo da discriminao e do

    preconceito no foi trabalhada a contento.

    b) Do Captulo III (Do Trabalho)

    Este captulo prev as seguintes sees: I (Disposies Gerais), englobando os

    artigos 28 a 30; II (Do Trabalho Interno), composta pelos artigos 31 a 35; e III (Do

    Trabalho Externo), caracter