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Simplesmente Tita 1

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MARIA ALICE DA LUZ 2

MARIA ALICE DA LUZ

SIMPLESMENTE TITA

A comovente história da menina dos olhos de jabuticaba.

2ª EDIÇÃO

CURITIBA

2015

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Simplesmente Tita 3

Dedicado a meus pais Almir e Elizabete, aos meus irmãos Almir Jr e Carolina Luize e para todos aqueles que

sentirem os corações tocados por essa obra.

Com carinho,

A autora.

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MARIA ALICE DA LUZ 4

1

O FIM DO MUNDO ENCANTADO?

anto faz contar a história de trás para fren-te ou exacerbar as colocações para ser vilã ou vítima. Tudo menos ser indiferente.

Antes que o tédio te surpreenda com uma gentil palmadinha nas costas, vamos esclarecer que eu não serei mais uma da-quelas mocinhas prontas a viver feitos extraordinários.

Estar em busca de si mesmo deveria ser uma gran-de aventura, ainda que para o mercado editorial não surta retorno algum nem contrato com alguma produtora de fil-mes que entregue meu papel a alguma atriz do momento, aquela que pousa em capas de revistas e é manchete em programas de fofoca, portais especializados em notícias so-bre famosos. Poupando boatos e explicações desnecessárias, tanto faz saber se foi o ovo ou galinha quem veio por pri-meiro.

Ainda bem que o estigma de heroína nunca me per-seguiu. De politicamente correta talvez e tão somente à fisi-onomia. Falar de mim poderia ser incrivelmente fácil, mas o trabalho acabou sendo mais demorado que o estipulado. Na primavera de 1987, nascia Renata Muriel Neves Linhares, a quem vocês conhecerão por Tita. Simplesmente Tita. Bem antes que eu pudesse ser o que agora sou, uma controvérsia furtivamente me marcou: detestando o Carnaval, fui conce-bida durante um. Segundo nome totalmente desnecessário, reinações de mamãe. Linhares por conta do pai.

Meire das Neves sempre foi perfeccionista e desde muito cedo passou a exigir o mesmo de mim. Detestava

T

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Simplesmente Tita 5

brinquedos espalhados pela casa e ai de mim se me sujasse na hora de papar. Aprendi a ler e escrever antes de entrar na escola, a custo de xingamentos e bofetadas, sobretudo por-que saía rabiscando qualquer superfície lisa e branca, a exemplo da parede lá de casa. Félix Linhares, por sua vez, era o sujeito com quem passava os melhores fins de semana. Juntos nós íamos ao cinema, ao teatro e em nosso reino en-cantado eu era a linda princesinha, o maior orgulho de sua vida.

Mamãe sentia raiva do meu pai e tentava me corri-gir por considerar a convivência com Félix um mimo sem precedentes. À medida que Meire fazia isso, mais e mais eu o adorava. Aliás, eu tinha dois pais. Quando completei cinco anos ganhei um padrasto, Horácio. Ele me tratou bem, não teve qualquer objeção em cuidar de mim, prometendo bone-cas, bichos de pelúcia, material escolar, roupinhas e um quarto só meu. Sem espanto fui à dama de honra na cerimô-nia sem grandes requintes custeada pela minha avó materna Olívia Ribeiro das Neves, mas até hoje sinto pavor de ver a foto em que estava usando um vestido ridículo de mangas bufantes.

Meire não gostava que eu brincasse na grama para não sujar minhas roupinhas, no entanto também não podia fazer nada dentro de casa que logo já ouvia berros e era sur-rada de cinto ou chicote, dependendo do grau da raiva em que a grande troglodita se encontrava.

― Posso ir brincar lá fora? ― O dia estava muito bonito lá fora e eu estava entediada.

― Nem pensar ― respondeu Meire assistindo tele-visão.

― E quando é que vou ir pra escola?

― Algum dia.

― É bom ir pra escola.

― Por mim eu te mandava pra escola hoje mesmo pra ver se alguma professora dá jeito em você te enchendo

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de deveres de casa pra não me tirar a paciência. ― reclamou Meire sem me dar atenção.

Agir como uma criança comum, tudo que eu que-ria. Era chato ter de sempre brincar sozinha enquanto via pela janela as outras criancinhas andando de bicicleta, jo-gando bola, brincando de pique-esconde enquanto eu tinha de ficar dentro de casa sendo proibida de quase tudo.

A rua em que morávamos era sem saída e em mea-dos da inesquecível década de 1990 era um dos lugares mais seguros da nossa cidade. Lógico que hoje em dia já não pos-so ousar a dizer o mesmo.

Fitinha rosa na cabeça, cabelo devidamente esco-vado, vestidinho na altura do joelho, meia calça transparente e sapatilha cor de rosa. Sentada no sofá era uma legítima bonequinha de porcelana com meus sorridentes olhos de jabuticaba, olhos que as pessoas diziam conter um brilho e uma pureza angelicais. Eu era a filha que toda mãe queria ter, exceto a minha.

☼☼☼

Pouco depois de completar seis anos de idade eu fui matriculada na primeira série do ensino fundamental porque já conseguia ler sozinha, era alfabetizada e sabia efetuar duas das quatro operações fundamentais da temida matemática. Imaginava o colégio como um playground gi-gante onde haveria muitas crianças para interagir. Pensei que depois que as aulas começassem, nunca mais me senti-ria sozinha, pois teria muitos amigos para compartilhar so-nhos e brincadeiras.

Acordei irradiando alegria naquela manhã de feve-reiro e mal via a hora de me juntar aos meus futuros amigui-nhos. Vi alguns pequenos chorando compulsivamente em frente ao portão e não entendia por que. Consequentemente, a magia durou mais alguns segundos apenas. Mamãe entrou

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Simplesmente Tita 7

comigo e me deixou em frente à sala em que eu iria estudar pelo resto do ano. Era apenas um prédio feio e sem graça. Os grandões mal-encarados estavam por toda parte e o playground estava fechado com cadeado. Que tristeza!

Soou o sinal que se assemelhava muito a uma sire-ne de ambulância. Alguns pequenos abraçavam as pernas dos pais com força, chorando a ponto de precisarem assoar os narizes e eu ainda tranquila. Nada estava a me favorecer primeiramente porque todas as carteiras já estavam ocupa-das. Todas, menos uma. Eu sorri, mas ninguém correspon-deu. No único lugar decente, a garota colocou a lancheira em cima. Piorando ainda a conjectura, nossa ‘tia’ adentrou a sala de aula observando a todos com uma expressão de des-gosto, como se desejasse que aquelas férias de verão nunca tivessem acabado.

― Por que você ainda não está sentada, menina?

Seu tom de voz não era nada cordato, o que queria dizer que eu estava metida em sérios problemas. Minha voz rouca e temerosa bem que tentou se explicar, porém aquela mulher cujos botões do jaleco teimavam em não fechar não me deu ouvidos.

― E nem me chama de tia que eu não sou irmã da tua mãe não. ― Ela me envergonhou diante de todos. ― Mal o ano começou e já temos uma criadora de caso por aqui. ― E todos riam. ― Agora vê se para de atrapalhar a aula se não quiser passar o resto do ano na sala da Norma. Garanto que você não gostar nem um pouquinho de ir para lá. E agora anda porque eu estou sem paciência pra criança chata.

Chorando, procurei um lugar, atrás de um gordinho flatulento. Todos riam enquanto eu secava as lágrimas e desejava que minha mãe a qualquer momento fosse me bus-car. A escola estava longe de ser um paraíso. As coisas não melhoraram no segundo dia, nem no terceiro, nem quando eu oferecia bolachas e suco aos outros colegas. As meninas se uniram lanchando juntas nas escadarias do bloco onde as

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turmas primárias se alojavam; quando eu chegava uma co-chichava no ouvido da outra e todas se levantavam em reti-rada.

Logo na primeira reunião com os pais, ao final do primeiro mês, a professora me definiu como o ‘estorvo’, a menina atrasada que conversava demais e não fazia os deve-res propostos. Eu estava triste porque aprender tudo aquilo que Meire já havia me ensinado. Queria logo aprender a multiplicar, dividir, separar em sílabas. Quando voltei para casa, mamãe me levou até o quarto para revistar meus ca-dernos e não aceitou minhas desculpas, conduzindo-me sem demora ao banheiro, tirando o chicote da bainha, obrigando-me a tirar a roupa, ligando o chuveiro e surrando-me até que minhas pernas não suportassem o peso do corpo.

Minhas notas aumentaram, passei a ser elogiada pe-la ‘tia’, mas não tinha nenhum amigo. Todos caçoavam de mim. Brincava isolada no pátio, era humilhada pelos gran-dões, excluída das festinhas, porém orgulhava minha mãe, não queria dar nenhum motivo para apanhar. Estando ela satisfeita com o meu desempenho, nada fazia diferença.

Em compensação, no reino encantado de meu pai eu continuava sendo a princesinha de seus olhos. Quantas vezes desejei morar com ele! Adorava os fins de semana e chegava a ter febre aos domingos por saber que teria de vol-tar a minha ridícula vida na segunda-feira, mas num belo dia, quando já estava com oito anos, uma triste notícia aca-bou com minha vida para sempre...

― Eu quero te apresentar a alguém muito especial, Tita.

― Uma amiguinha?

Eu bem que adoraria. Sentia-me tão sozinha, ainda mais estudando com as patricinhas em miniatura e suas mo-chilinhas cor de rosa, os babacas que puxavam meu cabelo e me chutavam quase todo intervalo. Ter uma amiguinha seria ótimo.

― Quem, papai? Quem é?

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Simplesmente Tita 9

Estávamos passeando no Passeio Público. Domingo perfeito de Sol. Aliás, perfeito era qualquer domingo em que após o almoço meu pai e eu saíamos de carro por aí. Ele me deixava ouvir as músicas que amava, tipo Spice Girls no começo da carreira, Sandy & Junior e as músicas de Euro dance (super em alta) que eram febre entre os adolescentes. Eu mal via a hora de ser uma porque notava que as meninas da rua sempre andavam, brincavam e dançavam juntas. Elas me respeitavam, nunca falavam besteiras para mim, nem nada do tipo, diziam até que eu tinha mais cabeça que as outras meninas da minha faixa etária, porém Meire não gos-tava nem um pouco da convivência, implicava com as músi-cas e risadas, chamando a todas de vulgares, ameaçando que preferia me ver morta a permitir que eu brincasse com elas.

― Sabe aquela boneca que você me pediu?

Ah sim! A Barbie Ginasta, aquela boneca que usa-va um uniforme de ginástica cor de rosa, umas polainas co-loridas e tinha o corpo esguio flexível.

― Papai não vai poder te dar agora. ― Lamentou Félix, esperando que eu entendesse que “ainda faltava al-gum tempo para o Dia das Crianças.”.

― E quem nós iremos conhecer? ― Repeti a per-gunta, imaginando uma menininha tímida da minha idade a me aguardar para juntas brincarmos à tarde inteirinha.

― Tenho certeza de que vocês serão grandes ami-gas.

Uma moça meio gordinha estava sentada em um banco de madeira segurando um algodão doce por entre as mãos. Ao ver meu pai, levantou-se e eles se cumprimenta-ram com um selinho discreto. Isso simplesmente não pode-ria estar acontecendo. Eu era a princesinha do meu pai. Não ela. Não aquela bruaca. A única mulher da vida de Félix Linhares tinha, por lei, de ser a minha mãe. E depois, eu. Ou antes. O amor de um filho sempre há de ser a prioridade de um pai, não importa se ele passa dez minutos ou doze horas por perto.

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MARIA ALICE DA LUZ 10

― Helena, ela é a Tita. ― Félix aproximou-se fisi-camente dela, um sinal vermelho no meu mundinho encan-tado. ― Tita, ela é a Helena.

― Então ela é a menina Tita? ― Ela abriu um sor-riso para ele assim que me viu de perto.

― É ela sim, querida. Ela ou não é a menina mais linda do mundo? ― Félix tratava de ser burocrático para amenizar minha indiferença com a figura de Helena.

― Efetivamente que sim. Não é, meu anjinho? ― Helena abriu um sorriso para quebrar o gelo de timidez que se apossou de mim de repente, mas foi em vão.

― Não precisa ficar tímida, Tita. Helena é sua amiguinha. ― Papai me abraçou e pela primeira vez eu não o correspondi porque ali sentia a presença de Helena e não mais a minha.

Agachando-se para ficar na minha altura e fitar meus raivosos olhos, Helena apertou minhas bochechas. Se há algo que odeio é que force intimidade, ainda mais se aca-bou de me conhecer e nem se sabe meu nome, afinal, para dizer que sabe quem eu sou, é preciso muito mais que con-templar minha imagem. Tem gente que custa a entender isso. Helena era um nítido exemplo.

Aos poucos os passeios foram se restringindo a ca-da quinze dias e normalmente Helena ia junto conosco. Na rádio só tocava o que ela queria e eu odiava aqueles pagodes chatos, febre do axé. Nunca gostei de ver mulher rebolando em boquinha de garrafa, tratada como um pedaço de carne. A essas alturas eu até poderia dizer que curtia um pouco de rock, mas para minha mãe era inconcebível. Rock era coisa de ‘drogado’.

Como toda garota ciumenta, tentei de tudo para chamar a atenção de meu pai, no entanto, em vão. Desde chiliques por nada, chutes no banco do carro, etc. Félix se irritava comigo diante dela e eu ia perdendo os poucos pon-tos que tinha a meu favor.

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Simplesmente Tita 11

Em um almoço no restaurante em que frequentá-vamos desde sempre, em plenas Olimpíadas de Atlanta, ao som de Reach – Gloria Estefan, a bomba.

― Temos uma novidade para contar. ― celebrou Helena levando uma generosa garfada de lasanha a boca.

― Novidade? Qual? ― Servi-me com um pouco de refrigerante de cola no meu copo. Eu sempre gostei mais de beber na garrafa de vidro porque me parece que o gosto fica melhor.

― Uma novidade que não vem em melhor hora. ― Helena voltou-se para fitar Félix: ― Você disse que ia me ajudar.

― Tanto faz quem conte. ― garantiu Félix, ansioso e contente.

― Do que vocês estão falando? ― inquiri.

― No mês que vem Helena e eu nos casaremos na igreja...

― Vo... Vocês vão se ca-casar?

― Sim, Tita. Helena e eu vamos nos casar no mês que vem.

Prefiro que repita. Ouvi palavras empregadas de forma equivocada à pessoa errada.

― Minha querida, eu já estou conversando com a costureira responsável pelo meu vestido de noiva e como você vai ser nossa dama de honra, usará um vestidinho igual ao meu. ― Helena sorria com os olhos também com um ar vitorioso.

― O que acha disso, minha filha? ― Meu pai, emocionado, me perguntava.

Eu adorava lasanha a bolonhesa com batata-frita, risoto, refrigerante e sorvete napolitano. Meu pecadinho alimentar de quase todos os domingos. Estava sem fome.

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― Parece que não gostou da notícia ― Helena, ao menos, percebia o que Félix prontamente ignorava, por ino-cência, provavelmente. ― Nem na comida você tocou.

― Não estou com fome ― rosnei, desejando fechar os olhos e nunca mais ver Helena.

― Você disse que estava. ― Papai retrucou, er-gueu um pouco o tom de voz e isso me chateou profunda-mente, em primeiro lugar porque ele nunca havia feito isso e em segundo lugar, porque se portava assim diante dela, da-quela que seria a responsável pela nossa separação.

― Você nunca gritou comigo! ― protestei e cruzei os braços.

― Eu te conto uma notícia maravilhosa e é assim que você reage? ― Félix estava alheio à minha birra.

― Eu não gosto dela.

― Como pode dizer uma coisa dessas se mal a co-nhece?

― Não pode se casar com ela, pai. Não pode fazer isso. ― Nunca soube segurar o choro nem a raiva. Não que-ria ser dama de honra de ninguém, muito menos usar um vestido igual ao “dela”.

― Eu vou me casar com a Helena queira você ou não ― concluiu Félix sem se comover, apertando as mãos de Helena, deixando bem claro que dali por diante eu tinha duas alternativas: a) ou eu aceitava aquela mulher nos nos-sos caminhos ou b) ia embora.

Odiava o modo como Helena sorria e tocava em meu pai. Odiava como ela conseguia tudo que queria sem precisar se esforçar. Aquela bondade toda me soava falsa. Se eu fosse morar com o casal feliz, aposto como seria igualzinho à história da Cinderela. No meu caso nem fada podia desfazer a maldição.

Mamãe não foi com a cara de Helena desde que a viu e não me deixou participar do que classificava como

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Simplesmente Tita 13

"palhaçada". Acentuando a ironia que fazia da convivência um fardo, era nítido que a compensação havia sido premedi-tada de modo que minha memória apagasse as surras e se deslumbrasse pelos pequenos mimos que por algum tempo substituíram a gritaria e a truculência.

De pirraça, Meire me levou ao Beto Carrero e me presenteou com o trailer da Barbie que custava um olho da cara. Certeza que ela deve ter dado graças a Deus quando aos poucos cessaram os telefonemas e passeios.

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2

CLARINHA, A CHIQUITITA ESQUECIDA.

m 1996, Vó Olívia fez um emprésti-mo e comprou à vista um terreno atrás da sua casa também própria para ajudar Margarida a encontrar um rumo na vida. No entanto, a

meia-irmã de Meire trouxe além dos três filhos, um “espo-so” e dois enteados. Todos sobreviveriam da aposentadoria do velho Josué, dividindo três quartos, um banheiro bastante simplório que ficou inacabado, uma cozinha cujo teto não inspirava muita segurança e uma sala que se coubesse um sofá de dois lugares era muito.

A cada visita eu via aquele terreno crescer, até que um dia cheguei e encontrei uma menina que devia ter mais ou menos a minha idade brincando na terra com outras cri-anças menores.

Era ninguém menos que Maria Clara das Neves, minha prima mais velha por parte de mãe.

― Nem ouse se aproximar dessa menina, Tita. ― avisou Meire em tom desafiador.

― Por que não? ― insisti.

― Porque eu já disse que não!

― Porque não, mãe? Ela parece ser tão legal!

― Porque Maria Clara é um fruto podre e eu não quero que você fale com ela.

E

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Simplesmente Tita 15

― Por que não?

― Você quando quer ser chata se esforça. Já disse que não é pra chegar perto dessa menina e ai de você se me desobedecer.

Meire gostando ou não, decidi fazer amizade com Clarinha. Da parte dela não sabia se me considerava. Eu a invejava por contar altas histórias da escola em que estuda-va. Parecia primário de novela em que toda semana acontece alguma aventura que movimenta pátios, corredores e salas de aulas.

Graças à Clarinha eu brincava com as crianças na rua de barro. Vôlei, futebol, corrida de bicicleta ladeira abaixo, bafo, pega-ladrão, pula-corda, menos salada mista porque diziam que eu não tinha idade. Nem eu, nem Clari-nha, nem Natasha, a irmã mais nova. Ia à tarde, vinha à noi-te. Os adultos não sabiam de onde tirávamos tanto fôlego para brincarmos e continuarmos dispostos. É lógico que quando queríamos recarregar as energias, íamos todos fazer fila para comprar os geladinhos que a Vó Olívia preparava para sustentar a casa. Eu era VIP, portanto não precisava pagar e podia escolher quaisquer sabores quisesse. Não obs-tante, o meu preferido era o de chocolate.

Entretanto, Maria Clara reprovou a segunda série porque a professora dela era uma megera que nem a minha, porém a Margarida não dava a mínima se a filha fosse apro-vada ou não e Meire repudiava a negligência da irmã, o que eu, apesar de ser menina, concordava. Se ninguém se impor-tasse, o que seria do futuro de Clarinha? Alguém tinha de ampará-la porque burra ela já se sentia e se continuasse se atrasando, iria parar de estudar.

Eu adorava ver novelas. Clarinha também. Com uma razão óbvia: tudo sempre terminava bem no final. As mocinhas mirins sempre passavam de ano, as inimigas se tornavam amigas, terminavam fazendo shows para milhares de pessoas, com namoradinho e superavam os traumas. As madrastas feias e perversas sempre se ferravam.

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MARIA ALICE DA LUZ 16

Nossos sonhos não passavam do teto apodrecido de madeira da humilde casa de vó Olívia. No quartinho minús-culo onde Maria Clara, Natasha e Hugo, o filho mais novo, de três anos, dormiam, era onde todos nós sonhávamos com uma vida mais feliz. Liberdade, amor, afeto, amigos, nada de privação, solidão, maus tratos.

Aos domingos sentíamos uma pontinha de inveja daquelas crianças que iam apresentar seus talentos no vocal em programas de auditório. Maria Clara era muito fã da jovem cantora Sandy e cantava as músicas, vivia acreditan-do que num domingo qualquer, naquele palco para o Brasil inteiro, seria ela aquela que receberia o prêmio e todo mun-do pediria bis.

Eu olhava aquelas meninas cantando e sabia que minha voz não era tão boa. Também não dançava direito. Para atleta, nula vocação porque nos times eu sempre era a última a ser escolhida ou então era café-com-leite mesmo. Nada mais frustrante para uma criança que ver os colegui-nhas interagindo e você não poder estar com eles... Porque eles não querem sua presença!

Maria Clara e eu jurávamos de pés juntos que iría-mos mandar para o programa dominical uma carta a qual salvaria a nós duas. Uma vez colocada no correio, seríamos salvas e nossa história apareceria na TV, para um bocado de gente que passaria a nos amar e abraçar nossos sonhos.

☼☼☼

Meire tinha quatro meias-irmãs e dois meios-irmãos. Os dois homens faleceram em um acidente de moto quando eu estava com cinco anos de idade. Pouco me lem-bro deles. Ou quase nada. Das tias, Margarida é a caçula e também o problema.

Margarida, Dalva, Agnes e Rita se detestavam num dia, se amavam noutro. Era uma família bastante estranha.

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Simplesmente Tita 17

Com exceção de Meire, todas as filhas se casaram ainda adolescentes com homens muito mais velhos que estavam longe de serem bons cidadãos, nem tanto pelo vigente mani-queísmo, e sim porque farejavam o caminho do crime do mesmo jeito que um cãozinho fareja um pedaço de pão.

Margarida era a filha que mais dava trabalho à Olí-via. Dizia Meire que a mãe estava pagando caro pela omis-são no passado. Maria Clara, todavia, com os esperançosos olhos, almejava não ser parecida com a progenitora. Apesar de não ser aquele jardim dos sonhos, para quem não tinha nada, aquele espaço coberto por terra era o reino encantado, apesar de ser impossível viver em um, estando no contexto em que estava.

Tia Margarida se amigou com o Josué, um septua-genário viúvo, porque o homem recebia uma boa pensão e uma aposentadoria razoável. O que tinha de velho tinha de tarado. Por passar o dia todo em casa vendo televisão e en-tornando cachaça, mexia com as mocinhas que brincavam na rua. Ninguém gostava de estar ali pelas redondezas por-que quando ele preparava o chimarrão e armava a cadeira para escutar vaneirão no último volume, ficava insuportável. Se o time dele perdia, saía quebrando garrafas pelos muros, chamando a quem torcesse pelo time adversário para briga.

Eu tinha certo dó do Josafá, o filho mais velho dele que levava cada surra de sangrar as costas. Por nada, ou por “não saber torcer”.

O cachorro latiu à noite, amanheceu pisoteado. Ma-ria Clara não perdoou Josué.

― Ele pisou em cima da cabeça do Mimi de propó-sito. ― Maria Clara chorava muito se lembrando dos poucos e agradáveis momentos que teve com o bichinho o qual ali-sei a cabeça num domingo qualquer.

― Mas não pode matar bicho. ― Lamentei ver o pobre filhote branco com pintas pretas coberto com uma flanela e dentro de uma caixa de sapatos. Clarinha o enter-rou no terreno.

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― Ele mata. Disse que quando o cachorro está ca-vando é porque está agourando a morte dele.

― Ah credo! Ele é maluco!

― Quando ele bebe é um inferno aqui em casa eu tenho muito medo. Você tem sorte, Tita.

― Sorte? ― Maria Clara indicou um espaço ao la-do dela no primeiro degrau da área de serviço de vovó e ficamos olhando os meninos da rua empinando pipa.

― Seu padrasto não bebe, não é mau e você tem pai. Você tem muita sorte. Você ainda tem um pai. Um pai. O meu pai não é vivo. Eu não o tenho aqui pra me proteger. Eu tenho mãe e dá no mesmo que não ter.

― Ele não gosta mais de mim. Você sabe que ele me trocou pela Helena e que agora já tem um filho, outro filho de quem ele gosta bem mais.

― Mas você tem um pai. Sabe o que isso quer di-zer? Se um dia sua mãe aprontar muito, você pode fugir pra casa do seu pai.

― Eu nem sei onde ele mora.

― Descobre.

― Minha mãe nem sequer me deixa ir à aula sozi-nha.

― Sua mãe ainda se preocupa se você vai à aula. A minha nem liga se eu fiz o dever, desde que não mexa com o Hugo, o maldito Hugo.

Hugo era o único filho legítimo de Margarida e Jo-sué, a cláusula que prolongava aquele contrato furado. Titia paria anualmente, numa estimativa humilde. Em dez anos, onze filhos. Foi cursar o primário à noite, numa turma de EJA, e engravidou, abandonando os estudos. A menina mor-reu dormindo três semanas depois do parto.

Comigo, Josué não fazia nada além de cumprimen-tar de longe. Sabia que se fizesse uma gracinha qualquer, teria de se ver com Meire, mas não lamento por mim e sim

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Simplesmente Tita 19

pela Clarinha que teria o mesmo destino de Tânia, a meia-irmã, ser obrigada a beijar o velho na boca e fazer tudo que ele mandava e não contar a ninguém. Nós crianças soube-mos das coisas porque ouvíamos os boatos que corriam pela família. Que Josué cantou a tia Agnes. Que a filha do Edi-valdo (duas casas adiante) tinha saído com ele. Se tia Mar-garida se importava? Nem pestanejava. Também tinha os casos dela e não mentia, porém também não deixaria Josué livre e era correspondida.

Maria Clara queria ir morar no Orfanato Raio de Luz, junto com as Chiquititas. A hora da novela era sagrada. Nem no prato de comida tocava. Sabia dançar e cantar todas as músicas e ensaiava até o momento em que entraria no orfanato, o que diria, quem seria o par romântico dela e que música faria o solo. Pobre coitada. Uma incurável sonhado-ra, sem qualquer rota com a realidade. Não com a dela. Nem com a de ninguém. Aquele mundinho particular em que se enfiava nada mais era que uma fuga ao lamaçal em que es-tava inserida a contragosto.

Priminha não sabia que era só uma novela, que as atrizes de verdade tinham família, estavam gravando na Ar-gentina e que ser órfão de verdade era triste, muito mais que estar num orfanato cantando, dançando e vivendo aventuras. A novela jamais mostraria o que era crescer sem pai, mãe ou qualquer adulto responsável por perto.

Escrevi a carta que Clarinha queria, embora meu desejo fosse outro: eu queria adotar um cachorrinho, não importava que fosse pequenininho. Eu queria ter um cachor-ro. Era o que eu queria. Mais do que tudo. Um cãozinho com quem pudesse brincar, amar, conversar. Um amigo. Um amigo de verdade que não me abandonaria jamais.

― Ai Tita, você vai pedir um cachorrinho quando pode ser Chiquitita? Você é uma idiota!

― Eu não ri do seu sonho. Por que ri do meu?

― Cachorro tem um monte na rua. Pega um e cria.

― Minha mãe não deixa.

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MARIA ALICE DA LUZ 20

― E acha que ela vai deixar se o Gugu for à sua casa?

― Com o Gugu falando é diferente ― expliquei. ― Ela vai querer agradá-lo e vai me deixar ficar com o ca-chorro e além do mais se você for Chiquitita, vai se esquecer de mim...

― Não vou...

― Vai sim... Vai... Porque você vai ter outras ami-gas e não vai mais querer andar comigo.

Estávamos obstinadas a escrever aquela cartinha endereçada ao famoso apresentador do programa onde as crianças cantavam e dançavam, portanto aproveitamos um feriado o qual vó Olívia precisou viajar e pediu gentilmente para que Meire cuidasse da casa e das crianças, unindo as-sim o útil ao agradável, pois na minha mochilinha trouxe o caderno de onde sairia à carta. Não bastava ter boas ideias, tínhamos de convencer, contar nossa triste história para que o comunicador se comovesse ao ponto de sair de São Paulo para vir nos salvar. Pode não fazer o menor sentido hoje, mas naquela época e na nossa inocência, Maria Clara e eu o enxergávamos como nosso salvador.

― E o que a gente escreve aí? ― Maria Clara per-guntou enquanto trazia algumas pitangas para comermos.

― A gente tem que contar nossa história, mas ela tem que ser bem bonita.

― Nossa história não é bonita.

― Mas ela tem que ser bem triste, triste mesmo.

― Se a gente pedir pra ser Chiquitita será que ele pode fazer isso pela gente?

― Se a gente escrever tudo bonitinho, sim!

― A gente vai morar com aquelas crianças no or-fanato?

― Vamos. Vamos sim.

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Simplesmente Tita 21

― Ah! Nem acredito! É sério? ― Maria Clara so-nhava tão alto que me deixava com dó.

― Sim... Eu acho...

― Então quem vai escrever é você. Eu sou repeten-te, não sei escrever direitinho igual a você.

― Então você vai ter que me ajudar. Você vai fa-lando e eu vou escrevendo.

― Você vai escrever tudo que eu disser?

― Já disse que vou!

― Então escreve mesmo!

Discussões à parte, concluímos as cartas. Eu escre-vi uma e Maria Clara outra. Ficaríamos de colocar no mes-mo envelope, com o endereço da minha priminha, porém como Meire revistava meus pertences enquanto fazia a lim-peza periódica do meu quarto, julguei mais seguro que Cla-rinha ficasse responsável de colocar a correspondência no correio e depois rezaríamos muito para sermos atendidas.

Um dia, quando voltei da escola, levei uma bela surra de chicote. Primeiro apanha, depois se descobre o por-quê das pancadas.

― Você está ficando maluca, Renata Muriel?

― Por que, mãe?

― Eu já te disse que não gosto de ver você de con-versinha com a Maria Clara.

― Por que não, mãe? Por que eu não posso ser amiga da Clarinha?

― Teimando com a mão que te alimenta?

― Mãe, não fala mal da Clarinha. Ela é uma boa pessoa.

― Ela não presta. Ela é igualzinha à mãe dela. Igualzinha. Vai crescer e vai ser igualzinha. Tem peninha, tem? Pois pode ter porque eu não tenho nem um pouco. ―

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MARIA ALICE DA LUZ 22

Meire encarou-me odiosamente. ― Sabe quem ligou pra cá? Sim, a Margarida. ― Ela reforçou aquele ar provocativo de sensacionalismo. ― Desesperada.

― Aconteceu alguma coisa?

― E o que você acha sua cínica? Mas é claro!

― O que aconteceu?

― Pensei que já soubesse. ― desdenhou.

― Eu juro...

― Não jure sua maldita.

― Eu juro que não sei do que a senhora está falan-do, por favor.

― Sabe sim.

― Não sei. O que a tia disse?

Maria Clara não aparecia em casa havia três dias. Vó Olívia estava preocupada, mal dormia, estava sobrevi-vendo à base de remédios, enquanto Margarida só foi se dar conta do que aconteceu quando Josué decidiu prestar uma queixa na delegacia do menor acerca do desaparecimento.

― A pestinha fugiu ― Meire abanou a cabeça, com asco, desejando que a menina nunca mais aparecesse.

― Fugiu? Pra onde?

― Ninguém nem sabe aonde é que essa imbecil foi parar, mas você deve saber.

― Eu?

― Você. Você sim. ― pressionou a troglodita. ― Você não vive de fofoquinha com ela pra cima e pra baixo? De alguma coisa você sabe.

― Juro que não sei.

― Finge que não sabe, mas eu não caio nessa con-versinha. Mas eu já disse: você não vê mais essa Maria Cla-ra na vida. Não vê. Não quero mais.

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Simplesmente Tita 23

― Ela é minha amiga.

― Ela não é digna de ser sua amiga.

― Eu não tenho nenhuma amiga lá na escola, mãe.

― Porque é uma imprestável, problemática. Se fos-se normal, teria amigos.

― E o que é ser normal?

― Algo que você não é.

Depois de algumas bofetadas delirantes, tive de confessar que Maria Clara odiava o assédio de Josué.

― Ela é oferecida, maluca, mentirosa. Josué é um senhor de idade, um homem íntegro, de respeito, jamais ficaria de olho numa menina, Renata. Isso é um absurdo. Você não diz nada com nexo, garota.

― Estou falando sério, mãe. O Josué beija a Tânia na boca e vive falando que se a Maria Clara não beijá-lo, vai contar à mãe dela.

― Menina mentirosa, atrevida, insolente. ― Meire puxou a minha orelha crendo que eu estava lhe pregando uma peça ao contar à verdade que era nítida para todos na casa de Maria Clara, porém, em troca de um prato de feijão, o silêncio era o ruído mais alto debaixo daquele teto amadei-rado e cheio de teias de aranha.

― É sério, mãe ― desvencilhei-me de Meire ainda sentindo a orelha direita arder por conta dos puxões violen-tos. Era menos doloroso que a vara e o chicote, mas ainda assim era uma agressão. ― O Josué é um tarado, vive me-xendo com a Clarinha e ela não gosta.

― Diz que não gosta na sua frente ― atiçou Meire. ― Pelas costas é outra coisa.

Maria Clara foi encontrada no final daquele dia. Suja, perdida e faminta. Com quase dez anos de idade, para onde iria se do mundo o que conhecia era a desgraça?

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MARIA ALICE DA LUZ 24

Meire foi visitar a mãe para se informar sobre os pormenores da fuga e eu a acompanhei. Clarinha não queria falar comigo, nem com ninguém. Estava deitada na cama do beliche chorando tanto que chegava a soluçar. Um pranto de desespero, de uma alma dilacerada que clamava por um pouco de compaixão, sentimento esse que Margarida jamais demonstrou. Tânia me pediu para voltar outra hora, mas decidi permanecer sentada na ponta do leito, não importan-do mais nada. A menina chorou, se cansou e adormeceu. Apesar de inocente naquela época, aquele pranto de dor e desespero só indicava uma coisa: ela tinha motivos para fugir e não voltar.

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Simplesmente Tita 25

3

FINALMENTE 10 ANOS.

rincar com Hugo e Natasha não era le-gal porque eles eram muito pequenos e não entenderiam os meus segredos e sentimentos. Compreendia que a barra

de minha priminha era pesada demais, que aquela carta re-presentaria a salvação dela, efetivamente. Fosse à participa-ção em um programa ou não, a libertação haveria de chegar, custasse o que custasse, passasse o tempo que fosse. Espera-ríamos pelos dias em que não precisaríamos chorar por ser-mos fracas demais perante adultos que escarravam em nossa honra.

― A Tânia descobriu a carta. ― Clarinha avisou enquanto limpávamos o chão da cozinha.

― Como? ― Horrorizada, questionei Clarinha. Era o nosso segredo, ninguém mais podia saber, sobretudo ma-mãe, que leria a carta em voz alta, destacando determinados trechos a fim de me ridicularizar, tanto é que eu me encarre-guei de corrigir os erros gramaticais da minha prima para passarmos uma boa impressão ao apresentador do programa, que muito infelizmente não chegou a receber a correspon-dência, Josué picotou as folhinhas de papel em dezenas de pedaços, debochando da nossa esperança.

― Não sei. ― Clarinha passava o rodo com um pano branco seco no chão molhado. Era o dia de ela ajudar na faxina e não sairia para brincar antes disso.

B

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MARIA ALICE DA LUZ 26

― Você pediu a ela que colocasse a carta no cor-reio? ― especulei.

― Não que eu me lembre. Eu ia colocar. Não ela. Eu ia.

― Então ela ouviu nossa conversa.

― Ela mostrou a carta à minha mãe, que a mandou ler. Todo mundo riu da minha cara.

― Não acredito! Leram a minha carta também?

― Também ― completou Maria Clara. ― Agora ficam nos chamando de Chiquititas.

Maria Clara não entrou em detalhes sobre o que aconteceu entre ela e Josué, mas os anos trataram de enten-der a metáfora que ficou no ar. E a vontade de escrever ces-sou. O silêncio custava os doces que caíam com um amargo gosto de inocência perdida, de um contraditório conformis-mo que ia contra a teimosia de quem queria mais do que viver oprimida em um pedaço de mundo.

― Puxa vida, Tita. Vai perder a festa da escola?

― Não quero ir. Ninguém me quer por lá.

― Nossa! Eu no seu lugar iria nem que fosse pra comer os brigadeiros.

― Não tem graça ser café-com-leite nas brincadei-ras.

― Ah, não tem mesmo! Mas vai pra comer os bri-gadeiros e beijinhos. Quem me dera ter uma festa pra poder comer essas coisas gostosas.

― Você não pode ir comigo?

Insisti, mas Meire nem sequer me deixou argumen-tar.

― Vai levar aquela maloqueira sem educação para te envergonhar ainda mais?

― Clarinha vai brincar comigo.

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Simplesmente Tita 27

― Prefiro te ver trancada num quarto a te ver brin-cando com ela. Eu falo pra você não se aproximar, mas você me desobedece e depois não sabe por que apanha.

― Porque a senhora não gosta de mim que nem a tia Margarida não gosta nem um pouquinho da Clarinha.

― E com motivo. Ela sabe a filha que tem.

― Clarinha é só uma criança, só quer brincar...

― E você ainda por cima acredita no que aquela dissimulada fala... Mas nem me venha com sentimentalismo barato porque não me comove. Eu vou cortar o mal pela raiz, te separar dessa maldita menina porque outra Clarinha eu não vou admitir.

Maria Clara nunca ganhou uma festa de aniversário na escola. Eu também não. Ela podia sair para brincar no parquinho próximo a casa. Eu não. Nem sonhando. Lá no colégio, uma inspetora estúpida e mal encarada sempre ex-pulsava os estudantes que chegassem perto do balanço. Nunca participei da quadrilha na Festa Junina porque nin-guém queria ser meu par, então a professora me dava um trabalho para fazer, valendo a nota. Clarinha dançava, com ou sem o traje. Para a paçoca nunca dizia não.

Compareci à festa de despedida da 4ª série, mas to-dos eram indiferentes a minha presença. Nada poderia doer mais. Era como se eu não existisse para ninguém. Assim cheguei aos 10 anos e ao fim do primário os ventos da espe-rança auguravam em meu coração. Uma nova e inesquecível etapa de minha vida teria início naquele mês de fevereiro.

― Sabe Tita, quero que você me conte como é que é a 5ª série, se tem muita matéria difícil, se as pessoas são legais, se é verdade que você vai ter mais professores em vez de só um. ― comentou Maria Clara, penteando uma boneca de plástico que pertencia à Natasha. Se a pequena a visse brincando, faria o maior escândalo para que minha prima devolvesse o pertence e por ser a protegida de Marga-rida, sempre se beneficiava.

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MARIA ALICE DA LUZ 28

― Vou te contar tudinho, tudinho. ― Prometi fi-elmente não deixar escapar nenhum detalhe do novo ano letivo que por si só já era especial, ao menos para a minha pessoa, apesar daquela natural apreensão.

― Quando você vier aqui da próxima vez, as aulas já terão começado e as minhas também. ― Clarinha refletiu enquanto sentava a boneca no colchão do beliche rosa de tubo que dividia com Natasha. Ela ficava na cama de cima, a pequena embaixo.

― No ano que vem você vai sentir isso também.

― Não sei. ― Maria Clara olhou pela janela com certa dor no olhar. ― A quarta série é bem difícil. Já repro-vei a segunda, que nem era tanto.

― Estuda direitinho que não reprova. ― confortei minha prima com um abraço. ― Eu também pensei que não ia conseguir, mas olha só, eu passei!

☼☼☼

Formei-me na 4ª série como primeira da classe. A única criança que não preparava cartões de boas festas para a professora nem sentiria falta dos anos de alfabetização. Meu milagre veio de forma inesperada, sendo mais precisa, com uma mudança de casa que obrigou Meire a me matricu-lar em outra escola no turno vespertino. Lá ninguém me conhecia e nem saberia de metade do que passei. Prometi a mim mesma que começaria um novo capítulo da minha his-tória, para sempre. O ano, 1998. Único. Um dos melhores. Para mim, sem sombra de dúvida. Se o mundo enfrentava grandes transformações, o meu mais ainda.

Josué desapareceu. Repentinamente. Assunto proi-bido para crianças, mas juro por Deus que vi num telejornal local um homem parecidíssimo fisicamente com ele ser de-tido em flagrante após matar um homem em um bar. Levei um susto que arrepiou a espinha. Era ele, sem sombra de

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dúvida. A perversão no olhar. O sorriso maroto e banguela. Não podia ser outro alguém.

Em função do "sumiço" de Josué, Tânia e Josafá foram morar com uma tia, enquanto vó Olívia ficou respon-sável pelos filhos de Margarida e a tia foi para Morretes se amigar com um traficante da região, sem um pingo de re-morso pelo ocorrido. Não derramou uma lágrima, não la-mentou pela vulnerabilidade dos filhos. Não pensou em nin-guém além de si, não priorizou nada que não fosse o prazer. Meire não era a dona da razão, mas sabia a irmã que tinha, entretanto, Clarinha não poderia pagar pelos erros da mãe, nem de ninguém.

Olívia era o porto seguro dos pequenos e não hesi-tou em abrir as portas de sua humilde residência para abrigar os netinhos, tratou de ser linha dura com os mesmos, para que não se perdessem a exemplo de Margarida. A aborda-gem envolvia especialmente Maria Clara, a mais velha, a quem depositava muitas expectativas de uma regeneração. Faria a garotinha gostar de estudar. Ser o que a mãe não foi. Ser alguém. Uma mulher de valor. Em sua limitação finan-ceira, não permitiria que faltasse nada, o que quer que fosse.

Natasha entrou na 1ª série e Hugo conseguiu uma sofrida vaga na creche. Vovó madrugou na fila para matri-cular o menininho. O município forneceria três refeições, uniforme e o que mais necessitasse em turno integral, de segunda a sexta. Seria muito bom que Hugo convivesse e brincasse com outras crianças e desenhasse cores a sua vida. Idêntica sorte Clarinha não teve, porém nunca era tarde para recomeçar.

Naquela casa ninguém ficaria no ócio. Responsabi-lidades cumpridas com todo o rigor. Era o amor de Olívia manifestando-se. Preocupação com o futuro, em moldar cidadãos de bom caráter. Seja lá qual fosse a "maldição", acabava naquela geração. Meire torcia o nariz, ironizando a iniciativa da progenitora por acreditar que os sobrinhos não mereciam uma segunda chance.

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Vó Olívia era técnica em enfermagem e trabalhava em plantões de 12 horas, folgando por 24. Nos dias em que estava em casa, passava boa parte do tempo na cozinha pre-parando bolos, salgados e geladinhos para levantar uma ren-da extra. Na Santa Casa onde trabalhava, os quitutes faziam sucesso. As crianças da rua também pediam bis. Nenhum homem para olhar diferente para Clarinha e Natasha, ne-nhum assassino de cachorros, nenhuma garrafa quebrada. Tão bom ver minha prima calma, cantando, sendo a criança que deveria ser.

1998 ainda estava no comecinho e a palavra-chave daquele ano era a transformação a qual eu também conhece-ria. Um desafio me aguardava. O maior de todos. Igual a antes, nunca mais. Nem se quisesse, se houvesse a mais fiel das reproduções. Nada poderia ser o que foi. Ninguém faria igual.

Cadernos universitários, canetas coloridas à vonta-de, muitos professores, novas disciplinas e o sonho de poder lanchar sem ter de me esconder no banheiro ou ficar perto de uma servente para ninguém me roubar e/ou me bater. Qualquer instituição de ensino seria suficientemente interes-sante vendo por esse ponto.

Sem Cássia e o grupinho das polacas chatas me aporrinhando, sem os garotos babacas abaixando minhas calças, roubando meu dinheiro, meu lanche, me procurando só para conseguir cola nas provas. Sem a professora mal humorada fazendo vista grossa as minhas queixas.

O novo colégio oferecia vagas de 5ª a 8ª série. Po-deria acordar às 09h00min para acompanhar desenhos ani-mados, almoçar pouco antes do meio-dia e logo ao meio-dia e dez, meio-dia e quinze, apanharia o ônibus. O primeiro sinal tocava às 13h00min e o último às 17h30min. Tínhamos 20 minutos de intervalo, às 15h30min, e em um dia da se-mana, como de praxe em muitas escolas estaduais naquela época, não tínhamos uma aula.

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Para Meire era desafio confiar em mim a ponto de me deixar ir à aula sozinha, portanto, alguns dias antes de as aulas se iniciarem, fiz o trajeto de ônibus para memorizar tudo, recebendo recomendações e ouvindo as fantasiosas histórias de mamãe, que só via o lado ruim das coisas, fa-lando de meninas que morriam se chegassem a casa atrasa-das. Horácio, por sua vez, convencia a esposa que minha autonomia fazia parte de crescer. Pegar ônibus, atravessar a rua, ser atenta aos sinais, me enturmar, pois eu era uma das poucas garotas de dez anos que não tinha amigas. Isso ma-chucava. Meire não sabia o quanto.

Maria Clara era alguém que eu conversava, sim. No entanto, não nos víamos com tanta frequência, não igual a ter uma amiga na mesma sala, aquela que você vê todos os dias durante meses, anos.

― Tita já tem dez anos de idade ― lembrou o meu padrasto. ― Precisa aprender a andar sozinha.

― Preferia pagar uma condução e deixa-la no anti-go colégio. ― Meire bradou durante um jantar.

― Sairia muito mais caro, Meire. Você mesma as-segurou isso na semana passada.

― Eu estou feliz, mãe. Quero logo que comecem as aulas. ― comentei alegremente.

― 5ª série não é fácil que nem o primário não.

Meire e seus pré-conceitos.

― Se você achou o primário difícil, espere só o que vem pela frente. Quero só ver as notas, dona Tita. Uma nota abaixo de oito e nossa conversinha com o senhor chicote está marcada.

Todas as séries são difíceis. Algumas mais, outras menos. Mas são.

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4

PRIMEIRO DIA DE AULA

rimeiro dia de aula. Tanta expectativa, an-siedade, tantos planos. Vida nova. Uma nova Tita estava para vir. Eu só tinha meus

10 anos, pouco sabia, mas carregava na alma a certeza de que aquele ano não seria como os outros. Não teria como ser. Jamais.

Impossível dormir no último dia de férias. Tantos pensamentos. Interminável noite de perguntas e mais per-guntas nascendo a todo instante. Insatisfeita por nada poder responder. Justo eu que odiava deixar dever de casa por fa-zer. Não valia nota. Ainda assim, eu me via olhando para o teto procurando pistas, qualquer coisa que me ajudasse a esquecer dos tantos temores e dormir.

Curitiba amanheceu nublada. Friozinho, garoa e a sensação de que dois meses de férias ainda podem ser pouco tempo. Nada disso. Hora de levantar.

Sentada na ponta da cama, olhei para o uniforme dobrado. Cheirei. Novinho em folha, como eu naquela ma-nhã.

― Hoje começa uma nova vida, Tita. Hoje.

Calça preta com uma listra lateral vermelha, cami-seta branca com o emblema da escola. A manga também era preta. E eu sempre gostei de preto, por acaso. Com meia soquete colorida, allstar preto, vestindo por cima da camise-ta uma blusa de moletom com o Mickey e a Minnie Mouse

P

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Simplesmente Tita 33

na frente, sentia-me pronta para encarar aquela primeira tarde.

― Quero você em casa antes das 18h00min. Se chegar depois da hora, apanha de chicote.

― Sim, mãe. Entendi. Estarei em casa às 18h00min. ― assenti em tom de obediência.

― Vou contar no meu relógio de pulso. ― Mamãe mostrava o temível relógio no qual eu sempre estava atrasa-da. ― Um minutinho a mais e já sabe. Está ferrada e a con-versa não será comigo, mas o com o titio chicote.

Saí por volta do meio-dia e quinze. Parei em frente ao ponto, visto que aquele ônibus parava praticamente em frente à escola. Todo mundo conhecia todo mundo. Os me-ninos, como sempre, brincavam, falavam dos desenhos ani-mados, dos tazos, enquanto as meninas conversavam mais discretamente.

Os portões já estavam abertos quando chegamos. Por se tratar de uma região fortemente arborizada, senti um cheiro que me trazia certa paz: o de chuva misturado com mato. Lembra litoral, praia, estrada, renovação. Por ali ca-minhei como se fosse meu próprio lar e seria, a partir daque-la tarde.

Folhas de papel sulfite estavam coladas em todas as paredes. Rapidamente encontrei minha classe. 5ª B. B de bonança, quem sabe. B de bagunceira. E sim, a partir do momento em que entrasse naquela sala de aula eu poderia mentir o quanto quisesse. Não que disso gostasse. Poderia ser necessário.

Algumas pessoas entraram na classe. Na lista eu só vi meninos. Praticamente 25 para oito ou nove meninas, contando comigo. Desleal proporção. Na 4ª série éramos 18 alunas para 14 garotos.

Alguém me cutucou. Uma menina.

― Sabe onde fica a 5ª B?

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― 5ª B? 5ª B é aqui... ― respondi, apontando para uma sala escura e vazia.

― 5ª B é minha sala. ― A menininha meneou a cabeça, confirmando o que eu mais queria ouvir.

― Jura?

― Aham.

― Então vamos ser colegas.

― Ou amigas.

Amigas? Ela estava falando sério?

Entramos e escolhemos dois bons lugares na frente. Ela em frente à carteira do professor e eu ao lado, na outra fileira.

Pele branca quase pálida, estatura praticamente se-melhante a minha, cabelos loiros batendo na altura dos om-bros, lisos e finos. Olhos castanho-esverdeados. Tímida e até um pouco rouca, mas muito, muito divertida. Em pouco tempo já éramos amigas. Seu nome, Francielle.

― Sou de Tomazina.

― Tomazina? Onde é que fica isso?

― Interior. ― Ela riu. ― Eu já estou acostumada com essas perguntas.

Morava com os avós e tinha um cachorro preto, o Pongo. Dele sentia saudades. Ficou em Tomazina sob os cuidados dos pais e dos irmãos de minha amiguinha. Pela foto mostrada, era um belo cão. Não me levem a mal, mas senti inveja de Francielle por ter uma família tão bonita. Pai e mãe juntos, dois irmãos e o Pongo.

Francielle adorava Chaves, desenhos animados e não perdia Maria do Bairro por nada. Duas, então. Ela até chorava assistindo. Adorava matemática, eu português.

Um senhor aparentando cinquenta anos (ou mais) entrou na classe, nos cumprimentou com um entusiasmo sonoro o qual poucos corresponderam.

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Simplesmente Tita 35

― Que desânimo é esse, criançada? O ano mal co-meçou... ― disse Emival, observando bem a todos nós, já habituado a tomar a iniciativa de promover um diálogo ini-cial, uma apresentação formal e natural.

Pousou sua caixinha, abriu-a e tirou um giz branco o qual escreveu seu nome no quadro-negro. Emival Borges. Disciplina: matemática. Já imaginei um Emival carrasco carimbando minha reprovação e eu de joelhos dentro do Box implorando para Meire ter compaixão comigo.

― Comigo vocês verão o quanto a matemática po-de ser uma tarefa divertida...

Emival era casado com Zoraide, a Professora de História. Diziam os boatos que Zoraide era uma professora incrível, como poucas conseguiam ser. No entanto, para minha sorte ou falta dela, Zoraide estava afastada do traba-lho. Se quiserem saber, a única vez em que o docente escre-veu no quadro foi para se apresentar. Depois, nada. Esse sabia o significado de praticidade e o levava ao pé da letra, apesar de se entrosar muito melhor com os números.

Tivemos duas aulas seguidas de matemática, ou se-ja, bate-papo. Emival optou por não iniciar a matéria naque-le dia porque ainda haveria de chegar novos alunos e gosta-ria que todos aprendessem juntos. Foi uma boa desculpa. O mestre permaneceu sentado na carteira a resolver seus livri-nhos de caça-palavras enquanto Francielle e eu nos entrosá-vamos. No intervalo, fui apresentada ao primo dela, João.

― Oi, João. Ela é Tita, minha amiga.

Juntamo-nos ao grupo de quatro ou cinco garotos, não lembro ao certo. Os grandes valentões do colégio.

― E aí? Com quem vocês tiveram aula? ― João perguntou.

― A gente teve aula com o Emival... ― falou a Francielle abrindo um pacote de pipoca doce e oferecendo para os meninos que recusaram e para mim que aceitei um punhado e lhe ofereci bolacha recheada.

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― Emival? ― João soltou uma gargalhada. ― Se você comprou caderno de matemática vai perder tempo.

― Por quê? A matéria é muito difícil? ― pergun-tei.

― Emival nem dá dever de casa. ― esclareceu o veterano.

João já estava no 8º ano e os meninos metidos a va-lentões se aproveitaram de nossa timidez para nos assustar dizendo tantas idiotices que com o tempo descobrimos que não passavam de mentiras.

Quarta aula. Geografia. Entrou na sala um homem de aproximadamente 40 anos.

― Boa tarde. ― vociferou o mestre.

― Boa tarde. ― Uma turma desanimada o respon-deu.

― Mas o que é isso, minha gente? Mal começou o ano e já estão assim? Quero um boa tarde, encorpado. Vocês voltaram do intervalo, não voltaram? Por favor, deem-me um boa tarde, mas um boa tarde com vontade. Com vontade.

― Boa tarde. ― Todos gritaram.

― Também não era para tanto, mas vou considerar o esforço.

Vando. A caricatura e também lenda da instituição, mais conhecido como Vando sem sobrenome porque seu número estava na lista telefônica. O típico professor chato que de tão chato que é, acaba sendo legal.

― Eu não tolero trabalho entregue após a data esti-pulada...

Era o comportamento de 90% dos estudantes ele sabia dessa informação, apesar da fama de durão. Só não ganhava dez quem não entregava o trabalho. Por ser soltei-rão, ter mais de 40 anos e ainda não ter filhos, no fundo de-via gostar de todos nós e todos nós dele também.

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Simplesmente Tita 37

A professora que mais marcou naquele ano foi, sem dúvida, a Daniela, de Língua Portuguesa, com quem tive empatia desde o momento que adentrou a sala. E é assim comigo: posso não ter as respostas prontas nem saber tudo de tudo, mas sei quando uma pessoa entra na minha vida para marcar ou não. Daniela, certamente, moraria para sem-pre no meu coração.

Alguns professores realmente marcam muito mais que outros. Há aqueles chatos, tipo a minha do primário, cujo nome nem se faz questão de lembrar. Outros, por sua vez, fazem história pelo comportamento, aparência. Daniela entrava para a lista dos professores legais que teria na vida.

Daniela aparentava ter uns vinte e poucos anos. Na verdade, vinte e quatro. Parou em frente ao quadro-negro, fitou a classe e nos cumprimentou, procurando manter a naturalidade. Estava um pouco encabulada, desconcertada. Primeiros dias de aula podem ser difíceis para os adultos também.

― Eu não fui muito com a cara dessa professora ― Francielle cochichou comigo.

― Ela parece ser legal. ― contrariei minha nova amiga.

― Por conta de hoje ser o nosso primeiro dia, eu não vou começar a dar matéria. ― Daniela sentou-se na ponta da carteira dos professores: ― Muitos alunos novos ainda vão entrar e quero que todos comecem juntos, então o que acham de escrever um texto? Assim vocês se apresen-tam e eu vou decorando os nomes de todos vocês. Quero saber como estão escrevendo, se têm dificuldades, pois não sei de que maneira a antiga professora de vocês lecionava.

― Sobre o que a gente vai falar? ― Um menino sentado no fundo da classe ergueu o dedo.

Texto com tema livre: eu adorava, pode apostar. Lápis na mão, uma folha de papel e mil ideias. Borracha, para frear minha fértil imaginação. Fim.

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Mas existia um problema: o que eu falaria sobre mim?

― Quem terminar pode vir me mostrar. ― avisou Daniela, sentando-se na carteira.

Terminei antes de todos. Dei uma rápida analisada na classe e a grande maioria ainda estava começando. Le-vantei-me um pouco sem jeito, parei ao lado da carteira de Daniela e coloquei o papel em cima da mesa.

― Já terminou?

― Aham...

Daniela tinha uma voz mansa, doce, acolhedora.

― Então eu vou ler, meu anjo. Posso?

Meu anjo?

Juro que por alguns segundos eu pensei que iria chorar. Realmente cheguei muito perto. Meus olhos estavam marejando.

― Por que não traz sua cadeira e se senta?

― Posso?

A professora do primário no mínimo me mandaria sentar e em voz alta, para me envergonhar diante da classe toda. Riram de mim pelo resto da aula. Realmente os tempos estavam mudando e drasticamente.

― Que texto mais lindo! ― Daniela olhou para os meus olhos. ― Tita?

― Isso. ― assenti com a cabeça. ― Tita.

― Meus parabéns, Tita! Você escreve muito bem para quem tem só 10 anos.

Nem a minha mãe havia me dito aquilo. Nem ma-mãe nem a antiga professora nem ninguém.

― Obrigada, professora.

― De nada, meu anjo. ― Daniela fez um meneio de cabeça e abriu um sincero sorriso para mim. Se o restante

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da classe matava a hora para não ter de terminar o texto, eu, por minha vez, encorajei-me para trocar algumas palavras com aquela jovem e bela professora, alguém com quem eu adoraria me parecer em um futuro a médio prazo.

Daniela e eu conversamos até o sinal tocar. Por mais impossível que pudesse parecer, acabei me tornando amiga dela.

― Eu achei essa professora muito chata. ― Franci-elle reclamou. ― Mandar a gente escrever texto logo no primeiro dia. Que droga!

― Eu gostei muito da professora Daniela. Ela é le-gal! ― Afirmei contente por ter uma amiga adulta.

― Legal com você, que terminou o texto primeiro. ― Retrucou Francielle que curtiu mil vezes mais a aula do Emival e estava ansiosa pela matéria nova.

Terminei o primeiro dia de aula com duas amigas, um texto elogiado e voltando em horário de rush, fazendo a maior bagunça junto com outros estudantes.

Pudera todo ano se iniciar assim.

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5

AS BAIXINHAS UNIDAS JAMAIS SERÃO VENCIDAS

om o passar dos dias, conheci as ou-tras garotas da classe, mas éramos apenas oito contando comigo e Fran-cielle para vinte e cinco meninos en-trando na puberdade. Não tente pen-

sar em outra palavra que resuma isso sem ser BAGUNÇA. Nossa rival era a 5ª A, cheia de meninas. Rafaela, princi-palmente. Fazia a linha patricinha, toda cor de rosa, sempre rodeada de garotas. Até sua voz me irritava. Tudo nela me tirava do sério. Ela não tinha noção do quanto era intragável.

― Olha o tipo dessa cabeçuda idiota. Ela se acha o máximo com essas canetas coloridas.

― E eu não gosto desse pôster dos Hanson. Eu sou fã deles. ― Francielle choramingava.

― Não. Eu é que sou.

― Você eu deixo ser fã número 1, mas essa meti-dinha não.

Tão logo todas as meninas da minha sala odiavam a Rafaela que tinha um cabelo comprido, liso e também sedo-so, brilhante. O cheiro do xampu que ela usava impregnava o corredor e era quase impossível não saber que Rafaela Cordeiro da Costa estava chegando. Ela tinha um estojo cheio de canetas coloridas; não cito apenas aquele quarteto (rosa, roxa, azul e verde) que vinha em um conjunto que eu comprava no mercado, mas numa coleção de 48 cores. Ela

C

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abria a mochila e os olhos curiosos devoravam a caixa de lápis de cor também com cores que não vinham nos modelos simples, com as canetinhas equivalentes e cadernos univer-sitários de capa dura e duas páginas de adesivos coloridos. Meire achava tudo isso uma irrelevância afirmando sempre que dinheiro não dava em árvore.

Rafaela trazia uma revista e já havia uma fila de meninas pedindo o exemplar emprestado, mas Kelly era a melhor amiga, e, portanto, prioridade em comparação as demais, roendo as pequenas unhas de ansiedade. Como vo-cês bem sabem, vinha um pôster de algum artista e nunca um pedaço de papel era tão disputado, as pré-adolescentes enlouqueciam em histeria com qualquer novidade acerca de seus ídolos. Se Rafa trazia um CD (e ela tinha todos os que eu queria, pois gostávamos das mesmas músicas), havia quem trouxesse o rádio para que ouvissem especialmente nas aulas vagas ou de Educação Física.

Vivíamos provocando as meninas da 5ª A só para dar briga porque segundo nós da 5ª B, elas eram umas patri-cinhas idiotas. E eram. Idiotas, metidas, arrogantes. Não nos deixavam nem sequer chegar perto da escada que dava aces-so ao outro lado do colégio. Era onde lanchavam todo dia. Resolvemos travar brigas para ver quem se sentaria ali.

Os barracos da 5ª série rendiam risadas aos mar-manjos da 8ª. Para nós era 3ª Guerra Mundial, questão de vida ou morte. Queríamos mandar na escola, sentar naquele lugar tido por nós como ‘encantado’. As meninas da 5ª B fazem a força. Nosso pífio lema.

Um dia aproveitamos que a 3ª aula era vaga e que a cantina estava aberta para comprarmos nosso lanche e ir correndo para a escada. Fomos. Com nossas pipocas, refres-cos, torrones e balinhas.

― As patricinhas perderam pra nós. ― Eu me ga-bava como se fosse Napoleão Bonaparte ao expandir o seu império.

― Elas perderam ― concordou Francielle.

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Diz um velho ditado que nunca é bom bradar vitó-ria antes do tempo. Dito e feito. Rafaela e suas amigas che-garam. O circo estava armado, respeitável público.

― O que vocês estão fazendo aqui? ― Rafaela nos arrostou.

― Ué, nós estamos lanchando. ― respondi.

― Esse é o nosso lugar. ― Rafaela bateu os pés de tênis cor de rosa no degrau onde eu estava.

― Era! ― De pé empurrei Rafaela que se segurou no corrimão. ― Agora não é mais e vê se procura outro can-to porque esse já está ocupado.

― Não mesmo! ― insistiu Rafaela. ― Eu o encon-trei por primeiro, então ele é meu e eu não sou sua amiga, então não quero você por aqui.

― Mas você não é a dona da escola e sendo assim eu posso sentar aonde eu quiser e você não pode fazer nada.

― Mas esse lugar é meu ― gritou a garota. ― Vai embora você.

― Não me enche porque eu quero lanchar. ― sen-tei-me ao lado de Francielle voltando a comer pipoca doce e beber refrigerante de laranja naquela embalagem chamada de caçulinha.

Rafaela não desistiria da briga assim tão facilmente e apanhou a minha bolsinha de lanchar, dando a entender que queria um acerto de contas e não sossegaria enquanto não tomasse o seu lugar novamente.

― Você ainda não foi embora? ― ralhei, fazendo a mesma coisa que a Cássia Reis, a malvada da outra escola fazia comigo.

― Não ― disse.

― Devolve a minha bolsa.

Rafaela passou a bolsa para a Kelly e uma ficou jo-gando para a outra, mesmo com os meus protestos. Impaci-

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ente, decidi que resolveria aquele assunto na briga, literal-mente falando. E com um empurrão.

― Você me empurrou? ― Rafaela estava possessa.

― Sim, empurrei!

― Você me empurrou!

Empurrei de novo.

― Eu não acredito Rafa! Você vai deixar ela te empurrar? ― indagou Kelly, a melhor amiga de Rafaela.

― Claro que não! ― replicou à baixinha, revidan-do com outro empurrão.

Rafaela e eu trocamos alguns puxões de cabelo. Meu primeiro atrito. Francielle, para me defender, começou a puxar os cabelos da minha rival e começou assim uma briga generalizada que só cessou com a chegada da diretora.

― Dessa vez eu vou deixar passar, mas da próxima todo mundo vai para a minha sala, vai levar advertência e eu vou chamar os pais. Onde é que já se viu meninas lindas e inteligentes ficarem aí brigando à toa? Que coisa mais feia!

Por debaixo dos panos, as picuinhas continuavam. Inevitavelmente, a rixa movimentava ambos os grupinhos. Perdia-se a luta, mas jamais a guerra. Tão comum de ser criança, fazer tempestade quando apenas um pingo de chuva tocou o antebraço. Tão bom que tudo se resolvesse com pipocas e caramelos.

Diante de Meire eu fingia que ia a escola “só para estudar”. Isso mudava assim que eu colocava os pés para fora de casa e ia para o meu mundo, para o lugar em que ninguém sabia nada do que passei nos horrorosos anos de alfabetização. Mal sabia mamãe que minhas amiguinhas e eu brigávamos com as patricinhas pelo lugar na escada, fa-zíamos baderna no ônibus, a aula do Emival era uma zorra e até boné eu estava usando. Eu era, sem dúvida, outra Tita. Não mais a miudinha boba, o saco de pancada do primário.

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No Carnaval, fui visitar Maria Clara. As aulas dela também haviam começado e a turma dela já era a mais ba-gunceira de toda a escola, deixando a diretora possessa. E lá contava ela do Marcos, um veterano bagunceiro que sentava no fundão e tocava o horror, no bom sentido. Todos o admi-ravam porque a rebeldia dele inspirava a confiança que os pequenos ainda haveriam de conhecer.

― Você tinha de vê-lo, Tita ― narrava a Clarinha. ― Ele pulou o muro no intervalo sem um pingo de medo.

― E a inspetora não o pegou em flagrante?

― Que nada! ― Clarinha abanou as mãos. ― O Marcos não tem medo de nada nem de ninguém. Se a pro-fessora grita com ele, ele grita com ela também e não quer nem saber. Ele senta com as pernas cruzadas em cima da carteira, sempre está animando a classe, sem contar que quando pula o muro pra não ver alguma aula chata, sempre volta com doces pra todos nós, mas pede para a gente não deixar a professora ver.

― Ele traz balas pra vocês assim sem ninguém dar dinheiro?

― E isso é que você não sabe da maior: ele pega as coisas sem ninguém vir.

― Mas isso é o mesmo que roubar. ― protestei.

― Se ninguém descobre não é crime.

― É crime do mesmo jeito e é errado.

Clarinha bufou:

― Viu só como não dá pra contar nada a você? Até parece a chata da sua mãe que vive reclamando de tudo.

― Roubo é crime, Clarinha. O Marcos é um ladrão.

― O Marcos não é um ladrão.

― Quem rouba é ladrão sim.

― Pelo menos o Marcos é muito mais legal que es-se bobalhão do João.

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― Pelo menos o João não é um ladrão.

― O Marcos não é ladrão e é muito legal, bem mais legal que esse idiota do João. ― repreendeu Maria Clara, indignada porque eu tenha falado a verdade sobre a sua paixãozinha de 4ª série.

― Quem rouba é ladrão. Todo mundo sabe disso. E o João não é nenhum idiota.

As proezas daquele tal de Marcos não me impressi-onavam. Valente por valente, o João era bem mais. E edu-cado, ainda por cima. Não saía furtando lojinhas e se sentin-do o maioral por isso. Marcos era, senão, mais um abesta-lhado sem educação que perturbava a aula. Clarinha, no entanto, estava obcecada e eu me irritava com isso.

― Quando ele falta, o colégio fica muito chato. ― suspirou a admiradora secreta do tal Marcos.

― Você gosta dele, né?

― Claro que não. ― ela balançou negativamente a cabeça.

― Clarinha, você só fala dele.

― Ué, você não conta as coisas da sua escola, não conta? Eu falo da minha... ― Maria Clara contornou, com notável ciúme. ― Pois a burra aqui ainda está no primário, aí nada do que eu contar vai ter graça.

― Não começa com isso, Clarinha.

Vó Olívia não deixava Clarinha sair para brincar enquanto não conferisse os cadernos e visse os deveres prontinhos. Até mandava refazer se as contas estivessem erradas.

― Vou ter que estudar bastante nesse ano. A vó Olívia não quer que eu reprove de jeito nenhum.

― Não por nada, mas ela está certa.

― Você tem sorte de ser inteligente.

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― Eu estudo para as provas, ainda mais que a mi-nha mãe me bate se eu tirar nota vermelha. Se você está com medo, imagino só eu: tenho vários professores e várias ma-térias.

― Um professor só de matemática?

― Aham! Mas até que ele não é brabo. Pelo menos até agora.

― Da matemática eu nunca vou gostar. ― desde-nhou Clarinha que sempre me interrompia quando eu estava lhe contando sobre as minhas aventuras.

Na Páscoa nós combinamos que a Maria Clara iria passar o feriado em minha casa, caso tivéssemos bom com-portamento na escola e tirássemos notas azuis. Eu torcia para ter muito que contar à minha priminha, com a condição de que ela não interrompesse a cada três frases para falar daquele intragável do Marcos o qual eu nem conhecia pes-soalmente, mas já achava um baita antipático.

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6

DE PROFESSOR E LOUCO TODO ALUNO TEM UM POUCO

sperei a Francielle chegar. Tocou o pri-meiro sinal, o segundo e nada. Nenhum sinal de minha amiguinha. Provavelmente

esticou o feriado. Nada mais justo. A saudade dos pais devia ser maior que desenhar na aula do Emival. Exatamente da maneira que você leu. Meu professor de matemática tinha uns surtos de criatividade e nos trazia resmas de folha sulfite as quais deixava em cima da carteira.

― Desenho na aula de matemática? ― Uns per-guntavam aos outros, confusos. Desenharíamos talvez qua-drados, cubos, triângulos, algo relacionado à matéria dele, a princípio. Logo eu que nunca gostei nada de geometria e nunca entendi direito para que servia o tal do esquadro o qual todo ano a escola pedia naquela lista extensa de materi-ais escolares.

― Peguem! Podem pegar! ― vociferava o mestre, indicando as folhas de papel sulfite que se encontrava em sua carteira, junto com os cadernos de chamada e os livros didáticos, aqueles com os quais eu sonhava, pois continha o gabarito de todos os exercícios propostos.

Alguns adoravam essa folga e com a desculpa de desenhar, conversavam a aula toda, tomando bomba nas provas. Eu, por minha vez, sendo uma negação com os nú-meros, preferia não desenhar, mas seguir o conteúdo do li-vro, então "desconcentrava" o mestre sentando minha cadei-

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ra em frente a ele, enchendo-o de perguntas. Resultado: tirei 9,5 no bimestre, enquanto a classe toda amargava dois ou três pontos, até zero.

Sem Francielle, fui à biblioteca, fiz meu cadastro e decidi efetuar o empréstimo de um livro. A bibliotecária recomendou A Mina de Ouro, da Maria José Dupré, a quem eu conhecia porque devorei a coletânea do Cachorrinho Samba. Eu amava tanto o Sambinha que o adotei simboli-camente. Depois, minha meta foi devorar a Coleção Vaga-lume inteirinha, semana após semana.

No outro dia, nenhuma notícia de Francielle. Pas-sava o recreio lendo sentada debaixo de uma árvore, en-quanto as outras crianças corriam. Em um mundo só meu, onde vivia época as quais nem sonhava que pudesse haver tanta riqueza de sonhos e detalhes, onde a imaginação da criança era a chave certa para um portal de um mundo novo, admirável. E quem via um livro fechado, não entendia por essa perspectiva, não sonhava, não sabia o quanto as pala-vras significavam.

Quando o sinal tocou, encontrei-me com João e ele acenou para mim, aproximando-se fisicamente.

― Tudo bem com você, tampinha?

― Não tem nenhuma tampinha aqui não. Qual é?

― Tudo bem, tampinha casca grossa. ― João re-cuou, me provocando. ― Não está mais aqui quem caçoou da tampinha.

― Ei, a Fran está doente?

― Você promete que não vai chorar?

― Por quê?

― É que a Fran não vai mais vir. ― disse ele, pa-recendo chateado por mim: ― Ela voltou para Tomazina.

Meus olhos deviam estar cheios d'água, pois João se sentiu culpado por ter de dar a notícia.

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― Me desculpa! Eu não queria te fazer chorar! ― Uma das mãos de João pousou sobre o meu ombro e eu dei um passo para trás, ele assentiu com a cabeça e partiu.

Retirei-me, desolada. Esbarrei na Prof.ª Daniela, que imediatamente notou minha tristeza.

― O que houve meu anjo? Está chorando.

Daniela me abraçou sem pensar duas vezes e foi correspondida. Ela pegou-me pela mão e levou-me para conversar.

― Sua amiguinha foi embora, não foi?

― É... Foi...

― E você sente saudades dela?

― Sim... E agora eu não vou mais ter outra amiga.

― Como não?

― A Fran saiu da escola. Agora eu não vou mais ter com quem conversar. ― solucei com cabeça baixa.

― Por que não dá uma chance às outras meninas? Elas também estão se adaptando ao colégio e com certeza vão querer conversar com você. Por que não tenta?

― E se elas não quiserem falar comigo?

― Aí o problema é delas. ― simplificou Daniela. ― Mas o fato de você ser amiga das outras meninas não quer dizer que você não possa ser amiga da Fran.

― Ela já foi embora, não volta mais.

― E quem disse que para ser amiga é preciso estar grudada com a pessoa? Não é só porque a Fran foi embora que vocês deixarão de ser amigas. Já pensou em se corres-ponder com ela através de cartas? Você tem o endereço de-la? Se não tem, pode descobrir.

― Acho que o João sabe.

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― Então fala com ele, pede o endereço e manda a cartinha, Tita. Eu tenho certeza de que ela vai ficar bastante contente com isso.

― Vou mandar a carta.

― E me promete mais uma coisa.

― O quê?

― Promete que não fica triste?

Eu ainda estava triste, seria difícil prometer que não iria chorar.

― Eu sou sua amiga, não sabia?

E sorriu.

☼☼☼

As outras meninas eram muito legais, embora não substituíssem o vazio deixado. As cartas poderiam demorar a chegar, mas quando chegavam, iluminavam meu dia.

A professora de História era séria até por demais, a de Ciências me deixava preocupada, pois não entendia uma palavra sequer do que dizia. Neiva, a de Educação Física teve de berrar muito comigo por não ter paciência com mi-nha falta de habilidade esportiva. Era a que eu mais detesta-va. O professor de Artes era bem sossegado e só de estar na aula você já ganhava 10, porém ele tinha problemas cardía-cos e teve de se ausentar, entrando no lugar uma professora muito arrogante que não ia com a minha cara, dizendo sem medo que me reprovaria porque eu não sabia desenhar.

A professora de Inglês era muito bonachona, queri-da, amorosa. Não chegava aos pés da Daniela, mas também era minha preferida. Achei que teria dificuldades em apren-der Inglês, contudo, só tirei dez em todas as provas e traba-lhos. Cantávamos para nos acostumarmos com a conversa-ção e nada mais interessante que entender desde cedo que

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traduzir ao pé da letra era um grande erro, uma vez que as palavras possuem mais de uma conotação.

Os meninos não sabiam falar de outra coisa que não fosse o programa das ‘gostosonas’ que estava bomban-do na TV. As meninas estavam todas vidradas no Jack Daw-son e eu fiquei meio de fora dessa febre. Foi meio esquisito, pois as minhas amigas e eu combinamos de assistirmos ao Titanic no feriado. As bilheterias estariam lotadas, então sairíamos bem cedinho. Arrumei-me com borboletas no es-tômago e sentei-me no sofá apenas esperando a mãe de mi-nha amiguinha vir me buscar. Percebi que esqueci minha carteirinha e fui buscar. Quando voltei para a sala, percebi que minha mãe estava lá fora se despedindo da mãe da Mari.

― Tita infelizmente não poderá ir ao cinema. Fica pra outro dia. ― Meire respondeu, encaminhando-se para dentro de casa. Quando ela passou a chave na porta princi-pal, trancando-a e suspirando com alívio, eu ainda estava em estado de choque.

― Mãe!

― Por que está arrumada? ― Meire olhou para mim da cabeça aos pés e não se comoveu. ― Onde é que você pensa que vai?

― Vou ao cinema, oras. ― respondi ainda crente de que iria suspirar pelo Di Caprio numa poltrona qualquer de cinema.

― Quem te deu permissão? ― Meire falou mais al-to fingindo-se de desentendida, como se ela anteriormente não tivesse dispensado Neide.

― A mãe da Mari veio me buscar.

A decepção estava prestes a encher meus olhos com as mais sinceras lágrimas de frustração.

― Eu acabei de dizer a ela que você não vai. ― Meire deu de ombros, sentando-se no sofá e apanhando o controle remoto da mesa de centro, ignorando por completo a minha vontade.

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― Mas eu ia com ela. Marquei com a Mari e... ― Posicionei-me exatamente em frente à televisão para tomar-lhe a atenção.

― Nunca marque algo sem a minha permissão. ― Meire esgueirou-se para a ponta do sofá e ligou o televisor, aumentando o volume de propósito. Em outras palavras, ficava o dito pelo não dito.

― Mas eu pensei que...

― De pensar morreu um burro. ― Meire fez a mesma careta que me irritava desde sempre. ― Quem você está pensando que é, menina? Está pensando que pode man-dar em mim?

― Poxa vida, mãe! Eu estudei direitinho, fiz tudo e as meninas me convidaram.

Avançando em minha direção, Meire agarrou com as duas mãos em meu pescoço. Os olhos esbanjavam uma raiva doentia contra a minha pessoa. Era só raciocinar à for-ça dela contra a minha. Eu nada podia, nada faria. Seus de-dos pressionaram jugular com tanta força que a marca ficou ali por dias.

― Mãe, para. Eu não estou conseguindo respirar.

― Você não vai ver filme nenhum.

― Mas eu queria ver...

― Eu já disse que não.

― Por quê?

― Quer saber por que, quer? Quer, não quer?

― Quero...

Meire das Neves esbofeteou o meu rosto seguidas vezes, rasgou meu vestido rosa chá floreado, me chutou no chão e me espancou até que eu desmaiasse. Eu me lembro até hoje daquelas chicotadas que deixaram minhas costas em carne viva o feriado inteiro. Desculpas ela jamais pediu e, aliás, demorei semanas para conseguir olhar em seus olhos.

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Foi deprimente na segunda-feira ver as meninas suspirando pelo Di Caprio, contando todos os detalhes do filme, marcando de ver outra vez e eu tendo que mentir que tive febre, usando casacos mesmo com as costas machuca-das e com uma tristeza que nem mil coelhinhos de chocolate curariam.

☼☼☼

Por ter sido amiga da Francielle, João e seus ami-gos nunca me zoaram e eu era a mascote da classe dele. Ali-ás, eu era a mais nova da minha turma também. Minhas companhias eram a Mariana Franco, a Mariana Oliveira (repetente) e a Juliana.

A Mari Franco tinha um irmão na nossa sala, o Le-onardo, que na verdade deveria estar se formando na oitava série. Cheguei a dormir na casa dela algumas vezes, nor-malmente para fazer trabalhos, embora a lição de casa fosse apenas uma desculpa para satisfazer minha mãe.

O pai da Mariana trabalhava num jornal e chegava muito tarde, mas segundo minha amiga, o salário compen-sava o sacrifício. Dona Neide, mãe da Mari e do Léo, era uma fera na cozinha e fazia cada quitute mais delicioso que o outro, tanto que todas as vezes que fui lá, alimentei-me como uma princesa. Ela me admirava por ser aplicada, dis-ciplinada e manter a notas acima da média, comparando-me frequentemente com a filha.

― Por que não segue o exemplo da Tita e vira es-tudiosa também?

― Ai mãe, não enche. ― Mari, comendo bolacha recheada na mesa da cozinha, retrucava.

― Olha o respeito, menina. Quer levar um tapa na boca?

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― Ai Tita, fala pra minha mãe que o importante é passar...

― Mas eu não te vejo pegando num livro, criatura. Chega a casa e vai correndo ver TV, depois rádio e só de fofoca no telefone. Não é isso que compreendo como estu-do... O quarto, que é bom, nunca arruma...

― Ai mãe... ― Mariana resmungava, cansada de ouvir sempre o mesmo repertório.

― Ai mãe... Ai mãe... Ai mãe eu quero só ver no final do ano, dona Mariana. Eu sou uma mãe legal, permis-siva, mas não quero criar repetente debaixo da minha asa não. Responsabilidade tem que ter desde cedo. Você só es-tuda, só faz isso da vida, então tem que ser igual à sua ami-guinha e fazer tudo direitinho.

Mari era preguiçosa e ainda sentia muita falta do outro colégio, dos amigos e estava indo muito mal nos estu-dos, sobretudo em matemática. Nem sequer desenhava na aula do Emival porque entregando qualquer rabisco e ele dava visto de participação. Todos, somados, ao final do bi-mestre representavam uma significativa fatia da nota final.

Mariana, ao contrário de mim, não via a hora de ar-rumar um namorado e só pensava em meninos o dia todo. Primeiro era a obsessão pelo tal do Roni, depois o Welling-ton, da sexta série e mais tarde o Romário, um vizinho novo que se mudou para a rua dela. Pobres dos meus ouvidos que tinham que aguentar a Mariana Franco descrevendo até quantas vezes os moleques respiravam.

Neide não aprovava as paixonites da garota e vivia dando bronca.

― Você ainda está muito nova para pensar em na-moricos. ― aconselhava Neide. ― Quem procura, acha.

― Ai mãe...

― Ai mãe... Ai mãe... ― Neide imitava a voz es-candalosa da filha. ― Ai mãe que se eu falasse com a minha mãe do jeito que você fala comigo, levava um tapa na boca.

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Simplesmente Tita 55

Por que você não é igual à Tita que só pensa em estudar? Eu iria preferir bem mais.

Sei que essas comparações machucavam Mariana Franco. Ninguém gosta de ser rebaixado diante de quem quer que seja. As virtudes devem ser consideradas. Pessoas são diferentes e têm facilidades ou dificuldades. Ninguém saberá de tudo, nem poderá dominar todas as áreas de co-nhecimento. Inútil tentar.

Se a realização de Neide era uma filha como eu; por minha vez meu desejo era a liberdade de Mari, de poder conversar com a mãe sem levar bordoada até por pensar. A rarefeita atmosfera debaixo de meu teto me fazia crer que qualquer lar era mais feliz que o meu.

Mari tinha colo de mãe. Eu não. Alguém no mundo por ela sempre rezaria. Neide morreria por Leonardo e Ma-riana. Morreria e mataria pelos seus pintinhos. Era dura quando tinha de ser, mas acima de tudo assumia-se manteiga derretida quando era carinhosamente surpreendida pelos amados pimpolhos.

Embora fosse um pouco ‘precoce’, vivi muitos momentos divertidos da minha infância ao lado de Mariana Franco, brincando com ela na rua de jogar vôlei, esconde-esconde. Meire, nada surpreendente, desgostava das minhas companhias e torcia o nariz ao ter que me levar até a casa de minha amiga.

― Você pode muito bem fazer o trabalho sozinha.

― Não posso não. O professor quer que seja em dupla.

― Você está indo demais a casa dessa menina.

― A Mari é minha amiga.

― Você tem dedo podre para fazer amigos, hein, menina. Só arruma traste. ― ela debochou. ― Imagina só quando chegar à idade dos namorados... Bom... Se bem que acho difícil que você vá arrumar um namorado algum dia.

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― Nem penso em namorado.

― E ai de você se pensasse. Se algum dia eu te vir de abraço com moleque, dou bordoada nos dois...

Horácio e o voto de minerva me garantiam alguma diversão porque nos fins de semana em que eu não visitava Maria Clara, ficar em casa me entristecia, embora as faxinas de sábado sempre me ocupassem por mais da metade do dia. Felizmente, Meire sempre gostou de limpar os aposentos ouvindo música, sendo maleável ao escolher a estação de rádio. Somente depois de o chão estar encerado com esco-vão e os móveis sem resquícios de pó, saíamos para passear. Antes disso, jamais.

Mariana Oliveira era filha de uma dona de papela-ria e graças as suas gentilezas é que pela primeira vez tive acesso a uma caneta de gel e de presente recebi várias, des-sas que custavam um olho da cara. Ela tinha uma relação problemática com o padrasto e não conhecia o pai biológico.

Juliana era mais zen e sempre tentava apaziguar tu-do, encontrar solução para o que estava perdido. Eu, por minha vez, pouco falava sobre mim e quando fazia, por mais que fosse errado, eu mentia. Mentia muito, muito mesmo. Pensava que se fosse sincera, iriam se afastar de mim e tudo voltaria a ser como no primário.

☼☼☼

No Dia das Mães, nossa professora de Artes, Ivana Bretas, sugeriu que fizéssemos cartões aplicando nossos conhecimentos até o presente momento. Meire odiou o meu.

― Credo, que coisa mais horrível. Se eu fosse essa professora Ivana, te reprovava, garota.

― Pensei que ficaria feliz por ganhar um presente. ― A decepção estava registrada nos meus olhos de jabuti-caba.

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― Você chama isso de presente?

― A D. Neide deve ter gostado muito do cartão de-la.

― Mas eu não sou a D. Neide. ― A grande troglo-dita ironizou enquanto rasgava o cartão em mil pedaços no chão da sala. ― Cada porcaria que chamam de presente. ― Meire suspirou com arrogância. ― Até parece.

No dia seguinte, escolhi para quem ofereceria o ou-tro cartão que com amor fiz. E ela sabia. Inesperadamente, uma boa surpresa. O sorriso aberto era a recompensa. Rece-bendo com tanta ternura que me culpei quando vi a doce e amável Daniela com os olhos cheios de lágrimas, lendo a mensagem que escrevi sem copiar de lugar nenhum. Minha melhor amiga.

E um abraço, por fim.

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7

3X0

Quando chegou a época da copa do mundo sediada na França, nós alunos fomos muito beneficiados pelos jogos do Brasil, pois quando havia partida da seleção brasileira nós não tínhamos aula, em função do horário em que os jo-gadores entravam em campo. O ponto era facultativo em algumas repartições.

Meire considerava desnecessário todo aquele alarde e não fazia questão de saber o placar.

― Por isso esse país tem a fama ruim que tem ― moralizava Meire das Neves, odiadora número um de even-tos esportivos de grande repercussão, datas comemorativas e tudo mais que unisse as pessoas. ― Em vez de melhorarem a qualidade da educação, dos postos de saúde, ficam aí cho-rando por jogador de futebol, parando tudo para ver jogui-nho inútil, como se isso fosse pagar as contas de todo mun-do. Se torcer contra a seleção fizer de mim antipatriota, en-tão eu sou.

― Mas é só um jogo, mãe.

― E por acaso eu lá sou obrigada a gostar de fute-bol? Tenho o direito de não gostar. Quem perde ou não com os jogos são os jogadores e os anunciantes, esses que saem ganhando em cima das estrelinhas. Nós, meros mortais, na-da. Só perdemos tempo depositando expectativas nessa sele-ção que quando é para ter um bom desempenho perde até para time africano. Vê as Olimpíadas de Atlanta? Fizeram o auê que fizeram e perderam para a Nigéria. Que fiasco!

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Quando coloca muita expectativa em cima de alguém ou de alguma coisa, sempre vai resultar em decepção. E tenho dito. O Brasil não vai ser campeão. E se for: no que isso altera o rumo da minha vida?

Enquanto escrevo, só consigo pensar nas aulas do Emival as quais ele ligava a televisão e nos permitia acom-panhar as partidas. Ainda que fossem jogos de outras nacio-nalidades, era interessante acompanhar porque víamos quem tinha reais chances de desbancar o Brasil, certo de um pen-tacampeonato, porque quando é dado o apito inicial dentro de campo, o azarão pode desmontar o favoritismo, o resul-tado é imprevisível. Meu professor, louco por futebol como era, daqueles que calculavam de cabeça as probabilidades, que sabia de cor e salteado a escalação da seleção de 1958, aproveitava para assistir e comentar tudo o que sabia. Para os meninos era um prato cheio. Eles estavam ansiosos para completarem o álbum da copa. Nós meninas gostávamos de usar as faixas no cabelo com as cores da bandeira, imaginar a seleção dos nossos sonhos, coisa e tal. Eu, por exemplo, colocava meus bichinhos de pelúcia no sofá e brincava de copa com eles, fazendo de conta que eu era narradora e re-pórter, aquela que no final do primeiro tempo conversava com o treinador, tentava dar uma palavrinha com o capitão, e vibrava com os gols do Ronaldinho que no meu time de brinquedos era um urso marrom parecido com o Pooh (por causa da camisetinha vermelha).

Inevitavelmente, todo mundo entrava no clima, até a Prof. Daniela que nem era tão chegada a futebol comenta-va sobre o torneio. A Mariana Franco, por exemplo, era Co-xa Branca de família, mas por umas semanas virou Atletica-na por causa de um menino da rua dela (as mil e uma paixo-nites da minha amiga lerda) e engrossou a legião de torcedo-res paranistas quando descobriu que outro amor seu era fa-nático por esse time.

Eu assistia domingo sim domingo não partidas de futebol com o meu padrasto que era Gremista. Ele tinha de trabalhar mesmo em dias de jogo do Brasil cujo ponto em

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muitos locais era facultativo, então eu acompanhava tudo na televisão de 14 polegadas que foi para o meu quarto no Na-tal anterior, quando Meire e Horácio adquiriram um apare-lho de 29 polegadas para a sala e levaram a antiga tevê para o aposento do casal.

Meire, definitivamente, desejava morar em outro planeta para não ouvir falar de futebol.

No dia da final entre Brasil e França, Mari Franco me convidou para ver a partida na casa dela e lá fui eu, a contragosto de mamãe, que naturalmente queria que a Fran-ça fosse campeã para a "putaria" cessar. Gostando ela ou não, paz não teria porque na maioria das casas, o clima era puramente de festa. Uns chamavam os outros para ver o jogo, qualquer que fosse o resultado, embora todos quises-sem uma goleada de Ronaldo. Até eu, por que não?

O pai da minha amiga havia comprado uma televi-são de 29 polegadas e os parentes estavam reunidos. Som alto, churrasco assando, D. Neide a mil por hora na cozinha, vigiando os fornos. Pudim de leite em um e bolo prestígio no outro. Maionese na geladeira. Mari e eu enrolando os brigadeiros e beijinhos salpicando-os no granulado e no co-co ralado, respectivamente. Mariana, no entanto, estava mais comendo do que ajudando.

― Estou vigiando, Mariana. Roubar da própria mãe é feio.

― Eu pedi e você não deu. ― explicou a Mariana Franco, mimada de nascença.

― Você? ― Neide exercia a autoridade de mãe. ― Com quem você pensa que está falando, Mariana Franco? Eu não sou você, sou senhora. ― Repreendia as reinações da filha, e por fim, deu um muxoxo, voltando a trabalhar. ― Aprendem essas manias na escola...

― Me desculpe. ― disse Mariana, abaixando a ca-beça e devolvendo um beijinho para a forminha cor de rosa.

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― E quando quiser apanhar brigadeiro, primeira-mente peça. É muito feio roubar. E vê se não come demais porque senão vai ficar com dor de barriga.

Meire não me permitiu comprar a camiseta verde e amarela que todos estavam usando, então minha amiguinha me emprestou uma bandana verde com estrelas amarelas. Mal soubemos que a bola já rolava no gramado porque as buzinadas eram tantas que era quase impossível não ter de falar alto.

Dois minutos depois, o silêncio tomou conta da ca-sa. De todas elas. A única voz a ressoar era a do locutor na televisão. E tão somente. Com o primeiro gol da França, aflição. A reação viria. Todos se levantariam do sofá para comemorar a grande virada. Não veio. Um segundo gol. Unhas roídas, lágrimas acudidas nas pupilas. O tempo corria no cronometro. Calculando logicamente, haveria tempo de levar para a prorrogação, ainda que prolongasse a ansiedade do público.

Nós crianças choramos, esganiçamos, queríamos entrar naquele estádio e decidir a partida de qualquer manei-ra, não aceitávamos aquele resultado injusto. Brigadeiros não nos consolavam. Concordar com Meire era mais difícil do que pensava. Porque eu não queria. Meire era o pensa-mento oposto. Não estava de todo errada. Não naquele dia. Expectativas culminam em desilusões. O terceiro gol da França era a prova nítida disso.

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8

AS FÉRIAS DA MINHA IMAGINAÇÃO

A copa da França já havia acabado, era férias de verdade e eu estava plantada em casa, vendo televisão, escu-tando música e devorando algum livro. Certo, eu não estava contente, faltava algo. Insatisfação cabia melhor no meu registro, o meu nome do meio. A previsão do tempo não era nada auspiciosa para a sonhadora incorrigível, nada de neve em Curitiba. Nada de viagens, nada de realmente interessan-te para contar às meninas quando as aulas voltassem.

Se as férias perfeitas não aconteciam, eu as inven-tava, está certo?

Correto!

Por mais que eu ainda não soubesse que era uma escritora e tampouco me sentisse como uma, as palavras estavam ali, fossem para aliviar aquele improdutivo tédio ou tão somente extravasarem-se nas linhas. Fosse como fosse, o céu era logo ali.

Decidida a viver as férias dos meus sonhos, apos-sei-me de um caderno brochura em branco o qual Mari Oli-veira me presenteou, apanhei uma caneta e pus-me a dar vida a um diário de viagem o qual somente o impossível acontecia. As linhas protegiam aquele segredo o qual alme-java realização. Algum dia. Em algum momento da minha existência.

Tudo começa, portanto, quando acordo naquele sábado de julho, o primeiro das férias, e escuto um choro

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insistente de um cachorro. Dirijo-me até o portão de casa e encontro o filhotinho preto sentado e ganindo como se não houvesse amanhã. O pobrezinho deve estar faminto e seden-to, longe do aconchego da mamãe, das brincadeiras dos irmãos, perdido num mundo grande e perigoso.

Meire, varrendo a garagem, não deixa de notar a presença do bichinho e estando com um humor maravilho-so, se comove com o cãozinho preto e eu nem preciso me esforçar muito para adotá-lo. Forramos o chão da área de serviço com folhas de jornal e preparamos um caixote com cobertor velho para o animal ficar aquecido durante as longas e frias noites de inverno.

No entanto, as surpresas (boas) não param por aí.

É uma segunda-feira comum de férias, aquelas em que você criança dos anos 1990 se divide entre a Eliana, o Bom Dia & Cia e a Angélica, sobrando um tempo para o Lucas Silva & Silva lá na TV Cultura, comigo não era nada diferente. Eis que depois do almoço me ajeito no sofá para ver Chaves, Chapolin e Os Simpsons e escuto uma buzina que com certeza é em frente à minha casa. Levanto-me para olhar quem é e reconheço o Kadett preto modelo 1993 do papai.

Félix Linhares está aqui.

— Manhê! — aviso na maior empolgação do mun-do.

— O que foi agora, Renata? — pergunta Meire limpando a cozinha como de costume em todas as tardes após o almoço. Mamãe se incomoda com sujeira e tem hor-ror a louça acumulada na pia, migalhas pelo chão e cestos de lixo cheios.

— O papai está lá fora! — confirmo pulando como se eu fosse passar as férias em Acapulco junto com Chaves, Chiquinha e Seu Madruga.

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Meire deixa o pano de prato em cima da mesa de jantar, como se não acreditasse no que acaba de ouvir, indo confirmar pessoalmente o tal milagre.

— Sim, Meire. — explica Félix. — Quero saber o que a minha menina acha de vir morar comigo?

Félix se acocora para fazer carinho no cachorri-nho e eu vejo Meire encostada à parede, alheia a tudo, cho-rosa, emocionada, tentada a me abraçar, me chamar de princesa, bebê, amorzinho, tudo o que não me chamou ao longo de dez anos, prometendo-me dinheiro para o lanche todos os dias, canetas coloridas, as bonecas mais bonitas, tudo para que eu não a deixe.

Félix Linhares, cordato e muito cavalheiro, oferece um lenço tirado do bolso da calça para que Meire das Ne-ves, aquela mulher que nunca chorava em público, se acal-me. Então, eu saio para brincar com o cachorrinho no quin-tal e eles entram novamente em casa para conversarem em particular e eu quando não consigo acompanhar o pique do meu mascote, sento-me no gramado do quintal olhando o ninho de joão-de-barro que estava sendo construído quando eu me mudei para aquela propriedade e agora já estava grande. Conversa de gente grande nunca é tão breve, cabia-me esperar.

Eis que a porta principal é aberta. Meus pais saem sorrindo, abraçados como se fossem velhos amigos. Os dois se sentam ao lado do gramado comigo e Meire que nunca foi dada a me acarinhar, afaga meus cabelos com os dedos, segura meu rosto com ternura, sorri com os olhos rasos de lágrimas, trocando um olhar cúmplice com o meu pai. Por aquele instante eu podia sentir que era a filha mais feliz do mundo. Meus pais não estavam mais brigando. Eu gostaria de tê-los sempre daquela maneira, calmos, em paz, unidos por um fruto em comum, que era eu.

— A decisão final depende da Tita. — conclui uma Meire que falava em um tom sereno, delegando aquele di-

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reito a mim, o direito de decidir, de dizer sim ou não para o que quer que fosse.

— Qual decisão?

Félix e Meire sorriem um para o outro.

Eu nunca poderia escolher um em detrimento do outro porque os dois faziam parte de mim. Para que eu pu-desse dar atenção a papai e mamãe sem que nenhum deles ficasse em desvantagem, ficou combinado que eu passaria os fins de semana com Félix e voltaria na segunda-feira de manhã para ir à escola, estudando direitinho, fazendo os deveres de casa, obedecendo, colaborando com as tarefas do lar, sendo, em resumo, uma boa menina.

Pelo menos na teoria é o que todo mundo sonha.

— Papai tirou férias só para passar todo o tempo com a minha princesinha predileta.

E embora tecnicamente eu fosse uma garota de dez anos que não queria ser chamada de criança, não era tão grande que não coubesse no colo de papai.

— Para onde você quer ir, filhinha? — pergunta Félix durante o nosso jantar: pizza. Pizza de mozzarella, calabresa, garrafas de vidro da Coca Cola e um pote de sorvete de flocos.

— Eu queria ver neve, pai. — respondo sentindo o queijo derreter no céu da boca.

— Que tal São Joaquim?

— São Joaquim?

Papai conferia a previsão do tempo todos os dias, um hábito sagrado que eu também cultivava. Sim, a possibi-lidade de nevar em São Joaquim e Urupema era bastante grande, o que nos levou até uma loja de departamento para que eu comprasse roupas de frio.

— Pai, o senhor se importaria se mais alguém fos-se conosco?

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— Sua mãe? — pergunta Félix, me ajudando a sair da loja com algumas sacolas cheias de roupas para a via-gem. — Podemos perguntar a ela.

— Mamãe não gosta de frio e acho que ela não iria ficar muito à vontade.

Juntos, Félix e eu buscamos Maria Clara e os ir-mãos para todos nós conhecermos São Joaquim. Vó Olívia acena para nós nos desejando uma boa viagem, dizendo que só não nos acompanha porque não está de férias no traba-lho, senão iria conosco. Para a nossa felicidade mais do que completa, está nevando na cidade, a previsão do tempo não fala sobre outra coisa.

Nós, com os nossos agasalhos e gorros, saímos da pousada para brincarmos com as outras crianças da cida-de, fazemos pequenos bonecos de neve, desenhamos cora-ções, sóis e escreveríamos os nossos nomes em letra de for-ma nos vidros embaçados dos carros, Félix coloca um filme de 36 poses na máquina fotográfica para registrar aquele momento mágico e todos nós terminamos a viagem comendo balas de banana no carro, prometendo voltar no ano que vem.

— Da próxima vez, Tita, nós convencemos a duro-na da sua mãe a vir junto.

— Ir para a Disney conosco?

— E por que não? — sorri Félix.

Seria fantástico, se pudesse ser real, como nas no-velinhas que eu via, as quais um milagre sempre salvava a mocinha do perpétuo sofrimento. E eu não duvidava nem um pouco que Meire das Neves aceitasse embarcar nas aventuras radicais dos parques temáticos em Orlando, afinal, no mundo dos sonhos nada é proibido.

☼☼☼

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Nos anos 1990, a grande maioria das emissoras abertas de televisão dedicava boa parte da sua programação ao público infantil. Todas, todas. Globo, Manchete, SBT, TV Cultura, cada qual com suas atrações. Eu fui agraciada por poder escolher o que assistir e por ter também acompa-nhado vários clássicos como TV Colosso, Castelo Rá Tim Bum, Chiquititas (as primeiras temporadas da versão de 1997), Carrossel (a versão mexicana de 1989 que reprisou algumas vezes na década de 1990), Passa ou Repassa, TV Animal, Xou da Xuxa, X-Tudo, Caça Talentos, dentre outros títulos que provavelmente reaquecerá a memória daquele meu leitor que já passou dos vinte e poucos anos e tem certa propensão a nostalgia.

O consumismo sempre fez parte dessa teia de inte-gração, no entanto com um país ainda enfrentando muitas dificuldades no âmbito econômico, é de se imaginar que boa parte da população degustava seus sonhos de consumo pela tela da televisão. Eu fiz parte da estatística de crianças que viram a bicicleta Ceci da Caloi ou aquela Monark 16 mar-chas somente nos folhetos de lojas, que não ganhou a bone-ca da Eliana nem completou a coleção das bonequinhas das Chiquititas. Missão de mestre explicar a uma criança que não é possível comprar aquela Barbie que ela viu na propa-ganda e que mesmo assim é possível se divertir muito com a imaginação. Meire das Neves não tinha nenhuma habilidade pedagógica para abordagens e já vinha com sermões e bofe-tadas caso houvesse insistência de minha parte.

Com Maria Clara, o cenário era ainda pior. Aqueles lanches que enchiam os olhos dela eram fora de cogitação. Trailer da Barbie, roupas da Lilica Ripilica, só se fosse por intermédio de doações. Peças gastas, simplórias, no máxi-mo. Material escolar fornecido pelo governo. Minha avó não podia oferecer a mochila de rodinha que Clarinha tanto de-sejava e todas as menininhas tinham, com exceção dela. Minha amiga não queria voltar à escola. O tal do menino Marcos, aquele valentão por quem ela tinha uma quedinha, desapareceu. Para onde se meteu ninguém nunca soube res-ponder.

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Clarinha não viajaria. Não para a Disney, nem para São Joaquim. Veria aquele admirável mundo novo pela tela da televisão. Vó Olívia não poderia ausentar-se do trabalho, não dispunha de condições financeiras para custear capri-chos acessíveis a outras crianças, do outro lado da cidade, aquelas que víamos nos telejornais, no Dia das Crianças, escolhendo nas lojas todos aqueles brinquedos que moravam nos nossos sonhos, as mesmas que eram filmadas em 25 de dezembro exibindo-se com seus presentes nos parques, que em janeiro brincavam despreocupadamente na areia da praia e em fevereiro tinham o primeiro dia de aula mostrado. Pri-minha observava tudo àquilo sem disfarçar o descontenta-mento. Questionava vovó.

― Por que essas meninas podem ter tudo e eu não?

― Inveja não é bom, Maria Clara. Tire esses sen-timentos do seu coração. ― Vó Olívia advertiu, dando aten-ção a lavar os ingredientes na pia.

― Só queria entender por que elas têm tanto e eu não tenho nada. ― Maria Clara pressionava a avó, julgando que atrás do quadro com um retrato de Olívia, na parede principal da sala, estivesse escondido um caminho até um calabouço escuro onde havia um baú repleto de pedras pre-ciosas, brinquedos caros e roupas descoladas. Ela, prova-velmente, queria a senha de acesso ao cofre ou coisa do tipo, enquanto tudo que a pobre Olívia tinha era o salário contado para durar até o final do mês e crédito no mercadinho da esquina, onde comprava a comida da semana.

― Porque sim. ― respondeu vovó, me ajudando a descascar uma cenoura.

― Porque sim... Porque sim não é resposta. ― Cla-rinha trotou, reclamando da água gelada, que odiava legu-mes, a escola, o frio.

― Deus não gosta de ingratidão, Maria Clara.

― E Deus quer que eu sofra enquanto tem um monte de menina sendo feliz e tendo tudo que eu queria ter?

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Olívia desconversou, voltando a descascar a batata para preparar a sopa de legumes do jantar. Nós a ajudáva-mos cortando a cenoura já descascada. Nada melhor que a sopa de vovó para ajudar a resistir ao frio de um típico in-verno do Sul.

― Então, vó, eu nasci pra ser favelada? ― Maria Clara insistia, como se a resposta de vovó fosse definição de vida ou morte.

― Chega disso, Maria Clara. ― Olívia aumentou um pouco o tom de voz, para expressar a insatisfação por aqueles interrogatórios da neta. ― Quer fazer o favor de ficar quieta? Por que você não é como a Tita, que é quieti-nha, hein?

― Eu só estou fazendo perguntas.

― Você está reclamando da vida e Deus fica muito triste com isso.

― Eu só quero saber por que não posso ter nada.

― Não presta ser ingrata, menina. Você tem muito. Você tem mãe, tem saúde, comida na mesa, uma cama para dormir. Do que você tanto reclama? Eu comecei a limpar casa de família com a sua idade e nunca reclamei. ― Vovó reiterou impaciente, vendo o reflexo da filha na neta. ― Eu comecei ajudando a minha mãe por alguns trocadinhos, não tive boneca da moda nem nada disso que você está falando e estou viva. Não tirou pedaço de mim. Não fez falta. É essa sua geração maldita que fica querendo o que não pode ter, que se contamina com esses consumismos todos e não dá valor pro sacrifício que os pais fazem pra dar o pouco que se tem. O que tem que se ensinar é a agradecer, apreciar, e não exigir, especialmente se não merece. Até nas orações, muita gente só pede coisas a Deus, mas não agradece. O pior é que tem pai e mãe bobos que caem no truque do comércio e se enchem de dívidas para mimar aos filhos. Comigo não tem isso. Não é não. Se não quiser entender, o problema é seu. Outra coisa: se você fosse ao hospital que eu trabalho e vis-se o tanto de criança que não pode nem comer por causa do

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câncer, iria adorar saber que vai ter sopa pra jantar essa noi-te.

Clarinha, entretanto, não se conformava com o que a vida lhe oferecia porque queria mais do que estava ao al-cance. Não estava errada de todo. Caso se acomodasse, se-guiria os trilhos até Margarida e perpetuaria a falta de espe-rança, se seguisse o caminho mais difícil e aceitasse os con-selhos de vovó, poderia a muito custo sonhar um pouquinho. Ainda era menina, a fé não poderia perder. Não haveria de acontecer. Não com ela, que já sofria tanto e tinha motivos para revoltar-se. Sobrando. A oferecer a quem estivesse en-tediado de tanta perfeição.

Priminha ainda tinha a "sorte" de passar uns dias em Morretes, com Margarida. Eu, nem isso. Na minha clas-se, todas as meninas viajaram. Mariana Franco e Leonardo foram passar uma temporada com os parentes de Neide. Mariana Oliveira estava na casa da avó, em Bagé. Juliana pousava na casa da madrinha, também longe de Curitiba.

☼☼☼

O diário imaginário ajudou-me a fazer os dias pas-sarem mais depressa e não perder o hábito de escrever.

Todos tinham alguma novidade para contar. Maria-na Franco e Leonardo foram para o Beto Carrero com um primo. Mariana Oliveira estava recebendo uma prima em casa. Juliana ganhara um cachorro Poodle da estimada ma-drinha. Eu ouvia a tudo me sentindo completamente invisí-vel, um verdadeiro nada, uma pessoa sem graça, sem qual-quer experiência, alguém que no grupo nada acrescentava. E não tem nada pior que sentir inveja. Ela corrompe a inocên-cia. Na comparação, você sempre perde. No meu caso, dis-paradamente.

Aquele sentimento de inferioridade atrapalhava minha concentração, coçava nas paredes da alma. Tinha de

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me livrar daquela colossal angústia. Voltar à atenção para mim. Superar as proezas dos demais. Ser a novidade. Mas como? Como eu faria isso? Minhas férias tinham sido um tédio só, com exceção de um ou dois dias em que visitei Maria Clara, meus dias resumiram-se a ver televisão, escre-ver no meu diário imaginário, comer, dormir, tomar banho. Ninguém se interessaria nos pormenores das inexpressivas férias de Tita. Ninguém.

― Vocês acreditam que eu fui à Disneylândia?

― Fala sério? ― Os olhos arregalados da Juliana deveriam ter sido fotografados.

― Que sorte, guria! ― bajulou a Mari Oliveira.

Inventei com tanta convicção que até mesmo os professores deslumbraram-se com a riqueza de detalhes com que eu relatava minha imaginária viagem aos Estados Uni-dos. Sempre me disseram que uma mentira cem vezes con-tada torna-se verdade.

― E as fotos? Quando é que você vai trazer as fo-tos para a gente ver? ― indagou o professor Vando.

― Os negativos queimaram. Não é uma pena? ― respondi.

Tornei-me a celebridade da escola e até autógrafos cheguei a dar. Todos vinham me perguntar como era a Dis-ney e eu, fantasiosa que só, os deixei impressionados, iludi-dos, completamente encantados. Mariana Franco se sentiu ofuscada, coitada.

Diz um velho ditado: 'A mentira tem perna curta', eis que no dia seguinte, quando minha mãe foi apanhar meu boletim, o professor Vando a abordou para questioná-la so-bre a viagem.

― Não teve viagem nenhuma. Possivelmente a Re-nata inventou isso tudo. Renata imagina coisas por demais. Imagine se ela, estudando em escola pública, teria condições de viajar até o estrangeiro? Crianças sonham demais. ― Mamãe acabava de arruinar minha reputação perante alunos

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e docentes, além de ralhar comigo em público, o que por si só já era humilhante.

Mesmo tendo recebido a medalhinha de honra ao mérito por ter obtido médias acima de oito em todas as dis-ciplinas, Meire teria um bom motivo para dar início ao pri-meiro ato da série Surrando Tita. O palco era sempre o mesmo e os diálogos alteravam-se dependendo da tempora-da. Tita era quem estava crescendo e não mais suportava tanta intolerância. Um pito talvez, mas só pelo seu olhar demoníaco sabia que iria à aula no dia seguinte com as cos-tas em carne viva.

― Por que inventou isso? Ficou louca? ― berrava minha mãe, me empurrando para dentro de casa.

― Seria bem pior que dizer que não viajei. ― Ao menos fui um pouco sincera. ― Todo mundo da minha tur-ma fez algo legal nas férias, menos eu. ― Fiz um beicinho magoado. ― A Juliana ganhou um Poodle, por que não po-demos ter um cachorrinho?

― Você já incomoda, por que eu iria querer um animal?

― Por que não?

― Porque eu não quero.

Meire puxou minha orelha esquerda e arrombou a porta do banheiro com um chute. Esse era o prelúdio do terror. Meus gritos implorando por piedade eram o combus-tível para que Meire prosseguisse.

― Um dia eu ainda te mato. Você só nasceu para me incomodar.

― Para, mãe. Por favor.

De joelhos no Box. Chuveiro quente.

― Tira a roupa. ― ordenou.

― Mãe... ― A minha voz ressoava pelo banheiro exorando pela clemência que mamãe obviamente não teria.

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― Quer que eu repita?

Chutes, muitos chutes. Ajoelhada. Minhas lágrimas se misturavam ao aguaceiro que caía sobre minha cabeça. Chicotadas. A cada toque eu sentia minha pele ir junto, caindo pelo ralo.

― Repete tudo que disse para os outros, vagabun-da. Amanhã você vai à aula com regata para todo mundo ver o que acontece com vagabundas mentirosas que nem você.

Naquele dia, pela primeira vez, desejei com força que um caminhão passasse por cima de mamãe. Era horrível assumir que a odiava com todas as minhas forças, assim como passei a abominar meu pai desde que ele se casou com Helena.

A quem eu teria no mundo senão a mim mesma?

"Minha mãe é má. Amanhã mesmo eu vou pedir para a Prof.ª Daniela me adotar. Ela sim devia ser minha mãe. Gosto mais dela do que da minha mãe."

Ainda bem que Meire jamais descobriu meu diário imaginário onde eu contava a vida como queria que fosse. E nunca foi. Nunca chegaria a ser.

Já se passavam dois anos desde que papai casou-se com Helena. Se para Mari Franco, D. Neide era uma heroí-na, Meire para mim era o próprio diabo encarnado em uma mulher fria e insensível. Pai era apenas aquele homem que me mandava tele mensagens com música ao fundo a cada aniversário. E só.

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MENTIR NUNCA É LUCRATIVO

e celebridade a piada da escola. Do luxo ao lixo. Perdi toda a moral que tinha, in-clusive a confiança das minhas amigas.

― Mentirosa idiota! ― Mari Franco virou o rosto para mim no outro dia, evitando contato físico.

― Não fala mais com a gente. ― Mari Oliveira de-cretou, virando de costas para que eu não lhe dirigisse a pa-lavra.

― Falsa. ― Juliana completou, mostrando a lín-gua, imitando a amiga.

A fileira onde sentava esvaziou-se e todos me evi-tavam. Trabalhos em grupo eu tive de fazer sozinha e nos intervalos só chacotas.

― Mentirosa... ― O povo da minha classe gritava em uníssono se eu abrisse a boca para emitir alguma respos-ta em classe ou se me encontrasse na fila para o lanche.

A implicância com as estudantes da outra sala ain-da existiam, mas já nos suportávamos mais, tanto que eu até já conversava com a Rafaela e inventei um boato de que as meninas da minha sala queriam bater nas amigas da Rafa. Minutos depois, estávamos às quinze garotas na sala da dire-tora e todas contra mim.

― Renata, Renata. O que eu faço com você? ― in-dagou Vera Lúcia, a diretora. ― Se você continuar desse

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jeito eu não terei saída senão entrar em contato com a sua mãe

― Não, diretora. Minha mãe não, minha mãe não... ― Eu implorava me ajoelhando, esganiçando.

― Eu não estou vendo outra saída pra você.

― Por favor, me dá mais uma chance.

― Por isso mesmo, querida. Tua mãe precisa saber o que está acontecendo com você para poder te orientar.

― Ela vai me bater, ela não vai nem ouvir...

― Não vai.

― Vai. Claro que vai.

― Eu vou conversar com ela acerca da sua adapta-ção.

― Por favor, diretora, não fala nada. ― coloquei-me de pé. ― Eu juro que me comporto, que não apronto mais, que nem passo por aqui, mas não chama minha mãe, é só o que eu peço.

― Então, Renata, — explicou Vera Lúcia —, você tem que me prometer que vai se comportar. Eu vou te dar essa chance, mas preciso ver se há comprometimento da sua parte com o acordo.

Salva pelo dramalhão.

Saindo dali, encontrei a Prof.ª Daniela, que como não poderia deixar de ser, ouviu tudo.

― Tita, Tita! O que você estava fazendo na sala da diretora?

― Eu? Nada...

Ela fitou-me diretamente. Senti medo com um mis-to de decepção.

― Eu não quero que você me esconda nada, Tita. ― pressionou Daniela, tendo de ser dura com a sua amigui-nha. ― O que está acontecendo?

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― Nada...

E as lágrimas inundavam meu rostinho.

Incondicionalmente. O sentido dessa palavrinha amplificava-se. De frente para ela. Alguém com o dobro da minha idade, um pouco mais. O triplo de sabedoria. Do mundo conhecia mais. Outros sabores, outros sentimentos, outras pessoas. O melhor e o pior delas na mesma face. Sendo as crianças não tão ingênuas, capazes de mentir, dis-simular, aprontar, machucar. Às vezes deliberadamente, às vezes por puro descuido. Por brincar demais no mundo do faz-de-conta, o gélido pranto era merecimento, minha co-lheita.

― Podemos conversar no intervalo?

Nunca mais adentraria minha classe. Reprovaria. Pediria para ser expulsa. Não queria encarar ninguém, nem que soubessem no que se resumia meu breve passado. Al-guém, finalmente, tomou conhecimento.

― Meu anjo, sua mãe deveria saber dessas coisas todas. Não pode guardar tanta dor no seu coraçãozinho.

― Ela não se importa. Nunca se importou.

― Não deve ser verdade.

― E é. Se nem meu pai gosta de mim, por que ela iria gostar? Ela já disse várias vezes que queria que eu nun-ca tivesse nascido.

― Deve ter falado num momento de raiva, descon-trole, mas não deve ser isso que ela pensa de verdade.

― Mas pensa... E muito...

― Uma mãe nunca pensa isso de um filho. Nem por um segundo. E quando pensa, pede perdão aos céus.

Abracei Prof.ª Daniela. No mundo, éramos apenas nós duas. Alguém correspondia ao meu gesto de carinho. Alguém sabia que a solidão palpitava de inverno a inverno. E eu confiava nela. Muitíssimo. Via-a uma figura materna. Soube, então, o que era um colo de verdade.

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― Você não precisava ter mentido, Tita. Não é mentindo que se conquista amigos.

― Eu sei, mas se contasse a verdade, aí é que nin-guém iria querer se aproximar.

― O problema é das pessoas. Nem sempre as pes-soas especiais são aceitas com facilidade, se é que o são.

― E quem disse que eu sou especial?

― É sim.

― Quem me dera...

― Você é especial, mas ainda não se deu conta dis-so. Você não precisa agir como uma idiota para que gostem de você. Quem tiver de gostar, vai gostar de você exatamen-te como é.

Prof.ª Daniela talvez não tivesse plena idade para ter uma filha de dez anos, no entanto exalava o dom da ma-ternidade ao lidar com crianças com muito mais amor que Meire.

― Eu sei. ― assentiu a docente, adotando uma postura conciliadora, ponderada, tão diferente do destempe-ro agressivo de Meire, aquela que me fez conhecer melhor do que ninguém que a palavra medo faz todo o sentido para muitas crianças mundo afora, crianças que eu não conheci quando não passava de uma, mas que tal qual eu, não co-nheciam o amor dentro do lar. O teto proporcionava a prote-ção que existia na teoria porque na prática era a violência que dava as cartas. ― No primário também pegavam no meu pé. Entendo como é difícil, mas pior que isso é se tor-nar igual a essas pessoas que nos fizeram mal. Isso é muito pior. Mata a pureza.

― Você acha que um dia isso vai passar?

― Tudo nessa vida passa. ― refletiu Daniela olhando para a janela enquanto me embalava em seu colo. ― Tanto os momentos ruins quanto bons acabam passando. A vida passa e o melhor que a gente faz é vive-la como tiver

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de ser, aceitando as fases que vêm e vão, sabendo tirar de cada uma delas alguma coisa que a gente possa levar adian-te. Nada é tão ruim que não tenha nada de bom.

Tínhamos nossos segredos. Encontrávamo-nos na minha sala e lanchávamos juntas nessa época. Pediu meu telefone para conversar com Meire. Desconversei, temendo a rispidez de mamãe, a reação. Poderia resultar em mais hematomas. Só havia uma desculpa para que pudéssemos conversar sem levantar suspeitas. Era mentira, era. E era o que me restava: dizer que Daniela era a mãe de uma ami-guinha. Ainda assim, Meire não aceitava esse pretexto. Um pingo de chuva era tempestade. Uma palavra desencadeava uma inimaginável discussão.

― Porque essa garotinha vive ligando para cá?

― Porque ela é minha amiga. ― expliquei durante o jantar.

― Eu já disse que você não tem amigos. Quem são eles? Amigos imaginários não contam.

Eu tinha uma amiga imaginária na fase dos meus cinco ou seis anos. A Laila. Fazia algum tempo que não conversava mais com ela. Perdeu a graça servir chá a quem não bebia, convidar quem aos meus aniversários nunca apa-recia nas fotos no caso de eu tirá-las, explicar à mamãe que eu sentia Laila no meu coração, conquanto ninguém a visse, ela existia dentro de mim. Fortemente. Mas eu já tinha dez anos de idade, queria ter amigas de verdade, novidades a compartilhar, ser integrante efetiva da turma, aquela que quando faltava à aula, todos se preocupavam, aquela que no aniversário levava ovadas de todos. Não há nada pior que ser insignificante. Lidar com essa certeza é demasiadamente humilhante.

Laila era tão indefesa quanto eu, quanto qualquer outra criança, mas nunca se machucava porque nunca seria de carne e osso. Se por um lado protegia-se de toda a mal-dade do mundo, também desconhecia as sensações propor-cionadas pelo crescer. Não apenas imaginar que tinha uma

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amiga porque entre o sonho e a realidade estava a minha vida, em linha cruzada.

― Se você continuar falando com amigo imaginá-rio, eu sou capaz de quebrar o seu lombo com um chicote. Vai ser normal nem que me custe caro.

― A Dani não é imaginária e é muito legal.

― Mas eu não gosto que ela ligue para cá.

― Se depender da senhora, eu não vou ter nenhum amigo na vida. A senhora nunca gosta de ninguém, todo mundo tem defeito, não presta, é chato, é isso, aquilo...

― Mas eu vou à escola a qualquer dia desses para saber o que você anda fazendo. Uma queixa e eu te surro até morrer.

Praxe de Meire das Neves. Insultos, bordoadas e ameaças. Muitas. De minha parte tão somente o silêncio. Prof.ª Daniela ficava bastante atônita, mas me jurava que ao que dependesse dela, eu estava livre da surra.

Resolvi me focar nos estudos até a poeira baixar. As notas aumentaram consideravelmente e até o Prof. Van-do parou de me aporrinhar.

― Você me perdoa?

― Desde que não vá à onda desses que ficam men-tindo por aí. Mentir nunca é lucrativo.

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A NOVATA

inhas amiguinhas voltaram a falar comigo e aos poucos o resto da sala também. Eu já estava praticamente aprovada em todas as disciplinas, conti-

nuava sendo amiga da professora Daniela, tentando desco-brir o sobrenome do professor Vando e sendo a única aluna do Emival porque os outros preferiam desenhar. Já havia devorado a Coleção Vagalume e estava conhecendo outros títulos da literatura infanto-juvenil brasileira. Penava para não tirar nota vermelha em Educação Física, com a Neiva, a pior professora daquela escola.

Quando a treinadora deu para cismar comigo, foi uma barra pesada. Eu não tinha intenção nenhuma de ser medalhista olímpica ou de integrar a seleção brasileira de vôlei, como também não tinha habilidade para dar piruetas no ar, chutar uma bola de futebol e menos ainda para fazer arremessos de três pontos ou quebrar algum recorde mundial. Eu apenas queria ter média para ser aprovada e passar despercebida na fila indiana que separava meninos de meninas, os aptos dos inaptos. Ser a última do time, o que não era tão problemáti-co porque Juliana não acertava as manchetes, sacava para fora e nunca entendia o rodízio na quadra. Mariana Franco detestava jogar bola e sempre fugia das escalações feitas pela docente que não engolia os dramalhões e a obrigava a participar. Felizmente nesse momento eu me sentia de certa maneira acolhida por saber que Neiva Montalvão se irritava com a lerdeza da Mariana Franco que ao contrário de mim

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nem sequer se esforçava para participar das atividades. Se ler revistas adolescentes contasse pontos, Mariana estaria aprovada no segundo bimestre.

Pouco antes do feriado de 07 de setembro, uma menina nova chegou à nossa turma. Finalmente uma garota. Quase sempre eram meninos. Sempre eles. Unidos. Em maioria.

Duas garotas estudaram conosco no primeiro se-mestre, mas apesar de andarem no meu grupinho, não me marcaram. Francielle, que ficou três semanas estudando comigo, representou muito mais.

E aquela jovenzinha que se sentou na 4ª carteira da fileira da janela faria muita diferença na minha vida, poderia vir a ser uma boa companhia para os agitados in-tervalos?

As outras meninas não estavam com vontade de re-ceber a novata, julgando-a precipitadamente. A princípio ela me lembrou de algum detalhe de Francielle e por isso houve a gratuita simpatia.

Havia chegado uma carta de Francielle naquele dia, por intermédio de João. Prometia ela que viria me visitar em Curitiba. Esperava ansiosamente por essa ocasião. No entan-to, aula de Geografia, sendo uma das minhas favoritas, era imperdível por si só, porque sem o Vando a matéria era cha-ta. Porque de tão chato ele era legal. De bom caráter. Res-ponderia a carta com mais calma, durante o feriado, possi-velmente. Com uma nova aluna, a curiosidade em conhecê-la crescia dentro de mim. Seria uma grande amiga ou então uma estranha. Só não seria indiferente àquela figura.

― Nova aluna?

― Sim.

― E eu acho que te conheço. ― Prof. Vando anali-sou a garota e perguntou, apontando na direção dela com o dedo indicador: ― Aline?

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― Eu mesma, professor ― Aline trazia segurança no tom de voz.

― Pois seja bem-vinda ao nosso colégio. ― sorriu o professor.

― Obrigada!

Aline, tímida, levantou-se e entregou o bilhetinho com seu nome na carteira do professor.

― E como estão Rubinho e a dona Nice?

― Vão bem... ― Aline respondeu, posicionada ao lado de Vando que anotava o nome completo dela no livro de chamadas.

Vando e Aline se conheciam. Pensei em mil possi-bilidades. Pela manhã, ele lecionava em outra escola da re-gião. Naquela época do ano quem se transferia buscava fugir da reprovação. Seria o caso de Aline?

― Tita é a aluna mais aplicada da classe e caso es-teja atrasada na matéria, pode pedir o caderno dela empres-tado para não perder o ritmo.

Os meninos estavam mais interessados em jogar tazos, minhas amigas estavam falando mal da novata. Co-chichando. E eu odiava quando se comportavam dessa ma-neira, omitindo as virtudes que tinham em função do despei-to. Por coisa alguma. Eu me via um pouco em Aline, temen-do o novo, sem saber o que reservaria o futuro, por isso não entrei na onda das meninas de zoar sem nem conhecer.

Aline voltou para seu lugar e mesmo a aula de geo-grafia estando superinteressante, eu queria conversar com a novata. A curiosidade me fazia observá-la, ainda que de relance. Quando era correspondida, voltava a anotar o que Vando escrevia no quadro.

Prof. Vando podia ser tosco em algumas ocasiões — e isso costumava ser bem frequente, tratando-se dele, mas nunca ninguém explorou tão bem as bacias hidrográfi-cas e a geopolítica como ele, ninguém nunca explicou todas

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as ramificações da geopolítica com um brilho nos olhos proveniente de quem ama verdadeiramente a sua profissão, mesmo com todas as mazelas enfrentadas pelos docentes no ensino público. Eu nunca fui craque em desenhar mapas e Vando que no quadro também não desenhava o Brasil com tanta perfeição considerava o esforço. Eu nunca tirava me-nos de nove em geografia e não entendia como a lesada da Mari Franco iria levar bomba.

Vando era uma fera. Contou ele em uma aula que descobriu sua vocação aos vinte e cinco anos de idade, quando ingressou na faculdade de Geografia e teve uma grande identificação com as disciplinas. Ninguém que eu conheço, além de mim, gostava da matéria dele. Mariana Franco odiava decorar nomes de rios, não desenhava mapas, nem sequer sabia que o Brasil tem uma pequena parte de sua extensão localizada no Hemisfério Norte. Na cabeça dela, garotos. Sempre eles. Garotos, beijo na boca e adolescência. Com onze anos já aparentava uns treze e eu mesmo dando pinta de boné com a aba virada para trás ainda continuava com cara de dez.

Aline estava mais interessada em mexer na sua agenda cheia de clips, embalagens e sem o professor ver, ouvia música no fone de ouvido... Curtia o mesmo que eu, na certa. Era As long as you loved me – Backstreet Boys, uma das músicas que Meire abominava de tanto que eu ou-via. Spice Girls e Sandy & Junior também estavam em sua lista negra.

Mandei um bilhete a Aline, respondido em seguida com um grato sorriso. Na segunda aula, nós grudamos nos-sas carteiras de madeira e acabamos ouvindo música juntas na entediante aula de Artes.

― Tita? Adorei seu apelido.

― Na verdade meu nome é Renata, mas eu só gos-to que me chamem de Tita.

― Você tem moral. Até o professor te chama de Tita.

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― É... ― cocei a cabeça tentando pousar de meni-na popular. ― Você é de outra cidade, né?

― Sim, sou. E você?

― Sou de Curitiba mesmo.

― É simpática demais para ser curitibana.

― Você acha? ― ri um pouco constrangida com o comentário. Não com a novata, e sim com a reflexão dela.

― Sim, eu acho.

― Por que será que pensam que curitibano é anti-pático?

― Você deve ter percebido que foi a única pessoa que veio falar comigo. Isso explica tudo.

― Quanto às meninas, fica fria. Elas são um pouco tímidas, mas vão gostar muito de te conhecer.

― Se todas forem legais que nem você é acho que eu vou gostar. Ah! Eu sou de Prudentópolis.

― Ah, legal! Como é que era lá?

As outras meninas fizeram um piquenique sem a minha presença, mas jamais me arrependi de ter passado o intervalo com Aline, pois juntas dividimos muitas balas e ela me contou sobre Prudentópolis, os amigos que por lá deixou. Iria voltar para passar o feriado com os parentes, por isso permaneceu até metade do 4º tempo, quando saiu e se despediu de mim. Logo tratei de enturmá-la porque sei co-mo é ruim não ter amigos, perder os maiores agitos e não desejava isso para ela, por isso a endeusei para gostarem dela, porém as meninas estavam irredutíveis.

― Essa guria deve ser uma patricinha. ― Mari Oliveira desabafou.

― Você nem falou com ela! ― retruquei.

― Só pelo jeito dela já dá a entender... ― Mari Franco se intrometeu.

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― Vocês são umas idiotas mesmo. A Aline é gente boa e vocês estão perdendo de conhecer uma menina super legal que podia entrar para a nossa turma.

― Na nossa turma ela não entra! ― As meninas gritaram juntas.

― Invejosas.

― Que seja... ― Mariana Franco deu de ombros: ― Essa guria é uma metida e a gente vai fazer da vida dela um verdadeiro inferno depois do feriado.

― Vocês são mesmo umas invejosas...

― Chata é essa garota e a gente vai mostrar a ela quem manda.

Eu não poderia permitir que humilhassem uma ga-rota sem dar a ela a chance de se mostrar, ser amiga. Era o que faziam comigo no primário e eu odiava, não desejava a ninguém experimentar a gratuita intolerância.

☼☼☼

07 de setembro seria um daqueles feriados prolon-gados os quais quem quisesse iria ao litoral, regra que não se aplicava ao meu lar. Jamais. Meire, ao ver a movimentação dos carros pela televisão, criticava.

― Bando de ridículos. Mal pode chegar um feriado que esse povinho tem de enfiar os traseiros dentro dos carros para tostar nesse litoral nosso, todo capenga, cheio de lixo pela areia, naquela água suja que insistem em chamar de mar; cheio de águas-vivas atacando os banhistas, daquelas barangas exibindo as bundas horríveis pensando que são dançarinas de axé. Mergulham e abocanham um cocô de brinde. Aquela água é puro esgoto, aquela areia esburacada. Toda hora está morrendo gente afogada. Os bichos do mato vão lá ficar se tostando no sol do meio-dia e sobem a serra

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com insolação. Bem feito. Tudo para dizer depois que foram à praia e apareceram na televisão.

― Ai mãe, credo!

― Credo? Credo? Esse litoral daqui não presta. ― Falava justamente quem não recolheria nenhum dejeto do “límpido” mar de Matinhos.

― A senhora nunca vai à praia.

― Praia só dá o que não presta.

― Não é verdade.

Melhor não contrariar a tirana, mas, sim, eu queria ver o mar. Muito. Que criança não gosta de molhar os pés na água, catar conchas?

Até o gosto do sorvete é diferente quando estamos na praia. Achava graça tirar o chinelo para correr na areia quente. Não doía. Não se comparar com as chicotadas de Meire. Na igual proporção de ter um cachorrinho eu almeja-va rever o mar algum dia. Nunca fui criteriosa com raça do cãozinho, não me importo à mínima com isso. Apenas que-ria um amiguinho de quatro patas que amansasse aquela irracional fúria de Meire. Alguém para dedicar amor.

Sem praia, bom seria conformar-me em ver televi-são e terminar o último livro que havia emprestado na bibli-oteca da escola. Mas um pensamento fixo me perseguia hora após hora: e se as meninas fossem maltratar Aline? O que eu poderia fazer para evitar?

Era uma situação de fogo cruzado porque se eu de-fendesse a novata, seria o novo alvo do grupo. Não tornaria a reviver todos os traumas do primário. Isolamento. Angús-tia. Temor. Ameaças de todos os lados. A mercê de uma doentia perseguição contra a minha pessoa. Somente contra mim.

De joelhos para o menino Jesus, eu perguntava o que de tão errado haveria comigo, para tanto ódio gratuito, tanta implicância, tanto desprazer com minha presença?

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Meus primeiros anos de escola foram resumidos a sentar-me ao lado das colegas e todas levantarem-se da refe-rida mesa no refeitório, como se eu fosse portadora de uma doença contagiosa e fosse infectá-las, nunca ter com quem brincar, alguém que quisesse fazer trabalhos em dupla ou grupo comigo. Eu me acostumei a ser sozinha e sempre con-fiar na certeza de um futuro bom para nunca me virar contra Deus ou pensar que ele não gostava de mim e me colocou no mundo para sofrer. Ser discriminada, ouvir palavras ofensivas e não desmanchar o sorriso, sentir o coração se partir ao meio e permanecer de pé como se nunca tivesse me magoado.

Por que meu pai me abandonara e minha mãe tan-to me odiava? Por que eu não me sentia acolhida em lugar algum?

Eu era criança e não tão feliz assim. Porque não poderia ser como as outras meninas que lanchavam em gru-po, se reuniam nas casas umas das outras, lá dormiam, com as bonecas brincavam, na tal da casinha cor-de-rosa que papai prometeu e nunca me deu, porque Helena em nossos caminhos intrometeu-se. Nunca seria integrante de um clube secreto, nem teria uma casinha na árvore. Era melhor rene-gar esses impossíveis desejos a sofrer por eles, arrastando uma pesada corrente que fazia meus ombros cederem.

Aos pés de Cristo menino, deixei meu calvário. Mais do que ninguém, as intenções do meu coração conhe-cia como a palma da própria mão, machucada pelo prego que o colocou naquela pesada cruz. Quando um dia fez-se noite e o dobrar dos sinos exprimiam a vala da dor extrema. De um dilacerado coração de mãe rasgando-se aos pés da humildade. Inestimável sofrimento.

Cada lágrima é uma história contada num idioma que cada um conhece muito bem. Portanto, com singular gentileza, ele me colocava no colo. O pranto se secava e eu adormecia ao lado do retrato de quem eu nunca vi pessoal-mente, mas comigo estava sempre, por mais que às vezes me deitasse sem dobrar os joelhos. Ali estava. No meu cora-

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ção. E que estivesse com Aline também, para que não fizes-sem com ela nem 1/4 do que fora feito comigo na antiga escola.

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INVISÍVEL

e volta ao colégio, um milagre: Aline estava conversando muito naturalmen-te com as meninas do meu grupo. Ma-riana Franco cortejava a nova colega,

tratando-a como se ela sempre tivesse conosco estudado. Meu coração batia aliviado. No entanto, em partes.

Acenei avisando que havia chegado e ninguém notou minha presença.

― Puxa vida, Aline. É verdade mesmo? ― Mariana Franco estava sabatinando Aline.

― Ah, é sim! ― Aline confirmou.

― Então você já beijou de verdade? ― Mariana Oliveira estava tão curiosa quanto sua xará lesada.

Aline tinha onze anos e já havia beijado um garoto. Beijado de verdade. Não apenas isso: havia namorado.

― Eu passei um tempão gostando dele e descobri que ele também gostava de mim.

― Tem uma foto dele pra gente ver? ― Mari Fran-co estava bem interessada no assunto, o que nunca acontecia quando eu tentava lhe fazer entender o que Prof.ª Daniela ensinava em classe.

Aline abriu a agenda esturricada cuja espiral se adaptava à demanda intensa de recordações e mostrou a foto do moleque. Particularmente, nada de surpreendente. Um menino comum da nossa idade.

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Mariana Franco suspirava como se estivesse vendo uma foto do Leonardo Di Caprio autografada exclusivamen-te para aquela novata precoce.

― É ele?

― Sim, ele mesmo!

― E ele te manda muitas cartas? ― Juliana, termi-nando de pintar uma gravura para a aula de Artes, indagava.

― Manda quando pode, já que ele não gosta muito de escrever, mas ontem ele dedicou uma música a mim no rádio.

― Falou ao vivo com o locutor? ― Mariana Oli-veira queria conhecer detalhe por detalhe desse namorico.

― Aham!

― E que música ele pediu? Vai, conta! ― Mariana Franco estava me irritando com aqueles gritinhos histéricos. Juquinha, o tal do namoradinho da Aline, era só um mole-que de onze anos de idade. Na nossa escola estavam cheios deles. Todos chatos, insuportáveis, no mundo da lua, tanto quanto qualquer uma de nós.

― Foi aquela do Backstreet Boys (As long as you loved me), sabe? E pra mim!

― Jura?

― Oi, gente! ― Acenei colocando minha mochila em cima da carteira. Apenas Aline, sorridente, me corres-pondeu.

― Ah... ― Mariana Franco brandiu, sem dar im-portância, voltando-se a Aline, folheando a agenda da mes-ma, tão movimentada, misteriosa.

― Sabem de uma coisa? ― Insistente, fiz de tudo para que todas elas me notassem.

― E aí, Aline? É namoro firme? ― Juliana, sempre quieta e submissa, me interrompeu.

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― Lógico que é namoro sério, sua tonta ― Maria-na Oliveira repreendeu a amiga.

Eu estava começando a detestar aquela história. E com razão.

No intervalo, as Marianas e a Juliana passaram o tempo todo enchendo a Aline de perguntas a respeito de garotos, ouvindo as historinhas de Prudentópolis. No dia seguinte, a mesma coisa. Eu estar presente ou não era irrele-vante. Pequei por pensar que seria melhor que a alternativa mais pessimista tivesse se concretizado.

Aline me incomodava. De todas as formas. A voz dela me tirava do sério. Ela era a única pauta do dia, durante semanas. Eu não era Aline. Não era mais interessante. Nada do que eu dissesse ou fizesse impressionava meu grupo.

Eu estava sendo deixada de lado.

Ao contrário de mim, Aline era bem extrovertida e não tinha dificuldades para conversar com quem quer que fosse. Fazia amizades muito facilmente. Em pouco tempo conhecia a todos e os cumprimentava sem qualquer receio. Estava sempre contente, radiante, com alguma novidade na ponta da língua, fosse um recadinho de menino, alguma música, alguém que encontrou no caminho para a escola. Estava sempre com a tal da agenda obesa em mãos, para uma anotação ou somente mostrar alguma foto, algum reca-do. Meu pobre caderno brochura que eu chamava de agen-dinha perto daquilo era um nada. Tirando alguns escritos bobos, era apenas mais um caderninho sem graça, se compa-rar com Aline.

A partir daí, era tudo que eu sabia fazer. Colocar a garota num pedestal e pensar que eu era um nada. Um enorme dedo indicador apontava para a total insignificância. Exatamente. Perto da Aline é o que eu representava. Um nada. Ninguém na ordem do dia. Ela me superava em tudo, tudinho.

Aline era louca pelas boy bands que faziam suces-so. Devorava uma revista atrás da outra, emprestando às

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colegas, o que a fez ter afinidades com as jovens de outras séries. As meninas passaram a adorá-la. Eu, quando ela fal-tava aula, mas o assunto nunca cessava. Mari Franco tornou-se fã da Aline. Aline pra lá, Aline pra cá. Acho que se a ca-da vez que Mariana Franco falasse o nome de Aline ganhas-se um real, ao fim do dia seria a pré-aborrescente mais rica do Brasil.

Aline Gisele Pacheco tinha cabelos levemente ca-cheados na altura dos ombros e o cheiro do xampu que usa-va exalava pela sala toda. Pele levemente pendendo para o amarelo e olhos grandes, vivazes, cor de mel. Da doçura que azedava por ser melada demais. Era um pouco maior que eu, a pequenina da turma, a tal da tampinha. Compleição física esguia, já exibia as orelhas furadas. Juliana, para subir nos conceitos da novata popular, copiava o dever para que a abelha rainha e as Marianas trocassem os bilhetinhos secre-tos de que eu tanto me irritava por nunca receber nenhum.

No Dia das Crianças, Mariana Franco viajou ao in-terior a fim de passar uns dias com os tios e voltou suspiran-do de amor por um menino que conheceu por lá, com quem perdeu o BV.

― Acho que estou apaixonada...

― Mas credo, você mal conheceu o menino e já fi-cou. ― Eu não apoiei a paixonite da Mariana Franco, por-que sabia que ela estava com a corda no pescoço em todas as matérias, levando o caderno na bolsa como enfeite, pois mal abria o mesmo. Eu, honestamente, não entendia como ela estava apaixonada tão depressa, falando com entonação dramática sobre todos os planos de amor envolvendo um pirralho que com certeza não estava nem metade empolga-do. Eu era muito realista nesse sentido.

― Muito cedo. Como você tem tanta certeza de que está apaixonada? Você só tem 11 anos!

― Acorda né, Tita. Eu já tenho onze anos! ― Ma-riana Franco revirou os olhos.

― Ah sim! Grande coisa...

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― Melhor que ser criancinha que nem você. ― ra-lhou ela.

― Não sou criancinha. ― argumentei ofendida. Ser chamada de criancinha era, não obstante, um argumento que feria o meu âmago. Eu não queria ser conhecida como a menininha boba da classe.

― Ai, não judia da criancinha não! ― debochava a Mari Oliveira. ― Coitada... Ainda nem sabe de nada... Dei-xe que ela brinque de boneca. ― Senti a ironia estampada pela falsa compaixão. ― Na sexta-feira, se puder, traga suas bonecas...

Comecei a me sentir uma aberração quando todas, com suas agendinhas cheias de clips, começaram a falar em dialetos, como se eu não pudesse saber de nada.

Eu estava sendo inconveniente?

Até Aline chegar ao nosso colégio, eu não estava nem aí com nada e de repente comecei a me sentir ridícula, chata, ultrapassada, ah! E feia também. O reflexo do espelho era de uma sonsa, uma garota muito sem graça, sem peitos, sem namorado. Uma boba. Chata. Tão chata que ninguém ligava à mínima se eu existia ou não. Quanto drama. Mas de tantos dramas sou composta. Um pingo de chuva era tem-pestade, somada aos raios do despeito, sonorizando a sala de aula onde Aline era a grande estrela, desde setembro. Eu pensava sempre que se talvez não tivesse conversando com ela, tudo seria diferente. Refazia aquela sexta-feira sabendo que a culpa de tudo era minha por querer ser legal com quem não merecia. Ela, nada. De mim, desprezo.

Aline, evidentemente, era muito mais interessante que eu, aprovada por média, mérito esse que não fazia inve-ja em ninguém. Não da maneira que a novata (já não tanto assim) conseguia. A influência exercida era assustadora. Os meninos estavam apaixonadinhos por ela. Não raro, me chamavam... Para mandar recados à gatinha... Que não era eu!

― Sabe aquela menina nova que entrou na sua sala.

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― Você fala bem de mim pra Aline? Tipo assim, eu tô gostando dela e queria saber se você pode me ajudar, tipo assim, a ficar com ela, e coisa e tal.

― Você entregaria esse bilhetinho pra ela?

― Pergunta se ela tem namorado.

― A Aline pode me ver na hora da saída? Fala de mim pra Aline...

― Comprei essa caixa de bombons pra Aline. Você entregaria pra ela?

Eu era completamente invisível para os garotos, servindo apenas de garota de recados da novata popular. Até a tonta da Juliana recebia bilhetinhos de meninos e eu ne-nhum, nenhum mesmo, nem para dizer não.

O que poderia haver de anormal comigo?

Eu estava ficava irritada de ser abordada pelos me-ninos para eles perguntarem da Aline. Pombas, por que não iam eles mesmos falarem com ela se estavam assim tão inte-ressados? Coisa mais chata!

Até a sem graça da Juliana que tinha os dentes da frente encavalados estava sendo paquerada e eu passava despercebida, ficando sem assunto, até porque o vírus da paixonite aguda parecia ter tomado conta de todos, menos de mim.

Aline já usava sutiã. Eu até ganhei um no meu ani-versário de dez anos, quando minha mãe viu no noticiário uma matéria mostrando que as meninas estavam menstruan-do cada vez mais cedo. Eu lá sabia o que era isso... Cá entre nós, odiei o presente. Era bastante desnecessário, visto que eu ainda queria brincar por muitos anos, se possível.

Por meses o sutiã rosa bebê com estampa de ursi-nhos ficou escondido num canto qualquer da minha gaveta, até que notei sua existência e passei a usá-lo, na esperança de parecer mais adulta. Até papel higiênico nos inexistentes seios eu cheguei a usar para parecer mais velha.

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Simplesmente Tita 95

Horácio, meu padrasto, percebeu que eu comecei a me importar com coisas que antes ignorava.

― Não precisa tentar ser o que não é, Tita. Seja você e pronto.

― O senhor, obviamente, não sabe o que é ser uma mulher de onze anos.

Até minha mãe arregalou os olhos.

― Mulher?

― Eu. ― Ostentando a invejável convicção de fe-delha, certa de que era a maior adulta do mundo.

― Mulher? Até parece...

― Pois sou sim...

― Cadê a mulher que eu não tô vendo?

― Eu. ― respondi comendo meu macarrão instan-tâneo de sempre.

― Você é muito nova para pensar em ser mulher. Vá estudar que você ganha bem mais.

Mamãe jamais entenderia como era humilhante vi-ver à sombra da Aline. Mas eu encontraria um jeito de fazer a metidinha ficar em silêncio por um bom tempo. A resposta de que eu precisava estava debaixo da carteira. Em nenhum outro lugar.

O que seria de Aline Gisele Pacheco sem aquela sua agendinha besta?

Aquele era o oportuno momento para pregar um susto naquela que era à culpada por eu ter sido excluída do meu grupo. Quer dizer, dos segredinhos, das fofocas quentes porque na hora de copiar os deveres de casa e trabalhos em grupo, a Tita prestava porque depois disso, não mais. Eu me sentia usada, enganada. Tudo contribuía para a raiva dobrar de intensidade, expulsar a imagem de menininha dócil e prestativa. Ser a bola da vez não era meu objetivo, mas aba-lar a popularidade da queridinha Aline.

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Estudei minhas atitudes. Um passo em falso e o meu plano malévolo estaria liquidado. Todo cuidado ainda era pouco. Finalmente, a grande oportunidade. Uma aula de Educação Física antes do intervalo. Sabia que as meninas sairiam da cancha diretamente para o banheiro e depois en-carariam a fila do lanche. Não voltariam. Nunca voltavam.

Sem testemunhas, adentrei a classe, segui até a car-teira de Aline e surrupiei o objeto de desejo, escondendo ao fundo da minha mochila. Portanto a agenda entre as mãos, que tremiam loucamente, quase pensei em deixar tudo àqui-lo para lá. Pensei tanto nisso. Recuando, com certeza eu teria motivos para cometer aquele delito novamente. Gosta-ria de pagar para ver a reação da abelha-rainha.

No outro dia, com os olhos inchados de choro, Ali-ne não chegou cantarolando e saltitando, como o costumei-ro, tampouco distribuindo balinhas de hortelã, mas interro-gando a todos nós.

― Alguém viu a minha agenda por aí?

― Sua agenda sumiu? ― Minha indagação era o auge do cinismo oportunista. Eu sabia onde estava a droga da agenda, mas queria ver a novata sofrendo um pouco, todo mundo sempre ria de quem ficava chorando pelos cantos, e não seria nada legal para a reputação da namoradeira romper em prantos por causa de um monte de papel.

― Sumiu...

― E onde você a deixou? Você se lembra de onde a deixou, Aline?

― Eu sempre a deixava debaixo da carteira, mas ontem a procurei e ela não estava lá.

― Pode ter sido obra de algum menino.

― Mas o que um menino iria querer com a agenda dela, Tita? ― Mariana Franco, a defensora mor de Aline, intrometeu-se.

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Aline chorou nos braços das meninas. Desesperada. Não havia quem não a consolasse. Até Prof.ª Daniela, co-movida, levou-a para fora da classe e assim ficaram por um tempo. Corroída pelo ciúme, mantinha-me indiferente ao dramalhão todo. A arapuca saiu pela culatra.

Era bom saber que a tal agenda lhe fazia tanta falta. Foram dois, três, quatro dias sem qualquer resposta. A ago-nia da garotinha só se fazia aumentar. Aline não mais se alimentava, nem de meninos queria falar. Procurava deses-peradamente sua agendinha. Era sua preciosidade. Lá esta-vam lembranças de pessoas que ela muito estimava. Fotos, poemas, recordações que uma agenda novinha em folha não tinha. Aquela era mais um monte de folhas coloridas. Era uma parte de Aline Gisele Pacheco.

E eu nunca pensei que as consequências seriam tão graves. Aline parou de ir à aula. Estando presente ou não, manteve-se em constante evidência. Sobretudo quando su-miu e ninguém a encontrava nem ao telefone. Interiormente, sentia-me culpada. A agenda estava escondida dentro de um fundo falso do meu guarda-roupa, onde eu colocava minha caixinha de lembranças, assim não corria o risco de Meire rasgar.

Já se passavam duas semanas desde a última vez em que Aline foi vista. Corriam boatos fortíssimos de que ela tinha retornado para Prudentópolis. Eu desejava que fos-sem verdades. Mas dentro de mim inquietava uma culpa tão grande que passei a não sentir sono durante a noite. Tudo que me vinha à cabeça era o sofrimento de Aline. Foi aí que resolvi deixar toda aquela marra de lado e invadir a privaci-dade da estrela do grupinho.

A agenda era do ano de 1998, do jeito que pedi e Meire recusou-se, afirmando que era futilidade, conspiração contra a pessoa dela. Nice, com certeza, não era paranoica e sabia que a filha tinha seu mundinho, seus segredos, não deixaria de amá-la por conta de um momento ruim. 1998. Um ano que Aline virou com os parentes em uma chácara de Prudentópolis. Um ano marcado pelas letras de música a

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enfeitarem as páginas, em que no mês das mães, uma delas tornou-se a chefe da família Pacheco. Um tumor maligno derrubou o homem de ferro, em um prazo assustador ven-ceu-o, encerrou a trajetória de Rubens Pacheco na terra. Aline não tinha mais o pai. Então aquele sujeito rico que tinha mansão no Guarujá era uma grande mentira. Ela via novelas por demais.

Naquele momento minhas lágrimas percorriam a face, misturadas de ódio e compaixão, dois paradoxais sen-timentos. Aquela família feliz estava incompleta. O lugar de Rubens na mesa estava vazio. Foi até onde consegui ler. Eu era má. Uma garota muito perversa. A pior espécie de pes-soa do mundo. Por puro despeito, furtei um objeto que não me pertencia. Sem qualquer direito. Se Aline estava longe da sala de aula, a culpa recaía totalmente sobre mim.

Na minha perspectiva egoísta, afastar Aline de sua agenda faria de mim novamente parte efetiva do grupo. Tu-do seria como era até antes daquela sexta-feira de setembro. Ou até melhor. Não foi. O remorso engolia o prazer. Os dois não conviviam lá muito bem, a menos que seu coração este-ja tomado por uma irracional frieza.

Não imaginava que a ausência afetaria até a mim. De tanto detestá-la, gostava dela. Detestava por gostar, por-que queria que ela também gostasse de mim, me endeusasse para pensarem que eu era legal. Eu não era. Nunca seria.

Aquele espaço que Aline deixou era somente dela. Ninguém tomaria. Aline era única, não existiria outra. Aline às pencas no mundo havia, mas como aquela, dificilmente. As Marianas e Juliana sofriam a saudade da amiga. Os pro-fessores mostravam-se preocupadíssimos, até a casca grossa da Neiva, que dizia não se apegar a alunos.

Meu ciúme estava custando caro demais para al-guém inocente. Se Aline almejava desvendar o paradeiro da agenda perdida, eu desejava ter a oportunidade de pedir-lhe perdão de joelhos.

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O QUE A AGENDA DELA NÃO CONTOU

altando poucos dias para o meu aniversá-rio, enquanto arrumava o quarto, um tele-fonema para mim. Era a mãe de Aline, a

respeitável senhora Leonice Pacheco.

― Aline contraiu uma virose, por isso não está in-do à aula. Ela está muito mal porque adora o colégio e não gosta de faltar, sabe. Ela me disse que você é a melhor aluna da sala, a melhor amiga dela e pode ajuda-la.

Aline me considerava a melhor amiga dela?

E a Mariana Franco, a bajuladora mor dela?

Ninguém no mundo adulava a abelha-rainha como a futura repetente fazia. Mariana ficava na fila para comprar o lanche da princesinha, fazia toda e qualquer vontade da mesma, vivia grudada ao telefone, contando-lhe dos meni-nos, emprestando revistas.

― Aline está sofrendo muito por causa dessa agen-dinha que perdeu. Eu disse que no ano que vem compro outra, mas ela não quer ouvir. Quer aquela, não tem jeito. Quando essa menina teima, teima mesmo, não tem quem tire a ideia da cabeça dela, mas se você puder vir...

― Posso mesmo.

― Pode vir aqui em casa?

― Vou falar com a minha mãe.

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Apanhamos o endereço e no caminho eu me senti tão envergonhada por visitar Aline em seu sobrado chiquér-rimo usando macacão e boné (minha mãe o odiava).

― Com esse boné você fica parecendo um menino.

― Mas eu gosto dele.

― Um dia eu ainda hei de sumir com esse boné.

Sentia um friozinho na barriga porque Aline des-crevia seu quarto de tal modo que tinha até vergonha do meu com pôsteres colados na parede branca e sem vida, da minha caminha bordô de tubo com os brinquedos em cima e do meu guarda-roupa cheio de figurinhas coladas do lado de dentro da porta. Até que paramos em frente ao número da casa onde a mãe da Aline mencionou no telefonema. Meire torceu um pouco o nariz e já teceu um de seus conhecidos comentários maldosos.

― Essa tua amiga aí é uma mentirosa.

― O pai dela mora numa mansão em São Paulo. ― Menti, pois sabia que Rubens Pacheco estava morto e Nice não tinha feições de socialite da alta linhagem.

― Essa região aqui não é nobre coisíssima nenhu-ma.

Minha mãe tinha razão: Aline morava em um bar-raco!

― Ela disse que a casa delas aqui não era muito bonita em vista da mansão no Guarujá. ― protestei.

― Mansão no Guarujá é uma ova ― ralhou Meire, impaciente. ― Ela é uma favelada. Vamos embora.

― Eu prometi que ia passar a matéria pra ela. Não posso voltar atrás com minha palavra.

― Tá bom ― A troglodita bufou, contrariada. ― Às 18h00min eu venho te buscar.

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Simplesmente Tita 101

Bati palmas e em seguida uma mulher franzina, com o rosto bastante cansado e entristecido, veio ao meu encontro e sorriu.

― Tita?

― Sou eu.

― Que bom que você veio! Aline está te esperan-do.

Aline podia até residir em um barraco simples, mas o local era extremamente organizado. Não tinha lixo em frente à residência, a exemplo de alguns vizinhos. O cachor-rinho vira lata, o Beethoven (Aline adorava o bonachão da televisão), estava deitado em cima de um tapete velho. Não fedia. O caminho para adentrar o local era estreito, mas não era problema. A agenda estava dentro da mochila e eu re-solveria aquele mal entendido logo.

― Aline passou dias internada Tita. Deu dó de ver. ― Nice me chamou para acompanha-la. ― A virose a der-rubou e não veio em hora pior, criança. Desde a morte do Rubens, meu esposo, que Deus o tenha, nós estamos viven-do um inferno astral: a mãe dele quis nosso terreno de volta e me despejou com as crianças, então viemos pra cá achan-do que teríamos mais chance de progredir e nem emprego estou conseguindo. Parece que quando você mais precisa não tem ninguém.

― Ah, é verdade.

Nice tinha um leve sotaque nordestino. Deve ter vindo para o Sul na fase da adolescência, quando conheceu Rubens e se apaixonou. Em busca de boas condições de vida longe da seca, da falta de oportunidades. Na entonação so-frida exprimia um calor humano que ia contra a truculência infundada de Meire, um amor pela vida, apesar de todas as provações, podia sentir que ali naquela casa a força de von-tade era a propulsora para que a menina órfã tudo suportas-se, esperando por dias melhores. Era justo. Depois de tudo.

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MARIA ALICE DA LUZ 102

Rubens descobriu um tumor no estômago depois que foi investigar o súbito emagrecimento. Aquele homem forte que carregava peso e continuava apaixonado perdeu as feições alegres, a força para mover-se, não sentia o gosto dos alimentos, não podia comer quase nada, mas pedia que a esposa colocasse o bife debaixo da língua, um pouquinho que fosse. Não lhe restava nada, nenhuma esperança. Os médicos o desenganaram, com tanto pesar. Nada aos olhos humanos poderia ser feito. Rubens faleceu em 15 de maio. Dormindo.

― Não sei como é que Aline consegue ser tão for-te. Deve ser Deus que dá tanta alegria de viver. Eu no lugar dessa menina já tinha ido para o pinel. Não tem nada mais triste que ver sua filha chorar e não ter como consolar, mi-nha criança. Você que é amiga dela deve saber o que dizer. Talvez a sua presença a tire daquela cama.

Nice não sabia que se Aline estava doente era por minha culpa, porque eu roubei a agenda da filhinha dela para acabar com o reinado da estrela, porque me incomoda-va com aquele entusiasmo e agora, pouco a pouco, entendia que não havia outra saída. Aline buscou fazer o que seu pai, de onde estivesse, iria querer.

― Aline me disse que você é a melhor amiga dela, que foi a única que realmente quis conversar com ela quan-do chegou ao colégio e me pediu para que te ligasse.

As Marianas não eram boas amigas de verdade. Nunca se ofereceram para ir à casa da abelha-rainha. Que tipo de amigas agiria com tanta frieza?

― O quarto da Aline fica por ali.

― Obrigada, dona mãe da Aline.

― Dona Nice, meu anjo.

― Obrigada, dona Nice.

Quando olhei por uma porta e encontrei Aline páli-da deitada na cama, cercada de bichinhos de pelúcia e com o

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som ligado para amenizar a solidão, senti-me um verme por julgá-la de forma errada.

Aline colocou as mãos no rosto para abafar o choro quando me reconheceu:

― Tita, você veio?

― Aham! ― concordei com a cabeça.

― Que bom que você veio, Tita. Estou me sentindo um nada nessa cama. Basta à gente ficar doente que todo mundo some.

― Pensei que encontraria as Marianas aqui.

― Que nada... Nem ligaram pra mim... Nem li-gam...

― Vivem sentindo a sua falta.

― Mentira.

― Verdade. Essas meninas adoram você. Todo mundo pergunta de você.

― Só falam comigo porque acham que meu pai é rico. ― Ela desabou.

― Eu... Eu tenho algumas coisas pra te dizer...

Abri a mochila e entreguei-lhe a amada agenda. Aquele abraço valeu meu dia, meu ano inteiro. O sorriso de Aline fez com que eu derrubasse algumas lágrimas.

― Tita, você não sabe o quanto eu estou feliz.

― Mais felizes vão ficar as meninas quando você voltar.

― Eu não quero voltar.

― E por quê? Todo mundo te adora naquela escola.

― Elas me adoram porque eu minto.

― Como assim?

― Eu minto, Tita. Eu minto ― Aline soluçava abraçando uma fuinha de pelúcia. ― Eu minto porque se

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contar que moro nesse barraco e não tenho nem metade do que digo a elas que tenho, ninguém vai querer se aproximar.

― E por que você mente?

― Porque tenho medo de ser o que sou e não me aceitarem.

― Eu fiz isso, Aline. Não deu certo. Uma hora a verdade vem, todo mundo descobre, a confiança se perde e quando isso acontece, nada nunca mais volta a ser como era.

― Eu sei... Eu sei disso.

― Você não precisa mentir que é legal. Você é le-gal.

― A custo de mentiras. ― Ela respirou fundo, fa-zendo um esforço sobrenatural para admitir o seu maior segredo. ― O Juquinha não é meu namorado.

― O quê?

― Eu não tenho namorado. Juquinha é meu primo.

― Você nunca namorou?

― Sim, eu já gostei de um menino no ano passado, mas só descobri que ele gostava de mim tarde demais.

― De qualquer forma você tem o que contar, você já gostou de um menino.

― Sim, já o beijei, já fiquei com ele, nós namora-mos, mas ele não é o Juquinha.

― E quem é ele?

― É o Tadeu. Meu melhor amigo lá de Prudentó-polis. Meu melhor amigo de todos os tempos. Eu... Eu tive que ir embora... Meu pai morreu... Eu tive que vir pra cá... Eu... Eu...

― Tudo bem, tudo bem. ― Tomei a iniciativa de abraçar Aline, sentada ao lado dela: ― Eu não vou falar nada às meninas, mas preciso ser sincera com você: se elas

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Simplesmente Tita 105

souberem de algumas verdades, podem não gostar tanto assim, mas eu não me importo, fico do seu lado.

― Fica mesmo?

― Fico. Mas não sei se você vai querer que eu fi-que do seu lado.

― Claro que vou.

― Acontece, Aline, que eu fiz uma coisa que não devia ter feito... Nada que eu diga vai justificar, mas eu vou falar porque não aguento mais ficar com esse aperto no pei-to...

― Fala, pode falar.

― Eu... Eu roubei sua agenda...

Olhando para mim naquele momento, qualquer um duvidaria da veracidade dos fatos, mas confessei o meu pe-cado. Todos eles. Um a um. Independente de Aline me per-doar, eu teria de reconhecer que fiz algo errado, aprender a lição e nunca mais repetir o que fiz porque aconteceu comi-go após mentir sobre minhas férias. Minhas amigas me exe-craram, minha mãe me surrou de chicote, ninguém queria falar comigo. Tomei gelo da escola toda. Aprendi que por mais horrível que fosse minha vida, tinha que gostar dela, de aceitar ser quem era, com todos os meus defeitos. Amar a eles. Amar a quem eu não gostava.

― Você, Tita? Você roubou minha agenda?

― Fui eu... Fui eu quem fez isso.

― Você leu tudo?

― Eu tentei, mas não consegui. Eu não devia ter feito isso.

― Por que você roubou?

― Por que... Porque eu queria vê-la. ― Dessa vez, fui eu quem chorou. Aline me chamou para um abraço, sem ressentimentos.

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MARIA ALICE DA LUZ 106

― Por que não me pediu? ― Para Aline parecia tão simples resolver tudo com uma boa conversa.

― A Mari Franco mal deixava que eu falasse com você.

― E vai ser a primeira a virar o rosto quando eu disser que não sou rica. Não percebeu como a Mari Franco é interesseira? Se você não tem nada a oferecer, ela te trata mal, mas se você tem, ela fica por perto.

― É o jeito da Mari.

― A Mari é legal, mas depende do momento. Ela não gosta nem um pouco de estudar, eu percebo isso. Na aula do Emival, ela só fala, fala, fala pelos cotovelos, depois não sabe por que vai reprovar. Eu vejo que você está sempre com o professor, pedindo ajuda...

― Eu peço ajuda... Eu falei a ele que se eu tirar no-tas abaixo de oito, minha mãe me bate.

― É sério?

― Minha mãe não gosta de notas baixas.

― Tita, você pode não acreditar, mas eu não estou braba com você.

― Deveria. Eu roubei sua agenda.

Aline colocou sua mãozinha sobre a minha.

― Você é a única que tem caráter.

― Não tenho.

― Tem sim.

― Não tenho, Aline. Olha o que eu fiz... Eu te jul-guei, fiquei com raiva de você. Fiquei com raiva porque depois que você chegou, a Mari Franco mudou totalmente comigo, vive me ignorando, me tirando pra criancinha, pra idiota, me excluindo de tudo como se eu fosse um nada... E eu te culpei por isso... Não devia ter te julgado. Eu senti tanto ciúme de você com as meninas, de ver que vocês vivi-am tão bem sem mim que fiquei com raiva e me afastei...

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Simplesmente Tita 107

― Tita, é que você não olha as coisas de outro jei-to...

― E de que jeito deveria olhar?

― Eu te invejei quando soube que você era a que-ridinha dos adultos. Sabe, na minha outra escola eu conhecia todo mundo, era amiga de todo mundo. A Tia Márcia era como uma segunda mãe pra mim porque foi minha ama de leite quando minha mãe ficou doente e quase morreu depois que eu nasci. Sinto muito falta da Tia Márcia. ― Ela me mostrou a assinatura da professora. ― A Tia Márcia é pra mim o que a professora Daniela é pra você. Lá na outra es-cola eu era uma das melhores alunas. Quando vim pra cá, mudou tudo, tem dias que eu tenho tanto medo do que vai vir, aí falo com Deus, sempre quando apanho o ônibus fico falando com ele em pensamento, contando-lhe tudo, deixan-do minha vida nas mãos dele, pra não reclamar. Tem gente sofrendo bem mais.

― Você me perdoa?

― Tita, não precisa pedir perdão. ― insistiu Aline.

― Claro que preciso.

― O importante é que minha agenda está comigo e eu tenho uma amiga.

― Verdade?

― Nós somos amigas. Sabia que você é uma das três melhores alunas da escola inteirinha? Você tem ideia do que isso significa? Você é uma das melhores alunas da esco-la toda, só perde para um menino do quinto ano da manhã e para uma menina da oitava série. Você é a aluna predileta da professora Daniela. Ela te adora. O professor Vando sempre te elogia. O Emival que é sério sempre fala que queria que os alunos do oitavo ano tivessem a mesma dedicação que você tem. Ele é fechado, nunca demonstra as emoções, mas tem um carinho enorme por você. Até a professora Neiva diz que você é uma menina adorável, esforçada, educada, aplicada. A Mari Franco morre de inveja da moral que você

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MARIA ALICE DA LUZ 108

tem com os mestres, tem raiva porque ela vai reprovar e você já passou de ano, só está indo à aula pra não ficar com muitas faltas. Ela morre de inveja porque tomou um fora do Roni e ele gosta de você. Pelo menos é o que diz por aí...

― O besta do Roni?

― Sim, ele mesmo.

Roni era o decadente galã da 5ª série. Era um pana-ca, mas engraçado, justamente por ser desastrado. Logo que fiz amizade com Mari Franco, em fevereiro, ela estava cain-do de amores por ele que estava ciscando para cima da Ra-faela. Elas se odiavam, juravam que jamais seriam amigas. Tudo por causa do Roni.

Rafaela ficou com Roni. Nesse dia Mari Franco te-ve até febre, voltou chorando para casa, mais dramática que uma cena de novela mexicana. Mas o namorico não deu muito certo porque tudo que ele dizia a Rafa repetia às ou-tras. Cafajeste. Ainda assim todas o amavam, vinham à es-cola para vê-lo. Tudo que ele fazia era comentado com por-menores e eu não via nenhuma graça naquele menino que usava aparelho e pintava o cabelo de loiro. Ele se achava tudo e não era nem metade.

Um dia Roni se meteu com a turma errada: João e os amigos. Veio querer dar pinta de conquistador e valentão, provocou os veteranos e fez a escola literalmente parar na hora da saída. Foi à briga antológica de 1998. Roni x João.

― Não perco essa briga por nada no mundo ― Ma-ri Franco suspirava pelo corredor depois de assistir (ou fazer fotossíntese na) aula do Emival. ― Quero ver o Roni dar caldo naquele metido do 8º ano.

― O Roni não vence. O João é muito maior que ele. ― Eu disse, torcendo para João.

― João pode até ser mais velho, mas o Roni tem torcida e a torcida sempre ajuda. ― Mariana Franco era uma tiete xiita por Roni.

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Simplesmente Tita 109

― O João já brigou com gente de mais tamanho que ele, o Roni é fichinha.

Seguimos para a cantina que estava cheia e os bur-burinhos indicavam que todos ― até os menos antenados ― estavam ansiosos para a luta, portanto não podiam dar com a língua entre os dentes. Se a coordenação soubesse de qual-quer incidente que perturbasse a paz, já era.

― É... Vai ser duelo dos bons... ― comentou um menino do 6º ano, na fila para o lanche.

― Quem perder esse não vê outro igual tão cedo. ― concordou o amigo dele.

― Sei não ― entrou na conversa um garoto do 7º ano. ― O pirralho lá não tem chance, o João vai massacrá-lo.

― Repete, mané. ― gritou a Mari Franco, toda agi-tada enchendo os bolsos de bala e atrasando a fila.

― Teu namoradinho não dá nem pro caldo. ― O mesmo garoto roubou uma bala da Mariana. ― Não tem nem tamanho de gente e vai levar uma surra histórica.

― Vai nada! ― retrucou ela. ― O Roni tem fãs e as suas fãs estarão dando a maior força.

A apreensão era tanta, mas tanta, que ninguém se aguentava por ter que esperar o último sinal soar. Nunca uma última aula demorou tanto para acabar. O tique-taque estava de pirraça, coisa de louco, caminhando devagar, fa-zendo troça dos corações ansiosos que batiam mais alto do que o próprio relógio. Mas a espera acabou quando a profes-sora de Artes nos liberou com dez minutos de antecedência, não se interessava em nos prender à toa. Todo mundo estava em clima de sexta-feira em plena terça, só vendo para crer. Eu me lembro de outras brigas na antiga escola, porém sem a divulgação maciça, sem ninguém em especial para eu tor-cer, de qualquer maneira. Com a mochila nas costas e muita curiosidade, segui às garotas até o portão. Ainda dentro da escola dava para ver uma multidão que mesmo disfarçada

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para não dar na vista estava na maior expectativa. O ringue improvisado aguardava a chegada dos lutadores. Na minha playlist mental eu não conseguia me desvincular daquela música que a TV usava para a vinheta das lutas de Boxe que iam ao ar nas noites de sábado.

― O João não tá pra brincadeira ― ouvi um meni-no da sala dele comentando. ― Se o pirralho amarelar, o João o pega de todo jeito.

Sem muita pompa e circunstância, o tal do aqueci-mento acontecia sem estrelismo, pelo menos da parte do João, um processo importante para dois lutadores mostrarem os seus dotes, isso é, quem os tinha.

Roni chegou se exibindo como se fosse um modelo apresentando a nova tendência para o verão. As meninas gritaram (as pirralhas do 5º ano, menos eu). Ele as ignorou tal qual faz uma celebridade que não quer ser fotografada. Tirou a mochila, entregou para um dos amigos e mesmo estando frio, tirou o casaco e exibia ao oponente os inexis-tentes músculos de seus caniços. Pulando que nem uma rã cerrava os punhos e provocava João Alberto, o veterano mais popular do último ano:

― Vem agora, valentão.

João, quieto, apenas observava.

As meninas suspiravam, gritavam.

― Roni, Roni...

Roni jogava beijinhos para suas gatinhas. Fingiu acertar um soco na direção de João. Delírios femininos na plateia. Pense em umas quinze pré-adolescentes gritando ao mesmo tempo. Tinha-se a impressão de que a qualquer mo-mento um ônibus de luxo com os irmãos Hanson iria estaci-onar ali e eles fariam uma apresentação, o que obviamente era uma utopia mais cabível ao meu diário secreto.

― Roni, Roni...

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― Quer brigar, não quer? ― João declarou. ― En-tão vem pra briga.

― E nós vamos brigar. Vou te massacrar, veterano ― Roni abria os braços, a estrela de uma versão atualizada do tele catch do Ensino Fundamental.

― Muito se fala pouco faz, pirralho. ― Um amigo de João achincalhou Roni, e os amigos do galã do quinto ano estavam imóveis atrás dele, esperando, por questão de lógica, uma reação que incendiasse o caldeirão.

Preparação é tudo. Roni parecia o Kiko da série Chaves fazendo aquecimento, sem invenções. Era uma briga artística, até então. Com plateia e tudo. Claro que se Florin-da visse ou a Jane (carrancuda inspetora), acabava a festa.

― Vocês não podem comigo, veteranos. Eu sou o Roni. Eu sou demais. ― Roni direcionava seu discurso para as tietes, que respondiam com gritos histéricos.

― Cresce menino. Cresce e seja humilde, viu? ― João não sabia se ria ou cruzava os braços. Roni era um le-gítimo palhaço.

― Você está se fazendo porque sabe que vai per-der. ― Roni reiterava seu otimismo claro de que destronaria João e seria o maioral do colégio.

Alucinado pelo favoritismo. Até a primeira bofeta-da. De João. De longe. Sem tocar o adversário.

Replay, replay, por favor. Roni caiu feito pluma na calçada.

― Nojento. ― Mari Franco berrava.

― Reage, Roni. Reage! ― gritavam as admirado-ras do galã oxigenado.

João, com os braços cruzados, esperava por um re-vide. Qualquer um por ali aguardava um sangrento embate, a chegada de Florinda, o sermão e tudo o mais. Nem um pio. Nem um movimento mais brusco, uma encarada. Nada. Si-lêncio total no ringue e fora dele.

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Roni se levantou e fugiu correndo. João deu de ombros, colocou a mochila nas costas e se foi. Decepcionan-te, mas previsível. Tratando-se daquele tosco. Sem briga, era hora de ir para casa ou eu seria Roni e Meire o João. Falan-do no galã destronado e em mãe, o vi chorando nos braços de uma mulher na outra quadra ― só podia ser a mãe dele. Passei fingindo indiferença.

Mari Franco me telefonou algumas horas depois para repassar a briga, fazendo o maior drama porque o Roni perdeu, acusando o vento, o João, a quem quer que fosse, mas ao mesmo tempo querendo manter distância do grande azarado do 5º ano.

― Não diga que ele chorou? ― Mariana Franco sugou todos os pormenores e com certeza aumentou os fatos quando ligou para sua xará.

De uma boca a outra, o boato tomou uma propor-ção gigantesca. No outro dia, Roni já era a menininha cho-rona da instituição. Zoar o perdedor virou nosso passatem-po. Só tirar sarro, não humilhar. Chorão para lá e para cá. Mari Franco, que o amava, dele não queria nem saber o no-me.

― Ai, não chega perto do Roni senão ele já começa a chorar. ― João, passando por ele, tirou o boné falsificado de uma marca famosa. ― O chorãozinho não é mole, viu?

Quando Aline chegou ao colégio, Roni bem que tentou tirar uma casquinha, veio todo cheio de gingado dizer que a Aline era a menina mais linda do mundo e estava apaixonado. Ele levou um belo fora. Merecidamente.

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13

INCRIVELMENTE LINDO

quele foi o primeiro de muitos segredos que Aline e eu guardarí-amos. Em que circunstâncias a agenda reapareceu, pouco impor-tava. O que eu aprendi naquele dia

foi a nunca mais julgar alguém conforme o que minha lente embaçada enxergava porque a partir dali, quase todas as noites eu passava horas naquela humilde casa e a simplici-dade só contribuía para que me afeiçoasse mais à Nice que com muita humildade oferecia o que tinha. Às vezes pão com linguiça seca ou uma sopa de chuchu, quem sabe um macarrão com bucho. Ninguém reclamava.

― Dona Nice, a senhora não precisa se preocupar comigo.

― Você é visita e eu gosto que minhas visitas co-mam bem. ― repetia Nice, me oferecendo tudo que podia.

E sempre foi assim.

Depois das refeições, Aline ia lavar a louça e enxu-gar. Para que minha amiga não tivesse que trabalhar sozi-nha, resolvi ajudá-la, dividindo as tarefas. Meire reclamava por eu estar sempre longe de casa, porém que vontade eu tinha de voltar se quando isso acontecia era apenas para ou-vir insultos?

Muitas das garotinhas da outra turma moravam pe-las redondezas. Não era raro que brincássemos na rua até Nice nos chamar para dentro de casa. Essa história de se

A

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pagar de adulta era ideia da Mariana Franco. Fora da escola todo mundo queria jogar bola, correr, trocar figurinhas, in-vadir o diário das irmãs mais velhas para saber o que elas estavam fazendo.

Na escola, Aline e eu passamos a ser inseparáveis, fato que fazia inveja em Mariana Franco. Ela definitivamen-te não compreendia por qual razão a "criancinha" agora era a preferida da abelha-rainha. Teve de se acostumar. Sem saída. Aliás, depois que soube que um amigo de Aline, se-gundo as palavras da mesma, me elogiou, o discurso até mudou.

― Vocês já souberam da maior?

― O quê? ― perguntou a Juliana.

― O Roni pediu pra ficar com a Tita.

― O Roni? ― indagou Rafaela.

― Ele mesmo. Em pessoa.

― O chato do Roni? ― Mariana Franco gritou, es-pantada, com certo despeito implícito no olhar.

― Sim. ― confirmou Aline me olhando com cum-plicidade.

― E aí? A Tita já deu a resposta? ― sondou a Ma-riana Oliveira comendo uma coxinha.

― Você não vai ficar com ele, né, Tita? Vai? ― Juliana perguntou e todas as outras meninas do grupo fixa-ram os olhos em mim.

A resposta era óbvia. Lógico que não. Nem com ele, nem com ninguém. Eu não queria ficar tonta igual à Mari Franco, cujo assunto era só beijo na boca, namoro e etc. De cada 10 palavras, nove envolviam garotos. Tudo bem é normal que um dia todos se apaixonem, mas o pro-blema consistia na inversão de valores. Ela superestimava os suspiros e abandonava os livros. O saldo já era negativo.

Mesmo enfrentando necessidades, Aline e Nice fi-zeram questão de que eu almoçasse com elas na manhã de

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meu aniversário. Mamãe foi contrária, mas acabou trazendo meu uniforme. Eu já estava acostumada a ir à aula de ônibus e encontrar a galera do colégio no terminal. Ao invés de abraço e beijinho no rosto, a gente se cumprimentava com voadoras. Eu era a Tampinha, Mari Franco a Lesada, Mari Oliveira a Bunduda e por aí vai. Aline era o Cupido. Unidas até na gripe. Se uma comprava bala, dez mãos estavam enfi-adas no pacote. Era assim com salgadinho, chiclete, tudo. Você deixava de ser egoísta na marra.

Essa sensação de integrar um grupo com outras meninas elevou minha autoestima. Sonhei com isso por tan-tos anos, principalmente por saber o quanto é ruim lanchar sozinha, não ter para quem contar sobre a novela, comentar sobre músicas, bonecas. Na escola eu era uma Tita feliz, de bem com a vida, querida, amada. Nunca houve tardes tão felizes quanto naquele ano. O ônibus na ida e na volta ia balançando. Pobre motorista. Ainda bem que ele já estava acostumado com o fervo.

☼☼☼

Semana Recreativa. De 16 a 20 de novembro de 1998. Mariana Oliveira passou o ano inteiro falando sobre esse evento. Fomos todos divididos por cores. Como Aline e eu faltamos aula no dia 16, caímos na Equipe Vermelha, junto com Rafaela e suas amigas. Prof.ª Daniela era nossa responsável. As outras meninas estavam na equipe amarela, representada pelo Prof. Emival. Pense numa semana em que professores interagem cara a cara com os alunos, cantam, dançam, deixam o guarda pó de lado e mostram que podem ser tão crianças quanto nós. Sexta-feira seria a grande caça ao tesouro. Quem encontrasse as pistas e o tesouro ganhava um incrível passeio ao Zoológico em dezembro.

O momento mais legal, sem dúvida, foi o Passa ou Repassa organizado pelo Prof. Vando, o mediador. As per-guntas eram sobre atualidades e conhecimentos gerais. Igual

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a TV, quem errava levava torta na cara. Eu não levei uma torta sequer, a Mari Franco umas cinco; Aline três e o Roni levou o prêmio de quem levou mais tortas na cara naquele ano. Vinte. Não era à toa que ele ia reprovar. Ao final da competição, nós corremos atrás do Vando para acertá-lo com tortas. Ele, previsivelmente, fugiu.

E aniversariante que é aniversariante da ovada não escapa. Eu que o diga. Na hora da saída me acertaram ova-das, farinha, catchup e trigo. Puxaram minhas orelhas onze vezes e fizeram o montinho de sempre. Se eu escapasse, me encontrariam. Ao voltar para casa, encontrei Meire falando ao telefone. Ela só não me bateu porque era meu aniversário e estava bem humorada, evento raríssimo.

― Finalmente vai dormir em casa, Vossa Alteza. ― Meire curvou o tronco em uma reverência satírica.

Eu caminhava para meu quarto a fim de apanhar roupas para tomar banho, mas Meire impediu minha passa-gem:

― O que é que fizeram com você, criatura? ― O tom de voz era ríspido, típico de um interrogatório.

― Todo mundo leva ovada no aniversário.

― Nessa casa não.

― É normal lá no colégio. Não sei na tua época, mas na minha é e ninguém reclama.

― Nessa época de vagabundagem e selvageria porque no meu tempo isso aí era considerado um delito gra-víssimo. Dava até cadeia.

― Cadeia por se divertir com os amigos?

― Isso aí não é diversão. ― A grande troglodita ordenou: ― Agora vá tomar um banho, tirar essa imundície e ai de você se deixar o banheiro sujo.

Meire não deixava de ser truculenta nem no dia do meu aniversário.

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― Mas antes que vá tirar essa inhaca do corpo, te-nho uma notícia maravilhosa. ― Meire soletrou a última palavra prazerosamente.

― Sério?

― Viu só? É uma notícia de que você vai gostar muito!

― Vamos mesmo passar a noite com a Vó Olívia?

― Melhor que isso!

Papai se divorciou de Helena e pretende sair para me buscar, pensei.

― Acredito que você irá gostar muito dessa notí-cia.

Meu jovem coraçãozinho estava muito aflito. Eu precisava saber por que Meire sorria daquele jeito. Analisa-va-me por inteiro, buscando dentro de si as palavras mais adequadas, que soassem sucintas e exteriorizassem aquela ansiedade que também me pertencia.

― Eu estive conversando com o Horácio e nós dois decidimos que no ano que vem você voltará para o seu anti-go colégio...

― Acho que não entendi direito, mãe! ― Eu havia entendido muito bem, só precisava de uma confirmação para então crer que foi uma piadinha de mau gosto ou que a mi-nha mãe estava prestes a estragar o meu dia. ― A senhora está querendo dizer que eu vou ter que voltar para o meu antigo colégio?

― Isso mesmo. ― Meire abriu um sorriso torto. ― Não é um ótimo presente de aniversário.

― Diz que não é verdade, mãe ― eu estava ator-doada demais para dar uma resposta melhor. O fato é que eu não queria acreditar no que Meire acabava de me dizer. Era no mínimo surreal. Ser transferida de escola àquela altura do campeonato. Não tinha o menor fundamento. ― Eu não posso voltar para aquele inferno.

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― Inferno? Aquele colégio é maravilhoso, Renata.

― Por que isso, mãe?

― Eu, particularmente, nunca fui favorável à trans-ferência porque sabe, essa escola te deixou muito mal cria-da, preguiçosa, respondona, andando com gente favelada... Olha só... Está aí toda suja, parecendo uma mendiga.

― Também não exagera né, manhê? A galera dá ovada no aniversário.

― Bando de selvagens! ― amaldiçoou Meire. ― Mas isso acaba logo... Tomei essa bendita decisão depois da humilhação de te levar a um barraco... Lamentável...

― Mãe, isso é preconceito...

― Preconceito? Eu não quero ver filha minha en-trosada com favelada.

― Aline é minha amiga.

― Já disse que você não tem amigos!

― Tenho. ― Meu desespero surtiu naquele grito que quase me custou uma bofetada. ― Tenho sim! Tenho muitos amigos, mãe. Tanto que prefiro ir à aula a ficar aqui.

― Então vá morar na escola. ― Meire ameaçou, ultrajada com o meu comentário.

― Eu bem que gostaria.

― Eu bem que gostaria de te arrebentar de bordoa-da hoje, mas por ser o seu aniversário ― Meire imitou mi-nha voz de um jeito pejorativo ―, e Horácio queria que sa-íssemos juntos, mas você não merece.

― Por que a senhora não gosta de ninguém?

― Porque eu sei quem presta ou não.

― Por favor, mãe. Para aquela escola não.

― Para aquela escola sim ― teimou mamãe. ― Eu já decidi e eu sei o que é melhor para você. Eu vou te sepa-rar dessas más companhias, dessa maldita favelada que deve

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estar colocando abobrinhas nessa sua cabeça que já não é lá muito boa...

Nesses momentos em que Meire me abusava, em tudo que eu pensava era em Félix Linhares. Todos os meus pedidos de aniversário eram iguais. Todos os anos. Viver com Meire das Neves era o próprio inferno na Terra. Sonhar com meu gentil pai me fazia suportar cada dia com todas as dificuldades que me acometessem. Imaginar que um dia ele me tiraria dali e me levaria com ele para sermos uma família de verdade com amor e compreensão.

Aline era uma pessoa simples, estava enfrentando momentos difíceis e independentemente das privações, per-das e desilusões, no colégio contagiou a todos, inclusive a mim. Acima de tudo ela era uma criança como eu e não vi-via daquela forma porque escolheu.

― Eu queria te transferir hoje mesmo, mas para es-se ano é inviável, disseram que não dá mais tempo e não tem vaga, mas a sua farra está com os dias contados, Renata. Você vai estudar de manhã, eu vou te levar até a porta e ficar de olho em cada passo que você dá.

― Não precisa me levar. Eu sei ir sozinha.

― Está aprontando, não está? ― Meire cruzou os braços, encafifada com a minha convicção determinada. Eu já tinha onze anos de idade, sabia atravessar a rua olhando para os dois lados, sabia quais ônibus apanhar, não era boba, também não queria sentir medo de me atrasar por dois minu-tos e ser insultada ao entrar no carro.

― Não.

― Então por que esses olhos arregalados? Quem não deve não teme.

― A senhora vai me tirar do paraíso.

― Quem manda nessa casa sou eu e a última pala-vra é minha. Você não tem que concordar ou discordar de nada. Só obedecer.

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― Isso não é justo...

― Pode chorar, espernear, fazer o que quiser: já tomei minha decisão.

― Eu gosto da minha escola.

― Mas eu sei o que é melhor para você.

― Nem sempre, mãe.

― Não me faça te dar um bom motivo para chorar.

Sem condições emocionais para dar prosseguimen-to àquela conversa, fui para meu quarto e não fiz questão de droga nenhuma de parabéns e bolo. Minha mãe achava que aniversário era isso, ironizar a quem gosta de celebrar o próprio, lavar a louça e guarda-la com má vontade e se reco-lher para o quarto. Nada de festa surpresa nem música to-cando enquanto os convidados se divertem. Nada disso, pelo menos não na minha casa.

No aniversário dos sonhos eu voltaria da escola, tomaria um banho de princesa, vestiria uma roupa novinha em folha comprada pelo meu pai e me prepararia para rece-ber os meus amiguinhos em casa para a festinha. Na parte de trás estaria montada uma mesa quadrada bem grande para receber todos os convidados. Docinhos, salgados, refrige-rantes, cachorros-quentes, um bolo de brigadeiro enorme, música boa tocando, muitas risadas, brincadeiras, todos con-fraternizando muito felizes até o primeiro bocejo, até os nossos pais falarem para não ficarmos no “sereno” para não pegarmos resfriado. Mamãe passaria os braços em volta dos meus ombros e nós nos encaminharíamos até a sala para nos despedir dos presentes.

Ao fim da noite da vida real, uma pequena Tita ― já não tão pequenina assim ― punha-se a olhar para o céu encoberto procurando a sua estrela. Ela era apenas um pon-tinho quase opaco diante daquela imensidão de sonhos per-didos no espaço, uma extensão da realidade que deveria ser doce com todas as crianças e consequentemente não era. Poucas, por assim dizer, foram privilegiadas em crescerem

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blindadas de certas desgraças, como a Mariana Franco que tinha pai, mãe, irmão, uma família unida e feliz. Ela podia queixar-se porque a D. Neide queria boas notas, mas com certeza seria muito triste para ela não ter uma mãe cobran-do-lhe um bom desempenho na escola, não ter mãe nenhu-ma.

Eu confiava toda a minha esperança no assoprar de velas, nos meus desejos de aniversário, na ilusão de que um dia eu teria o meu momento especial e sentir-me-ia tão feliz que gritaria a plenos pulmões para todos saberem.

No dia seguinte a caminho do colégio eu prometi a mim mesma que não choraria na frente das minhas amigui-nhas, mas entre nós não havia segredos. Se a Mariana Fran-co discutisse com a mãe, chegava chorando e nos contava tudo, o mesmo com a xará Oliveira. Às vezes a Aline tam-bém ficava chorosa sem motivo ou com toda a razão de sê-lo, por que eu bancaria a durona se estava triste? Não tinha por quê.

Meire podia gritar aos quatro ventos que o choro era a arma do covarde, mas eu plenamente discordo dessa argumentação. Você tem de ser muito digno para honrar as suas lágrimas. Eu não iria esconder uma informação tão importante das minhas melhores amigas e foi no intervalo que tive uma crise de choro a ponto de não conseguir nem explicar-me. Aline me trouxe para junto de si e passou os braços pelos meus ombros, sussurrando que compreendia, que se eu estava com vontade de chorar, seria bom colocar tudo para fora. As meninas, compadecidas, também começa-ram a chorar como se fosse um vírus contagioso. Querendo ou não, nós nos divertíamos muito e éramos como uma fa-mília comum que briga, discute e compartilham experiên-cias, momentos únicos e ali, apesar das mancadas, todos me respeitavam. Ali sim era o ambiente estudantil que sonhei em viver o primário todo.

Minha mãe, egoísta mais uma vez, decidia minha vida sem me perguntar o que eu sentia e pensava a respeito.

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Ai de mim se acrescentasse uma vogal em seu roteiro ima-ginário chamado Tita.

― Por que você vai voltar pra lá? ― Aline pergun-tou, abraçada comigo, me oferecendo balinhas de hortelã para parar de chorar.

― Coisas da minha mãe. ― falei abraçada às me-ninas. ― Ela e essas suas ideias...

― Não entendo por que te separar da gente. ― suspirou Mari Franco, me oferecendo chocolate.

― No ano que vem vai ser tão legal: vão misturar as meninas da 5ª A com a nossa e pensando bem a gente falou tão mal delas no começo do ano e no fim elas são tão legais. ― Mari Oliveira avisou. ― E eu vou passar de ano enfim... Estou tão feliz!

Se eu soubesse que até as rixas ficariam na sauda-de, teria me preocupado menos e curtido mais. Rafa, Daisy, Kelly, Aline e eu éramos apenas crianças e na simplicidade de quem aprende vivendo, descobríamos que nem sempre a primeira impressão é a mais sincera.

― Já eu, gatinhas, vou repetir ― confessou a Ma-riana Franco. ― Se a minha mãe souber, come o meu fíga-do. Aquele Vando bruxo me paga.

― O Vando sem sobrenome... ― Mariana Oliveira achincalhou a melhor amiga.

― Não tão sem sobrenome assim... ― Aline dei-xou escapar.

― Oi?

― Conheço o Figueira de longas datas. Ele é lá de Prudentópolis. ― Aline, risonha, estalou os dedos como sempre.

― Não brinca? ― Todas nós falamos juntas.

― E eu sei o telefone dele.

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― Dez balas se você contar ― Mariana Franco or-denou, subornando Aline com vinte balas com recheio de chocolate e caramelo.

― E é verdade que o Vando é solteirão? ― Questi-onei, torcendo para que sim e que seus olhos estivessem vidrados em Daniela.

― É e não é... Se perceberem, ele tem uma queda secreta pela Prof.ª Daniela. ― Aline deu a entender o que todos já desconfiavam havia meses. Eu fui a primeira a me manifestar.

― Eles fariam um casal legal.

― Está aí o peixinho da professora Daniela. ― acusou a Juliana.

Vando e Daniela bem que poderiam ser meus pais. Juro que seria a filha mais comportada do mundo. Eu juro de dedinhos dados que seria a criança mais amável da face da Terra.

― Ela também o curte bem lá no fundo. ― Aline parecia saber de algo mais. ― Eles têm se é que vocês me entendem, uma química.

― Química? ― inquiri. Assuntos de amor ainda não eram um hábito de se comentar.

― Eles se entendem muito bem...

― Aline, a consultora de relacionamentos... ― Ma-riana Franco brincou.

Mariana Franco com sua caneta permanente pichou o número do Prof. Vando em todos os orelhões do colégio e ele recebeu tantos telefonemas de crianças que comunicou a diretoria.

No dia seguinte precisei passar na sala dos profes-sores quando o encontrei gesticulando na sala dos mestres com entrada proibida aos fedelhos enxeridos como eu. Da-niela estava muito próxima dele. Escondi-me por perto da

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porta para não interromper a conversa. Foi a primeira vez que vi dois adultos se beijando de verdade.

Incrivelmente lindo.

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OS ÚLTIMOS DIAS NO PARAÍSO

pesar dos pesares, a Semana Recrea-tiva atenuava a tristeza. Entre risadas, cachorros-quentes e balas, curtia mi-nha felicidade. Agora, mais ainda.

Minha plenitude iria acabar dentro de semanas. Como a no-vela. Um dia ela está estreando, você assiste pensando que não irá se envolver, sendo que no final da história está cho-rando e de certa maneira afeiçoada aos personagens, à trilha sonora, torce por uns, se redime acerca de outros, de alguns você não quer nem lembrar o nome. Pelo menos comigo é assim.

No show de talentos nós meninas dançamos Beijo é bom – Sandy & Junior, mas quem roubou a cena foi o Van-do, que com muito bom humor deu vida ao Robocop Gay e nos levou às gargalhadas. Como dançarino era um ótimo professor. Foi praticamente impossível ficar parado. Roni e seus amigos deram vida ao pagode com Brincadeira de cri-ança do Grupo Molejo.

Só porque Roni me viu de sapatinho preto com fi-vela, vestido florido e cabelo solto, veio querer paquerar. Até se ofereceu para segurar minha mochila.

― Uma dama como você não pode carregar todo esse peso.

― Eu já estou acostumada.

― Hoje não ― Roni apanhou minha mochila. ― Serei seu servo.

A

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As meninas, atrás de mim, não conseguiam parar de rir.

― Sabia que você é a garota mais linda de toda a escola?

A piscadela. Roni aproximou-se de mim e jogou um beijo na minha direção.

― Guarda na tua boca.

― Qual é Roni? Sai pra lá. ― Esquivei-me daquele garotinho convencido por demais.

― Isso mesmo, Roni ― apoiou Aline. ― Deixa a Tita em paz. ― Aline recuperou a minha mochila e me ajus-tou a vestir uma das alças por sobre os braços.

― Quando quiser gatinha, é só me procurar. ― in-sistia o paquerador desastrado.

A equipe verde venceu a Caça ao Tesouro, que na-da mais era que uma cesta repleta de guloseimas.

Nas últimas semanas de aula a bagunça era a prin-cipal matéria e nela todos eram aprovados. O uso do uni-forme já era facultativo, mas mesmo assim minha mãe não me permitia desobedecer. Eu colocava minhas peças no for-ro da mochila, chegava à escola e ia me trocar no banheiro. Ela jamais ficou sabendo.

Daniela e Vando assumiram o namoro. Foi lindinho ver os dois caminhando de mãos dadas em um intervalo bem formal com as meninas da 8ª série dançando Spice up your life, chorando e tirando fotos. Sempre que podia comprava os quitutes que elas preparavam com o intuito de arrecadar fundos para a formatura. Até pôster de Leonardo Di Caprio, Hanson, Backstreet Boys e Spice Girls elas estavam ven-dendo a nós ‘fedelhas’ para poderem ter a festa que queri-am.

A diretora, indulgente, permitiu que no último dia de aula, aproximadamente a primeira sexta-feira de dezem-bro, antes das provas de recuperação, o povo do 8º ano que

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se despediria da instituição organizasse uma festa a qual encerraria formalmente as atividades daquele ano letivo. Era proibido aparecer uniformizado. Minha mãe não queria me deixar ir, mas inventei que quem não comparecesse levaria falta.

Parecia até cenário de final de novela infantil quan-do todos os dilemas se resolvem, o casal de professores amado pelos alunos anuncia o casamento e a protagonista dança, sorri e se diverte como se nada tivesse acontecido. Eu não tinha um par romântico mirim, mas me sentia muito bem acompanhada pelos meus amigos, até porque me entro-sava com a galera da 8ª série, responsáveis pela trilha sono-ra.

Pulamos corda, comemos, fizemos a entrega de presentes do nosso amigo secreto. Eu peguei a Aline e re-solvi dar-lhe uma agenda bem linda a qual até assinei e comprei uma cartela de adesivos fofinhos. Ela adorou. Aline pegou a Mariana Franco e a presenteou com uma pulseiri-nha da amizade e um CD de Sandy & Junior, bem como Mari falou por tempos.

― Eu acho que vai riscar de tanto que vou ouvir.

― Vai ouvir pensando no bonitinho. ― Fizemos um montinho em cima da Mariana, falando o nome do me-nino, aquele mesmo que ela conheceu no interior e trocava cartinhas.

― Quem disse? Já nem gosto mais dele... ― garan-tiu Mariana Franco que me pegou e me deu um álbum com algumas fotos que tiramos ao longo do ano. Todo mundo sabia que ela gostava mesmo era do Roni.

― Que lindo! ― exclamei.

― A camiseta do colégio estragou tudo, mas até que ficou joia.

― Eu adoro a camiseta do colégio. ― Eu me emo-cionei olhando para aquela camiseta branca com o emblema de um livro aberto e as iniciais do nome daquele prédio on-

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de vivi o melhor ano da minha breve vida. ― Eu adoro esse uniforme porque foi vestida nele e pisando aqui que vivi o melhor ano da minha vida.

― Que profundo! ― As meninas me aplaudiram querendo chorar.

― Foi nada não... ― Enxuguei as lágrimas: ― Não quero estragar esse momento lindo chorando, né? Fui tão feliz aqui...

― Ainda somos felizes, bobinha. ― Aline disse e ela tinha razão. Se minha mãe poderia mudar de ideia caso viesse me buscar e visse o quanto eu era feliz ali. Não fazia sentido retornar aquele colégio onde vivi os piores anos da minha vida.

As formadas da 8ª série dançaram Spice up your li-fe e foram aplaudidas por todos. Um dia elas foram como eu, Aline e as Marianas. Chegaram ali ainda pequenas e ali viveram uma época única de suas vidas. Do balanço feito no calor da emoção, o saldo era muito positivo. Quase sempre acabava sendo. Para se ter uma ideia se até Florinda e Jane, as duas mal humoradas estavam sorrindo, era uma tarde memorável.

Profs. Dani e Vando estavam juntinhos e dava até gosto de observá-los sentados com as mãos bem juntinhas, mas sempre respeitadores. Quem diria que o amor nasceria em meio a provas, trabalhos e tantas diferenças, mas nasce e deixa as pessoas mais bonitas, o ambiente mais cheio de vida, toda alegria que em casa desconhecia.

Prof. Vando era tido como rígido e inflexível, po-rém em público às vezes pagava micos e isso o deixava mais próximo de nós. Dizia odiar as ‘pragas da moda’ só para ver nós menininhas revoltadas e não tinha medo de nos fazer pensar, estudar de verdade e muito menos de castigar.

Prof.ª Daniela, mais doce, era de poucas palavras com os outros alunos e alguns até consideravam-na chata e antipática, entretanto, comigo ela sempre foi um amor de

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pessoa e me deu alguns puxões de orelha, porém se emocio-nava quando avisei que iria voltar para o antigo colégio.

― Não acredito, Tita. Por quê?

― Porque minha mãe não gosta de me ver feliz.

― Eu discordo dessa última frase, Tita. As mães priorizam a felicidade dos filhos acima da própria, porém acredito que a sua mãe não pode te tirar da escola se você é feliz aqui.

― É o que eu sempre digo. Eu sei ir sozinha, nunca chego depois da hora, não tiro nenhuma nota vermelha, te-nho meus amigos aqui e não acho justo voltar para aquele lugar nojento onde sei que vão me bater e me maltratar...

― Talvez as coisas tenham mudado.

― Acho difícil.

― Você já passou por tantas coisas, Tita. Não se lembra no começo do ano quando você morria de medo de não fazer amigas e olha só ― Nós duas olhamos para as minhas amigas dançando no gramado ―, você tem várias amiguinhas que gostam muito de você. Você enfrentou o seu medo. Por que não enfrentaria mais um? Tudo o que te peço é pra que você continue sendo a menina valente que sempre foi, Tita. ― Daniela colocou minha mãozinha sobre a dela: ― Se você quer muito uma coisa, tem que lutar por ela. Não digo que vai ser fácil, mas se você se comportar e mostrar à dona Meire que ela está errada, com certeza eu serei sua professora no ano que vem. Se você precisar, meu anjo, eu posso conversar com a Meire, convencê-la, desde que você me prometa que vai continuar sendo esse doce de menina que é.

― Prometo ― assenti.

― A luta não está perdida, então não há motivos para chorar. ― Daniela me abraçou bem apertado, bem do jeito que eu gostava que ela me abraçasse.

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Vera Lúcia levou o marido e os filhos à confrater-nização e nem parecia àquela senhora taciturna do cabelo Chanel que só gritava e dava ordens. Mãe zelosa e atenciosa conversava conosco de igual para igual como se também fôssemos seus filhos e até se deixava chorar um pouco ao falar ao microfone acerca do ano que se encerrava.

― Nesse momento eu quero a atenção de todos.

E não precisou repetir novamente.

― Em primeiro lugar eu agradeço a presença de todos. A cada um que gentilmente colaborou para que essa festa fosse possível. Como diretora dessa escola, a respon-sabilidade é muitíssimo grande. Encaminhar os pequenos a fecharem esse ciclo de quatro anos e dizer a quem está par-tindo que foi um grande prazer vê-los crescer, participar das descobertas, alegrar-me com as conquistas de cada um de vocês e desejo-lhes muita sorte nesse novo ciclo que começa no ano que vem porque quero ver todos prosperando; quero ouvir falar muito bem de vocês no futuro. Essa é a missão da diretora e não apenas minha, de transformar a escola em um ambiente agradável, a segunda casa de vocês. A educa-ção tem de vir de dentro de casa, com bons exemplos, devi-damente aplicada, mas na ausência dos pais, temos de ser o porto seguro de vocês. No ano que vem, mais jovens chega-rão, outra turma se formará e espero poder acompanhar mais uma vez também a quem está no meio do caminho.

João e os meninos continuavam fazendo macaqui-ces e mesmo sendo bem menos sensíveis que as meninas, desabaram e se abraçaram. Eu ri um pouco. João chorou assim como eu, como Aline, Mariana Franco, Mariana Oli-veira, Rafaela. Quem não chorou, certamente, não estava ali e não viveu tudo aquilo.

Lembro-me até hoje de todas as músicas que toca-ram, desde rock nacional até MPB, houve uma democracia na seleção. A galera assinou minha camiseta e eu só não participei das ovadas porque minha mãe chegou antes das

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17h30min e ainda reclamou porque demorei um minuto para entrar no carro.

― Por isso não gosto dessa escola. Viu só? Ainda está chorando...

― Eu estou chorando porque adoro essa escola e nem queria ter férias.

― Deve estar falando isso porque deve ter tirado nota baixa ― debochou a troglodita. ― Chorando. Se não sabe, o choro é a arma do covarde.

Meire não imaginava o quanto eu adoraria que o colégio fosse interno para poder dormir lá e só vê-la no má-ximo uma vez por ano.

― Eu só me atrasei um minuto, mãe. Hoje era o úl-timo dia de aula...

― Ainda bem que a partir do ano que vem às coi-sas voltam ao normal...

Para ela. Para mim era o fim dos sonhos de liber-dade, da dádiva de ser uma garota normal como qualquer outra que vai à aula sozinha, tem amigos e não teme chutes, empurrões e outros abusos igualmente degradantes para a honra de qualquer ser humano.

― Olha só que selvageria! ― Meire reclamava bu-fando, dando muxoxos, revirando os olhos. ― Se eu visse você agindo dessa forma, te surrava pelada debaixo do chu-veiro quente.

― Pois saiba que eles são gente muito boa e se di-vertem muito mais que você que fica só criticando e recri-minando todo mundo. Saiba que eu gosto muito mais da Prof.ª Daniela do que de você.

― Então pede para ela te adotar.

― Eu bem que adoraria.

Levei uma bofetada tão forte que a marca da palma da mão ficou marcada no meu rosto por um bom tempo.

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― Eu sou feliz nesse colégio e a senhora vai me ti-rar de lá pra colocar naquele inferno de novo aonde todo mundo me maltratava.

― Não invente mentiras, Renata ― interrompeu Meire. ― A professora sempre disse que você era o proble-ma. Da maneira como anda falando, já sei que o problema é essa escola.

― Não, não é. ― protestei.

― Não teime comigo porque eu sou adulta e tenho a razão.

― Por que não pode entender que sou feliz aqui?

― Porque sei que você não é. Não é e ponto. Sei que você não tem amigo nenhum, só sabe dar desgosto. Os professores daqui também disseram que você não tem jeito.

― Quem? Quero os nomes.

Meire hesitou. Punia-me quando eu mentia, mas quem a fiscalizaria?

― Quero saber quem falou de mim...

―Muitos. ― Ela respondeu com a voz seca e indi-ferente.

― Pois saiba que sou uma das melhores alunas da sala e meus professores gostam muito de mim. Todos.

Tudo bem que as professoras Ivana e Neiva eram um tanto ríspidas, mas reconheciam meu esforço e para elas o que contava não era necessariamente desenhar como um artista e ser um craque nas quadras ― ninguém é bom em tudo, mas TENTAR. É isso que faz de nós melhores do que um dia nós fomos ou quisemos ser. É quando teimamos em enfrentar nossos medos. Notas são apenas notas. Restrin-gem-se ao boletim, é o suficiente para aquela mãe que usa os méritos dos filhos para se gabar às comadres. O impor-tante de verdade não é o quanto você tirou numa prova em maio, mas quantos corações você tocou, quantas risadas

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você deu, aqueles momentos que levará consigo por toda a existência, contando de quando em vez aos filhos e netos.

Meire era sempre fria, indiferente e dizia que eu era egoísta, problemática, mas nunca participou do meu mundo, das minhas descobertas (por ela eu seria uma dessas prisio-neiras que nem a luz do sol vê) e não fazia questão de saber nada sobre mim. Ou eu fazia o que ela queria ou apanhava, apesar de que era surrada mesmo fazendo tudo certo. O pro-blema era ela.

Enquanto esperava o sinal abrir, vi João espirrando catchup nas minhas amigas, o Prof. Vando zoando junto e chorei mais ainda. Aliás, chorei até dormir ouvindo as músi-cas da festa, pensando em como precisaria ser forte para retornar ao lugar onde mais fui infeliz e talvez até em um jeito de escapar do próximo ano letivo. Infelizmente, como minha própria mãe bradava: criança não tem querer!

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