sintese para a defesa do mestrado
DESCRIPTION
SintesysTRANSCRIPT
-
1
SNTESE PARA A DEFESA DA DISSERTAO DO MESTRADO STRICTO SENSU EM
TEOLOGIA SISTEMTICA
Ttulo: Justia de Deus e Justificao. Estudo exegtico de Rm 1,16-17
Roberto Almeida da Paz So Paulo, PUC-SP 16.03.2015
- 1.
Estimados professores, membros da banca examinadora: Prof. Dr. Boris Agustn Nef Ulloa
meu orientador ; Prof. Dr. Waldecir Gonzaga e, Prof. Dr. Matthias Grenzer, que participou
da qualificao. Sado os srs., de modo especial, por aceitarem o convite de participar desta
banca e colaborarem comigo na reflexo crtica que apresentaro e nas propostas para
prosseguirmos avante. Sou-lhes mui grato pela vossa presena.
O tema proposto e pesquisado nesta dissertao, que ora os srs. tem em mos, o termo
do trabalho estudo e reflexo que ultrapassa um pouco mais que o tempo convencional
para se concluir uma pesquisa de Mestrado. A bem da verdade, se levarmos em conta as
primeiras inquietaes surgidas nos albores da minha adolescncia frente a uma pergunta
existencial, palmilhada pela f (proveniente das leituras da epstola aos Romanos), que foi a
motivao primeira para esta pesquisa. Como o homem justificado aos olhos de Deus?
Uma primeira e indiscutvel evidncia desse questionamento encontrada no prprio
tema-moto da epstola (Rm 1,16-17) e, que assumimos como o objeto-formal neste
trabalho. A saber: O de Deus para todo aquele que cr em Cristo , e nele se manifesta/revela a (1,16b). Um segundo indcio, no menos irrecusvel, nasce paradoxalmente do primeiro: o do progressivo esmaecer em seu
horizonte simblico e conceitual que orientaram e norteiam at o presente a compreenso
da justia divina, revelada no Evangelho, desconfigurando-a de sua originalidade (sentido
primevo) concedida por Paulo. Tais so, por exemplo, a justia divina tomada como justia
retributiva, as obras da Lei em detrimento da justia da f etc. Se para a inteligibilidade
bblica conhecer no simplesmente contemplar o objeto distncia (= pensamento
grego), mas fazer experincia, entrar em relao com o texto bblico (Sitz im Leben),
deixar-se interpelar, examinar, escut-lo, interrog-lo etc. para atingir sua realidade (cf.
1Ts 5,21; Fl 3,10; P.C.B. A interpretao da Bblia na Igreja. So Paulo: Paulinas, 1994, p.
89); ento, trata-se de saber qual a originalidade da intuio paulina ao apresentar seu
tema-tese de que no evangelho se revela a nova economia salvfica, e esta igual para
judeus e gentios (1,16-17). Para tentar alcanar o objetivo a ser arrostado, e tendo j
estabelecido seu horizonte, foi escolhido o texto de Rm 1,16-17, por dois motivos
principais: a) estes versculos apresentam o leitmotiv do evangelho paulino sob o ngulo
especfico da justia e da justificao divinas; b) ao assumir esse carter programtico
Rm 1,16-17 demonstra que o Evangelho [...], salvfico de Deus, palavra
performativa; fora divina capaz de transformar a realidade voltada para a salvao... (=
justia de Deus: contedo do evangelho paulino). Desta sorte, possuindo uma vereda a
ser trilhada e uma fonte primria (Rm 1,16-17), iniciamos o processo de estudo e
estruturao da Dissertao, para cuja consecuo contriburam enormemente os dilogos
com o prof. Boris Agustn e com os textos consultados (entre os quais: Marie-Joseph
Lagrange, Joseph A. Fitzmyer e C. E. B. Cranfield) cujo resultado encontra-se no sumrio
da supracitada Dissertao (cf. p. 13-14; p. 1-). O I captulo teve por finalidade engendrar a
1 Uma vida sem investigao no digna de ser vivida Plato. Apologia de Scrates, 38 a.
-
2
matria-prima para o estudo exegtico do texto: aproximao textual, delimitao, crtica
textual e traduo. Nos captulos subsequentes, (II): trabalhamos a exegese-teolgica de
Rm 1,16-17, rememorando a tese-moto, culminando nossa investigao para a percope de
Rm 3,21-27.[28-31], que apresenta o quadro-positivo da , mediante uma sntese coordenadora das razes teolgicos da tese paulina de que no evangelho se
revela nova economia salvfica igualmente para Judeus e Gentios. Prosseguindo nossa
anlise, seguindo os passos propostos visando compreender o texto como grandeza
estruturada e coerente, integrada num processo mais amplo de comunicao (aspecto
sincrnico), buscamos aprofundar os detalhes do objeto formal de nosso estudo: a prova
escriturstica (Rm 4,1-25); o quadro descritivo da existncia dos justificados, assinalada
pela paz e esperana na salvao escatolgica (Rm 5,1-11; 8,1s); a evidencia de que
Cristo reconciliou a humanidade com Deus, vencendo o Pecado e a Morte (Rm 5,12-21).
Enfim, o princpio da liberdade experimentada pelos justificados ao viverem sob o poder
do Esprito (Rm 8). Ao Procedermos por esta vereda, constatamos elos mui prximos,
entre a tese-moto apresentada em Rm 1,16-17 e o coroamento da pesquisa, (= parte
dogmtica da epstola) onde nos oferecida uma descrio sinttica da existncia do
crente: passado, presente e futuro, vistos em estreita sinergia entre si. A justia de Deus
revelada no evangelho, a justificao/ reconciliao o ponto de partida, a virada decisiva
e determinante. O ponto de chegada a glorificao/ salvao integral e definitiva do
homem (Rm 8). Entre os dois extremos transcorre o tempo presente, vivido sob a graa e
a paz () com Deus, na dimenso da segundo a lgica da gratuidade, na liberdade e capacidade da , efetivadora de um caminho humano alternativo aos sonhos alienantes da divinizao de si prprio e do domnio sobre os outros.
Travessia rdua, amide, cansativa; no obstante no deveramos hesitar em palmilh-la.
Antes de mais, voltar nossa ateno ao texto, auscult-lo, com o escopo de compreender
melhor a mensagem que o hagigrafo pretendeu comunicar com seu texto, legando-nos sua
experincia pessoal de um Deus que justifica amorosamente o ser humano mediante seu
Filho e no Esprito.
A partir dessas direes podemos identificar algumas contribuies para a questo acima
aventada: Como o ser humano justificado aos olhos de Deus?
-
1 A experincia pessoal com Cristo, posta Paulo no centro do Evangelho transmite-nos
uma irredutvel oposio entre dois percursos alternativos em direo justia: um erigido
sobre as obras da Lei, e o outro fundado na graa da f em Cristo Jesus.
Assim ele compreende que [...] ser justo significa estar com Cristo e em Cristo. Isto
prescinde da observncia da Lei. Esse raciocnio confirma-se quando Pulo apresenta a
justia graciosa de Deus mediante a f, em detrimento das obras da lei (e da circunciso),
mostrando que Cristo verdadeiro caminho/acesso ao dom salvfico de Deus.
Na economia do evangelho, o homem em virtude da justia de Deus, declarado justo
mediante a f em Cristo e, por conseguinte, uma vez justificado em virtude do amor de Deus
ser salvo (cf. Gl 3,11).
2 Na compreenso soteriolgica de Paulo, a (justificao) o acontecimento
do amor de Deus, que socorre sem perguntar se a pessoa merece. Ademais Paulo assinala
que: todos erraram e esto em falta da glria de Deus (Rm 3,23); contudo, Deus, por puro
-
3
amor () e graa () restituiu a sua justia em Cristo, a fim de que o ser humano se
tornasse justo () e justificado diante Dele.
Portanto, a manifestao do direito (jP"v>mi) que Deus tem para ser bom,
justo e misericordioso (Rm 3,23-26; cf. Mt 20,1-16); igualmente, a nova condio do
humano num estado de justia diante de Deus, mediante sua associao com a atividade
salvfica de Cristo pela incorporao no Filho pelo Batismo, na Igreja (Rm 6,4-6)2.
A justia de Deus revelada pelo misericrdia () e salvao
(), sendo comunicada ao ser humano como um dom (). Tal a afirmao
essencial sobre a justificao. Por conseguinte, as obras da Lei no devero mais intervir no
processo salvfico. A justificao como significao concreta ser o dom da justia em
Cristo (, Rm 5,17).
No se poderia, contudo, pretender que o seja aquele que Deus decidiu
no consider-lo pecador. Tornar-se justo, obter a justia, ser justificado transcende
qualquer compreenso meritria: no apenas o pecado foi expiado por Cristo, no somente
esta expiao nos concedia pela eficcia da cruz (Rm 3,24-25) realizada pela
mensagem do e na eficcia do Esprito.
Deus possui em si mesmo a justia, sendo indefectvel nos seus julgamentos;
que justifica aquele que cr em Cristo (Rm 3,26). Assim, Deus realiza sua justia no
prprio ato em que justifica o ser humano3.
Com efeito, Deus justifica o pecador numa atividade de amor e misericrdia que
lhe comunicada, a qual a mensagem do Evangelho pe ao seu alcance e lhe interpela
escuta (Rm 10,17; 1Ts 2,13). Basta ao crente aceitar a mensagem do evangelho
pela f. A f comporta um aspecto intelectual: , no palavra vazia,
morta. Mister se faz crer e mesmo confessar oralmente que Cristo morreu e que Deus o
ressuscitou.
Ora, somente o ato de f, plenamente livre, por definio, e completamente humano
exclui por sua natureza a autossuficincia, a apropriao idneo para constituir essa
participao humana dom de Deus na atividade essencialmente divina em que consiste
a justificao do homem (Ef 2,8).
2 O texto de 2Cor 5,17 elucida essa nova realidade: [...] o velho passou, fez-se um novo, e quem est
em Cristo nova criatura. E ainda: A antiga aliana foi substituda pela nova aliana profetizada pelos profetas (Jr 31,33; Os 2,22; cf. 2Cor 3,6s), e o profetizado por Isaas se concretizou (Is 49,8; cf. 2Cor 6,2). 3 (1Ts 1,6).
-
4
Paulo condensou seu intento numa frmula clebre, quando fala da f que atua mediante o
amor fides quae operatur per caritatem (Gl 5,6; 5,14; Rm
13,9). Ou para rememorar o Doutor anglico: fides per dilectionem operans4.
3 Last but not least a Igreja nasceu do Evangelho/querigma pregado em Esprito e
poder e ainda hoje torna-se cada vez mais claro que uma Igreja renovada em sua fora
apostlica s pode nascer de uma nova proclamao do Evangelho que poder de Deus
para a todos os que creem (Rm 1,16) (cf. Raniero C., p. 11).
- Resultados:
1.1 Paulo afirma ser Deus quem justifica graciosamente o ser humano (Rm 3,24), e no o
esforo pessoal deste mediante as obras da Lei (Rm 3,20). A verdadeira justia no , pois,
obra e iniciativa humana, mas dom de Deus. Portanto, torna-se claro que a justia como
atividade salvfica de Deus aquela pela qual opera a justificao do homem (Rm 5,17s; cf.
Sl 143,2).
--
Pensar o evangelho como manifestao da justia salvfica de Deus foi, talvez, o leitmotiv
maior da teologia epistolar paulina, como tentamos mostrar no captulo II da presente
dissertao.
Portanto, por uma retido de justia que, num julgamento justo, Deus
perdoa o pecador.
Isso demonstra a eficcia da justia de Deus operada pela f em Cristo Jesus, em
favor de todos os que creem porque no h mais diferena, sendo que todos pecaram e
esto faltos da glria de Deus e so justificados gratuitamente, por sua graa [...] (Rm
3,22-24).
De fato, fica-se tcito que somente aps ter construdo o raciocnio com
objetivando apresentar a justia graciosa de Deus mediante a f, em detrimento das
obras da lei (e da circunciso), que o insigne Paulo parte para outra etapa de seu
discurso: mostrar que Cristo verdadeiro acesso ao dom gracioso de Deus.
Veremos em Rm 8, Cristo e o Esprito pari passu como agentes de Deus no
cumprimento das promessas: faz o que faz a Sabedoria, realiza o que a Torah
queria na luta contra a mas no podia fazer. Essa intuio j aparece
quando anunciado o tema da Carta (Rm 1,16-17), sendo desvelado em Rm 85.
4 A f que opera por amor, cf. Thomas DAQUIN. Somme theologique, I-Iae, q. 108, a. 2. Paris: Cerf,
1984. 5 Kurt ERLEMANN. Der Geist als (2Kor 5,5) im Kontext der paulinischen Eschtologie, in
ZNW 82 (1992), p. 200-223.
-
5
Demais, conclui-se, que o ato de anulao da exigncia da pelo ato f
(atribudo por Paulo a Deus: 4,23-25), estabelece a paz no tribunal (cf. 5,1).
--
Trata-se, pois, da manifestao concreta da retido divina, enquanto o homem pela
f em Cristo participa dos efeitos da justificao. Tal ato consiste em crer (Rm 3,27), haja
vista o ato de f ser uma adeso integral do homem inteligncia e vontade a Deus, tal
como se revela em Cristo. Por conseguinte, uma ao de livre acolhimento da
, pois o livre consentimento do homem na obra que Deus realiza nele6 (Rm
4,1-25).
Ao considerar a relao de Deus com o homem em termos legais e jurdicos, Paulo
afirma que este, pecador, no simplesmente declarado justo, mas se torna efetivamente
justo pela graa da f em Cristo (Rm 5,19; 4,6-8; 8,1). Portanto, a justificao enquanto
efeito do evento Cristo, pode ser concebida como uma nova criao, na qual o pecador
adquire a (2Cor 5,17-21), no como prmio ou mrito subjetivo, porm como
dom (, ), pela superabundante de Deus (cf. Rm 5,20; 3,24; Gl 2,21).
isso o que justamente acontece com aqueles que creem e so justificados
gratuitamente, em virtude da redeno realizada em Jesus Cristo (3,24). E mais, no s so
justificados em Jesus Cristo, mas tambm so redimidos () por Ele. Segundo o
apstolo, tal redeno j aconteceu na morte e ressurreio de Cristo (3,25). No obstante,
a sua realizao definitiva constitui ainda objeto da esperana escatolgica (Rm 8,23-24).
A justificao na perspectiva paulina estabelece uma relao com o prprio
Deus mediante Cristo. Paulo no reconhece ao homem a capacidade de obter a justificao
pelos seus prprios mritos.
A finalidade da ao de Deus que justo e justifica aquele que vive pela f em
Cristo (Rm 3,26) fazer que o homem seja e viva justificado. Ora, isso demonstra a
realizao da , haja vista Deus permanecer fiel s suas
promessas, cuja fidelidade indefectvel jamais poder ser anulada pela infidelidade humana.
A manifestao da justia de Deus traz em si como consequncia decisiva, a
veracidade segundo a qual, o homem justificado pela graa da f em Cristo, sem as obras
da lei (Rm 3,28). Obras essas, prescritas pela Lei do Antigo Testamento, no raramente
vistas como fonte de salvao, precisamente porque o judeu piedoso associava a sua
salvao observncia de tais obras.
6 S. THOMAS AQUINATIS. Super Epistolam ad Romanos Lectura, cap. 4, lectio 1. Rome: Marietti,
1953.
-
6
No processo de justificao ope-se a lgica da gratuidade lgica da
retribuio devida. Paulo afirma a primeira em detrimento da segunda, pois a
condio do existir humano num estado de justia diante de Deus, mediante a associao
do homem com a atividade salvadora de Cristo Jesus, pela incorporao em Cristo e na
Igreja, pela f e pelo Esprito (cf. Rm 8,9b; 8,1-11; 1Cor 15,45)7.
A justia de Deus ao redentora (), propiciatria () e
reconciliadora () que se enraza na fidelidade a si prprio e s suas promessas
(Rm 3,23-25; 5,1s): Deus justo8. Por fora desta ao aquele que cr em Cristo torna-se
novo ser, experimenta em profuso o perdo, a reconciliao, o resgate da submisso
fora do pecado (), a parceria com o Deus da aliana, e a fraternidade com-os-
outros. Na verdade, torna-se justo. Assim, o ser humano torna-se nova criatura pela justia
divina (Ef 2,24).
Abrao a tipificao dessa nova realidade, haja vista ser ele justificado, no pelos
mritos de suas obras, mas pela confiana () naquele que justifica o pecador (Rm 4,1-
3; Gl 3,6-19; cf. Gn 15,6; 17,24-26). Por ser dom divino, a justia revelada no Evangelho
torna-se um estado, uma maneira de ser, uma qualidade permanente para o ser humano.
Na verdade, o homem justificado () gratuitamente em virtude da
redeno em Cristo Jesus (Rm 3,24). E consigna o apstolo: ns sustentamos que o
homem justificado () pela f, sem as obras da Lei (Rm 3,28).
tcito: Deus quem justifica a todo ser humano, haja vista o apstolo afirmar: ou
acaso ele Deus s dos judeus? No tambm dos gentios? Sim, tambm das naes,
visto que Deus um s, que justificar os circuncisos pela f e tambm os incircuncisos
(Rm 3,29-30). Os textos no titubeiam ao afirmar ser Deus o agente efetivo da justificao
do ser humano.
O texto de Gl 2,16-17 elucida que a justificao se d gratuitamente, sem as
obras da Lei (), mas mediante a f ( ) em Cristo Jesus. Assim, a
justificao concretamente no outra coisa seno a justia de Deus, o dom concedido
7 O vnculo entre Esprito e Cristo to estreito que Paulo julga impossvel ter um sem o outro: Se
algum no tem o Esprito de Cristo, a este no pertence (Rm 8,9b). Mencionamos alhures que Cristo e o Esprito pari passu atuam como agentes do nico Deus no cumprimento das promessas (cf. Rm 8,1-11), realizando o que a TorH queria na luta contra a , mas no podia fazer. evidente que desde a ressurreio como Esprito ou no Esprito que Cristo entre em relao com os seus. O Cristo exaltado age como (1Cor 15,45) e concede aos seus o (1Cor 15,44). 8 A propsito do tema da redeno, ver: L. Alonso SCHKEL. La rdemption oeuvre de solidarit, in
NRTh 93 (1971), p. 449-472; Stanilas LYONNET. Justification, jugement, rdemption, principalement dans lptre aux Romains, in Littrature et thologie pauliniennes (Recherches Bibliques, V), 1980, p. 164-184; . tudes sur Lptre aux Romains. Roma: Editrice Pontificio Istituto Bblico, 2003, p. 144-162.
-
7
como um bem para a salvao humana. Como fruto da ressurreio de Cristo, a justificao
concretamente uma nova vida concedida a todos, indistintamente (cf. Rm 4,25; 5,18).
Destarte, a justia de Deus para o homem, pode ser concebida como uma riqueza
divina ofertada gratuitamente. Distinta da justia vindicativa, a justificao s poderia ser o
ato pelo qual Deus nos insere nessa riqueza. Deus nos concede a profuso de sua justia,
aps haver perdoado nossos pecados (Rm 3,24-25; 5,1-11); o dom precedido pela
expiao e reconciliao.
A inteligibilidade dessa bela expresso foi malgrado, ofuscado pelas controvrsias
da Reforma e da Contra-Reforma. Em muitos momentos ao comentar Rm 1,16-17 e as
passagens paralelas (Romanos e Glatas), Lutero disjungiu-se tanto de Agostinho seu
mestre como de Paulo. Seu escrpulo no que respeita ao perigo da autossuficincia f-lo-
, muitas vezes, chegar a concluses que soariam assaz abstrusas ao bispo de Hipona e ao
servo de Cristo, escolhido para anunciar o evangelho de Deus, Paulo (Rm 1,1-5; cf. Gl
1,15-16).
Ora, se a plena gratuidade da justificao exige que se obtenha, num sentido
perfeitamente ortodoxo, mediante a sola fide, a absoluta gratuidade da salvao no exige
que se negue a realidade do ser cristo. Pelo contrrio, com a afirmao desta realidade do
ser cristo, funda-se mais firmemente a total gratuidade da salvao.
Destarte, a justificao e a justia divina, obedecendo a uma inspirao profunda do
evangelho, no obstante, as controvrsias presentes em sua gnese, uma expresso
radical do amor na forma mais alta da gratuidade segundo o modelo da divina. Amor
de Deus no qual se entrelaam na vontade livre, no dom e na gratuidade do ato mesmo do
Deus que visa salvao humana em Cristo.
A anlise dos captulos I e II e, por conseguinte, o III, permite-nos concluir que a
genuna natureza da e da traduz o modo pelo qual se expressa a
essncia e a retido prprias pelas quais Deus justo juiz age, justificando o ser humano.
Torna-se evidente porque a justia revelada no , capaz de reconciliar Judeus e
Gentios, possibilitando a todo o ser humano ter acesso ao Esprito e salvao divina
ofertada em Cristo Jesus.
-
8
Essa noo de justia permite-nos relacionar com pela
graa mediante a f. Com efeito, o termo grego , traduzido por justia ou retido,
encontra-se igualmente na raiz de (justificao), (justo), (justificar)9.
Essa perspectiva torna-se mais legvel, quando se descobre que a justificao pela
graa mediante a f expressa objetivamente o modo pelo qual Deus torna o ser humano
justo.
Portanto, agora ao relermos perscrutando as fontes a tese-moto da epstola
com os olhos desnudos e sem a opacidade de lentes, tantas vezes ofuscadas por
interpretaes enviesadas, compreenderemos porque Paulo afirma o evangelho, como
sntese do evento-Cristo, o sentido da Pessoa, da vida, do mistrio, da paixo, morte e
ressurreio do Cristo.
Este evangelho deve ser corretamente interpretado como , o meio mediante
o qual a atividade salvfica de Deus revelada de maneira inteiramente nova. Tal
manifestao dinmica (Rm 1,16), no uma mensagem abstrata acerca da salvao ou
contedos dogmticos referidos a Cristo Jesus. , igualmente, , que procede do
prprio Deus mediante seu Filho (Rm 1,1-5).
voltado para a salvao (preservao). Deus o tornou acessvel
para todo aquele que cr, para o Judeu e para o Grego; enfim, para o homem de ontem,
hodierno e do futuro porque manifestado em Cristo (Rm 1,3-4) essencialmente graa,
dom do Esprito que justifica e d vida (Rm 8,11-13).
Em suma, o revelado em Cristo, voltado para a salvao do ser humano,
no letra, Palavra, Esprito de vida (Rm 8,2-4). Ele liberta do Pecado, justifica o ser
humano e o conduz para a liberdade dos filhos de Deus (Gl 5,1-11; Rm 8,14-30.31-39).
--
Crer: acreditar torna-se vida, unidade com Cristo, transformao da nossa vida. E assim,
transformados pelo seu amor, pelo amor a Deus e ao prximo, podemos ser realmente
justos aos olhos de Deus (Bento XV).
Deixar-se alcanar pela reconciliao, que Deus nos deu em Cristo, pelo amor louco de
Deus por ns: nada e ningum jamais nos poder separar do seu amor (Rm 8,39). Viver
nesta certeza, pois esta certeza que nos d a fora que possibilita viver justificado para
viver concretamente a f que realiza o amor.
--
9 Cf. raiz de - (qyDic;): Helmer RINGGREN; B. JOHNSON. qD;c", qD
-
9
Bom, por ora encerramos aqui, pois almejamos deixar tempo propcio ao debate, que creio
me possibilitar enriquecer embora capinando sentado no aprimoramento e prossecuo
da pesquisa. Muito obrigado pela ateno!
II. Uma religio que faz de si mesma o centro de seu interesse e s olha para si prpria, ainda que fale em transcendncia, acaba imanentizada, perde a mstica e a transcendncia. Segue-se que o caminho do ser humano para Deus no mais iniciativa dele, nem o resultado de uma pesquisa ou de um compromisso moral, mas dom de Deus que se lhe aproxima. Portanto, no preciso realizar aes particulares para alcanar o favor de Deus, mas responder ao seu chamado, abrindo o corao e reconhecendo que seu amor tem o primado na obra da salvao. A f a nica condio para ser salvo. F resposta ao anncio do evangelho pois a f vem da pregao e a pregao pela palavra de Cristo (Rm 10,17), obedincia ao querigma (1,5; 16,26); movida pela caridade, o pr-requisito indispensvel para alcanar a justificao. Em consequncia disso, o cristo no mais centrado em si mesmo, mas em Deus que o transforma. Seu baricentro est fora dele, porque se apoia em Deus. Com efeito, crer significa colocar a esperana em outro, aderir a ele para encontrar nele o terreno estvel sobre o qual ficar firme nas areias movedias da vida (Ef 4,14). A f que atua no amor (Gl 5,6) uma realidade dinmica que determina um crescimento interior e estimula a realizar obras exteriores que manifestam a renovao alcanada pela f, compreendendo sempre mais que Deus o Deus da ternura que ama o ser humano. A essa meta todos so convidados, judeus e pagos. Isto faz com que o Deus de Jesus Cristo se torne o Deus de todos (Rm 3,29). A compreenso de que as obras da Lei, feitas para alcanar a benevolncia de Deus, nada conseguem, e que com Jesus Cristo se torna possvel um caminho totalmente diferente, comparada por Paulo a uma nova criao. Lembrando o evento de Damasco, que constitui o mago da sua experincia crist, escreve: Deus que disse: Do meio das trevas brilhe a luz, foi ele mesmo quem reluziu em nossos coraes, para fazer brilhar o conhecimento da glria de Deus, que resplandece no rosto de Cristo (2Cor 4,6). A descoberta de Jesus que transformou sua vida, at ento vivida no zelo pelos preceitos judaicos, comparada luz da criao que derrota as trevas primordiais (Gn 1,3). Ele se deu conta de que no rosto de Jesus brilha o amor benevolente do Deus que faz misericrdia, sendo Jesus o novo resplendor da glria de Deus, superior luz da criao. - Nota: Paulo recusa a justificao pelas obras humanas, sejam as da Lei ou de qualquer instituio religiosa, destacando que o ser humano no pode alcanar a salvao por meio dos seus mritos. Frisa, porm, que o cristo justificado deve mostrar sua converso por meio de atos concretos, sinal da sua transformao interior. Tais atos so dom de Deus dos quais ningum pode se vangloriar (Ef 2,8-10). - II-III. Animado pelo amor de Deus, derramado nele por meio do Esprito Santo (5,4), pode dirigir-se a Deus chamando-o de Abb, Pai (8,15; Gl 4,6), assim como fez Jesus em virtude da sua relao nica e exclusiva com Deus (Mc 14,36; Mt 11,25-26; Lc 11,2; Jo 11,41). pois o Esprito nos d a certeza de ser verdadeiros filhos (Rm 8,16), amados pelo Pai como o Filho Jesus, e membro da famlia de Deus, herdeiro de Deus e co-herdeiro de Cristo, medida que participa do evento pascal, sofrendo com o Filho para tambm com Ele ser glorificado (Rm 8,17). O cristo convidado a conformar-se a Cristo (evento pascal). Nisto demonstra o desenvolvimento do plano salvfico de Deus;
-
10
nele tudo coopera para o bem dos eleitos (Rm 8,28): Os que de antemo ele conheceu, tambm os predestinou a serem conformes imagem de seu Filho.... E os que predestinou, tambm os chamou, e os que chamou, tambm os justificou, e os que justificou, tambm os glorificou (Rm 8,29-30). Ora, se o cristo experimenta e goza desde j, das primcias do Esprito (Rm 8,23), porque foi libertado da lei da morte e do pecado (8,2) e j possui o penhor da glria futura (Ef 1,14). Para descrever as etapas do plano (pedagogia) da redeno, Paulo se d conta de que uma corrente de ouro une os cristos desde a eternidade (e com eles o mundo todo), para conduzi-los felicidade do Reino. Com razo Irineu de Lyon fala da grande sinfonia da salvao (Adv. haer., IV, 14, 2). Assim, o que antes Paulo anunciara que no tema-moto da epstola ele pode encerrar reconhecendo que os decretos misteriosos de Deus (Rm 11,32) sobrepujam toda compreenso humano, pois tudo graa (cf. Is 55,8-9; J 9,10; Sb 17,1). Com a certeza de que o projeto salvfico de Deus manifestado em Jesus Cristo, Paulo pode concluir que Deus no pode abandonar o cristo na sua situao mais crtica da sua existncia: o julgamento final (Rm 8,31-39). Com efeito, Se Deus est conosco, ningum poder estar contra ns (cf. Is 56,10; 23,4; 43,5; Jz 6,12). Esta plena confiana fundamenta-se no amor de Deus pelos seus eleitos. De fato, ningum nos condena, pois, Deus mesmo, em Cristo nos justifica.
Notas:
- f.
A f olhar Cristo, confiar-se a Ele, conformar-se com Cristo e com a sua vida. E a forma e
a vida de Cristo o Amor. Assim, acreditar conformar-se com Cristo e entrar no seu amor.
Com efeito, a f age mediante o amor (Gl 5,14; cf. Rm 13,9). [...] A comunho com Cristo,
a f em Cristo, cria a mantm a caridade. E esta a realizao da comunho com Cristo.
Assim, o ser justo permanecendo unido a Ele, e no de outro modo.
2 A f uma realidade em movimento que leva a uma descoberta progressiva de Deus,
em virtude do Esprito Santo que estimula o cristo a sondar todas as coisas, at mesmo as
profundidades de Deus (1Cor 2,10). Sozinho no poderia fazer isso, mas o Esprito cria nele
uma afinidade com o prprio Deus que lhe possibilita o conhecimento do plano da salvao
e o modo com o qual Deus opera na histria.
- Lei p. 51-
- Uma justia que vem da Lei () ou uma justia que vem de Deus ()? (p. 282).
- Como Paulo pode se dizer irrepreensvel diante da Lei? (p. 276).
[...] Nesse sentimento de irrepreensibilidade que reside seu pecado (irrepreensvel diante
da Lei Fl 3,6). Ele resume a autoafirmao do crente que exibe sua fidelidade diante de
Deus. Esse cume de zelo farisaico percebido simultaneamente como o auge do pecado
religioso. [...] Essa maneira de agir, por mais que seja zelosa, no muda em nada o fato de
que o homem prisioneiro do poder malfico do pecado; ela no poderia justific-lo. O
homem continua fechado a Deus e preocupado consigo mesmo. O Juiz zelador da Lei ,
precisamente, para Paulo, o exemplo de um homem cativo de pecado: na iluso de sua
piedade, ele imagina que o acesso a Deus, na realidade desesperadamente fechado, est
aberto; ou cr poder abri-lo por suas obras (Gnther Bornkamm, Paul, p. 177, nota 4).
-
11
Dessa piedosa e mortfera iluso de irrepreensibilidade a experincia do caminho de
Damasco (o que tal experincia?) teria livrado Paulo.
O encontro de Paulo com o Jesus vivo na estrada de Damasco deu-lhe a intuio
fundamental sobre a pessoa e a misso de Jesus e, ao mesmo tempo, abriu-lhe a
possibilidade de salvao para os gentios, pois, se a lei tinha valor relativo, no era a nica
vereda para Deus. [...] O encontro concedeu-lhe perspectiva radicalmente nova sobre ideias
que at ento rejeitara: ideia que ele no aprendera pela vontade de mestre de instruir sua
mente, mas ideias que ele tinha ouvido de passagem como exemplos de erro orgulhoso.
Assim, ele no o recebeu nem aprendeu de algum homem. A experincia do Cristo vivo
acendeu nele a verdade que inconscientemente possua (cf. J. Murphy-OConnor. A
antropologia pastoral de Paulo, 1994, p. 25).
[...] pois o fim da Lei Cristo, para que seja dada a justia a todo homem que cr (Rm
10,4) (cf. , p. 289).
- Liberdade p. 33-36.