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SIMPÓSIO 2 - A permanência do insólito na literatura - a tradição revisitada O conto fantástico na formação de leitores escritores proficientes - Alex-Sandra de Assis Simão Fonseca (UNITAU) RESUMO: A leitura e a produção escrita dos alunos trazem grandes preocupações tanto para os professores de Língua Portuguesa, quanto para estudiosos da linguagem que vêm desenvolvendo pesquisas sobre esse tema. Este artigo busca discutir alguns conceitos pertinentes ao fantástico e sua contribuição na formação de leitores e escritores proficientes. Fundamentado na perspectiva sociocognitiva de leitura, na concepção bakhtiniana da linguagem e de gêneros discursivos e abordagens literárias, busco, a partir do conto fantástico, expor procedimentos que possibilitem trabalhar a leitura e a escrita em sala de aula. Palavras-chave: Leitura; Produção escrita; Conto fantástico 1 Introdução Este artigo traz uma abordagem sobre a formação de leitores e produtores de texto a partir do gênero discursivo conto fantástico. Tem como objetivo geral propor um projeto de leitura e produção escrita para os alunos da segunda etapa do Ensino Fundamental. Especificamente, os objetivos são: ampliar o gosto e o prazer pela leitura de textos com elementos que fogem à realidade – contos fantásticos; desenvolver um projeto de produção escrita de contos fantásticos com os alunos. Apresenta resultados de uma pesquisa desenvolvida em forma de pesquisa-ação em uma escola pública. Os sujeitos da pesquisa foram 105 alunos do 6º ano do Ensino Fundamental, cujas idades variam entre11 e 12 anos. São alunos que não possuem o hábito de ler e escrever de maneira proficiente, que demonstram pouco interesse por aulas em que o trabalho com textos e produções escritas se resume em desenvolver competências para manejar e decodificar sistemas simbólicos - metodologia imposta pelos livros didáticos da grande maioria das escolas públicas, desconsiderando a língua como um fator social e favorecendo um ambiente de preconceitos linguísticos. 2 Fundamentação teórica A fundamentação teórica baseia-se na perspectiva sociocognitiva de leitura, conforme Marcuschi (2008) Koch e Elias (2006), Koch (2005, 2008); na concepção bakhtiniana da linguagem e de gêneros discursivos (BAKHTIN,2010) e nas abordagens literárias sobre o conto fantástico. Na perspectiva sociocognitiva de leitura o texto não é visto como um produto acabado e sim como um processo, um evento comunicativo, como afirma Marcuschi (1999), pois autor e leitor interagem durante o processo de leitura. O leitor passa a ser o co-autor na produção de sentido, porque recorre aos seus conhecimentos prévios e faz diversas inferências. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, doravante PCN (BRASIL, 1998) propõem que o trabalho com a linguagem deve ser contextualizado, considerando, dentre outros aspectos: a situação de produção desse texto, o leitor a quem se destina, bem como a esfera social a qual pertence, considerando e valorizando o conhecimento prévio desse leitor.

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SIMPÓSIO 2 - A permanência do insólito na literatura - a tradição revisitada

O conto fantástico na formação de leitores escritores proficientes - Alex-Sandra

de Assis Simão Fonseca (UNITAU)

RESUMO: A leitura e a produção escrita dos alunos trazem grandes preocupações tanto para os professores de Língua Portuguesa, quanto para estudiosos da linguagem que vêm desenvolvendo pesquisas sobre esse tema. Este artigo busca discutir alguns conceitos pertinentes ao fantástico e sua contribuição na formação de leitores e escritores proficientes. Fundamentado na perspectiva sociocognitiva de leitura, na concepção bakhtiniana da linguagem e de gêneros discursivos e abordagens literárias, busco, a partir do conto fantástico, expor procedimentos que possibilitem trabalhar a leitura e a escrita em sala de aula. Palavras-chave: Leitura; Produção escrita; Conto fantástico 1 Introdução Este artigo traz uma abordagem sobre a formação de leitores e produtores de texto a partir do gênero discursivo conto fantástico. Tem como objetivo geral propor um projeto de leitura e produção escrita para os alunos da segunda etapa do Ensino Fundamental. Especificamente, os objetivos são: ampliar o gosto e o prazer pela leitura de textos com elementos que fogem à realidade – contos fantásticos; desenvolver um projeto de produção escrita de contos fantásticos com os alunos. Apresenta resultados de uma pesquisa desenvolvida em forma de pesquisa-ação em uma escola pública. Os sujeitos da pesquisa foram 105 alunos do 6º ano do Ensino Fundamental, cujas idades variam entre11 e 12 anos. São alunos que não possuem o hábito de ler e escrever de maneira proficiente, que demonstram pouco interesse por aulas em que o trabalho com textos e produções escritas se resume em desenvolver competências para manejar e decodificar sistemas simbólicos - metodologia imposta pelos livros didáticos da grande maioria das escolas públicas, desconsiderando a língua como um fator social e favorecendo um ambiente de preconceitos linguísticos. 2 Fundamentação teórica

A fundamentação teórica baseia-se na perspectiva sociocognitiva de leitura, conforme Marcuschi (2008) Koch e Elias (2006), Koch (2005, 2008); na concepção bakhtiniana da linguagem e de gêneros discursivos (BAKHTIN,2010) e nas abordagens literárias sobre o conto fantástico. Na perspectiva sociocognitiva de leitura o texto não é visto como um produto acabado e sim como um processo, um evento comunicativo, como afirma Marcuschi (1999), pois autor e leitor interagem durante o processo de leitura. O leitor passa a ser o co-autor na produção de sentido, porque recorre aos seus conhecimentos prévios e faz diversas inferências. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, doravante PCN (BRASIL, 1998) propõem que o trabalho com a linguagem deve ser contextualizado, considerando, dentre outros aspectos: a situação de produção desse texto, o leitor a quem se destina, bem como a esfera social a qual pertence, considerando e valorizando o conhecimento prévio desse leitor.

Lopes-Rossi (2002, p. 20-21), a partir da citação de vários autores que estudaram a situação do ensino de Língua Portuguesa no Brasil, enumera situações importantes que, de maneira equivocada, conduziam o aluno a uma produção de texto inadequada: as situações de redação são artificiais, falta autenticidade, finalidade; na maioria das situações, o aluno apenas cumpria o que o professor exigia; o aluno apenas reproduzia o “discurso da escola”, ou seja, escrevia aquilo que professor ia achar bonito, ficando descaracterizado como sujeito no uso da linguagem; havia falta de objetivos de escrita por parte dos alunos, inexistia a figura de um leitor autêntico (o professor não representava esse papel). Esses e outros questionamentos com relação ao ensino tradicional de produção e recepção textuais também foram feitos por Pasquier e Dolz (1996) sobre o ensino de língua materna na Suíça. Esses dois pesquisadores e outros, dentre os quais Schneuwly e Bronckart, integrantes do chamado “Grupo da Universidade de Genebra”, divulgaram nos anos 90 diversas pesquisas sobre o processo de desenvolvimento de competências e habilidades de linguagem dos alunos. Propuseram que o ensino da língua materna tivesse os gêneros discursivos – conceito do filósofo russo Bakhtin – como objetos privilegiados, a partir de uma concepção socioenunciativa da linguagem. (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004).1

De acordo com os Conteúdos Básicos Curriculares, doravante CBC (MINAS GERAIS, 2007), é importante que a leitura e a produção de textos aconteçam em diferentes graus de exigência, mesmo porque, numa determinada etapa, o aluno pode ser capaz de ler determinado gênero, mas não necessariamente produzir um texto desse gênero. Para seleção dos gêneros a serem trabalhados, a proposta orienta que o professor deva: • preferir os textos completos. Quando fragmentados, ter o cuidado para que

necessário que tenham unidade de sentido; • procurar trabalhar os textos que estejam em suportes destinados à faixa

etária com a qual se quer realizar a prática pedagógica; • avaliar o nível de inferência que é exigido para que o texto seja

compreendido; • conduzir a prática pedagógica de maneira que o aluno perceba os efeitos de

sentido, as sutilezas presentes no texto; • lembrar que os objetivos de leitura seguramente interferem na estratégia e

nos resultados da leitura, que precisam ser diferenciados e claramente definidos;

• considerar textos de gêneros diferentes e aplicar estratégias de leitura e produção diversas.

Os CBC propõem que o trabalho do professor é atuar como mediador das experiências dos alunos com a “interlocução literária”, possibilitando que o aluno amplie seus horizontes; reconheça as dimensões éticas e estéticas da atividade humana da linguagem:

É essencial propiciar aos alunos a interlocução com o discurso literário que, confessando-se como ficção, nos dá o poder de experimentar o inusitado, de ver o cotidiano com os olhos da imaginação, proporcionando-

                                                                                                                         1 O conceito de gênero discursivo, a concepção socioenunciativa de linguagem e a proposta desses autores serão detalhadas oportunamente ao longo desta dissertação.

 

nos compreensões mais profundas de nós mesmos, dos outros e da vida. (MINAS GERAIS, 2007, p.12)

Quanto aos textos literários, os CBC esclarecem que a sua interlocução “requer competências específicas de leitura e abordagem que atentem para o seu contexto e objetivos específicos de produção e para o pacto de leitura.” (p.15),por se tratar de um texto artisticamente elaborado. Texto que tende a envolver o leitor, proporcionando-lhe um prazer intelectual e estético, por meio do qual se provoca o estranhamento do cotidiano e também se criam possibilidades de deslocamento do humor, pela fantasia, pelo sarcasmo.

A partir da leitura e da produção escrita do gênero discursivo conto fantástico, com a realização de um projeto específico, através de sequências didáticas, procuramos comprovar a possibilidade de tornar nossos alunos leitores proficientes. É possível perceber que a melhor maneira de desenvolver a competência e o gosto pela leitura é permitir que o aluno interaja com o texto literário, pois, assim, nessa relação ativa com o objeto de conhecimento, ele construirá seus conceitos e terá conhecimento das teorias que envolvem a literatura e o fazer literário. Para que haja avanços faz-se necessário que os educadores revejam suas práticas e estejam dispostos às mudanças. Como bem argumentado por Matta (2009), ao afirmar que mudar paradigmas é uma tarefa difícil, mas faz-se necessário refletir sobre a constituição da linguagem como ação social e que este tem sido um dos grandes desafios colocados ao professor. Segundo a autora, como suporte às atividades do professor de língua materna, a noção de gênero discursivo, na perspectiva bakhtiniana constitui o caminho ideal. Na concepção de Rodrigues (2005), devido aos questionamentos e críticas às práticas da produção textual e da leitura,

a concepção de que o ensino/aprendizagem dessas práticas como interação verbal social tenha os gêneros do discurso como objeto de ensino, abre-se um novo diálogo, agora tendo como foco, além das noções de interação verbal e dialogismo, a dos gêneros do discurso [...] destaca-se o lugar para a discussão da concepção de gênero na perspectiva dialógica da linguagem. (p. 153)

Sendo assim, acreditamos que o ensino fundamentado nos gêneros discursivos configura a mais sólida prática docente para as aulas de literatura no ensino fundamental e o conto fantástico, por atender às expectativas e preferencia dos alunos pode se tornar um grande aliado na formação desses pequenos leitores e escritores. 2.1 O fantástico na literatura

A princípio, vale ressaltar que adotamos o termo “Fantástico”, por considerar sua abordagem mais apropriada ao gênero discursivo em estudo. Contudo, vale lembrar que alguns autores optam pelo termo “realismo mágico”2 para nomear o mesmo gênero. Nesse contexto, partilhamos da mesma concepção de Rodrigues (1988), que considera o termo “realismo mágico” impróprio para a literatura, visto que magia é uma forma de interferir na realidade. Segundo a autora, “A literatura pode usar uma                                                                                                                          2 Magia, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira) é “Arte ou ciência oculta com que se pretende produzir, por meio de certos atos e palavras, e por interferência de espíritos, gênios e demônios, efeitos e fenômenos extraordinários, contrários às leis naturais”.

causalidade mágica que se opõe à explicação oferecida pela lógica científica, mas ela não é mágica” (RODRIGUES, 1988. p.9). Argumenta ainda que o termo fantástico faz referência ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o fabuloso. Defende que o termo se aplica melhor “a um fenômeno de caráter artístico, como é a literatura, cujo universo é sempre ficcional por excelência, por mais que se queira aproximá-la do real” (p. 9). Vale lembrar que “fantástico” não é nem um gênero recente, nem um que tenha começado a ser lido e estudado nas últimas décadas. Ele sempre esteve presente nas diversas modalidades textuais existentes há vários séculos em nossa literatura concepção também defendida por alguns autores, como em Rodrigues (1988, p.14), ao afirmar que “a mais antiga forma de narrativa é a fantástica”. Também nas palavras do argentino Jorge Luis Borges (1976) que, em entrevista, afirmou que “os romances realistas começaram a ser elaborados nos princípios do século XIX, enquanto todas as literaturas começaram com relatos fantásticos”.

Segundo Rodrigues (1988, p. 15), o Fantástico é estruturado pela causalidade mágica e a magia, é “um vínculo entre coisas distantes”, ora porque sua figura é igual – magia imitativa, homeopática – ora pelo fato de uma proximidade anterior – magia contagiosa” (p. 15), há um enfoque no “mecanismo” que dá forma ao Fantástico, ou seja, na ocorrência de acontecimentos que não se aplicam à realidade palpável. O duplo, a viagem no tempo, a indefinição entre realidade e sonho e o inanimado animado são procedimentos utilizados para expressar o gênero.

Esses procedimentos não se explicam senão pela aceitação de uma pesquisa das dimensões da realidade que é homóloga e (não-igual) na sua estrutura, ao funcionamento da magia simpática. A causalidade mágica não é senão um nome para um tipo de convenção literária que se opõe às convenções “realistas” (RODRIGUES, 1988, p. 16).

GARCIA ; BATISTA (2006 argumentam que, para circunscrever o universo do Fantástico no âmbito dos estudos da literatura, é importante se valer dos mais diversos olhares com os quais os teóricos que desse gênero se ocuparam,

ora deixando-se seduzir pelos conceitos advindos da significação que o termo tem no senso comum, ora buscando o rigor do método científico que o limita à Ciência da Literatura, mas que, ao fim [...] contribuíram sobremaneira para a configuração do Fantástico enquanto gênero.(GARCIA; BATISTA, 2006. p. 1)

Para Held (1980),

a narração fantástica reúne, materializa e traduz todo o mundo de desejos: compartilhar a vida animal, libertar-se da gravidade, tornar-se invisível, mudar seu tamanho e [...] transformar à sua vontade o universo: o conto fantástico como realização dos grandes sonhos humanos, sonhos frequentemente retomados pela ciência. (HELD, 1980, p. 25)

Held (1988) acrescenta, ainda, que o fantástico só existe em relação a uma realidade que pode ser classificada como “não fantástica”, e que sua essência reside num clima em que sonho e realidade se interpenetram. Paes (1996), ao prefaciar o livro Histórias Fantásticas, da série Para Gostar de ler, argumenta que o Fantástico é o oposto do real. Na concepção desse autor a narrativa fantástica “não é apenas aquilo cuja existência pode ser comprovada pelos nossos sentidos, sobretudo, aquilo que ninguém põe em dúvida seja verdadeiro” (p. 3). Afirma ainda que “quando uma narrativa explora a oposição entre o real e o fantástico, diz-se que é uma narrativa fantástica”.

Segundo o autor, Num conto fantástico, em nenhum momento o leitor perde a noção da realidade. Por não perdê-la é que lhe causa surpresa, os acontecimentos ou acontecimentos estranhos, fora do comum ou aparentemente sobrenaturais que de repente parecem desmentir a solidez do mundo real até então descrito no conto. Nesse momento de surpresa e de perplexidade, está o próprio sal da literatura fantástica. (PAES,1996, p.4)

Rodrigues (1980) argumenta, de maneira muito significativa, sobre a

incidência do gênero e das abordagens teóricas que foram feitas dele no decorrer dos anos. Para classificar o discurso narrativo como Fantástico, a autora recorre à casualidade mágica e à hesitação. Para ela, a causalidade mágica é responsável pela união dos acontecimentos de uma narrativa, cuja característica é a relativização da realidade através da ocorrência de algo insólito. Já a hesitação inerente ao Fantástico corresponde ao diálogo inconcluso entre o racional e o não-racional, ao desequilíbrio entre a realidade e o sobrenatural, ao verossímil inacreditável causado pela ocorrência do sobrenatural e seu consequente questionamento.

Essa hesitação do leitor ou do herói do conto, na concepção de Todorov (2008), “é, pois, a primeira condição do fantástico” (p.37), o que ocorre a partir do momento em que o leitor se identifica com o personagem. O que implica uma integração do leitor no mundo das personagens: “A percepção desse leitor implícito está inscrita no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos das personagens” (TODOROV, 2008. p. 37).

Na visão de Rodrigues (1988), essa hesitação mostra o homem circunscrito à sua própria racionalidade, admitindo o mistério, entretanto, e com ele se debatendo. Essa hesitação que está no discurso narrativo contamina o leitor, que permanecerá, entretanto, com a sensação do fantástico predominante sobre explicações objetivas. A literatura, nesse caso, se nutre desse frágil equilíbrio que balança em favor do inverossímil e acentua-lhe a ambiguidade (RODRIGUES, 1988, p. 11).

Essas características do fantástico foram amplamente trabalhadas no contexto

dessa pesquisa o que possibilitou que os alunos se apropriassem das características do gênero. 3 Procedimentos metodológicos 3.1 A sequência didática para desenvolvimento do Projeto de Leitura de Contos Fantásticos O Projeto de Leitura de Contos Fantásticos foi fundamentado nos procedimentos para estudos dos gêneros discursivos propostos por Lopes-Rossi (2006), nas orientações para o trabalho com leitura por meio de sequências didáticas de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004); na proposta dos Conteúdos Básicos Comuns do Estado de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2007); nos procedimentos de leitura de gêneros discursivos sugeridos por Lopes-Rossi (2010) e nos procedimentos de leitura de contos de mistério sugeridos por Lopes-Rossi et al (2011). Foi elaborada sequência didática para o desenvolvimento do Projeto de Leitura de Contos Fantásticos descrita a seguir. 1- Primeiro procedimento de leitura: levantamento de conhecimentos prévios dos alunos e comentários sobre o conto fantástico

Iniciamos com uma conversa informal, realizada para estimular os alunos a falarem sobre o que sabiam a respeito de conto e conto fantástico. Esse procedimento foi realizado sem a presença do texto, a partir do seguinte questionamento: a) O que é um conto? b) O que caracteriza um conto como fantástico? c) Quem escreve contos fantásticos? d) Com que propósito? Qual o propósito comunicativo do conto fantástico? e) Com que base e quais informações o conto fantástico é produzido? f) Onde o conto fantástico circula? g) Como o conto é publicado? Por quem? Quem teria interesse em publicar essa literatura? E por qual razão? h) Quem lê conto fantástico? Por que o lê? i) Quais os temas possíveis abordados pelo conto fantástico? Esse questionamento visa a atualizar ou proporcionar aos alunos conhecimentos sobre aspectos básicos das condições de produção e circulação do gênero discursivo conto fantástico. Pela perspectiva sócio-histórica de estudo dos gêneros discursivos adotada nesta pesquisa, esse nível de conhecimento inicial é indispensável para o desenvolvimento do projeto, pois dele dependem a compreensão dos elementos composicionais do gênero e a compreensão dos temas desenvolvidos no conto fantástico. Para finalizar esta etapa da sequência didática, os alunos tiveram a oportunidade de ler um conto fantástico, para que pudessem perceber as características específicas do gênero. Duração desta etapa: 6 (seis) hora/aula. 2 - Segundo procedimento: Leitura global, rápida (dos elementos mais destacados) para apropriação das características típicas do gênero discursivo Distribuímos entre os alunos um conto fantástico com ilustrações para que eles observassem os detalhes das imagens que focam elementos fantásticos e fizessem associações com o título do texto.

a) Que texto é esse? Para que ele serve? b) Se observarmos o título, é possível saber qual é o assunto desse conto? c) De acordo com a ilustração, o que pode ter acontecido?

Essa leitura global tem por objetivo orientar uma primeira leitura rápida (leitura global) dos textos do gênero, explorando alguns elementos composicionais do gênero e suscitando a curiosidade dos alunos a respeito da história narrada no conto fantástico escolhido. Objetivamos, com esse procedimento inicial de leitura, que os alunos formulassem algumas hipóteses sobre o assunto do conto e estabelecessem como objetivo de leitura verificar se a história realmente aborda o que imaginaram que poderia ser. Considerando a pouca leitura dos alunos, esse procedimento de exploração inicial do conto é uma maneira de dar-lhes parâmetros iniciais para uma leitura mais eficiente. Segundo Lopes-Rossi et al (2011), esse procedimento propicia ao aluno identificar o assunto do texto pelo título e com auxílio de materiais gráficos, como desenhos e ilustrações. Essa etapa contribui para que o aluno levante algumas hipóteses sobre a história. 3 – Terceiro procedimento: Leitura completa com objetivos de leitura

Os alunos fizeram uma leitura completa do conto A Bela e a Fera, com os seguintes objetivos: Responder às seguintes perguntas em relação ao conto fantástico lido:

a) Como era o dia a dia das personagens? b) Qual é o elemento inusitado presente no texto? c) Qual o conflito desse conto? d) Qual foi o momento de maior tensão da história? e) O conflito se resolveu? De que maneira? f) Sua hipótese sobre a história se confirmou?

O objetivo dessas perguntas é enfocar os elementos básicos de uma narrativa. A identificação desses elementos na história lida garante que o aluno possa compreender o enredo do conto fantástico e conhecer seus elementos básicos necessários para a futura elaboração de seu próprio conto. 4 – Quarto procedimento: objetivos de leitura detalhada Os alunos responderam, por escrito, as duas perguntas abaixo (objetivos de leitura detalhada), fazendo uma leitura completa do conto ou de partes dele, de acordo com como julgaram necessário.

a) Qual é o tema (ideia) central do texto? b) Que palavras ou expressões ajudam a criar o tom fantástico na história?

Conforme propõe Lopes-Rossi et al (2011), esse procedimento é importante para que o aluno faça a identificação do tema, faça inferências, estabeleça relações entre as partes do conto. Essas são habilidades de leitura, cujo desenvolvimento é esperado pelos documentos oficiais de ensino, são também cobradas por provas externas, como Prova Brasil. Nesse ponto do Projeto, os alunos passaram para uma leitura mais crítica. 5 – Quinto procedimento: leitura crítica do conto fantástico Os alunos se posicionaram de maneira crítica respondendo, por escrito, às seguintes perguntas em relação ao conto fantástico lido:

a) Você gostou da história? Gostaria de conhecer outros contos fantásticos? b) Você acha que esse conto poderia mesmo acontecer na realidade? c) Gostou do desfecho da história? Não gostou? Por quê? Você o mudaria? A correção das respostas deve ser realizada oralmente, respeitando, para isso,

opiniões divergentes. O importante é que o aluno saiba justificar sua opinião, o que também exige uma habilidade de linguagem importante. Para diversificar as aulas, utilizamos um filme em DVD “Como treinar o seu dragão”, da Dream Works. Ao utilizar o filme em DVD 3D, além da exploração do elemento fantástico, o professor possibilita que o aluno estabeleça relações entre o verbal e o visual, desperte seu imaginário para os detalhes artísticos que enriquecem o filme e reconheça os elementos discursivos que são significativos para o gênero.

3.2 A sequência didática para desenvolvimento do Projeto de Produção escrita de Contos Fantásticos A sequência didática para a produção escrita se baseia também na proposta de análise dos gêneros discursivos com relação aos movimentos retóricos do texto, conforme proposto por Swales (2009). Os movimentos retóricos do conto fantástico

foram definidos com base na fundamentação teórica sobre estruturas narrativas, particularmente propostas por Todorov (2008). A partir desses fundamentos já explicitados anteriormente, foram feitas as adaptações necessárias ao Projeto de produção escrita, de acordo com as especificidades do gênero discursivo conto fantástico. Para realização do Projeto de produção escrita de Contos Fantásticos foi elaborada uma sequência didática, onde procuramos oferecer aos alunos instruções para a produção, supondo os passos que um autor proficiente seguiria. Sequência didática para produção escrita de Contos Fantásticos 1ª Etapa – planejamento do texto escrito Essa etapa do planejamento do texto é decorrente das características do gênero conto fantástico e também da estrutura narrativa que o gênero apresenta. Deve ser realizada coletivamente para geração de ideias, para uma revisão do que os alunos já assimilaram para, posteriormente, cada aluno escolher os elementos que comporão seu texto. Os momentos da narrativa (estrutura do conto fantástico) são revistos com o objetivo de levar o aluno a uma percepção do todo que compõe uma narrativa, particularmente as características do gênero conto fantástico, para verificar se assimilaram as particularidades essenciais contempladas nas atividades de leitura do gênero. Faz-se necessário que o professor tenha a convicção de que os alunos compreendem as especificidades do gênero em estudo, para solicitar uma primeira versão do texto. A estrutura do conto fantástico a seguir deve ser usada apenas como referência, para que os alunos percebam uma das possíveis estruturas admitidas no conto e para que tenham uma maior segurança na produção. Estrutura do conto fantástico:

Esse esquema não configura um protótipo do gênero discursivo conto fantástico. Serve apenas como modelo para o aluno desenvolver sua produção escrita. Mesmo porque, partilhando das ideias de Perrone-Moisés (2008), ao prefaciar a obra de Todorov (2008), acreditamos que não existe um padrão específico para a produção do gênero Conto Fantástico. Segundo a autora,

Aquilo que fica para fora do molde é o específico, o elemento gerador de transformações ulteriores. Cada grande obra literária supera o modelo anterior de seu gênero e estabelece outro, à luz do qual serão examinadas as obras seguintes; e assim por diante. O modelo, portanto, nunca é definitivo.[grifo nosso] [...] O modelo ideal é aquele que tenha algumas traves mestras, mas ofereça ao mesmo tempo flexibilidade, para poder variar no momento da aplicação e ser capaz de revelar tanto o repetido quanto o novo. (PERRONE-MOISÉS, 2008. p.11)

A   • Situação inicial, com personagens humanos vivendo uma história comum, em harmonia.

B   • Interferência do elemento fantástico no cotidiano das personagens.

C   • Surgimento de um conflito no conto.

D   • Momento de maior tensão da história.

E   • Desfecho da história.

Para nossos alunos, esse modelo de estrutura serve como “algumas traves mestras”, visto que, boa parte deles necessita de algum tipo de suporte para desenvolver, de forma adequada, seus textos. 2ª Etapa - Primeira versão do conto A partir desta segunda etapa, as atividades de produção escrita podem ser realizadas em duplas, valorizando, assim, a interação entre os alunos e também devido ao grande número de alunos envolvidos na pesquisa. Espera-se que os alunos consigam seguir, mesmo que de maneira parcial, as instruções que lhes forem dadas. Na concepção de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), produzir texto deve ser a motivação, uma vez que a escrita é uma ação cooperativa entre os interlocutores. A produção, seja ela oral ou escrita, é realizada com propósitos sociais, cabendo ao professor inseri-la em contextos mais amplos e complexos antes de considerá-la insuficiente. 3ª Etapa – Correção colaborativa da professora e dos colegas Para a realização deste terceiro procedimento, os objetivos de uma correção colaborativa devem ser esclarecidos, visando à troca de experiência, ao companheirismo entre os envolvidos e à responsabilidade dos envolvidos nesse processo. Esse momento de avaliação, como defende Antunes (2009), deve ser convertido “num tempo de reflexão, de pesquisa, ou seja, de ensino-aprendizagem, de reorientação do saber anteriormente adquirido” (p. 159). Durante essa etapa, os alunos têm um momento para discutir alguns detalhes importantes e relevantes para o conto fantástico, como, por exemplo, suas características, se estão ou não bem definidas no texto lido. Após efetivarem a correção eles fazem algumas sugestões com anotações no final do texto. 4ª Etapa – Nova versão do texto Neste quarto procedimento, espera-se que os alunos, durante a reescrita de seus textos, consigam adaptar as sugestões feitas pelos colegas e professor na etapa anterior. Para isso, é importante que eles percebam a validade das correções realizadas e constatem a possibilidade de melhorar seu texto, ampliando seu vocabulário e percebendo a grandeza da produção textual. A partir dessa etapa, o aluno deve perceber que seu texto está melhorando a cada momento e que isso é muito significativo para um produtor de textos. Os alunos realizam a nova versão do texto em sala de aula, novamente em duplas, e entregam para as correções. 5ª Etapa - Correção realizada pela professora Retomando as palavras de Antunes,

a avaliação, como o tudo mais, é antes de tudo uma questão de concepção e não uma questão de técnica. Daí a conveniência de o professor pensar, observar, descobrir, em cada momento a maneira mais adequada de contribuir para que seu aluno cresça na aquisição de sua competência comunicativa; de, sobretudo, estimular, encorajar, deixar os alunos com uma vontade grande de aprender, sentindo-se para isso perfeitamente capacitado e, por isso, inteiramente gratificado. (ANTUNES, 2009. p.165)

Nesse contexto, fica evidente qual deve ser a postura do professor diante dos textos produzidos pelos alunos – ser facilitador do ensino-aprendizagem. A tradicional “caça aos erros” serve tão somente para inibir os alunos e em nada contribui para o seu desenvolvimento. No cumprimento dessa etapa, devem ser realizadas todas as correções aplicáveis ao texto escrito do gênero discursivo conto fantástico. 6ª Etapa – Versão final do texto escrito e confecção do livro de contos Com esta sexta etapa, objetiva-se que o aluno tenha assimilado a importância da produção escrita realizada com propósitos sociocomunicativos. Que ele perceba o prazer da produção escrita, realizada em parceria com o colega, que de maneira interativa participe ativamente da construção e correção do texto. Em módulos didáticos do dia-a-dia, o professor deverá utilizar apenas esta última versão para esse tipo de avaliação. Para sua efetivação, é importante que se apresente aos alunos quais serão os critérios avaliativos. Nesse contexto, concordamos com Koch (2003) ao afirmar que a produção escrita é uma atividade consciente, que exige criatividade, mas que depende das estratégias de ação que o professor utiliza para alcançar seus objetivos. Segundo a autora, a atividade escrita é “uma atividade intencional que o falante, em conformidade com as condições sob as quais o texto é produzido, empreende, tentando dar a entender seus propósitos ao destinatário através da manifestação verbal” (p. 26). 4 Resultados Percebemos que a sequência didática proposta nesta pesquisa atende às necessidades estabelecidas pelos documentos oficiais que embasam este trabalho. Consegue, de maneira lúdica e descontraída, proporcionar um ambiente que vise à formação do leitor proficiente. As atividades de leitura e a apropriação pelos alunos das características do conto fantástico, além de contribuírem para o desenvolvimento de habilidades de leitura, também proporcionaram a base de conhecimento para o projeto de produção escrita, que foi desenvolvido nas aulas seguintes. A sequência didática de produção de texto foi eficiente, pois permitiu aos alunos trabalhar em grupos, trocar experiências com os demais colegas de classe, rever seus próprios textos e reescrevê-los em definitivo. Ao produzirem seus textos, os alunos, que já conheciam as características do gênero e sua estrutura, puderam utilizá-las de maneira prazerosa em sua escrita. 5 Conclusão Desde o início da aplicação desta pesquisa, a nossa preocupação centrou-se em possibilitar que os alunos desenvolvessem suas habilidades de leitura, sendo protagonistas de seu próprio texto escrito. Procuramos desenvolver as sequências didáticas, dando o máximo de autonomia ao aluno. A sequência didática de leitura elaborada com o propósito de que os alunos se apropriassem das principais características do gênero discursivo conto fantástico mostrou-se muito eficiente. Atende às necessidades estabelecidas pelos documentos

oficiais que embasam este trabalho. Consegue, de maneira lúdica e descontraída, proporcionar um ambiente que vise à formação do leitor proficiente. A sequência didática de produção de texto foi muito significativa, pois permitiu aos alunos trabalhar em grupos, trocar experiências com os demais colegas de classe, rever seus próprios textos e reescrevê-los em definitivo para fazerem parte de um livro de contos fantásticos que foi escrito e ilustrado por eles mesmos. Ao produzirem seus textos, os alunos, que já se apropriavam das características do gênero e conheciam a estrutura de um conto, puderam utilizá-las de maneira produtiva e prazerosa em sua escrita. O gênero discursivo conto fantástico, possibilitou-nos trabalhar não somente no plano sociocomunicativo, como também no plano estrutural típico de textos narrativos, o que serviu de modelo para que os alunos produzissem seus próprios textos com autonomia. Cremos que poderão reconhecer um conto fantástico em situações diversas fora da escola e compreender esse gênero como uma prática típica de um grupo socialmente constituído. Constatamos que, na perspectiva sociocognitiva de leitura e enunciativa da linguagem, o leitor com uma consciência dialógica é mais crítico, sabe aceitar as diferenças, a alteridade. Isso possibilita uma maior compreensão dos mais diferentes gêneros com os quais tem contato no dia a dia, seja em situações rotineiras ou de formalidade. Não queremos, com isso, criar padrões que os alunos deverão seguir todas as vezes que forem ler ou produzir um texto. Pois, se assim o fizéssemos, incorreríamos nas mesmas condições inadequadas de elaboração que têm perdurado no ensino de leitura e produção escrita ao longo de muitos anos. O que reafirmamos é que ler e escrever exige planejamento e estratégias diferenciadas.

Referências ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. 8 ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. ______. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 7 ed. São Paulo: Hucitec,1995. ______. Estética da criação verbal. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes. 2010. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais; terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. DOLZ, Joaquim, SCHENEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado das Letras, 2004. GARCIA, Flávio; BATISTA, Angélica M. S. Dos fantásticos ao fantástico: um percurso por teorias do gênero. Soletras, São Gonçalo: UERJ, Ano V, n. 10, Julho/ dezembro. 2006.

HELD, Jaqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. Summus Editorial, 1980. KOCH, Ingedore. G. V. O Texto e a Construção dos Sentidos. São Paulo: Contexto, 2003. ______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez: 2003. ______; ELIAS, Vanda M. Ler e Compreender os Sentidos do Texto. São Paulo: Contexto, 2006. LOPES-ROSSI, Maria Aparecida. G. O desenvolvimento de habilidades de leitura e de produção de textos a partir de gêneros discursivos. In: LOPES-ROSSI, Maria Aparecida G.(Org.). Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção de textos. Taubaté: Cabral, 2002. p. 19-40. _______. A leitura de gêneros discursivos nas aulas de língua portuguesa da perspectiva sociocognitiva. Taubaté: Universidade de Taubaté, 2011. (não publicado). MATTA, Sozângela S. Português – linguagem e interação. Curitiba: Bolsa, 2009. MINAS GERAIS. Proposta Curricular de Português para o Ensino Fundamental- CBC. Belo Horizonte: Secretaria Estadual de Educação. 2007. RODRIGUES, Rosângela H. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a abordagem de Bakhtin. In: MEURER, José L; MOTTA-ROTH, Désirée (Org.) Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p. 152-183. RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Ática,1988. SWALES, John M. Sobre modelos de análise do discurso. In: BIASI-RODRIGUES, B; ARAÚJO, J. C.; SOUSA, S. C. T. de (Org.). Gêneros textuais e comunidades discursivas: um diálogo com John Swales. Belo Horizonte/; Autêntica, 2009. p.33-46. TODOROV, Tzvetan, As estruturas narrativas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. _______. Introdução à Literatura Fantástica. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Ressonâncias da literatura gótica: Fantástico e realismo mágico - Ana Luiza Silva

Camarani (UNESP - Araraquara)

RESUMO: Pretende-se assinalar as ressonâncias da literatura gótica nos contos de Théophile Gautier e Ângela Carter, por meio, sobretudo, da caracterização do espaço e do motivo do vampiro. Objetiva-se, desse modo, assinalar os traços que determinam o fantástico e o realismo mágico nos textos focalizados e os definem como modalidades literárias distintas. Palavras-chave: Narrativa; Gótico; Fantástico; Realismo mágico. O vampiro na literatura gótica

De modo geral, a crítica que se dedica ao estudo do romance gótico inglês considera que essa tendência literária teve seu início com a publicação, em 1764, de O castelo de Otranto, de Horace Walpole. Segundo Lévy (1995, p. 8), “la première « histoire gothique » est [...] étroitement solidaire du renouveau d’intérêt suscité par l’architecture médiévale après le temps du mépris où l’avaient tenue les Classiques, [...] largement dépendante du mouvement d’émancipation de la tutelle de la Raison qui caractérise l’histoire des idées à cette époque [...]” .3 Assim, assinala ainda Lévy (1995, p. 7), é fácil constatar que a literatura romanesca, na segunda metade do século XVIII, renuncia ao espaço urbano que lhe era tradicional e passa a ter por cenário as velhas abadias e as habitações baroniais do passado, isto é, os castelos feudais, construções extravagantes frequentemente desgastadas, rodeadas por fossos e plenas de labirintos. Essas arquiteturas medievais criam um espaço sombrio, ao mesmo tempo solene e inquietante, provocando emoções próximas do medo e desencadeando tristes meditações. Para completar essa ambientação, além dos castelos em ruínas, com seus velhos móveis e cores aterradoras, corredores úmidos e criptas macabras, Lovecraft (1969, p. 31) aponta uma multidão de fantasmas evoluindo em um pesado clima de lendas, suspense demoníaco e terror sobrenatural. Ao refletir sobre a recepção do romance gótico na França, onde passa a ser denominado roman noir ou frenético, Castex (1962, p. 129) afirma: “Les héros frénétiques par excellence, ce sont les vampires qui sortent de leur tombe pour venir sucer le sang des vivants, ou vont, au contraire, inquiéter les morts dans leurs asiles;ce sont les stryges qui rongent le coeur des jeunes gens en proie au mal d’amour. [...] La littérature frénétique fait éclater au grand jour ce tumulte intérieur dont nous percevons parfois les échos étouffés dans nos songes nocturnes.” 4

                                                                                                                         3 A primeira ‘história gótica’ é [...] profundamente solidária com a renovação do interesse suscitado pela arquitetura medieval após o tempo de desprezo em que a mantiveram os Clássicos, [e] amplamente dependente do movimento de emancipação da tutela da Razão que caracteriza a história dessa época [...]. (As traduções das citações são minhas). 4 Os heróis frenéticos por excelência são os vampiros que saem de seus túmulos para vir sugar o sangue dos vivos, ou vão, ao contrário, inquietar os mortos em seus refúgios; ou as estriges (vampiresas) que

A representação do vampiro surge nos textos de dom Augustin Calmet em 1746 e nos escritos do abade Lenglet-Dufresnoy em 1752, obras que reúnem personagens, temas e motivos (notadamente o do vampiro) que surgem na França na esteira das histórias trágicas de teor realista e que o romantismo retomará sem grandes modificações (GLINOER, 2009, p. 39). De fato, parece ser justamente no século seguinte, com o advento do romantismo, que o vampiro se torna personagem de ficção, por meio da publicação no New Monthly Magazine da novela The Vampyre, sob o nome de Byron, mas efetivamente redigida por Polidori a partir de uma narrativa do poeta inglês. Desse modo, o vampiro passa a fazer parte dos componentes da literatura gótica, por ocasião da retomada dessa modalidade literária motivada pela publicação de Frankenstein, ou The Modern Prometheus, de Mary Shelley, de 1818, pelo aparecimento de The Vampyre, de Polidori, em 1819 e, dois anos mais tarde, pelo surgimento de uma das obras-primas da literatura gótica: Melmoth the Wanderer, de autoria do reverendo Maturin, adepto de longa data do gothic novel.

Um ano depois, em 1822, aparece o livro de Charles Nodier intitulado Infernaliana: Recueil d’histoires infernales, conjunto de curtas histórias próprias da literatura frenética; entre as trinta e quatro narrativas do volume, que tratam de aparições infernais, fantasmas, espectros, espíritos, feiticeiros e pactos diabólicos, cinco detêm-se na figura do vampiro: “Le vampire Arnold-Paul”, “Vampires de Hongrie”, “Le vampire Harppe”, “Histoire d'un broucolaque”, “Facéties sur les vampires”. (p. 8, 13, 30, 62, 102).

Tomando a narrativa intitulada “Vampires de Hongrie”, já se observa que não há dúvida alguma por parte dos personagens da presença apavorante e sobrenatural do vampiro, evento comprovado posteriormente por um soldado, personagem estranho no local:

Un soldat hongrois étant logé chez un paysan de la frontière, et mangeant un jour avec lui, vit entrer un inconnu qui se mit à table à côté d'eux. Le paysan et sa famille parurent fort effrayés de cette visite, et le soldat, ignorant ce que cela voulait dire, ne savait que juger de l'effroi de ces bonnes gens. Mais le lendemain, le maître de la maison ayant été trouvé mort dans son lit, le soldat apprit que c'était le père de son hôte, mort et enterré depuis dix ans, qui était venu s'asseoir à table à côté de son fils, et qui lui avait ainsi annoncé et causé la mort.5 (NODIER, 2008, p. 13).

A sequência da narrativa mostra as providências tomadas pelo militar e seu regimento, que desenterram o corpo do morto, encontrado no estado de alguém que acabara de morrer, com o sangue ainda quente: sua cabeça é cortada; seguem-se outras cenas frenéticas, sucintas, em que outros vampiros são detectados e perfurados por estacas ou inteiramente queimados.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           corroem o coração dos jovens atormentados pelo mal do amor. [...] A literatura frenética traz à tona esse tumulto interior cujos ecos amortecidos às vezes percebemos em nossos sonhos noturnos. 5 Um soldado húngaro, estando alojado na casa de um camponês da fronteira e comendo um dia com ele, viu entrar um desconhecido que se pôs à mesa ao lado deles. O camponês e sua família pareceram fortemente aterrorizados com essa visita e o soldado, ignorando o que aquilo significava, não sabia o que pensar do terror daquela boa gente. Mas no dia seguinte, depois de o dono da casa ter sido encontrado morto em sua cama, o soldado ficou sabendo que se tratava do pai de seu hospedeiro: morto e enterrado há dez anos, viera sentar-se à mesa ao lado do filho e havia-lhe assim anunciado e causado a morte.

Embora o sobrenatural seja explícito nesse tipo de narrativa procedente do gótico, roman noir ou frenético, isto é, mesmo que nenhuma dúvida seja manifestada no que se refere à presença do sobrenatural, este se contrapõe ao real diegético. Essa contraposição entre a ordem do real e a do sobrenatural é também uma característica do fantástico literário. Assim sendo, ao considerar ser o gótico um conjunto de textos que permanecem indissociáveis em um contexto cultural bem datado, Lévy (1995, p. XXXI) compreende que, por outro lado, o gótico nunca desapareceu completamente: “Il est encore, sous bien des formes, au principe même du fantastique [...].” 6 Théophile Gautier: o vampiro no fantástico

De fato, posterior ao romance gótico do pré-romantismo inglês, a narrativa fantástica passa a constituir-se, durante o romantismo europeu, como um novo subgênero de prosa de ficção (PAES, 1985, p. 7) ou uma nova modalidade literária (CESERANI, 2006, p. 7), aproveitando muitos dos componentes góticos como o emprego de certos motivos (fantasmas, espectros, diabos, vampiros) inseridos no ambiente noturno e espaços sombrios (casarões, cemitérios, ruínas, florestas).

Obsessões macabras oriundas da literatura gótica aparecem no conto fantástico publicado por Gautier em 1836, intitulado “La morte amoureuse”7. Nessa narrativa, o protagonista Romuald mostra, desde a infância, a vocação eclesiástica; hesita apenas no momento de sua ordenação, ao vislumbrar no recinto uma bela mulher, Clarimonde; perturbado, termina mecanicamente a cerimônia. Como no romance Os elixires do diabo de Hoffmann, de 1816, é o próprio personagem central que relata sua história, no passado: “Vous me demandez, frère, si j’ai aimé; oui. C’est une histoire singulière et terrible, et, quoique j’aie soixante-six ans, j’ose à peine remuer la cendre de ce souvenir.8” (GAUTIER, 1981, p. 117).

Os temas do sonho e do duplo, aliados a uma estrutura compatível, determinam logo a ambiguidade própria do fantástico; são introduzidos já no início da narrativa, quando Romuald resume ao personagem a que se dirige o vous do narrador, pertencente à mesma comunidade religiosa: “Ce sont des événements si étranges, que je ne puis croire qu’ils me soient arrivés. J’ai été pendant plus de trois ans le jouet d’une illusion singulière et diabolique. Moi, pauvre prête de campagne, j’ai mené en rêve toutes les nuits (Dieu veuille que ce soit un rêve !) une vie de damné, une vie de mondain [...]” 9. (GAUTIER, 1981, p. 117).

O relato do padre Romuald prossegue, expondo os acontecimentos passados: os três dias em que se manteve fechado no quarto depois da cerimônia de ordenação, a visita do abade Sérapion e as advertências dele recebidas, sua posterior nomeação para uma paróquia em outra cidade de onde não deveria voltar, a lembrança da mulher apenas entrevista, de seus olhos verdes dotados de um brilho extremamente vivo, quase insustentável que não permitia saber se emanava do céu ou do inferno; anjo ou demônio?, pergunta-se Romuald; constata, enfim, que “[...] la beauté surnaturelle de                                                                                                                          6 Ele está ainda, sob muitas formas, no princípio mesmo do fantástico [...].

7 “A morta apaixonada”. 8 “Perguntai-me, irmão, se amei; sim. É uma história singular e terrível, e, embora eu tenha sessenta e seis anos, ouso apenas agitar as cinzas dessa lembrança.” 9 “Foram episódios tão estranhos, que não posso acreditar que tenham acontecido comigo. Fui durante mais de três anos joguete de uma ilusão singular e diabólica. Eu, um pobre padre do campo, levava em sonho, todas as noites (Deus queira que tenha sido um sonho!) uma vida amaldiçoada, uma vida profana [...].”

Clarimonde, l’éclat phosphorique de ses yeux, l’impression brûlante de sa main, [...] tout cela prouvait clairement la présence du diable [...].10”(GAUTIER, 1981, p. 127).

Um ano depois de haver se instalado na paróquia que lhe fora destinada, é chamado durante a noite por um homem, solicitando sua presença junto do leito de morte de sua senhora. Romuald é, então, levado por cavalos negros, por uma noite negra, através de uma floresta de um escuro tão opaco e glacial, que o padre sente “ [...] courir sur la peau un frisson de superstitieuse terreur.11” (GAUTIER, 1981, p. 131). A descrição da viagem e dos espaços segue nos moldes do romance gótico ou noir:

[...] et si quelqu’un, à cette heure de nuit, nous eût vus, mon conducteur et moi, il nous eût pris pour deux spectres à cheval sur le cauchemar. Des feux follets traversaient de temps en temps le chemin, et les choucas piaulaient piteusement dans l’épaisseur du bois, où brillaient de loin en loin les yeux phosphoriques de quelques chats sauvages. [...] les pas de nos montures sonnèrent plus bruyands sur un plancher ferré, et nous entrâmes sous une voûte qui ouvrait sa gueule sombre entre deux énormes tours. Une grande agitation régnait dans le château [...]. J’entrevis confusément d’immenses architectures, des colonnes, des arcades, des perrons et des rampes [...]12. (GAUTIER, 1981, p. 131).

Ao entrar no castelo e constatar que a mulher, já morta, não é outra senão

Clarimonde, tão loucamente por ele amada, Romuald ajoelha-se e põe-se a rezar, agradecendo a Deus por ter colocado a morte entre os dois. Em seguida, acalma-se e passa a devanear, concluindo que o local onde jaz o corpo de Clarimonde não parece um quarto que abriga a morte. A partir desse momento, as modalizações (TODOROV, 1975, p. 87-90) multiplicam-se no texto, determinando a incerteza em relação à percepção do protagonista: “Il me sembla qu’on avait soupiré aussi derrière moi, et je me retournai involontairement. C’était l’écho [de mon soupir]. 13 ” (GAUTIER, 1981, p. 132, grifo meu). O padre passa a observar a morta, descrevendo minuciosamente o leito, as vestimentas, a forma encantadora de seu corpo, comparando-a a uma estátua de gesso: “D’étranges pensées me traversaient l’esprit; je me figurais qu’elle n’était point morte réellement, et que ce n’était qu’une feinte qu’elle avait employée pour m’attirer dans son château et me conter son amour. Un instant même je crus avoir vu bouger son pied dans la blancheur des voiles, et se déranger les plis droits du suaire.” (GAUTIER, 1981, p. 133, grifo meu)14.                                                                                                                          10 “[...] a beleza sobrenatural de Clarimonde, o brilho fosfórico de seus olhos, a marca ardente de sua mão, [...] tudo isso provava claramente a presença do diabo [...].” 11 “[...] correr em sua pele um arrepio de supersticioso terror.”

12 “[...] e se alguém, a essa hora da noite, nos tivesse visto, meu condutor e eu, nos teria tomado por dois espectros montados no pesadelo. Fogos fátuos atravessavam, de quando em quando, o caminho, e os corvos grasnavam lamentavelmente no bosque cerrado, onde brilhavam de modo intermitente olhos fosfóreos de felinos selvagens. [...] os passos de nossas montarias soavam mais ruidosos sobre um piso férreo, e entramos sob uma cúpula que abria sua boca sombria entre duas enormes torres. Uma grande agitação reinava no castelo [...]. Entrevi confusamente imensas arquiteturas, colunas, arcadas, escadas e rampas [...].” 13 “Pareceu-me que haviam suspirado também atrás de mim, e virei-me involuntariamente. Era o eco [de meu suspiro].” 14 “Estranhos pensamentos atravessavam-me a mente; representava-me que ela não estava morta realmente, e que era apenas um artifício que empregara para atrair-me a seu castelo e declarar seu amor. Por um instante, acreditei mesmo ter visto seu pé mexer sob a brancura dos véus, e desarranjarem-se as dobras alinhadas do sudário.”

Um pouco adiante lemos: “Je ne sais si cela était une illusion ou un reflet de la lampe, mais on eût dit que le sang recommençait à circuler sous cette mate pâleur [...].15” (GAUTIER, 1981, p. 134, grifo meu). Em seguida, ao despedir-se da amada com um beijo em seus lábios mortos, é surpreendido não só pela correspondência, como também pelas palavras de Clarimonde que declara seu amor e despede-se com as palavras “até breve!”.

Imediatamente dá-se o que Todorov (1975, p. 118) denomina pandeterminismo, incluindo-o entre os “temas do eu”: trata-se de uma causalidade generalizada, que não admite a existência do acaso e afirma a existência de relações diretas entre todos os níveis ou elementos do mundo, mesmo se esses elos nos escapem. Em “La Morte amoureuse”, o último suspiro de Clarimonde provoca vários efeitos: “Sa tête tomba en arrière, mais elle m’entourait toujours de ses bras comme pour me retenir. Un tourbillon de vent furieux défonça la fênetre et entra dans la chambre ; la dernière feuille de la rose blanche palpita quelque temps comme une aile au bout de la tige, puis elle se détacha et s’envola par la croisée ouverte, emportant avec elle l’âme de Clarimonde. La lampe s’éteignit et je tombai évanoui sur le sein de la belle morte.” (GAUTIER, 1981, p. 135)16.

Quando Romuald desperta, depois de três dias, no quarto do presbitério, pensa, inicialmente, ter sido vítima de uma “ilusão mágica”, mas circunstâncias reais e palpáveis logo destroem essa “suposição” (GAUTIER, 1981, p. 135-6): a ambiguidade e a dúvida são, assim, mantidas pela oscilação entre o sonho e a vigília, entre a vida onírica e a experiência vivida. Na verdade, e como o próprio protagonista afirma, sua natureza passa a ser desdobrada, nela incorporando dois homens completamente diversos: “Tantôt je me croyais un prêtre qui rêvait chaque soir qu’il était gentilhomme, tantôt un gentilhomme qui rêvait qu’il était prêtre.17” (GAUTIER, 1981, p. 143). Romuald não consegue mais distinguir o sonho da vigília, não mais sabe onde começa a realidade e onde termina a ilusão.

O tema do duplo, por sua vez, reforça-se ao longo do texto pelas dualidades sobre a qual repousa a narrativa: dia/noite, transparência/opacidade, vida/morte, real/onírico, padre/senhor.

Em sua versão profana, como um senhor frequentando as altas rodas, Romuald tem sempre Clarimonde a seu lado, bela, branca como uma estátua de mármore. O abade Sérapion é o único a adverti-lo, seja da morte de Clarimonde depois de uma orgia que durara oito dias, seja da estranhas histórias a respeito da mulher, cujos vários amantes teriam terminado seus dias de modo violento; sugere ainda não ser essa a primeira vez que ela morrera e aventa a hipótese de Clarimonde ser uma goule ou vampiresa – ou Belzebu em pessoa.

Ao lado dos espectros, como se viu, tanto o diabo quanto o vampiro incluem-se nos componentes da literatura gótica; e o cenário gótico é retomado no final de “La Morte amoureuse”, quando o abade Sérapion insiste em mostrar ao padre Romuald a verdadeira Clarimonde, no local em que está enterrada: “Les hiboux perchés sur les cyprès, inquiétés par l’éclat de la lanterne, en venaient fouetter lourdement la vitre                                                                                                                          15 “Não sei se era uma ilusão ou um reflexo da lamparina, mas dir-se-ia que o sangue recomeçava a circular sob essa opaca palidez [...].”  16 “Sua cabeça tombou para trás, mas ela continuou me envolvendo em seus braços como para me reter. Um turbilhão de vento violento arrebentou a janela e entrou no quarto; a última pétala da rosa branca palpitou algum tempo, como uma asa, na ponta do ramo, depois se desprendeu e voou pela janela aberta, levando com ela a alma de Clarimonde. A lamparina apagou-se e eu caí desmaiado no peito da bela morta.” 17 “Acreditava-me ora um padre que sonhava a cada noite que era um senhor mundano, ora um senhor que sonhava que era padre.”

avec leurs ailes poussiéreuses, en jetant des gémissements plaintifs; les renards glapissaient dans le lointain, et mille bruits sinistres se dégageaient du silence.”18 (GAUTIER, 1981, p. 149).

A gota de sangue que “brilha como uma rosa” no canto da boca da cortesã parece comprovar as cenas supostamente sonhadas em que, pouco a pouco e com cuidado apaixonado, Clarimonde se nutria do sangue do amado – o que não elimina a ambiguidade já estabelecida durante todo o texto.

De fato, se tanto o gótico quanto o fantástico se fundamentam em duas ordens, a do real e a do sobrenatural, diferenciam-se, essencialmente, pelo modo como o sobrenatural neles se exprime: no gótico, o sobrenatural (ou o horror) é explícito, logo, não provoca dúvidas quanto à veracidade de sua manifestação; o fantástico, ao contrário, caracteriza-se pela incerteza em relação ao acontecimento sobrenatural ou insólito, definindo-se pela ambiguidade gerada pelos elementos que estruturam a narrativa. Angela Carter: o vampiro no realismo mágico

No século XX, esse fantástico tradicional ou clássico metamorfoseia-se e, sem extinguir-se, dá origem a uma nova categoria: o realismo mágico. É justamente a contradição e a recusa recíproca entre as ordens do real e do sobrenatural (BESSIÈRE, 1974, p. 57), aliadas à ambiguidade delas decorrente, o que diferencia a modalidade do fantástico da do realismo mágico, esta última caracterizada pela compatibilidade entre natural e sobrenatural, entre real e irreal, sem criar tensão ou questionamento. Dessa forma, temos duas modalidades literárias distintas, mesmo que aparentadas pela utilização do elemento sobrenatural ou insólito ao lado do real no universo da narrativa.

A princípio compreendido como sendo principalmente, se não exclusivamente, um fenômeno da América Latina, o realismo mágico tem surgido nas últimas três décadas como um movimento artístico de significação internacional; visto que escritores da América Latina, América do Norte, Europa, África, Oriente Médio e Extremo Oriente têm aderido ao movimento literário, a narrativa realista mágica tem se tornado uma forma de ficção proeminente no mundo contemporâneo (MOSES, 2001, p. 109).

Observa-se, assim, que desde as narrativas de Kafka e as dos surrealistas, desde lo real maravilloso de Carpentier e dos textos de Gabriel Garcia Márquez, o realismo mágico não cessou de evoluir, de se modificar e se ampliar, originando tipos diversos dentro da modalidade.

De modo geral, como explica Chiampi (1980), o realismo mágico, que autora denomina realismo maravilhoso, pode se manifestar em duas vertentes principais na obra artística: ou sobrenaturaliza o real, ou naturaliza o irreal.

É justamente a naturalização do irreal que se observa no conto “A senhora da casa do amor” (2000), da escritora inglesa Angela Carter, que utiliza amplamente os componentes da literatura gótica em seus textos. Este conto, publicado originalmente em 1979, inicia-se de tal modo que o irreal mostra-se em completa compatibilidade com a representação do real: “Por fim, os fantasmas tornaram-se tão incômodos que os camponeses abandonaram a aldeia, e ela acabou exclusivamente habitada por habitantes sutis e vingativos que se manifestam por sombras que caem                                                                                                                          18 “As corujas empoleiradas nos ciprestes, inquietas com o brilho da lamparina, vinham bater desajeitadamente no vidro com as asas empoeiradas, lançando gemidos queixosos; as raposas ganiam ao longe, e mil ruídos sinistros desprendiam-se do silêncio.”  

imperceptivelmente oblíquas, demasiadas sombras, mesmo ao meio-dia, sombras que não têm origem no quer que se veja [...]” (CARTER, 200, p. 165). O fato de os fantasmas aparecerem qualificados de “incômodos” retira a conotação aterrorizante desse elemento, imprescindível seja na literatura gótica, seja na fantástica. Embora qualificados de vingativos, não passam de sombras que acabam por perturbar a rotina dos moradores.

Em seguida, outros dados provenientes da literatura gótica são introduzidos, totalmente naturalizados, isto é, sem que se oponham ao real diegético: “Agora todos evitam a aldeia, que fica abaixo do château, onde a bela sonâmbula desgraçadamente perpetua os crimes ancestrais. Com um velho vestido de noiva, a bela rainha dos vampiros está sentada sozinha na casa alta e escura sob o olhar dos retratos de seus atrozes e dementes antepassados [...].” (CARTER, 2000, p. 165-6).

A palavra castelo, destacada pela autora por aparecer em itálico, escrita em francês, remete de imediato às grandes construções medievais próprias do roman noir ou romance gótico. A esse espaço, descrito como uma moradia alta e escura, vem juntar-se o motivo do retrato que se anima, como se dá no romance de Walpole (1994, p. 38); sem conseguir desviar os olhos do retrato que começa a se mover, Manfredo, o tirano de O castelo de Otranto, vê seu antepassado sair da moldura e descer até o chão: “-Estou sonhando? – gritou Manfredo [...] ou todos os demônios se reuniram em legião contra mim? Fale, espectro infernal! [...] O espectro marchou pesada e solenemente até o fundo da galeria e entrou num aposento na ala direita. Manfredo o acompanhava [...] cheio de ansiedade e horror [...].”

No texto de Carter uma galeria de pinturas é também focalizada figurando os ancestrais da solitária vampiresa; as imagens pintadas, no entanto, não são graves e melancólicas como no primeiro romance gótico; ao contrário, “olham lubricamente e fazem esgares.” (2000, p. 182).

O herói jovem, vigoroso e racional, ao chegar à aldeia é convidado a jantar na mansão por uma velha vestida à moda da região, de uma forma que não admitia recusa. Já no território onde se erige o castelo, sente no ar “uma gigantesca e intoxicante onda de pesado perfume de rosas vermelhas [...]. Demasiadas rosas. Demasiadas rosas cresciam em enormes matagais cheios de espinhos, e as próprias flores eram quase demasiado luxuriantes: suas vastas congregações de pétalas aveludadas, de certo modo obscenas pelo excesso [...]. A mansão emergia desse matagal.” (CARTER, 2000, p. 174, grifos meus).

Observa-se que o próprio vocabulário da autora remete ao excesso característico da literatura gótica. Excesso que é ainda transgressão dos limites (BOTTING, 1996) não só do natural, como é o caso das rosas apontadas acima, mas também dos limites estéticos e da ordem social.

O exterior da mansão é percebido pelo herói “à luz sutil e fantasmagórica do pôr-do-sol”, que lhe oferece “a visão sombria do lugar, em parte casa senhorial, em parte nicho fortificado, imenso, desarmônico”, que o faz lembrar “contos de terror em noites de inverno.” (CARTER, 2000, p. 174). Depois de entrar, surpreende-se “ao ver o ruinoso estado do interior da casa: teias de aranha, madeiramento carcomido, estuque caído”; é guiado pela velha “ao longo de inúmeros corredores, por escadas em caracol, através de galerias onde os olhos pintados dos retratos familiares brilhavam brevemente à sua passagem [...]”. (CARTER, 2000, p. 176).

Elementos, na verdade, apontados por Varma (1987) como formadores do framework característico da ficção gótica ao assinalar que o efeito do sobrenatural é construído pelo acúmulo de detalhes sucessivos: cenário desolado, tempestades,

corujas ululando, morcegos, criptas funerárias, charnecas, mosteiros em ruínas e tumbas ao luar.

Aí estão os elementos que definiram a narrativa gótica desde o romance de Walpole: um casarão sombrio, circundado por um jardim selvagem, corredores labirínticos e retratos cujas feições pintadas se movem; não faltam fantasmas, nem esqueletos no ambiente mal iluminado. Até mesmo a donzela desamparada, vítima aqui da maldição familiar, está presente na figura da jovem vampiresa, que “não teria mais de 16, 17 anos, mas com a beleza doentia e exaltada de uma tuberculosa.” (CARTER, 2000, p. 178): “As mãos brancas [...], as unhas [...] mais compridas que as dos mandarins da velha China, cortadas de maneira que formam um bico. Elas e os dentes são lindos e brancos como algodão doce; [...] as garras e os dentes foram afiados durante séculos de cadáveres, ela é o último botão da árvore de venenos que brotou dos quartos de Vlad, o Empalador, que fazia piqueniques com cadáveres nas florestas da Transilvânia.” (CARTER, 2000, p. 167).

Carter resgata em seu conto o vampiro criado pelo escritor irlandês Bram Stoker, em 1897, com o nome de Drácula, a partir do nome Vlad Dracul, príncipe que viveu no século XV na Romênia, conhecido por suas atrocidades. O horror produzido por Stoker em seu livro é um horror próprio da literatura gótica: escritora do século XX Carter teve a possibilidade de inspirar-se em uma ampla tradição.

A ênfase no caráter desmedido dos elementos resgatados pela autora, unida a uma sutil ironia, acaba por auxiliar na naturalização do sobrenatural. Em “A senhora da casa do amor”, a coerência interna do texto remete ao tipo de realismo mágico que Spindler (1993, p. 82) denomina “realismo mágico ontológico”, no qual o sobrenatural é apresentado de um modo realista como se não contradissesse a razão e não são oferecidas explicações para os acontecimentos irreais do texto; a liberdade total e as criativas possibilidades de escrever são exercidas pelo autor, que não está preocupado em convencer o leitor. A palavra “mágico” refere-se, nesse contexto, às ocorrências inexplicáveis, prodigiosas ou insólitas que contradizem as leis do mundo natural e não possuem explicação convincente. O narrador do realismo mágico ontológico não está intrigado, perturbado ou cético em relação ao sobrenatural, como na literatura fantástica; os elementos e eventos sobrenaturais são descritos como se fossem uma parte normal do dia a dia da vida comum.

Assim, o jovem herói “enraizado na mudança e no tempo”, viajando de bicicleta pelos Cárpatos, colide “com a intemporalidade gótica dos vampiros” (CARTER, 2000, p. 172). Desse modo, ele “transpôs a soleira do castelo de Nosferatu e não se arrepiou com a lufada de ar frio, como saído de um túmulo, que emanava do interior escuro e cavernoso”. (CARTER, 2000, p. 175). Ao jantar, acha a comida grosseira, “longe de ser o que esperava da nobreza” (CARTER, 2000, p. 176); quando a anfitriã finalmente aparece, a primeira coisa ele observa é o “vestido fora de moda” usado pela jovem, que o faz pensar em um “espantalho ataviado”. (CARTER, 2000, p. 177 e 178).

“A falta de imaginação confere ao herói o heroísmo” (CARTER, 2000, p. 183), afirma o narrador a certa altura; com efeito, a história clássica é invertida, uma vez que o ritual é alterado: a vampiresa apaixona-se e a pretensa vítima sai incólume na manhã seguinte, sob o sol, de bicicleta. Considerações finais

No Avant-propos de seu livro Le roman ‘gothique’ anglais (publicado pela primeira vez em formato de tese em 1968), Maurice Lévy (1995, p. XXVII e XXXI)

mostra bem a importância da literatura gótica, não apenas como um dos componentes para a formação do fantástico literário, mas também por levar a uma melhor compreensão dos grandes textos do Romantismo. Se o crítico concorda em assinalar o início do romance gótico por ocasião da publicação de O castelo de Otranto, pergunta-se onde seu término deveria ser definido.

Ao refletir sobre essa questão, podemos conjeturar que o romance gótico como modalidade literária específica teve uma existência intermitente depois de sua retomada no início do século XIX; em 1851, Nathaniel Hawtorne publica The house of the seven gables; no final do século, em 1886, vem a público The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de R. L. Stevenson; em 1897 aparece o livro de Bram Stoker, Drácula; e no início do século XX, temos as obras de H. P. Lovecraft, como The case of Charles Dexter Ward, de 1927. Se considerarmos a presença de componentes próprios do romance gótico em obras literárias consagradas, podemos apontar que o gótico nunca deixou de existir desde o seu início na literatura da segunda metade do século XVIII inglês.

Dos primeiros contos fantásticos que utilizaram noções próprias da literatura gótica, até o emprego que delas ainda fazem os autores contemporâneos, seja no fantástico tradicional, seja no realismo mágico, um longo e fecundo caminho foi percorrido. Basta lembrarmos que da publicação da narrativa de Théophile Gautier à de Angela Carter conta-se um século e meio de permanência do gótico. Referências BESSIÈRE, I. Le récit fantastique. Paris: Larousse, 1974. BOTTING, Fred. Gothic. London: Routledge, 1996. CARTER, Ângela. A senhora da casa do amor. O quarto do Barba Azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. CASTEX, Pierre-Georges. Le Conte fantastique en France de Nodier à Maupassant. Paris: Corti, 1962. CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton C. Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: Forma e ideologia no Romance Hispano-Americano. São Paulo : Perspectivas, 1980. (Debates). GAUTIER, Théophile. La morte amoureuse. In: ___. Récits fantastiques. Paris: Flammarion, p. 115-150, 1981. GLINOER, Anthony. La Littérature frénétique. Paris: PUF, 2009. LÉVY, Maurice. Le roman ‘gothique’ anglais. 1764-1824. Paris: Albin Michel, 1995. LOVECRAFT, Howard Phillips. Épouvante et surnaturel en littérature. Traduit de l’anglais par Bernard, DA COSTA. Paris: Christian Bourgois, 1969. MOSES, Michael Valdez. Magical Realism at world’s end. Literary Imagination: The Revew of the Association of Literary Scholars and Critics, Durham, v. 3-I, p. 105-133, 2001. NODIER, Charles. Infernaliana. [S.l.]: In Libro Veritas, 2008. Disponível em: <http://www.inlibroveritas.net/lire/oeuvre17776.html> Acesso em: 6 nov. 2010. PAES, José Paulo. Introdução. In: ___. Os buracos da máscara. Antologia de contos fantásticos. São Paulo, Brasiliense, p. 7-17, 1985. SPINDLER, William. Magic realism. Fórum for modern language studies, Oxford, n. 39, p. 75-85, 1993. TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.

VARMA, Devendra P. The gothic flame: being a history of the gothic novel in England: its origins, efflorescence, disintegration, and residuary infleuences. London: Scarecrow, 1987. WALPOLE, Horace. O castelo de Otranto. Trad. Alberto Alexandre Martins. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

Poesia absurda - Larissa Drigo Agostinho (Universidade de Paris IV-Sorbonne)

RESUMO: Apresentamos neste trabalho uma leitura do poema “O demônio da analogia” de S. Mallarmé procurando encontrar as possíveis relações entre o poema e o que Todorov definiu como gênero fantástico. Nosso objetivo é mostrar de que maneira o fantástico aparece no poema mallarmeano como elemento fundamental da própria literatura.

Palavras-chave: Fantástico; Analogia; Acaso; Linguagem. Introdução

“Le démon de l’analogie” está presente na seção “Anecdotes ou poèmes” de

Divagations único livro que Mallarmé publicou em vida. Ele está muito distante do Livro com o qual o poeta sonhava, não é arquitetado ou premeditado, apenas uma antologia de textos publicados em jornais e mais alguns poemas em prosa, como este que analisaremos, também muito marcados pela experiência da escrita jornalística, que para Mallarmé significava um flerte com a vida cotidiana e ordinária. Pode, portanto parecer contraditório classificar este poema como pertencendo ao gênero fantástico, ainda mais se considerarmos que o próprio Todorov excluía a poesia deste gênero. Mas este poema não é um poema strito sensu, ele é um poema em prosa, e obedece às grandes características do gênero tornado célebre pela pluma de Baudelaire, como a brevidade, a autonomia e, é claro, a tipografia própria da prosa, além da temática “prosaica”.

A definição e as características limitadas e restritas do gênero fantástico podem talvez explicar, o fato de que, a crítica mallarmeana, nunca tenha se questionado sobre a presença do “fantástico” na obra do poeta. O que pode parecer estranho, pois Mallarmé pertencia a um tempo em que o fantástico era onipresente na literatura, tanto como gênero, como quanto tema. Basta lembrarmo-nos destes versos de Baudelaire (1985, p. 441) onde se lê todo um programa e um projeto literário romântico e simbolista: “Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,/ Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe ?/ Au fond de l’inconnu pour trouver du nouveau !”.

Nesses versos temos a indicação do caminho pelo qual os jovens poetas deveriam navegar: sempre, seja na terra ou no céu, em direção ao “desconhecido”. É justamente deste ponto que Mallarmé começa sua poesia, “là où Baudelaire avait termine”. Por esta razão o fantástico não deveria se restringir a um gênero, mas a um programa literário, a um projeto de escrita, e é na poesia de Mallarmé, este autor que timidamente flertou com o gênero, que podemos perceber até que ponto, o fantástico, ou aqui diríamos, o insólito, é um elemento constitutivo da literatura, do que poderíamos chamar de “literariedade”.

Veremos que neste poema Mallarmé procura demonstrar que o fantástico é o elemento fundamental a partir do qual a poesia deve ser pensada. Pois afinal de contas, como o próprio Todorov afirma aquilo do que trata o fantástico, não é qualitativamente diferente do que trata a literatura em geral, trata-se apenas de uma questão de intensidade.

Segundo Assad (1987, p. 22):

“O demônio da analogia” encena um drama desdobrado: por um lado o trabalho do logos que busca fixar e dominar a analogia, numa luta de vida ou morte para poder preservar seu sistema fechado e universal de saber; por outro lado, a usurpação do logos pela analogia que o percorre do começo ao fim, o transgrede e se insinua de maneira ameaçadora. 19

Desta maneira “O demônio da analogia” se configuraria a partir do conflito

entre a razão e a analogia, mas na verdade como gostaríamos de mostrar este conflito é entre a razão, a faculdade poética do poeta e o acaso que é o grande responsável pela produção desta analogia demoníaca. A interpretação da autora poderia levar a especulações em torno do conflito entre a razão e a mística de um Swedenborg, por exemplo, que poderia ser responsável pelo “tom”, pelo caráter “fantástico” do poema. Mas, na verdade, todo mistério que esta analogia carrega, o elemento fantástico do conto diz respeito exclusivamente à linguagem. Veremos, portanto, ao longo da nossa leitura do poema, como se coloca e se desenvolve este conflito entre acaso e razão, resultante da própria configuração da linguagem.

O demônio nas letras Tudo começa com uma pergunta, aparentemente paradoxal, porque colocada

na forma de um hipérbato: “Palavras desconhecidas cantaram sobre seus lábios, farrapos malditos de uma frase absurda” (MALLARMÉ, 2010, p. 22). Ou seja, uma frase absurda, sem significação, poderia conter uma “fala desconhecida”, uma “revelação”? Esta primeira frase aparentemente paradoxal poderia ser interpretada como um hipérbato, uma questão, portanto, invertida que diz: “uma frase “absurda”, poderia cantar uma fala desconhecida”? Algo de novo, de desconhecido e imprevisível pode se enunciar como absurdo? Esta questão parece ecoar as críticas que Mallarmé receberá alguns anos mais tarde, ao ser acusado de místico ou de louco.

Mas a sintaxe da frase mallarmeana é ao mesmo tempo mais complexa que um hipérbato e mais sutil. Isso porque não se trata de uma frase absurda cantando falas desconhecidas, mas de falas desconhecidas que cantariam farrapos de uma frase absurda, ou seja, trata-se de um questionamento sobre a possibilidade de o desconhecido evocar algo da ordem do absurdo e não o contrário. E por resta razão estamos diante de uma analogia demoníaca, já que a busca pelo desconhecido pode facilmente se deparar com absurdo. Assim uma analogia demoníaca reúne termos dissonantes, contrários ou contraditórios, ela se aparenta com algo que, num primeiro olhar, pode parecer absurdo.

A pergunta aqui é, portanto sobre a natureza da relação entre o desconhecido e o absurdo. Antes de nos debruçarmos sobre a frase que provoca este questionamento, pensemos sobre o significado de cada um destes termos e sobre o sentido e a direção na qual Mallarmé procura nos guiar.

                                                                                                                         19 Todas as traduções da autora, salvo às referências ao livro Divagações de Mallarmé traduzido por Fernando Scheibe.

Absurdo é como nomeamos aquilo que nossa razão não pode compreender, algo que beira o impossível, pois não pode ou não deveria existir. Ele é irracional e inteligível, insensato, resiste à interpretação, não faz sentido. O desconhecido se aproxima do absurdo na medida em que ele é obscuro, por ser inexplorado, ignorado ou escondido, o desconhecido também parece desafiar a nossa razão. Desta forma, o desconhecido, assim como o que é absurdo, se aproxima do que é próprio do gênero fantástico. Como no gênero fantástico, estamos aqui diante de algo que escapa de toda e qualquer explicação racional, melhor seria dizer, pois ele ainda não se confunde com o maravilhoso, que o fantástico coloca em questão toda e qualquer explicação racional.

A frase absurda à qual o poeta se refere é “a penúltima está morta”, ele conta que esta frase foi pronunciada num tom descendente acompanhada de um instrumento. Na verdade, trata-se de uma sensação, da sensação de que uma asa parecia tocar um instrumento de cordas.

Saí do meu apartamento com a sensação própria de uma asa deslizando sobre as cordas de um instrumento, arrastada e leve, que uma voz substituiu pronunciando as palavras num tom descendente: “A penúltima está morta”, de maneira que A Penúltima Terminou o verso e Está morta se destacou da suspensão fatídica mais inutilmente no vazio de significação. (MALLARMÉ, 2010, p. 23)

O termo “asa” é muito frequente na poesia mallarmeana, ele designa

metonimicamente um voo em direção aos céus, em direção ao “azur”, ao ideal, ele figura o movimento do verso em direção à ideia. Mas o caminho em direção ao ideal não se faz sem tropeços e, neste poema, naturalmente prosaico, cujo tema é uma analogia demoníaca, nos vemos atados a terra, lugar de um anjo caído, espaço de um anjo sem asas. Se o tom da frase parece muito elevado, ele é, em contrapartida, ironizado pelo caráter prosaico da situação, “je sortis de mon appartement” (“sai do meu apartamento”), “je fis des pas dans la rue” (“dei alguns passos na rua”).

Antes de continuarmos a leitura do poema, talvez possamos estabelecer uma relação, um contraste que pode vir a ser esclarecedor, entre o espaço deste poema e o de um conto, seu contemporâneo, Igitur. Este conto, o poeta anuncia no prefácio, é destinado à inteligência do leitor, percurso inteiramente intelectual, que configura uma luta entre a razão e o acaso. Igitur tem como cenário um interior, não se trata de um poeta caminhando pela rua, mas de um personagem que se encontra em seu quarto, no espaço individual, por excelência. Mas a ação de Igitur consiste justamente em deixar o seu quarto, para se reunir e completar o ato que o uniria a sua comunidade, a sua raça. Para isso ele deve descer “as escadas do espírito humano, ir ao fundo das coisas, em “absoluto” que ele é”. (MALLARMÉ, 1998, p. 474).

Lembremos que a frase que atormenta o poeta em « Le démon de l’analogie » foi justamente pronunciada num tom “descendente”, ela indica de alguma maneira

esta descida aos infernos que parece ser um ato, para Mallarmé, constitutivo da poesia. No poema, a descida aos infernos seria realizada pela sonoridade da frase, pelo tom no qual ela é pronunciada, mas também é representado espacialmente, “visualmente”. Trata-se aqui de anunciar que o ato poeta é sempre um mergulho nas profundezas do eu e da linguagem.

Este momento é também um momento privilegiado do poema, pois se trata da invasão da poesia no espaço da prosa, ou seja, ao introduzir versos no seu poema em prosa, Mallarmé nos coloca diante da possibilidade de que o verso possa “corromper” a linearidade da prosa. Aqui o verso é transgressão da prosa, ele interrompe a caminhada do poeta. Além de transgredir a linearidade da prosa, o verso insere espaços em branco, demasiado longos para a espacialização prosaica. A aparição da penúltima é assim, no poema, visual, ela é mais do que um simples som, ela possui um caráter concreto. Essa concretude é representada visualmente. A penúltima é por isso, uma aparição, como os fantasmas dos contos fantásticos da época, mas mais que um fantasma, ela é também uma fantasia, um desejo de poeta.

O que confere à penúltima seu caráter “fantástico” é a sonoridade da frase, mas, além disso, essa “sensação” que o poeta descreve e que é musical. O encontro do tom da frase e da “asa”, que parece deslizar sobre as cordas de um instrumento, e que mergulha a frase num vazio de significação.

A música quando compõe a poesia é, para Mallarmé, responsável pelo mistério das letras, pelo seu caráter obscuro, ela cria uma suspensão da significação. Para compreendermos o papel que a música desempenha na poesia mallarmeana podemos examinar o texto “Le mystère dans les Lettres” onde o poeta responde à acusação de obscurantismo, feita pelo então jovem desconhecido Marcel Proust, e endereçada a ele e a outros poetas de sua geração. Mallarmé explica que o caráter obscuro de sua poesia, visa na verdade, dar voz a um mistério que reside no fundo de todos nós, e a música seria o modelo ideal de arte para que uma outra noção de inteligibilidade possa ser alcançada.

Todo texto é para o poeta reflexo da obscuridade que reside no fundo de todos nós. A inteligibilidade de um texto só pode ser medida, portanto, a partir de seu caráter de verdade, de sua capacidade de dar voz ao que existe de misterioso no mundo e na natureza humana. Como afirma o poeta, “Deve haver alguma coisa de oculto no fundo de todos, creio decididamente em alguma coisa de absconso, significante fechado e escondido, que habita o comum” (MALLARMÉ, 2010, p. 186). E eis o que a literatura se propõe a tornar visível, o mistério que carregamos todos, dentro de nós, por esta razão, ela não pode ser clara, pois seu objeto é o próprio mistério.

Desta forma, escrever não significa de maneira alguma retirar o véu de mistério que encobre todas as coisas e nos impede de ver claramente, muito pelo contrário, o ato de escrever se faz preto no branco, contrariamente ao vocabulário dos astros, o poeta não pode iluminar, já que seu ato é obscuro ele se dá a partir do momento em que o poeta lança a tinta negra sob o papel, virgem e branco: “pois, tão logo essa massa lançada a algum traço que é uma realidade, existindo, por exemplo, sobre uma folha de papel, em tal escrito – não em si – isso é que é obscuro: ela se agita, furacão ciumento de atribuir às trevas ao que quer que seja, profundamente, flagrantemente.” (MALLARMÉ, 2010, p. 186).

Diante deste mistério a poesia só pode ter sentido e reivindicar existência quando capaz de transmitir e evocar algo da ordem da Ideia e isto ocorre, segundo o poeta, quando ela se une a Música. Assim a poesia se realiza abstraindo os elementos concretos materiais do mundo que nos rodeia, e procurando em sua essência, o fundo

de mistério e de verdade, irrevogável e inefável, que os constitui. A poesia se torna assim música, esta se une as letras, para enunciar a Ideia.

Os monumentos, o mar, a face humana, em sua plenitude, nativos, conservando uma virtude de outro modo atraente que não os velará uma descrição, evocação digam, alusão sei, sugestão: essa terminologia um pouco de acaso atesta a tendência, uma muito decisiva, talvez, que tenha sofrido a arte literária, ela a limita e a isenta. Seu sortilégio, dela, se não é liberar, fora de um punhado de poeira ou realidade sem enclausurá-lo, no livro, mesmo como texto, a dispersão volátil seja o espírito, que não tem o que fazer de nada além da musicalidade de tudo. (MALLARMÉ, 2010, p. 164).

Se o verso está diretamente relacionado à música, isto não se deve

simplesmente ao seu ritmo ou cadência. A música aqui é muito mais do que a sonoridade das palavras, ela é um modelo de arte, uma ideia de forma, a única capaz de sugerir, sem narrar ou descrever. Ela é o sentido do mistério, uma sugestão que evocando as coisas é capaz de desvelar a ideia que as define. “Os monumentos”, “o mar”, o “rosto humano” e tudo de que pode tratar a poesia, encontram no Livro, através da música, sua “dispersão volátil”, sua dissolução formal, sua ideia. No Livro tudo aparece tal qual. A música é, portanto a forma mesma das coisas, seu ser, a forma que elas deveriam ter, para se tornarem Livro, ideia.

Desta forma não é o texto literário, o poema ou seu sentido que são obscuros, mas o fato de que algo como a poesia, possa dentro destas condições, existir. O grande mistério da literatura não reside, portanto no próprio texto e nas verdades que ele seria capaz de transmitir, mas no fato de que ela seja possível, o mistério em questão, a grande obscuridade que um texto literário nos coloca, reside, portanto, no mistério da criação poética. Eis a questão sobre a qual os poetas deveriam refletir, segundo Mallarmé.

O poema continua, colocando em questão a natureza da frase maldita, que desvela neste momento, as razões pelas quais ela é capaz de atormentar tanto o poeta:

Eu não descontinuava de tentar um retorno a pensamentos de predileção, alegando, para me acalmar, que, certamente, penúltima é o termo do léxico que significa a que vem antes da última sílaba dos vocábulos, e, sua aparição, o resto mal abjurado de um labor de linguística pelo qual quotidianamente soluça por se interromper minha nobre faculdade poética: a sonoridade mesma e o ar de mentira assumido pela pressa da fácil afirmação eram uma causa de tormento. (MALLARMÉ, 2010, p. 24)

Estamos diante do grande conflito do poema. O poeta vê sua “faculdade

poética” “quotidianamente” interrompida por esta espécie de “aparição”, “o resto mal abjurado de um labor de linguística pelo qual quotidianamente soluça por se interromper minha nobre faculdade poética” (MALLARMÉ, 2010, p. 24). Se a “nobre faculdade poética” do narrador é interrompida isto se deve ao fato de que esta frase é demoníaca porque é fruto do acaso, contraria o trabalho do poeta, e o interrompe, atrapalhando-o e mais do que isso, atormentando-o. A frase é assim demoníaca, porque é a negação do trabalho poético, capaz de fazer com que o poeta se questione

sobre sua relevância e sobre seu poder criativo. A frase é imperfeita, diabolicamente invertida, “fácil”, e por isso, causa de tormento. Procurando se livrar desta aparição desconfortável, o poeta prossegue, repetindo a frase maldita, deixando-a errar sob seus lábios, na esperança de que ela desapareça, esperando que a monotonia da repetição apague a significação e dissolva a música das palavras. É justamente neste momento o narrador se depara com uma visão que concretiza esta frase que o atormenta: “(…) quando, pavor! – de uma magia facilmente dedutível e nervosa –, eu senti que tinha minha mão refletida por uma vidraça de butique ali fazendo o gesto de uma carícia que desce sobre alguma coisa, a voz mesma (a primeira, que indubitavelmente tinha sido a única)” (MALLARMÉ, 2010, p. 24).

A frase aparece ao poeta, como vimos, substituindo e acompanhada por uma sensação eminentemente musical, da qual o poeta tenta em seguida, diante de seu tormento, se apropriar, para poder compreendê-la. No entanto, a sucessiva repetição da frase provoca a perda de seu sentido, é o discurso lógico que se sabe como o túmulo da frase maldita. Diante, portanto da inutilidade de toda tentativa de compreensão, o poeta a deixa errar na sua boca, até que ela finalmente desapareça, morra. Mas, ela insiste em retornar, dessa vez transfigurada numa imagem, quase uma alegoria, se não se tratasse de um encontro prosaico e casual.

O poeta se vê, neste momento, diante de uma vidraça através da qual suas mãos parecem acariciar a voz, desta vez não a penúltima, mas a primeira e única voz. Este encontro, num primeiro momento abstrato entre a voz e as mãos do poeta se concretizará quando através da vidraça desta loja de antiguidades, o poeta de depara com vários “instrumentos encontram pendurados nas paredes e, no chão, palmas amarelas e as asas fugidas nas sombras, de pássaros antigos.” (MALLARMÉ, 2010, p. 24).

É a partir deste momento que podemos traçar a analogia do poema. Uma analogia é composta de quatro termos divididos em dois pares, o termo A esta em relação com B assim como C está para D. Neste caso, a analogia é composta, por um lado, pela relação entre os instrumentos musicais e a música propriamente dita (sendo que a música, como veremos adiante, vai muito além da sonoridade do verso e é para o poeta a forma mesma do mistério que compõe o mundo e se encontra no fundo de cada um de nós); e por outro lado, entre os pássaros caídos no chão, ou a asa que desliza pelo instrumento musical, e a significação, pois o voo dos pássaros indica o movimento de ascensão do sentido, de passagem da palavra material e concreta em direção a significação. O caráter demoníaco desta analogia está no encontro casual entre o poeta, que foi interpelado por essa frase enigmática “a penúltima esta morta”, que se depara com uma encarnação material desta frase através de uma vidraça. É demoníaco que uma frase se materialize assim como é demoníaco que um som encontre numa palavra sua significação espelhada.

Os instrumentos musicais e os pássaros antigos no chão o remetem à frase e ao seu movimento descendente, ao caráter nulo “nul” presente na palavra “pénultième” (penúltima). Se o voo dos pássaros em direção ao céu simboliza o percurso da significação, a analogia em questão é também demoníaca, pois seu tom é descendente, os pássaros se encontram no chão, como demônios ou anjos caídos. Por isso ela encerra um paradoxo, pois se de um lado som e sentido parecem se unir, este encontro é puro acaso, ou mais do que isso, ele não realiza nada de fato, possui uma dimensão eminentemente negativa (os pássaros estão mortos como a penúltima está morta). Esse encontro parece mais um presságio, a indicação de uma catástrofe, de um fim muito próximo.

A frase e o encontro do poeta diante desta loja são definidos no poema como uma “irrecusável intervenção do sobrenatural”, pois ela demonstra a natureza mesma da poesia, mágica, encontro que produz o encantamento musical das palavras, encontro entre sentido e música no interior da linguagem. A música guia o sentido, carrega-o, mas muitas vezes este encontro pode ter um caráter negativo, pode parecer não belo, mas aterrador. E no caso do poema, o som “nul”, de penultième, acompanhado pelo tom descendente no qual a frase é pronunciada, indica um fim muito próximo, já que a “penúltima está morta”. Tudo se passa como se um demônio impedisse esse movimento poético, esse voo das palavras em direção ao céu azul e límpido das ideias. Mas que demônio é esse capaz de aterrorizar a tal ponto um poeta?

Ora, a poesia se constrói a partir da união entre som e sentido, essa união não é fruto do acaso, mas do trabalho do poeta, esse trabalho é um encantamento das palavras, que procura sons capazes de fazer ressoar e ecoar o sentido, acentuando-o, elevando-o. Mas a linguagem não se estrutura a partir dessa relação, muito pelo contrário, como Saussure bem mostrou a união entre o significante, a imagem acústica do som e o significado que compõe o signo linguístico, é arbitrária, imotivada, não há razão nenhuma capaz de explicar essa relação.

Assim a frase que parece invadir a mente do poeta e se torna analogia a parte da sua visão, do encontro entre a frase e sua realização concreta que faz dela um acontecimento, de natureza evidentemente poética, é na verdade um acontecimento sobre o qual podemos duvidar, pois ele parece de natureza “sobrenatural”. Ele contraria as leis mesmas que constituem a linguagem, e por isso a analogia é demoníaca, longe de ser fruto de um trabalho e esforço intelectual ela “aparece”, é fruto de um mero acaso. Por essa razão o poema termina com o poeta que aterrorizado diante da loja de antiguidades, foge, “bizarro, persona condenada a portar provavelmente o luto da inexplicável Penúltima” (MALLARMÉ, 2003, p. 88). O poeta é esta pessoa condenada e levar nele próprio o luto de uma frase que pode paradoxalmente ser poética e casual, motivada e imotivada, arbitrária, porém plena de sentido e razão.

Desta forma, a natureza mesma da linguagem parece colocar o poeta diante de um paradoxo aparentemente irrevogável. Todo seu trabalho e esforço procuram motivar uma linguagem que carrega consigo mesma, no seu interior, na sua estrutura, o luto pela ausência do que ela tenta em vão tornar presente. A poesia tem algo de demoníaco, pois ela parece ser capaz de tornar presente algo que na verdade, já não é mais, que como a penúltima está morta. Além disso, essa capacidade da linguagem de avocar e tornar presente o que não é, é demoníaco, pois não é fruto de trabalho poético e sim de um acaso, de um momento excepcional em que o sentido, o som e a palavra se encontram em total harmonia, traindo a estrutura mesma da linguagem. Usurpando o lugar do poeta no interior deste processo de transformação que é a essência do seu trabalho criativo.

Assim surge uma outra noção do que deveria ser o trabalho de criação do poeta, sabendo que a linguagem é irremediavelmente arbitrária e que mesmo o acaso é capaz de produzir uma perfeita coincidência “poética” entre som e sentido, o poeta, ao escrever, não deve simplesmente dissolver este paradoxo constitutivo da linguagem que a faz arbitrária. A poesia não deve criar de maneira demoníaca, tentando encantar as palavras musicalmente, restabelecendo uma motivação significativa entre som e significado, pois isto seria criar apenas uma ilusão, transformando a diferença em falsa semelhança, a poesia deve, portanto, respeitar e preservar a linguagem tal qual ela é, para desta maneira, desvelar a constituição e o funcionamento da linguagem, sua ausência de motivação, de razão, seu caráter

contingente. A poesia procurar tecer redes de relações, analogias, que desvelem através dos próprios mecanismos poéticos a diferença que forma e informa a linguagem, construindo uma teia de significações e relações entre som, sentido, e imagem e que coloque esta diferença estrutural da linguagem em evidência. Ou seja, a poesia deve criar tendo como base o caráter arbitrário do signo, que ao invés de pretender criar coisas, torna presentes as coisas por meio da linguagem, ele é somente capaz de apontar o abismo que separa as palavras das coisas. Uma poesia que carrega nela própria o luto provocado pela morte da penúltima que abre a poesia para o espaço sem nome da linguagem.

Considerações finais Esta frase maldita figura a irrupção do inexplicável no mundo real, o

fantástico faz aqui sua aparição, ele é a intervenção do mistério no mundo poético, o verso que parece abalar os alicerces da prosa e do mundo prosaico, ordinário, inserindo nele algo de extraordinário. Mas aqui, aquilo que escapa ao ordinário é o verso, mas não aquele que o poeta produziu trabalhando, mas sim um verso fruto do acaso.

É sabido que segundo Todorov, o fantástico, “é a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural”. (TODOROV, 1970, p. 32) Esta definição reforça a importância da dúvida na definição do gênero fantástico, que se distingue por esta razão do maravilhoso. No poema mallarmeano estamos, portanto, diante de um narrador, que hesita entre o caráter sobrenatural ou artificial da própria poesia. Pois o fantástico aparece num primeiro momento como uma intervenção “sobrenatural” que o poeta procura explicar recorrendo a sua razão. Ele é uma interrupção na sua faculdade poética, uma interrupção do seu trabalho poético, uma intervenção do acaso.

Este é o objetivo de Mallarmé ao introduzir o acaso em sua poesia, acaso que não é simplesmente o irracional e o absurdo, ou o outro da razão, impossível e que deveria ser abolido pelo trabalho poético, o acaso é um momento que faz a razão vacilar, e que a obriga a se reorientar, redefinindo suas posições.

Sendo assim, voltemos à afirmação de Todorov que deu início à desta discussão, segundo a qual a poesia não pertenceria ao gênero fantástico. Segundo o autor a ficção e o sentido literal são elementos necessários do fantástico, pois a distinção entre poesia e ficção se baseia na natureza do discurso, que pode ou não ser representativo. A ficção é representativa, enquanto que a poesia se recusa a fazer este papel. E por esta razão a poesia não tornaria possível a aparição do fantástico. “Se, lendo um texto, recursamos toda representação e consideramos cada frase como uma pura combinação semântica, o fantástico não poderá aparecer.” (TODOROV, 1970, p. 65).

O argumento de Todorov não leva em conta, poemas como este de Mallarmé, que procuram dissolver os limites entre prosa e poesia, e questionar a natureza desta, justamente a partir do caráter “sobrenatural” que esta adquire ao se negar a representar. Para Todorov o fantástico se define a partir do que é “extraliterário”, para pensá-lo nós precisamos sempre recorrer as leis naturais e racionais que conhecemos. Como poderemos compreender nestas circunstâncias, o fenômeno, “sobrenatural” que é a poesia? Para isso, partiremos mais uma vez de Todorov, que na afirmação abaixo, define a relação entre o fantástico e a linguagem poética.

O sobrenatural nasce da linguagem, ele é, ao mesmo tempo, a consequência e a prova: os vampiros e demônios só existem através das palavras, e só a linguagem permite que possamos conceber o que está sempre ausente: o sobrenatural. Este se torna, portanto um símbolo da linguagem, da mesma maneira que as figuras retóricas, e a figura é, como vimos, a forma mais pura de literariedade. (TODOROV, 1970, p. 87)

Para Mallarmé o caráter fantástico da linguagem reside no seu conteúdo de

verdade, não na sua capacidade de evocar ou criar um universo inexistente tornando-o presente através da linguagem ou mesmo na sua capacidade de narrar e descrever o real, mas sim no fato de que ela é fruto do acaso, contrário ao trabalho poético, e que no entanto é capaz de abrir espaço na poesia para o desconhecido. “Sobrenatural” não é a natureza da linguagem poética, que quando trabalhada e motivada é capaz de criar o inexistente, mas sim a própria natureza da linguagem, arbitrária e contingente, fruto do puro acaso, que contrariando todas as leis da criação poética é capaz de nos colocar diante de algo verdadeiro.

Mallarmé inverte, portanto, radicalmente esta posição de Todorov. O fantástico está longe de ser o símbolo da linguagem poética, ele é o espelho do caráter contingente e arbitrário da linguagem, não aquele capaz de tornar presente uma ausência mais de nos indicar, sem cessar, esta ausência. Assim a poesia não é simplesmente um trabalho de encantamento da linguagem. Para que de fato, ela nos coloque diante do desconhecido, do novo, o poeta precisa criar com o acaso e a partir do acaso, respeitando a natureza contingente da linguagem.

Esta é a grande questão que o fantástico nos coloca, assim como esta é a grande razão pela qual Mallarmé insere o acaso em sua poesia, trata-se de nos colocar diante de uma experiência inesperada que seja capaz de transformar os horizontes, limites e fronteiras de nossas vidas, da nossa linguagem. Assim, retornemos a questão que abre o poema. Pode o desconhecido se manifestar através do absurdo, que relação é esta entre desconhecido e absurdo? Devemos classificar o desconhecido como absurdo, impossível, como aquilo que não pode ser ou que não deveria existir? Ou, porque atribuir ao “sobrenatural” àquilo que escapa à nossa razão?

Identificar o desconhecido com o absurdo tem um preço muito caro, a limitação da nossa experiência que se fecharia para as possibilidades abertas pelo que é novo. Assim carregar o luto pela morte da penúltima, longe de significar uma experiência melancólica, é na verdade, uma ironização do desejo de completo domínio do poema, do sistema formal e da ideia da arte como produto da racionalização. O acaso demonstra que a própria linguagem tem uma natureza contingente contra a qual um poeta jamais poderia lutar. Isto é que seria absurdo. Assim o acaso nos coloca diante do desconhecido, nos abre para o novo, e, portanto, é capaz de alargar os limites de nossa experiência.

Referências ASSAD, Maria L. La fiction et la mort dans l’œuvre de Stéphane Mallarmé. Paris : Lang, 1987. BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du mal. Paris : Gallimard, 1985. TODOROV, Tzvetan. Le fantastique musical. Paris: Seuil 1970. MALLARME, S. Œuvres complètes I, II. Paris : Gallimard, 1998, 2003. _____________ Divagações. Trad.: Fernando Scheibe. Florianópolis: Editora UFSC, 2010.

O Fantástico mandarilhoso - Análise do conto O mandarim de Eça de Queirós - Maria de Lourdes da Conceição Cunha (UPM)

RESUMO: Todorov analisa o fantástico na literatura com o propósito de estabelecer determinado padrão que possibilite a avaliação do que é, ou não, fantástico. Segundo ele, “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2004, p. 31), fazendo o leitor duvidar da veracidade do fato, distante de uma explicação lógica. O Mandarim de Eça de Queirós preenche as referidas condições: o mundo de Teodoro, que gira em torno de uma Lisboa do século XIX, repleta de relações sociais norteadas por algum tipo de interesse, recebe a visita de um ser sobrenatural, provável Diabo, cuja presença faz o leitor hesitar entre o mundo real e o irreal, uma vez que, pouco antes de receber tal visita, Teodoro entretinha-se com a leitura de uma obra ficcional na qual justamente se narrava uma aventura similar à que o narrador vivenciará. Coincidência a ser questionada pelo leitor e provavelmente recusada a “farsa”. Desse modo, a narrativa queirosiana responderia aos princípios de Todorov sobre o fantástico, visto que, o fantástico prende-se, principalmente, na hesitação experimentada pelo leitor e pela personagem frente ao acontecimento que rompe com o padrão do real, isto é, a interferência de um fato não explicado pela razão, mas que causa um desequilíbrio na ordem natural dos fatos narrados. Palavras-chave: literatura; fantástico; Eça de Queirós

Linhas de Sono No vidro da janela, duas sombras se refletem.

Um homem chega trazendo o corpo do Sr. Boccaccio Snore. Bate à porta que se abre lentamente.

Atrás da porta a cruz na mão de Snore espanta o visitante que é envolvido pela escuridão. Agora, o visitante só vê a luz quando Snore ressona abrindo amplamente sua boca.

(MLCC) 1 - FANTÁSTICO OU MARAVILHOSO O Mandarim, narrativa composta em um mês por Eça de Queirós e publicada

em 11 folhetins, no Diário de Portugal (1 a 18 Julho) em 1880, apresenta Teodoro, bacharel e amanuense do Ministério do Reino, como um narrador, residente em Lisboa, na pensão de D. Augusta, e que levava uma vida monótona e medíocre, desejoso, no entanto, de uma ventura amorosa e de um excelente jantar num bom hotel.

Personagem extraída da realidade cotidiana portuguesa, Teodoro, que não acredita no Diabo nem em Deus, mas é supersticioso e reza a N. Sr.ª das Dores, encontra, numa Feira da Ladra, um livro com a lenda do Mandarim, segundo a qual um simples toque de campainha, a uma certa hora, mataria o Mandarim e sua fortuna seria atribuída ao seu assassino.

Em meio ao impacto que a história provocara em Teodoro, uma sequência de alucinações o perturba até que, repentinamente, depara-se com uma campainha e ouve uma metálica voz sugerindo a ele que também tocasse o objeto. Era o Diabo, que, valendo-se de uma grande retórica infernal, seduz Teodoro com a possibilidade de conquista de uma grande fortuna de posse de um Mandarim, Ti-Chin-Fu.

Depois de muitas considerações sobre a possibilidade de enriquecer apenas com um toque em uma campainha, Teodoro decide por matar o Mandarim e começa,

então, uma vida de luxúria e dissipação. No entanto, aborrece-se rapidamente, surgindo, também, o sentimento de culpa estimulado pela presença constante do fantasma do bojudo Mandarim empinando um papagaio.

Atormentado pela presença do espectro, Teodoro, depois de viajar pela Europa e parte do Oriente, decide ir para a China, a fim de recompensar a deserdada família do falecido Mandarim, porém nada consegue e, envolvido num ambiente sobrenatural, começa a sentir saudade de si mesmo.

Teodoro regressa a Lisboa onde as visões do Mandarim continuam a persegui-lo. Desesperado, pede ao Diabo que o livre da fortuna e ressuscite o Mandarim, pedidos que não são concedidos, restando, então, ao narrador deixar sua fortuna ao Diabo, em testamento.

Voltando à sua vida comum, o narrador conclui “que só sabe bem o pão que dia-a-dia ganham as nossas mãos” (p. 191), porém se consola com a ideia de que “do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!” (QUEIRÓS, 1992, p. 191)20.

Segundo Eça de Queirós, em sua carta ao editor: “O Mandarim (...) é uma história de fantasia e de invenção, boa para senhoras, que necessita que o volume seja num tipo bonito, e em papel magnífico, e com uma capa rica – um volumezinho de luxo” (QUEIRÓS, s/d, p. 1262).

A narrativa se apresenta logo no prólogo: numa conversa entre dois amigos, encontramos a afirmação do primeiro amigo de que na narrativa o caminho será pelos campos do sonho, vagueando por “colinas românticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruínas de Idealismo”, descrição arrematada com o imperativo “façamos fantasia” (QUEIRÓS, 1992, p. 79). O segundo amigo, no entanto afirma: “mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sábias e amáveis alegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta...” (QUEIRÓS, 1992, p. 79) Observe-se que no diálogo em questão há duas posições específicas quanto à natureza da história que será relatada: Fantasia, por um lado, mas com sobriedade, por outro. Depara-se o leitor, então, com o fantástico e o maravilhoso.

Eça de Queirós, em sua Carta-Prefácio, de 15 de julho de 1880, enviada ao redator da Revue Universelle, classifica O Mandarim como uma obra que se enquadra no campo do sonho, da fantasia e do fantástico:

O Senhor quer dar aos leitores da Revue Universelle uma ideia do movimento literário contemporâneo em Portugal, e me dá a honra de escolher O Mandarim, conto fantasista e fantástico, onde vemos ainda, como nos bons e velhos tempos, aparecer o diabo, ainda que de sobrecasaca, e onde ainda existem fantasmas, embora com muito boas intenções psicológicas. [...]; é, no entanto, justamente porque esta obra pertence ao domínio do sonho e não da realidade, porque é inventada e não observada, parece-me que caracteriza fielmente a tendência mais natural, mais espontânea do espírito português. (QUEIRÓS, s/d, p. 5-6)

                                                                                                                         20 Todas as citações foram extraídas da edição crítica de O Mandarim, organizada por Beatriz Berrini.

Todorov analisa o fantástico na literatura com o propósito de estabelecer

determinado padrão que possibilite a avaliação do que é, ou não, fantástico. Segundo ele, “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2004, p. 31), fazendo o leitor duvidar da veracidade do fato, distante de uma explicação lógica. Desse modo, Todorov indica que o fantástico:

[...] exige que três condições sejam preenchidas. Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem; desta forma, o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com a personagem. Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto; ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”. (TODOROV, 2004, p. 39)

Vejamos se O Mandarim preenche as referidas condições: o mundo de Teodoro gira em torno de uma Lisboa do século XIX, repleta de relações sociais norteadas por algum tipo de interesse, quando ele recebe a visita de um ser sobrenatural, provável Diabo, cuja presença faz o leitor hesitar entre o mundo real e o irreal, uma vez que, pouco antes de receber tal visita, Teodoro entretinha-se com a leitura de uma obra ficcional na qual, justamente se narrava uma aventura similar à que o narrador vivenciará. Coincidência a ser questionada pelo leitor e provavelmente recusada a “farsa”.

Desse modo, a narrativa queirosiana responderia aos princípios de Todorov sobre o fantástico, visto que, o fantástico prende-se, principalmente, na hesitação experimentada pelo leitor e pela personagem frente ao acontecimento que rompe com o padrão do real, isto é, a interferência de um fato não explicado pela razão, mas que causa um desequilíbrio na ordem natural dos fatos narrados.

Assim, alternando realidade e fantasia, Eça propõe uma temática filosófico-ideológica, a partir da qual Teodoro descreve e relata os acontecimentos de sua vida, desde a pacata e pobre atividade de amanuense, ocasião em que era alcunhado enguiço, até todas as experiências favorecidas pela intervenção do Diabo, figura descrita como:

[...] Um indivíduo corpulento, todo vestido de preto, de chapéu alto, com as duas mãos calçadas de luvas negras gravemente apoiadas ao cabo de um guarda-chuva. Não tinha nada de fantástico. Parecia tão contemporâneo, tão regular, tão classe média como se viesse da minha repartição... [...] Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, de um aquilino formidável, apresentava a expressão rapace e atacante de um bico-de-águia; o corte dos lábios, muito firme, fazia-lhe como uma boca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois clarões de tiro, partindo subitamente de entre as sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lívido – mas, aqui e além na pele, corriam-lhe raiações sanguíneas como num velho mármore fenício. (QUEIRÓS, 1992, p. 89)

Percebe-se pela descrição que o Diabo21 é caracterizado como um típico

representante da pequena burguesia lisboeta, assim como também é Teodoro, ambos os elementos constitutivos da sociedade propulsora dos prazeres materiais e para a qual Eça de Queirós não poupa críticas que se distanciam do caráter fantástico para assumir uma postura tipicamente realista.

Essa figura diabólica, portanto, favorece a ideologia materialista e positivista da época que contribuíam para a demolição dos valores morais e espirituais no homem:

[...] Aqui está o seu caso, estimável Teodoro. Vinte mil reis mensais são uma vergonha social! Por outro lado, há sobre este globo coisas prodigiosas: há vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romanée-Conti de 58 e o Chambertin, de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze mil reis; e quem bebe o primeiro cálice, não hesitará, para beber o segundo, em assassinar seu pai [...] Não farei à sua instrução a ofensa de o informar que se mobilam hoje casas, de um estilo e de um conforto, que são elas que realizam superiormente esse regalo fictício, chamado outrora a «bem-aventurança». Não lhe falarei, Teodoro, de outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Teatro do Palais Royal, o baile Laborde, o Café Anglais... Só chamarei a sua atenção para este facto: existem seres que se chamam Mulheres - diferentes daqueles que conhece, e que se denominam Fêmeas. [...] De resto as suas pupilas já rebrilham... Ora todas estas coisas, Teodoro, estão para além, infinitamente para além dos seus vinte mil reis por mês... Confesse, ao menos, que estas palavras têm o venerável selo da verdade!... (QUEIRÓS, 1992, p. 91)

Em meio a essa constatação de valores da realidade burguesa do século XIX, temos o Diabo como a interferência de um fato que não se explica pela razão, mas causa um desequilíbrio na ordem natural das coisas.

Todorov ressalta que há uma aparente desordem ao chamar a hesitação de incerteza, abrindo-se dois caminhos interpretativos para se explicar o fato ocorrido: ou os leitores e a personagem, que vive a experiência, escolhem explicar os fatos como produto da imaginação (e, assim, as leis do mundo continuam a ser o que já são) e entramos no mundo do estranho (sobrenatural explicado); ou consideramos a veracidade do fato ocorrido, fazendo com que ele se torne parte constitutiva da realidade e, nesse caso, “a realidade é regida por leis desconhecidas para nós” (TODOROV, 2004, p. 30) e aceitamos o gênero do maravilhoso (sobrenatural aceito).

Em seu livro Introdução à literatura fantástica (1970), Todorov distingue quatro categorias de interferência do sobrenatural na narrativa: o estranho puro, quando são relatados “acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão”, mas que se destacam pelo seu caráter extraordinário e singular; o fantástico-estranho que se caracteriza pelo insólito: são fatos aparentemente sobrenaturais que percorrem toda a história narrada e que recebem, ao final, uma explicação racional; o fantástico-maravilhoso pertencente

à classe das narrativas que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do sobrenatural; o maravilhoso-puro

                                                                                                                         21 Diabo é ...diablo em espanhol Segundo o Dicionário de Símbolos (CHEVALIER, 1993, p. 337), o Diabo é representante das forças perturbadoras que enfraquecem a consciência e fazem-na voltar-se para o indeterminado e para o ambivalente.

em que os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos [...] O maravilhoso implica que estejamos mergulhados num mundo de leis totalmente diferente das que existem no nosso; por este fato, os acontecimentos sobrenaturais que se produzem não são absolutamente inquietantes. (TODOROV, 2004 p. 51 a 60, 179, 180).

Avaliemos, conforme as definições de Todorov, o caso de O Mandarim: o estranho-puro é explicável, uma vez que Teodoro lê a história do Mandarim num velho livro e vivencia o acontecimento narrado nele. Daí, o processo pode ser considerado lógico, mas a solução é absurda, pois jamais o Diabo poderia ser herdeiro da fortuna de Teodoro.

A possibilidade do fantástico-estranho, no conto de Eça de Queirós, estaria descartada a partir do princípio de que a solução do texto, deixar a herança para o Diabo, é inviável, embora haja um fundo de racionalidade, uma vez que Teodoro busca passar o problema adiante, livrando-se do dinheiro.

A classificação de fantástico-maravilhoso também se enquadraria, pois se aceita a interferência do Diabo e sua força como algo comum. Já o maravilhoso-puro, partindo do princípio de que ele implicaria um mundo de leis diferentes das nossas, mas se considerando o Diabo uma figura sobrenatural integrada à nossa realidade cotidiana, seria viável também na classificação de O Mandarim, confirmando o que diz Louix Vax: “a arte fantástica ideal sabe se manter na indecisão” (apud TODOROV, 2004, p. 50).

Segundo Todorov, “no mundo sobrenatural não há acaso, reina ao contrário o que se pode chamar de ‘pandeterminismo’” (TODOROV, 2004, p. 51) e as coincidências vêm seguidas do sonho, como no caso de Teodoro que, primeiramente, encontra a lenda do Mandarim num velho livro e, depois, vê o Diabo propondo-lhe exatamente a morte de Ti-Chin-Fu.

Assim, o texto queirosiano apresenta elementos caracterizadores do fantástico, mas podemos observá-lo também enquanto texto maravilhoso. Para Jacques Le Goff (2002, p. 106), o termo maravilhoso designa:

[...] um conjunto, uma coleção de seres, fenômenos, objetos, possuindo todos a característica de serem surpreendentes, no sentido forte da expressão, e que podem estar associados quer ao domínio propriamente divino (portanto próximo do milagre), quer ao domínio natural (sendo a natureza originalmente produto da criação divina), quer ao domínio mágico, diabólico (portanto uma ilusão produzida por Satã e seus seguidores sobrenaturais ou humanos).

Ainda segundo Le Goff, existem três aspectos do maravilhoso: o produzido por Deus e próximo ao milagre, o que não seria o caso da história de Teodoro; o da própria natureza e o ilusório ou demoníaco, conforme encontramos em O Mandarim.

Le Goff afirma também que o maravilhoso, na Idade Média exercia uma “função compensatória em um mundo de duras realidades e de violência, de penúria e de repressão eclesiástica, além de contestar a ideologia cristã opondo-se à concepção do homem criado ‘à imagem de Deus’, (...) reivindica um espaço humano, natural, entre Deus e Satã, em um amálgama de divino e demoníaco”. (2002, p. 118-119)

Eça de Queirós em seu conto explora o conflito de forças antagônicas que envolvem Teodoro, predominando do lado negativo de sua alma em decorrência do pensamento materialista e positivista do século XIX, perdendo, paulatinamente, os valores morais mais primários.

Porém, Teodoro, mesmo matando o Mandarim, manteve algo de seu lado positivo vivo no fundo de sua alma que no final da obra reaparece: arrependido, pede ao Diabo que ressuscite o Mandarim e lhe devolva a paz de espírito. Não percebe, no entanto, que algumas atitudes depois de praticadas não podem ser corrigidas:

– Livra-me das minhas riquezas! Ressuscita o Mandarim! Restitui-me a paz da Miséria! Ele passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro braço, e respondeu com bondade: – Não pode ser, meu prezado senhor, não pode ser... Eu atirei-me aos seus pés numa suplicação abjecta: mas só vi diante de mim, sob uma luz mortiça de gás, a forma magra de um cão farejando o lixo. Nunca mais encontrei este indivíduo. – E agora o mundo parece-me um imenso montão de ruínas onde a minha alma solitária, como um exilado que erra por entre colunas tombadas, geme, sem descontinuar... (QUEIRÓS, 1992, p. 191)

Assim, Teodoro finda por declarar que todos os homens, se tivessem a mesma oportunidade, agiriam de maneira igual à atitude por ele tomada, mas crê que pode alterar comportamentos se as pessoas lerem sua história, deixando seu ensinamento moral a gerações vindouras.

A relação entre Teodoro e o Diabo é muito próxima, fazendo parecer, à primeira leitura, que a figura demoníaca não existe em termos de realidade, mas apenas seria resultado da imaginação de Teodoro. Desse modo, Teodoro e o Diabo comporiam apenas uma identidade física, isto é, o duplo da personagem Teodoro se corporifica no elemento demoníaco:

[...]. Mas aquele sombrio in-fólio parecia exalar magia; cada letra afectava a inquietadora configuração desses sinais da velha cabala, que encerram um atributo fatídico; as vírgulas tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos numa alvura de luar; no ponto de interrogação final eu via o pavoroso gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que adormecem sem se refugiar na inviolável cidadela da Oração!... Uma influência sobrenatural apoderando-se de mim,arrebatava-me para fora da realidade, do raciocínio: e no meu espírito foram-se formando duas visões – dum lado um Mandarim decrépito, morrendo sem dor, longe, num quiosque chinês, a um ti-li-tim de campainha; do outro toda uma montanha de ouro cintilando aos meus pés! Isto era tão nítido, que eu via os olhos oblíquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos duma tênue camada de pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E imóvel, arrepiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente diante de mim sobre um dicionário francês – a campainha prevista, citada no mirífico in-fólio... Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metálica me disse, no silêncio: – Vamos, Teodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a campainha, seja um forte! [...] Veio-me à ideia de repente que tinha diante de mim o Diabo... (QUEIRÓS, 1992, p. 85, 87,89)

Sempre perseguido pela figura bojuda do Mandarim, companheira desde o primeiro dia de milionário, Teodoro se farta e refugia-se da consciência em festas, recluso em um mosteiro ou em seu sofá, e, finalmente, ao se vestir de Mandarim, sente-se um chinês e passa a agir de modo oriental, apresentando amor aos cerimoniais meticulosos, respeito burocrático das fórmulas, ceticismo letrado, terror do Imperador, ódio ao estrangeiro, culto dos antepassados, fanatismo da tradição.

O narrador tornara-se um espelho do Mandarim, seu duplo a partir de então, adequando-se ao sistema cultural que, na época e na sociedade, era, então, considerado como “real”.

Assim, poderíamos afirmar que um conflito psíquico em Teodoro, despertado pela leitura do velho livro, projeta a desordem íntima em que ele mesmo se protege, criando a possibilidade para a riqueza, e se castiga sendo perseguido pelo fantasma de Ti-Chin-Fu. Esse duplo sobrenatural leva o narrador a, em alguns momentos, sentir-se órfão de suas capacidades mentais normais, conforme esclarece Brunel (1997, p. 266, 267):

O encontro com o duplo mágico é sempre fonte de angústia para quem é assim confrontado com o enigma da identidade e acaba por julgar-se maluco, mesmo quando o tema é usado para fins cômicos. [...] O duplo instaura uma substituição apenas momentânea, e o original reencontra em seguida todas as suas prerrogativas. O desfecho da história promove a reafirmação da unidade do ser. [...] Através do mito do duplo, vemos que o homem aos poucos se arroga a prerrogativa dos deuses, de se transformar passando por diversos avatares e de renascer.

A caracterização da sociedade portuguesa e de seus valores burgueses determinados por meio de Teodoro remete também ao fantástico na obra. No início do conto, Teodoro observa a aristocracia como um simples amanuense desejoso de ascensão social e, espectador externo dessa mesma sociedade, só enxerga nela os prazeres. Ao receber a herança do Mandarim, tornar-se milionário e passar a fazer parte do mundo das riquezas, Teodoro percebe que toda a admiração que a sociedade lhe tem decorre do interesse que as pessoas têm pelo dinheiro que ele possui.

Assim, quase arrependido, Teodoro parte para a China a fim de amparar os herdeiros de Ti-Chin-Fu e encontra uma China descrita como um ambiente malévolo, com mau-cheiro, corpos espalhados, “populaça abjecta”, espaço claramente caricaturizado, resultado do olhar de quem nunca esteve na China, como é o caso do autor.

No plano do relato/discurso, Teodoro não identifica mais a divergência entre o real e o irreal e acaba por não pertencer mais a nenhum dos dois mundos. Sua visita à China indicam a projeção, frustração e expectativa de realização de seu desejo, mas, em contrapartida, porém ao Teodoro chegar ao lugar real, não encontra a vida desejada e esconde-se de si mesmo.

O narrador, na verdade, reproduz o conceito que a Europa propagava a respeito dos chineses e de sua terra de “bárbaros”, mal vista pela personagem que, em sua estadia chinesa, recolhe-se, como quem se refugia de todos os males, à casa do embaixador russo. Eça de Queirós também brinda seu leitor com o nome de alguns edifícios chineses, traços de Pequim que despertavam em Teodoro uma terrível melancolia saudosa do Minho.

O europeu, em O Mandarim, alcunhado de diabo estrangeiro pelos chineses, após o restabelecimento das relações entre o Oriente e o Ocidente, é o homem maléfico,

o ser que traz de fora e espalha o mal e, segundo Eça de Queirós, para o europeu, o chinês era ainda um ratão amarelo, de olhos oblíquos, de comprido rabicho, com unha de três polegadas, muito antiquado, muito pueril, cheio de manias caturras, exalando um aroma de sândalo e de ópio, que come vertiginosamente montanhas de arroz com dois pauzinhos e passa a vida por entre lanternas de papel, fazendo vênias. (QUEIRÓS, s/d, p. 1261-1262)

Por exemplo, o próprio Mandarim limita-se à apresentação de uma figura bojuda, de rabicho negro, túnica amarela, pançudo, um velho que não fala, não age, não se pronuncia de forma alguma, uma figura acusadora em seu silêncio, características distantes de definições complexas.

A imagem distorcida que se fazia dos chineses configura a postura frequentemente contraditória do Europeu, usurpador de benefícios orientais, e demolidor de seus valores mais tradicionais. Teodoro, cético, mas orador à N. Sra. Das Dores, bom, porém assassino do Mandarim, é uma personagem paradoxal que vivencia uma atmosfera enlouquecedora de luz e sombra, uma quase trágica odisseia favorecida pela figura de um Diabo que, fisicamente, nada tinha de fantástico, pelo contrário, parecia pertencer também à classe-média, tinha um “rosto, sem barba, de linhas forte e duras, mas o nariz aquilino e traços de homem corpulento, [...] Parecia tão contemporâneo, tão classe média como se viesse da minha repartição” (QUEIRÓS, 1992, p. 89).

Essa figura diferente de Satanás, mas com discurso de Lúcifer, já aparecera em outras obras de Eça de Queirós: “O Senhor Diabo, O Réu Tadeu, O Mistério da Estrada de Sintra, O Crime do Padre Amaro, A Relíquia e Os Maias”, obras em que a ação demolidora do Diabo não elimina totalmente o sentimento de culpa de seus perseguidos e eleitos, como podemos notar também no comportamento de Teodoro, mas:

No plano psicológico, o Diabo mostra a escravidão que espera aquele que fica cegamente submisso ao instinto, mas acentua ao mesmo tempo a importância fundamental da libido, sem a qual não há desabrochar humano; e para poder superar a queda da Habitação Divina (16º. Arcano) é preciso ser capaz de assumir essas forças perigosas de modo dinâmico. (CHEVALIER, p. 338)

Todorov diz que “o sujeito da enunciação de um texto em que um personagem diz ‘eu’ se torna ainda mais dissimulado” (CHIAMPI, p. 78). No desfecho do conto, encontramos Teodoro absorvido em seu problema e, crendo que está prestes a encerrar sua vida, relata os acontecimentos como se tudo a sua volta tivesse findado.

Consciente de que o distanciamento do mundo organizado e natural levou-o ao caos interior, principalmente a partir do momento em que entra em contato com um ser fantástico, situação patrocinadora de uma nova forma de vida, Teodoro volta ao processo de realidade que havia abandonado em prol de um mundo de tentações, repleto de vinhos preciosos, carruagens de suaves molas, casas confortavelmente decoradas, diversões variadas rodeadas de mulheres (fatal feminino).

Nota-se, portanto, que o mundo fantástico é, em princípio, exatamente igual ao mundo real e o que irá torná-lo fantástico é, precisamente, um acontecimento, o surgimento do Diabo, acompanhado da campainha concretizadora de desejos, elemento que não é passível de explicações oriundas do mesmo mundo real.

O Diabo, elemento fantástico, portanto, surge para indicar o princípio de uma nova etapa na vida de Teodoro, exercendo uma dupla função, a psicológica e a narrativa, ambas alteradoras da trajetória inicial do narrador.

Considerando-se Todorov, é possível a partir de O Mandarim, uma sequência de interrogações: O fato realmente ocorreu? O Diabo apareceu ou é mera ilusão de Teodoro? Se partirmos da cosmogonia cristã, a figura demoníaca tem vida, mas raramente alguém se depara com ela, criando o narrador Teodoro uma ambiguidade textual de difícil solução. CONCLUSÃO

A intensidade da narração de O Mandarim resulta no pacto entre o leitor e Teodoro no processo de hesitação, uma vez, desse modo o receptor é induzido a refletir sobre a credulidade do narrador, posta à prova, uma vez que gira em torno da complexidade do elemento diabólico e tentador.

O olhar do narrador, por sua vez, a partir do enriquecimento é alterado, não apenas em sua percepção, mas também em seu estado de consciência que possibilita um desvio na concepção de mundo realista, tornando-se um sultão perdulário, de vida requintada (empregadas vestidas à japonesa que lhe refrescavam o ar, lacaios, pajens), vida sexual intensa, idolatrado pelas pessoas, sendo convidado para altos postos no governo, fazendo empréstimos a reis, subsidiando guerras civis e, assim como se envolvia na vida alheia, sua intimidade também era assunto público.

No final de sua aventura de viver, mudo e soturno, Teodoro pensa na felicidade do não-ser e faz testamento ligando seus bens ao demônio, mas conclui que nenhum Mandarim ficaria vivo se fosse possível matá-lo para herdar-lhe os bens, principalmente pela certeza de impunidade.

Desse modo, abandona a sua existência de nababo, mas Teodoro conserva nos bancos os milhões de Ti-Chin-Fu (por isso o Mandarim não o abandona), contradição clara à proposta verbal – “Livra-me das minhas riquezas! Ressuscita o Mandarim! Restitui-me a paz da Miséria” – acrescida ao falso conselho que acentua a ironia do texto e explica a reflexão final: “Só sabe bem o pão que dia-a-dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!” (p.191)

Se recuperarmos o Prólogo de feição teatral com réplica entre dois amigos, percebemos o convite para uma viagem aos campos do Sonho e abandono da observação objetiva do real, o estudo da realidade privilegiando a intervenção do fantástico em que a morte do Mandarim seria um benefício para a humanidade. Logo, nunca mate o Mandarim se quiser ficar pobre, mas caso queira enriquecer, mate-o.

BIBLIOGRAFIA

BERRINI, Beatriz. Introdução. In: QUEIROZ, Eça de. O Mandarim. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1992. BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. 7ª. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980. LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. 2ª. Edição. São Paulo: EDISC, 2006.

QUEIRÓS, Eça de. “Chineses e Japoneses” in Cartas Familiares, vol. 2 das obras de Eça de Queirós. Porto: Lello & Irmão, s/d _______ O Mandarim. (Edição crítica de Beatriz Berrini). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1992. (Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós) TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 3ª. Edição. São Paulo: Perspectiva, 2004.