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Simpósio Internacional de Teologia Puc-Rio - “Teologia em diálogo”
1º-3/04/2008
Comunicação: Os desafios para a Igreja no século XXI
Eva Aparecida Rezende de Moraes
Introdução
Não é muito fácil prever o futuro. Entretanto, podemos antever algumas
possibilidades. O século XXI descortina-se com suas indagações e seus desafios
próprios, e a Igreja não deve se furtar a dar suas respostas.
Ensaiamos algumas, seguindo as pegadas do Concílio Vaticano II (Vat II), que,
com espírito de abertura, coragem e diálogo, auscultou os “sinais dos [seus] tempos”. O
Vat II foi, e tem permanecido, um marco indiscutível na história da Igreja.
Principalmente, na sua postura de abertura e diálogo com o diferente: as outras
denominações cristãs, as não-cristãs e o próprio “mundo” em si, abrangendo as
sociedades, as culturas e as ciências modernas, que inauguravam, nas décadas de 1950 e
1960, um novo impulso em suas epistemologias e fenomenologias.
Após o Concílio, o “mundo” sofreu mudanças aceleradas e profundas. Neste
sentido, as ciências modernas têm descortinado horizontes para o diálogo
interdisciplinar, enquanto revêem suas bases científicas, suas verdades e seus métodos,
inaugurando “novos paradigmas”. Na mesma direção, a globalização – principalmente
na sua vertente cultural – tem apresentado o respeito ao diferente e particular, se abrindo
à interlocução com culturas antigas e emergentes e, ao mesmo tempo, questionando as
verdades instituídas e sedimentadas, provocando relativismos, mas também, integração
com a natureza em suas diversas dimensões. Em nossas décadas pós-Vat II, as questões
eco-lógicas estão na base da construção de uma nova lógica, não tanto mercadológica e
utilitarista, mas relacional e integrada. Nessa construção ética contemporânea, a
percepção e a lógica femininas têm sido um elemento indispensável; assim, as questões
de gênero estão em pauta, ajudando a construir uma nova humanidade, centrada no
amor e no respeito mútuos, alicerçando uma sexualidade mais estruturada.
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Esses são alguns dos desafios que serão apresentados em nossa Comunicação.
Eles esperam das Igrejas cristãs uma resposta madura e segura, sem descuidar do
necessário ecumenismo e da fidelidade à Tradição. O seguimento a Jesus Cristo, sob o
trabalho do Espírito, deve nos guiar na busca das urgentes e necessárias respostas
eclesiológicas. Que tenhamos o mesmo espírito conciliar, tentando corresponder, de
maneira mais plena, aquilo que Deus espera de nós: a construção do Reino e a
evangelização da humanidade, encarnando-nos na história, interculturando a fé cristã.
Para tentar levantar os possíveis desafios que o século XXI nos apresenta,
observaremos o seguinte itinerário: na primeira parte, o desafio dos modelos
eclesiológicos; a segunda parte buscará apresentar os desafios da realidade interna da
Igreja, e, a terceira e última parte, os desafios extra eclesiais.
1a. Parte: O desafio trazido pelo confronto entre modelos eclesiológicos
Sabemos que o modelo eclesiológico vigente no Vat II é o Igreja Povo de Deus;
igualmente, que o da América Latina (AL), retratado nas Conferências Episcopais de
Medellín e, Puebla, é o da Igreja dos pobres, ou libertadora.
Chamamos modelos de Igreja os modos diversos dela realizar sua missão no
mundo. A Igreja realiza o Reino de Deus na história e salvando a história. Contudo, ao
longo do tempo, percebemos que a Igreja é circunscrita por horizontes determinados e
experiências específicas, necessitando, portanto, de uma reflexão sociológica
experimental, ao lado das fundamentações teológicas (PARRA, 1991, p. 68s).
Articular e integrar essas duas fundamentações são dois grandes desafios para a
eclesiologia atual. Mais ainda pela enorme variedade de modelos eclesiológicos
existentes. Cada modelo tem seus valores, sua linguagem, sua manifestação, sua
ministerialidade, suas obscuridades e sua ética e estará inserido num determinado
contexto religioso, político, sócio-econômico e cultural. A Igreja é uma instituição
divina, mas também humana, e manifesta-se sempre em uma expressão, a partir de uma
determinada cultura, com seus valores e contra-valores (MORAES, 1999, p. 15s).
É comum existirem modelos eclesiológicos superpostos ou paralelos: a realidade
eclesial não é linear. Descobrindo seus efeitos, se sabe quais modelos se revelam, qual a
predominância de uns sobre a debilidade, insuficiência ou carência de outros. Deve-se
lembrar também de que nem sempre a preponderância de um significa a inexistência,
inecessidade ou inoperância de outro, pois, nesta vigência, deve-se questionar que
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possibilidades de sentido, resposta e proeminência são inerentes a cada modelo. Assim,
o campo dos modelos eclesiológicos implica também a eventualidade do conflito
(ALMEIDA, 1988, p. 311), visto que os membros da Comunidade eclesial se con-
formam com os modelos.
Em qualquer que seja a instituição social – como, evidentemente, na Igreja
Cristã - há uma identificação e uma defesa de determinado modelo, no qual a pessoa ou
o grupo se reconhece: os modelos, assim, são também papéis sociais (BERGER, 19852,
P. 27). Os modelos eclesiais são manifestações carregadas de expressividade do que se
crê e do como se crê e surgem carregados de objetividade e subjetividade, em um
processo dialético. Essa con-vivência de modelos eclesiológicos pode ser geradora de
conflito, se determinado modelo não possui o espaço necessário de automanifestação,
devendo, assim, existir na Igreja um espaço para este processo dialético.
Apesar da enorme força e presença que os modelos exercem na Igreja, não
podemos reduzi-la a determinado modelo: a Igreja faz uso dos modelos, mas não é, em
sua natureza, nenhum deles em particular.
1.1 – Confronto entre os modelos na AL: o profético-libertador, o
institucional-hierárquico e o carismático-neo-pentecostal
O modelo institucional-hierárquico impõe o aspecto estritamente institucional
da Igreja, reforçando seus três centros principais: a cúria romana, a diocese e a
paróquia. Esse modelo insiste na visibilidade institucional, dá maior relevância ao
Direito Canônico, à lei, às normas, às regras, aos ritos, às rubricas (LIBÂNIO, 1999, p.
15). Esse modelo – também conhecido como Igreja-sociedade perfeita – estava
presente em vários setores da Igreja Católica antes do Vat II e manteve-se vigente após
o mesmo (KÜNG, 1995, p. 310-322).
No modelo de Igreja definida como sociedade perfeita, a hierarquia exerce um
poder decisivo; a unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade são entendidas
como notas apologéticas. São, assim, ofuscadas as dimensões escatológica e
sacramental da Igreja, sobressaindo a organizativa e jurídica. Não há uma relação
saudável com o mundo moderno, predominando, muitas vezes, um forte dualismo. A
relação da hierarquia com os leigos e as leigas também fica prejudicada, pois são
tratados e tratadas como objetos passivos e apenas receptores dos Sacramentos.
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O modelo profético-libertador nasceu na América Latina antes do Vat II, mas
recebeu dele força e plausibilidade eclesiais. Como sabemos, esse Concílio privilegiou a
noção bíblica de Mistério para designar a Igreja, o que impõe uma consideração
trinitária, e não mais apenas cristológica. Uma eclesiologia apenas cristológica,
desarticulada da pneumatologia, se deturpa em um cristomonismo, que reforça apenas o
aspecto visível da Igreja: suas estruturas (= membros) e superestruturas (organizações,
movimentos, setores, etc). O modelo eclesiológico do Vat II – Igreja Povo de Deus –
valoriza a dimensão comunitário-carismática, no qual a Igreja compreende que ela não
é o Reino de Deus, mas caminha na sua força, é seu gérmen e início (LG 5) e necessita
de constante conversão e reforma (LG 8,4; GS 43,6). O modelo eclesiológico que vinha
sendo gestado na América Latina antes do Vat II não era o que o Concílio viria a adotar,
mas, sim, o profético-libertador; porém, recebeu, do Concílio, plausibilidade e força.
Na história nascente de nosso Continente, não houve uma profunda
evangelização, mas uma cristianização – ou seja, foi importado para nossas terras o
modelo eclesiológico de Roma. Na verdade, os verdadeiros responsáveis por uma
primeira evangelização, ao lado dos ousados, raros e autênticos missionários de diversas
Ordens Religiosas, foram os leigos e as leigas. No tocante ao protagonismo desses
leigos, houve uma história, muitas vezes subsumida, que precisa ser resgatada.
Faustino Teixeira (1988), Bruneau (1974) e Cavalieri (1999) nos ajudam a
compreender que foram os colonos portugueses e os leigos e as leigas pobres os
primeiros a atuarem na catequese e evangelização, pelo menos, no Brasil. Os cristãos
leigos e leigas souberam manter viva a chama da fé cristã, transmitiram a reta doutrina,
e, com criatividade litúrgica popular, celebraram a memória de Jesus em suas vidas.
Do período colonial até a metade do século XIX, tivemos a vigência do sistema
de padroado, com sua aliança Igreja-Estado. Entretanto, isto não impediu uma atuação
leiga ativa, principalmente no tocante à prática devocional, no âmbito das confrarias e
irmandades. Durante este período, não existiu um antagonismo entre a “religião dos
leigos e leigas” e a “religião do padre”: os contatos entre o padre eles eram esporádicos,
mas de grande impacto. Assim, o aparelho eclesiástico formava uma “rede”: padres e
missionários ensinavam doutrinas e práticas rituais aos capelães; estes, as passavam aos
rezadores, que passavam aos agentes locais. Muito conhecidos e conhecidas no Brasil
foram os leigos chamados beatos e beatas, que chegavam a renunciar ao casamento
para se dedicarem exclusivamente à pregação e ao serviço dos pobres, doentes, órfãos e
abandonados (FAUSTINO, 1988; BRUNEAU, 1974; CAVALIERI, 1999).
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Esse processo espontâneo de fé e religiosidade popular sofreu, na segunda
metade do século XIX, o duro impacto do processo de romanização. Acontecia, na
época, uma restauração católica na Europa, com o Concílio Vaticano I (1870), que
afetou nosso Continente: mais uma vez, sofremos a importação do modelo
eclesiológico de Roma, que não coadunava absolutamente com a realidade latino-
americana da época.
Na virada para o século XX, com o fim do padroado (durou quatro séculos), a
tutela do Estado sobre a Igreja cedeu lugar ao direto controle por parte de Roma, que
cuidou mais da formação do clero e desenvolveu uma espiritualidade mais individual e
centrada na prática sacramental. Os líderes religiosos leigos populares foram
substituídos por novas organizações leigas européias, como Conferência Vicentina,
Congregação Mariana, Cruzada Eucarística, etc. Antigas festas religiosas populares
foram substituídas por outras consideradas mais litúrgicas. Ao longo de todo esse
processo, houve reações e resistências.
O século XX foi um grande referencial, não somente para a Igreja universal,
como para a da AL. O início do século assistiu, no Continente, à continuidade de uma
proliferação de movimentos religiosos, visando uma inserção da Igreja na sociedade,
agora não mais garantida pela união Igreja-Estado. Destaque especial foram as décadas
de 1940-1960, quando membros da hierarquia, juntamente com religiosos, leigos e
leigas, se revelaram comprometidos com o povo e a realidade do continente latino-
americano, ainda colonial e dependente do hemisfério norte.
Aqui no Brasil, citaríamos diversas experiências, onde essa Igreja-Comunhão
pôde ser vivenciada, sendo destaque a Ação Católica da década de 1950. Um gérmen
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) começava a se formar através das
experiências de catequese e liturgia populares no Estado do Rio de Janeiro, do Espírito
Santo e do Rio Grande do Norte, onde as comunidades começaram a se aglutinar em
torno da Palavra de Deus, agora relacionada profundamente com a realidade sofrida do
mundo rural e das nossas periferias. Ao lado dessas e outras experiências populares, se
gestava, igualmente, uma teologia, que era a base da futura teologia da libertação, um
suporte teórico-teológico para a busca de libertação das bases populares.
A primeira Conferência Episcopal latino-americana de Medellín foi o
receptáculo dessas experiências e, a segunda, a de Puebla, a sua confirmação. Alguns
autores, entretanto, testemunham, já em Puebla, a ausência da linha de unidade
eclesiológica presente em Medellín. Toda a discussão gerada no Continente na
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preparação da Conferência de Puebla, já revela, aliás, a presença que começava a se
acentuar do modelo eclesiológico institucional-hierárquico. Não foi suficiente, porém,
para abafar a confirmação da opção pelos pobres, a ratificação das CEBs, ao lado das
opções pela cultura e pelos jovens.
Entretanto, na década de 1980, com o pontificado de João Paulo II, alguns
elementos já começavam a se manifestar, fortalecendo o modelo institucional, como
também a crise do socialismo, que chegou a sua expressão paradigmática na queda do
muro de Berlim. Isso frustrou, de certa forma, as esperanças libertárias de muitos
membros da Igreja latino-americana. Apesar de muitos teóricos da libertação tentarem
desarticular o projeto popular latino-americano da expressão socialista, essa ligação
estava já implícita no esquema simbólico de muitas lideranças, que se sentiram
frustradas e em crise de sentido religioso; outras lideranças, nascidas das classes
desfavorecidas, foram cooptadas, lentamente, pelo poder dominante civil.
Assim, encontramos, na década de 1990, uma realidade que se refletiu na
terceira Conferência latino-americana, a de Santo Domingo: a preocupação mais intra
do que extra-eclesial. No início da década, com a nova importação de movimentos
neopentecostais protestantes e católicos, se fortaleceu uma descentralização de foco
teológico-pastoral: da reflexão e ação sobre a realidade latino-americana a partir da
fé, para a preocupação com a espiritualidade, a subjetividade e as experiências mais
tradicionais da fé cristã. Uma preocupação especial com o seguimento a Jesus Cristo
refletiu-se na última Conferência Episcopal, a de Aparecida, que se manifestou sobre o
mundo globalizado, a ecologia (com acento especial na Amazônia), os povos indígenas,
as questões de gênero e dos afro-descendentes. A nível teológico, Aparecida apresentou
a mística da comunhão, o seguimento pessoal a Jesus Cristo, a missionaridade da Igreja,
a eucaristia como centro da comunidade eclesial e o ministério ordenado.
Alguns autores, portanto, apresentam, na América Latina, a vigência atual do
modelo carismático neo-pentecostal, de formato não somente protestante como também
católico. Subsistem, ainda, as CEBs e teologias remanescentes da teologia da
libertação, como a teologia feita por mulheres, a teologia da negritude, a eco-teologia,
a espiritualidade da libertação, entre outras.
2a. Parte: Desafios atuais ad-intra eclesiais
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2.1 – Renovar a eclesiologia, reanimar a pastoral e apoiar as CEBs
Para Clodovis Boff, a Igreja necessitará ser pneumática, e não somente
cristológica: mais sopro que eficiência, mais inspiração que instituição. Deverá ser
orante e adorante, à escuta da Palavra, à mesa do banquete eucarístico. Uma Igreja
amorosa, de comunhão e alegria, e mistagógica, que caminhe sempre para o encontro
vivo com Cristo. Uma Igreja pneumática não significa uma intimista, mas profética,
dialetizando espiritual e social. A Igreja deverá recordar que o núcleo ético da
mensagem de Cristo é o amor agápico. Deverá falar de Cristo de modo ardoroso,
entusiasmado e radiante – o que não significa proselitismo religioso e marketing da fé.
Ela deverá ser Igreja de diálogo, que acolha as diferenças, includente, aberta, larga,
magnânima e generosa, e deverá ser a Igreja da misericórdia, especialmente com o
sofredor, o excluído, o perdido e, até, o inimigo (BOFF, Clodovis, 1998, passim).
Refletindo José Comblin, percebemos a necessidade de uma revisão ou
revigoramento da pastoral da cidade – que engloba o centro, a periferia, o bairro, a
favela. O mundo não é mais ruralizado: por um lado, amplia-se a aprendizagem da
cidadania, mas os problemas e os valores urbanos, antes da cidade, agora afetam todos
os lugares. A situação atual nos obriga a re-organizar a vizinhança, as diversas relações
afetivas, o combate ao individualismo e ao consumismo, resgatar o bairro como lugar
da cultura popular. Outro resgate necessário deverá ser o dos intelectuais, que deverão
somar-se à pastoral. Os Institutos e as Faculdades Teológicas deverão incluir a teologia
feita pelos leigos e leigas. Na AL, uma teologia própria é fundamental, visto que não
encontramos entre nós um ateísmo que requeira nova evangelização, mas cristãos que se
encontram oprimidos (COMBLIN, 1996, p. 361s).
Cabe uma palavra especial sobre as CEBs que, segundo autores como Luiz
Alberto Gómez de Souza, continuam firmes e determinantes – segundo informações das
próprias Igrejas particulares. Elas nos lembram que a transformação da sociedade não se
faz de cima para baixo, mas se prepara dentro da sociedade. As CEBs são uma rede de
experiências eclesiais diversificadas, respondendo com criatividade aos desafios da
história. As CEBs são “novos jeitos de ser Igreja”, uma pluralidade na comunhão com
toda a Igreja; são a Igreja que se experimenta na base, sem perder sua identidade de fé
cristã católica, com práticas que procuram seus caminhos. Segundo ainda Luiz Alberto,
novos horizontes se descortinam para as CEBs, que priorizam hoje os temas de gênero,
subjetividade, raça, corpo, inclusão e ecologia (SOUZA, 2004, p. 131-147).
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Também Faustino Teixeira opina que as CEBs propiciam condições para a
formação de fiéis sensibilizados na prática do diálogo. São seguidoras de Jesus, que teve
abertura macroecumênica, na sua acolhida aos diferentes, excluídos e marginalizados
(MESTERS, 1999, passim). As grandes celebrações vivenciadas nos Intereclesiais são
marcos singulares. Hoje, elas enfrentam dificuldades, como a atual conjuntura
eclesiástica católica voltada para as paróquias e o acirramento fundamentalista de
alguns núcleos pentecostais e carismáticos. Na carta ao povo das CEBs, apresentada
pelos membros das Igrejas não católicas romanas presentes no X Intereclesial, as CEBs
foram identificadas como o "embrião do novo jeito da Igreja", de uma Igreja una e, ao
mesmo tempo, permeável à singularidade da diversidade. Os evangélicos sinalizaram
que, nessa convivência, aprenderam que o ecumenismo implica três dimensões essenciais:
envolve conversão do coração para acolher a diferença, aciona novas relações entre as
pessoas, que, mediante a convivência fraterna, rompem com preconceitos enraizados, e,
encoraja ao compromisso de assumir ações em comum na defesa da vida.
2.2 – Redescobrir e renovar as relações micro estruturais
Nos inspiramos na Comunhão trinitária para ensaiar novas relações. A reflexão
trinitária deve garantir a comunhão já criada pela Trindade entre nós, mas ainda carente
de plena experiência, encarnação e testemunho de nossa parte. A seguir, passamos a
refletir as diversas situações que interpelam hoje a comunhão na Igreja.
Desde a década de 1960, Yves Congar afirmava: “As relações continuam ainda
muito exteriores, percebidas ao nível, seja das estruturas, seja dos
exercícios” (CONGAR, 1968, p. 61). A verdadeira relação é sempre um êxodo – buscar
e ir ao “tu” do outro, por cima dos próprios interesses ou, até, contra eles. É isso que
aprendemos de Jesus Cristo: uma quênose encarnatória. Jesus Cristo (Jo 1,17) entrou no
mundo sob uma forma corporal; salvos pelo Ressuscitado, somos membros de Seu
Corpo.
Assim, o criado possui um corpo, uma “carne” - somos corpos que se
relacionam na afetividade. Primeiramente, a afetividade é integradora: devemos lutar
contra um dualismo que destrói a pessoa humana. Em segundo lugar, é imprescindível
não dissociar a afetividade da caridade: ela é amor afetuoso. Em terceiro lugar, devemos
estabelecer a insuficiência do compromisso sem a gratuidade – ambos são essenciais,
mas geram desequilíbrios quando desarticulados. O quarto ponto é a relação
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cristianismo e ética: devemos tabular uma nova relação com Deus, com afetividade,
inclusive na oração. É insuficiente, igualmente, o conhecimento racional sem a
afetividade: a caridade, o amor, a afetividade são o que estruturam a pessoa humana
(GAMARRA, 1997, passim).
Rosemary Ruether nos descortina o desafio da corporeidade: o cristianismo foi
moldado, entre outros dogmas de fé, pela crença na ressurreição do corpo (1 Cor
15,42-44), que, na primeira criação (Gn 3,21), caiu desfigurado em finitude. Com o
passar do tempo, alguns membros e setores da Igreja tentaram eliminar tal finitude
através de rigores ascéticos. O mundo medieval valorizou o material-corporal e os
corpos virginais e martirizados dos santos, mas, apenas, como manifestações que
apontavam para um corpo liberto da “escória” mortal (RUETHER, 2002, passim).
A Renascença, a Reforma e o início da ciência moderna, por sua vez,
constituíram a natureza como esfera humana de poder e controle, perdendo a noção de
corpo sacramental. Este processo se deu através da aplicação tecnológica do
conhecimento científico, trazendo grandes lucros na revolução industrial dos séculos
XVIII-XIX, precedidos desde o século XVI pela abertura, pelo colonialismo, de novas
fontes de riqueza das Américas, Ásia e África, reduzindo suas populações à escravidão.
O que aconteceu num breve período de 3/4 de século de progresso já o sabemos bem.
Ruether nos alerta que, repensar nossa relação com o corpo e com a natureza,
implica também repensar as relações com os grupos de pessoas que, segundo nossa
visão estereotipada, são identificadas com o corpo (e, não, com a mente): mulheres,
negros, indígenas, classe trabalhadora e pobres. Urge uma nova ética de reciprocidade,
que orientará as relações entre as pessoas, como também com nosso corpo e com o
mundo corpóreo de plantas e animais, terra, ar e solo: este mundo nosso é,
metaforicamente, corpo de Deus (MC FAGUE, Sallie, 2002, passim). A doutrina da
criação não se refere, primariamente, ao poder de Deus, mas ao Seu amor: vivemos
como corpo, em relação com outros corpos, dentro do “corpo” de Deus. Encontramos
Deus na carne do mundo ao alimentar o faminto, curar o doente, libertar o oprimido,
relativizar os conflitos, ter caridade com o incapaz, perdoar o inimigo,...
O corpo é o único objeto do mundo que pode ser dirigido diretamente pela
consciência. O corpo é, ele próprio, a primeira expressão da cultura (WIEGERLING,
2002, passim). D. Kamper afirma que, com o predomínio das codificações escritas,
ocorreu um distanciamento entre o mundo visível e o corpo. Com a mídia, por sua vez,
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aconteceu uma superficialização do corpo, que passou a ser um pedaço de matéria
manipulável, expulsando o humano de seu próprio corpo. E, por fim, no mundo virtual,
não temos mais necessidade do corpo: é a neo-cultura do “cyborg”, a negação do corpo,
uma cyberexistência: as existências cibernéticas não precisam de nenhuma ética, pois
não existem corpos, e, portanto, não existem relações (KAMPER, 1988, passim).
Assim, no processo de libertação integral, precisamos libertar nossos corpos (nosso ser-
estar no mundo), nossas relações interpessoais e com a natureza.
Para isto, Mário de França Miranda nos propõe a libertação da liberdade: com
relação à lei (Rm 7,10.13s; Gl 3,12), ao pecado (Rm 7,18-20) e à morte (Rm 6,8.10.23;
8,10). Cristo nos liberta para sermos libertos (Rm 8,2; 2Cor 4,7b). Este estado
ontológico de liberdade possibilita a liberdade de opção (= ética) e, diríamos, de
relação. Essa liberdade, no NT, recebeu vários nomes: metanóia (sinóticos), fé (Paulo)
ou amor (João) – uma adesão que reivindica a totalidade da pessoa (Mt 22,37; Mc
12,30; Lc 10,27). Onde há Amor, há salvação. Deus, o Transcendente, que capacita
nossa liberdade para o Amor (cf. 2Cor 3,6; Rm 8,2; Gl 5,1-13), só pode ser “atingido”,
experimentado, no Amor, que possui sua razão no “outro”: encontrando o outro, nos
encontramos e encontramos Deus (MIRANDA, 1991, p. 97-104).
Muito se tem dito, pela Igreja, da importância da mulher, mas, geralmente,
pouco vivido. Nos contextos-micro de relações eclesiais, somos maioria; nos contextos-
macro, ainda invisíveis ou não respeitadas em nossa plena dignidade. Se assumidas ou
reconhecidas pelas estruturas visíveis, muitas vezes somente o somos devido à
introjeção do masculino em nossos mecanismos mentais e comportamentais. Mulheres
com pulsão feminina, que assumiram integralmente o seu ser mulher, ainda
surpreendem (muitas vezes negativamente) os homens (não somente os das Igrejas). A
Igreja é, estruturalmente masculina; apesar desse fato não impedir, evidentemente, de
sermos filhas de Deus e irmãs de nossos irmãos na fé, por sua vez ofende a comunhão
trinitária, nega uma riqueza ministerial imprescindível (pois o ministério e a teologia da
mulher só podem ser feitos pela mulher) e inibe a salvação do mundo, que fica, assim,
privado de uma visibilidade comunional.
A sensibilidade para com as mulheres nem sempre é manifesta nas e pelas
Igrejas cristã. Para tal, precisamos des-construir e re-construir as relações masculinas-
femininas no âmbito eclesial. Essa reconstrução teológico-pastoral diz respeito a toda a
Igreja e a qualquer teologia, mas, principalmente, à da libertação (RUSSEL, M., 1976,
p. 5-16). O problema de fundo das relações homem-mulher não se refere às diferenças
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biológicas, mas às construídas pela cultura e, portanto, passiveis de mudança
(BRANDÃO, M. L. R., 1997, passim). A necessidade de uma reflexão aprofundada
acerca das dificuldades trazidas pelos condicionamentos culturais às relações entre os
sexos, fez surgir a teologia feminista; mas, em 1975, os estudos da mulher ganharam
grande impulso com os escritos da antropóloga Gayle Rubin, que introduziu uma nova
categoria analítica: gênero, que nos ajudou a descobrir que as relações entre os sexos
eram socialmente construídas. Foi a historiadora J. Scott quem atualizou a relação de
poder entre homens e mulheres (TOMITA, L. E., 1997, passim). Frente aos estudos de
gênero, Luiza E. Tomita seleciona algumas pautas da agenda atual: desconstruir as
relações assimétricas socialmente estabelecidas; privilegiar a experiência de Deus
vivida pelas mulheres; ressaltar um novo modo de falar de Deus a partir de uma
experiência subjetiva; mostrar uma mística inspirada na relação amorosa; articular a
teoria com a prática do cotidiano das mulheres.
2.3 – Valorização da experiência de ser Comunidade libertadora
Ser Igreja é formar Comunidade. E o mais importante é que a construção seja
coletiva. Como, aliás, aconteceu com Jesus e seu grupo. Ana Maria Tepedino (2002,
passim) observa que Jesus nunca está só, mas circundado (sinal da circuminsessio?) por
homens e mulheres, que ousaram incorporar em seus sentimentos, práticas e vidas, a
transformação estrutural que Jesus era.
A realidade da presença das mulheres no movimento de Jesus aparece em todos
os evangelhos: não só havia muitas mulheres no grupo, como atuavam. São
mencionadas junto aos Doze, possuem nome, colaboram financeiramente com o grupo
(cf. Lc 8,1-3), suas casas são lugar de reunião da comunidade cristã (cf. Jo 11,1-42;
12,1-8; Lc 12,38-42), algumas foram enviadas e testemunharam a morte de Jesus e seu
túmulo (cf. Mc 15,40-41), estiveram com Jesus desde a Galiléia até Jerusalém, e,
depois, continuaram a sua causa. São requisitos para o apostolado (cf. At 1,21), que elas
preenchem muito bem. L. M. Russel ( 1976, p.102) também concorda, ao afirmar que,
com a Samaritana e em outras passagens, fica evidente que Jesus autorizava as mulheres
a segui-Lo como discípulas (cf. Lc 24,1-11). Paulo mostra que os “dons do Espírito
Santo” eram recebidos tanto por homens quanto por mulheres e encorajava a ambos a
pregar, orar e trabalhar como servidores do Cristo (cf. 1 Cor 12; 14,26-36) e afirmava
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que seus membros não deviam fazer distinções (cf. Gl 3,28). Certos Padres falaram
dessas mulheres como apóstolas e, Maria Madalena, “apóstola dos apóstolos”.
Ana Maria Tepedino prossegue a reflexão, com a ajuda de Elizabeth Johnson
(1992, p. 224), observando que Jesus era includente em suas relações e em seu
movimento, destoando das práticas de sua época; mas percebe que, infelizmente, a
história da cristologia foi assimilada segundo uma visão patriarcal de mundo, e seus
importantes conteúdos libertadores foram tergiversados e distorcidos para justificar a
dominação. Entretanto, percebe que subjaz uma dimensão comunitária de um projeto de
vida nova, que nos convida e nos desafia; para este movimento, ela retoma Gálatas 3,28,
onde se condensa uma nova antropologia, uma nova espiritualidade e uma nova ética,
que postulam uma paridade entre as pessoas e um profundo respeito e cuidado pela
natureza. Os prosseguidores do movimento de Jesus, após a experiência radical que
fazem, transbordam essa novidade para fora, ao mesmo tempo em que constroem
relações para dentro, numa dialética em síntese – um trabalho do Espírito de Deus.
Tal busca por uma cidadania plena das mulheres, das raças e classes dominadas,
se insere nos múltiplos movimentos e processos das chamadas “minorias”, que se
tornam emergentes para uma nova ordem. Assistimos hoje a uma “feminização da
pobreza” e a uma “feminização da emigração”, em situações que reclamam a
construção de uma humanidade nova. Ser diferente não significa ser desigual: por isso,
diversidade e paridade são princípios da ética política pós-moderna. Somente sobre
esta base democrática, a humanidade se torna abarcadora, inclusiva e justa
(TEPEDINO, A. M., 2000, p. 61-75).
Essa dialética da libertação, a respeito das superestruturas ou estruturas mentais
da cultura, é descrita por Rosemary Ruether como uma “luta contra a opressão
cultural”. Porque é um processo dialético humano, deve comportar uma busca contínua
de novos modos de vida, incluindo opressores convertidos e oprimidos. A ordenação
das mulheres, a nosso ver, seria também um sinal do futuro de libertação e de igualdade
(BOFF, Leonardo, 1977, p. 81-106; VV.AA., 1999, passim; CHITTISTER, J., 1983,
passim; COLLINS, J., 1990, passim; ROSSI, M. A., 1991, p. 73-94).
2.4 – Renovar as relações macro-estruturais
Toda a história do Vat II provou que não basta a doutrina para garantir a
comunhão: necessitamos encarná-la (ALBERIGO, G. (direção); BEOZZO, passim). No
12
campo pastoral, emerge o desafio das superestruturas (órgãos institucionais) da Igreja.
Segundo já dizia Yves Congar: “Não é mais suficiente manter, adaptando, aquilo que
houve; é preciso reconstruir. Tal reconstrução só pode ser feita validamente a partir de
uma revisão muito corajosa” (CONGAR, 1972, p. 312). Muitos autores advertem a
necessidade de articular a Igreja “do Espírito” (das fontes bíblicas) com a
“visível” (estruturada): a inexistência dessa articulação ainda é fundante de práticas em
nossa Igreja como o rigorismo, a irresponsabilidade, a absolutização de uma doutrina
ou de uma forma cultual ou de um modo de distribuir o poder; ausência de espírito
crítico e de criatividade; sufocamento de tensões; repressão,...
Congar preconizava que o significado mais promissor do Vat II seria a
articulação do episcopado (CONGAR, 15/10/1962, p. 76). As Conferências Episcopais
surgiram como que por geração espontânea e, antes do Concílio, estavam privadas de
sólido fundamento teológico. Além das Conferências Episcopais, pôde-se notar no
Concílio a formação de grupos para além das fronteiras nacionais, como o da “Igreja
dos Pobres”, o do “Bloco centro-europeu”, etc – os Bispos estavam aprendendo a se
organizar enquanto grupo e, assim, estruturaram melhor a comunhão.
A renovação teórica no concílio levou a uma renovação prática na Igreja local:
abertura aos leigos, fraternidade com os padres e colegialidade entre os bispos – embora
alguns, ao retornarem, tenham sucumbido ao peso do aparelho administrativo. Outro
fruto foi a relação entre o papa e os bispos: João XXIII criou condições para os padres
se exprimirem livremente: ele compreendeu que havia idéias, problemas, perspectivas,
conflitos e experiências que deviam vir à tona e acreditava que os bispos deviam
conhecer-se entre si (ALBERIGO; BEOZZO, p. 195-207).
O Vat II afirmou diversas vezes a necessidade do respeito à diversidade dos
ministérios e à unidade de missão, algo concretamente necessário para a
desclericalização de nossa visão da Igreja. Antes de sermos uma classe ou um grupo
específico ministerial, somos pessoas batizadas, com identidade e protagonismo
próprios; enquanto carismáticos, exercemos ministérios específicos; e, quando temos
ministérios comuns, somos um rosto grupal. Quanto mais um grupo ministerial reforça
sua identidade e seu protagonismo, mais os outros ministérios descobrem sua
identidade e seu protagonismo.
Dentre os membros da Igreja, o laicato carece de uma definição clara, o que
ainda traz problemas; mas, para Yves Congar, quem precisa ser definido é o clérigo e o
religioso, pois o leigo é um cristão batizado, simplesmente (CONGAR, 1964, p.
13
138-139). A palavra “leigo”, em nosso idioma, não traduz o que somos teológica e
eclesialmente. O Vat II esforçou-se em definir o leigo, mas não o fez no sentido exato: o
aspecto acentuado foi o exclusivo. LG, sem eu capítulo IV, sobre os leigos, apresentou
uma definição que não se encontra no NT e aplicou o termo leigo a todos os membros
do povo fiel sem exceção (FAIVRE, 1986, p. 11).
Nessa definição conciliar de leigo, que é mais tipológica que teológica, se
percebem três elementos: o leigo e a leiga são, antes de tudo, incorporados em Cristo e
na Igreja pelo batismo e, neste aspecto, eles são iguais a todos na Igreja; não recebem o
sacramento da Ordem, nem assumem o estado da vida religiosa – e, nisto, se distinguem
negativamente dos ordenados e dos-as religiosos-as. E o terceiro e positivo aspecto: os
leigos e as leigas estão mais presentes no mundo e, por isto, mais empenhados com o
mundo (ANTONIAZZI, 1986, p. 8).
Quando se afirma, no capítulo IV de LG, que o fundamento do apostolado leigo
é a consagração batismal e a confirmação, novamente se instala a confusão: todos os
cristãos são batizados e crismados, ambos sacramentos são a base de qualquer
apostolado. E, se todos somos leigos na Igreja, a diferenciação vem com a ordenação e
o estado religioso: estes, então, é que precisam ser definidos. Parece-nos, portanto, que
a base de uma in-definição ou errada definição não advém de nossa existência como
leigos, mas de uma in-compreensão acerca da teologia sacramental.
No campo batismal, advém a questão da tríplice participação nos múnus
(sacerdote-profeta-rei): o problema emerge quando se afirma que a hierarquia participa
nas funções messiânicas de Cristo, como forma de vida e poder, enquanto que nós,
leigos, participamos nela somente como forma de vida – nossa participação não é
constitutiva da Igreja (CONGAR, 1965, p. 319-320). Quando se afirma que a Igreja é
constituída de dois pólos, um hierárquico e outro comunitário, os ordenados são
associados ao primeiro e os leigos ao segundo – tal binômio ofende a integridade da
Igreja, que é toda hierárquica: todos os seus membros, pelo batismo, possuem uma
igualdade ontológica; a diferença entre os membros não advém de uma não-
constituição ou a uma participação, mas, exatamente, dos carismas dados a cada
batizado e batizada pelo Espírito. Na eclesiologia de comunhão, se e quando há
polaridade, ela é integrada: o modo como os ordenados participam do tríplice múnus e
o modo como os não-ordenados participam, são modos diferentes, mas devido ao
ministério que cada membro possui.
14
Outra dificuldade foi a afirmação conciliar de que a índole secular é vocação
própria dos leigos (LG 31; GS 4; 7; 43; AA 7; 13): LG afirma que ela é própria e
peculiar e não, específica e exclusiva; mas isto não foi compreendido e ainda é motivo
de um dualismo: o campo eclesial é o dos ordenados, e, o secular, dos leigos. Nós,
leigas e leigos, possuímos uma dupla índole: a eclesial (âmbito de ação dentro da
Igreja) e secular (âmbito de ação no mundo). As pessoas que confundem ambas as
índoles a nível teórico-teológico, o fazem também na prática eclesial. Alguns leigos e
leigas se identificam ainda com a Igreja clerical, são dependentes demais dos ordenados
e incapazes de uma presença cristã eficaz no mundo. Outros, ao contrário: são atuantes
na comunidade eclesial, mas, quando se engajam na realidade do mundo, o fazem com
critérios meramente seculares, sem valores cristãos.
A questão, então, de fundo, a nosso ver, tem sido, tanto da parte da hierarquia,
quanto da parte dos leigos, estabelecer corretamente a unidade entre fé cristã e
engajamento temporal. Nós vemos, nas páginas da história da Igreja, o quanto essa
oposição expulsou o leigo e a leiga da Igreja e de seu poder, visto que estes estão no
mundo e o mundo está separado da Igreja: muitos leigos e leigas se sentiram
desobrigados de ser um fermento na massa ao se engajar no mundo, visto que este era
separado da Igreja. Um desencontro pastoral funesto, provocado por uma eclesiologia
errônea, que provocou danos por todos os lados: o mundo perdeu – porque, sem valores
evangélicos não se transforma – e a Igreja perdeu – porque, com um laicato invisível,
os valores positivos do mundo não penetram na Igreja, dificultando sua missão, que é
evangelizar o próprio mundo.
Indiscutivelmente, a vida religiosa teve um impulso extraordinário com o Vat II.
Na AL, com suas contextualizações em Medellín e Puebla, e suas inseparáveis opção
pelos pobres, Teologia da Libertação e CEBs, a vida religiosa ofereceu testemunhos
proféticos – como o de D. Hélder Câmara – e respostas martiriais – como a de D. Oscar
Romero -, entre outros. Estruturas de poder e dominação foram denunciadas, a luta pela
justiça foi evidenciada, empobrecidos e marginalizados se sentiram solidarizados.
Religiosas e religiosos – ou profetas e profetisas – deram sua vida porque encarnaram
em si mesmos o Projeto de Deus.
A gratuidade é uma marca forte desse carisma que é a vida consagrada e precisa
ser revalorizada por alguns setores. Um testemunho muito claro dessa gratuidade
existencial dos religiosos e das religiosas são os votos de pobreza, obediência e
castidade – ou, valores evangélicos, que também devem ser revitalizados. O voto de
15
pobreza leva a partilhar os bens e trabalhar pela justiça. A partilha, na forma da vida
comunitária e-ou inserida, soa como um escândalo para uma sociedade fortemente
centrada na competição, na acumulação, no prestígio pessoal e no poder. O voto de
obediência revela o respeito profundo pela vida comunitária. Por ser Comunidade, a
vida consagrada se manifesta como a decisão descentralizada e compartilhada - que é,
geralmente, a mais sábia, a mais equilibrada e a mais proveitosa. Esse voto é,como os
demais, sinal de vida e de coerência jesuânica – Ele, o primeiro obediente do Pai, até à
morte e morte de cruz. Se a castidade, enquanto dom do Espírito, é um valor por sua
sublimação e desprendimento, a castidade consagrada assume, hoje, também, um
testemunho essencial. No mundo hoje – globalizado, midiático, além-fronteiras –,
muitas vezes, a sexualidade e a corporalidade se vêem alijadas de sua dimensão
vivificadora e amorosa. Nessa sociedade, por vezes desequilibrada, testemunhamos
profundas expressões de uma sexualidade desintegrada. A castidade consagrada, vivida
em sua plenitude e em sua integridade equilibrada, revela um verdadeiro sinal do que
seja a aliança mais solidária que existe na expressão humana – que é o amor.
Porém, é necessário, ainda, superar um dualismo também presente neste estado
de vida: na linguagem comum, vida religiosa diz respeito mais a sentimentos e práticas
de cunho espiritual, e, não tanto, de vida concreta. Outras dificuldades são os contra-
valores do mundo moderno e algumas experiências desanimadoras dentro da Igreja,
como a concentração de poder clerical e sacral, o conservadorismo e o afastamento
desse estado de vida da opção pelos pobres, além dos escândalos de alguns ordenados e
religiosos na área da sexualidade. São igualmente desanimadores as divisões, os ciúmes
e as discriminações na vida interna comunitária, além da discriminação que por vezes
sofrem as religiosas na vida da Igreja (FABRI DOS ANJOS, 2004, p. 9; 51-52).
Parece a Yves Congar que um novo tipo de bispo foi afirmado no Vat II
(CONGAR, 1968, p. 81-82), tendo alargada a idéia de seu rebanho e sua missão.
Considerou-se os bispos mais no de um serviço evangélico e profético do que no de
poder. Quanto aos sacerdotes, muitos se disseram esquecidos pelo Vat II e necessitam
de uma re-construção de identidade, autonomia e protagonismo. Congar já nos
perguntava: num mundo tecnicizado, urbanizado, para que serve um padre? E sugere
pistas no âmbito do exercício da missão: primeiramente, é preciso desclericalizar o
sacerdote; em seguida, redescobrir que o sacerdócio não é uma “carreira”, mas um
ministério, de caráter indelével, é constitutivo da essência da Igreja.
16
Finalmente, percebemos uma necessária des-construção e re-construção do
ministério do diácono permanente. Para G. Lafont, quase todas as tarefas oficialmente
confiadas aos diáconos podem ser cumpridas pelos leigos. Numa visão e numa prática
de Igreja fundada sobre os carismas e sua instituição, o diaconato permanente poderia
talvez se reaproximar mais de suas origens. O autor sugere reservar a ordem do
diaconato àqueles que, em volta do bispo, são responsáveis pelo bom andamento das
diaconias na Igreja (os que suscitam, organizam, verificam e, sobretudo, promovem os
carismas). Ele – ou ela – seria colaborador – ou colaboradora do bispo na administração
dos “serviços” (diaconias) (LAFONT, 1995, p. 193-194). Assim, a re-descoberta da
ministerialidade pelo Vat II provocou uma profunda crise, tanto no ministério ordenado,
quanto nos religiosos e nos diáconos permanentes. Vez ou outra lemos ou ouvimos que
o motivo da “crise” foi o laicato – o problema não é o laicato, mas uma inautêntica
teologia da ministerialidade da Igreja.
3a. Parte: Desafios ad extra eclesiais
3.1 – Solidariedade da Igreja na construção do projeto político de
defesa da vida
Chegamos, hoje, a um mundo globalizado. A globalização é um fenômeno
difícil de ser definido e analisado, mas facilmente perceptível em seus sintomas no
mundo moderno. A globalização, em sua vertente cultural, trouxe elementos positivos,
como a valorização da natureza, das minorias, do particular, da subjetividade;
entretanto, na sua vertente econômica, trouxe a automação, novas tecnologias,e xigindo
cada vez mais especialização e gerando desemprego. O abismo entre ricos e pobres –
pessoas, grupos, países, nações – aumenta cada vez mais...
Encontramos os elementos constitutivos desse projeto político a favor da vida
no “Memorandum” de D. Luciano Mendes de Almeida para o G-8 em Gênova, em
nome dos fracos da Terra. D. Luciano foi por muito tempo Presidente da Conferência
Episcopal dos Bispos do Brasil (CNBB), a mais numerosa do mundo, distinguido como
porta-voz dos sem voz. Seu “memorandum” afirma que “a pessoa humana deve estar
no centro das preocupações do G-8” e que o respeito aos direitos e à dignidade de cada
ser humano deverá guiar as ações dos grandes da Terra. Bruno Forte nos adverte que
devemos solucionar os conflitos através da intervenção decisiva e honesta sobre as suas
17
causas. É sinal de construção política solidária com os excluídos a inteira ação de D.
Luciano e de tantos como ele - pobres no estilo de vida e dedicados, sem medida, ao
serviço dos pobres. Esse despojamento desmascara a hipocrisia e acaba com os
interesses – verdadeira causa dos conflitos.
São seis os pontos apresentados no “memorandum”, que se apresentam hoje
como um desafio: 1) a pobreza extrema, que reclama a redistribuição dos bens; 2) o
cancelamento da dívida dos países pobres; 3) o desenvolvimento de uma cultura
universal dos direitos humanos, que suscite uma ação solidária contra o racismo, a
xenofobia, a intolerância e a discriminação; 4) o empenho pela educação, que forneça a
todas as crianças e aos jovens oportunidades paritárias de atingir o saber; 5) a questão
África, continente marcado do maior cúmulo de pobreza em todos os campos; e, 6) a
luta contra a AIDS, da percentual altíssimo entre os empobrecidos e excluídos sociais.
O que dá força a essas palavras é a vida de quem as escreve. D. Hélder Câmara –
o Bispo dos pobres do Brasil e do mundo inteiro – repetia, com os lábios e com a vida,
esta verdade simples e grande: “Bem-aventurados aqueles que sonham: levaram a
esperança a muitos corações e correrão o doce risco de ver o seu sonho realizado.” E o
mesmo D. Hélder acrescentava que os protagonistas desta realização deverão ser, antes
de tudo eles, os pobres da terra: “Creio - ele amava repetir – que o mundo será melhor
quando o menor que sofre aprenderá a Ter confiança no pequeno”.
3.2 – Acolher a secularidade e evangelizar o secularismo
À medida que a modernidade secularizada foi amadurecendo-se historicamente,
a solicitação do “outro” foi se insinuando, aparecendo, inclusive, na discussão acerca do
sentido de uma história carregada com o peso imenso de tantas vítimas (QUEIRUGA,
2003, p. 112-119). Ao nascer de um descontentamento ou de uma falta de conexão com
as ofertas religiosas tradicionais, a tendência geral é renová-las ou recriá-las de outra
forma: a reação apologética extremada seria um caminho equivocado. Iniciativas foram
tomadas frente à Modernidade e à Pós-Modernidade; entretanto, hoje, se exige um
passo a mais. Segundo Queiruga, hoje, o que constitui o núcleo mais determinante e o
dinamismo mais irreversível do processo moderno é a progressiva autonomia alcançada
por distintos estratos ou âmbitos da realidade. Entretanto, ainda subsistem, por um lado,
conservadorismo eclesiástico e teológico e, de outro, crítica secularista e atéia –
necessitamos urgentemente de um equilíbrio (QUEIRUGA, 2003, p. 112-119; 22-25).
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A Ilustração, com sua forte crítica à religião, anunciou o lento, constante e
implacável desaparecimento de qualquer fenômeno religioso na humanidade; tal onda
cresceu após a Segunda Guerra Mundial. Contribuíram significativamente para o
desgaste das instituições religiosas o avanço da tecnologia e o bem-estar social
promovido pelos “milagres econômicos” (LIBÂNIO, 2002, p. 11). O auge do fenômeno
da secularização, nas décadas de 1960-1970 provocou uma vasta literatura teológica.
Duas linhas fundamentais demarcaram os extremos das interpretações: uma de
cunho apologético, que identificava secularização, secularismo e ateísmo; e, outra, que
introduzia uma distinção fundamental entre secularização e secularismo. A favor da
secularidade. temos o texto inicial de Gn, onde o mundo foi desdivinizado por Deus;
também Jesus teria testemunhado a favor da secularidade com suas atitudes de conflito
crescente com os poderes religiosos de sua época, que sugerem um cristianismo de
seguimento, de prática (GAUCHET, 1985, p. 133).
Entretanto, na década de 1990, vários autores detectaram o deslocamento do
secular para o religioso: uma “virada” que influenciaria, inclusive, o mundo político, e,
aliás, já predita, em 1970, por W. Hennis. Outras vozes também prenunciavam a “volta
do Sagrado”, como a de Karl Rahner: “Já se disse que o cristão do futuro ou será um
místico ou não o será...” (RAHNER, 1980, p. 375).
Alguns autores relacionam esse fenômeno com o desmoronamento repentino da
ideologia marxista, nitidamente simbolizada pela “queda do muro de Berlim”, que teria
deixado um vazio. Os Estados Unidos seguiram em frente, visibilizando e
simbolizando, em grau máximo, a vitória e o senhorio do neoliberalismo. Em reação,
desde o final da década de 1970, com a revolução religiosa islâmica do aiatolá Imam
Khomeini, o fundamentalismo vem crescendo e ganhando força nos países muçulmanos,
cujo símbolo forte foi o atentado de 11 de setembro às torres gêmeas (LIBÂNIO, 2002,
passim).
Os frutos do secularismo nós já conhecemos bem. Na modernidade, o ser
humano – antropocêntrico – divorciou-se da natureza e de sua relação com o meio
ambiente – provocando o que hoje se sente como ameaça de catástrofe sobre todo o
planeta. Colocou-se à parte de toda e qualquer aliança e verdadeira relação – com as
coisas e com os outros seres humanos. Um claro sintoma disso são os perversos frutos
do antropocentrismo moderno, que demonstram claramente a distância e separação no
interior da humanidade: racismo, etnocentrismo, machismo, etc. O ser humano moderno
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sentiu dolorosamente uma falência de sentido das estruturas sociais e de suas
referências simbólicas: falindo o sentido da existência, o ser humano faliu a si mesmo.
Com a sociedade secularista, o sagrado e o religioso encontraram-se como que
varridos para a periferia da história, caracterizados como pré-científicos e pré-
modernos: as respostas para a humanidade se encontrariam no século e, não mais, no
sagrado e no transcendente. Entretanto, o primado da razão instrumental não se mostrou
homogêneo e sem conflitos: cada vez mais, no ocidente contemporâneo, começaram a
emergir questionamentos profundos à pretensão ingenuamente onipotente da razão.
A razão instrumental não é a razão dos filósofos ou a dos homens e mulheres
das ciências em geral, mas, quase sempre, é a razão dos técnicos. Além das novas
descobertas científicas, que se deram, principalmente, a partir da Física, na década de
1920, outras vozes somaram-se no questionamento da modernidade: os valores
existenciais, como o desejo, a afetividade, o poético, a gratuidade, a relacionalidade,
entre outros. Delineou-se, em várias partes do Ocidente contemporâneo, uma retomada
ou uma nova visibilização do interesse pela religião, pela transcendência, obrigando a
modernidade a confrontar-se com seu próprio modelo.
As formas que assume hoje a busca religiosa vêm expressas nos chamados
“novos movimentos” e em uma atração pelas filosofias e religiões orientais. Há,
também, um ressurgir das grandes Tradições religiosas monoteístas, especialmente a
religião muçulmana. Nas últimas décadas, as estatísticas apontam para um aumento das
religiões – outra coisa é saber se os membros dessas religiões freqüentam as mesmas ou
simplesmente encontram nelas espaço para suas vivências religiosas, até mesmo em
choque doutrinal com elas. A resposta para esse desafio é promover, realmente, um
diálogo inter-religioso.
Conclusão
Enfim, em um tempo muito reduzido – é apenas uma Comunicação – buscamos
apresentar alguns desafios que, na nossa visão e na dos autores aqui citados, se
avizinham no horizonte religioso do novo século XXI. Esperamos ter atendido, pelo
menos, a algumas das expectativas, e ter despertado os leitores e as leitoras para a
necessidade de uma reflexão mais profunda acerca da atual missão das Igrejas Cristãs.
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