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SIMON MONTEFIORE

Tradução

Paulo Afonso

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© Simon Montefiore, 2008

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA OBJETIVA LTDA., rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 – Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

Título originalSashenka

CapaAdaptação Pronto Design sobre design original de Claire Ward/TW

Imagem de capaLarry Rostant

RevisãoDiogo HenriquesEduardo CarneiroAna Grillo

Coordenação de e-bookMarcelo Xavier

Conversão para e-bookFiligrana

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJS449s

Sebag Montefiore, SimonSashenka [recurso eletrônico] / Simon Montefiore; tradução Paulo Afonso. - Rio

de Janeiro : Objetiva, 2012.recurso digital

Tradução de: SashenkaFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web438p. ISBN 978-85-8105-064-5 (recurso eletrônico)

1. Romance inglês. 2. Livros eletrônicos. I. Afonso, Paulo. I. Título.

12-1412. CDD: 823 CDU: 821.111-3

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Para Santa

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Havia a espuma das ondasOs sopés de solitários recifes...Uma feiticeira amorosaMe deu seu talismã.E disse com ternura:Você não deve perdê-lo,Seu poder é infalível,O amor deu isso a você.

Aleksandr Puchkin, “O Talismã”

Às vezes, por aqui, você se depara com pessoas tão memoráveis que,embora muito tempo tenha se passado desde que você as encontrou, éimpossível recordar-se delas sem um tremor no coração.

Nikolai Leskov, “Lady Macbeth de Mtsensk”

Aqui estou eu, abandonado e órfão, sem ninguém para cuidar demim.

Vou morrer daqui a pouco e ninguém vai rezar no meu túmulo.Só o rouxinol, às vezes, vai cantar na árvore ao lado...

Canção dos meninos de rua de Petrogrado, 1917

UNIVERSIDADE DE MOSCOU

BOLETIM DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS12 DE MARÇO DE 1994

ANÚNCIOS PESSOAIS

PROCURA-SE!*

PROCURAMOS JOVEM HISTORIADOR, COM EXPERIÊNCIA EM

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PESQUISAS NOS ARQUIVOS DO ESTADO RUSSO. O PROJETO:HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA, LOCALIZAÇÃO DE PESSOASDESAPARECIDAS etc. SEIS MESES. EXIGE-SE DISCRIÇÃO

ABSOLUTA.

*SALÁRIO: US$ MAIS DESPESAS.

PASSAPORTE/DOCUMENTO DE IDENTIDADE VÁLIDO PARAVIAGENS.

SOMENTE DIPLOMADOS COM EXCELENTE HISTÓRICO ESCOLARPODEM SE CANDIDATAR.

O CANDIDATO DEVERÁ ESTAR PRONTO PARA COMEÇARIMEDIATAMENTE.

CONTATO: PROFESSOR BÓRIS BELIAKOV,DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE ESTUDOS MODERNOS E

CONTEMPORÂNEOS, ESCOLA DE CIÊNCIAS HUMANAS.

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Parte UmSão Petersburgo, 1916

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1

Ainda era a hora do chá, mas o sol já se tinha posto quando três dosgendarmes do tsar tomaram posição nos portões do Instituto Smolni paraMoças Nobres. O melhor internato para moças de São Petersburgo, aofinal do ano letivo, não era lugar para policiais, mas lá estavam eles,inconfundíveis em suas elegantes túnicas azul-marinho debruadas debranco, sabres reluzentes e capacetes de pele de cordeiro, encimadospor espigões. Um deles estalava os dedos com impaciência, outro abria efechava o coldre de couro, onde se alojava o revólver Mauser, e oterceiro, impassível, plantara-se com as pernas bem separadas e ospolegares enfiados no cinto. Atrás deles, trenós puxados a cavalo,ornamentados com insígnias em ouro e carmesim, entupiam a rua, junto aalgumas limusines faiscantes. A lenta e oblíqua queda da neve só eravisível no halo oscilante dos postes de luz e nas lâmpadas alaranjadas doscarros que passavam.

Era o terceiro inverno da Grande Guerra, e parecia ser o mais longo eescuro deles. Na grande avenida, atrás dos portões negros, o Instituto seerguia sobre colunatas, resplandecendo no crepúsculo precoce como umtransatlântico à deriva na neblina. Mas este internato, patrocinado pelaprópria imperatriz, repleto de filhas de aristocratas e de burguesesenriquecidos pela guerra, já não conseguia alimentar suas alunas ouaquecer seus dormitórios. O período letivo estava terminando de formaprematura. A escassez atingira também os ricos. Poucos, agora, podiamse dar ao luxo de colocar combustível nos carros — e a tração animalvoltara à moda.

Naqueles tempos de guerra, a escuridão de São Petersburgo tinhauma melancolia pegajosa, toda própria. A neve fofa abafava o som doscavalos e dos motores, mas o frio cortante tornava os odores maisintensos: petróleo, esterco de cavalo, álcool no hálito dos cocheiros, apungente colônia dos choferes, em seus uniformes amarelos com frisosvermelhos, a fumaça dos cigarros que fumavam, os aromas florais dasmulheres à espera.

Em um pequeno Delaunay-Belleville, forrado em couro grená, umajovem séria, com rosto em forma de coração, lia um romance inglês à luz

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de uma lâmpada de nafta. Audrey Lewis — sra. Lewis, para seusempregadores, e Lala, para sua amada pupila — estava com frio; entãocobriu as pernas com uma peluda manta de pele de cordeiro. Ela usavaluvas, um espesso casaco e um chapéu de pele de lobo. Ainda assim,tremia. Quando Pantameilion, o motorista, sentou-se em seu assento,atirando o cigarro na neve, ela o ignorou. Seus olhos castanhos jamaisdeixavam a porta da escola.

— Anda logo, Sashenka! — murmurou para si mesma, em inglês,observando o relógio de bronze fixado na divisória de vidro, que mantinhao chofer a distância. — Agora falta pouco!

Um calor de antecipação maternal se alastrou em seu peito: imaginoua esguia figura de Sashenka correndo pela neve em sua direção. Poucasmães apanhavam as filhas no Instituto Smolni, e quase nenhum pai. MasLala, a governanta, sempre vinha buscar Sashenka.

Apenas alguns minutos, minha criança, pensou ela; minha criançaadorável, inteligente e solene.

Lanternas brilhando através da fina retícula de gelo, que embaçava asjanelas do carro, fizeram sua mente vaguear até a casa onde passara ainfância, em Pegsdon, um vilarejo de Hertfordshire. Já não visitava aInglaterra há seis anos e conjeturava se algum dia veria de novo a família.No entanto, se tivesse permanecido lá, jamais teria conhecido sua queridaSashenka. Seis anos atrás, aceitara um emprego na casa do barão e dabaronesa de Zeitlin, bem como uma vida nova em São Petersburgo, acapital russa. Seis anos atrás, uma garotinha com roupa de marinheiro acumprimentara friamente, examinando-a com olhos inquisitivos; então,estendera a mão à inglesa, como se estivesse oferecendo um buquê. Anova governanta mal falava uma palavra de russo, mas se ajoelhou eaninhou a mãozinha quente entre as suas. A menina apoiou-se nela, aprincípio de modo hesitante, depois com mais confiança; finalmente,descansou a cabeça em seu ombro.

— Mne zavout Mrs. Lewis — disse a inglesa, em russo rudimentar.— Saudações para um hóspede contratou, Lala! Eu sou ser-chamada

Sashenka — respondeu a menininha em pavoroso inglês. E assim foi: asra. Lewis, a partir de então, foi “ser-chamada” Lala. As personalidadescombinaram. Ambas se adoraram à primeira vista.

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— Faltam dois para as cinco — disse o chofer, com um timbremetálico, através do tubo de voz.

A governanta se inclinou para a frente, tirou do gancho seu própriotubo de voz e falou em excelente russo (embora com entonaçãoinglesa):

— Obrigada, Pantameilion.— O que os faraós estão fazendo aqui? — perguntou o motorista.

Todo mundo usava o termo de gíria para a polícia polít ica, a gendarmaria.Ele deu um risinho. — Quem sabe as meninas da escola não estãoescondendo códigos alemães nas anáguas?

Lala não iria discutir esse tipo de assunto com um chofer.— Pantameilion, vou precisar que você entre lá para carregar a

bagagem dela — disse em tom severo. Mas por que os gendarmesestariam ali?, perguntou-se.

As garotas sempre saíam na hora. Madame Buxhoeven, a diretora,conhecida pelas meninas como Grand-maman, dirigia o Instituto como umquartel prussiano — mas em francês. Lala sabia que a Grand-maman erauma favorita da Imperatriz Viúva, Maria Feodorovna, e da ImperatrizReinante, Aleksandra.

Um oficial de cavalaria e um bando de alunos, com uniformes debotões dourados e quepes, entraram pelos portões para encontrar asnamoradas. Na Rússia, até meninos de escola usavam uniformesenfeitados. Quando viram os três gendarmes, hesitaram por ummomento, mas depois seguiram em frente, olhando para trás: o que apolícia polít ica estaria fazendo em um internato para meninas da nobreza?

Enquanto aguardavam as filhas dos patrões, os cocheiros, em casacosrevestidos com grossas peles de carneiro, faixas vermelhas na cintura echapéus-coco, batiam os pés no chão e cuidavam dos cavalos. Tambémeles observavam os gendarmes.

Cinco horas. As portas duplas do Smolni se escancararam, jogandouma faixa de luz amarela nos degraus que desciam até os portões.

— Ah, lá vêm elas! — Lala jogou o livro para o lado.No alto da escadaria, madame Buxhoeven, austera em sua capa

preta, vestido de sarja e largo colarinho branco, surgiu no halo de luz —como se tivesse rodas, uma sentinela em um relógio suíço, pensou Lala.

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O busto da Grand-maman, largo como uma colina, era visível até adistância — e sua reverberante voz de soprano poderia quebrar gelo acem passos. Apesar do frio, Lala abaixou o vidro da janela e olhou parafora, cada vez mais animada. Pensou no chá favorito de Sashenka, queestaria esperando por ela no salão pequeno, e nos biscoitos quecomprara especialmente para a ocasião, na Loja Inglesa, às margens dorio: uma lata de Huntley & Palmers, que estava pousada ao seu lado, noassento de couro grená.

Chicotes nas mãos, os cocheiros se encarapitaram nos veículos.Pantameilion colocou um boné enfeitado com uma faixa e vestiu umajaqueta orlada em vermelho e dourado. Alisando um bigode bemencerado, piscou para Lala. Por que os homens esperam que nós nosapaixonemos por eles só porque sabem dar partida em um carro?,perguntou-se Lala, enquanto o motor roncava, matraqueava e,ruidosamente, voltava à vida.

Pantameilion sorriu, revelando uma fileira de dentes estragados. Suavoz ofegante ecoou no tubo de voz.

— Então, onde está nossa raposinha? Logo vou ter duasbonequinhas no carro.

Lala sacudiu a cabeça.— Depressa, agora, Pantameilion. Uma mala e uma valise, ambas com

a marca Aspreys of London. Bistro! Rápido!

2

Era a última aula: costurar para o Tsar e para a Pátria. Sashenka fingiacoser as calças cáqui, mas não conseguia se concentrar e, a todoinstante, espetava o polegar. A campainha estava prestes a soar,libertando-a e às outras garotas da prisão do século XVIII, com seusdormitórios varridos pelo vento, refeitórios retumbantes e salõesrevestidos de alabastro.

Sashenka decidiu que seria a primeira a fazer a mesura para aprofessora — portanto, a primeira a sair da sala. Sempre quisera ser

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diferente: a primeira ou a última, nunca a do meio. Assim, sentou-se bemà frente, no lugar mais perto da porta.

Sentia que se tornara maior que o Smolni. Tinha assuntos mais sériosem sua mente do que as bobagens e frivolidades das colegas do Institutopara Nobres Imbecis, como ela o chamava. Elas só sabiam falar sobrepassos de danças obscuras, o cotilhão, o pas d’Espagne, o pas depatineur, a trignonne, a chiconne; sobre as últimas cartas de amor deMisha ou de Nicolasha, que serviam na Guarda; sobre o estilo modernodos vestidos de baile; e, acima de tudo, sobre a melhor maneira de exibiros decotes. Depois que as luzes se apagavam, discutiam esses assuntoscom Sashenka, interminavelmente, porque era ela quem tinha os maioresseios da turma. Diziam que a invejavam tanto! A superficialidade delas nãosó horrorizava Sashenka como também a embaraçava, porque, aocontrário das colegas, ela não tinha o menor desejo de exibir os seios.

Sashenka estava com 16 anos e, lembrava a si mesma, não era maisuma menina. Abominava o uniforme da escola: o singelo vestido brancode algodão e musselina, com seu avental cafona e uma capa engomada,que a fazia parecer jovem e inocente. Ela era uma mulher agora, e umamulher com uma missão. Entretanto, apesar de seus segredos, estavamorta de saudades da querida Lala, que a esperava no banco traseiro dopequeno carro de seu pai, trazendo biscoitos ingleses.

As palmas ritmadas de “Maman” Sokolov (todas as professoras tinhamque ser chamadas de Maman) interromperam seus devaneios. Baixa eatarracada, com uma cabeleira volumosa, Maman estrondeou com sua vozde baixo:

— Damas, hora de guardar as costuras! Espero que tenham feito umbom trabalho para os nossos bravos soldados, que sacrificam suas vidaspela nossa Pátria e por Sua Majestade Imperial, o Imperador!

Costurar para o Tsar e para a Pátria, naquele dia, fora prender umluxo de última moda — zíperes — nas calças destinadas aos sofredoresrecrutas camponeses, que, sob o comando de Nicolau II, erammassacrados aos milhares. A tarefa despertara risinhos excitados entre asgarotas.

— Tomem muito cuidado — avisou Maman Sokolov — com essetrabalho importante. Um zíper mal costurado pode ser um risco adicional

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para o guerreiro russo, que já vive rodeado de perigos.— É aqui que ele guarda o rifle? — Sashenka cochichou para a garota

a seu lado. As outras garotas a ouviram e riram. Nenhuma delas estavatrabalhando com capricho.

O dia parecia interminável: horas enfadonhas haviam transcorridodesde o café da manhã no salão principal — e a mesura obrigatória emfrente à enorme pintura da mãe do imperador, a Imperatriz Viúva MariaFeodorovna, com seus olhos penetrantes e sorriso de megera.

Assim que foram recolhidas as calças mal costuradas, Maman Sokolovbateu palmas novamente.

— Um minuto até a campainha tocar. Antes de vocês irem, mesenfants, eu quero a melhor mesura do ano. E uma boa mesura é uma...

— PROFUNDA mesura! — gritaram as garotas, rindo.— Ah, sim, minhas nobres damas. No que se refere a mesuras, mes

enfants, a PROFUNDA MESURA é um atributo das MENINAS NOBRES.Reparem que quanto mais elevada é a posição de uma dama na Tabelade Hierarquias, que nos foi legada pelo primeiro imperador, Pedro, oGrande, mais ela se curva quando é apresentada às Suas MajestadesImperiais. Ela toca o chão! — Quando disse “curva”, a voz de MamanSokolov atingiu profundidades abissais. — Vendedoras de lojas fazem umapequena mesura, comme ça — fez uma pequena inclinação com acabeça, o que levou Sashenka a olhar para as colegas, tentandoesconder um sorriso. — Mas as DAMAS FAZEM A MESURA BEEEEEMPROFUNDA! Toquem o chão com os joelhos, meninas, comme ça — eMaman Sokolov fez uma mesura com surpreendente energia, curvando-setanto que seus joelhos cruzados quase tocaram o chão de madeira. —Quem é a primeira?

— Eu! — Sashenka já estava de pé, segurando sua pasta de pelicalavrada e uma sacola de lona, com livros. Estava tão ansiosa para sair quefez a mesura mais encurvada e aristocrática de sua vida, mais encurvadaaté do que a que fizera para a Imperatriz Viúva, no dia de Santa Catarina.

— Merci, Maman! — disse ela, ouvindo às costas os murmúriossurpresos das colegas, pois ela era, quase sempre, a rebelde da turma.Mas já não se importava. Não mais, desde o verão. Os segredos daquelasenevoadas noites de verão haviam demolido e reconstruído seu mundo.

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Com a campainha ainda tocando, Sashenka chegou ao corredor.Olhou para o teto embolorado, o assoalho brilhante e o clarão daslâmpadas dos candelabros. Sentiu-se muito só.

Trazia a bolsa — gravada em ouro com seu nome e sobrenome,baronesa Aleksandra Zeitlin — sobre um dos ombros, mas seu bem maisprecioso estava em suas mãos: uma feia sacola de livros que ela apertavacontra o peito. Dentro dela estavam os queridos romances realistas deZola, a desolada poesia de Nekrasov e a rebeldia passional de Maiakovski.

Ela começou a correr pelo corredor em direção à Grand-maman, cujasilhueta se destacava contra a luz das limusines e dos trenós — por entreos quais uma multidão de governantas e cocheiros aguardava as JovensDamas Nobres do Smolni. Mas era tarde demais. As portas seescancararam e, repentinamente, o corredor foi inundado por risonhasgarotas de vestidos brancos, aventais de renda, meias brancas e sapatosbrancos, de couro macio. Como uma avalanche de neve pulverizada, elasdeslizaram pelo corredor em direção aos vestiários. Em sentido inverso,com as longas barbas embranquecidas pela geada, trazendo sobre ascapas a fria noite do norte, um rebanho de cocheiros se arrastavapesadamente, preparando-se para recolher as malas das meninas.Resplandecente em seu quepe e uniforme vistoso, Pantameilion estavaentre eles, fixando o olhar em Sashenka, como se estivesse em transe.

— Pantameilion!— Oh, mademoiselle Zeitlin! — ele sacudiu a cabeça e corou.O que poderia ter embaraçado o conquistador das criadas da casa? —

perguntou-se ela, sorrindo para ele.— Sim, sou eu. Minha mala e minha valise estão no Dormitório 12,

embaixo da janela. Espere um minuto... esse uniforme é novo?— Sim, mademoiselle.— Quem o desenhou?— Sua mãe, baronesa Zeitlin — gritou ele, enquanto subia as escadas

para os dormitórios.O que ele estaria olhando, conjeturou: seu busto horrível ou sua

boca larga demais? Pouco à vontade, dirigiu-se ao vestiário. Afinal decontas, o que era a aparência? O mundo superficial das escolares! Aaparência não era nada em comparação com a história, a arte, o

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progresso e o destino. Sorriu consigo mesma, divertindo-se com apreferência de sua mãe por vermelho e dourado: o extravaganteuniforme de Pantameilion tornava óbvio que os Zeitlins eram novos-ricos.

Sashenka foi a primeira a entrar no vestiário, entulhado com maciaspeles marrons, douradas e brancas. Capas, chapkas e estolas, onde seviam focinhos de visons e raposas da neve, lembravam as florestas daSibéria. Ela vestiu seu casaco de pele, enrolou a estola de raposa brancaem torno do pescoço e amarrou o xale Orenburg branco em volta dacabeça. Estava se dirigindo à porta, quando as colegas invadiram ocompartimento, sorrindo excitadas, ansiosas para chegar em casa.Tagarelando sem parar, tiraram os sapatos, calçaram botas e galochas,abriram sacolas de couro e se embrulharam em casacos de pele.

— O capitão de Pahlen voltou do front. Veio visitar minha mamãe emeu papai, mas eu sei que ele veio para me ver — disse a pequenacondessa Elena para as colegas embasbacadas. — Ele me escreveu umacarta.

Sashenka já estava quase saindo, quando algumas garotas achamaram. Para onde ela estava indo, por que tanta pressa, não podiaesperar por elas, o que iria fazer mais tarde? Se você for ler, podemos lerpoesia com você? Por favor, Sashenka!

A multidão de alunas em férias se atropelava, comprimindo-se paratranspor a porta. Uma estudante xingou um velho cocheiro suado que,carregando uma mala, pisara seu pé. Embora o frio fosse congelante noexterior, fazia calor no saguão. Mesmo ali, entretanto, enquanto ajeitavanas costas a sacola grosseira, que contrastava com o luxo das peles,Sashenka se sentia isolada, cercada por uma barreira invisível eintransponível. Achou que, pelo tato, conseguiria distinguir os diferenteslivros da sacola — as antologias de Blok e Balmont, os romances deAnatole France e Victor Hugo.

— Mademoiselle Zeitlin! Aproveite suas férias! — disse a Grand-mamanem voz agradável, enquanto bloqueava a porta. Sashenka conseguiuarticular um merci e fazer uma mesura (não encurvada o suficiente paraimpressionar Maman Sokolov). Finalmente, esgueirou-se para o lado defora.

O ar cortante a refrescou e purificou, queimando deliciosamente seus

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pulmões, enquanto a nevasca oblíqua lhe mordia as bochechas. Aslâmpadas dos carros e das carruagens criavam um halo de luz. Acima, océu selvagem e infinito era negro, com o negror típico de SãoPetersburgo, mitigado por partículas brancas.

— O carro está lá! — Carregando uma mala Asprey sobre os ombros euma valise em couro de crocodilo em uma das mãos, Pantameilionapontou para o outro lado da rua.

Sashenka foi até o carro, abrindo caminho na multidão. Sabia que,acontecesse o que acontecesse — guerra, revolução, apocalipse —, suaLala estaria esperando por ela, com seus biscoitos Huntley & Palmers, etalvez mesmo um bolo de gengibre; e que logo veria seu papai.

Quando um valete, à sua frente, deixou cair as malas, ela pulou sobreelas. Quando o caminho foi bloqueado por um imenso Rolls, com umbrasão grão-ducal estampado na lustrosa lateral, Sashenka simplesmenteabriu a porta, entrou no carro e saiu pelo outro lado.

Motores resfolegaram e gemeram, buzinas ecoaram, cavalosrelincharam e bateram as patas, criados cambalearam sob pirâmides demalas e caixas. Cocheiros e choferes, praguejando, tentaram encontraruma saída em meio aos veículos, pedestres e neve encardida. Era comose um exército estivesse levantando acampamento, mas um exércitocomandado por generais de aventais brancos, estolas de chinchila ecasacos de vison.

— Sashenka! Aqui! — Lala estava em pé no estribo do automóvel,acenando freneticamente.

— Lala! Vou para casa! Estou livre! — Por um momento, Sashenkaesqueceu-se de que era uma mulher séria, com uma missão na vida, semtempo para frivolidades ou sentimentalismos. Atirou-se nos braços de Lalae, depois, pulou para dentro do carro, inalando o aroma tranquilizador docouro tratado e do perfume floral da governanta. — Onde estão osbiscoitos?

— Aí no banco, querida! Você sobreviveu ao ano letivo — disse Lala,abraçando-a com força. — Você cresceu tanto! Não posso esperar para

levar você para casa. Está tudo pronto no salão pequeno: scones,1 bolode gengibre e chá. Agora, pode comer os Huntley & Palmers.

Mas assim que se inclinou para entrar no carro, uma sombra

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escureceu seu rosto.— Aleksandra Samuilovna Zeitlin? — Um gendarme estava de pé em

cada lado da porta do carro.— Sim — disse Sashenka. De repente, sentiu-se tonta.— Venha conosco — disse um dos gendarmes. Estava tão próximo

que ela podia ver os poros de sua pele marcada de varíola e os pelos deseu bigode avermelhado. — Agora!

3

— Você está me prendendo? — perguntou Sashenka lentamente,olhando em volta.

— Nós fazemos as perguntas, senhorita — atalhou rispidamente ooutro gendarme, que tinha hálito de leite azedo e uma barba emforquilha, ao estilo de Poincaré.

— Esperem! — implorou Lala. — Ela é uma estudante. O que vocêsquerem com ela? Vocês devem estar enganados, não? — Mas eles jáestavam conduzindo Sashenka em direção a um modesto trenó,estacionado adiante.

— Pergunte a ela, se quiser saber — gritou o gendarme por cima doombro, segurando Sashenka com firmeza. — Diga a ela, suavagabundazinha idiota. Você sabe por quê.

— Eu não sei, Lala! Desculpe! Fale com o papai! — gritou Sashenkaantes que a empurrassem para a traseira do trenó.

O cocheiro, também de uniforme, estalou o chicote. Os gendarmessubiram depois de Sashenka.

Longe dos olhos da governanta, ela se dirigiu ao oficial barbudo:— Por que levou tanto tempo? Eu já estava esperando por você.Ela estivera preparando essas palavras para o inevitável momento de

sua prisão, mas, para sua decepção, os policiais não pareceram ouvi-la,enquanto os cavalos iniciavam a marcha.

O sangue latejava em seus ouvidos. O trenó deslizou velozmente emdireção ao centro da cidade, passando pelo Palácio Taurida. As ruas,

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cobertas de neve, estavam tranquilas naquele inverno. Espremida entreos ombros acolchoados dos dois gendarmes, Sashenka se recostou noassento, aninhando-se no calor daqueles servos do Autocrata. Diantedela, a Nevski Prospect estava repleta de trenós, alguns carros e bondesque arrancavam fagulhas no meio da avenida. As lâmpadas a gás das ruas,que no inverno permaneciam acesas dia e noite, brilhavam como faróisrosados na neve que caía. Ela olhou para as ruas: queria ser vista poralguém que a conhecesse! Certamente, algumas das amigas de sua mãeiriam avistá-la, quando estivessem saindo das lojas de Gostiny Dvor, obazar na travessa dos Mercadores, com suas típicas quinquilharias russas —ícones, ursos empalhados e samovares.

Lanternas oscilantes e lâmpadas elétricas — nas amplas fachadas dosministérios, nos palácios cor de ocre e nas resplandecentes lojas da cidadedo tsar Pedro — passaram por ela em rápida sucessão. Lá estava oPassazh, com as lojas favoritas de sua mãe: a Loja Inglesa, com seussabonetes Pears e casacos de tweed, a Druce’s, com seu mobiliárioinglês, a Brocard’s, com suas colônias francesas. Flocos de neve brincavamem um pequeno redemoinho de vento; ela abraçou a si mesma. Estavanervosa, concluiu, mas não amedrontada. Fora colocada no mundo paraviver essa aventura, era sua vocação.

Para onde estarão me levando?, conjeturou. Para o Departamentode Polícia, em Fontanka? Mas o trenó dobrou rapidamente na rua doJardim, passando pelo medonho Castelo Mikhailovski, onde os nobreshaviam assassinado o louco tsar Paulo. Agora eram as torres da Fortalezade Pedro e Paulo que despontavam na escuridão. Enterrariam-na viva noForte Trubetskoi? Mas agora estavam passando sobre a ponte Liteini.

O rio estava escuro, exceto pelas luzes sobre as pontes e aslâmpadas nas margens. Enquanto atravessavam a ponte, ela se inclinoupara a esquerda, de modo a poder contemplar sua amada SãoPetersburgo, tal como Pedro, o Grande, a construíra: o Palácio deInverno, o Almirantado, o palácio do Príncipe Menshikov e, em algumlugar na escuridão, o Cavaleiro de Bronze.

Eu a amo, Piter, pensou ela. O tsar acabara de mudar o nome dacidade para Petrogrado, porque São Petersburgo era muito germânico —mas, para os nativos, era sempre São Petersburgo, ou apenas Piter. Piter,

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pode ser que eu nunca, jamais a veja de novo! Adeus, cidade natal,adeus papai, adeus Lala!

Mentalmente, citou um dos personagens de Ibsen: Tudo ou nada!Era o seu lema — e sempre seria.

E então os lúgubres tijolos vermelho-escuros da Prisão de Krestisurgiram à frente até suas sombras a engolirem. Grandes paredes seagigantaram sobre o pequeno trenó. Com um estrondo, os portões seabriram. Depois, fecharam-se atrás dela.

Não parecia um prédio, parecia um túmulo.

4

O Delaunay-Belleville passou em disparada pelas Suvorovski e NevskiProspects, com Pantameilion ao volante, e parou em frente à casa dafamília Zeitlin, uma fachada gótica, de granito finlandês e ocre, na BolshaiaMorskaia, ou Avenida Marítima. Chorando, Lala abriu a porta da frente eentrou em um saguão de piso quadriculado, quase tropeçando em trêsgarotas que, com panos amarrados nas mãos e nos joelhos, poliam apedra enquanto engatinhavam.

— Ei, suas botas estão imundas! — gritou a criada.Os sapatos de Lala enlamearam os reluzentes assoalhos, mas ela não

se importou.— O barão está em casa? — perguntou. Uma das garotas assentiu

com a cabeça, de mau humor. — E a baronesa?A garota olhou para o alto das escadas e revirou os olhos. Tentando

não escorregar no piso molhado, Lala correu até o escritório. A portaestava aberta.

Um som mecânico, como o de uma locomotiva manobrando, saía deseu interior.

Delphine, a velha e carrancuda cozinheira francesa, submetia o menuà aprovação. Uma esposa poderia, normalmente, cuidar desses assuntos— mas não naquela casa estranha, como Lala sabia bem. Da cor de cera,fina como um cabo de vassoura, Delphine tinha sempre uma gota de

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ranho na ponta do comprido nariz, que pendia perigosamente sobre ospratos. Lala lembrou-se de como isso fascinava Sashenka. O queaconteceria se a gota caísse na borscht? — perguntava a menina,faiscando os olhos cinzentos.

— Eles não ajudam o senhor, mon baron — estava dizendo acozinheira, em seu amarrotado uniforme marrom. — Vou falar com eles,se o senhor quiser, vou dar um jeito neles.

— Obrigado, Delphine — disse o barão Zeitlin. — Entre, sra. Lewis! —A cozinheira se aprumou como uma bétula e, empertigada, passou pelagovernanta sem olhar para ela.

Ainda que banhada em lágrimas, Lala conseguia apreciar o aroma decouro e charutos do escritório do barão. Escuro, forrado em nogueira eiluminado por lâmpadas elétricas amortecidas por abajures verdes, oaposento era repleto de bricabraques dispendiosos. Palmeiras pareciambrotar das paredes. Retratos, presos ao teto por correntes, olhavam paracabeças esculpidas, estatuetas vestidas com sobrecasacas e cartolas,fotos em sépia do imperador e de diversos grão-duques. Leques, camelose elefantes de mármore se misturavam a camafeus ovais alinhados emuma mesa de jogos.

O barão Samuil Zeitlin estava sentado em um estranho aparelho quechacoalhava ritmadamente, como um cavalo trotando, enquanto elemanipulava alavancas de aço polido, o rosto ligeiramente vermelho e otoco de um charuto entre os dentes. A Cadeira Trotadora fora concebidapara fazer com que os intestinos do barão se movimentassem após asrefeições.

— O que há, sra. Lewis? O que aconteceu?Tentando não soluçar, ela contou tudo a ele. Zeitlin pulou

imediatamente da Cadeira Trotadora. Enquanto reacendia o charuto, quenunca saía de sua boca, suas mãos tremeram ligeiramente. Mas ele ainterrogou minuciosamente, voltando a ser um homem de negócios.Somente ele decidia quando as conversas deveriam ser frias ou calorosas.Não pela primeira vez, Lala teve pena dos filhos dos aristocratas, que nãopodiam amar como as pessoas comuns.

Então, inspirando profundamente, olhou para o patrão, para os olhosatentos daquele homem esguio e atraente, com seu bigode claro e barba

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ao estilo de Eduardo VII, e percebeu que, se alguém poderia trazer suaSashenka de volta, esse alguém era o barão.

— Por favor, pare de chorar, sra. Lewis — disse o barão Zeitlin, dono doBanco Anglo-Russo de Óleo de Nafta de Baku e São Petersburgo,oferecendo a ela um lenço de seda, que retirou da sobrecasaca. A calmaem momentos de crise, para ele, não era apenas um requisitoindispensável da vida e um sinal de civilização, mas uma arte, quase umareligião. — Chorar não vai libertar Sashenka. Agora, sente-se. Procure secontrolar.

Zeitlin observou Lala respirar profundamente, ajeitar os cabelos, alisaro vestido e sentar-se com as mãos cruzadas, tentando se recuperar epermanecer calma.

— A senhora mencionou o assunto a mais alguém em casa?— Não — respondeu Lala, cujo rosto em forma de coração era, para

Zeitlin, insuportavelmente arrebatador quando decorado com lágrimascristalinas. Apenas sua voz aguda destoava. — Mas Pantameilion sabe.

Zeitlin circundou a mesa e puxou um cordão de veludo. A camareiraapareceu, uma graciosa camponesa, com o nariz arrebitado que acaracterizava como nativa do interior da Ucrânia.

— Luda, peça a Pantameilion que descarbonize o Pierce-Arrow nagaragem — disse Zeitlin.

— Sim, patrão — disse ela, inclinando-se ligeiramente a partir dacintura: camponeses de verdade ainda se inclinavam para seus senhores,pensou Zeitlin, mas os da cidade, hoje em dia, desdenhavam deles.

Depois que Luda saiu do escritório, Zeitlin afundou-se em sua cadeirade espaldar alto, pegou a caixa de charutos — de couro com monogramadourado — e distraidamente retirou um deles. Deu-lhe umas pancadinhase o cheirou em todo o comprimento, apertando-o contra o bigode paraque tocasse os lábios. Então, com um gesto que fez reluzir suas maciçasabotoaduras, segurou o cortador de prata e podou a ponta das folhasenroladas. Lenta e sensualmente, rolou o charuto entre o polegar e oindicador, girando-o na mão como se fosse o bastão de um líder debanda. Finalmente, colocou-o na boca e acendeu o isqueiro de prata,cravejado de pedras preciosas, que tinha o formato de um rifle (fora

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presente do ministro da Guerra, para quem manufaturara as coronhas dosrifles da infantaria russa). Um odor de querosene elevou-se no ar.

— Calme-toi, Sra. Lewis — disse a Lala. — Tudo é possível. Bastamalguns telefonemas e ela volta para casa.

Por trás da demonstração de autoconfiança, entretanto, o coraçãode Zeitlin palpitava: sua única filha, sua Sashenka, estava dentro de umacela, em algum lugar. O pensamento de que algum policial pudesse tocá-la, ou pior, um criminoso, até um assassino, provocou-lhe no peito umador ardente, acrescida de vergonha, uma pitada de embaraço e umfragmento de culpa — porém logo se recuperou. A prisão deveria ser umengano, ou fruto da intriga de algum concorrente, com inveja dos lucrosque ele auferia com a guerra. Mas calma, bom senso, contatosinsuperáveis e generosa distribuição de dinheiro iriam consertar as coisas.Ele já tinha superado desafios maiores do que libertar uma joveminocente: sua ascensão desde as províncias até sua atual situação em SãoPetersburgo, sua posição na Tabela de Hierarquias, sua fortunacrescente, até mesmo a presença de Sashenka no Instituto Smolni, tudoisso comprovava a eficiência de seus inflexíveis cálculos de probabilidades,preparação meticulosa, sorte e desinibido usufruto das legítimasrecompensas.

— Sra. Lewis, a senhora tem idéia dos motivos dessa prisão? —perguntou ele, algo timidamente. Poderoso de tantas formas, eravulnerável em seus próprios domínios. — Se sabe de alguma coisa quepossa ajudar Sashenka...

Através da névoa cinzenta do charuto, os olhos de Lala seencontraram com os dele e sustentaram o olhar.

— Talvez o senhor possa perguntar ao tio dela.— Mendel? Mas ele está no exílio, não?— Possivelmente.Ele captou a aspereza naquela voz que soava sempre como se

cantasse para uma criança, a sua criança, e compreendeu o olhar que oinformava de que mal conhecia sua própria filha.

— Mas antes da última prisão — continuou ela —, ele me disse queesta casa já não era segura para ele.

— Já não era segura... — murmurou Zeitlin. Significava que a polícia

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secreta estava vigiando a casa. — Então Mendel escapou da Sibéria? ESashenka está em contato com ele? Aquele miserável do Mendel! Porque ninguém me conta nada?

Mendel, o irmão de sua mulher, tio de Sashenka, fora presorecentemente e condenado a cinco anos de exílio administrativo, porconspiração revolucionária. Mas escapara, ao que parecia, e talvez tivesseenvolvido Sashenka em suas torpes maquinações.

Lala levantou-se, abanando a cabeça.— Bem, barão, sei que aqui não é meu lugar... — ela alisou o vestido

floral, que servia apenas para acentuar suas curvas. Zeitlin a observou,manuseando um cordão de contas de jade, a única coisa não-russa emum escritório marcadamente russo.

Subitamente, houve um rebuliço fora do escritório.— Shalom aleichem! — vociferou um homem barbudo, ombros largos,

vestido como um hussardo: sobretudo de zibelina, chapéu de astracã ebotas de cano alto. — Não me perguntem sobre a noite passada! Perditodos os copeques que tinha no bolso; mas e daí?

A porta do santuário do barão fora escancarada e a aura de colônia,vodca e suor animal que acompanhava Gideon Zeitlin invadiu o escritório.O barão se encolheu, sabendo que seu irmão só o visitava quandoprecisava de nova provisão de fundos.

— A garota da noite passada me custou uma fortuna — disseGideon. — Primeiro, as cartas. Depois, o jantar no Donan. Conhaque noEuropa. Ciganos no Urso. Mas valeu a pena. É o paraíso na terra, não é?Minhas desculpas, sra. Lewis! — Fez uma mesura teatral, com os grandesolhos negros cintilando sob espessas sobrancelhas negras. — Mas o queexiste na vida além de uma nova pele e novos lábios? O amanhã que sedane! Eu me sinto ótimo!

Gideon Zeitlin tocou o pescoço da sra. Lewis, fazendo com que estadesse um pulo, enquanto lhe cheirava o cabelo, cuidadosamente preso.

— Adorável! — murmurou, enquanto dava a volta na mesa paraaplicar beijos molhados no irmão mais velho, dois nas bochechas e um noslábios.

Jogando o casaco molhado em um canto, onde a coisa se amontooucomo um animal vivo, acomodou-se no divã.

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— Gideon, Sashenka está numa encrenca... — disse Zeitlin com vozcansada.

— Eu ouvi isso, Samoilo. Aqueles idiotas! — berrou Gideon, queatribuía todos os problemas da humanidade a uma conspiração deimbecis, que incluía todo mundo, exceto ele mesmo. — Eu estava nojornal e recebi um telefonema de uma fonte. Eu ainda não dormi, desdeanteontem. Mas estou feliz que a mamãe não esteja viva para ver isso.Está se sentindo bem, Samoilo? Seu coração? Como vai sua indigestão?Pulmões? Mostre a língua.

— Estou indo — replicou Zeitlin. — Deixe eu ver a sua.Embora fossem opostos em aparência e caráter, o jornalista pobre,

mais jovem, e o ricaço rabugento, mais velho, os irmãos partilhavam aconvicção judaica de que estavam prestes a morrer, a qualquermomento, de angina pectoris, pulmões fracos (com tendência àtuberculose), má digestão e úlceras estomacais, exacerbadas pornevralgia, prisão de ventre e hemorroidas. Os melhores médicos de SãoPetersburgo competiam com especialistas de Berlim, Londres e asestâncias de Biarritz, Bad Erns e Carlsbad pelo direito de tratar aquelesinválidos, cujos corpos eram minas de ouro para a profissão médica.

— Vou morrer a qualquer momento, provavelmente fazendo amorcom a garota do general, novamente — mas que diabo! Geena — oInferno —, o Livro da Vida e toda essa conversa fiada judaica que sedane! Tudo na vida é aqui e agora. Não há nada depois! O comandanteem chefe e o estado-maior — a sofredora esposa de Gideon, Vera, e suasduas filhas — estão me amaldiçoando. Eu! Logo eu! Mas eu,simplesmente, não consigo resistir. Eu não vou lhe pedir mais nada pormuito tempo, Samoilo, muitos anos! Minhas dívidas de jogo são... — elecochichou no ouvido do irmão. — Agora me dê meu presente de barmitzvah, Samoilo: me dê a mazuma e eu saio para fazer uma busca!

— Onde? — Com uma chave que estava pendurada em seu relógiode ouro, Zeitlin destrancou uma caixa de madeira e entregou duzentosrublos ao irmão, uma quantia respeitável.

Falava russo como um alto dignitário da corte, sem nenhum sotaquejudeu, e achava que Gideon usava expressões iídiches e hebraicas apenaspara zombar dele, para lembrá-lo de onde tinham vindo. A seu ver, o

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irmão mais novo ainda cheirava ao casebre do pai, na Área deAssentamento, onde os judeus do império tsarista eram obrigados a viver.

Gideon fez um leque com o dinheiro.— Isto é para mim. Agora preciso da mesma quantia para molhar as

mãos de alguns idiotas.Zeitlin, que raramente recusava os pedidos de Gideon, por se sentir

culpado pela nulidade do irmão, abriu novamente a pequena caixa.— Vou comprar um bolo de frutas na Loja Inglesa; vou descobrir

onde Sashenka está; vou atirar um pouco dessa sua vil mazuma parapoliciais e funcionários de merda e vou tirar a garota de lá, se puder.Telefone para o jornal, se quiser falar comigo. Sra. Lewis! — Fazendo umamesura insolente, saiu, batendo a porta atrás de si.

Um segundo depois, a porta se abriu novamente.— Você já soube que Mendel está se escondendo por aí? Ele saiu da

cadeia! Se eu encontrar o schmendrik, vou lhe dar um soco tão forte queaquela bota reforçada dele vai cair no colo de Lenin. Esses bolcheviquesidiotas! — E bateu mais uma vez a porta.

Esquecendo-se de que Lala ainda estava presente, Zeitlin escondeuo rosto entre as mãos. Depois, suspirando profundamente, pegou otelefone recém-instalado, uma caixa de couro, com um dispositivo deescuta preso ao lado. Bateu três vezes no topo e falou no bocal:

— Alô, telefonista? Ligue-me com Protopopov, o ministro do Interior!Petrogrado, 234. Sim, agora, por favor!

Enquanto esperava que a telefonista o conectasse ao atual ministrodo Interior, reacendeu o charuto, que tinha apagado.

— A baronesa está em casa? — perguntou ele. Lala acenou que sim.— E os velhos, o circo it inerante? — Era o apelido que dava aos parentesde sua mulher, que viviam no andar acima da garagem. Lala assentiunovamente. — Deixe a baronesa comigo. Obrigado, sra. Lewis.

Enquanto Lala fechava a porta, ele perguntou a ninguém emparticular:

— O que será que Sashenka fez? — Então sua voz mudou. — Ah,alô, ministro, aqui é Zeitlin. Já recuperou suas perdas no pôquer? Estouligando por causa de um delicado assunto de família. Você se lembra daminha filha? Sim, ela. Bem...

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5

Na Casa de Detenção Temporária da Gendarmaria, entre as paredesvermelhas da Prisão de Kresti, Sashenka esperava, ainda vestida com ocasaco de zibelina e raposa do Ártico. Seu vestido do Smolni e o aventaljá estavam manchados de poeira negra e gordurosas marcas de dedos.Ela fora deixada em uma área com piso de concreto e paredes demadeira lascada.

O caminho da porta até os bancos e de lá para o balcão estava gastopelo uso. O balcão tinha leves depressões onde os prisioneirosdescansavam os cotovelos, enquanto eram autuados. Tudo no localexibia as marcas dos milhares de indivíduos que por lá haviam passado.Prostitutas, arrombadores de cofres, assassinos e revolucionáriosaguardavam ao lado de Sashenka. Ela estava fascinada com as mulheres:a mais próxima, enorme de gorda, com uma pele rosada e áspera, e umcasaco do exército cobrindo o que parecia ser uma roupa de bailarina,cheirava a álcool.

— O que você quer, filha da puta? — rosnou ela. — O que estáolhando? — Sashenka, mortificada, sentiu um medo súbito de que aquelemonstro batesse nela. Em vez disso, a mulher inclinou-se, ficandohorrivelmente perto dela. — Eu sou uma mulher educada, não alguém darua, como pode parecer. Foi aquele miserável que fez isso comigo, ele mebateu e...

Seu nome foi chamado, mas ela continuou falando até que ogendarme abriu o balcão e a arrastou com ele. Quando a porta de metalse fechou atrás dela, ela ainda estava gritando:

— Seus filhos da puta, eu sou uma mulher educada, foi aquelemiserável que me quebrou...

Sashenka sentiu-se aliviada quando a mulher foi embora; depois, ficouenvergonhada, até lembrar-se de que a velha prostituta não era umaproletária, mas apenas uma burguesa degenerada.

Os corredores da Casa de Detenção estavam movimentados: homense mulheres eram colocados em celas, interrogados e despachados para alonga jornada até o exílio siberiano. Alguns soluçavam, outros dormiam; avida, em sua totalidade, estava representada ali. O gendarme atrás do

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balcão a olhava fixamente, como se Sashenka fosse um pavão em umchiqueiro.

Ela tirou da sacola seus livros de poesia. Fingindo ler, folheou aspáginas. Quando se deparou com um pequeno pedaço de papel decigarro, grafado com letras minúsculas, olhou em volta, deu um lindosorriso, para o caso de algum policial estar olhando para ela, e enfiou opapel na boca. Tio Mendel lhe ensinara o que fazer. Os papéis não tinhamgosto muito ruim e não eram difíceis de engolir. Quando chegou sua vezde ser autuada no balcão, ela já consumira os indícios incriminadores.Pediu então um copo de água.

— Você deve estar brincando — respondeu o gendarme, queanotara seu nome, idade e nacionalidade, mas se recusava a lhe dizerqualquer coisa sobre as acusações que existiam contra ela. — Aqui não éo Hotel Europa, menina.

Ela ergueu para ele seus olhos cinzentos.— Por favor — disse.Ele encheu de água uma caneca lascada e bateu com ela no balcão,

soltando uma risada rouca.Enquanto Sashenka bebia, um gendarme chamou seu nome. Outro,

segurando um molho de chaves, abriu uma porta de aço reforçada,introduzindo-a na camada seguinte da Kresti. Mandaram que entrasse emuma pequena sala e tirasse a roupa; então foi revistada por umapaquidérmica carcereira de avental branco. Ninguém, com exceção daquerida Lala, jamais a vira nua (sua governanta ainda lhe preparava umbanho todas as noites), mas ela disse a si mesma que aquilo não tinhaimportância. Nada tinha importância além de sua causa, seu santo graal, edo fato de que ela estava ali, finalmente, onde todas as pessoasdecentes deveriam estar.

As roupas foram devolvidas, mas a mulher ficou com seu casaco, suaestola e sua sacola de livros, entregando-lhe um recibo.

Depois disso, foi encaminhada ao fotógrafo. Esperou sua vez em umafila de mulheres, que se coçavam constantemente, sentindo um fedor desuor, urina e sangue menstrual. O fotógrafo, um velho de terno marrome gravata fina, sem nenhum dente e com olhos semelhantes a buracosem uma abóbora oca, empurrou-a para a frente de uma câmera, que

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parecia uma sanfona. Desapareceu então por baixo de um pano, gritandocom voz abafada:

— Está bem, rosto inteiro. Fique de pé. Olhe para a esquerda, olhepara a direita. Uma garota do Smolni, hein, com um papai rico? Você nãovai ficar aqui muito tempo. Eu fui um dos primeiros fotógrafos em Piter.Também faço retratos de família, se você quiser me recomendar ao seupapai... pronto!

Sashenka compreendeu que sua prisão fora registrada para sempre— e deu um largo sorriso, o que encorajou a tagarelice do fotógrafo.

— Um sorriso! Que presente! A maioria dos animais que aparecempor aqui não ligam para a aparência que têm, mas você vai ficarmaravilhosa. Isso eu prometo.

Um carcereiro de pele amarelada, não muito mais velho queSashenka, conduziu-a até uma cela. Quando ela estava prestes a entrar,um oficial de uniforme cinzento apareceu de repente.

— Pronto, garoto. Agora é comigo.Um janota presunçoso, com algumas divisas nas ombreiras e que

parecia estar no comando. Sashenka ficou desapontada: queria sertratada como uma camponesa, ou proletária. Mas a aluna do Smolni quehavia nela ficou aliviada quando, gentilmente, ele segurou seu braço.Gritos, grunhidos, chaves tilintando, portas batendo e fechaduras girandoecoavam nas pedras frias ao redor. Alguém gritou:

— Fodam-se, foda-se o tsar, vocês são todos espiões alemães!Mas o carcereiro-chefe, com sua túnica e botas, não prestou

atenção. Com a mão ainda no braço de Sashenka, falava rapidamente.— Temos tido alguns estudantes aqui, mas você é a primeira do

Smolni. Bem, eu adoro os “polít icos”. Não gosto dos criminosos, eles são aralé. Mas os polít icos são gente educada, fazem do meu trabalho umprazer. Vou surpreender você: eu não sou um carcereiro comum. Eu leio— até já li um pouco do seu Marx e do seu Plekhanov. Sério. Mais duascoisas: eu adoro chocolate suíço e colônias da Brocard’s. Meu olfato émuito sofisticado: está vendo meu nariz? — Sashenka olhouobedientemente, enquanto ele abria e fechava as estreitas narinas. — Eutenho a sensibilidade de um esteta, mas estou aqui, enfiado neste antro.Você tem algum parentesco com o barão Zeitlin? Chegamos! Diga a ele

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que meu nome é Volkov, sargento S.P. Volkov.— Vou fazer isso, sargento Volkov — respondeu Sashenka, tentando

não vomitar com o sufocante cheiro da colônia de lavanda que ele usava.— Eu não sou o carcereiro típico, sou? Surpreendi você?— Ah, sim, sargento, surpreendeu.— É o que todo mundo diz. Agora, mademoiselle Zeitlin, aqui está

sua cela. Não se esqueça, o sargento Volkov é o seu amigo particular.Não é um carcereiro comum.

— Nem um pouco comum.— Daqui a pouco você vai sentir falta do cheiro da minha colônia —

disse ele.Um guarda empurrou Sashenka para dentro de uma cela. Ela virou-se

para estender a mão ao carcereiro-chefe, mas este se fora. O cheiro demulheres apinhadas em um espaço confinado explodiu em suas narinas.Esta é a verdadeira Rússia, disse a si mesma, sentindo a podridãorastejando em suas roupas.

A porta da cela bateu. Fechaduras giraram. Sashenka permaneceu depé, com os ombros encurvados, consciente do espaço escuro e apertadoatrás dela, que fervilhava com uma vida sombria e vigilante. Peidos,grunhidos, espirros, cantoria e tosse competiam com sussurros e estalidosde cartas sendo distribuídas.

Sashenka virou-se lentamente, sentindo no rosto o hálito rançoso devinte ou trinta mulheres, quente-frio-quente-frio. Uma simples lâmpadade querosene amenizava as trevas. As prisioneiras estavam alinhadascontra a parede, ou em colchões colocados no chão frio e sujo, ondedormiam, jogavam cartas — algumas delas até se acarinhavam. Duasvelhas seminuas tiravam piolhos dos pelos púbicos uma da outra, comomacacas. Uma partição baixa delimitava a latrina, de onde vinham gemidose explosões líquidas.

— Depressa — gritou a próxima da fila.Uma mulher gorda, de olhos orientais, lia deitada as Confissões, de

Tolstoi, enquanto uma mulher cadavérica, com um sobretudo de homemsobre uma bata de camponesa, recitava o que lia em um panfletopornográfico, cujos personagens eram a imperatriz, Rasputin e a amigaem comum, madame Virubova: “Três é melhor do que uma — disse o

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monge. — Anna Virubova, suas tetas são suculentas como as de umafoca siberiana, mas nada supera uma xoxota imperial gostosa como a sua,minha imperatriz!” Houve uma risadaria. A leitora parou.

— Quem é essa? A condessa Virubova visitando os cortiços? — Acriatura de sobretudo pôs-se de pé. Pisando em alguém que estavadormindo e soltou um gemido de protesto, ela correu até Sashenka eagarrou seus cabelos. — Sua putinha rica, não olhe para mim desse jeito!

Sashenka sentiu medo pela primeira vez, desde sua prisão, um medogenuíno alojado em suas vísceras, que lhe queimava a garganta. Antesque tivesse tempo de pensar, levou um soco na boca e caiu, apenas paraser esmagada, pois a criatura pulou em cima dela. Ela lutou para respirar.Com medo de morrer, pensou em Lala, na Grand-maman, na escola, emseu pônei na fazenda... Subitamente a atacante foi tirada de cima dela eatirada para um lado.

— Cuidado, vagabunda. Não toque nela! Acho que essa aqui é umade nós. — A mulher gorda, segurando o livro de Tolstoi, estava de pé aolado dela. — Sashenka? As veteranas da cela lhe dão as boas-vindas.Amanhã de manhã você vai se encontrar com o nosso comitê. Vamosdormir. Você pode compartilhar meu colchão. Sou a camarada Natacha.Você não me conhece, mas eu sei exatamente quem você é.

6

O capitão Sagan, da gendarmaria, aboletou-se em sua cadeira favorita doIate Clube Imperial, na avenida Marítima. Estava esfregando uma pitadade cocaína nas gengivas quando seu ajudante apareceu à porta.

— Excelência, posso fazer um relatório?O ajudante, que tinha manchas na pele, lançou um rápido olhar em

torno do aposento — enorme e espaçoso, com suas cadeiras de couro ejornais em três línguas: inglês, francês e russo. Retratos de diretores doclube, exibindo suas medalhas, estavam pendurados atrás da mesa debilhar. Na extremidade do recinto, acima de uma lareira onde ardia lenhaaromatizada com maçã, viam-se os olhos azuis aquosos do imperador

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Nicolau II.— Prossiga, Ivanov.— Excelência, prendemos os revolucionários terroristas. Encontramos

dinamite, carregadores, revólveres Mauser e panfletos. Há uma colegialentre eles. O general quer que o senhor comece com ela imediatamente,antes que o papai influente dela consiga tirá-la da prisão. Tenho umacarruagem esperando aí fora.

O capitão Sagan se levantou suspirando.— Quer uma bebida, Ivanov, ou uma pitada disso? — Estendeu a

caixa de prata. — É o novo tônico do dr. Gemp para fadiga e dor decabeça.

— O general pediu para o senhor se apressar.— Estou cansado — disse Sagan, embora seu coração estivesse

disparando. Era o terceiro inverno da guerra e ele estava sobrecarregadode trabalho, até a exaustão. Além de gendarme, ele era oficial graduadoda Okhrana, a polícia secreta do tsar.

— Espiões alemães, bolcheviques, revolucionários socialistas, todos ostipos de traidores. Nós não conseguimos apanhá-los rápido o bastante. Eainda temos esse Rasputin. Pelo menos, sente-se um pouco.

— Está bem, conhaque — disse Ivanov, um tanto relutante para ogosto de Sagan.

— Conhaque? Suas preferências estão ficando muito caras, Ivanov.— Sagan fez retinir um sino de prata. Um garçom alto e magro como umaflauta deslizou ebriamente pela porta, como se estivesse de esquis. —Dois conhaques, e rápido — ordenou Sagan, deleitando-se com o aromade charutos, colônia e graxa de sapatos, que, por todo o Império,constituía a essência dos refeitórios de oficiais e clubes de cavalheiros.Quando as bebidas chegaram, ficaram ambos de pé; brindaram ao tsar,engoliram os conhaques e se dirigiram ao saguão, onde vestiram ossobretudos do uniforme e as chapkas.

Do lado de fora, o frio era anestesiante. Flocos de neve, de formatoindefinido, dançavam desordenadamente em torno deles. Já era meia-noite, mas uma lua cheia fazia com que a neve recém-caída brilhasse comum azul fantasmagórico. Cocaína, concluiu Sagan, era o tônico ideal paraum agente secreto, pois aumentava a atenção e aguçava a visão. Mais

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adiante, viu a pequena carruagem-táxi que o esperava, cujo cavaloresfolegava gêiseres de vapor. O cocheiro era um embrulho de roupasroncante. Ivanov deu-lhe um empurrão e uma cabeça surgiu por baixo dapele de carneiro, calva, rosada, brilhante, com olhos sonolentos — comose fosse um grotesco bebê, completamente bêbado.

Sagan, com o coração ainda palpitando, observou a rua. À esquerda,o domo dourado da Catedral de Santo Isaac se erguia ameaçadoramentesobre as casas, como se fosse esmagá-las. À direita, podia divisar a portada residência de Zeitlin. Conferiu a equipe de vigilância. Sim, um sujeitode bigode, casaco verde e chapéu-coco espreitava perto da esquina: eraBatko, um ex-oficial subalterno, cossaco, que fumava um cigarro no portaldo edifício em frente. (Os cossacos e os ex-oficiais subalternos eram osmelhores “agentes externos”, os que faziam vigilância.) Em umacarruagem leve, estacionada um pouco à frente, um cocheiro dormia:Sagan esperava que ele não estivesse realmente dormindo.

Um Rolls-Royce, com correntes nas rodas e o brasão dos Romanovnas portas, passou por eles. Sagan sabia que o carro pertencia ao grão-duque Serguei, que estava indo para casa com sua amante, uma bailarinaque dividia com seu primo, o grão-duque Andrei.

Da Ponte Azul, sobre o Moika, veio o eco de gritos, o som surdo desocos, o rangido de botas e corpos rolando na neve compactada.Marinheiros da base de Kronstadt estavam brigando contra soldados —azul-marinho contra cáqui.

No exato momento em que Sagan colocou um pé no degrau dacarruagem, uma limusine Benz estacionou ali perto, com o motorroncando. Um motorista uniformizado saltou e abriu uma porta forrada decouro. Do interior do carro surgiu um sujeito envelhecido, de rostorubicundo, vestindo um casaco de peles. Manuilov-Manesevich, espião,enriquecido pela guerra, amigo de Rasputin e judeu convertido à IgrejaOrtodoxa Russa, passou por Sagan e entrou às pressas no Iate Clube. Nointerior da limusine, Sagan vislumbrou cetim amarrotado, vison e umpescoço muito branco. Uma lufada de suor e fumaça de charuto lheprovocou náuseas. Entrou então na carruagem.

— É nisso que deu o Império — disse a Ivanov. — Espiões judeus etraficantes de influência. Um escândalo todos os dias.

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— Iaaaa! — gritou o motorista, estalando o chicote um tantopróximo ao nariz de Sagan. A carruagem avançou.

Sagan recostou-se no assento e deixou que as luzes da cidade dePedro, o Grande, fluíssem ao redor dele. O conhaque em seu estômagotransformara-se em uma purificante bola de ouro derretido. Ali ele viviasua vida, na capital do maior império do mundo — governado por seushabitantes mais imbecis e em meio à guerra mais terrível que o mundojamais vira. Disse a si mesmo que o imperador tinha sorte de que ele eseus colegas ainda acreditassem em seu direito de governar; sorte deque fossem tão vigilantes; sorte de que nada os detivesse no trabalho desalvar o tolo tsar e sua esposa histérica, quem quer que fossem os amigosdela...

— O senhor quer saber o que eu penso, barin? — perguntou omotorista, virando para os passageiros seu nariz de javali, iluminado pelolampião oscilante da carruagem. — O preço da aveia está subindo denovo! Mais um aumento e nós não vamos mais conseguir alimentar oscavalos. Houve uma época, se bem me lembro, quando a aveia custavasó...

Aveia, aveia, aveia. Droga, era tudo o que escutava dos condutoresde carruagens e trenós. Sagan respirou profundamente, enquanto osangue carregado de cocaína jorrava em suas têmporas como um riachode montanha.

7

— Aonde você vai hoje à noite? — perguntou Zeitlin à esposa.— Não sei — suspirou Ariadna Zeitlin sonhadoramente. Estava

reclinada no divã de seu boudoir cor de carne, vestida somente commeias e combinação. Enquanto a criada lhe colocava bobes nos cabelos,manteve os olhos fechados. Sua voz era baixa e rouca, as palavras seatropelavam, como se já estivesse um pouco alta. — Você quer vir junto?

— É importante, querida — ele sentou-se em uma cadeira ao lado dodivã.

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— Bem, talvez eu vá à casa da baronesa Rozen, para os coquetéis,depois a um jantar no Donan, depois dançar um pouco no Aquarium —eu adoro aquele lugar, você já viu os lindos peixes nas paredes? — eentão, bem, não tenho certeza... Ah, Niana, vamos ver, eu estouquerendo alguma coisa com brocado para hoje à noite.

Duas criadas saíram do quarto de vestir. Niana carregava uma caixa dejoias e outra garota, uma pilha de vestidos.

— Por favor, Ariadna. Eu preciso saber aonde você vai — atalhouZeitlin bruscamente.

Ariadna aprumou-se no assento.— O que está havendo? Você parece abatido. A Bolsa quebrou ou...

— e ela lhe lançou um terno sorriso, faiscando os dentes brancos — ouvocê está aprendendo a ser ciumento? Fique sabendo que nunca é tardedemais. Uma garota gosta de receber carinho.

Zeitlin deu uma tragada no charuto. Seu casamento encolhera até setransformar em diálogos curtos, antes que cada um mergulhasse,separadamente, na noite de São Petersburgo — embora aindacomparecessem juntos a bailes e jantares formais. Ele observou a camadesarrumada, onde sua mulher permanecia tanto tempo, dormindodurante o dia. Observou os vestidos de cambraia, chiffon e seda, osfrascos de poções e perfumes, os cigarros fumados pela metade, oscristais curativos, todos os modismos e luxos. Olhou maisdemoradamente, porém, para a própria Ariadna, sua pele branca comoneve, ombros largos e olhos violeta. Ainda era linda, embora os olhosestivessem injetados e veias sobressaíssem em suas têmporas.

Ela abriu as mãos e as estendeu para ele. Seu perfume de angélicacombinava deliciosamente com o aroma de sua pele, mas Zeitlin estavaansioso demais para participar da coreografia habitual.

— Sashenka foi presa pelos gendarmes — disse ele. — Bem noportão da escola. Vai passar a noite na Kresti. Você consegue imaginarcomo são aquelas celas?

Ariadna piscou. Uma pequena ruga apareceu em seu rosto pálido.— Deve ter sido um mal-entendido. Ela é tão estudiosa, é difícil

imaginar que faça alguma besteira. — Olhou para ele. — Vocêcertamente pode tirá-la da cadeia ainda hoje, não é, Samuil? Chame o

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ministro do Interior. Ele não lhe deve dinheiro?— Acabei de telefonar a Protopopov e ele diz que a coisa é séria.— Niana? — Ariadna acenou para a criada. — Acho que vou usar o

brocado malva, com a folha de ouro e os babados de madame Chanceau,o colar de pérolas e o broche de safira...

Zeitlin estava perdendo a paciência.— Pare com isso, Ariadna. — E passou a falar em iídiche, para que as

criadas não pudessem entender. — Pare de se comportar como umacorista, droga! Estamos falando de Sashenka. — Então retornou ao russo,olhando sombriamente para o quarto em desordem. — Meninas!Queremos ficar a sós!

Zeitlin sabia que seus acessos de fúria eram tão raros quantotemíveis. As três criadas largaram os vestidos, joias e bobes e saíram àspressas.

— Isso era mesmo necessário? — perguntou Ariadna, com voztrêmula, lágrimas jorrando dos olhos manchados de rímel.

Mas Zeitlin era pura objetividade.— Você está se encontrando com Rasputin?— Sim, vou visitar o conselheiro Grigori esta noite. Depois da meia-

noite. Não fale dele nesse tom, Samuil. Quando o lama mongol do dr.Badaev me hipnotizou na Casa dos Espíritos, disse que eu precisava deum professor especial. Ele tinha razão. O conselheiro Grigori me ajuda, mealimenta espiritualmente. Ele diz que eu sou um cordeirinho gentil em ummundo de metal, e que você me esmaga. Você acha que sou feliz nestacasa?

— Nós estamos aqui para falar sobre Sashenka — protestou Zeitlin,mas Ariadna subiu o tom de voz.

— Você se lembra, Samuil, de quando nós íamos ao balé? Todomundo focava os binóculos em mim, não no palco. “O que a baronesaZeitlin está usando? Olhe os olhos dela, as joias, que ombros lindos...”Quando os oficiais olhavam para mim, ficavam pensando: “Que cavalo decorrida magnífico, que puro-sangue — essa aí vale uma consciênciaculpada!” Você tinha orgulho de mim naquela época, não tinha, Samuil?Mas agora — olhe para mim!

Zeitlin se levantou, furioso.

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— Não é sobre você, Ariadna. Tente se lembrar de que estamosfalando da nossa filha!

— Desculpe. Estou escutando...— Mendel voltou do exílio. — Ela deu de ombros. — Ah, você sabia

disso? Bem, ele deve ter tido alguma participação na prisão de nossa filha.Ele se ajoelhou ao lado do divã e segurou as mãos dela.— Olhe, Protopopov não controla as coisas. Nem o primeiro-ministro

Stürmer tem influência — ele vai ser substituído. Está tudo nas mãos daimperatriz e de Rasputin. Então, desta vez, eu quero que você visiteRasputin — preciso que você vá lá! Acho maravilhoso que você tenhaacesso a ele e não me importa quanto tempo você fique sendo apalpadapor aquele seu camponês sagrado. Diga a ele que é o dia de sorte dele.S ó você pode fazer isso, Ariadna. Entre lá e peça a todos eles —Rasputin, os amigos da imperatriz, seja lá quem for — para tiraremSashenka da prisão!

— Você está me dando uma missão? — Ariadna abanou a cabeça,como um gato sacudindo água dos pelos.

— Sim.— Eu, em uma missão polít ica? Isso soa bem. — Fez uma pausa e

Zeitlin quase pôde ouvir as engrenagens girando, enquanto ela tomavauma decisão. — Vou mostrar a você como sou uma boa mamãe. —Ergueu-se do divã e puxou um cordão a seu lado. — Garotas, voltemaqui! Minha aparência tem que estar o máximo. — As criadas retornaram,olhando temerosamente para Zeitlin. — E o que você vai fazer, Samuil?

— Vou tapar o nariz e visitar o príncipe Andronnikov. Todos vão estarlá.

Ariadna segurou o rosto de Zeitlin entre as mãos. Seu hálito picantefez os olhos dele lacrimejarem.

— Você e eu em uma missão, Samuil?Apesar da aspereza da pele — marca da bebida e do ópio —, o rosto

dela ainda era magnífico, pensou ele: lábios amarfanhados, com o lábiosuperior projetado, totalmente ganancioso. Seus ombros e pernas aindaeram soberbos. Ariadna ainda era atraente, apesar da barrigaprotuberante. Quaisquer que fossem seus defeitos, tinha o aspecto deuma mulher para quem os prazeres rudes eram coisas naturais, tão

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naturais quanto machucados em um pêssego maduro. Agora, borrando orímel com lágrimas, ela parecia uma Cleópatra drogada.

— Samuil, posso pegar o Russo-Balt?— Feito — disse Zeitlin, feliz por lhe emprestar a limusine. Então lhe

deu um beijo.Com um pequeno estremecimento de prazer, Ariadna abriu a tampa

de um relógio de mesa — feito em ouro incrustado com diamantes —,retirou um cigarro egípcio de um compartimento oculto e olhou para ele,com olhos que evocavam quartos vazios.

Pensando em como ela virara uma espécie de criança perdida, ecensurando-se por isso, ele acendeu o cigarro dela e, depois, o charutoapagado que segurava.

— Já vou indo — disse ele, enquanto ela dava uma tragada nocigarro e deixava a fumaça espiralar de volta.

— Boa sorte, Samuil — gritou ela, enquanto ele se afastava.Zeitlin não queria chegar atrasado à casa do Príncipe Andronnikov —

o bem-estar de Sashenka estava em jogo —, mas parou à porta doquarto e deu uma olhada para trás.

— Que tal esse? E esse? Olhe, este se move quando eu ando. Estávendo, Luda? — Ariadna ria, enquanto as criadas se azafamavam ao seuredor. — Você não concorda, Niuna, que os vestidos de Worth deixam osoutros para trás? Nem posso esperar para mostrar este aqui lá noAquarium...

Com o coração apertado, Zeitlin percebeu que, tão logo sua esposasaísse de casa, esqueceria tudo a respeito dele e de Sashenka.

8

Sashenka passou a noite agarrada ao corpanzil de Natacha.A mulher mais velha roncava e, quando se virou, empurrou Sashenka

— atemorizada demais para se mexer — para fora do colchão. Sashenkapermaneceu lá, com os quadris grudados no gelado piso de pedra, masgrata por estar perto de Natacha, portanto segura. Sentia que seus

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lábios estavam inchando onde fora atingida, e suas mãos tremiam. Aindatinha medo de que aquele monstro batesse nela de novo — ou será quelhe daria uma facada durante a noite, em um acesso? Todas tinhamfacas. Sashenka examinou o emaranhado de corpos femininos nasemiobscuridade — uma das mulheres estava quase nua, expondo osseios murchos, onde sobressaíam longos mamilos. Sentiu o calor e asujeira aumentando ao redor. Rezou para que alguém viesse logo resgatá-la.

Lampiões piscaram fora da cela, enquanto um guarda verificava astrancas das portas. Um faxineiro esfregava os corredores. O cheiro denafta e desinfetante sobrepujou o de mijo e merda, mas não por muitotempo. Sashenka esperava que cada grunhido, rangido ou batidasignificasse sua libertação, mas ninguém apareceu. A noite interminável seestendeu diante dela, fria, assustadora, hostil.

— Soubemos pelo telégrafo da cela que você estava chegando —sussurrara Natacha. — Nós somos quase parentes, você e eu. Eu sou amulher do seu tio Mendel. Nós nos encontramos no exílio. Aposto quevocê não sabia que ele tinha se casado com uma iacuta. Sim, umaautêntica siberiana. Ah, entendo... você nem sabia que ele era casado.Bem, esse é o Mendel, o conspirador nato. Eu nem sabia que ele tinhauma sobrinha, até hoje. De qualquer forma, ele confia em você. Fiqueatenta: sempre aparecem oportunidades.

Natacha grunhia e arfava no sono, dizendo alguma coisa em sualíngua nativa. Sashenka lembrou-se de que os iacutos acreditavam emxamãs e espíritos. Uma mulher gritou:

— Vou cortar sua garganta!Outra choramingou:— Perdida... perdida... perdida.Houve uma briga na cela dos homens, ao lado; alguém ficou ferido.

Os guardas o levaram, gemendo, e trouxeram um esfregão para limpar ochão. Portas se abriram e fecharam com estrondo. Sashenka ouviu tossesde pulmões tuberculosos, ruídos de intestinos desarranjados, passos decarcereiros e a efervescência do estômago de Natacha. Não conseguiaacreditar totalmente no que estava acontecendo com ela. Emboraestivesse orgulhosa por estar ali, o medo, o fedor e a noite interminável

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faziam com que se sentisse desesperada. Mas o tio Mendel não lhe disseraque a prisão era um rito de passagem? E o que Natacha tinha cochichadoantes de cair no sono? Sim: Mendel confia em você!

Era por causa de Mendel que ela estava ali, por causa do encontrodeles no verão anterior. Os verões da família eram passados emZemblichino, uma propriedade ao sul da cidade, perto da rodovia deVarsóvia. Os judeus não tinham permissão para viver na capital, ou possuirpropriedades, a menos que fossem nobres mercadores, como o barãoZeitlin. Além da mansão na cidade, o pai de Sashenka possuía o solar ruralcom pilares brancos, bosques e um parque. Sashenka sabia que seu painão era o único magnata judeu em São Petersburgo. Outro barão judeu,Poliakoff, o rei das ferrovias, vivia no velho palácio de tijolos vermelhos doPríncipe Menshikov, a primeira residência construída na nova cidade quePedro, o Grande, construíra, no novo cais, quase em frente ao Palácio deInverno.

Todos os verões, Sashenka e Lala ficavam entregues a si mesmas napropriedade Zemblichino, embora, às vezes, Zeitlin as convidasse parajogar tênis ou para andar de bicicleta. Ariadna, geralmente no frenesi deuma crise nervosa, de um modismo místico ou de um coração partido,quase nunca deixava o quarto — e não demorava a correr de volta àcidade. Lala passava os dias colhendo cogumelos e mirtilos, ou cavalgandoAlmaz, o pônei castanho. Sashenka lia sozinha; ficava sempre feliz sozinha.

Naquele verão, tio Mendel também estava lá. Minúsculo, doentio,com um pé torto e um grosso pincenê sobre o grande nariz recurvado,trabalhava durante toda a noite na biblioteca, onde fumava cigarrosmakhorka, enrolados por ele mesmo, e preparava café turco, enchendo acasa com um aroma que lembrava nozes. Dormia sobre os estábulos, pelamanhã, e só se levantava depois do almoço. Parecia incapaz de seadaptar ao verão; usava sempre o mesmo terno marrom imundo e umacamisa amarrotada, com colarinho encardido. Seus sapatos tinhamburacos. Ao lado do elegante e asseado Zeitlin, e de Ariadna, sempre naúltima moda, ele parecia um ser de outro planeta. Quando captava oolhar de Sashenka, franzia a testa e olhava para outro lado. Pareciaterrivelmente doente, pensou ela, com sua pele pálida e manchada, esua respiração de asmático, fruto de anos de prisão e exílio na Sibéria.

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A família desprezava Mendel. Nem a mãe de Sashenka, irmã deMendel, gostava dele. Mas o deixava ficar. “Ele fica sempre sozinho, pobrecriatura”, dizia em tom desdenhoso.

Certa noite, Sashenka não conseguiu dormir. Eram três horas damanhã. A noite estava quente e o calor se acumulava sob o teto doquarto. Sentiu vontade de beber uma limonada. Então desceu asescadas. Depois de passar pelo retrato do conde Orlov-Chesmenski,antigo proprietário do solar, por uma prateleira com 15 pavões de cristal epelo relógio de pêndulo, fabricado na Inglaterra, chegou a um salãodeliciosamente fresco, com seu piso de pedra preto-e-branco. Viu que asluzes da biblioteca ainda estavam acesas. Então, aspirou o aroma de cafée fumaça, que se mesclavam na noite quente e rósea.

Mendel abriu a porta da biblioteca e Sashenka se ocultou em umcloset, de onde observou seu tio manquitolar para fora, com um brilhonos olhos injetados e um maço de papéis nas mãos, que pareciam garras.

O fedor aprisionado no aposento — que abrigara um fumanteinveterado durante toda a noite — se espalhou para fora como uma ondafantasmagórica. Sashenka esperou que ele sumisse de vista e correu atéa biblioteca, para examinar os livros que tanto o fascinavam, a ponto deter orgulho em ser preso por causa deles. A mesa estava vazia.

— Curiosa, Sashenka? — Era Mendel quem estava à porta, com suavoz incongruentemente profunda e modulada, e roupasdesafiadoramente comidas por traças.

Ela se assustou.— Eu só estava interessada — disse ela.— Nos meus livros?— Sim.— Eu os escondo depois que termino. Não quero que as pessoas

fiquem sabendo dos meus assuntos, ou mesmo dos meus pensamentos.— Ele hesitou. — Mas você é uma pessoa séria. A única intelectual destafamília.

— Como você sabe disso, tio, já que nunca se deu o trabalho de falarcomigo? — Sashenka estava encantada e surpresa.

— Os outros são apenas capitalistas decadentes; o rabino da nossafamília pertence à Idade Média. Eu julgo você pelo que lê. Maiakovski.

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Nekrasov. Blok. Jack London.— Então você estava me observando?O pincenê de Mendel estava tão engordurado que as lentes quase

não tinham transparência. Ele mancou até a coleção de livros ingleses,onde estavam as obras completas de Dickens, encadernadas em couro decabra, com a insígnia dourada de Zeitlin nas lombadas. Extraiu um dosvolumes e tateou o espaço vazio, de onde retirou um velho livro bastantemanuseado, que entregou a ela: O Que se Deve Fazer?, deChemishevski.

— Leia isso agora. Quando terminar, você vai encontrar o próximolivro aqui, atrás do David Copperfield. Entendeu? Vamos começar por aí.

— Começar o quê? Por onde?Mas Mendel já tinha ido embora e ela viu-se sozinha na biblioteca.Foi assim que começou. Na noite seguinte, ela mal pôde esperar que

todos estivessem dormindo, antes de descer as escadas na ponta dospés, saboreando o aroma do café e do pungente tabaco makhorka,enquanto se aproximava da coleção de Dickens.

— Preparada para o próximo? Sua análise do livro? — disse Mendel,sem olhar para cima.

— Rakhmetov é o herói mais emocionante que eu já conheci — disseela, devolvendo o livro. — Ele é altruísta, abnegado. Não deixa que nadao detenha no caminho de sua causa. É o “homem especial” que faz ahistória. Eu quero ser como ele.

— Todos nós queremos — respondeu ele. — Eu conheço muitosRakhmetovs. Foi o primeiro livro que eu li. Aliás, não só eu, Lenintambém.

— Fale-me sobre Lenin. E o que é um bolchevique? Você ébolchevique, menchevique, socialista revolucionário, anarquista?

Mendel a observou como se ela fosse um espécime zoológico,estreitando os olhos, engasgando-se com o makhorka mal enrolado.Tossiu estrategicamente.

— O que isso significa para você? O que você acha da Rússia de hoje,dos trabalhadores, dos camponeses, da guerra?

— Não sei, parece que... — Ela se calou, consciente do olhar crít icodele.

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— Continue. Fale.— Está tudo errado. É tão injusto. Os trabalhadores são uns

escravos. Estamos perdendo a guerra. Está tudo podre. Eu sourevolucionária? Uma bolchevique?

Sem pressa, com surpreendente delicadeza, Mendel enrolou mais umcigarro, que acendeu, depois de lamber o papel. Uma chama alaranjadafaiscou e depois se apagou.

— Você ainda não sabe o bastante para ser coisa nenhuma — disseele. — Vamos com calma. Por enquanto, você é a única aluna do meucurso de verão. Aqui está o próximo livro. — Ele entregou a ela umexemplar de 1793, o romance de Victor Hugo sobre a RevoluçãoFrancesa.

Na noite seguinte, ela estava ainda mais excitada.— Pronta para mais? Sua análise?Ela citou a descrição que Hugo fizera de seu herói:— Ninguém nunca vira Cimourdain chorar. Era um homem virtuoso,

mas frio e inacessível. Justo, mas terrível. Não há meio-termo para umpadre revolucionário, que deve ser detestável e sublime. Cimourdain erasublime, rude, desagradavelmente repulsivo, sombrio, mas, acima detudo, puro.

— Ótimo. Se Cimourdain fosse vivo hoje, seria um bolchevique. Vocêjá tem o sentimento; agora precisa da ciência. O marxismo é uma ciência.Leia isso.

Ele segurava um romance chamado Lady Cynthia de Fortescue e oAmor do Coronel Malvado. Na capa, uma dama de batom vermelho ebochechas cobertas de ruge; por trás dela se via um oficialdiabolicamente belo, de bigodes encerados e olhos estreitos.

— O que é isso? — perguntou Sashenka.— Apenas leia o que eu lhe dou. — Mendel retornou à mesa e

começou a garatujar com sua pena.Quando abriu o livro em seu quarto, ela descobriu o Manifesto

Comunista, de Marx, que estava escondido no interior. Seguiram-se obrasde Plekhanov, Engels, Lassalle, mais Marx, Lenin.

Ninguém nunca lhe falara como Mendel. Ariadna queria que ela fosseuma menina tola, preparada para uma vida de bailes animados,

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casamentos infelizes e adultérios insípidos. Sashenka adorava o pai, masele mal notava sua “raposinha”, considerando-a apenas uma mascoteengraçadinha. E a querida Lala já se conformara com seu papel na vida, liaapenas romances como Lady Cynthia de Fortescue e o Amor do CoronelMalvado. Quanto ao tio Gideon, este era um libertino degenerado, quetentara flertar com ela e até, certa vez, apalpara seu traseiro.

Nas refeições e nas festas, ela pouco falava, de tão empolgada comseu rápido curso de marxismo, de tão ansiosa para perguntar mais coisas aMendel. A mente dela permanecia com ele, na biblioteca enfumaçada,bem longe de seu pai e de sua mãe. Lala, que às vezes a encontravadormindo com a lâmpada acesa e algum romance vulgar ao lado,preocupava-se com ela, por estar lendo até muito tarde. Foi Mendelquem expôs Sashenka à grotesca injustiça da sociedade capitalista, àopressão dos trabalhadores e camponeses, e mostrou a ela que Zeitlin —sim, seu próprio pai — era um explorador do trabalho alheio.

Mas ela aprendeu que havia uma solução: uma luta de classes queavançaria em estágios, até um paraíso de igualdade e decência para ostrabalhadores. A teoria marxista era universal e utópica, e toda aexistência humana se encaixava em sua bela simetria de história e justiça.Ela não conseguia entender por que os trabalhadores da sociedadeindustrial, especialmente em São Petersburgo e Moscou, os camponesesdos vilarejos da Rússia e da Ucrânia, os criados e criadas das casas de seupai, por que todos não se levantavam e massacravam seus patrões deuma vez por todas. Apaixonou-se pelas ideias do materialismo dialético epela ditadura do proletariado.

Mendel tratava Sashenka como adulta, e até mais do que isso. Nacondição de homem adulto, ele a tratava como igual, uma companheirade conspiração no mais valoroso e exclusivo movimento secreto domundo. Não demorou muito, passaram a se encontrar quase comoamantes, no crepúsculo, na alvorada, na noite brilhante, nos estábulos,nos bosques de bétulas, nas moitas de amoras-pretas, em expediçõespara colher cogumelos e até no salão de jantar, cochichando durante anoite, abrigados pelas paredes forradas de seda amarela, que cheiravam acravos e lilases.

Sim, pensou Sashenka em sua cela, o caminho para essa prisão

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fedorenta, no escuro inverno de São Petersburgo, fora iniciado napropriedade de conto de fadas de seu pai, naquelas noites de verão,quando os rouxinóis cantavam e o crepúsculo era de um rosa enevoado.Mas seria ela uma ameaça tão grande ao imperador, que precisasse serpresa nos portões do Smolni e atirada nesse inferno?

Uma mulher levantou-se e cambaleou em direção ao balde dedejetos. Acabou tropeçando em Sashenka, caiu e começou a xingá-la.Sashenka agarrou o macio pescoço da mulher, pronta para brigar, mas amulher pediu desculpas. Sashenka descobriu, de repente, que não seimportava de estar ali. Estava vivenciando a verdadeira miséria da Rússia.Já poderia dizer que conhecia mais do que casarões e limusines. Era umamulher adulta e responsável, independente da família. Tentou dormir,mas não conseguiu.

Nos esgotos do Império, sentiu-se viva pela primeira vez.

9

Para sua incursão na noite de São Petersburgo, Zeitlin paramentou-secom um colarinho engomado e uma sobrecasaca, sobre a qual prendeusua estrela da Ordem de São Vladimir, segunda classe, uma honradesfrutada por pouquíssimos industriais judeus.

Na base das escadas, parou por um momento, com uma das mãossobre os primorosos azulejos da estufa holandesa. Decidiu então falar comos sogros sobre Sashenka. Sabia que sua mulher não se daria essetrabalho. Passando pela sala de visitas e pela de jantar, revestida comseda amarela e damasco, abriu a porta que conduzia ao chamadoCaminho Negro — as escuras entranhas da casa. Os cheiros eram bemdiferentes ali, onde o ar recendia a manteiga, gordura, repolho cozido esuor. Era uma lembrança da outra Rússia, pensou Zeitlin, a velha Rússia.

No andar térreo viviam a cozinheira e o chofer, mas ele não pretendiavisitá-los. Em vez disso, começou a subir as escadas do Caminho Negro.Na metade do caminho, apoiou-se na ombreira de uma porta, exausto etonto. Seria seu coração, sua indigestão ou um pouco de neurastenia?

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Será que estou para cair morto?, perguntou a si mesmo. Gideon tinharazão, era melhor chamar o dr. Gemp novamente.

Alguém tocou em seu ombro e ele deu um pulo. Era a velhagovernanta, Shifra, um espectro branco como um osso, vestido com umroupão caseiro e chinelos macios. Era ela quem cuidava de Sashenkaantes da chegada de Lala.

— O senhor veio aprovar o menu de hoje? — grasnou ela. Todosfingiam que a velha Shifra ainda controlava a casa. Mas fora aposentadaem diplomáticos estágios, sem que ninguém lhe dissesse a verdade. — Euconsultei os poderes, meu menino — acrescentou ela suavemente. —Olhei no Livro da Vida. Ela vai ficar bem. Você quer um chocolate quente,Samoilo? Como nos velhos tempos?

Zeitlin aprovou o menu, que Delphine já lhe tinha mostrado, masrecusou o chocolate. Parecendo flutuar como uma teia ao vento, a velhafoi embora, tão silenciosamente como surgira.

Novamente só, Zeitlin percebeu, para sua surpresa, que tinhalágrimas nos olhos. Sentia no ventre o apelo da infância. Sua casa, desúbito, tornou-se estranha para ele, cheia de desconhecidos. Ondeestava sua querida Sashenka? Num ofuscante clarão de pânico, percebeuque a filha era a única coisa que lhe importava.

Mas os fios de riqueza e mundanidade, aos milhares, logo seentrelaçaram novamente ao seu redor. Como poderia ele, Zeitlin, deixarde resolver alguma coisa? Ninguém ousaria tratar mal a garota: todosdeveriam saber das conexões que ele tinha com Suas MajestadesImperiais. Seu advogado, Flek, já estava a caminho; o ministro do Interiorestava telefonando para o diretor de Polícia, que estava telefonando parao comandante do Destacamento de Gendarmes, que, por sua vez,telefonaria para o chefe da Seção de Segurança da Okhrana. Ele nãoconseguia pensar em Sashenka passando a noite em um posto policial,muito menos em uma cela de prisão. O que ela fizera? Era tão reservada,tão correta, quase séria demais para a idade.

Criadas de quarto e lacaios viviam mais acima, no Caminho Negro. Masele parou no segundo andar e abriu uma porta reforçada com metal, queconduzia ao apartamento sobre a garagem. Ali os odores se tornarammuito diferentes, mas familiares para Samuil: gordura de galinha, gefilte

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fisch, batatas babke e um pouco de vishniak. Notando que um mezuzahfora pregado no portal, Zeitlin abriu a porta do que chamava de “circoitinerante”.

Em um amplo cômodo, repleto de instáveis pilhas de livros,candelabros, malas de lona e caixas semiabertas, um homem alto, debarbas e madeixas brancas, usando um cafetã negro e solidéu, estavarecitando as Dezoito Bênçãos, diante de um pedestal voltado paraJerusalém. Um marcador de prata, na forma de um dedo estendido,assinalava o lugar onde ele lia o Talmude, aberto à sua frente. O livrotinha uma capa de seda, pois a palavra sagrada não poderia ficardescoberta. O homem, o rabino Abram Barmakid, não era o pai de Zeitlin,mas era um elo com o mundo de sua infância. É de onde vim, pensouZeitlin melancolicamente.

O rabino Barmakid, que um dia fora o famoso sábio de Turbin, comsua própria corte e discípulos, vivia agora cercado pelos tristes vestígios daparafernália de prata que outrora enfeitara sua casa de orações e suassalas de estudos. Lá estava a Arca, com seus manuscritos encapados develudo e correntes de prata. Leões dourados, com olhos de contasvermelhas e jubas de pedra azul, montavam guarda. Diziam que o rabinopodia operar milagres. Seus lábios se moviam rapidamente, enquanto orosto exibia a alegria e o deslumbramento de assimilar palavras sagradasem tempos de desordem e decadência. Ele acabara de celebrar o YomKippur e os Dias Terríveis, acampado naquela casa ímpia, onde o únicohomem feliz era o que perdera tudo, mas mantivera a fé.

Em 1915, o grão-duque Nikolai Nikolaievitch, comandante em chefedos exércitos russos, declarara que todos os judeus eram espiões alemãesem potencial e os expulsara de seus vilarejos. Eles tiveram apenasalgumas horas para colocar séculos de vida em cima de carroças. Zeitlinsocorrera o rabino e sua esposa, transportando-os para São Petersburgo— ilegalmente, já que eles não tinham passes. Apesar de censuraremAriadna, sua filha ímpia, sentiam-se orgulhosos por ela ter se casado comZeitlin, um homem que possuía poços de petróleo em Baku, navios emOdessa, bosques na Ucrânia...

— É você, Samuil? — uma voz rouca o chamou. Na cozinhaminúscula, ao lado, ele encontrou a mulher do rabino, Miriam, de peruca

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e vestido caseiro, mexendo um caldeirão de sopa em um velho fogão agás com dois compartimentos, a separação entre leite e carnetoscamente observada em meio à confusão de utensílios mal lavados.

— Sashenka foi presa — disse Samuil.— Ai de mim! — gritou Miriam com sua voz profunda. — Antes da luz,

mais profunda é a escuridão! Esse é o nosso castigo, nossa Geena naterra, para os filhos que se afastaram de Deus, todos apóstatas. Nósmorremos há muito tempo e, graças a Deus, só podemos morrer umavez. Meu filho Mendel é um anarquista ateu; Ariadna se perdeu de Deus:uma filha que, Deus a proteja, sai de casa seminua todas as noites! Meufilho mais novo, Avigdor, que morreu para mim até no nome, nosabandonou há muito tempo... Onde estará ele, ainda em Londres? Eagora nossa querida Silberkind também está com problemas. — Em suainfância, Sashenka tinha sido loura. Seus avós ainda a chamavam deSilberkind: “criança de prata”. — Bem, não podemos perder tempo. — Avelha mulher começou a despejar mel em um prato vazio.

— O que você está fazendo?— Pãezinhos de mel e sopa de galinha para Sashenka. Na prisão.Então eles já sabiam, provavelmente através da rede boca a boca da

casa. Zeitlin quase chorou. Enquanto telefonava para ministros, a velhaesposa do rabino estava preparando pães de mel para a neta. Ele quasenão conseguia acreditar que essas pessoas eram os pais de Ariadna. Comoeles tinham produzido aquela flor de estufa em seu casebre iídiche?

Permaneceu em pé, observando Miriam, como tinha observado suaprópria mãe na cozinha da família, em um vilarejo de casinhas de madeirana Área de Assentamento.

— Eu nem sei por que ela foi presa — murmurou Zeitlin.Zeitlin se orgulhava de nunca ter se convertido à Igreja Ortodoxa

Russa. Não precisara fazer isso. Na qualidade de Mercador da PrimeiraGuilda, tinha o direito de permanecer em São Petersburgo mesmo sendojudeu — e pouco antes da guerra fora elevado à categoria de ConselheiroSecreto do Imperador, posição equivalente à de um tenente-general naTabela de Hierarquias. Apesar de tudo, ainda era um judeu, um judeudiscreto, mas judeu de qualquer forma. Ainda se lembrava da melodia doKol Nidre — e da excitação de fazer as Quatro Perguntas, na Páscoa.

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— Você está branco como um lençol, Samuil — disse Miriam. —Sente aí! Agora beba isso! — Serviu-lhe um copo de vishniak, que eleengoliu de uma só vez. Sacudindo a cabeça levemente, devolveu o copovazio à sogra e, sem uma palavra, beijou-lhe a mão coberta de veias azuis.Então desceu as escadas e foi até a porta da frente, onde Pantameilionlhe entregou o chapéu e o casaco de pele de castor. Ele estava prontopara começar.

10

A superfície do canal congelado cintilava ao luar, quando o trenó docapitão Sagan estacionou em frente ao quartel-general do Departamentode Polícia, na rua Fontanka, 16.

Tomando o elevador até o andar superior, Sagan atravessou os doispostos de controle, cada qual com dois gendarmes, e entrou no coraçãoda guerra secreta do Império, movida contra terroristas e traidores: oDepartamento de Segurança, a Okhrana. Embora tarde da noite, a natado serviço de segurança estava trabalhando lá — jovens funcionários depincenê e uniformes azuis, que classificavam fichas de arquivo (azuis paraos bolcheviques, vermelhas para os socialistas revolucionários) eacrescentavam nomes ao labirinto de fichas de facções e célulasrevolucionárias.

Sagan era uma das estrelas ascendentes da organização. Era capazde desenhar o gráfico dos bolcheviques mesmo dormindo, até os últimosnomes e conexões — com Lenin no centro. Em frente ao gráfico, paroupor um momento, somente para saborear o próprio sucesso: todo oComitê Central fora preso, com exceção de Lenin e Zinoviev, além de seismembros da Duma. Seus membros estavam exilados na Sibéria,enfraquecidos demais para iniciar uma revolução. Da mesma forma, osmencheviques: castrados como grupo. A SR — Organização de Batalhados Socialistas Revolucionários: destruída. Faltava apenas esmagar algumascélulas bolcheviques.

Nos escritórios ao longo do corredor, decifradores de códigos, de

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cabelos oleosos e pele escamosa, examinavam atentamente colunas dehieróglifos, enquanto antiquados oficiais das províncias, com botas esuíças, planejavam incursões, inclinando-se sobre mapas do bairroindustrial de Viborg. Os serviços de segurança precisavam de todo tipo degente, disse Sagan a si mesmo, avistando um colega que forarevolucionário, mas recentemente mudara de lado. Do outro lado da sala,estava um ex-arrombador, que se tornara o especialista da Okhrana eminvasão de residências. Ele cumprimentou um aristocrata italiano,homossexual, na verdade filho de um leiteiro judeu de Mariupol, que seespecializara em interrogatórios sensíveis... Quanto a mim, pensou Sagan,também tenho minha especialidade: transformar revolucionários emagentes duplos. Eu conseguiria fazer o papa voltar-se contra Deus.

Ordenou então a um funcionário que trouxesse os registros dasincursões daquela noite, assim como os relatórios de seus agentes filerisobre os movimentos do judeu Mendel Barmakid e de sua sobrinha, amenina Zeitlin.

11

O aroma de água-de-rosas e velas perfumadas era tão forte, no salão dopríncipe Andronnikov, que Zeitlin sentiu uma dor no peito e sua cabeçacomeçou a rodar. Ele pegou uma taça de champanhe e a esvaziou deuma só vez: precisava de coragem. Começou a procurar na multidão, massabia que não deveria parecer desesperado demais. Será que todossabem por que estou aqui? As notícias sobre Sashenka já terão seespalhado?, perguntou-se. Esperava que não.

O aposento estava repleto de peticionários com colarinhosengomados, sobrecasacas e medalhas, rubicundos homens de negóciosque fumavam charutos. Eram sobrepujados em número pelas mulheresde ombros nus e moças de bochechas avermelhadas pelo ruge, comlábios carmesins e roupas de veludo, que fumavam aromáticos cigarrosegípcios através de piteiras douradas.

Zeitlin foi puxado para o lado pelo obeso ex-ministro Khvostov.

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— Agora é só uma questão de tempo, até que o imperador indiqueum ministro representativo. Isso não pode continuar, pode, Samuil?

— Por que não? Tem sido assim por duzentos anos. O sistema podenão ser perfeito, mas é mais forte do que nós pensamos.

Na experiência de Zeitlin, no entanto, por mais que as cartas fossemembaralhadas, sempre terminavam em uma configuração que não lhe erainteiramente desvantajosa. Este era o seu destino, sua sorte selada noLivro da Vida. As coisas correriam bem — para ele e para Sashenka,assegurou a si mesmo.

— Você ouviu alguma coisa? — insistiu Khvostov, agarrando o braçode Zeitlin. — Quem ele vai convocar? Não podemos continuar desse jeito,podemos, Samuil? Eu sei que você concorda.

Zeitlin libertou o braço com um arranco.— Onde está Andronnikov?— Lá atrás... você nunca vai chegar lá! Está muito cheio. E outra

coisa...Zeitlin escapuliu para dentro da multidão. O calor e os perfumes eram

intoleráveis. Molhadas de suor, as mãos dos homens escorregavam nasmacias e pálidas costas das damas. A fumaça dos charutos era tão densaque uma neblina acre se formara. O governador-geral, o velho príncipeObolenski, da verdadeira alta nobreza, e alguns Golitsins estavam lá:mergulhados na merda até os joelhos, pensou Zeitlin. Uma meninabonita, que era mantida em lucrativo concubinato triplo pelo vice-ministrodo Interior, pelo novo ministro da Guerra e pelo grão-duque Serguei,estava beijando Simnavitch, secretário de Rasputin, com um beijo delíngua, na frente de todo mundo. Zeitlin não sentia prazer em ver essetipo de coisa: pensou no rabino e em Miriam. Eles jamais acreditariam quea corte do Império Russo tinha, de algum modo, chegado a isso.

Por um túnel que se abriu no emaranhado de braços e pescoços,Zeitlin avistou um pequeno olho esbugalhado, com cílios tão densos quepareciam colados. Tinha certeza de que o outro olho e o restante docorpo pertenciam a Manuilov-Manesevitch, o perigoso oportunista,informante da polícia, e agora, desgraçadamente, chefe de gabinete doprimeiro-ministro, Stürmer.

Zeitlin abriu caminho através da multidão, mas o pequeno Manuilov-

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Manesevitch estava sempre à frente dele, e ele não o alcançou. Em vezdisso, encontrou-se às portas do sagrado santuário do príncipeAndronnikov, recém-decorado como um harém turco — sedastremulantes, um chafariz cuja água saía pelo pênis de um jovem Pãdourado e, ainda mais estranhamente, um grande Buda de ouro. Umcandelabro de cristal, com centenas de velas que pingavam cera, apenasintensificava o calor.

Provavelmente paguei por algumas dessas porcarias, pensou Zeitlin,enquanto entrava no pequeno aposento, lotado de peticionários embusca de cargos. Lá dentro, dando baforadas em um narguilé e beijandoo pescoço de um garoto em uniforme de pajem, estava o próprioAndronnikov, com o ministro do Interior aboletado a seu lado. Zeitlinnunca se rebaixara diante de ninguém: era uma das vantagens de serrico. Mas agora não havia tempo para orgulho.

— Ei, você derramou minha bebida! Onde estão seus modos? —gritou um peticionário.

— Está com pressa de chegar a algum lugar, barão Zeitlin? —escarneceu outro.

Mas Zeitlin, pensando apenas na filha, foi em frente.Viu-se, então, agachado ao lado do príncipe e do ministro.— Ah, Zeitlin, querido! — disse Andronnikov, que usava maquiagem e

lembrava um gordo eunuco chinês. — Beijinho, doçura!Zeitlin fechou os olhos e beijou Andronnikov nos lábios pintados de

batom. Qualquer coisa por Sashenka, pensou.— Linda festa, meu príncipe.— Muito quente, muito quente — disse o príncipe em tom severo. —

Muito quente para roupas, não é? — acrescentou ele para o jovem aoseu lado, que deu um risinho.

As paredes forradas de seda vermelha estavam repletas de fotosautografadas de ministros, generais e grão-duques: haveria alguém quenão devesse alguma coisa a Andronnikov? Empresário influente, repórtersensacionalista, amigo dos poderosos e intrigante viperino, Andronnikovestabelecia valores na bolsa de influências — e acabara de derrubar oministro da Guerra.

— Meu príncipe, é sobre minha filha — começou Zeitlin, mas foi

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interrompido por uma peticionária agressiva, uma mulher sardenta, comcabelos cor de gengibre, que usava um turbante de seda enfeitado comum broche de penas de pavão, de onde saía uma pena de avestruz. Ofilho dela precisava de um emprego no ministério da Justiça, mas já estavaem um trem a caminho da frente galiciana. Protopopov, o ministro doInterior, já conseguia ver o preço do favor dançando à sua frente;levantando-se, segurou a mão da senhora. Zeitlin viu sua oportunidade eocupou o assento vago ao lado de Andronnikov, que inclinou a cabeça ecolocou a mão sobre sua famosa pasta branca, um maneirismo quesignificava: vamos negociar.

— Caro príncipe, minha filha Sashenka...Andronnikov abanou a mão flácida e coberta de jóias.— Eu sei... sua filha no Smolni... presa esta tarde... e culpada de

todas as acusações. Bem, eu não sei. O que você sugere?— Ela está na Casa de Detenção Temporária de Kresti neste

momento: podemos tirá-la de lá esta noite?— Calma agora, queridinho! Já é um pouco tarde para conseguir

alguma coisa esta noite. Mas nós não vamos querer que ela passe trêsanos em Yeniseisk, no Círculo Ártico, vamos?

Zeitlin sentiu o coração palpitar: sua amada Sashenka jamaissobreviveria a isso!

Andronnikov estava concentrado em dar um beijo de língua nojovem a seu lado. Quando parou para respirar, os lábios ainda molhados,Zeitlin apontou para o teto.

— Meu príncipe, eu gostaria de comprar seu... candelabro — sugeriuele. — Sempre o admirei...

— É uma lembrança muito querida, barão. Um presente da própriaimperatriz.

— É mesmo? Bem, deixe-me fazer uma oferta por ele. Digamos pelomenos...

12

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A companheira de Ariadna, em sua viagem do salão da baronesa Rozen aolocal onde iria jantar, era a condessa Missy Loris, uma alegre loura nascidanos Estados Unidos, mas casada com um russo. Missy pedira a Ariadnaque a apresentasse a Rasputin, o qual, diziam, estava praticamentedirigindo a Rússia.

Segurando a mão de Missy, Ariadna saltou da limusine Russo-Balt epassou pela sombria arcada da rua Gorokhovaia, 64, atravessou um pátioasfaltado e subiu os degraus da soleira de um edifício vermelho, de trêsandares. A porta abriu-se como por mágica. Um porteiro,indiscutivelmente ex-militar e com certeza agente da Okhrana, fez umamesura.

— Segundo andar.As mulheres subiram as escadas até um portal aberto, revestido de

seda escarlate. Um homem de bochechas coradas, vestido com calças desarja azul e suspensórios, visivelmente um policial, apontou para o interiordo aposento com um gesto brusco.

— Senhoras, por aqui!Uma camponesa baixa e gorda, com um vestido floral, recolheu seus

casacos e as conduziu a um aposento onde um alto samovar de prataborbulhava e soltava vapor. Ao lado, brincando com pilhas de seda, pelesde chinchila e zibelina, e penas de garça-real, estava sentado oconselheiro Grigori, conhecido como Rasputin. Trajava uma camisa deseda lilás, enfiada em uma faixa carmesim, calças listradas e botinas decouro de cabra. Tinha o rosto curtido, enrugado e cheio de verrugas,marcas de varíola no nariz, e usava o cabelo repartido em duas grossasmadeixas, que formavam arcos em sua testa; sua barba era castanho-avermelhada. Olhos amarelos observaram Ariadna sem piscar, com aspupilas vítreas tremeluzindo de um lado para outro, como se nãoenxergassem.

— Ah, minha Abelhinha — disse ele. — Aqui! — Ofereceu a mão paraas mulheres. Ariadna, levemente embriagada, ajoelhou-se e beijou a mão,que se moveu em direção a Missy. — Eu sei por que você veio. Vá atéminha sala de visitas. Minhas pombinhas estão todas lá, querida Abelha. Evocê é nova — ele beliscou a cintura de Missy, o que a fez sentir cócegase soltar um gritinho agudo. — Mostre a casa para ela, Abelhinha.

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— Abelhinha — cochichou Ariadna para Missy — é o nome especialque ele me deu. Todas nós temos apelidos.

— Não se esqueça de mencionar Sashenka.— Sashenka, Sashenka. É mesmo, estou me lembrando.A dupla entrou no aposento principal, onde cerca de dez convidados,

na maioria mulheres, estavam sentados em torno de uma mesa cobertacom oferendas — uma pilha de caviar Beluga, metade de um esturjão emconserva, montes de biscoitos de gengibre com hortelã, ovos cozidos,um bolo de café e uma garrafa de Cahors.

Rasputin vinha logo atrás delas. Colocou o braço ao redor da cinturade Ariadna e a fez mudar de direção, conduzindo-a até um assento àmesa. Então cumprimentou a todas, separadamente.

— Pombinha Selvagem, essa é a Abelhinha, Boneca Bonita, essa é aMenina Calma...

Entre as mulheres, havia uma loura rechonchuda, com rosto de lua,trajando um vestido bege mal cortado, desgracioso e amarfanhado — eum colar de três voltas com as maiores pérolas que Ariadna já vira. Essacriatura de bochechas brilhantes era Anna Virubova. A bela morena aolado dela, com um terninho de marinheiro na última moda e um bonépreto-e-branco, era Júlia “Lili” von Dehn: essas duas, sabia Ariadna, eramas melhores amigas da imperatriz. A espiritualidade da atmosfera eraintensificada pelo status elevado das pessoas presentes. Ariadna sabiamuito bem que, com o imperador no front, a imperatriz dirigia o Impériopor intermédio dos que estavam naquela sala. Sabia também que Missynão era ainda devota do conselheiro — na verdade estava lá por causa dareunião. Entediada com o afável e banal conde Loris, adorava tudo o queestivesse na moda ou fosse extravagante — e a reunião era ambas ascoisas. Com Ariadna era diferente. Ébria, sentia-se purificada naqueleaposento. Fosse ela quem fosse do lado de fora, por mais infeliz einsegura que se sentisse em casa, por mais desesperados que fossemseus casos amorosos e sua busca aleatória por um significado no universo,as coisas ali t inham uma simplicidade calma, que jamais encontrara antes.

Rasputin contornou a mesa, de modo que cada convidado pudessebeijar sua mão. Quando encontrou uma cadeira vazia, sentou-se,apanhou com a mão um bocado de esturjão e começou a comer,

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lambuzando a barba. As damas o observavam em silêncio, enquanto eledevorava, sem o menor constrangimento, porções de bolo, peixe ecaviar, mastigando ávida e ruidosamente. Quando terminou, olhou-asfixamente; então colocou as mãos sobre as de Ariadna e as apertou.

— Você! Minha doce amiga, você precisa muito de mim esta noite eaqui estou.

Um rubor se iniciou no peito de Ariadna, subiu por seu pescoço e seespalhou pelo corpo. Ela sentia alguma coisa entre timidez deadolescente, veneração religiosa e excitação sensual. Os olhosesbugalhados de Virubova, astuciosos, porém crédulos, fixaram-se nela,com inveja. O que nosso amigo vê nessa jid plebeia, a mulher promíscuado banqueiro judeu? Ariadna sabia que ela estava pensando isso, emboraa própria Virubova — assim como a imperatriz — já tivesse se beneficiadoda generosidade de Zeitlin.

Embora o feio rubor estivesse cobrindo seu pescoço e os ombrosnus, Ariadna não se importou. Ali, não era mais uma Yiddeshe dochte,nascida Finkel Barmakid na corte do famoso Rabino de Turbin, ou aneurastênica perturbada, que mal conseguia controlar seus apetites. Aliera uma mulher digna de ser amada e acarinhada — mesmo entre osamigos dos tsares. Rasputin falava com imperatrizes e prostitutas como sefossem iguais. Esta era a genialidade do conselheiro — transformavapombinhas desnorteadas em orgulhosas leoas, vítimas neurastênicas embelas vencedoras. Aquele camponês sagrado iria salvar a Rússia, os tsares,o mundo. A respiração de Ariadna sibilava por entre os dentes; sua língualambia os lábios secos. O aposento estava em silêncio, exceto pelosmurmúrios do conselheiro e o zumbido do samovar na sala ao lado.

— Abelhinha — disse ele mansamente, em sua simples pronúnciacamponesa, fazendo com que ela se levantasse e conduzindo-a até osofá, onde a sentou, puxando uma cadeira para si mesmo e apertando aspernas dela entre as suas. Um tremor percorreu o corpo de Ariadna. —Você tem um vazio por dentro. Você está sempre se equilibrando entreo desespero e um vácuo interior. Você é hebreia? Vocês são um povodifícil, mas muito injustiçado também. Eu vou manter você longe dosproblemas. Apenas siga o meu sagrado caminho do amor. Não escuteseus sacerdotes ou rabinos — ele perscrutou os brilhantes olhos dela —,

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eles não conhecem todo o mistério. O pecado nos é dado para quepossamos nos arrepender e o arrependimento traz alegria à alma e forçaao corpo, compreende?

— Nós compreendemos, nós compreendemos mesmo — disseVirubova atrás de Rasputin, em voz alta e áspera.

— Como pode o homem abrutalhado, com seus hábitos animalescos,sair do poço de pecados e viver uma vida que agrade a Deus? Ah, você éminha querida, minha Abelha de Mel. — O rosto dele estava tão pertoque Ariadna podia sentir o cheiro de esturjão e vinho Madeira em seuhálito, o odor de sua barba e o álcool em seu suor. — O pecado deve sercompreendido. Sem o pecado não há vida, pois não há arrependimentoe, se não há arrependimento, não há alegria. Como você está olhandopara mim, Abelhinha?

— Com santidade, Pai. Eu pequei — começou ela. — Vou morrer semamor. Eu preciso ser amada o tempo todo.

— Você está com sede, Abelhinha. — Ele beijou os lábios delalentamente. — Por enquanto, Abelha de Mel, venha comigo. Vamosrezar. — Sem olhar para as outras mulheres, segurou a mão dela e aconduziu até o santuário.

13

Sashenka despertou com uma luz ofuscante e os vapores nauseabundosda urina que se acumulara durante a noite, à medida que as ocupantesda cela, em turnos, esvaziavam as bexigas. Seu avental do Smolni estavamolhado, manchado de sangue, e ela sentia doer cada fibra do corpo.Ouviu botas martelando na pedra, chaves girando e o rangido defechaduras. A porta da cela foi escancarada. Um homem estava de pé naentrada.

— Ugh! Como fede aqui — murmurou ele, apontando depois paraSashenka. — É aquela. Traga ela.

Natacha segurou sua mão. Dois carcereiros abriram caminho atravésdos corpos espalhados e a retiraram da cela. Arrastaram-na pelos

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corredores cinzentos e a deixaram em uma sala de interrogatórios, ondehavia uma mesa e uma cadeira de metal. As paredes estavamdescascadas pela umidade. Na sala ao lado, ela ouvia um homem gritando.

Um tenente de cabeça quadrada, totalmente raspada, barba longa equadrada, abriu a porta, andou pomposamente até ela e bateu com opunho na mesa.

— Você vai nos dizer todos os nomes — disse ele — e nunca mais vaifoder com a nossa paciência. — Sashenka se encolheu, enquanto ele seencarapitava na borda da mesa e colocava o rosto lívido bem junto aodela. — Você tem todas as vantagens na vida — berrou ele. — É verdadeque não é uma russa de verdade. Você é uma jid, não é nobre. O seu paijudeu saúda o cáiser todas as noites...

— Meu pai é um patriota russo! O tsar deu uma medalha para ele!— Não me responda assim. Esse título não é um título russo. Os

judeus não podem ter títulos aqui. Todo mundo sabe disso. Ele comprouisso com os rublos que roubou de algum principezinho...

— O rei da Saxônia fez dele um barão. — Quaisquer que fossem asopiniões de Sashenka a respeito da classe social do pai e da guerracapitalista, ela ainda era sua filha. — Ele trabalha duro pelo país dele.

— Cale a boca, se não quiser levar um tapa. Uma vez jid, sempre jid.Aproveitadores, revolucionários, funileiros. Vocês evrei — hebreus —estão todos metidos nisso, não estão? Mas você é uma gostosura. É,você é mesmo um morango fresquinho!

— Como ousa! — disse ela baixinho, sempre pouco à vontade comsua aparência. — Não fale comigo assim!

Sashenka não tinha comido nem bebido desde a noite anterior. Apósos momentos de bravura desafiadora, sua coragem e energia estavamdesaparecendo. Precisava de alimentos, assim como a fornalha de umamáquina precisa de carvão, e ansiava por um banho quente. Masenquanto escutava o valentão gritar, seu respeito por ele começou adiminuir. Não sentia medo de seus olhinhos rosados, nem do uniformeazul de um sistema degenerado. Os borrifos de saliva que ele despejavasobre ela eram grotescos, mas fáceis de limpar.

Ela fechou os olhos por alguns segundos, abstraindo-se daquelevalentão da polícia, aquele Derzhimorda. Não pela primeira vez, imaginou o

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efeito que sua prisão tivera em casa. Meu querido e distante pai, ondeestaria agora?, conjeturou. Sou apenas mais um problema para vocêresolver? E como estarão Fanny Loris e as outras garotas da escola? Comoeu adoraria ouvir agora aquela tagarelice trivial. E minha querida Lala, ameiga e atenciosa Sra. Lewis, com sua voz de canção de ninar. Ela nãosabe que a menina que ama não existe mais...

A gritaria recomeçou. Sashenka se sentia fraca de fome e fadiga,enquanto o interrogador preenchia formulários com garranchos toscos desemialfabetizado. Nome? Idade? Nacionalidade? Escolaridade? Pais?Altura? Sinais característicos? Ele queria suas impressões digitais: ela lheestendeu a mão direita. Ele pressionou cada dedo em uma almofada detinta, e então em um formulário.

— Você será acusada de acordo com o Parágrafo Primeiro, Artigo126, por ser integrante do ilegal Partido Socialista Democrático dosTrabalhadores Russos, e com o Parágrafo Primeiro, Artigo 102, por serintegrante de uma organização militar. Pois é, menininha, seus amigos sãoterroristas, assassinos, fanáticos!

Sashenka sabia que aquilo era consequência dos panfletos quedistribuíra para seu tio Mendel. Quem os escreveu? Onde foramimpressos? — perguntava o homem sem parar.

— Você mexeu com os “macarrões” e os “buldogues”?— “Macarrões”? Não sei do que você está falando.— Não banque a inocente comigo! Você sabe muito bem que

macarrões são os cintos de munição para metralhadoras, e buldogues sãopistolas, pistolas Mauser.

Outro banho de saliva.— Estou me sentindo fraca. Acho que preciso comer... — sussurrou

ela.Ele se levantou.— Está bem, princesa, estamos nos divertindo, não? Vai desmaiar,

como aquela condessa em Onegin? — Ele arrastou a cadeira para trás e,com brutalidade, agarrou seu cotovelo. — O capitão Sagan vai falar comvocê agora.

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14

— Saudações, Mademoiselle Baronesa — disse o oficial em sua sala bem-arrumada, que cheirava a serragem e charutos. — Sou o capitão Sagan.Peter Mikhailovitch de Sagan. Peço desculpas pela má educação — e mauhálito — de alguns dos meus subordinados. Sente-se aqui.

Ele se levantou e olhou para sua nova prisioneira: uma garotaesbelta, com cabelos castanhos luxuriantes, estava de pé diante dele,vestindo um uniforme do Smolni amarrotado e manchado. Ele notou queseus lábios, em contraste com seu rosto pálido, eram carmesins eestavam ligeiramente inchados. Ela olhava para o chão, pouco à vontade,com os braços cruzados e apertados contra o peito.

Sagan se curvou, elegante em sua túnica azul debruada de branco,calcanhares unidos, como em uma reunião social; depois estendeu a mão.Ele gostava de apertar as mãos dos prisioneiros. Era um modo de “tomara temperatura deles” e de lhes mostrar o que o general chamava de “açosob o charme de Sagan”. Percebeu que a garota tinha o cheiro insalubredas celas e que suas mãos estavam tremendo. Aquilo no avental doSmolni seria sangue? Provavelmente alguma bruxa maluca a atacara. Bem,ali não era o Iate Clube. Colegiais ricas deveriam pensar nessas coisasantes de conspirar contra o imperador.

Ele puxou uma cadeira e a ajudou a sentar-se. Sua primeira impressãofoi a de que ela era absurdamente jovem. Mas Sagan gostava de dizerque era “um agente secreto profissional, não uma enfermeira”. Haviaoportunidades para ele até entre os absurdamente jovens, mimados einocentes. Mesmo insignificante, ela deveria saber alguma coisa. Afinal decontas, era sobrinha de Mendel.

Ela deixou-se cair na cadeira. Sagan notou sua exaustão comsatisfação — e calibrou a piedade. Ela, na verdade, não era mais que umacriança confusa. Mas isso abria possibilidades interessantes.

— Você parece estar com fome, mademoiselle. Gostaria de pedir umcafé da manhã? Ivanov! — Um gendarme subalterno apareceu à porta.

Ela assentiu, evitando seus olhos.— O que posso trazer para a senhorita, maga-mosele? — Ivanov

gesticulou com caneta e papel imaginários, imitando um garçom francês.

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— Vamos ver! — respondeu por ela o capitão Sagan, lembrando-sedos relatórios da vigilância que estavam nos arquivos. — Aposto que seucafé da manhã é chocolate quente, pão branco levemente tostado,manteiga sem sal e caviar. — Sashenka assentiu em silêncio. — Bem, nãotemos caviar, mas temos chocolate, pão e eu trouxe da Ieliseiev’s, naNevski Prospect, uma marmelada Cooper’s Fine Cut. Você gosta?

— Sim, por favor.— Você sangrou.— Sim.— Alguém atacou você?— Na noite passada. Não foi nada.— Você sabe por que está aqui?— Leram as acusações para mim. Sou inocente.Ele sorriu para ela, mas ela não estava olhando para ele. Tremia e

seus braços permaneciam cruzados.— Você é culpada, claro, a questão é o quanto.Ela abanou a cabeça. Sagan concluiu que aquilo iria ser um

interrogatório bastante monótono. Ivanov, com um avental esticadodesajeitadamente sobre seu uniforme azul, trouxe o café da manhã emum carrinho com pão, marmelada e uma caneca de chocolate.

— Como a senhorita ordenou, maga-mosele — disse ele.— Muito bom, Ivanov. O seu francês é excelente. — Sagan voltou a

atenção para a prisioneira. — Ivanov faz você se lembrar dos garçons doDonan, o favorito do seu papai, ou do Grand Hotel Pupp, em Carlsbad?

— Eu nunca estive lá — sussurrou Sashenka, esfregando a ponta dosdedos nos lábios, um gesto que ela fazia, percebeu ele, quando estavapensativa. — Minha mãe é que fica lá: ela me deixa em uma pensãobarata, junto com a minha governanta. Mas o senhor sabe disso.

Ficou silenciosa novamente.São sempre a mesma coisa. Infelizes em casa, juntam-se a más

companhias, pensou ele. Ela devia estar morta de fome, mas ele esperariaque lhe perguntasse se poderia comer.

Em vez disso, ela olhou diretamente para ele, como se a visão doalimento já a tivesse recuperado. Olhos cinzentos, frios como ardósia,começaram a examiná-lo. Sob sobrancelhas espessas, as íris muito claras

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— grãos de ouro salpicados sobre cinza —, que projetavam umacuriosidade zombeteira, apanharam-no de surpresa.

— O senhor vai ficar sentado aí me olhando comer? — perguntouela, pegando um pedaço de pão.

Primeiro ponto para ela, pensou Sagan. O cavalheiro que existia nele,descendente de gerações de barões bálticos, queria aplaudi-la. Em vezdisso, apenas sorriu.

Ela pegou uma faca, passou manteiga e marmelada no pão e comeutudo, rápida e limpamente. Ele reparou que havia delicadas sardas emcada lado de seu nariz e, agora que seus braços já não estavam cruzados,ele podia perceber que ela possuía seios fartos. Quanto mais procuravaescondê-los, mais evidentes se tornavam. Nós, interrogadores, raciocinouSagan, temos que entender essas coisas.

Ivanov retirou os pratos. Sagan estendeu um maço de cigarros coma marca de um crocodilo.

— Crocodilos egípcios de ponta dourada? — disse ela.— Não são seu único luxo? — respondeu ele. — Eu sei que as

garotas do Smolni não fumam, mas, na prisão, quem vai saber?Ela retirou um cigarro, que ele acendeu para ela. Então pegou um

para si mesmo e o atirou para o ar, aparando-o com a boca.— Um macaco de circo, além de torturador — disse ela, com sua voz

suave e rouca, soprando a fumaça em anéis azuis. — Obrigada pelo caféda manhã. Vou para casa agora?

Ah, concluiu Sagan, afinal de contas a menina tem tutano. A luz queincidia no cabelo dela refletia uma rica tonalidade avermelhada.

Sagan pegou uma pilha de relatórios manuscritos.— O senhor está lendo o diário de alguém? — perguntou ela com

insolência.Ele a olhou duramente.— Mademoiselle, a sua vida, tal como você a conhece, terminou.

Você provavelmente vai ser sentenciada pela Comissão à pena máxima decinco anos no exílio, em Yeniseisk, perto do Círculo Ártico. Sim, cincoanos. Você pode nunca mais regressar. A sentença rigorosa é pela suatraição em época de guerra; e como você é judia, a sentença vai serainda mais rigorosa da próxima vez.

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— Cinco anos! — a respiração dela tornou-se curta e acelerada. — Éa sua guerra, capitão Sagan, um massacre de trabalhadores ordenadopelos imperadores e reis, não a nossa guerra.

— Está bem, eis o jogo. Esses são os relatórios de vigilância dos meusagentes. Deixe-me ler o que meus arquivos dizem sobre certa pessoa quevou chamar de madame X. Você vai ter que adivinhar o nome verdadeiro.— Com olhos cintilantes, ele tomou fôlego e baixou a voz teatralmente.— Depois de seguir a religião erótica do romance Sanin, de Arzabitch, ede se entregar à licenciosidade sexual, ela aderiu aos ensinamentos“orientais” da curandeira chamada madame Aspasia del Balzo, querevelou, através de um processo chamado regressão espiritual, que, emuma vida anterior, a madame X fora a criada de Maria Madalena e, depoisdisso, a modista que confeccionava os corpetes de Joana D’Arc.

— Essa é fácil! Madame X é a minha mãe — disse Sashenka, com asnarinas dilatadas. Sagan notou que seus lábios pareciam nunca se fechar.Voltou ao relatório.

— Em uma sessão de mesas giratórias, Madame Aspasia apresentou abaronesa Zeitlin a Júlio César, que lhe disse que não deveria permitir quesua filha, Sashenka, zombasse das sessões espíritas.

— O senhor está inventando isso, capitão — disse Sashenkasecamente.

— No asilo de loucos de Piter, nós não precisamos inventar nada.Você aparece com bastante frequência neste arquivo, mademoiselle, oueu deveria dizer camarada Zeitlin. Vamos continuar. A baronesa Zeitlincontinua a seguir qualquer caminho de felicidade que lhe seja oferecido.Nossas investigações revelam que madame del Balzo fora antes BerylCrump, filha ilegítima de Fineas O’Hara Crump, um agente funerárioirlandês de Baltimore, cujo paradeiro é ignorado. Depois de seguir osensinamentos de monsieur Philippe, um médico ocultista francês, edepois os do dr. Badmaev, curandeiro tibetano, a baronesa Zeitlin é agorauma seguidora do camponês conhecido por seus adeptos como“Conselheiro”, a quem ela pediu que exorcizasse os espíritos maléficos desua filha Sashenka, que a despreza, segundo ela, e que destruiu seubem-estar espiritual.

— O senhor conseguiu me fazer rir sob interrogatório — disse

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Sashenka, com ar solene. — Mas não pense que me conquistou tãofacilmente.

Sagan pousou o relatório na mesa, recostou-se na cadeira e levantouas mãos.

— Minhas desculpas. Eu não subestimaria você nem por um segundo.Eu admiro o artigo que você escreveu naquele jornal ilegal, o RabochniiPut — Trilha do Povo. — Pegou um tabloide sujo, encabeçado por umaestrela vermelha. — Título: A Ciência do Materialismo Dialético, a GuerraCivil Canibal dos Imperialistas e a Traição Menchevique da VanguardaProletária.

— Eu nunca escrevi isso — protestou ela.— Claro que não. Mas é um artigo muito minucioso e eu ouvi de um

de nossos agentes em Zurique que o seu Lenin ficou muitoimpressionado. Não consigo acreditar que alguma das outras garotas doInstituto Smolni possa ter escrito um ensaio como esse, citandoPlekhanov, Engels, Babel, Jack London e Lenin; isso apenas na primeirapágina. E não estou sendo condescendente.

— Eu disse que não escrevi isso.— Está assinado Tovarish Pesets. Camarada Raposa. Nossos olheiros

dizem que você usa sempre uma pele de raposa do Ártico. Presente deum pai indulgente, talvez?

— Um nom de révolution frívolo. Não é meu.— Ora, vamos, Sashenka... se posso chamar você assim. Nenhum

homem escolheria esse nome: temos Camarada Pedra — Kamenev,Camarada Aço — Stalin, dois que eu mesmo despachei para a Sibéria. ECamarada Martelo — Molotov. Você conhece seus nomes reais?

— Não, eu...— Nossa Seção Especial sabe tudo a respeito do seu partido, que

está repleto de informantes nossos. Vamos voltar à “Camarada Raposa”.Não há muitas mulheres no partido que possam ter usado essa alcunha.Aleksandra Kollontai, talvez, mas conhecemos seu codinomerevolucionário. De qualquer forma, ela está no exílio e você está aqui. Apropósito, você leu “O Amor das Abelhas Operárias”, que ela escreveu?

— Claro que li — respondeu Sashenka, sentando-se ereta. — Quemnão leu?

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— Mas será que todo esse amor livre não é mais o estilo de sua mãe?— O que minha mãe faz é assunto dela; quanto à minha vida social,

eu não tenho nenhuma. Não quero uma. Não gosto de nada disso. Eudesprezo essas bobagens.

Os olhos cinzentos olharam através dele novamente. Não há ninguémmais santarrão que um adolescente idealista (principalmente se for a filhapreciosa de um rico banqueiro), refletiu Sagan. Ele estava impressionadocom o jogo dela e não sabia ao certo o que fazer: deveria libertá-la oucontinuar trabalhando com ela? Ela poderia ser a isca para fisgar um peixemaior.

— Você sabia que seus pais e seu tio, Gideon Zeitlin, tentaramlibertar você ontem à noite?

— Mamãe? Estou surpresa de que ela tenha se dado esse trabalho...— Sargento Ivanov! Você tem o relatório de ontem à noite da casa

de Rasputin? — Ivanov entrou com estrépito na sala, carregando oarquivo. Sagan folheou rapidamente os papéis manuscritos. — Aqui está.Relatório do agente Petrovski: O Tenebroso Um — este é o nossocodinome para Rasputin, caso você não tenha adivinhado — conversoucom Ariadna Zeitlin, judia, esposa do industrial, e percebeu que ela tinhaum assunto especial para discutir. Mas, depois de uma sessão privada como Tenebroso Um, a respeito do pecado, e de uma cena de descontroleapós a chegada de madame Lupkina, Zeitlin, acompanhada pela condessaLoris, a americana, deixou o apartamento do Tenebroso Um, às 3h33 damanhã, e foi conduzida à boate Aquarium, depois ao Hotel Astória, napraça Mariinski, no mesmo automóvel Russo-Balt. Ambas pareciamintoxicadas. Elas visitaram a suíte de Dvinski, capitão dos Guardas,trapaceiro e especulador, onde... pediram champanhe... blá... blá...deixaram o lugar às 5h30 da manhã. As meias da judia Zeitlin estavamrasgadas e suas roupas estavam amarrotadas. Ela foi levada até aresidência dos Zeitlin, na avenida Marítima. Depois o motorista levou aamericana até o apartamento de seu marido, na Millionaia, a travessa dosMilionários...

— Mas... ela não citou meu nome?Sagan abanou a cabeça.— Não, mas a amiga americana dela falou. Seu pai foi mais eficiente.

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Mas — ele ergueu um dedo, enquanto o rosto de Sashenka se iluminavacom a expectativa — você vai ficar aqui mesmo. Como um favor a você, éclaro. Se eu a libertasse muito depressa, isso arruinaria sua reputação comseus camaradas revolucionários.

— Não seja ridículo.— Se eu a libertar agora, eles podem pensar que você se tornou um

dos meus agentes duplos; e teriam de eliminá-la. Não pense que eles vãoser bonzinhos porque você é uma colegial. Eles são muito frios. Oupoderiam presumir que seus pais ricos correram até Rasputin ouAndronnikov e compraram sua libertação. Então pensariam, com bastanterazão, a meu ver, que você é apenas uma diletante fútil. Então, vouprestar um favor a você, garantindo que pegue aqueles cinco anos noÁrtico.

Ele observou o rubor se alastrar pelo pescoço dela, invadindo asbochechas e queimando as têmporas. Ela está com medo, pensou,satisfeito consigo mesmo.

— Isso seria uma honra. Eu sou corajosa e não temo a faca nem ofogo — disse ela, citando Zemfira em Os Ciganos, de Puchkin. — Mas vouescapar. Todo mundo escapa.

— Não. De lá, você não vai... Zemfira. O mais provável é que morralá. E vai ser enterrada na taiga, por estranhos, em uma cova rasa eanônima. Nunca vai liderar nenhuma revolução, nunca vai se casar nemter filhos — sua presença neste mundo vai ser um desperdício de tempo,dinheiro e cuidados investidos pela sua família.

Ele percebeu um tremor atravessá-la, de ombro a ombro. Permitiuque o silêncio pesasse.

— O que o senhor quer de mim? — perguntou ela com a voz aguda,pelo nervosismo.

— Que você fale. Isso é tudo — disse ele. — Estou interessado emsuas opiniões, camarada Raposa. No que uma pessoa como você pensasobre este regime. O que você lê. Como vê o futuro. O mundo estámudando. Você e eu, quaisquer que sejam nossas crenças, somos ofuturo.

— Mas o senhor e eu não poderíamos ser mais diferentes! —exclamou ela. — O senhor acredita nos tsares, nos proprietários de terras

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e nos exploradores. O senhor é o punho secreto deste império repulsivo,que eu creio que está condenado e logo vai desmoronar. Então o povoirá governar!

— Na verdade, concordamos em muitas coisas, Sashenka. Eutambém acho que as coisas precisam mudar.

— O mundo vai mudar, isso é tão certo como o nascer do sol — disseela. — As classes irão desaparecer. A justiça reinará. Os tsares, ospríncipes, meus pais e seu mundo depravado, os nobres como o senhor...— Ela se calou abruptamente, como se tivesse falado muito.

— A vida não é estranha? Eu não deveria estar dizendo isso, mas nósprovavelmente queremos as mesmas coisas, Sashenka. Provavelmenteaté lemos os mesmos livros. Eu adoro Gorki e Leonid Andreiev. EMaiakovski.

— Mas eu adoro Maiakovski!— Eu estava no bar Cão Vadio quando ele declamou seus poemas...

e sabe que chorei? Eu não estava de uniforme, claro! Mas, sim, eu choreipela extrema coragem e beleza daquilo. Você não esteve no Cão Vadio,esteve?

— Não, não estive.— Oh! — Sagan fingiu surpresa com uma ponta de decepção. — Não

creio que Mendel esteja muito interessado em poesia.— Ele e eu não temos tempo para visitar cabarés fumacentos —

disse ela, amuadamente.— Eu gostaria de levar você lá — disse ele. — Mas você disse que

adorava Maiakovski? O meu poema favorito é

Prostíbulo após prostíbuloCom danças ousadas de faunos gigantescos...

— ela prosseguiu com entusiasmo:

Diretor de cena! O carro fúnebre está prontoPonha mais viúvas na multidão!Não há o bastante! Ninguém jamais pediuQue a vitória fosse

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— e Sagan retomou os versos:

Inscrita por nossa pátriaNo tronco sem braços que sobrou do banquete sangrentoDe que adianta isso?

Sashenka marcava o ritmo com ambas as mãos, ruborizada com apaixão das palavras. A visão, pensou Sagan, da juventude rebelde edesafiadora.

— Ora, ora, e eu pensando que você fosse só uma estudante boba— disse ele lentamente.

Ouviu-se uma batida na porta. Ivanov entrou e entregou um bilhetea Sagan. Rapidamente, este se pôs de pé e jogou os relatórios sobre amesa, erguendo partículas de poeira, que ficaram dançando à luz do solem pequenos redemoinhos.

— Bem — disse Sagan —, isso é tudo. Adeus.Sashenka reagiu com indignação.— O senhor está me mandando embora? Mas nem me perguntou

nada.— Quando o seu tio, Mendel Barmakid, recrutou você para o Partido

Socialista Democrático dos Trabalhadores Russos? Maio de 1916. Comoele escapou do exílio? Num trenó puxado a renas, navio a vapor, trem(bilhete de segunda classe, nada menos). Não deixe seus lindos olhosficarem tristes, camarada Raposa, nós sabemos de tudo. Não vou perdermeu tempo interrogando você. — Sagan fingiu estar um poucoexasperado, quando, na verdade, estava muito satisfeito. Obtivera doencontro exatamente o que queria. — Mas gostei muito da nossaconversa. Acho que, dentro em breve, voltaremos a falar de poesia.

15

Sashenka embrulhou-se em sua estola de raposa da neve e no xaleOrenburg, enquanto o carcereiro-chefe segurava o casaco de zibelina.

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Entrar em seu calor macio e forrado de seda era como imergir em umbanho de leite morno. O prazer daquilo a fez estremecer. Mal escutava atagarelice do sargento Volkov sobre “polít icos” e “criminosos”, chocolatessuíços e colônia da Brocard’s (que ele aplicara com liberalidade,especialmente para aquele momento).

Parecia que Sashenka tinha chegado à Kresti havia décadas, nãoapenas na noite anterior. E quando o sargento disse: “Veja bem, eu nãosou o carcereiro típico”, ela teve ímpetos de abraçá-lo. Ele lhe devolveu asacola de livros.

Ao deixar a prisão, ela sentiu-se flutuando no ar. Os carcereirosfizeram mesuras. Portas e mais portas se abriram, trazendo a luz para maisperto. Os gendarmes empunhavam chaves enormes em chaveirosbalouçantes, fechaduras rangiam. O gendarme no balcão chegou a tocara pala do quepe. Todos pareciam desejar-lhe felicidades, como se elafosse uma aluna deixando a escola pela última vez.

Quem viria encontrá-la?, conjeturou ela. O papai? Flek, o advogadoda família? Lala? Mas, antes que ela ao menos formulasse uma hipótese,tio Gideon abriu os braços fortes e dançou em sua direção, quase caindopara um dos lados, como se o mundo estivesse inclinado. Enrolando-a nopróprio casaco, ele a espetou com a barba e quase a tirou do chão.

— Ai, meu coração! — berrou ele, sem se importar com osgendarmes. — Aqui está ela! Vamos! Todo mundo está esperando!

Naquele momento, ela adorou seu cheiro de conhaque e cigarros,que inalou avidamente.

Então, viu-se do lado de fora, sob a fria luz do inverno setentrional. ORusso-Balt de seu pai, com correntes nas rodas por causa do gelo,adiantou-se. Pantameilion, um clarão de escarlate com fitas douradas,contornou o carro para abrir a porta. Sashenka quase desfaleceu nocompartimento forrado de couro, com cheiro adocicado, onde um vasode prata exibia cravos recém-colhidos. Os braços de Lala a envolveram.Tio Gideon sentou no assento dianteiro, engoliu um pouco de conhaquede seu frasco e empunhou o tubo de voz.

— Para casa, Pantameilion, jovem conquistador! Foda-se Mendel!Fodam-se a Revolução e todos os idiotas!

Lala revirou os olhos e as duas mulheres riram.

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Enquanto cruzavam a ponte, Lala entregou a Sashenka a lata debiscoitos Huntley & Palmers e os pãezinhos de mel iídiches, feitos pelababuchka Miriam. Sashenka comeu tudo, enquanto pensava que jamaisadmirara tanto o pináculo do Almirantado, a glória rococó do Palácio deInverno — e o domo dourado da Catedral de Santo Isaac. Estava indopara casa. Estava livre!

Tio Gideon escancarou a porta principal da mansão, na avenida Marítima,enquanto Sashenka, correndo pelas escadas, passou velozmente porLeonid, o velho mordomo, que, com lágrimas nos olhos, inclinou-se diantede sua jovem patroa como um mujique de aldeia. Gideon jogou suaspeles felpudas para o mordomo, que quase se curvou com o peso, epediu a um dos criados que o ajudasse a tirar as botas.

Sashenka, sentindo-se como a garotinha que se apresentavaocasionalmente diante de seu atarefado pai, correu até o escritório dele.A porta estava aberta. Ela rezou para que ele estivesse lá. Não saberia oque fazer se não estivesse. Mas ele estava. De colarinho alto e polainas,Zeitlin estava escutando Flek.

— Bem, Samuil, o administrador da prisão pediu quatrocentos — disseo advogado da família, que lembrava um sapo.

— Dinheiro trocado em comparação com Andronnikov... — Mas,então, Zeitlin a avistou. — Graças a Deus você está aqui, minha queridaLisichka-sestrichka — Irmã Raposinha! — exclamou ele, reportando-se aum dos apelidos que ela tinha na infância. Abriu os braços e ela seabraçou a ele, sentindo o bem cuidado bigode roçar seu rosto,regalando-se com o cheiro familiar de sua colônia e pressionando os lábioscontra a ligeira aspereza de sua pele.

— É melhor tirar seu casaco antes de conversarmos — disse o pai,afastando-se dos braços dela e a conduzindo até o salão.

Leonid, que a seguia zelosamente, removeu o casaco, a estola e oxale. Ela reparou que o pai a olhava de cima a baixo, com ar desgostoso,as narinas se contraindo. Sashenka tinha se esquecido completamente deque ainda estava usando o sujo avental do Smolni. De súbito, sentiu ocheiro das imundícies da prisão, que se grudara nela.

— Oh, Sashenka, isso é sangue? — perguntou o pai.

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— Oh, querida, temos que providenciar um banho e roupas limpas —gritou Lala, em voz alta e ofegante. — Luda, prepare um banhoimediatamente.

— Sashenka — murmurou Zeitlin. — Graças a Deus conseguimos tirá-la de lá.

Ela estava ansiosa para se lavar, mas permaneceu parada, deleitando-se com o choque do pai e dos criados.

— Sim! — proclamou ela, elevando a voz. — Eu estive na prisão, eu vios túmulos que são as masmorras do tsar. Eu não sou mais a garota doSmolni que vocês pensavam que eu era!

No silêncio que se seguiu, Lala tomou as mãos de Sashenka e a levoupara o terceiro andar, que era o território de ambas. Lá em cima, cadapedaço de tapete usado, cada rachadura nas paredes, a mancha deumidade no papel rosado do quarto, os alegres quadros de pôneis ecoelhos, o verniz amarelado da pia do lavatório inglês, tudo lembrava aSashenka sua infância, passada com Lala, que decorara seu quarto demodo a criar um santuário de amor para uma filha única.

O piso do andar já cheirava a essência de pinho Pears, para banho, eSais de Epson. Lala a conduziu diretamente ao banheiro, abastecido comos melhores produtos de toucador ingleses, lindas garrafas azuis, âmbar everdes, com loções e essências. A pesada barra de sabonete Pears,negra, rachada e querida, aguardava em uma prateleira de madeira.

— O que vamos comer hoje? — perguntou Sashenka.— O mesmo de sempre — respondeu Lala. Embora já se considerasse

adulta, Sashenka não ofereceu resistência, enquanto Lala a despiu eentregou a Luda suas roupas fedorentas.

— Queime isso, por favor, menina — disse Lala.Sashenka adorava a sensação do tapete macio sob seus pés e as

essências vaporizadas que espiralavam ao redor dela. Olhou sua nudez noespelho embaçado e estremeceu com a visão de um corpo que preferianão ver. Lala a ajudou a entrar no banho. A água estava tão quente e abanheira era tão funda (inglesa, mais uma vez, importada da Bond Street)que ela imediatamente fechou os olhos e se recostou.

— Querida Sashenka, sei que você está cansada — disse Lala —, mas

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me diga, o que aconteceu? Você está bem? Fiquei tão preocupada... —E irrompeu em lágrimas, grandes gotas que se escoavam por seu rostolargo.

Sashenka sentou-se e beijou as lágrimas.— Não se preocupe, Lala. Eu estou bem... — Mas enquanto se

acomodava no banho, sua mente recapitulava a derradeira conversa quetivera com Mendel, nas últimas férias...

Era um soomerki, a linda palavra para crepúsculo de verão. Um papa-figo cantava na floresta de pinheiros. De resto, tudo estava silencioso soba luz lilás.

Sashenka estava deitada na rede, atrás da casa em Zemblichino,balançando-se suavemente e lendo a poesia de Maiakovski, quando osonolento vaivém foi interrompido. Mendel estava segurando a rede.

— Você está pronta — disse ele, tragando um cigarro. — Quandovoltarmos à cidade, você vai assumir alguns círculos operários, para lhesensinar o que sabe. Depois, vai se juntar ao partido.

— Não é por ser sua sobrinha?— Família e sentimentos não significam nada para mim — respondeu

ele. — O que são essas coisas, comparadas ao curso da história?— Mas e mamãe e papai?— O que têm eles? Seu pai é o arquiexplorador e sanguessuga da

classe trabalhadora; e minha irmã — sim, minha própria irmã — é umagrande burguesa degenerada. São inimigos da ciência da história. Sãoirrelevantes. Entenda que você está livre deles para sempre.

Entregou a ela um panfleto com o mesmo título do primeiro livro quelhe emprestara semanas antes: “O Que se Deve Fazer? PerguntasImportantes de Nosso Partido”, de Lenin.

— Leia isso. Você vai ver que ser um bolchevique é como ser umcavaleiro de uma ordem militar-religiosa secreta, um cavaleiro do santograal.

De fato, nas semanas que se seguiram, ela sentiu a alegria de seruma profissional austera e impiedosa, na vanguarda secreta de Lenin.

Quando retornou à cidade, começou a fazer preleções para osgrupos de operários. Encontrava-se com trabalhadores comuns nascolossais fábricas de armas de Petrogrado — homens, mulheres, e até

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crianças, imbuídos de uma decência que ela nunca vira antes. Eramescravos em fábricas perigosas; viviam em dormitórios sujos e malventilados, sem roupa de cama, banheiros ou lavatórios, sem luz nem ar,como ratos em um inferno subterrâneo. Encontrava-se com os operáriosque fabricavam os rifles e morteiros que tornavam seu pai um homemrico. Diariamente, trabalhava com os mais ardentes e dedicados membrosdo partido, que arriscavam suas vidas pela Revolução. O mundoclandestino dos comitês, códigos, conspiração e camaradas a intoxicou —e como poderia ser diferente? Era o drama da história!

Nos horários em que deveria estar nas aulas de dança, ou na casa dacondessa Loris, brincando com sua amiga Fanny, ela começou a atuarcomo correio de Mendel. No início, transportava panfletos e peçassobressalentes para impressoras; depois passou a transportar “maçãs” —granadas —, “macarrões” — munição — e “buldogues” — pistolas.Enquanto Fanny Loris e as colegas da escola escreviam cartasperfumadas, em caligrafia arredondada e juvenil, para jovens tenentesdos Guardas, as cartas de amor de Sashenka eram bilhetes com ordenscodificadas do Camarada Fornalha, um dos codinomes de Mendel; e suaspolcas eram viagens de bonde, ou no trenó de seu pai, transportandocargas secretas na roupa íntima, ou na capa sluba com colarinho de pele.

— Você é o correio perfeito — disse Mendel —, pois quem vairevistar uma garota do Smolni, vestindo uma estola de raposa da neve eviajando no trenó ornamentado de um sanguessuga?

— Sashenka! — Lala a sacudiu gentilmente. — É hora do almoço.Depois você pode dormir a tarde inteira. Estão esperando por você.

Enquanto Lala esfregava suas costas, Sashenka pensou nointerrogatório de Sagan, nos sussurros de Natacha, a mulher de Mendel,e em seus próprios planos e ideais. Percebeu que estava mais forte emais velha que no dia anterior.

16

Cinco minutos mais tarde, Sashenka estava à porta da sala de estar.

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— Entre — disse seu pai, enquanto aquecia as costas diante dalareira, fumando um charuto. Da parede atrás dele, pendia uma pinturade algum velho mestre, em uma enorme moldura dourada,representando a fundação de Roma.

Ela ficou surpresa ao ver a sala cheia de gente. Na tradição russa, umnobre recebia visitas todos os dias, na hora do almoço, e Zeitlin gostavado papel de nobre. Mas ela achava que, no dia em que saíra da prisão,seus pais cancelariam a comédia. Olhou em volta e sentiu vontade dechorar. Lembrou-se de um dia em que era ainda uma menininha. Seuspais davam um banquete para o ministro da Guerra, um grão-duque evários notáveis. Naquela noite, ela ansiava pela atenção dos pais, mas,quando desceu, seu pai estava no escritório — “Eu pedi para não serinterrompido, você poderia levá-la para fora, por favor?” — e sua mãe, emum vestido de veludo enfeitado de contas e folhas douradas, organizavaa arrumação da casa — “Por favor, leve-a para cima!”. Enquanto saía,Sashenka pegou um copo de cristal, às escondidas. Quando, no terceiroandar, ouviu a agitação que cercava a chegada do primo do imperador,jogou o copo por sobre o corrimão e ficou olhando, enquanto o vidro seespatifava nas lajes abaixo. Na balbúrdia que se seguiu, sua mãe lhe deuum tapa, embora seu pai tivesse banido os castigos. Uma vez mais,encontrou em Lala sua única fonte de conforto.

Sashenka reconheceu a inevitável Missy Loris (em um vestido debrocado cor de marfim, orlado com pele de zibelina) conversando com omarido, o simiesco mas benevolente conde. Enquanto estendia o copopara outro conhaque, Gideon falava com o advogado Flek, cuja barrigaproeminente se espremia contra a mesa redonda.

Havia também um banqueiro inglês — um amigo de Ariadna e deAvigdor, o irmão de Mendel que partira em 1903, para fazer fortuna emLondres. Além dele, dois membros da Duma Imperial, alguns dos parceirosde pôquer de Zeitlin, um general enfeitado e com ombreiras, um coronelfrancês e o sr. Putilov, o fabricante de armas. Sashenka sorriu-lhesatisfeita, pois passara muitas horas ensinando aos operários como destruirsua empresa sanguessuga.

— Você gostaria de uma taça de champanhe, Sashenka? — ofereceuseu pai.

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— Um licor de limão — respondeu ela.Leonid trouxe a bebida.— O que há para o almoço? — perguntou ela ao mordomo.— O prato favorito do barão, mademoiselle Sashenka: sopa de carne

com legumes e torradas, blinis e caviar. Costeletas de vitelo cozidas em

creme azedo, com Yorkshire pudding2 e geleia kissyel de mirtilos. Omesmo de sempre.

Mas tudo mudara, pensou Sashenka. Eles não conseguiam ver isso?— Antes, uma conversa rápida em meu escritório — disse seu pai.Vou ser testada, concluiu Sashenka, e depois terei que conversar

com esse bando de manequins de loja.Foram para o escritório. Sashenka lembrou-se de como, quando sua

mãe estava fora, seu pai a deixava se encolher no espaço sob aescrivaninha, enquanto trabalhava. Ela adorava ficar perto dele.

— Posso escutar? — Era Gideon, que se atirou no sofá, onde serecostou, saboreando o conhaque.

Sashenka alegrou-se por ele estar lá; poderia ajudar a neutralizar suamãe, que se sentou em frente dela, na cadeira de seu pai.

— Leonid, feche a porta. Obrigado — disse Zeitlin, apoiando-se naCadeira Trotadora. — Sente-se. — Sashenka sentou-se. — Estamosfelizes por você estar de volta, querida, mas você nos deu um sustoenorme. Não foi fácil t irar você de lá. Você deveria agradecer a Flek.

Sashenka disse que o faria.— Na verdade, você já deveria estar a caminho da Sibéria. A má

notícia é que você não vai voltar ao Smolni...Não é o fim do mundo, pensou Sashenka, aquele instituto para

imbecis!— ... mas nós arranjaremos professores. Bem, você nos mostrou sua

independência. Leu seu Marx e Plekhanov. E escapou por pouco.Também já fui jovem...

— Já? — perguntou Ariadna, azedamente.— Não que eu me lembre — brincou Gideon.— Bem, talvez vocês tenham razão, mas fui a encontros de narodniks

e socialistas em Odessa... quando era bem jovem. Mas isso é muito sério,Sashenka. É preciso acabar com essa vadiagem na companhia de niilistas

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perigosos. — Ele foi até ela e beijou-a no alto da cabeça. — Estou muitofeliz por você estar em casa.

— Estou muito feliz por estar aqui, papai.Ela lhe deu a mão, que ele apertou. Sashenka sabia que aquela cena

de amor com o pai iria provocar a mãe. Ariadna pigarreou.— Bem, você me parece incólume. Já nos aborreceu bastante tempo

com suas opiniões sobre “trabalhadores” e “exploradores”, e agora noscausou um monte de problemas. Eu mesma tive que conversar sobreesse assunto com o conselheiro Grigori.

Sashenka sentiu uma fúria se erguer dentro dela. Queria gritar quese sentia envergonhada pelo fato de que uma criatura como Rasputinestivesse dirigindo a Rússia; envergonhada de que sua própria mãe —cujos casos amorosos com trapaceiros e entusiasmo por charlatães aembaraçavam há muito tempo — estivesse agora se associando ao MongeLouco. Mas, em vez disso, não pôde deixar de responder como apetulante colegial que ainda era. Procurando um alvo, visou o vestidoescolhido por sua mãe.

— Mamãe, eu detesto roupas de marinheiro e esta é a última vezque vou usar uma.

— Bravo! — disse Gideon. — Um corpo como o seu fica desperdiçadoem...

— Chega, Gideon. Por favor, deixe-nos a sós — disse Ariadna.Gideon se levantou para ir embora, piscando para Sashenka.— Você vai usar o que eu lhe disser — disse sua mãe, em seu

ondulante vestido de crepe, com babados de renda. — Você vai usarroupas de marinheiro enquanto se comportar como uma criançairresponsável.

— Chega, vocês duas — disse Zeitlin mansamente. — Sua mãe vai,sim, decidir o que você vai usar.

— Obrigada, Samuil.— Mas eu lhe proponho um trato, querida. Se você prometer nunca

mais se meter com niilismo, anarquismo e marxismo, e nunca maisconversar sobre polít ica com Mendel, sua mãe vai levar você para comprarroupas de adulta na Chernitchev’s, por minha conta. Vai levar você parafazer o cabelo no Monsieur Troye’s, como ela faz. Você e sua mãe podem

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usar os serviços de Pantameilion e dar recepções em casa. E você nuncamais terá que vestir roupas de marinheiro.

Zeitlin abriu as mãos, pensou Sashenka, como se tivesse cortado onó górdio, ou solucionado os mistérios do oráculo de Delfos. Ela nãoqueria vestidos da Chernitchev’s e, certamente, não precisava deles nolugar para onde iria. Seu querido e tolo pai queria muito que ela mudassede vida e escrevesse cartas de amor para condes e oficiais com cérebrosde ervilha. Mas ela já tinha o que queria: uma blusa comum, de gola alta,uma saia decente, meias de lã e sapatos bons para caminhadas.

— De acordo, Ariadna?Ariadna assentiu e acendeu um cigarro Mogul. Então, voltaram-se

ambos para Sashenka.— Sashenka, olhe dentro de meus olhos e jure solenemente que vai

cumprir o trato.Sashenka perscrutou os olhos azuis do pai e depois olhou de relance

para a mãe.— Obrigada, papai. Prometo que nunca mais falarei de polít ica com

Mendel e que nunca mais vou me meter com o niilismo.Zeitlin puxou uma corda de brocado.— Sim, barão — respondeu Leonid, abrindo a porta. — O almoço

está servido.

17

Um homem baixo, de pincenê, vestindo um casaco de pele de carneirogrande demais para ele, e um boné de couro com protetores de orelhas,mantinha-se plantado na Nevski Prospect, observando o bonde que vinhaem sua direção. Estava escuro e uma nevasca terrível chicoteava seurosto, já vermelho e fustigado. O enorme edifício do Estado-Maior erguia-se à sua esquerda.

Mendel Barmakid olhou para trás. O shpik — o agente da políciasecreta — permanecia lá, um homem de bigodes, com porte militar, queusava um casaco verde e tentava se manter aquecido. Os agentes

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costumavam trabalhar aos pares, mas ele não conseguiu avistar o outro.Mendel estava em frente às janelas iluminadas da Chernitchev’s, uma daslojas de roupas menos dispendiosas frequentadas por sua irmã. Em umavitrine cujos manequins exibiam o veludo e o tule daquela estação, viuseu próprio reflexo: um anão de pé torto, lábios grossos e uma barba nofinal do queixo. Não era uma visão atraente, mas ele não tinha tempopara indulgências sentimentais. A Nevski estava quase vazia. Atemperatura caía — chegara a -20˚C — e os agentes o tinhamencontrado novamente, quando o Comitê de Petrogrado se reuniu noapartamento secreto, em Viborg. Havia apenas dez dias que escapara doexílio. Aqueles idiotas da polícia deviam estar debatendo se o prendiam denovo ou se deixavam que ele os conduzisse a outros camaradas.

O bonde parou com um barulho de sinos e uma chuva de fagulhasnos cabos acima. Uma mulher saltou. O agente batia as luvas; seu brincocossaco refletia a luz de um poste.

O bonde afastou-se, rangendo. Subitamente, Mendel correu emdireção a ele, mancando com sua perna defeituosa. Seu corpo secontorcia como uma parábola humana, mas ele corria rápido para umaleijado. O bonde estava em movimento. Era difícil correr na neve.Mesmo sem olhar para trás, Mendel sabia que o jovem e bemcondicionado agente o estava perseguindo. Conseguiu segurar obalaústre. O condutor gritou:

— Corra, velho! — e segurou seu outro braço, puxando-o para cima.Suando dentro do casaco, Mendel olhou para trás: o agente estava

correndo — mas não conseguiria alcançar o bonde. Mendel o saudou,nobremente, tocando a aba do boné.

Viajou por duas paradas e saltou em frente ao rosado PalácioStroganov, verificando a retaguarda. Não havia ninguém — embora elessempre o encontrassem de novo. Passou pelas colunatas da Catedral deKazan, onde às vezes se encontrava com camaradas que fugiram doexílio. A neve golpeava os lampiões alaranjados e ele tinha que ficaresfregando as lentes do pincenê. Viu as lojas das classes sanguessugas —a Passaj, com seus alfaiates e joalheiros franceses; o Empório Ieliseiev,obscenamente entulhado de presuntos, esturjões, bolos, ostras,mexilhões, chás e bolos de frutas da Fortnum & Mason; os labirintos da

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Gostini Dvor, com seus barbudos mercadores indianos, de túnica, quevendiam ícones antigos e samovares.

Mendel ouviu o bater de cascos de cavalos — eram dois gendarmesem patrulha. Mas conversavam, em voz alta, sobre uma prostituta emKaluga, e não o viram. Ele esperou em frente às janelas do Ieliseiev atéque desaparecessem. Um Rolls-Royce passou; um Delaunay vinha deoutra direção: seria Zeitlin?

Ele alcançou o Hotel Europa, onde os porteiros usavam sobretudos echapéus altos. O saguão e o restaurante do hotel eram os metrosquadrados mais espionados de toda a Europa — e por isso ele se sentiuseguro. Ninguém poderia esperar que um exilado fugitivo fosse para lá.Mas seu casaco estava roto e remendado, enquanto as pessoas quefrequentavam o local vestiam zibelinas, sobrecasacas e uniformes dosGuardas. O porteiro, que era agente da polícia, já estava olhando paraele.

Mendel ouviu o assovio seco de um trenó. Mancou até um portalpara observá-lo, procurando por sinais dos shpiki e dos fileri, agentesexternos. Mas o trenó parecia um táxi, dirigido por um cocheiroencurvado.

Mendel fez sinal e subiu.— Para onde, senhor?— Para o Palácio Taurida.— Meio rublo.— Vinte copeques.— O preço da aveia subiu de novo. Mal posso alimentar o cavalo com

isso...Aveia e mais aveia, pensou Mendel. Os preços estavam subindo, a

guerra era desastrosa. Mas quanto pior, melhor: este era seu lema. Ococheiro, concluiu Mendel, era um pequeno-burguês, sem nenhum papelno futuro. Mas, na Rússia daquela época, havia pouquíssimos proletáriosnos moldes marxistas. Nove entre dez russos eram camponesesobstinados, atrasados, gananciosos e selvagens. Lenin, com quem Mendelpartilhara salsichas e cerveja na Cracóvia, antes da guerra, refletira que, seos camponeses não aceitassem o curso da história, suas espinhas dorsaisteriam que ser quebradas.

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— Necessidade cruel — murmurara Mendel.Mendel estava pálido de exaustão e desnutrição. Era difícil dormir,

difícil comer, quando se estava em fuga — entretanto essa existência lheconvinha quase à perfeição. Não tinha família — mas crianças oaborreciam. Casamento, sim — mas com Natacha, a iacuta, outracamarada dedicada, com quem se encontrava apenas de formaesporádica. Sempre em movimento, conseguia dormir tão facilmente emum banco de parque quanto no chão ou em um divã. Lenin estava naSuíça e praticamente todo o Comitê Central — Sverdlov, Stalin, Kamenev— estava na Sibéria. Ele era quase o único veterano de 1905 emliberdade. Mas Lenin ordenara:

— Você é necessário em Piter: escape!E enviara cem rublos a Mendel, para comprar “botas” — falsos

documentos de identidade.Tudo o que importava era o partido e a causa: sou um cavaleiro do

santo graal, pensou Mendel, enquanto o trenó se aproximava do pórticoem abóbada e das esplêndidas colunatas dóricas do Palácio Taurida, ondeos paspalhões burgueses do parlamento inoperante — a Duma Imperial —organizavam então seus absurdos debates. Mas antes que o trenóchegasse lá, Mendel inclinou-se e bateu no ombro do cocheiro.

— Aqui! — Mendel colocou alguns copeques na luva do cocheiro esaltou. Carros estavam parados em frente à Duma, com os motoresligados, mas Mendel não se aproximou do palácio. Em vez disso, coxeouaté o pavilhão anexo ao quartel do Regimento dos Guardas Montados.Uma velha limusine Adler, com o brasão de um grão-duque,transportando um oficial dos Guardas e um lacaio de libré, parou e tocoua buzina.

A sentinela, ao mesmo tempo se curvando, abotoando as calças esegurando o chapéu, saiu para abrir os portões do quartel. Mendel olhouem volta e bateu na porta empoeirada do pavilhão.

A porta se abriu. Um porteiro de rosto vermelho, em uma bata decamponês e ceroulas amarelas, deixou-o entrar em um aposentopequeno e sombrio, com um fogão, um samovar e uma atmosferarançosa, que cheirava a homens adormecidos e vegetais fervidos.

— Você? — disse Igor Verezin. — Pensei que estava em Kamchatka.

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— Na região de Ieniseisk. Eu saí. — Mendel reparou que o porteirotinha uma cabeça calva e pontuda, da cor de uma bala incandescente. —Estou morrendo de fome, Verezin.

— Sopa shchi, pão preto Borodinski e uma salsicha. O samovar estáfervendo, camarada.

— Alguma mensagem para mim?— Sim, alguém enfiou o jornal pela porta mais cedo.— Alguém virá esta noite.Verezin deu de ombros.— Onde está o jornal? Deixe-me ver. Bom. — Mendel tirou o casaco,

verificou a janela de trás e a da frente. — Posso dormir?— Fique à vontade, camarada. O sofá é seu; mas posso lhe fazer

companhia daqui a pouco. — Não havia nenhuma cama no quartinhoescuro; os porteiros se revezavam dormindo no divã. — Como vocêescapou?

Mas Mendel, ainda de chapéu, botas e pincenê, já estava estirado nosofá.

Alguém arranhou a porta. O porteiro se deparou com uma adolescenteusando um lustroso casaco de pele — sem dúvida zibelina — e uma estolade raposa branca. Hesitantemente, ela entrou no aposento. Era esbelta,com uma boca larga e olhos cinzentos, extremamente claros.

— Estou com sorte hoje! — brincou Verezin. — Desculpe minhascalças!

Ela lhe lançou um olhar intimidador.— Baramian? — perguntou ela.— Entre, augusta senhorita — brincou Verezin, curvando-se como

um lacaio da corte. — Com esse casaco, você deveria entrar pelo portãoprincipal, junto com marechais de campo e príncipes.

Mendel se levantou, bocejando.— Ah, é você — disse ele, ciente de que sua voz, profunda e sonora

como uma trombeta de Jericó, era o traço mais impressionante quetinha. — Ele se virou para Verezin. — Você poderia dar uma volta? Podeser em torno do quarteirão.

— O quê? Com esse tempo? Você deve estar brincando. — Mas

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Mendel, que nunca brincava, a não ser sobre enforcamentos, olhousignificativamente para o fogão, atrás do qual estava o seu “buldogue” —um revólver Mauser —, embrulhado em um pano. Rapidamente, Verezinmudou de ideia. — Vou comprar um pouco de peixe salgado.

Vestindo um sobretudo, precipitou-se para fora.Depois que o porteiro saiu, Sashenka sentou-se à mesa de vime, ao

lado do fogão.— Você não confia nele? — Ela ofereceu a Mendel um de seus

perfumados cigarros Crocodilo, de pontas douradas.— Ele é um zelador. — Mendel acendeu o cigarro. — A maioria dos

porteiros é informante da Okhrana, mas, quando simpatizam conosco,seus prédios são nossos esconderijos mais seguros. Enquanto ele nãomudar de lado, ninguém vai procurar um bolchevique no quartel-generaldos Guardas Montados. Ele é simpatizante e um dia pode se juntar aopartido. — Soprou uma nuvem de fumaça. — A casa do seu pai está sobvigilância. Estão procurando por mim. Como você saiu?

— Esperei que todo mundo estivesse dormindo. De qualquer forma,mamãe sai todas as noites. Então segui o Caminho Negro, fui até o pátioe escapuli pela garagem. Bondes, portas dos fundos, lojas com duasentradas, casas com pátios. Eles nunca esperam ser tapeados por umagarota com um casaco de zibelina e botas de pelica. Você me treinoubem. Eu aprendi os códigos. Estou ficando boa nisso. Como um fantasma.E sou rápida como uma cabra das montanhas.

Mendel teve uma sensação estranha e percebeu que estava feliz emvê-la. Ela era cheia de vida. Mas não lhe deu o abraço que queria lhe dar.A menina já era mimada o suficiente.

— Não fique confiante demais — disse asperamente. — CamaradaRaposa, você entregou a mensagem no esconderijo?

— Sim.— Recolheu os panfletos na gráfica?— Sim.— Onde estão eles agora?— No apartamento do bairro de Petrogrado. Rua Chirokaia.— Amanhã eles têm que estar nas mãos dos camaradas da Fábrica

Putilov.

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— Vou fazer isso. Os arranjos habituais?Mendel assentiu.— Você está indo bem, camarada.Ela parecia muito jovem quando sorria. À luz fraca do lampião,

naquele pequeno quartinho, Mendel notou o pequeno grupo de sardasque ela tinha de cada lado do nariz. Pelas rápidas respostas dela, sabiaque ela queria lhe contar alguma coisa. Decidiu fazê-la esperar.

A vivacidade de Sashenka fazia com que se sentisse um velho,cônscio de sua pele cor de mingau, salpicada de veias rompidas, de suasmechas de cabelos cinzentos, oleosos, e das dores da artrite. Eram oresultado do exílio e da prisão.

— Camarada — disse ela. — Não tenho como lhe agradecer seusensinamentos. Agora tudo faz sentido. Nunca pensei que as palavras“camarada” e “comitê” iriam me empolgar tanto, mas é o que elas fazem.Realmente fazem isso.

— Não tagarele muito — disse ele, severamente. — E tome cuidadocom os camaradas. Eles conhecem suas origens e vão procurar sinais defilistinismo burguês. Troque a zibelina. Use um casaco de astracã.

— Está bem. Sinto que sou uma engrenagem em um mundosecreto, no movimento universal da história.

— Todos nós somos, mas em Piter, no momento, você é maisimportante do que imagina. Somos pouquíssimos camaradas — disseMendel, tragando o cigarro, semicerrando os olhos congestionados. —Continue a ler, menina. Nunca se lê o suficiente. Autoaperfeiçoamento éo estilo bolchevique.

— A escassez de alimentos está ficando pior. Você viu as filas? Todomundo está resmungando; desde os capitalistas que vêm almoçar compapai até os camaradas nas fábricas. Você não acha que alguma coisa vaiacontecer agora?

Mendel abanou a cabeça.— Um dia, talvez, mas não agora. A Rússia ainda não tem um

verdadeiro proletariado. Sem isso, a revolução não é possível. Não tenhonem certeza se vai acontecer durante nossas vidas. Como pular osestágios do desenvolvimento marxista? Não vai acontecer, Sashenka. Éimpossível.

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— Claro. Mas com certeza...— Mesmo Lenin não tem certeza se vai viver para ver isso.— Você recebe cartas dele?Mendel confirmou com a cabeça.— Nós já falamos com ele sobre a garota do Smolni, chamada

Raposa. Como está a família?Ela tomou fôlego. É agora, pensou ele.— Camarada Mendel — disse ela. — Eu fui presa ontem e passei a

noite na Kresti.Mendel mancou até o fogão. Pegando uma colher engordurada,

inclinou-se sobre a sopa shchi e bebeu um pouco, ruidosamente. Dealguma forma, o cigarro permanecia pendurado no canto de sua boca.

— Minha primeira prisão, tio Mendel.Ele se lembrou de sua primeira prisão, vinte anos atrás, a chocada

reação de seu pai, o grande Rabino de Turbin, e seu próprio orgulho comaquele distintivo de honra.

— Parabéns — disse a Sashenka. — Você está se tornando umaverdadeira revolucionária. As camaradas da cela cuidaram de você?

— A camarada Natacha cuidou de mim. Eu não sabia que você eracasado.

Às vezes Sashenka se comportava como autêntica aluna do Smolni.— Eu sou casado com o partido. Camaradas são presos todos os dias

e poucos são libertados no dia seguinte.— Há mais uma coisa.— Vá em frente — disse ele, apoiando-se no fogão, um velho truque

dos exilados para aliviar a dor provocada pelo inverno ártico. Com o cigarroainda pendurado na boca, milagrosamente, mordeu um pedaço desalsicha.

— Fui interrogada durante muitas horas pelo capitão gendarme PeterSagan.

— Sagan, é? — Mendel sabia que Sagan era o oficial da Okhranaencarregado de acabar com o partido. Voltou para a mesa, arrastando apesada bota. Ao sentar-se, fez a mesa ranger. Então se concentrou,observando o rosto dela. — Acho que já ouvi esse nome. O que tem ele?

— Ele estava tentando me influenciar. Mas, tio Mendel — disse ela,

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juntando-se a ele à mesa e segurando seu braço, aluna do Smolni maisuma vez —, ele se orgulha de sua humanidade. É uma espécie deburguês liberal. Sei que sou uma novata, mas eu só queria informar você,e o Comitê de Petrogrado, de que ele parece ser meu amigo. Claro queo encorajei. No final, ele disse que gostaria de se encontrar comigonovamente, para continuar a conversa...

— Sobre o quê?— Poesia. Por que está sorrindo, tio Mendel?— Você agiu bem, camarada — disse Mendel, analisando esse último

desdobramento.Sagan, um nobre sem dinheiro, era um policial esperto e ambicioso,

que se especializara em fazer revolucionárias mudarem de lado. Maspoderia muito bem simpatizar com a esquerda, pois a polícia secreta sabia,melhor que ninguém, como o regime estava podre. Poderia ser um sinal,um truque, uma sedução, uma traição — ou talvez fosse apenas umpolicial com pretensões intelectuais. Aquilo poderia ter centenas dedesdobramentos e Sashenka não entendia nenhum deles, pensou ele.

— E se ele realmente se aproximar de mim? — perguntou ela.— O que você acha? — respondeu Mendel.— Se ele me abordar na rua, vou xingá-lo e dizer a ele para nunca

mais falar comigo. É isso que você quer que eu faça?Fez-se silêncio, exceto pela vibração da lâmpada de querosene.

Mendel a encarou intensamente, como um padre durante um exorcismo.A criança que conhecia desde que ela nascera era uma criaturainacabada, mas muito atraente, refletiu, presumindo que Sagan queriatransformá-la em agente dupla, para chegar ao próprio Mendel. Mas haviadois modos de se jogar esse jogo, e ele não poderia perder aoportunidade de destruir Sagan, a qualquer custo.

— Você está errada — disse ele lentamente.— Se o comitê quiser — disse ela —, posso matá-lo com a Browning

de papai, fica na mesa dele, ou com a Mauser que fica atrás da estante,no esconderijo da Chirokaia. Deixe-me fazer isso!

— No final, vamos colocar todos contra o paredão — disse Mendel. —Agora me escute. Pode ser que você nem ouça mais falar de Sagan. Mas,se ele aparecer, fale com ele, alimente a conversa. Ele pode ser útil ao

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partido e a mim.— E se ele tentar me recrutar?— Ele vai fazer isso. Deixe ele pensar que é possível.— E se algum camarada me vir com ele? — disse ela ansiosamente.— O Gabinete Central do Comitê vai ser informado a respeito dessa

operação. Três de nós — uma tróica —, somente eu e mais dois outros.Você está com medo?

Sashenka abanou a cabeça. Seus olhos quase brilhavam no escuro.Ele pôde perceber que ela estava amedrontada e excitada por ter umamissão como aquela.

— Mas eu posso ser morta pelos próprios camaradas, como traidora?— Nós dois corremos perigo, o tempo todo — respondeu ele. — No

momento em que você se tornou bolchevique, sua vida normal terminou.Você sempre vai andar sobre brasas. É como estar em um trenó emdisparada, você não consegue mais saltar. Corte a madeira e as lascasvoam. Você e eu estamos em uma guerra secreta, o Jogo Supremo. Opartido contra a Okhrana. Faça o que eu lhe disser, nada mais, e merelate cada passo. Você conhece os códigos e os locais onde deixar asmensagens? Fique vigilante. A vigilância é uma virtude bolchevique. Vocêse tornou um trunfo para o partido mais rapidamente do que eu poderiaprever. Entendeu?

Mendel tomou cuidado para moderar o tom de voz. Esperava ter sidoconvincente. Estendeu a mão, que ela apertou. A mão dela era sedosa edelicada como um passarinho, cujos ossos podem ser quebrados comfacilidade.

— Boa noite, camarada.Sashenka levantou-se e colocou o casaco, a estola, as botas, a

chapka, e envolveu a cabeça com o xale. Na porta, virou-se para ele,pálida e séria.

— Eu detestaria que você me protegesse só porque sou suaparente.

— Eu jamais faria isso, camarada.

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18

— Está vendo aquela potranca? — disse o velho cocheiro, que vestia umcasaco de pele de carneiro e tinha bochechas vermelhas como bife cru.

— Ela de novo. Será que está se recuperando de alguma decepçãoamorosa?

— Será que trabalha, ou será que está planejando assaltar umbanco?

— Quem sabe ela reservou um quarto no hotel?— Será que está procurando um amante competente? Eu, por

exemplo!— Ei, menina, tome uma vodca com a gente!No meio da praça de Santo Isaac, não muito longe da avenida

Marítima, entre o Palácio Mariinski e a catedral, erguia-se uma frágil cabanade madeira, coberta de encerado e pintada de preto, que parecia umacarruagem gigante, com a capota levantada. Ali, no obscuro reino dorepolho cozido e dos suores de inverno, os cocheiros das carruagens-táxis— os izvochtikis — vinham beber e comer nas primeiras horas da manhã.

Sashenka estava sentada sozinha. Havia tirado o grosseiro casaco deastracã e o boné de couro, que pousara ao seu lado, e colocara algunscopeques em um barulhento realejo automático. O aparelho começou atocar Yankee Doodle; depois, algumas valsas de Strauss e Yankee Doodlenovamente. Acendendo um cigarro, ela olhou pela janela, para o Rolls-Royce em frente ao Hotel Astória e para os cavalos, que esperavampacientemente, batendo com os cascos no gelo, bafejos e relinchos secondensando no frio.

Haviam se passado dois dias desde seu encontro com Mendel. Àsonze daquela noite, Lala estivera em seu quarto.

— Apague as luzes, querida — disse ela. — Você parece cansada. —Sentou-se na cama de Sashenka e a beijou na testa, como sempre. —Você vai prejudicar seus olhos lendo tanto. O que está lendo?

— Ah, Lala... um dia eu conto para você — disse Sashenka,acomodando-se para dormir, ansiosa para que a governanta nãodescobrisse que, debaixo das cobertas, ela estava vestida e pronta parasair.

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Ao perceber que Lala dormia, arrastou-se para fora e tomou umbonde, depois um izvochtik, para as fábricas do bairro de Petrogrado.Passou quatro horas no círculo operário da Fábrica Putilov. Depois,acompanhada por um jovem intelectual, um garoto do Gymnasium, ealguns torneiros-mecânicos, entregou peças sobressalentes para aimpressora, no novo esconderijo de Viborg.

Tinha uma hora ociosa. Caminhou então pelo cais e ao longo doMoika, passando por sua pontezinha favorita, a Ponte dos Beijos, e peloPalácio Iusupov, de cor ocre. Mais que qualquer outro prédio,representava a iníqua riqueza de uns poucos. Finalmente, entrou nacabana dos cocheiros, que, embora perto de casa, estava em outradimensão.

Pediu uma ukha — sopa de peixe condimentada —, queijo de cabra,pão preto Borodinski e um pouco de chá. Ficou escutando a tagarelicedos homens. Quando se referiam a ela como um pitéu, ou potranca, elanão entendia bem o que queriam dizer. Via seu reflexo na pequena janelae, como sempre, sentia-se insatisfeita. Preferia a imagem que tinha dolado de fora, na neve, enterrada em seu casaco de gola alta, estola echapka.

Renuncie à vaidade, disse a si mesma. Sua aparência não lheinteressava. Como seu tio Mendel, ela vivia para a Revolução. Para ondequer que olhasse, enxergava apenas os que iriam se beneficiar com a belamarcha da dialética.

Molhou na mostarda o pão e o queijo; quando a ardência percorreuseus canais olfativos, começou a salivar. Mordiscou um cubo de açúcar epensou que estava mais feliz naquele momento do que em toda a suavida.

Quando era criança, seus pais a levaram a Turbin, para visitar a corterabínica de seu avô, Abram Barmakid, o rabino santo, com seusajudantes, discípulos, estudantes e parasitas. Ela era muito jovem e seupai ainda não se tornara tão importante. Viviam em Varsóvia, que estavarepleta de judeus hassídicos. Mas nada tinha preparado Sashenka para oreino medieval de Abram Barmakid. O honesto fanatismo, a rígida alegria,o gutural iídiche, os homens com longas madeixas, xales franjados ecasacos de gabardina, as mulheres de peruca — tudo aquilo a assustava.

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Já então, temia os feitiços e as superstições medievais.Mas agora pensava que o mundo de seus avós, com seus Golems e

maus-olhados, não era pior que o mundo de seu pai, de adoração pelodinheiro. Desde a infância, ficava chocada com as injustiças quepresenciava em Zemblichino, nas vastas propriedades que possuíam noDnieper. O luxo e a devassidão que permeavam o casamento fracassadode seus pais pareciam-lhe o epítome da podridão da Rússia e do mundocapitalista.

Mendel a tinha resgatado de toda essa maldade, e mudara sua vida.Se você amar, então ame com entusiasmo; se ameaçar, ameace paravaler, escrevera o poeta Alexei Tolstoi. Isso era ela: “Tudo ou nada!” Elase regozijava com a deliciosa, quase amorosa sensação de ser parte deum segredo, de uma grande conspiração. Havia algo de sedutor nosacrifício da velha moralidade das classes médias, em prol da novamoralidade da Revolução. Era como estar sentada neste café: a própriafalta de romantismo da situação era o que a tornava tão romântica.

Olhou seu relógio. 16h45. Hora de ir. Recolocou o casaco e ochapéu, e atirou na mesa algumas moedas. Os cocheiros observavam,acenando-lhe com a cabeça. Na rua, carreteiros entregavam engradadosde leite e a carrocinha da padaria era carregada com pão fresco. Carroçastransportavam sacos de carvão. Porteiros limpavam degraus. Piteracordava.

O ar gélido era tão revigorante, depois do almíscar da pequenacabana, que ela o inalou até que queimasse seus pulmões. Como elaamava Piter, com seu clima peculiar: quase ártico em seu inverno de umnegrume pastoso; claro como o Paraíso antes da Queda, no verão,quando jamais ficava escuro. Suas esplêndidas fachadas, branco-azuladase ocre, eram magnificamente imperiais. Mas, por trás delas, estavam asfábricas, os bondes elétricos, a fumaça amarelada e os apinhadosdormitórios dos operários. A beleza que a cercava era uma mentira. Averdade poderia parecer feia, mas também tinha sua beleza. Era o futuro!

Atravessou a praça de Santo Isaac. Mesmo no inverno, era possívelperceber a aproximação da alvorada, pois o domo dourado começava abrilhar sombriamente, antes que a claridade aparecesse no horizonte. NoAstória, uma festa estava em andamento — ela ouvia a banda e

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conseguia divisar, na obscuridade, os diamantes das mulheres e oscharutos dos homens. O Iate Clube ainda estava aberto; troicas elimusines, em frente, esperavam por cortesãos e financistas.

Ela se encaminhou para a avenida Marítima. Ouviu o ronco de umcarro e se escondeu em um portal, como o fantasma que descrevera aMendel.

O Delaunay parou em frente à sua casa. Pantameilion, com suasbotas reluzentes, abriu a porta do carro. Sua mãe saltou. Primeiramentesurgiu um pé, calçado com botas da mais fina pelica. Depois, um vislumbrede meias de seda, seguido pelo vestido de cetim, onde tremeluziamlantejoulas.

Mãos brancas, repletas de anéis, se apoiaram na porta do carro.Sashenka sentiu-se amargurada. Ali estava ela, voltando para casa, depoisde servir à classe operária. Em perfeita simetria, lá estava sua mãe, depoisde atender aos desejos de algum sujeito corrupto, que não era o seu pai.

Ela não sabia, exatamente, o que os amantes faziam, emborasoubesse que era algo parecido com o que os cachorros faziam napropriedade de seu pai — o que a deixava nauseada, embora excitada.Observou sua mãe sair do interior do carro, cambaleante. Pantameilioncorreu para segurar a mão dela.

Sashenka sentiu vontade de arranhar o rosto da mãe, de jogá-la aochão, que era o lugar dela, mas saiu das sombras e viu Pantameilionagachado na neve, puxando uma forma coberta de lantejoulas que secontorcia na calçada. Era sua mãe, que lutava para pôr-se de pé.

Sashenka correu até eles. Ariadna estava de quatro, com as meiasrasgadas e joelhos sangrando. Mais uma vez caiu, com uma das mãosenluvadas agarrando a neve e a outra tentando afastar a mão quePantameilion oferecia.

— Obrigada, Pantameilion — disse Sashenka. — Verifique se as portasestão abertas. E diga ao vigia para ir dormir.

— Mas, senhorita, a baronesa...— Por favor, Pantameilion, eu cuido dela.O rosto de Pantameilion refletia a angústia dos criados, quando se

defrontam com o colapso dos empregadores — detestam a balbúrdiaprovocada por uma patroa humilhada e se sentem inseguros ao ver um

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patrão prostrado. Ele fez uma mesura, arrastou-se para dentro de casa eemergiu momentos mais tarde. Subiu novamente no Delaunay, queroncava, e partiu.

Mãe e filha estavam sozinhas na rua, sob o lampião da casa.Sashenka ajoelhou-se ao lado da mãe, que estava chorando. Suas

lágrimas jorravam em filetes negros, que saíam de olhos negros de rímel ecaíam sobre uma pele branca e suja, como pegadas lamacentas em neveantiga.

Sashenka a colocou de pé, passou o braço sobre seu ombro e aarrastou pelos dois degraus, até o saguão da casa. No interior, o grandesalão estava quase escuro; apenas uma lâmpada elétrica brilhava noprimeiro andar. As lajes brancas do piso reluziam; as lajes negras eramcomo buracos que se abriam no chão. De algum modo, ela conseguiulevar sua mãe para o quarto. A luz elétrica poderia ser forte demais; ela sóacendeu as lamparinas a óleo.

Ariadna soluçava mansamente. Sashenka levantou as mãos dela e aslevou aos lábios — já esquecida da cólera de instantes atrás.

— Mamãe, mamãe, você já está em casa. Sou eu, Sashenka! Voutirar sua roupa e colocar você na cama.

Ariadna se acalmou um pouco, embora falasse coisas sem sentido,enquanto Sashenka a despia.

— Cante de novo... solidão... seus lábios são como estrelas, casas...o vinho é apenas medíocre, uma safra ruim... abrace-me de novo... tãodoente... pague isso, eu vou pagar, posso pagar por isso... Amor éDeus... estou em casa... você parece minha filha... minha filha malvada...outro copo, por favor... me beije como se deve.

Sashenka tirou as botas da mãe, o casaco de zibelina e o chapéucom penas de avestruz, desabotoou o vestido de cetim, bordado comlantejoulas, que cheirava levemente a perfume de angélica, desamarrou ocorpete, desenrolou as meias rasgadas e desprendeu os broches, o colarde pérolas e os brincos de diamantes. Quando tirou a combinação e alingerie, foi envolvida pelo odor animal — misturado a suor alcoólico — deuma mulher mundana, odor que lhe causou repulsa. Jurou que jamais sepermitiria descer tão baixo. Finalmente, aqueceu um pouco de água elavou o rosto da mãe.

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Surpresa consigo mesma, percebeu que se tornara a mãe; e suamãe, a filha. Depois de dobrar e pendurar o vestido de lantejoulas,colocou as jóias na caixa de veludo e jogou a lingerie no cesto de roupasuja. Então, ajudou a mãe a se deitar na cama, sob as cobertas, e abeijou no rosto, sentando-se ao lado dela e alisando sua testa.

— Você e eu... — disse Ariadna, enquanto adormecia, revirando-seem seus sonhos ruins.

— Durma, mamãe. Pronto, pronto. Acabou.— Querida Sashenka, você e eu...Quando Ariadna finalmente dormiu, Sashenka chorou. Eu não quero

ter filhos, disse a si mesma. Nunca!

19

Sashenka estava adormecida no boudoir de sua mãe quando a ouviuchamá-la:

— Sashenka! Vou levar você para fazer compras hoje, como seu paifalou. Para suas roupas de dia, vamos à Chernitchev’s! Se tiver sorte,pode até comprar um vestido de madame Brissac, como as pequenas grã-duquesas!

— Mas eu tenho que estudar — disse Sashenka, espreguiçando-se eentrando no quarto de Ariadna.

— Não seja boba, querida — disse sua mãe alegremente, como senada de escandaloso tivesse acontecido. — Veja como você se veste.Parece uma professora!

Ariadna estava tomando o café da manhã, servido em uma bandejaao lado da cama; o quarto cheirava a café, torradas, caviar e ovosquentes.

— Nós nos tornamos grandes amigas, não é, sladkaia — minhadoçura?

Quando Leonid terminou de servir o café e deixou o quarto, Ariadnapiscou para Sashenka, que perguntou a si mesma como sua mãeconseguira se recuperar tão completamente, sem nenhuma vergonha, da

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noite de dissipações. A boemia requer uma constituição férrea, pensou.— Não tenho certeza se vou poder ir.— Nós vamos sair às onze. Lala está preparando um banho para você.Sashenka decidiu concordar. Seus dias, de qualquer forma, eram

extremamente tediosos. Vivia para as horas de escuridão.Uma hora mais tarde, pilotando o Mercedes em dois tons de café, o

terceiro carro da família, e ostentando o que Sashenka chamava,particularmente, de “uniforme de maestro da banda”, Pantameiliondeixou-as em frente às vitrines da Chernitchev’s — o famoso ateliê decostura na esquina da avenida Marítima com a Nevski —, cujos manequinsexibiam chapéus, turbantes e vestidos de baile.

As portas do empório da moda foram abertas por funcionários desobrecasacas verdes. No interior, mulheres de luvas brancas, chapéuscomo fruteiras e vestidos apertados no tronco, plissados com barbatanasde baleia, examinavam as prateleiras. O ar estava pesado com o perfumee o odor de corpos cálidos.

Para enorme embaraço de Sashenka, Ariadna tomou conta do ladodireito da loja. Seus caprichos eram todos atendidos — com umasorridente e submissa febre de entusiasmo. No início, Sashenka achouque os funcionários, assim como ela, estavam apenas cedendo àimpetuosidade de sua mãe; mas depois percebeu que a atmosfera refletiao júbilo habitual, em todas as lojas de luxo, com a chegada de um clientecom muito dinheiro, pouco bom gosto e ainda menos inibições.

Uma mulher magricela, trajando um vestido vermelho e falando umfrancês rudimentar, presidia à festa, ladrando ordens. As assistentes eramquase excessivamente zelosas: seus sorrisos não seriam um tantoirônicos? Modelos (que gostavam demais de usar corpetes, pensouSashenka) desfilavam em vestidos que não lhe interessavam. Sua mãeapontava para um e para outro, de brocado ou de renda, com babadosou lantejoulas, e até a fez experimentar alguns. Lala, que acompanhavamãe e filha, ajudou Sashenka a vestir as roupas.

Sashenka decidira aproveitar o passeio, de modo a evitar umaaltercação com a mãe. Mas o tira e põe de roupas, o puxa daqui e dali, oolhar avaliador e os empurrões da não-francesa magricela, que enfiava etirava alfinetes dos tecidos com rapidez espantosa, começaram a

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aborrecê-la. Detestava a aparência que os vestidos lhe davam. Foi ficandonervosa e agitada.

— Estou tão feia com isso, Lala. Me recuso a usar isso! Vou queimarisso!

Sua mãe, em seu vestido de veludo e jaqueta curta, com colarinhoforrado de pele, era um cisne deslumbrante, enquanto Sashenka sesentia mais desajeitada e pesada que um javali. Não aguentava mais seolhar nos espelhos.

— Mas mademoiselle Zeitlin tem um corpo perfeito para a últimamoda — disse a modista.

— Eu quero ir para casa!— Pobre Sashenka, está cansada, não está, querida? — Outra

piscadela. — Eu não preciso comprar todos, mas você gostou de alguns,não gostou, doçura?

Sentindo-se um tanto embaraçada, Sashenka assentiu.Uma onda de alívio transpassou a equipe. Copos de tokai foram

trazidos para a baronesa Zeitlin, que jogava a cabeça para trás e ria altodemais, enquanto pagava a conta com grandes notas verdes. Asassistentes, satisfeitas, ajudaram as damas a recolocar os casacos de pele.Na saída, Pantameilion as seguiu, carregando as compras em grandessacolas, que rapidamente arrumou no porta-malas.

— Pronto! — disse Ariadna, acomodando-se no carro. — Agora,finalmente, você tem vestidos de mulher adulta.

— Mas mamãe — respondeu Sashenka, nauseada com a despesa esurpresa com o fato de que tais lojas ainda estivessem abertas, em umaépoca de guerra. — Eu não vivo essa vida. Eu só queria alguma coisasimples. Eu não preciso de vestidos de baile, vestidos de chá e vestidosdiurnos.

— Ah, sim, você precisa — respondeu Lala.— Eu, às vezes, troco de roupa seis vezes no mesmo dia — declarou

Ariadna. — Uso um vestido diurno, pela manhã. Outro para o chá. Hoje,vou visitar os Lorises em meu novo vestido de chiffon, e então, à noite...

Sashenka nem queria pensar no que sua mãe fazia à noite.— Nós, mulheres, temos que nos esforçar para arranjar maridos —

explicou Ariadna.

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— Para onde, baronesa? — perguntou Pantameilion pelo tubo devoz.

— Para a Loja Inglesa, a favorita de Sashenka — respondeu Ariadna.Dentro da loja — atrás das vitrines que exibiam óleos e perfumes de

banho da Penhaligon’s, sabonetes da Pears, pastas e geleias da Fortnum,da Gentleman’s Relish e da Cooper’s — Ariadna comprou bolo degengibre e biscoitos, enquanto ministrava a Sashenka sermões sobre aimportância dos vestidos.

— Ei, Sashenka! É você? Sim, é! — Alguns jovens estudantesuniformizados, que estavam à toa em frente à Loja Inglesa, sorrirammaliciosamente e empurraram-se uns aos outros quando elas saíram. —Sashenka levada! Ouvimos falar do seu problema com os gendarmes! —gritaram eles.

Os rapazes usavam quepes. Um deles, herdeiro de um magnata, jálhe escrevera poemas de amor. Ela sorriu ligeiramente e continuou aandar, à frente de sua mãe e de Lala.

— Mademoiselle, que prazer em vê-la de novo!Por um momento, Sashenka ficou paralisada: mas se recuperou,

enquanto o capitão Sagan, rapidamente, abria caminho entre osestudantes. Usava um casaco de tweed, uma gravata xadrez e umchapéu-coco, comprados, provavelmente, na própria Loja Inglesa.Curvou-se, com um leve sorriso, levantou o chapéu e beijou a mão dela.

— Eu estava comprando umas abotoaduras — disse ele. — Por quetodo mundo aprecia tanto o estilo inglês? Por que não o escocês, galêsou mesmo indiano? Eles também são nossos aliados.

Sashenka sacudiu a cabeça e tentou recordar-se do que Mendel lheordenara que fizesse. Seu coração batia no ritmo de um trem acelerado.É agora, camarada Mendel!, disse a si mesma.

— Tenho certeza de que você não queria me ver de novo, masainda temos que discutir Maiakovski... e ainda nem chegamos aAkhmatova, lembra-se? Tenho de ir. Espero não ter... incomodado você.

— Você é muito atrevido! — exclamou ela. Ele ergueu o chapéu eela não pôde deixar de notar seus cabelos compridos, mais adequados aum ator que a um policial.

Sagan fez sinal para um trenó, que deslizou até ele, com os sinos

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tocando, e o levou pela Nevski.Ariadna e Lala a alcançaram.— Sashenka — disse sua mãe —, quem era ele? Você poderia ter

sido um pouco mais gentil.Mas Sashenka sentia-se invencível, apesar dos vestidos idiotas que

tivera de experimentar. Adorava o trabalho noturno de ativistabolchevique. Agora, pensou, serei um verdadeiro trunfo para o partido. Acasa era vigiada. Sagan devia ter adivinhado que ela visitaria a LojaInglesa, onde ele ficaria menos deslocado que na Chernitchev’s.Conversara com ela fora do alcance dos ouvidos de Ariadna e dagovernanta. Certamente queria que Sashenka soubesse que ele estavade olho nela. Ela mal podia esperar para contar a Mendel.

A caminho de casa, Ariadna apertou a mão da filha.— Sashenka e eu vamos ser grandes amigas, não vamos, querida? —

não parava de dizer.Sentada no assento de couro, entre Ariadna e Lala, Sashenka

lembrou-se de que, no passado, sempre que corria até sua mãe paraabraçá-la, esta se afastava, dizendo: “Sra. Lewis, sra. Lewis, estou comum vestido novo de madame Brissac e a menina está com a boca suja...”

Na noite passada, finalmente, ela obtivera o abraço; mas já não odesejava mais.

Quando chegaram em casa, Ariadna segurou a mão de Sashenka e aconduziu escada acima, até seu boudoir.

— Saia comigo esta noite, ponha um vestido novo que mostremelhor o seu corpo! — sussurrou ela roucamente, inalando o perfume deangélica em seu próprio pulso. — Na noite passada, quando vi vocêchegar em casa tarde, percebi que tem um amante secreto! Não voucontar para o papai, mas podemos sair juntas. Eu achava que você erauma tremenda pedante, Sashenka, você nunca sorria — não me admiraque não tenha pretendentes —, mas eu estava enganada, não estava?Chegando em casa de madrugada, como uma gatinha! Quem é o gato?Aquele de paletó de tweed e chapéu-coco, que nós acabamos de ver?Vamos usar nossos vestidos novos, deslumbrantes, e as pessoas vãoachar que somos irmãs. Nós somos iguaizinhas...

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Sashenka tinha que fazer uma entrega para o partido — um carimboe um livro de contribuições. Depois iria se encontrar com os camaradas noesconderijo, onde ajudaria a preparar a gelatina usada no hectógrafo,para a impressão de panfletos.

Mas, antes de todas essas tarefas, tinha que entrar em contato comMendel e lhe contar sobre o encontro com Sagan.

Ansiava pelos mistérios da noite, era como se fossem o abraço de umamante.

20

Sashenka saiu de casa à uma da manhã. Percebendo os dois agentes narua, caminhou pela Nevski Prospect e foi até o Hotel Europa. No saguão,pegou o elevador de serviço até o subsolo, passou pelas cozinhas — ondecarregadores com aventais manchados de sangue descarregavam ovos,repolhos, carcaças de porcos e cordeiros — e saiu de novo para a rua. Fezsinal para uma troica e deixou um bilhete codificado para Mendel nafarmácia georgiana da Aleksandrovski Prospect.

Depois, foi até o café dos cocheiros, em frente à estação Finlândia.Estava comendo um pirojki e ouvindo o Yankee Doodle no realejo, pelaterceira vez, quando um jovem deslizou para a cadeira em frente à sua.Era mais velho que ela, mas ambos tinham em comum a sombria fadigados notívagos e a radiante convicção dos revolucionários.

— A-a-apanhe o b-b-buldogue com o camarada no quartel dosGuardas Montados — gaguejou o rapaz, que tinha pequenos olhoscastanhos, óculos de grossas lentes, com aro de aço, e um boné deoperário sobre uma cabeça singularmente quadrada. Aquele devia ser ocamarada Molotov, deduziu Sashenka. Tinha 26 anos. Ele, o camaradaMendel e o camarada Chliapnikov eram os últimos líderes bolcheviquesainda em liberdade. Quando Molotov tirou o casaco, ela viu que ele usavauma camisa de colarinho engomado, como um escriturário. Sem o boné,sua testa sobressaía estranhamente.

— Pergunte pelo c-c-camarada Palitsin. Alguma mensagem?

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Ela abanou a cabeça.— B-b-boa sorte, camarada. — disse o camarada Molotov. E foi

embora. Sashenka sentiu uma excitação percorrer sua espinha.No quartel dos Guardas Montados, o zelador Verezin a deixou entrar,

como antes.— O que aconteceu com a zibelina? E a raposa do Ártico? —

perguntou ele.— Atraíam muito a atenção — disse ela. — Alguém está esperando

por mim aqui?O camarada Ivan Palitsin estava sentado à mesa redonda, próximo ao

fogão, ao lado de algumas garrafas. Levantou-se quando ela entrou.— Sou o camarada Vânia — disse. — Eu conheço você. Assisti à sua

palestra no círculo operário da Fábrica Putilov. — Estendeu-lhe umagrande mão avermelhada.

— Eu me lembro de você — disse ela. — Você foi o único que fezuma pergunta. Eu estava muito nervosa.

— Não é de admirar — disse Vânia. — Uma garota intelectual no meiode nós. Você falou com muita paixão e nós gostamos de ver uma garotacomo você nos ajudando.

Sashenka sabia o que ele queria dizer com “uma garota como você”e ficou consternada. Percebendo isso, ele acrescentou gentilmente:

— Nós viemos de mundos diferentes, mas me diga o que você sabee eu lhe digo o que sei.

Ela sentiu-se agradecida. Cabelos revoltos, mais de um metro eoitenta, maçãs do rosto salientes e os olhos oblíquos de seusantepassados tártaros, Vânia Palitsin personificava o vigor do camponêsrusso, além da franqueza e do enorme espírito prático dos operários. Elasabia que, ao contrário de Mendel ou Molotov, ele era um autênticooperário, alguém que labutava na Fábrica Putilov desde os 8 anos e falavao jargão proletário. Este, pensou Sashenka, é o herói para quem Marxcriara sua filosofia e por quem ela se juntara ao movimento.

— Camarada Raposa, eu tenho uma coisa para você, várias coisas, naverdade. Você sabe o que fazer com elas?

— Sei.— Sente-se. Quer um gole de conhaque ou vodca? Eu e o camarada

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Verezin estamos dando uma festinha, não é, Igor?— Eu me filiei ao partido — disse Verezin.— Parabéns, camarada Verezin — disse Sashenka. — Somente os

membros do partido mereciam o respeitoso tratamento de “camarada”.Mas Mendel lhe dissera para não tomar parte em atividades sociais, nemtagarelar. Os intelectuais eram muito mais paranoicos do que osverdadeiros operários, pensou ela.

Vânia Palitsin, que usava uma camisa franjada — de camponês —,botas e calções amarrados nos joelhos, entregou-lhe o buldogue e umpequeno embrulho. O metal lubrificado da pistola brilhava.

— Entregue esse embrulho ao impressor, no bar-porão da rua Gogol.Ele é um georgiano bonitão. Não vá perder a cabeça! — Vânia a olhounos olhos e sorriu. — O buldogue é para você.

Pouco depois das três da manhã, ela passou pelo Palácio Taurida epegou um bonde para a Liteini. Sentia o casaco pesar. O buldogue —uma pistola Mauser — estava em seu bolso, totalmente carregado, comuma caixa de munição sobressalente. Passou os dedos pela arma: o metalestava gelado. Pela primeira vez, o partido lhe dera uma arma. Ela nuncaatirara para valer. Seria mais um dos testes de Mendel? Mas o que erauma revolução sem dinamite? O partido precisaria dela para liquidar umagente provocador? Isso a fez pensar em Sagan. Sabia que ele aencontraria de novo.

Tomou um trenó para o bar Caravanserai, na Gogol, uma cavernasubterrânea com algumas alcovas, usadas por estudantes, soldados eoperários. A entrada não chamava a atenção. No interior, ela descobriuque havia um túnel sob a rua. Sentiu o cheiro de cigarros, salsichas evinho estragado. Ao passar por uma mesa ocupada por estudantesandrajosos, percebeu que estes ficaram em silêncio.

Em uma alcova escura, um homem estava sentado sozinho, usandoum vistoso capuz caucasiano, branco, forrado de peles, e um sobretudodo exército. Ele ergueu um copo de vinho tinto.

— Eu estava esperando por você, camarada Raposa. Sou HérculesSatinov — disse o camarada georgiano, que russificara seu verdadeironome de Satinadze. — Siga-me, camarada.

Ele a conduziu mais para o interior do bar, abrindo a porta de um

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depósito de cerveja, onde o ar era úmido e fétido. Agachando-se,levantou uma tampa. Degraus de metal em caracol desciam até umagráfica. Ela podia ouvir o zumbido cavernoso da máquina funcionando,como se fosse uma abelha mecânica. Homens vestidos com batas decamponês carregavam pilhas de jornais toscamente impressos, queamarravam com cordas vermelhas. O aposento cheirava a óleo e papelqueimado.

Satinov abaixou o vistoso capuz branco.— Acabei de voltar a Piter. De Baku. — Seus cabelos, duros e

volumosos, com reflexos negro-azulados, começavam a crescer poucoacima das sobrancelhas. Ele era alto, rijo, musculoso e irradiava um poderviril. — Você trouxe o papel para mim?

Ela lhe entregou o embrulho.— Prazer em conhecê-la, camarada Raposa — disse ele, sem nenhum

traço de ironia, segurando sua mão e a beijando.— O perfeito cavalheiro georgiano — disse ela, um tanto

defensivamente. — Você também dança a lezginka? Canta o “Suliko”?— Ninguém dança melhor do que eu. Que tal a gente cantar umas

canções e tomar um vinho hoje à noite?— Não, camarada — respondeu Sashenka. — Não tenho tempo para

essas frivolidades. Nem você deveria ter.Satinov não pareceu ofendido. Em vez disso, riu alto, levantando as

mãos em um gesto de rendição.— Perdoe-me, camarada, mas nós, georgianos, não somos tão frios

como os russos! Boa sorte! — Levou-a então a uma saída diferente, quedesembocava em um pátio deserto, atrás da rua Gogol.

Ao final de uma travessa estreita, ela verificou se estava sendoseguida, como Mendel a treinara. Ninguém. Esperou um pouco. Ninguémna rua. De repente, sentiu-se tonta de exultação: gostaria de rir e dançarnaquela atmosfera de glamour desolado, criada pelos conspiradores:Palitsin, Satinov, jovens de mundos diferentes, mas unidos nadeterminação. Sabia, no fundo do coração, que aqueles indivíduos eram ofuturo. Tinham uma crença que fazia brilhar intensamente uma existênciasombria e dura. Não era de admirar que homens como Mendel fossemviciados nessa vida de conspirações. Normalidade? Responsabilidade?

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Família, casamento, dinheiro? Ela pensou na alegria do pai, quando esteobtivera um contrato para fornecer 200 mil rifles para o governo; e emsua mãe, iludida e infeliz. Isso era a morte, disse a si mesma, a morte emvida, lúgubre e melancólica.

Passando por uma arcada, entrou em um pátio. Era outra das regrasde Mendel: evite entrar em qualquer prédio pela porta da frente;verifique sempre se há duas saídas. Na Rússia, zeladores e porteiroscostumavam permanecer na rua e, de modo geral, não observavam ospátios.

No pátio, foi até a porta dos fundos, abriu-a e subiu apressadamenteos degraus frios e escuros até o último andar, guiando-se pela meia-luzdos postes da rua. Já tinha estado antes no local, mas seu camaradafaltara ao encontro. Talvez agora estivesse ali.

Destrancou a porta, que fechou atrás de si. O apartamento estavana penumbra, mas seria sombrio mesmo à luz do dia. Era uma caverna detapetes asiáticos, velhas lâmpadas de querosene, edredons e colchões.Ela inalou o aroma acolhedor de naftalina, peixe salgado e livrosamarelados: um intelectual vivia ali. Foi até a cozinha e testou o samovar,como Mendel lhe ensinara: estava frio. No quarto, as paredes estavamcobertas por prateleiras de livros. O Apollo e outros jornais culturais seempilhavam no chão.

Mas havia algo errado. O coração lhe subiu à garganta. Imbuída deprontidão bolchevique, moveu-se em silêncio, os nervos frementesrelampejando no corpo. Entrando na sala de estar, ouviu um somarrastado. Uma lamparina a querosene se acendeu.

— Saudações! Pensei que você não viria mais. — Uma voz familiar,por que ficou tão chocada?

— Não se meta comigo — disse ela, engolindo em seco. Ela tinha aMauser. — Levante a lamparina.

Ele iluminou o próprio rosto.— Comprou vestidos bonitos, Zemfira?O capitão Sagan estava sentado em uma cadeira, vestido com um

terno preto mal cortado e uma gravata fina. Um casaco de pele jazia nochão.

— O que está fazendo aqui? — Ela percebeu que sua voz saíra alta,

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quase um guincho.— O seu camarada não vem. Nós o pegamos. Amanhã, a Comissão

Especial vai sentenciá-lo a dois anos na Sibéria. Nada muito sério. Para quevocê não perdesse a viagem, eu vim no lugar dele.

Ela deu de ombros, lutando para permanecer calma.— E daí? Este esconderijo não é mais seguro. Se você não vai me

prender, vou para casa dormir. Boa noite. — Enquanto se virava,lembrou-se da ordem de Mendel. Ela precisava conhecer Sagan melhor.Aliás, estava curiosa para saber por que ele estava ali. — Ou será que já étarde demais para dormir?

— Acho que sim — disse ele, alisando o cabelo e, subitamente,parecendo mais jovem. — Você é uma coruja?

— Eu me sinto preguiçosa de manhã, mas à noite fico ativa. Essaconspiração é boa para mim. E você, capitão? Se eu sou uma coruja,você é um morcego.

— Eu vivo na corda bamba. Como você e o seu tio Mendel. Durmotão pouco que, quando chego em casa para dormir, não consigorepousar. Levanto da cama e leio poemas. É isso o que acontececonosco. Gostamos tanto dessa vida que ela nos muda e nãoconseguimos fazer mais nada. Nós, conspiradores, Sashenka, somos comozumbis. Ou vampiros. Nós nos alimentamos do sangue dos trabalhadorese vocês se alimentam do sangue dos próprios sanguessugas, que sugamo sangue dos trabalhadores. Bem darwiniano.

Ela riu alto e sentou-se na beirada da cama de metal, cujo colchãoera tingido de sépia pela lamparina.

— Nós, conspiradores? Não há semelhança entre nós, seu faraó dapolícia. Nós temos um projeto científico; vocês estão simplesmentereagindo a nós. Nós venceremos, no futuro. Vocês vão ser liquidados.Você está cavando para nós a sepultura dos exploradores.

O capitão Sagan deu uma risadinha.— Não vejo nenhum sinal disso. No momento, o seu querido partido

só tem uns poucos fanáticos: o intelectual Mendel Barmakid, um operáriochamado Chliapnikov, um garoto de classe média chamado Scriabin(codinome Molotov), alguns círculos operários e uns encrenqueiros nofront. Lenin está no exterior e os outros estão na Sibéria. Resta você,

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Sashenka. Não deve haver mais de mil bolcheviques experientes em todaa Rússia. Mas você está se divertindo um bocado, não está? Brincando derevolucionária.

— Você está enganando a si mesmo, Sagan — disse ela exaltada. —As filas estão maiores e as pessoas ficando mais irritadas, mais famintas.Querem paz e você lhes pede que morram por Nicolau, o Último, Nicolau,o Sanguinário, a traidora alemã Aleksandra e o pervertido Rasputin...

— De quem você sabe tudo por intermédio de sua mãe. Deixe-meraciocinar junto com você. Seus pais são o paradigma da corrupção dosistema russo.

— Concordo.— As aspirações e os direitos dos trabalhadores e camponeses são

totalmente ignorados pelo sistema atual.— Verdade.— Sabemos que os camponeses precisam de alimentos, mas também

precisam de direitos, representação e proteção contra os capitalistas.Precisam de terras e estão desesperados por paz. Se um grupo deprogressistas tomasse o poder, o sonho de seu pai, já seria muito poucoe viria tarde demais. Precisamos de uma mudança real.

— Já que concordamos em tudo, por que você não é umbolchevique?

— Porque acredito que uma revolução está para acontecer.— Eu também — disse Sashenka.— Não, você não acredita. Como marxista, você sabe que uma

revolução socialista ainda não é possível. O proletariado russo ainda nãoestá desenvolvido. É aí que discordamos. Segundo você, não haverárevolução bolchevique.

Sashenka suspirou.— Nossas crenças estão tão próximas. É uma pena não concordarmos

nisso.Ambos ficaram em silêncio por alguns momentos. Então Sagan

mudou de assunto.— Você ouviu o último poema de Maiakovski?— Pode recitar para mim?— Vou tentar.

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Para você, que passou a vida de orgia em orgiaPara você, que ama somente o vinho e a comida...

Sashenka prosseguiu:

Por que devo entregar minha vida pelo seu conforto?Eu estaria melhor servindo suco de abacaxiPara a prostituta no bar.

— Linda declamação, mademoiselle Zeitlin. Está de parabéns!— Em nosso país, a poesia é mais poderosa que morteiros.— Tem razão. Deveríamos usar mais a poesia e menos as forcas.Ela o observou atentamente, consciente de que ambos estavam

arriscando suas vidas no que Mendel chamava de Jogo Supremo.A mão dela estava sobre o frio cabo da Mauser. Poucas semanas

antes, Mendel a levara para fora da cidade, até os bosques de bétulas, elhe ensinara a atirar: logo, ela já acertava o alvo mais do que errava.Quando o partido lhe dissesse para matar Sagan, ela o faria.

— O que você está carregando?A arma na ponta dos dedos fazia seu coração disparar. Ela ouviu a

própria voz, que já não soava como sua voz. Era estranha, profunda,surpreendentemente calma.

— Prenda-me, se quiser. Então pode mandar alguma medusa dapolícia me revistar.

— Só há uma grande diferença entre nós, Sashenka: eu acredito quea vida humana é sagrada. Você acredita no terror. Por que seuscamaradas têm que matar? Será que existe alguma coisa na mentalidadedeles que se ajuste a essa crença? São criminosos ou loucos?

Ela se levantou novamente.— Você tem um lar para onde ir, capitão? Você é casado?— Sim.— Filhos?— Não ainda.— Feliz? — Sashenka esfregou os olhos, cansada.— Algum casamento é feliz? — respondeu ele.— Tenho pena de você — disse ela. — Eu nunca me casarei. Boa

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noite.— Só uma coisa, Zemfira: você acha que existe algum lugar onde eu

quisesse estar mais do que aqui?Sashenka franziu a testa.— Isso não é um cumprimento. Desconfio que a maioria dos homens

não gosta de ir para casa. Principalmente quando são vampiros, comovocê e eu.

Nós dois estamos armados, pensou ela, quase em delírio. Podemosmorrer hoje.

Novamente no lado de fora, Sashenka andou pelas ruas. Umapequena garoa acariciava seu rosto. De fato, Sagan era um gendarmeestranho, refletiu. Ela estava jogando com ele, dando-lhe corda. Ele eramais velho que ela, muito mais velho, e tinha recrutado muitos agentesduplos. Mas a confiança presunçosa que tinha em suas artimanhas era seucalcanhar de aquiles. Ela daria um jeito de derrotá-lo e entregá-lo aopartido, com a cabeça em uma bandeja, como João Batista.

Ao longe, um trem passou, apitando na noite. A fumaça negra dasfábricas cercava uma lua prateada. Era quase madrugada: o céu estavatisnado de rosa; a neve era de um púrpura intenso. Com um abafadoruído de cascos, um trenó se aproximou. Ela fez sinal para ele.

O buldogue em seu bolso estava tão frio que queimava seus dedos.— O preço da aveia subiu de novo — disse o cocheiro, cofiando a

barba emaranhada, enquanto trotavam rumo à mansão Zeitlin, na avenidaMarítima.

21

Zeitlin bateu na porta do boudoir de Ariadna e entrou, sem esperarresposta. Era meio-dia, mas ela ainda estava na cama, usando umacamisola de seda com laços, que revelava a pele machucada de seusombros. O aposento cheirava a café e angélica. Leonid trouxera o café damanhã mais cedo, e a bandeja de madeira pintada, com pratos sujos ecopos vazios, repousava em um estrado ao lado da cama. Luda, a criada,

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preparava os vestidos para aquele dia: um para o almoço, outro paravisitar amigos, outro para os drinques e outro para o jantar. Quatroindumentárias, notou Zeitlin. Tantos vestidos seriam mesmo necessários?

— Este serve para o chá, baronesa? — Luda saiu do boudoir,trazendo um vestido em crepe da china. — Oh, barão! Bom dia. — E fezuma mesura.

— Queremos ficar a sós, Luda.— Sim, barão.— Sente-se, Samuil — disse Ariadna, espreguiçando-se. Zeitlin sabia

que ela estava se divertindo, permitindo que ele visse seu corpo.— O que houve? A Bolsa quebrou? Isso é o que lhe interessa, não

é?— Vou ficar em pé. — Ele percebeu que estava mordendo o charuto

entre os dentes.Ela se aprumou.— O que aconteceu? Você costuma se sentar. Quer que eu peça

café? — Ela estendeu a mão para acionar a campainha, mas foi distraídapela lisura do próprio braço, que esfregou contra os lábios.

— Não, obrigado.— Como queira. Tive uma noite tão divertida ontem. Vi o conselheiro

de novo. Ele me contou tantas coisas fascinantes, Samuil. Todos estavamfalando sobre o novo primeiro-ministro. Samuil?

— Quero o divórcio, Ariadna. — Pronto, ele o dissera.Fez-se um longo silêncio, enquanto ela registrava as palavras. Então,

abanou a cabeça e levantou uma das mãos, como se estivesse tentandofalar.

— Você? Mas por quê? Nós vivemos assim há anos. Você não éciumento. É... confiante demais para isso. Você deve estar brincando,Samuil. Já estamos casados há 18 anos. Por que agora?

Zeitlin deu uma tragada no charuto, tentando parecer calmo eracional.

— É apenas... cansaço.— Cansaço? Você está se divorciando de mim porque está cansado?— Você vai ter uma pensão generosa. Nada vai mudar. Você apenas

vai viver em uma casa diferente. É um choque tão grande?

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— Você não pode!Ele tinha se virado para sair, mas ela pulou da cama e se atirou a seus

pés, derrubando o charuto de suas mãos. Ele se inclinou para pegá-lo,mas ela o puxou; ele perdeu o equilíbrio e caiu. Ela começou a chorar,revirando os olhos enlouquecidos. Ele tentou se desvencilhar e acabourasgando a camisola dela, expondo-lhe os seios, enquanto ela o agarravacom tanta força que arrancou de seu peitilho as presilhas de diamante.

Ofegantes, permaneceram deitados, lado a lado. Ele olhou para ela edivisou seus mamilos marrom-escuros, que espreitavam através dasgrossas madeixas do cabelo comprido. Ela parecia uma dançarina cigana. Éassim que os amantes devem vê-la, pensou ele, maravilhado com aqueladesinibida lascívia. Como nós, humanos, somos estranhos, pensou. A luz éescura, a noite é luminosa.

Ao longo dos anos, embora durante o dia eles agissem comoestranhos, à noite eram amantes. À luz do dia, ela o aborrecia ouperturbava. Mas o procurava, às primeiras horas da manhã, ainda com ocheiro da noitada anterior, o hálito penetrante de champanheenvelhecido, conhaque novo e charutos de outros homens. Então, comvoz sibilante, sussurrava-lhe aventuras de assombrosa depravação, usandoo jargão dos camponeses da Polônia e o iídiche das sarjetas — a línguaque falavam quando se encontraram pela primeira vez na corte do paidela, o rabino de Turbin, no vilarejo judeu perto de Lublin.

Quantas coisas interessantes ela lhe contava, que visões deliciosas!Desejos e façanhas quase inacreditáveis para uma dama respeitável! Certanoite, um amante a levara para os Jardins de Verão, lugar de cachorrosvadios e prostitutas... ela não lhe ocultava nenhum detalhe. Excitado anão mais poder, ele realizava feitos eróticos dignos de um atleta, logo ele,o mais comedido dos homens, que considerava a paixão coisa perigosa.Acordava sentindo-se imundo, cheio de remorsos, como se tivessebancado o palhaço com uma prostituta, em um quartinho ordinário. Eaquela era sua própria esposa!

— Será que eu já não sou bonita? — perguntou-lhe ela, cheirando aangélica e amêndoas. — Como você pode deixar isto? Você pode fazeramor comigo. Vamos, venha para cima de mim. Você sabe que quer. Masvocê é tão frio. Não admira que eu tenha sido tão infeliz. Você está

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brincando acerca do divórcio, não está? Samuil? — Ela começou a rir,quase para si mesma, mas depois jogou a cabeça para trás, dandogargalhadas roucas. Ele podia sentir o calor se irradiando da pele delacomo de um carvão em brasa, sentia-se contaminado com sua excitação.Ela segurou a mão dele e a mergulhou entre as coxas. Então apontoupara o espelho. — Olhe para nós! Olhe para nós, Samoilo! Que casalbonito! Como quando nos encontramos. Está lembrado? Você disse quenunca tinha encontrado uma garota como eu. Está lembrado do quedisse? “Você é como cavalos selvagens.”

Na verdade, Samuil não fora romântico: conjeturava, mesmo então,se ela não seria imprevisível demais para ser sua esposa.

Não sem dificuldade, levantou-se, arrumando a roupa.— Ariadna, nós nos tornamos ridículos.Os criados haviam falado: Pantameilion contara a Leonid. Este ficara

matutando: como contaria ao patrão que Sashenka tinha socorrido amãe, que estava bêbada, caída na rua? Acabara enviando Shifra, a velhagovernanta, para dar a Zeitlin a desagradável notícia. Zeitlin não reagira,apenas agradecera a Shifra, polidamente, beijando sua mão coberta deveias e a levando até a porta. Os historiadores, pensou Zeitlin, tentamencontrar uma única explicação para os acontecimentos, mas as coisas,na verdade, acontecem por muitas razões, não por uma só. Acendendo ocharuto Montecristo, refletiu sobre a prisão de Sashenka, sobre a crençada sra. Lewis, de que ele mal conhecia a própria filha — e sobre aindesejável entrada de Rasputin em sua vida (pior, de alguma forma, queos amantes de Ariadna). Enquanto seu irreprimível irmão, Gideon,procurava o prazer despreocupadamente, porque “Eu posso bater asbotas a qualquer momento e ir direto para o inferno”, Zeitlin acreditavaque calma e disciplina lhe garantiriam vida longa.

Então, na noite anterior, fora visitado por sonhos de morte súbita,desastres de trem, tiros, automóveis destroçados, sua casa em chamas,trenós emborcados, revolução, sangue na neve, ele próprio no leito demorte, morrendo de infecção nos intestinos e angina pectoris, comSashenka chorando ao seu lado. Às portas do céu, percebera que nãoestava carregando nada. Investira em tesouros, não em amor. Estava nue desperdiçara a vida.

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No alvorecer, procurara Shifra na despensa — mas a velha bruxa,encolhida na cadeira como uma aranha translúcida, já sabia de seussonhos.

— Você também precisa de amor em sua vida — dissera a ele. — Nãoviva sempre para o futuro. Pode não haver um futuro. Quem sabe o queestá escrito para você no Livro da Vida?

Zeitlin detestava mudanças e temia sacudir os alicerces de seumundo. Mas alguma coisa na Grande Cadeia do Ser estava se modificandoe ele não podia agir de outra forma. Contrariando seu bom senso, em umtranse que acreditou ser a presença do Destino, dirigiu-se ao quarto deAriadna.

Agora olhava para sua mulher, um emaranhado de braços e pernasno chão.

— Existe alguém mais? — perguntou ela. Você se apaixonou poralguma bailarina do Mariinski? Uma puta cigana do Urso? Se existe, eu nãome importo. Veja bem, seu egoísta, seu idiota frio, eu simplesmente nãome importo! Serei tão boa quanto uma freira. O conselheiro está memostrando o caminho cor-de-rosa da redenção. Nós temos um encontromarcado na semana que vem, dia 16 de dezembro. Só Rasputin e eu.“Eu vou ensinar a você, Abelha de Mel”, ele disse. “Você pecou muito,você está secretando as trevas de Satã. Agora vou lhe ensinar o amor ea redenção.” Foi isso o que ele disse à Abelha de Mel dele. Ele é bompara mim. Ele me escuta durante horas, mesmo quando a sala de esperaestá cheia de consulentes, generais, condessas...

Zeitlin recolocou as presilhas e reatou a gravata.— Eu só quero uma vida normal — disse em voz baixa. — Já não sou

jovem e posso cair morto a qualquer momento. É tão estranho assim?Flek vai tratar de tudo.

Sentindo um pouco de remorso e apreensão pelo futuro, saiu doaposento, fechando a porta atrás de si.

22

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Na grande tela brilhante do Cinema Piccadilly, na Nevski, o título damatinê daquela tarde era Seu Coração Era um Brinquedo nas Mãos Dele.Sashenka estava atrasada e perdeu o começo do filme, mas enquantoolhava para a tela e acendia um cigarro, percebeu que o cavalheiro emquestão era um dândi supostamente bonito (na realidade, parecia umboboca), que usava fraque e gravata branca em uma praia, enquanto adama, de vestido vermelho, olhava para as ondas azuladas do mar.

No palco, um quarteto de estudantes do Conservatório tocava amúsica escolhida para representar a brisa marinha. A dama, cujo coraçãojá se cansara de brincadeiras, começou a entrar no oceano. Um homemgordo, de casaca, correu para o palco e começou a girar a roda de umamáquina de metal. O quarteto parou de tocar, enquanto a máquinaproduzia um som que lembrava o estrondo e o marulhar das ondas.

No escuro do Piccadilly, com a lotação pela metade, o ar estava secoe elétrico, e a fumaça prateada dos cigarros espiralava através do feixe deluz que projetava as imagens. Um soldado camponês, ao lado danamorada, comentou em voz alta:

— Ela está na água! Ela está entrando no mar!Um homem e uma mulher, nos fundos, beijavam-se

apaixonadamente, ambos provavelmente casados e pobres demais parapagar um hotel. Um bêbado roncava. A maioria olhava as imagens comenlevado deslumbramento. Sashenka acabara de entregar umamensagem de Mendel para Satinov, o camarada georgiano de capuz, etinha uma hora ociosa antes de se encontrar com o camarada Vânia, emViborg. Depois, iria jantar em casa, como sempre. Fim, informaram asletras ornamentadas, projetadas sobre fundo negro, antes que um novofilme fosse anunciado: Branca como Alabastro.

Sashenka suspirou alto.— Você acha bobagem? — disse uma voz ao lado dela. — Onde está

seu senso de romantismo?— Romantismo? Você é um cínico sorridente — disse ela. Era Sagan.

— Você já pensou que nós vamos conquistar a Rússia com o cinema?Vamos pintar o mundo de vermelho. Pensei que você dormisse durante odia.

Desde a prisão de Sashenka, eles se encontravam a cada dois ou três

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dias, às vezes no meio da noite. Ela relatava tudo a Mendel, em todos osdetalhes.

— Tenha paciência — dizia Mendel. — Continue no jogo. Um dia elevai oferecer alguma coisa.

— Ele acha que pode me bajular, me tratando como uma colegaintelectual.

— Deixe ele fazer isso. Até os policiais da Okhrana são humanos ecometem erros humanos. Deixe que ele goste de você.

Ela nunca sabia quando iria encontrar o agente secreto. Em meio adiscussões sobre poesia, romances e ideologia, ele fazia perguntas sobreo partido — Mendel ainda estava na cidade? Quem era o novo camaradacaucasiano? Onde Molotov vivia? Ela respondia como Mendel especificara,perguntando quais as incursões que estavam planejadas, quais as prisõesefetuadas, haveria algum agente duplo no comitê?

Na tela, o novo filme começara. O quarteto tocou uma músicaarrebatadora com seus instrumentos de corda.

— Eu não vim aqui pelo filme — disse o capitão Sagan, subitamentemuito sério. — Tenho uma troica esperando aí fora. Você tem de vircomigo.

— Por que eu faria isso? Está me prendendo de novo?— Não, sua mãe está em apuros. Estou fazendo um favor a você e à

sua família. Vou explicar no caminho.Eles subiram na troica, cobriram as pernas com uma manta de pele

de urso e se embrulharam nos casacos, enquanto o trenó deslizava sobreo gelo com um zumbido, como se voasse. As ruas já estavam escuras e aslâmpadas elétricas começavam a ser acesas. Trenós baixos, decoradoscom fitas e sininhos, transportavam estudantes barulhentos, formandodesenhos na neve. Avistando uma enorme fila de trabalhadores seacotovelando em frente a uma padaria, Sashenka lembrou-se de que aescassez de alimentos se alastrava e os preços subiam. Quanto pior,melhor, pensou alegremente. As sirenes das fábricas de Viborg soaram. Aneve, raramente branca, tinha um tom alaranjado.

— Você está me levando para casa?Sagan abanou a cabeça.— Para a casa de Rasputin. Ele desapareceu. Está morto, eu acho.

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— E daí? Para nós, é uma pena: ele nos arranjou mais correligionáriosdo que o Manifesto Comunista.

— Nesse ponto, Zemfira, nós discordamos. Para nós, é uma dádivados céus. O corpo está embaixo do gelo em algum lugar — nós vamosencontrá-lo. A imperatriz está enlouquecida. Ele não voltou para casadepois de uma festa no Palácio Iusupov. O jovem príncipe Iusupov — otravesti Félix — está envolvido nisso até o pescoço, mas ele é casado comuma grã-duquesa.

— E minha mãe?— Sua mãe estava esperando por Rasputin no apartamento dele.

Depois daquela outra noite, achei que você é a pessoa indicada paraajudar...

Policiais em uniformes cinzentos, guarnecidos com peles de cordeiro noscolarinhos, guardavam a entrada no número 64 da rua Gorokhovaia.Alguns jovens maltrapilhos, vestidos com sobretudos de estudantes,segurando blocos de notas e pesadas câmeras fotográficas, tentavamconvencer os policiais a deixá-los passar pelas barreiras. Sashenka e ocapitão Sagan, entretanto, foram admitidos imediatamente.

No pátio, gendarmes em seus belos uniformes azul-escuros, combotões prateados, protegiam-se do frio. Sashenka notou que batiamcontinência para Sagan, embora este usasse roupas comuns.

No alto da escadaria, camisas engomadas, ternos bem cortados eelegantes sapatos de duas cores distinguiam os educados oficiais daOkhrana das barbas grisalhas, narizes avermelhados e sapatos imundos dosdetetives encarregados de investigar o assassinato. Os oficiais da Okhranacumprimentaram Sagan e o puseram a par dos últimos acontecimentosem um jargão codificado, que fez Sashenka lembrar-se dos bolcheviques.Talvez todas as organizações secretas sejam iguais, pensou.

— Viemos buscar a mãe dela — disse Sagan aos colegas, segurando opulso de Sashenka. Ela achou melhor não resistir.

— Podem subir, mas depressa — disse um colega da Okhrana. — Odiretor está a caminho. O ministro se encontra em conferência com aimperatriz, em Tsarkoe Selo, mas logo estará aqui.

Enquanto se aproximavam do apartamento, Sashenka ouvia o som

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de uivos. Eram altos e desinibidos, à maneira dos camponeses, quandoexpressam o luto. Ela pensou em sirenes de alerta durante ataquesaéreos, e em um acidente que presenciara, quando um cachorro tivera aspernas amputadas por um carro. Entrou então em um saguão e virou àesquerda. Passou por uma cozinha cheia de vapor, com um samovar, epor uma mesa coberta de sedas e peles. Dobrou à direita, entrando emuma sala de estar, onde havia uma mesa e um copo com um resto doMadeira favorito do conselheiro. O lugar lembrava a Sashenka as cabanasdos camponeses, nas propriedades de seu pai na Ucrânia; mas, em meioao odor de sopa de repolho, havia uma sugestão de perfume francês.Nada parecia, de fato, pertencer ao lugar, pensou ela: tratava-se de umcruzamento de isbá camponesa com escritório governamental e casaburguesa. Ou o esconderijo de um bando de assaltantes ciganos.

Ouviu-se um alvoroço atrás deles e um general dos gendarmes,cercado por uma comitiva, entrou no salão principal. Sagan foi até lá,trocou algumas palavras com ele e retornou.

— Encontraram o corpo. No Neva. É ele — disse, fazendo o sinal dacruz. — Bem, temos que levar sua mãe para casa agora. Ela está aquidesde a noite passada.

Os uivos se tornaram mais altos, mais lancinantes. Sagan abriu umaporta dupla, que dava para um quartinho escuro, com tapetes escarlates,almofadas e um grande divã.

Os guinchos eram tão animalescos, e as sombras no aposento tãodifíceis de identificar, que Sashenka recuou; mas Sagan a abraçou emtorno da cintura e segurou sua mão. Ela estava grata, mas, acima detudo, chocada. Manchas cor de sangue dançaram diante dela, até queseus olhos se acostumassem à escuridão e ela conseguisse enxergar.

— Ela está lá. Eu tenho um carro aguardando vocês lá embaixo, masela tem que sair antes que a imprensa chegue. Vamos lá. Não tenhamedo — disse Sagan gentilmente. — É só barulho.

Ela entrou no quarto.Foi difícil, a princípio, perceber como os corpos e membros se

encaixavam. Algumas mulheres estavam agachadas no chão, com osbraços em volta umas das outras, chorando e ululando histericamente.Entre elas, Sashenka avistou sua mãe, sacudindo a cabeça

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convulsivamente, os traços encovados, a boca um gritante rasgãoescarlate.

— Onde estou? — gritou sua mãe, com a voz rouca de tantoprantear. — Quem é você?

No interior do quarto, o ar era uma mistura de suor e sabonetescaros. Sashenka se ajoelhou e estendeu o braço para Ariadna, mas suamãe rolou para longe.

— Não! Não! Onde está Grigori? Ele está vindo, eu sei disso.Sashenka, agora de joelhos, tentou agarrar a mãe, mas Ariadna

escorregou entre seus dedos, com um riso enlouquecido. Uma mulhergorda, que estava de gatinhas, começou a urrar. Sashenka sentiu umaurgente necessidade de se levantar e sair correndo, mas aquela era suamãe. Percebia agora, se é que não percebera antes, que Ariadna não eraruim, era apenas uma pessoa doente, quase louca. Uma jovemcamponesa, alta e forte, de sobrancelhas unidas e cerrada lanugem sobreo lábio superior, agarrou Sashenka, berrando palavrões. Sashenka reagiu,mas sua agressora, com a boca coberta de espuma branca, mergulhou osdentes em seu braço. Gritando de dor, Sashenka empurrou a camponesa— a filha de Rasputin, como Sagan lhe disse mais tarde — e conseguiualcançar a mãe. Segurou-lhe o braço, depois a perna, e a arrastou parafora da confusão. As outras mulheres tentaram detê-la, mas Sagan e umpolicial comum as empurraram para trás.

A criatura que fora sua mãe jazia a seus pés, tremendo e soluçando,sob o frio olhar de Sagan e dos policiais, que estavam discutindo o examepost mortem do corpo de Rasputin e conjeturavam sobre quem poderiatê-lo matado. Sashenka sentiu uma dor no antebraço: podia ver asmarcas dos dentes de sua agressora. Percebeu também que Ariadnatrajava um vestido simples, muito diferente de tudo o que a vira usarantes. Compreendeu que ela queria se postar como uma pobresuplicante diante do conselheiro Grigori.

Então caiu sobre os joelhos, de mãos juntas. Também queria chorar.Sagan descansou a mão em seu ombro.

— Controle-se, mademoiselle Zeitlin. Você tem que tirar sua mãedaqui agora — disse ele, colocando o chapéu-coco. — Eu vou ajudarvocê.

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Sashenka e Sagan seguraram Ariadna pelos braços e a arrastaram atéa porta.

Na saída do apartamento, Ariadna recomeçou a gritar.— Grigori, Grigori, onde está você? Nós precisamos de você para

confortar nossas almas e perdoar nossos pecados! Grigori! Eu tenho queesperar por ele! Ele vai voltar para mim...

Ela lutou para se libertar das mãos deles, arranhando, chutando etentando correr de volta para o apartamento. Movendo-se com rapidez,Sagan a agarrou.

— Senhores, precisamos de ajuda! — gritou para os dois policiais queguardavam a porta. Um deles substituiu Sashenka, segurando o braçoesquerdo; Sagan segurou o direito. O outro policial firmou o chapéu nacabeça e, com um movimento hábil, segurou os dois pés de Ariadna. Ostrês a transportaram pelas escadas, enquanto o vestido dela se levantava,revelando farrapos de meias e pernas nuas.

Evitando o olhar fixo de Ariadna, Sashenka caminhou à frente doshomens, horrorizada e desamparada, mas grata pela ajuda. Ao cruzar opátio, sentiu os olhos dos policiais pesarem sobre ela; esperava que nãopercebessem que aquele farrapo humano era sua mãe. Piedade evergonha se apossaram dela.

Um carro com um sargento dos gendarmes ao volante estava dandomarcha a ré sob as arcadas do pátio.

— Ponha isso aí dentro — disse Sagan, ofegante. Outro gendarmeabriu a porta traseira e o ajudou a acomodar Ariadna no compartimento.— Leve-a para casa, Sashenka. — Sagan bateu a porta. — Boa sorte. —Inclinou-se sobre o motorista. — Obrigado, sargento. Avenida Marítima,rápido! — E deu um tapa no teto do carro.

Sashenka viu-se sozinha com a mãe na traseira do carro — e isso afez recordar-se dos anos após a revolução de 1905. Só conseguia selembrar dos cavaleiros cossacos, das multidões maltrapilhas e furiosas, ede como Zeitlin as despachara para fora da Rússia, para o Ocidente. Elasviajaram através da Europa de trem, em um vagão privativo. Ariadna, jáentão sempre embriagada e usando roupas de brocado escarlate, davarecepções no Grand Hotel Pupp, de Carlsbad, no Carlton, de Nice, e noClaridge’s, de Londres, sempre acompanhada por um novo “tio”. Havia o

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inglês de bochechas rosadas; um oficial dos Guardas, com insígniasdouradas e chapéu de pele de urso; um lépido diplomata espanhol, desobrecasaca; o barão Mandro (que Sashenka chamava de “Lagarto”), umvelho judeu galiciano, que usava tapa-olho e ruge nas bochechas. Certavez, apalpara seu traseiro, as mãos cabeludas como aranhas. Quando elao mordeu — ainda podia sentir na língua o gosto acobreado do sangue—, Ariadna lhe deu um tapa.

— Saia daqui, menina malvada!Foi então retirada do quarto, lutando e gritando. Agora, uma década

mais tarde, via Ariadna ser carregada, chutando e uivando.Sashenka olhou pela janela. Ansiava por estar com seus camaradas —

nas ruas, fábricas e nos esconderijos, longe daquela confusão doméstica.Os restaurantes e casas noturnas estavam repletos. Prostitutascaminhavam pela praça de Santo Isaac, em direção ao Astória. Suasroupas de couro lustroso, com ornamentos escarlates e dourados,pensou Sashenka, lembravam um regimento dos Guardas Montados. SãoPetersburgo estava febril. As apostas nos jogos de pôquer jamais tinhamsido tão altas. Nunca tantos boêmios andaram pelas ruas, nem tantaslimusines estacionaram em frente ao Astória... Seria o último baile doImpério?

Enquanto a cabeça de Ariadna tombava em seu ombro, Sashenkadisse a si mesma que era marxista e bolchevique, e que nada mais tinha aver com seus pais.

23

— A sua convidada já chegou, mon baron.Zeitlin tinha pedido a uma mulher para encontrá-lo no Donan, na rua

Moika, 24. À noite, o restaurante se enchia de ministros, ricaços,cortesãs, aproveitadores e, provavelmente, espiões. Durante o dia, estesse encontravam no foyer e no café do Hotel Europa. Durante a tarde, oDonan ficava deserto. Era quando Zeitlin costumava utilizar seuscompartimentos privados para encontros discretos: fora lá, em sua sala de

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jantar privativa, conhecida como o kabinet do barão, que ele seencontrara com o ministro da Guerra, em agosto de 1914, para fechar onegócio que lhe assegurara o fornecimento de coronhas para o exército.

Naquela manhã, telefonara a Jean-Antoine, o maître. Nascido emMarselha, Jean-Antoine era famoso por sua discrição, habilidade para selembrar de todo mundo e tato para neutralizar cenas escandalosas.

— Mais d’accord, mon baron — respondeu Jean-Antoine. — O seukabinet está pronto. Champanhe no gelo? O seu lagostim favorito? Ousomente chá com bolinhos ingleses e uísque escocês?

— Só o chá.— Vou mandar buscar na Loja Inglesa imediatamente.Zeitlin costumava usar o automóvel, mas naquela tarde colocou sua

chapka, protetores de orelha, casaco negro com colarinho em pele decastor, galochas valenki sobre sapatos de couro cinzento (da Lobb’s, deLondres) e empunhou sua bengala, cujo castão, em prata, formava umacabeça de lobo. Saiu de casa sem alertar a criadagem.

Gostava de se movimentar incógnito pelas ruas escuras, sem choferou criado. Parara de nevar, mas a neve estava se comprimindo,transformando-se em uma massa gelada e impenetrável. Zeitlin quasepodia ouvir o rio Neva fundindo as fraturas e fissuras de sua cobertura degelo. Nas ruas, as lâmpadas a gás estavam sendo acesas e os bondes semoviam com estrépito. Atrás dele, ouviam-se sinos e risos. Um trenóapinhado de estudantes passou por ele e desapareceu. Nos dias de hoje,pensou Zeitlin, os estudantes faziam o que diabos queriam. Não tinhamvalores, disciplina.

Seria ele mais feliz, agora que estava rico? Bastava olhar para suaesposa louca! E havia sua querida Sashenka, um enigma para seu própriopai. Ele a amava e queria protegê-la. Mas ela já não parecia interessada naprópria família. Era quase uma estranha e ele às vezes achava que ela odesprezava.

Zeitlin gostaria de poder chorar tão livremente quanto uma criança.Como um velho entoando uma antiga canção, viu-se cantarolando umacanção de sua infância, o Kol Nidre, que falava de um mundo emextinção. Ele a detestava, na época, mas agora conjeturava: e seestivesse certa?

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Entrou na Iegorov’s, uma sauna gótica, com paredes de mogno evitrais. Um funcionário de túnica branca e calções o levou até umcubículo. Despindo-se, ele mergulhou na banheira gelada e deslizou sob aponte de ferro, ornamentada com folhagens, que formava um arco sobrea água. Então se expôs ao vapor durante algum tempo, sentado em umamesa de granito. Vários homens nus — cujas cabeças calvas e traseiros,estranhamente, tinham o mesmo brilho e coloração rosada — estavamsendo sovados com ramos de bétula. Ignorando a todos, Zeitlinestendeu-se sobre o granito. Queria pensar.

Eu rezaria para Deus se tivesse certeza de que existe um, disse a simesmo. Mas, se existe, somos apenas vermes na poeira, aos olhos dele.O sucesso é a minha religião. Eu faço minha própria história.

Entretanto, no fundo do coração, Zeitlin acreditava que havia algumacoisa maior que a humanidade. Por trás da fumaça de seu charuto, desua camisa bordada, sobrecasaca, polainas e calças inglesas de risca, eleainda era um judeu temente a Deus. Estudara na cheder, aprendera oShulkhan Arukh, as regras do viver, o Pentateuco, os cinco livros da Bíbliaque formavam a Torá, as leis judaicas e a poesia pedante, sábia e arcaicado Talmude e da Mixná.

Cerca de meia hora mais tarde, vestiu-se, borrifando-se de colônia, evoltou à Nevski. As altas vidraças da loja Fabergé resplandeciam naescuridão.

— Boa noite, barin! Pule para dentro, vou levar o senhor! — gritouum cocheiro de trenó, estalando o chicote e contendo os pôneis depernas curtas, cujas sinetas tilintavam festivamente.

Zeitlin dispensou o cocheiro e continuou a caminhar com passo ágil.Fui um prisioneiro durante décadas, pensou ele, embora tivessesegurança. Estou voltando à vida depois de longa hibernação. Vourecuperar minha filha e lhe mostrar como a amo; e me interessarei porsua educação daqui por diante. Nunca é tarde demais, não é mesmo?

No Donan, Jean-Antoine o cumprimentou. Zeitlin tirou o casaco, ochapéu e as galochas. Estava ansioso para encontrar sua convidada.

No útero escarlate do kabinet privativo do barão, Lala o esperava, usandoum vestido chá em xantungue, formal, enfeitado com flores malva.

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Levantou-se quando ele entrou, o rosto em forma de coração tomadopela curiosidade.

— Barão! O que é tão urgente?— Não diga nada — disse ele, segurando as mãos dela. — Vamos

sentar.— Por que aqui?— Vou explicar.Ouviu-se uma batida na porta, e os garçons trouxeram o chá: bolo

de frutas, muffins com geleia de morango, creme fresco e dois pequenoscálices, feitos de âmbar. Lala se levantou para servi-lo, mas Zeitlin adeteve, aguardando que os garçons servissem o chá e fechassem aporta.

— Conhaque — disse ele. — Para nós dois.— O que houve? — perguntou ela. — O senhor está me deixando

preocupada. Não parece o senhor mesmo. E por que o conhaque?— É o melhor. Courvoisier. Experimente.Eles se encararam ansiosamente. Zeitlin sabia que parecia velho, que

seu rosto estava vincado, que havia novas mechas cinzentas em suastêmporas. Andava exausto por implacáveis reuniões e por sua própriabonomia, colunas de números o esvaíam. Todos esperavam tanto dele,suas obrigações pareciam infindáveis. Até os lucros de suas empresas oesmagavam.

Lala também parecia mais velha, pensou subitamente. Suasbochechas estavam mais rechonchudas, tinha a pele castigada pelosinvernos. O medo do futuro e da solidão — além de secretas desilusões— fazia com que parecesse mais velha.

Envergonhado com esses pensamentos, hesitou, enquanto o fogona pequena lareira aumentava, tingindo as faces de ambos com um tomalaranjado. Ela bebericou o conhaque. Lentamente, o fogo os aqueceu.

Ela se levantou.— Não gostei do conhaque. Queima minha garganta. Acho melhor ir

embora. Não gosto do aspecto deste lugar. Não é respeitável...— É o Donan!— Pois é — disse ela. — Já li sobre ele nos jornais...Mau sinal. Ele não conseguiu se conter. Atirou-se aos pés dela e

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enterrou o rosto em seu colo, as lágrimas molhando o vestido dexantungue.

— O que há de errado? Pelo amor de Deus, o que está havendo?Ele segurou as mãos dela. Ela tentou afastá-lo, mas a bondade que a

caracterizava sobrepujou sua prudência habitual. Gentilmente, acariciou ocabelo dele. Suas mãos, sentiu ele, eram macias e quentes como as deuma menina.

Ele se levantou e a tomou nos braços.O que estou fazendo?, pensou. Fiquei maluco? Meu Deus, os lábios

tinham suas próprias leis. Como o magnésio, que queima em contato como oxigênio, a pele sobre a pele também deflagra uma espécie de reaçãoquímica. Ele a beijou.

Ela suspirou baixinho. Ele sabia que ela era uma inveterada doadorade afeto — mas não desejaria, também, um pouco para si própria?

Então aconteceu algo mágico. Ele a beijou de novo e, de repente,ela retribuiu o beijo, de olhos fechados. As mãos dele percorreram seucorpo. A própria simplicidade do vestido dela, a vulgaridade das meias edo perfume de rosas o deliciavam. Quando a tocou mais acima, mal pôdeacreditar na maciez de sua coxa. O aroma de sabão na pele, o calor dofogo, o cheiro penetrante do chá indiano arrebataram a ambos.

Estou sendo muito descuidado e tresloucado, estou indo contraminha natureza, disse Zeitlin a si mesmo. Logo eu, que mantenhocontrole sobre tudo que faço. Pare agora, seu louco. Não seja como seuirmão ridículo! Vou me transformar em motivo de chacota. Voudespedaçar meu mundo perfeito.

Mas o mundo perfeito já estava despedaçado e Zeitlin percebeu quenão se importava.

24

Aos 14 anos, Audrey Lewis deixara a escola em Pegsdon, Hertfordshire,para trabalhar como aprendiz de governanta na família de Lord Stisted,em Eaton Square, Londres.

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A história dela, como ela mesma disse mais tarde, era tristementeprevisível, como uma das novelas baratas que gostava de ler. Foi seduzidae engravidada pelo imprestável filho do lorde (que se especializara emcriadas). Posteriormente, para abafar o escândalo, casaram-na com o sr.Lewis, o chofer da família, que tinha 51 anos. Seu aborto foi humilhantee doloroso, ela quase morreu de hemorragia. O casamento não vingou eela deixou o emprego, subornada por ótimas referências. Seus pais, que aadoravam, suplicaram-lhe que voltasse para casa, para ajudá-los no pub —o Viva e Deixe Viver, em Pegsdon, assim batizado para que refletisse afilosofia de ambos. Mas ela viu um anúncio na Lady. Uma palavra foi obastante para ela: Rússia!

Era alto verão em São Petersburgo quando a carruagem de Zeitlin foibuscar a jovem inglesa, que desembarcava de um vapor alemão. Samuilusava uma camisa branca, polainas, chapéu de palha, um anel de opala,um prendedor de gravata em forma de cobra, e tinha um ar de generosootimismo, que imediatamente cativou Audrey. Era esguio e jovem, comcabelos castanho-avermelhados e um bigode de bon-vivant. Os Zeitlinsainda não viviam na mansão da avenida Marítima, mas em um espaçosoapartamento na Gorokhovaia. Eram ricos, mas ainda provincianos. Ariadna,com seus olhos violeta, cabelos negro-azulados e busto majestoso,continuava sendo a garota que, nas cidades do sul, onde o maridoconduzia os negócios, deslumbrava a todos nos camarotes dos teatros.Ainda se ocupava em rivalizar com provincianas esnobes, esposas deoficiais e vice-reis da Rússia e de barões do petróleo armênios emuçulmanos, de Tbilisi e Baku.

Os Zeitlins, descobriu Lala, eram judeus. Ela nunca vira judeus. Nãohavia judeus no vilarejo de Hertfordshire e lord Stisted não conheciajudeus, embora lady Stisted falasse em tom desdenhoso a respeito demilionários judeus, que negociavam diamantes na África do Sul, e sobre osasquerosos degoladores judeus, oriundos da Rússia, que haviamtransformado o East End em um “cortiço do crime”. Audrey fora alertadade que os judeus não eram bons patrões, mas sabia que sua situação nãoresistiria a um escrutínio minucioso. Os Zeitlins, por sua vez, ficaramencantados por terem conseguido encontrar uma garota que trabalharaem uma casa nobre. Complementavam-se — principalmente considerando

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que os Zeitlins pareciam ser israelitas bastante civilizados.No momento em que Lala chegou, antes mesmo que as malas

fossem levadas ao seu quarto, Ariadna, deslumbrante em um vestidoturquesa de crepe da china, conduziu-a até um quarto de criança, paraconhecer sua pupila.

— Aqui está ela! Voilà ma fille — disse Ariadna em seu pretensiosofranco-inglês. — Quase me matou quando nasceu. Nunca mais. Eu disse aSamuil: de agora em diante, eu mereço me divertir! Ela é uma meninarebelde, ingrata e indisciplinada. Veja se consegue domá-la um pouco,sra. Linton...

— Lewis, Audrey Lewis, madame.— Sim, sim... de agora em diante, ela é sua.Foi nesse encontro que a sra. Lewis se tornou Lala e se apaixonou

por Sashenka — uma criança não muito mais nova que ela. O médico emLondres lhe dissera, após o aborto, que ela jamais engravidaria de novo.De repente, apaixonadamente, ela quis cuidar daquela menininha.

A criança e a governanta precisavam uma da outra, e, assim, Lala setornou a mãe de Sashenka, a mãe de verdade. Como se divertiam:patinando e andando de trenó, no inverno; passeando de carruagem,colhendo cogumelos e amoras, no verão, em Zemblichino, sempre rindo esempre juntas.

Os Zeitlins viajavam constantemente de trem, em compartimentoprivativo, para Odessa, Baku e Tbilisi. Lala estudava russo durante aslongas viagens.

Em Baku, ficavam em um palácio que o pai de Zeitlin copiara de umcastelo francês. Passeavam à beira-mar, cercados por uma falange dekochis, guarda-costas armados, que usavam barretes e empunhavam riflesBerdana. Em Odessa, hospedavam-se no Hotel Londonskaia, na orla, logoacima da famosa Escadaria Richelieu. Lala passava o tempo livre nos cafés,comendo espetinhos de esturjão na Deribaskaia. Mas seu coração inglêspermanecia em Tbilisi.

A primavera era gloriosa em Tbilisi, a mágica Tbilisi da Geórgia. Tbilisi, acapital do Cáucaso, a meio caminho entre os poços de petróleo deZeitlin, em Baku, no mar Cáspio, e os navios petroleiros em Batum, no

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mar Negro.Lá, os Zeitlins alugavam a mansão de um paupérrimo príncipe

georgiano, aninhada em uma rua de pedras nas íngremes encostas daMontanha Sagrada. Coronéis russos e milionários armênios frequentavam acasa. Ariadna os recebia rindo baixinho, entre as vinhas que seenroscavam na sacada, faiscando seus famintos dentes brancos e olhosvioleta. Nunca visitava o quarto de Sashenka.

— Lewis e a menina estão vindo junto com a bagagem — era o quesempre dizia.

Embora fosse bastante ocupado, Zeitlin sempre visitava o quarto damenina. Parecia preferi-lo às recepções, cheias de oficiais e burocratascom sobrecasacas, cartolas, faixas na cintura e ombreiras. Nas esferas maisaltas, as crianças só serviam para ser brevemente admiradas e, então,tiradas de vista. Zeitlin, porém, adorava sua Sashenka e vivia beijando suatesta.

— Tenho que voltar para o trabalho — dizia ele. — Mas você é umamor, Sashenka querida. Sua pele parece cetim! Dá vontade de morder!

Um dia, durante uma de suas raras noites de folga, Lala vestiu-secom sua melhor roupa de domingo, empunhou uma sombrinha e foipassear na avenida principal, perto do alvo Palácio do Vice-Rei (onde,segundo ouvira, Ariadna escandalizara as esposas dos oficiais, com seusombros nus e suas danças frenéticas). As ruas de Tbilisi cheiravam a lilasese lírios-do-vale. Em seu caminho até a praça Erevan, passou por teatros,casas de ópera e mansões.

Fora alertada para tomar cuidado na praça, e logo percebeu por quê.As ruas laterais, barulhentas e imundas, fervilhavam com turcos, persas,georgianos e homens das montanhas, vestidos com trajes rústicos eberrantes, empunhando adagas e bacamartes. Meninos de rua, ou kintos,corriam em meio à multidão. Vendedores de água e carregadoresempurravam carrinhos de mão. Oficiais caminhavam com suas mulheres,mas não havia mulheres sozinhas. Assim que entrou na praça, Lala foicercada por uma multidão de moleques e camelôs, gritando em suaspróprias línguas e oferecendo seus produtos — tapetes, melancias,sementes de abóbora e feijões lobio. Uma briga estourou entre umvendedor de água persa e um moleque georgiano; um checheno puxou

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uma adaga. Era o início da noite e ainda estava quente. Empurrada eacossada, com o suor porejando no rosto, Lala sentiu medo. Então,quando já começava a entrar em pânico, a multidão se abriu e ela foipuxada para dentro de uma carruagem.

— Sra. Lewis — disse Samuil Zeitlin, que usava um blazer inglês ecalças brancas —, você tem muita coragem; mas foi tolice vir aqui sozinha.Gostaria de conhecer o Bazar Armênio? Não é seguro para uma damadesacompanhada, mas é bastante exótico: você viria comigo? — Elanotou que ele segurava uma bengala, cujo castão formava a cabeça deum lobo.

— Obrigada, mas preciso voltar para Sashenka.— É uma alegria para mim, sra. Lewis, que você goste tanto da

minha única filha, mas ela vai ficar bem com Shifra, durante uma hora —disse seu patrão. — Você está bem? Vamos dar uma caminhada. Vocêestá segura comigo.

Zeitlin a ajudou a descer da carruagem. Então mergulharam namultidão agreste. Meninos de rua ofereciam petiscos georgianos; persascom barretes serviam água, armazenada em odres de vinho feitos depele; oficiais russos, em calças de montaria e túnicas com botõesdourados, passeavam; membros de tribos circassianas, munidos de sabrese vestindo casacos com bolsos especiais, para guardar balas,desmontavam de rijos pôneis. Vendedores gritavam “Água fresca, aqui!”.Os aromas de pão quente, vegetais cozidos e pilhas de especiarias eramarrebatadores.

Zeitlin mostrou-lhe as ruelas íngremes e os cantos escuros do bazar,onde padeiros confeccionavam os lavashi, pães georgianos achatados;armênios exibiam adagas kindjal e selas marchetadas de prata; tártarosvendiam sorvetes, preparados nos quartos dos fundos por mulheres devéus, parando às vezes para orar a Alá; um judeu da montanha tocavaum realejo. Enquanto caminhavam, Audrey colocou a mão sob seu braço:parecia bastante natural. Em um pequeno café, atrás de uma barraca quevendia temperos, ele comprou para ela um sorvete e um copo de vinhogeorgiano, frutado e ligeiramente espumante, que foi servido bemgelado.

Anoitecia. As ruas cálidas e misteriosas — tomadas pelo odor do

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khatchapuri, o bolo de queijo georgiano, e do cordeiro chachlik armênio— ainda estavam apinhadas, reverberando as risadas das mulheres nassacadas e o som dos cascos dos cavalos, que martelavam as pedras.Homens esbarravam nela, no escuro. O vinho fazia sua cabeça rodar umpouco.

Com o lenço, ela deu umas batidinhas na testa.— Acho que agora devemos ir para casa.— Mas eu ainda não lhe mostrei Tbilisi — disse ele, conduzindo-a por

ruas serpenteantes, ladeadas por casas decrépitas, cujas sacadas eramemolduradas por vinhas antigas. Já não havia mais ninguém nas ruas; eracomo se Zeitlin e ela tivessem saído da vida real.

Usando uma chave enorme, Zeitlin abriu um velho portão. Surgiu umvigia, com uma barba em forma de espada, que lhe entregou um lampião.Estavam em um jardim perdido, cercado por vinhas viçosas e madressilvasque exalavam um perfume inebriante.

— Vou comprar esta casa — disse Zeitlin. — Ela não faz você selembrar de um romance gótico?

— Sim, sim — disse ela, rindo. — Ela me faz pensar em mulheresfantasmagóricas com vestidos brancos... Como era o nome daquele livrode Wilkie Collins?

— Venha ver a biblioteca. Você gosta de livros, Audrey?— Ah, sim, monsieur Zeitlin.— Pode me chamar de Samuil.Eles entraram em um pátio revestido com seixos, onde trepadeiras

alcançavam as sacadas. Zeitlin abriu algumas portas de madeira, queestavam trancadas. Chegaram então a um salão com piso de pedras, altoe frio, decorado com gravações em bronze. Madeira escura apainelava asparedes, e cortinas de renda, também escuras, recobriam as janelas.Zeitlin caminhou pelo salão, acendendo lampiões de bronze, com quebra-luzes verdes. Ela percebeu que estava em uma biblioteca. Estantes depinho da Carélia estavam cheias de livros. Outros livros formavam pilhas nomeio do aposento, tão altas que era possível usá-las como cadeiras. Asparedes estavam cobertas com estranhas curiosidades: cabeças de lobose ursos, velhos mapas-múndi, retratos de reis e generais, sabreschechenos, bacamartes medievais, cartões-postais pornográficos,

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panfletos socialistas e ícones ortodoxos — coisas de pouco valormisturadas às de valor inestimável. Um mundo perdido. Mas foram os livrosem russo, inglês e francês que mais a encantaram.

— Pegue os livros que quiser — disse Zeitlin. — Enquanto estivermosaqui, você poderá ler o que lhe agradar.

Já no lado de fora, à luz cada vez mais fraca do jardim perfumado, osolhos de ambos se encontraram, desviaram-se e se encontraramnovamente. O ar estava tão carregado com o perfume especial dasvinhas e do tkemali georgiano — com sua sugestão de maçãs e amêndoas— que ela mal conseguia respirar. Mas sentia o aroma da colônia de limãoque ele usava, de seus charutos e do vinho adocicado em seu hálito.

Ela teria feito qualquer coisa naquele momento, no jardim daquelavelha casa em Tbilisi, qualquer coisa que ele tivesse pedido. Mas,justamente quando pensava que ele iria beijá-la, Zeitlin recuou de formaabrupta e saiu do jardim. Na Golovinski Prospect, fizeram sinal para umacarruagem.

Na manhã seguinte, ao levar Sashenka para ver Zeitlin — madame, éclaro, ainda estava dormindo —, Lala sentiu-se agradecida a ele por nãotê-la tocado. Brindando-a com um sorriso distante e um “Bom dia, sra.Lewis”, ele beijou a filha e continuou a examinar os preços dosembarques, na Gazeta do Mar Negro. Nenhum deles jamais voltou amencionar aquela tarde.

Desde então, os dias de Lala foram ocupados com Sashenka; ela nãotinha tempo nem inclinação para se dedicar aos cavalheiros. Mas Sashenkacrescera rápido demais. A Silberkind, agora mais morena, tornara-se caladae pensativa.

— Você e eu nunca vamos nos casar, não é, Lala? — disse ela certodia.

— Claro que não.— Promete?— Prometo.Lala nada entendia de polít ica, mas reparou que, nos últimos tempos,

Karl Marx a substituíra no coração de Sashenka. Sabia que isso era umacoisa ruim e perigosa. Ficou muito triste. E culpou Mendel, aquele aleijado

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com voz de trombone.Frequentemente, quando desligava a lamparina a óleo de seu

pequeno quarto, no topo da casa da avenida Marítima, seu sono erainterrompido por sonhos, sonhos maravilhosos, em que revia aquelesmomentos com o patrão no jardim georgiano. Enquanto se revirava noleito, sua pele se avermelhava. Imaginava os lábios dele tocando seusseios, as mãos dele entre suas coxas. Às vezes, acordava tremendo.

E então, do nada, Zeitlin a convidara para ir ao Donan.— Eu realmente quero minha filha de volta, e você a conhece melhor

que ninguém — dissera ele. — Vamos nos encontrar fora de casa eplanejar o futuro dela. É tarde demais para matriculá-la no Gymnasium, narua Gagarin. Eu estava pensando na academia do professor Raev, naGorokhovaia...

Como as coisas foram diferentes. No restaurante, ele nemmencionara Sashenka. Fora como um de seus sonhos perturbadores —mas Lala sabia que aquilo era errado e ficou alarmada. Precisava deestabilidade. Se o patrão se tornasse irresponsável, o que aconteceriacom a casa, com ela, com Sashenka?

Lala temia as mudanças. O início da guerra fora emocionante: elaestivera entre as centenas de milhares de camponeses, trabalhadores,criadas e condessas na praça do Palácio. Na sacada do palácio de Inverno,vira o tsar, a tsarina, as lindas grã-duquesas e o pequeno herdeiroabençoando a multidão. Lala, agora quase uma russa, cantara o hinorusso, e exultara quando os recrutas marcharam pela Nevski, cantando“Rouxinol, rouxinol, pequeno passarinho!”.

Agora, sentia que algo terrível estava para acontecer a seu paísadotivo, mas era tarde demais para voltar para casa; tornara-secosmopolita, com seu russo fluente e viagens a Biarritz e Baku;acostumara-se demais a ter as coisas a seu modo para que recomeçasseem outra casa; e se afeiçoara demais a Sashenka para criar outra criança.Possuía uma boa poupança, mas não o suficiente para viver dela.

Via as filas do pão, nas esquinas das ruas, e as meretrizes em frenteaos cassinos e casas noturnas de São Petersburgo. Lia nos jornais que osexércitos russos batiam em retirada, que os alemães haviam conquistadoa Polônia e muitos dos bosques de Zeitlin. Tinha que ser cortês com os

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pais de Ariadna, que estavam alojados na casa, conversando em iídichegutural e cantando em hebraico. O tsar estava no front. Seu herói, lordKitchener, que vencera o Mádi e os bôeres, programara uma visita àRússia, mas seu navio abalroara uma mina e ele se afogara. Apesar detudo, ela ainda acreditava que, embora pudessem ocorrer dificuldades, oseu barão, o seu Samuil, saberia como superá-las.

Durante todos aqueles anos, Lala se isolara, ciente de suasresponsabilidades, vivendo modestamente, já uma solteirona destinada auma velhice solitária, o fantasma no sótão de uma grande família. ComoShifra, de fato. No entanto, bem abaixo da meiguice servil — como umriacho espumante descendo da montanha, sob uma grossa camada degelo —, seu sangue fervia. Naquela noite, enquanto se preparava paradormir, recapitulou seu chá com o barão. Estranhamente sem inibições,estavam deitados nus, no kabinet do Donan.

— Vou me divorciar de Ariadna — disse ele depois de algum tempo.— Você quer se casar comigo?

O corpo dela tinha permanecido intocado — ignorado — por tantotempo que as menores carícias, internas e externas, haviam deixadomarcas, como se minúsculos ferrões de abelha estivessem cravados emsua pele.

Agora, enquanto olhava para si mesma no pequeno espelho de seuquarto bem-arrumado, sentia, deliciosamente, os lugares onde eleestivera. Sua pele cintilava. Músculos desconhecidos em lugares macios,antes sem uso, adejavam como borboletas cativas. Suas pernas pareciamde borracha. Enquanto esperava que Sashenka retornasse, tentou ler umnovo livro que chegara da Inglaterra, mas teve que desistir.

Tremia por dentro e por fora, com alegria incontida.Subitamente, a campainha soou em seu quarto, o que era incomum.

Ao sair, ouviu uma mulher gritando e correu para baixo. Sashenka, pálidae esgotada, estava de pé no saguão, com a porta da frente aberta. UmaAriadna encharcada, reclinada em uma cadeira, murmurava com a cabeçaentre as mãos.

— Oh, Lala, graças a Deus você está aqui. Ajude-nos a ir até obanheiro. Depois, deixe ver, chame as criadas e o dr. Gemp. — Sashenkafez uma pausa e olhou para Lala. — Onde está meu pai?

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25

Em frente à janela do esconderijo da rua Gogol, com ar cansado, ocapitão Sagan acendeu um fino cigarro. Era um novo ano e as derrotasrussas aumentavam. Da caixa de rapé, ele tirou uma pitada de cocaína e aesfregou nas gengivas. Instantaneamente, o sangue correu mais rápidoem suas veias e a fadiga se transformou num estrondoso fluxo deotimismo, que jorrava em suas têmporas.

Naquelas primeiras horas de uma noite de janeiro, lampiões piscavamnas muralhas da Fortaleza de Pedro e Paulo, do outro lado do rio. À suadireita, ao longo do cais, luzes também brilhavam no Palácio de Inverno,embora os tsares não morassem lá desde 1905. A imperatriz vivia fora dacidade, em Tsarkoe Selo, e o imperador, em um quartel-general perto dofront. Mas a fortaleza representava o poder da autocracia: em sua igrejaestavam enterrados Pedro, o Grande, Catarina e seus sucessores, todoseles, até o pai do atual imperador. Era uma prisão também: as gélidascelas do Forte Trubetskoi abrigavam anarquistas, niilistas e socialistas, queele mesmo havia prendido.

Ouviu um estalido na porta. Passos atrás dele. Seria ela? Ou umassassino enviado pelos amigos dela? Algum dia, este estalido e estepanorama seriam as últimas sensações que seus sentidos registrariam,antes do tiro que lhe explodiria a cabeça. Até o estouvado dedo delapoderia apertar o gatilho. Mas este era o Jogo Supremo, eram os riscosda vida que levava, a cruzada que realizava, o serviço que prestava àPátria. Ele acreditava em Deus, acreditava que iria para o Céu: seeliminassem Deus e seu filho, Jesus, não haveria mais nada, apenas o caose o pecado. Se morresse agora, não tornaria a ver a esposa. Mas eramencontros como este, realizados na noite insondável, que faziam sua vidavaler a pena.

Não se virou. Emocionado com a visão das paredes avermelhadas doPalácio Menchikov, da fortaleza, do rio congelado, da cidade de Pedro,ele esperou. Sabia que era ela quem, às suas costas, estava entrando noquarto e se acomodando no divã. Quase conseguia sentir o seu cheiro.

Modestamente vestida com uma saia cinzenta e uma blusa branca,como uma professora virginal, Sashenka olhava um livro. Sagan estava

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maravilhado com o modo como ela mudara, desde a prisão. Os cabelospuxados para trás, em um austero coque, e o rosto fatigado, desprovidode maquiagem, apenas tornavam mais intensos seus olhos cinzentos, emuito mais extravagantes as pequenas ilhas de sardas que ladeavam seunariz. Quanto menos coquete era seu comportamento, quanto mais elaescondia o corpo, mais ele a observava, disfarçadamente. E ela lheparecia ainda mais atraente... sim, até mesmo bela.

— Então, camarada Petro — era assim que ela passara a chamá-lo —,você tem alguma coisa para nós, ou não? O samovar está fervendo?Posso tomar um chá?

Sagan preparou o chai. Vinham se encontrando frequentemente ese tratavam informalmente. Ele não saberia dizer se ela o visitava porqueestava começando a gostar dele ou porque o partido lhe ordenara queagisse assim. Nós, homens, somos pretensiosos, pensou ele, emboraesperasse que a primeira hipótese fosse a verdadeira. Não havia nada deerrado em sentir-se atraído por ela, mesmo que ela ainda nem fosse umamulher. Mas não precisava lembrar a si mesmo de que sentir-se atraído,de qualquer forma, ou mesmo gostar de alguém, para não falar em amor,poderia colocar em risco não só sua carreira, como também a sagradamissão de sua vida. Ele conhecia as regras do jogo. Se Mendel estivessemanipulando as cordas, aquele bolchevique aleijado iria querer que Sagandesejasse Sashenka. Isso não deveria acontecer. Nunca aconteceria.Sagan estava sempre no controle.

— Feliz ano-novo, Zemfira — disse ele, beijando o rosto dela trêsvezes. — Como foi a chegada de 1917 na sua casa?

— Alegre. Nossa casa parece mais um sanatório.— Como vai sua mãe?— Pergunte a seus espiões, se realmente quer saber. — Habituada à

conspiração, parecia mais confiante que nunca. Mas ele tinha certeza deque, desde a morte de Rasputin, ela começara a confiar nele, apesar desua cautela bolchevique. Quando se encontraram na noite seguinte àmorte de Rasputin, ela lhe agradecera. Por um momento, ele até pensouque ela iria abraçá-lo, à maneira empertigada dos camaradas, mas ela nãoo fez. Entretanto, continuaram a se encontrar.

— O ópio da baronesa está funcionando? Ela já tentou hipnose? Ouvi

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dizer que funciona.— Não me interessa saber — respondeu Sashenka. — Ela está

melhor, eu acho. Mandou fazer outro vestido e está reclamando das sem-vergonhices do tio Gideon.

— E o divórcio?— Papai deveria se divorciar dela, mas acho que não vai ter coragem.

Ela é uma alma perdida. Só acredita no prazer. Eu pouco fico em casaagora. — Ela fez uma pausa. — O partido está crescendo. Você reparou?Viu as filas do pão? Todos os dias acontecem brigas por causa dos últimospães.

Ele suspirou, sentindo uma súbita necessidade de mais cocaína,lutando contra uma ansiedade de contar a ela mais sobre si mesmo, maissobre o que sabia. Foi surpreendido por uma onda de desesperança queparecia soprar das ruas da cidade e se apossar dele. O tsar, o Império e aigreja ortodoxa estariam perdidos?

— Você conhece a verdade através dos relatórios — disse ela,inclinando-se para a frente — e eu sei que simpatiza conosco. Vamos,Petro. Mostre-me um pouco de você mesmo... ou posso ficar entediadae nunca mais me encontrar com você. Conte-me alguma coisa que eunão sei. O que dizem os seus relatórios?

Seus inteligentes olhos acinzentados o estudavam — de formaimplacável, pensou ele.

E não disse nada.Ela ergueu as sobrancelhas e fez um gesto com as mãos. Então,

dando um pulo, pegou seu casaco de astracã, sua chapka e seencaminhou para a porta. Abriu-a.

— Espere — disse ele, sentindo uma compressão na cabeça, como seesta estivesse em um torno. — Estou com dor de cabeça. Deixe-metomar um pouco do meu tônico.

— Vá em frente.Abrindo a caixa de prata cravejada de diamantes — uma herança com

o brasão da família —, ele molhou o dedo na boca e pescou uma grossacamada de pó branco, que esfregou nas gengivas.

Suas artérias se distenderam novamente e o sangue correu maisdepressa em suas têmporas, enquanto ele conjeturava se ela estaria

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percebendo que seus lábios inchavam.— Nossos relatórios — disse ele — alertam o tsar de que pode

ocorrer uma revolução. Acabei de escrever um que diz: Se os estoquesde alimentos não aumentarem, será difícil manter a lei e a ordem nas ruasde Petrogrado. As tropas permanecem leais, mas... Por que nos damosesse trabalho? O novo governo é uma piada. Stürmer, Trepov, agoraesse arcaico príncipe Golitsin, são pigmeus e bandidos. O assassinato deRasputin não resolveu nada. Nós precisamos de um novo começo. Eu nãoconcordo com tudo em que você acredita, mas alguma coisa fazsentido...

— Interessante — disse ela, postando-se na frente dele, martelandoos lábios com um dos dedos. Ele sentiu seu cheiro: seria sabonete delavanda Pears? Sashenka amadurecera mais rápido do que ele percebera.— Nós estamos marcando passo, não é, camarada Petro? Mas estamosficando impacientes! Se você pensa que eu gosto de me encontrar comvocê, pode ser que tenha razão. Poderíamos ser quase amigos... massomos? Alguns dos meus camaradas acham que eu não devo mais meencontrar com você. Se você realmente simpatiza conosco, há coisas deque precisamos saber. “É uma perda de tempo”, dizem meus camaradas.“Sagan não nos daria gelo no inverno.” De qualquer forma, você sabeque seu trabalho não serve de nada. Seu mundo está para acabar. Vocêprecisa nos dar alguma coisa que nos convença a poupar você.

— Você é muito otimista, Sashenka. Iludida. Não acho que seusjornais sejam grande coisa, mas, aqui entre nós, eles falam a verdadeacerca da situação nas fábricas e no front. Eu tenho me debatido sedevo ou não lhe contar, mas posso ter alguma coisa para você.

— Você tem? — O sorriso de Sashenka, ao dizer isso, fez tudo valer apena. Ela tirou o casaco e se sentou novamente, ainda com a chapka.

Não pela primeira vez, Sagan perguntou a si mesmo quem estavamanobrando quem. A confiança de Sashenka lhe dizia que ela aindainformava Mendel sobre seus encontros. O fato de não ser movida peloafeto desapontava Sagan — talvez ele estivesse perdendo seu charme.Mas, certamente, ela gostava um pouquinho dele. “Quase amigos”,dissera ela. A despeito de si mesmo, o agente secreto sentiu uma pontade mágoa. Mas eles conversavam sobre as famílias, poesia, até saúde.

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Quanto ela contava a Mendel? Ele esperava que ela estivessemantendo em segredo a proximidade deles, pois era assim que a coisafuncionava: a ocultação de pequenas coisas levava a pequenas mentirase, então, à ocultação de coisas maiores, que levavam a grandes mentiras— era assim que ele recrutava seus agentes duplos. Queria destruirMendel e Sashenka era seu instrumento. Duplicidade, não honestidade,era o seu trabalho. Mas, para ser honesto apenas por uma vez: ela nãoera somente um instrumento. Era seu deleite.

— Ouça cuidadosamente — disse ele. — Estão planejando umaincursão na sua gráfica, aqui na rua, amanhã à noite. Vocês vão ter quese mudar. Eu não preciso saber para onde.

Ela tentou esconder dele sua excitação, mas o modo como juntou assobrancelhas, para simular uma austeridade militar, quase o fez rir.

— Você vai liderar esse ataque? — perguntou ela.— Não, é uma operação da gendarmaria. Para saber mais detalhes,

eu preciso ter alguma informação para trocar.— É muita presunção de sua parte, camarada Petro.Ele sacudiu os punhos com impaciência.— Todo trabalho de inteligência é um mercado, Sashenka. E me

mantém acordado a noite toda. Não consigo dormir. Vivo do pó do dr.Gemp. Eu quero ajudar o seu partido, o povo, a Rússia, mas algo dentrode mim me diz para não lhe dar nenhuma informação. Você sabia queestou arriscando tudo ao lhe contar isso?

Sashenka se virou para ir embora.— Se isso for uma mentira, está tudo acabado e eles vão querer sua

cabeça. Se seus agentes me seguirem agora, nós nunca mais vamos nosencontrar. Estamos entendidos?

— E se for verdade? — gritou ele, atrás dela.— Então iremos nos encontrar brevemente.

26

Uma suave luz sépia brilhava através das nuvens, refletia-se na neve e

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irrompia mais resplandecente através das cortinas: o ópio viajava pelasveias de Ariadna. O dr. Gemp fizera uma visita para lhe aplicar a injeção. Acabeça dela tombara no travesseiro e ela mergulhara em sonhos: Rasputine ela estavam juntos no Céu; ele beijava sua testa; a imperatriz oexaminava, vestida com uma roupa cinzenta, de amamentação. Rasputinsegurava sua mão e — pela primeira vez na vida — ela sentia-se feliz esegura.

Em seu quarto, ela podia ouvir vozes abafadas falando em iídiche.Seus pais estavam sentados ao lado dela.

— Pobre criança — murmurou sua mãe. — Será que está possuídapor um dybbuk?

— Tudo é a vontade de Deus, até isso — respondeu seu pai. — Esseé o sentido do livre-arbítrio. Só podemos pedir Sua compaixão...

Ariadna ouviu o rangido da tira de couro quando o rabino amarrouseu filactério no braço e começou a falar em hebraico. Recitava asDezoito Bênçãos, e esse cântico familiar, tranquilizador, conduziu-a a umaépoca anterior, como se fosse um tapete mágico...

Um jovem e bonito Samuil Zeitlin estava parado na travessalamacenta, em frente à Casa de Estudos Talmúdicos, próximo à oficina deLazar, o sapateiro, na pequena cidade judaico-polonesa de Turbin, nãomuito distante de Lublin. Estava pedindo sua mão em casamento. Noinício, ela deu de ombros: ele não era um príncipe Dolgoruki, ou mesmoum barão Rothschild, não era bom o suficiente para ela — mas quemseria? Seu pai gritou:

— O garoto Zeitlin é um pagão! Ele não come nem se veste comoum de nós: ele se mantém kosher? Ele conhece as Dezoito Bênçãos? Opai dele usa aquelas gravatas-borboleta e passa os feriados em Bad Sem:eles são apóstatas!

De repente, ela estava dando voltas, sete voltas, no baldaquinousado nos casamentos judeus — o chuppah. Samuil quebrava um copode vinho com um forte pisão de bota. Carregado nos braços peloshassídicos, que cantavam, seu novo marido tinha uma expressão no rostoque dizia: estou rezando para não ver nunca mais esses fanáticosprimitivos — mas consegui! Consegui! Hoje à noite vou fazer amor com agarota mais linda do Assentamento! Amanhã, Varsóvia! No dia seguinte,

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Odessa. E ela vai escapar de Turbin, finalmente, para sempre.De repente, viu-se anos mais tarde, acariciando o capitão Dvinski em

uma suíte do Bristol, em Paris, surpreendendo até aquele grandeconhecedor das depravações da carne. Vestindo uma camisola rasgada,ela estava de quatro, pressionando os quadris no rosto dele, lambuzando-o, rebolando como uma stripper, deliciada com a devassidão daquilo,silvando palavrões em polonês e obscenidades em iídiche. Mesmo agora,ondas de prazer a inundavam, com a lembrança das carícias dos homens edos beijos das mulheres.

Então sentou-se no leito, agora fria e sóbria. Pensou ter visto oconselheiro: sim, ao pé da cama, lá estavam sua barba e seus olhosfaiscantes.

— É você, Grigori? — perguntou em voz alta.Mas percebeu que era uma combinação da cortina e de um vestido

pendurado no cabide, que, de alguma forma, sugeria um homem alto,magro e barbudo. De repente, estava sozinha e lúcida.

Rasputin, que me mostrou um novo caminho para a felicidade, estámorto, pensou ela. Samuil, cujo amor e fortuna eram os pilares do meufrágil palácio, está se divorciando de mim. Sashenka me odeia — e quempode censurá-la? Meus pais hassídicos se envergonham de mim e eutenho vergonha de minha vergonha. Toda a minha vida, cada passo docaminho, foi um fracasso. Minha felicidade oscilava em uma corda bamba,e acabou caindo. Até mesmo meus prazeres são como o momento emque o equilibrista começa a tremer e pisa em falso...

Zombei do mundo de meu pai, com suas devoções e superstições.Talvez minha mãe tivesse razão: estaria eu amaldiçoada desde onascimento? Zombei do Destino porque tinha tudo. Será que o Mau-Olhado se apossou de mim?

Ariadna recostou-se no travesseiro, sozinha e perdida, como umnavio fantasma à deriva no oceano.

27

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Sashenka deixou uma mensagem de emergência para Mendel naLordkipadze, a farmácia georgiana na Aleksandrovski Prospect, e voltoupara casa pela Nevski. As nuvens, como cremosas couves-flores, estavambaixas no céu. O gelo acumulado nos telhados e tubos de escoamentoestava endurecendo. Os termômetros tinham descido até -20˚C. Sirenese apitos soavam nos bairros operários. Greves começavam a se alastrarpelas fábricas.

Na Nevski, bem no centro da cidade, escriturários, operários e atédonas de casa burguesas faziam fila em frente às padarias. Mulheresrolavam na lama, lutando pelos últimos pães: uma operária socava outrano rosto, repetidamente, e Sashenka ouviu um estalo quando o nariz sequebrou. E viu quando operários invadiram o armazém Ieliseiev, onde osZeitlins encomendavam seus alimentos, levando bolos e frutas. Umfuncionário da loja foi espancado com um bastão.

Naquela noite, não conseguiu nem fingir que dormia. Sua cabeçazumbia. Repassava, em sua mente, a cólera das ruas. Do lado de fora, assirenes de Viborg ecoavam através do Neva, como o chamado de baleias.

Nas primeiras horas da manhã, encontrou-se com o camaradaMolotov no café dos cocheiros, em frente à estação Finlândia.

— O camarada Mendel está ocupado agora. Ele me enviou. —Molotov era austero e não tinha senso de humor; mas era meticuloso eouviu com atenção o recado de Sashenka.

— Sua f-f-fonte é c-confiável? — gaguejou Molotov, com a testaparecendo sobressair ainda mais.

— Acho que sim.— Obrigado, c-c-camarada. Vou trabalhar.No alvorecer, os camaradas Vânia e Satinov já estavam desmontando

a gráfica. Sashenka e outros camaradas removeram as peças em barris decerveja, latões de leite e sacos de carvão. A volumosa impressora foicolocada em um caixão, recolhido por um coche fúnebre roubado, quefoi acompanhado por parentes (bolcheviques) chorosos, vestidos depreto, até um novo local, em Viborg.

Ao cair da noite, Mendel e Sashenka subiram as escadas de um prédio deescritórios, na mesma rua da antiga gráfica. Para Mendel, cada passo era

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um esforço, pois ele tinha que arrastar sua bota reforçada.Foram até o telhado. Sashenka ofereceu a Mendel um de seus

cigarros Crocodilo, cuja extremidade dourada era incongruente com oboné de trabalhador e o rústico casaco de couro que ele estava usando.Juntos, observaram cinco carruagens estacionarem em frente ao bar-porão; delas saltaram diversos gendarmes e policiais de uniformescinzentos, que derrubaram a porta do bar.

— Bom trabalho, camarada Raposa — disse Mendel. — Você tinharazão.

Ela se ruborizou de orgulho. Era realmente valiosa para o partido, nãouma filha mimada das classes degeneradas.

— Devo continuar me encontrando com Sagan?Os olhos de Mendel, ampliados pelas grossas lentes, giraram na

direção dela.— Acho que ele está apaixonado por você.Ela riu e sacudiu a cabeça ao mesmo tempo.— Por mim? Você deve estar brincando. Ninguém olha para mim

desse jeito. Sagan fala muito de poesia. Ele realmente conhece oassunto. E me ajudou com mamãe. Mas ele é correto comigo. Eu souuma bolchevique, camarada, eu não flerto.

— Poesia porra nenhuma! Não seja inocente, menina. Ele estáinteressado sexualmente em você!

— Não! Claro que não! — Ela corou de embaraço. — Mas elesimpatiza conosco. Por isso é que nos avisou.

— Eles sempre dizem isso. Às vezes, até é verdade. Mas não confieem nenhum shtik dele.

Mendel sempre usava o iídiche de sua infância. Enquanto Ariadnaperdera completamente o sotaque, Mendel ainda falava russo com forteentonação judaico-polonesa.

— Se você estiver certo a respeito da imoralidade de Sagan,camarada, acho que não devo mais me encontrar com ele. Esta manhã,ele me enviou um bilhete me convidando para passear de trenó peloscampos, junto com ele. Eu disse que não, claro, e agora sei que nãodevo mesmo me encontrar com ele.

— Não seja uma schlamazel, Sashenka — replicou ele. — Você não

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sabe o que é o melhor nesse caso, menina. Tome cuidado com amoralidade burguesa. Nós decidiremos o que é imoral e o que não é. Seo partido pedir para você se cobrir de merda, você vai fazer isso! Se eledeseja você, tanto melhor.

Sashenka se sentiu ainda mais aturdida.— Você quer dizer...— Vá ao passeio de trenó — vociferou ele, exasperado. — Encontre-

se com o pilantra tanto quanto necessário.— Mas ele precisa ter alguma coisa para mostrar, também.— Nós vamos lhe dar umas ninharias. Mas, em troca, queremos uma

pepita de ouro. Para começar, veja se consegue o nome do traidor quedelatou a gráfica. Sem esse nome, a operação é um fracasso. O partidoficará desapontado. Fique vigilante. Tak! É isso aí. — O rosto de Mendelestava lívido de frio. — Vamos descer antes de congelarmos. Como suamãe está lidando com o divórcio?

— Eu nunca a vejo. O dr. Gemp diz que ela está histérica emelancólica. Ela está tomando cloralose, bromídia e ópio. Meu pai querque ela tente o hipnotismo.

— Ele vai se casar com a sra. Lewis?— O quê?Sashenka teve a sensação de um soco no estômago. Seu pai e Lala?

Do que ele estava falando? Mas Mendel já descia as escadas.Os apitos das fábricas ecoaram novamente pela cidade. A ardósia

enegrecida dos telhados nada revelava da furiosa ebulição abaixo. Omundo estava mesmo enlouquecendo, pensou ela.

28

O dia seguinte estava mais quente. O Sol e a Lua se observavamdesconfiadamente em um céu leitoso. As nuvens esparsas lembravamduas ovelhas e um carneiro, com chifres e tudo, em um campo de neve.As fábricas estavam em greve.

Enquanto tomava o bonde para a estação Finlândia, Sashenka

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observou multidões saírem das fábricas, atravessarem as pontes ereivindicarem pão — pelo terceiro dia consecutivo. A manifestaçãocomeçara na terça-feira, Dia Internacional da Mulher, e vinha crescendodesde então.

— Acordem, famintos! — cantavam as multidões, agitando bandeirasvermelhas. — Abaixo a autocracia! Queremos pão e paz!

Na Ponte de Alexandre, os cossacos tentavam fazê-las recuar, masdezenas de milhares de pessoas continuavam a marchar. Sashenka viumulheres com xales de camponesas estilhaçarem as vidraças da LojaInglesa e se servirem de comida.

— Nossos homens estão morrendo no front! Queremos pão! Nossosfilhos estão morrendo de fome!

Então surgiram garotos abandonados, criaturas com barrigas inchadase rostos que lembravam velhos macacos. Um deles sentou-se em umaesquina, cantando e tocando sua concertina:

Aqui estou eu, abandonado e órfão, sem ninguém para cuidar demim.

Vou morrer daqui a pouco e ninguém vai rezar no meu túmulo.Só o rouxinol, às vezes, vai cantar na árvore ao lado...

Sashenka deu algum dinheiro ao garoto e um panfleto comunista.— Depois da Revolução — disse ela —, você vai ter pão; vocês vão

ser os patrões; leia Marx e você vai entender. Comece com Das Kapital eentão... — Mas o garoto saiu correndo.

Ela não tinha nenhuma instrução especial do partido. Assim queamanhecera, conversara com Chliapnikov no esconderijo da Shirokaia.

— As demonstrações são uma perda de tempo, camarada — insistiraele. — Não desperdice nossos panfletos. Isso não vai dar em nada, comotodos os outros tumultos.

Na sexta-feira, um oficial de polícia fora assassinado na ponte pelosoperários — e a multidão invadira a Filippov’s, a confeitaria onde Delphine,a cozinheira, comprava os mil-folhas do barão Zeitlin.

As autoridades estavam reagindo. A cidade estava cheia de cossacose soldados, lembrando a Sashenka um campo militar. Todas as ruas

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laterais e pontes eram protegidas por ninhos de metralhadoras e carrosblindados; esquadrões de cavaleiros se amontoavam nas praças; estercode cavalos fumegava na neve.

Os teatros ainda funcionavam. Ariadna tinha melhorado tanto quefora com Zeitlin ao Alexandrinski para assistir à Mascarada, de Lermontov,uma produção bastante vanguardista. O Donan e o Contant aindaestavam lotados; orquestras tocavam valsas e tangos nos hotéis Europa eAstória.

Sashenka ia se encontrar com Sagan. Mas, em vista da agitação nacidade, decidiu se dirigir ao esconderijo da Nevski, 153. Mendel, queestava com Chliapnikov e Molotov, ordenou-lhe que se acalmasse.

— É só dar uns tiros sobre as cabeças desses operários, e um poucode pão, que o movimento acaba.

Os outros concordaram. Talvez estivessem certos, pensou Sashenkasem muita convicção.

Na estação Finlânda, como de hábito, verificou se era seguida porpoliciais. Havia um sujeito que se enquadrava, mas ela o despistoufacilmente, antes de tomar o trem, onde entrou num vagão da terceiraclasse. Na frialdade, o vapor da chaminé era como uma respiraçãoofegante, rodopiando ao redor do trem como o feitiço de um bruxo.

Ela combinara encontrar-se com Sagan em Beloostrov, a povoaçãomais próxima da fronteira finlandesa. Quando chegou — a únicapassageira a deixar a composição —, Sagan a esperava em uma troica, umtrenó com três cavalos, envolto em peles, fumando um charuto. Ela subiuno trenó; ele cobriu as pernas de ambos com um cobertor de peles. Ococheiro cuspiu uma bola de catarro esverdeado, estalou o chicote e elespartiram. Sashenka lembrou-se de viagens semelhantes, com Lala, noluxuoso trenó da família: peças em marfim, portas pintadas com o brasãoda família e uma manta de zibelina. Agora estava naquele frágil trenó, quevoava pelos campos de neve, retinindo e rangendo. O cocheiro, de capuze casaco de pele de carneiro, adernava para um lado enquanto,ebriamente, estalava o chicote sobre as ancas sarnentas dos emaciadostordilhos. De vez em quando, conversava com os cavalos ou com ospassageiros, mas era difícil escutá-lo, por causa do assobio do trenó e domartelar dos cascos.

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— Eia... Aveia... preços subindo... Aveia...— Você não deveria estar em Piter, lutando contra os faraós

malvados? — perguntou Sagan.— Os trabalhadores só estão com fome, não são rebeldes de jeito

nenhum. Mas você não está preocupado?Ele abanou a cabeça.— Vai haver tumultos, não mais do que isso.— O partido concorda com você.Ela perscrutou o rosto de Sagan. Ele parecia exausto e ansioso — a

tensão de sua vida dupla, um casamento infeliz, dores de cabeça, insônia,a crescente turbulência na cidade, tudo parecia ter caído sobre ele. Elabalançou a cabeça ao pensar nas acusações de Mendel. Como poderia elesaber o que Sagan sentia, se nunca o encontrara e, com certeza, nuncaos tinha visto juntos? Não, Sagan tinha se tornado uma espécie de amigo— somente ele entendia o sofrimento de se ter uma mãe como Ariadna.Ela sentia que ele também gostava dela, por ela mesma, mas não daquelamaneira! De jeito nenhum! Sagan não era nem mesmo talhado para otrabalho de polícia. Era mais um poeta que um policial aterrorizante, comseus finos cabelos louros, que usava longos demais — mas mesmo assimficavam bem nele. Eles eram inimigos, de diversas formas, ela sabia disso,mas havia um entendimento entre eles, baseado no respeito mútuo enas ideias e gostos que compartilhavam. Ela tinha uma séria missão e,quando esta terminasse, talvez nunca mais se encontrassem. Mas estavafeliz por Mendel lhe ter ordenado que fosse ao encontro de Sagan. Muitofeliz. Tinha novidades da família para contar — em quem mais poderiaconfiar neste caso?

— Aconteceu uma coisa lá em casa — começou ela. Não havia malem recontar um mexerico inofensivo. — A sra. Lewis! Minha Lala! Mendeltem um espião no Donan. Foi assim que eu descobri. Quando euconfrontei papai, ele ficou vermelho, negou, olhou para outro lado, masfinalmente admitiu que pensara em se casar com ela por mim, para eu mesentir mais feliz em casa. Como se isso fosse fazer a menor diferença naminha vida! Mas agora ele diz que não vai se divorciar de mamãe. Ela éfrágil demais. Perguntei a Lala, ela me abraçou e me disse que tinharecusado a proposta, na hora. Eles são tão crianças, camarada Petro. O

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mundo deles está desmoronando, a dialética inevitável está prestes a cairsobre eles e eles ainda estão dançando, como aqueles passageiros doTitanic.

— Você está magoada? — perguntou Sagan, que aparava o bigodelouro, ela reparou, exatamente como o pai dela.

— Claro que não — respondeu com voz rouca —, mas nunca tinhapensado em Lala assim.

— As governantas são propensas a isso. Eu tive meu primeiro caso deamor com a governanta da minha irmã — disse ele.

— Foi? — Ela sentiu-se desapontada com ele. — E como vai suaesposa?

Ele abanou a cabeça.— Estou espiritualmente ausente de casa. Entro e saio como um

fantasma. Estou começando a duvidar de tudo em que acreditava antes.— Lala é minha confidente. Com quem você conversa?— Com ninguém. Não com minha mulher. Às vezes penso, bem,

talvez você seja a única pessoa com quem eu posso ser eu mesmo,porque somos meio-desconhecidos e meio-amigos, você não acha?

Sashenka sorriu.— Que dupla nós somos! — Fechou os olhos e deixou que o vento,

com suas partículas de neve, refrescasse seu rosto.— Ali — gritou Sagan, e apontou para uma estalagem logo adiante.— Certo, patrão — gritou o condutor do trenó, chicoteando os

cavalos.— Estamos quase lá — disse Sagan, tocando seu braço.Um pequeno chalé de madeira, de cujos beirais pendiam esculturas

de madeira coloridas, erguia-se solitário em meio aos campos de neve.Algumas bétulas postavam-se de cada lado, como guarda-costas.Sashenka pensou que o lugar ficaria bem no conto A Rainha da Neve.

O trenó parou com um assobio — as narinas dilatadas dos cavalossoltando vapor. A porta de madeira se abriu. Surgiu um gordo camponêsde barba negra, usando um cafetã de pele de urso e botas macias, que aajudou a descer do trenó.

A “estalagem”, por dentro, parecia mais uma isbá camponesa. O“restaurante” era uma única sala, com o tradicional forno russo, sobre o

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qual estava estendido um homem muito velho, com uma volumosa barbabranca, roncando ruidosamente. Pela porta entreaberta do forno,Sashenka viu carne assando em um espeto. O camponês de barba negralevou-os até uma rústica mesa de madeira e lhes serviu uma generosadose de cha-cha.

— A um estranho casal! — disse Sagan, e eles beberam. Sashenkajamais saíra para almoçar com um homem antes. A cha-cha queimou seuestômago como uma bala incandescente. Esse idílio improvável — o fogo,o velho dormindo, a aromática carne no forno — enfraqueceu suaconcentração e a fez imaginar que eles eram as únicas pessoas vivas emtodo o norte gelado. Então sacudiu a cabeça, para se manter alerta.Brincando com Sagan, a quem parecia conhecer, o camponês lhes serviuganso assado, em uma caçarola fumegante, tão bem-feito que a carnequase se desprendia dos ossos. Como acompanhamento, uma deliciosasopa de beterrabas, alho e batatas. Eles gostaram tanto da comida quese esqueceram da Revolução, conversando apenas sobre assuntos semimportância. Não houve sobremesa. O velho continuava a dormir.Finalmente partiram, bastante satisfeitos, depois de mais uma dose decha-cha.

— A sua informação conferiu, Petro — disse Sashenka, enquanto otrenó avançava sobre os monótonos campos de neve.

— Foi difícil lhe dar essa informação.— Mas não foi o suficiente. Queremos o nome do homem que nos

traiu.— Posso arranjar isso para você. Mas tenho que apresentar alguma

coisa aos meus superiores. Vamos continuar nos encontrando.Excitada pelo perigo do jogo, ela ficou em silêncio por algum tempo,

enquanto se preparava.— Está bem — disse. — Há uma coisa. Gurstein escapou do exílio.— Sabemos disso.— Ele está em Piter.— Isso nós suspeitamos.— Bem, quer saber como encontrá-lo?Ele assentiu.— Tente o albergue Kiev, quarto 12.

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Era a resposta ensaiada com Mendel. Este a avisara de que elamesma teria que fornecer a informação. Gurstein, aparentemente, eradescartável.

Sagan não parecia impressionado.— Ele é um menchevique, Sashenka. Eu quero um bolchevique.— Gurstein escapou de Baku junto com Senka Shashian.— O bandoleiro louco, que roubava bancos para Stalin?— Ele está no quarto 13. Você está em débito comigo, camarada

Petro. Se alguém souber disso, o partido me mata amanhã. Agora, me dêo nome do traidor que delatou a gráfica.

Por um momento, ouviu-se apenas o arrastar das lâminas do trenócortando a neve congelada. Sashenka conseguia sentir Sagan pesando opreço da vida de um homem contra o valor de um agente.

— Verezin — disse ele finalmente.— O porteiro do quartel dos Guardas Montados?— Surpresa?— Nada me surpreende — disse ela exultante.O céu tinha sulcos escarlates como sangue. Coelhos pulavam à frente

dos cavalos e se entrecruzavam, dando saltos faceiros. Que alegria! Sagandeu ordens ao cocheiro, que chicoteou os cavalos.

Sashenka se recostou e fechou os olhos. Conseguira o nome. Suamissão fora bem-sucedida. O partido ficaria satisfeito. Obtivera o queMendel queria — nada mal, refletiu ela, para uma garota do Smolni! Dealguma forma, juntos, ela e Sagan haviam feito o que era preciso. Ecompartilhado o entusiasmo que todos os agentes sentem após o êxitode uma missão. Ela o enganara e, qualquer que fosse o motivo, ele lheentregara a pepita de ouro.

Uma cabana apareceu a distância, provavelmente nos limites dealguma propriedade. A temperatura caía e o gelo estava endurecendonovamente. Um grupo de pinheiros parecia ter sido folheado com prata.

— Olhe lá! — disse Sagan, segurando a mão enluvada de Sashenka.— Não é lindo? Bem longe dos conflitos da cidade. Eu queria lhe mostrarum lugarzinho maravilhoso, que eu adoro.

— Lá está, barin — disse o cocheiro, levantando as sobrancelhas ecuspindo. — Como o senhor ordenou.

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— Eu poderia viver aqui para sempre — disse Saganapaixonadamente, tirando a chapka, cabelos sedosos caindo sobre osolhos. — Eu poderia fugir para cá. Poderia ser feliz aqui, você não acha?

Uma pequena espiral de fumaça se evolava da distante chaminé dezinco. Sagan segurou a mão de Sashenka e lhe retirou a luva. Mãosquentes e secas se uniram. Então ele enfiou a mão dela em sua próprialuva, onde os dedos de ambos permaneceram comprimidos, enterradosem pelica e pelo de coelho. O contato parecia impertinente, sim, eterrivelmente íntimo, mas ela o achou delicioso. Ficou ofegante. A peletenra de sua palma ficou insuportavelmente sensível, ardendo eformigando contra a pele áspera dele. Ela sentiu um rubor subir pelopescoço e, com um movimento abrupto, retirou a mão de dentro daluva.

Sentiu os olhos dele pesarem sobre ela, mas desviou o olhar. Aquilo,decidiu, fora além do que deveria.

— Rápido! Bistro! — Sagan berrou para o cocheiro.Os três cavalos dispararam e, subitamente, o cocheiro perdeu o

controle. O trenó sacolejou para a direita e para a esquerda, enquanto ocondutor gritava. A superfície estava irregular e fazia com que seinclinassem para um lado e para outro — até que o trenó decolou, emum tornado de neve rodopiante, e Sashenka viu-se atravessando o ar.

Aterrissou em uma duna macia, com o rosto para baixo, epermaneceu imóvel por um momento. Sagan estava próximo a ela, masnão se movia. Estaria vivo? E se estivesse morto? Ela sentou-se. O trenóestava emborcado e os cavalos galopavam para longe, perseguidos pelococheiro. Sagan estava imóvel, o rosto coberto de neve.

— Petro! — gritou ela, arrastando-se até ele e tocando a covinha deseu queixo. Sagan sentou-se, rindo, limpando a neve de seu rostocomprido e estreito.

— Você me deu um susto — disse ela.— Eu pensei que nós dois estávamos mortos — respondeu ele, e ela

riu também.— Olhe para nós! — disse ela. — Estamos encharcados.— E com frio — disse ele, procurando o trenó. — E receio que

totalmente sozinhos!

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Enquanto recolocava o chapéu de volta na cabeça dele, ela notouque suas pupilas estavam dilatadas com a excitação do acidente. Eles nãoconseguiam parar de rir, como crianças. Estavam sentados no meio daneve, o chalé ainda distante, o trenó invisível. Ele moveu a cabeça, paradescansá-la no ombro dela; como ela fez o mesmo movimento, bateramcom as cabeças. Então, olharam um para o outro.

Sem hesitar, ele a beijou nos lábios. Ninguém jamais a beijara antes.Pensando no partido, encantada com o próprio sucesso e pensando queMendel tinha razão, afinal de contas, talvez Sagan gostasse dela, elapermitiu que ele pressionasse os lábios nos dela. A língua dele penetrouem sua boca e lambeu seus lábios, dentes, língua. Os lábios dela ficaramformigantes e ela sentiu-se sonolenta e sonhadora. Por um momento,apenas por um momento, fechou os olhos e deixou sua mão fazer o quesempre quisera: acariciar aqueles cabelos claros, que lhe lembravam seda.Eles haviam trocado confidências pessoais — poesia, o casamento e asdores de cabeça dele, a família dela —, mas nada era tão absoluto comoo Jogo Supremo da conspiração. A troca mortal de informações formara oclímax de uma polca lenta e voluptuosa, dançada sobre gelo fino.Sashenka estava tonta e trêmula, mas faíscas de excitação nervosa e umchoque de calor sensual percorreram seu corpo.

— Estamos aqui, barin — gritou o condutor do trenó, cuja barbaestava congelada. Ele endireitara o trenó e dera um passeio com osagitados cavalos, para que se acalmassem. — Desculpem a batida, masestou vendo que vocês não quebraram nenhum osso. São o retrato dasaúde! — e deu uma gargalhada rouca.

A pele de Sagan era morna e sua barba cerrada a espetava. Elaafastou o rosto.

— Eia! — gritou o cocheiro. O trenó parou ao lado deles com umassobio, em um movimento que os polvilhou com uma ducha de estrelascongeladas.

Sagan ajudou Sashenka a se levantar e subir no trenó, espanando-lhe a neve das roupas. As mãos e os joelhos dela tremiam. Com a mangado casaco, ela limpou os lábios. Sentia-se inquieta e insegura.

Momentos depois, chegaram ao chalé. Hastes de gelo com pontasafiadas pendiam dos beirais; cristais de neve desenhavam requintadas

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filigranas nas janelas. A porta de madeira abriu-se e uma sorridentecamponesa saiu. Tinha bochechas rosadas, usava um cafetã de pele decarneiro e trazia uma bandeja com dois copos de gogol-mogol. O céuameaçador estendia um macio cobertor sobre a neve, tingindo-a de umprofundo azul-purpúreo.

Na estação, mais tarde, Sagan e Sashenka se despediram.Ela sentiu uma espinha no queixo. Tocou-a e, lembrando-se dos

lábios dele sobre os dela, estremeceu.

29

O capitão Sagan observou o pequeno trem de Sashenka partir e ganharvelocidade, a fumaça como o penacho do capacete de um gendarme.

Apresentou seu passe para o chefe da estação, um idiota que semostrou extasiado em ceder seu confortável gabinete. Então,aquecendo-se em frente ao forno holandês e servindo-se de uma dosede conhaque, escreveu um relatório para seu chefe, o generalGlobatchev.

Suas têmporas estavam começando a se contrair, o que era sempreo início de uma reverberante enxaqueca. Rapidamente, esfregou nasgengivas um pouco do pó medicinal e cheirou duas pitadas. As coisas nãoestavam indo bem. Ele e o general estavam mais preocupados com SãoPetersburgo do que demonstrara a Sashenka. E ambos concordavam quemedidas drásticas e a destituição da Duma se faziam necessárias: já erahora, refletiu, de os cossacos empunharem seus chicotes nagaika. Otônico de coca substituiu sua ansiedade por uma triunfante satisfação,que lhe martelou as têmporas.

Desde seus dias no Corpo de Pajens, Sagan estivera sempre entre osmelhores alunos, e se formara com louvor na Escola de Detetives.Aprendera a usar as tabelas antropométricas do sistema de Bertillon, paradescrever os traços dos suspeitos, obtivera o prêmio de melhor atiradorno curso prático de armas de fogo do capitão Glasfedt e conhecia afundo as “Instruções para a Conduta Organizacional dos Agentes

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Internos”, que aplicara meticulosamente a Sashenka. Tinha memorizadoas polidas determinações do coronel Zubatov, o gênio da Okhrana, queescrevera: você deve considerar seu informante como uma amante comquem está envolvido em um adultério. De fato, era impossível transformarrevolucionárias em agentes duplas sem exercer alguma forma decavalheirismo, mesmo se isto significasse empregar o que ele chamava de“anticavalheirismo” — permitir que adolescentes tolas acreditassem serintelectuais sérias, que jamais admitiriam o menor flerte, muito menosinvestidas sexuais. Sagan seguira as recomendações de Zubatov comduas de suas agentes duplas; uma estava infiltrada nos SRs e outra, entreos bolcheviques. Nenhuma delas era uma beldade, mas o drama daespionagem mais que compensava a insipidez dos exercícios praticados noleito.

Sagan sempre se preparava minuciosamente para seus encontroscom Sashenka, ouvindo os últimos tangos e decorando resmas daquelesversos baratos de Maiakovski, que tinham virado a cabeça dela. Adevoção de Sashenka ao bolchevismo tornava aquilo uma brincadeira decriança: as que não tinham senso de humor eram sempre as mais fáceisde dobrar, disse a si mesmo. Como muitas revolucionárias, ela era uma jid,uma judia, daquela raça de renegados que defendiam o marxismo ateuou o cáiser alemão. Ele sorriu diante de sua própria postura liberal, eleque acreditava tão apaixonadamente no Tsar, na Igreja Ortodoxa e naPátria — a velha ordem.

Então, com a tinta e a pena do chefe da estação, começou aescrever seu relatório para o general:

Sua Excelência, estou muito satisfeito com o caso da agente23X (“Raposa”), que finalmente começou a se mostrar útil.Como sabe Sua Excelência, já me encontrei clandestinamentecom essa integrante do PSTR (Partido Socialista dosTrabalhadores Russos: facção bolchevique) onze vezes, incluindoo primeiro interrogatório. As horas de trabalho foramrecompensadas e ainda produzirão consideráveis benefícios maistarde. Utilizamos nossa equipe de agentes externos para seguiros movimentos da Raposa, o que nos permitiu prender três

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niilistas de médio escalão e descobrir o local da nova gráfica.O preço do recrutamento dessa agente foi 1. filosófico —

sua convicção de minha simpatia pela causa e pela pessoa dela (oresgate de sua mãe no apartamento do Tenebroso Um foiparticularmente bem-sucedido na obtenção da confiança); e 2.tático — a entrega do nome do porteiro (novo membro dopartido, cognominado Guarda-Montado), que nada custou aonosso serviço, já que tínhamos falhado em recrutá-lo comoagente interno, apesar da oferta do habitual encorajamentofinanceiro (100 rublos/mês), conforme as “Instruções para aConduta Organizacional dos Agentes Internos”, de P. Stolipin.

No encontro de hoje, a agente entregou o nome de doisrevolucionários, um faccionário dos mencheviques e um terroristabolchevique, há muito tempo procurado pelas Seções deSegurança de Baku, Moscou e Petrogrado. Vou organizar avigilância de acordo com as “Instruções para a VigilânciaExterna”, do general Trusevitch, e a subsequente prisão. Solicitosua permissão para continuar a lidar com a Agente “Raposa” nofuturo, pois acredito que sua utilidade para o Serviço dependedo meu controle. É possível que seus chefes bolcheviques lhetenham ordenado que entregasse aqueles nomes, mas acreditoque a ameaça de exposição a seus próprios camaradas tornarámais fácil, agora, obter sua submissão.

Nossa missão primordial continua a ser a prisão de MendelBarmakid, tio da “Raposa” (codinome Pé-Torto; tambémCamarada Baramian, Camarada Fornalha etc.), e da facçãobolchevique do Comitê de Petrogrado, mas tenho absolutaconvicção de que esta organização já está irremediavelmentedestruída e incapaz de qualquer ameaça a curto e médioprazos...

Pobre Sashenka, pensou Sagan, satisfeito consigo mesmo. No fundodo coração, porém, sabia que ela era a estrela mais brilhante de seufirmamento.

Ele não tinha a menor pressa de ver sua mulher ou o general

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Globatchev. Se pudesse seguir seus próprios impulsos, iria ao esconderijotodas as noites, para se encontrar com Sashenka.

O acanhamento dela, as dúvidas de adolescente, sua posturadesajeitada, a maneira afetada como se vestia com sarja cinzenta, meiasde algodão e blusas abotoadas, seu volumoso cabelo atado em umvirginal coque bolchevique, a ausência de qualquer maquiagem, oumesmo de perfume — tudo isso o aborrecera no início. Mas, nas últimassemanas, ela começara a lhe agradar. Ele agora ansiava pelo aroma de suacarne tenra, a visão de sua luxuriante cabeleira, o modo como seus olhoscolombinos o fitavam intensamente, com os dedos tocando o estreitolábio superior, quando falava sobre a mãe. Seu corpo esbelto estavaadquirindo curvas de mulher, que ela estava determinada a ocultar edesprezar. E nada era tão adorável como seu modo de reprimir o própriohumor e joie de vivre, juntando as sobrancelhas para bancar a austerarevolucionária. Ele ria com as peças pregadas pelo Todo-Poderoso, pois,apesar da enorme vontade que ela tinha de parecer matronal, Deus lhedera traços — aqueles lábios que nunca se fechavam, aquelespenetrantes olhos cinzentos, aqueles seios opulentos — que sabotavamseus desejos a cada momento, e a tornavam mais apetitosa.

Quando saboreara seus lábios, Sagan realmente começara a tremer.A relutância de Sashenka em retribuir o beijo tornara o óbvio prazer delamuito mais intenso e delicioso. Ou será que imaginei isso?, perguntou a simesmo. Qualquer homem de quase quarenta anos perderia suacapacidade de discernimento ao ser confrontado com aquela pele,aqueles lábios e a voz rouca, que ele agora conhecia tão bem. Levantouas mãos e achou que conseguia sentir o aroma de sua pele, de seupescoço...

Apesar de tudo, ela era sua agente. A causa, o Tsar e a Pátriavinham sempre em primeiro lugar. Havia uma luta desesperada pelasobrevivência entre o bem e o mal, e ela estava do lado errado. Se eletivesse que... Bem, esperava nunca ter de chegar a esse ponto. AOkhrana era especial. A guerra para defender o Império tinha que serlutada com sigilo impiedoso — como seu colega, o general Batiuchin, lhedissera: “Honrado seja aquele que desonra o próprio nome e tem osilêncio como única recompensa de sua missão.” Ele molhou o dedo de

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saliva e o mergulhou no pó do dr. Gemp, que aplicou no nariz e nasgengivas, rindo consigo mesmo.

A porta se abriu. Surgiu um narigão, seguido por costeletas ruivas,uma pança uniformizada e o restante do chefe da estação.

— O senhor disse alguma coisa, excelência? — perguntou ele. —Alguma coisa que eu possa fazer? Um bilhete para os meus superiores meajudaria. Eu ficaria muito grato...

— Por que não?— Espero que o senhor esteja destruindo nossos inimigos, os

agentes alemães e os niilistas jids! — O chefe da estação esfregou asmãos.

— Totalmente! Quando parte o próximo trem para a estaçãoFinlândia? Tenho que fazer um relatório.

— Cinco minutos, excelência. Deus Salve o Tsar!

30

O Benz ornamentado do grão-duque já estava estacionado entre ascarruagens, em frente ao Palácio Radziwill, na Fontanka, quando oDelaunay dirigido por Pantameilion entrou no pátio, as correntes dasrodas mal se agarrando ao gelo. Samuil e Ariadna Zeitlin esperavam a vez,enquanto o Renault da embaixada francesa desembarcava o embaixadorPaleologue e sua esposa.

Os Guardas Izmailovski, de túnicas verdes, os gendarmes, comespigões nos capacetes, e os cossacos, com calças de couro e espessoscasacos de pele, que brandiam grossos chicotes, estavam acampados emtorno de fogueiras nas praças e vigiavam as esquinas. O ar cheirava afumaça, suor e esterco de cavalos; as pedras dos calçamentos ressoavamcom o tropel de milhares de cascos, o estrépito de carroçastransportando morteiros e o metálico chocalhar de rifles, arreios eespadas.

O som de valsas e risos emanava do palácio. No alto da escadaria, osZeitlins cumprimentaram o embaixador francês e sua mulher. O quarteto

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acabara de concordar que a cidade estava muito tranquila quando um tiroecoou acima dos telhados. Cães uivaram, sirenes gemeram e, em algumlugar na direção do bairro de Viborg, a cidade parecia rugir.

— Como está o senhor, prezado barão? A senhora está melhor,baronesa? — O embaixador francês fez uma mesura, falando um russofluente.

— Muito melhor, obrigada. O senhor ouviu isso? — perguntouAriadna, os olhos iridescentes como redemoinhos. Fogos de artifício!

— Isso foi um tiro, baronesa, eu receio — replicou o embaixador,imaculado em um casaco negro, cartola e gravata branca. — Outro tiro.Centenas de milhares de operários das usinas estão marchando emPetrogrado, Viborg e Narva.

— Estou congelando — disse Ariadna, tremendo.— Vamos entrar — sugeriu a francesa, segurando-lhe a mão.A esposa do embaixador e Ariadna estavam vestidas com longos

casacos de pele, um de arminho, outro de foca, que entregaram aoscriados ao entrarem no palácio. Ariadna, como um anjo saindo de umafonte, emergiu pálida e resplandecente em um vestido de brocado malva,bordado com diamantes, as costas bem decotadas. E foi abraçar o casalmais rico da Polônia lituana, o príncipe e a princesa Radziwill.

— Você foi gentil em ter vindo, Ariadna, e a senhora também,madame Paleologue, em uma noite como esta. Pensamos em cancelar arecepção, mas o querido grão-duque Basil nos proibiu terminantemente.Disse que era nosso dever, sim, nosso dever. Falamos com o generalKabalov e ele foi muito tranquilizador...

Mais tiros. Zeitlin e o embaixador permaneceram do lado de fora, nosdegraus, perscrutando a noite. Limusines e trenós desembarcavamconvidados. Diamantes e esmeraldas pendiam como gotas de orvalho dasorelhas das mulheres, que se moviam sob lustrosas peles, como animais.Perfumes competiam com o frio cortante pelo domínio do ar. Zeitlinacendeu um charuto e ofereceu outro ao embaixador.

Ambos guardaram silêncio. O embaixador, ciente da disparada dospreços e dos alertas da polícia secreta sobre tumultos iminentes, estavaadmirado por encontrar ministros e grão-duques divertindo-se em umanoite como aquela.

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Zeitlin entretinha-se com os próprios pensamentos. Atravessararevoltas, passeatas, pogroms, duas guerras, a revolução de 1905, esempre emergira mais rico e poderoso. As coisas em casa estavam calmasnovamente; seu inusitado acesso de loucura e dúvida fora superado.

As injeções de ópio, aplicadas pelo dr. Gemp, tinham recuperadoAriadna; o divórcio estava fora de questão. Sashenka estava matriculadano curso do professor Raev e Lala parecia calma e aquiescente. Sua únicapreocupação era Gideon. O que aquele pilantra, aquele momzer, estariatramando?

31

Gideon Zeitlin estava a caminho de casa no Russo-Balt, o grande carro depasseio, com Leonid, o mordomo, ao volante. Tinha duzentos rublos nobolso. Cossacos haviam levantado postos de controle em torno do cordãooficial estendido na Liteini, que protegia o Estado-Maior, o Ministério daGuerra e o Palácio de Inverno. Quando Gideon cruzou a Nevski, algunsoperários atiraram pedras no carro.

— Especulador nojento! — gritaram. — Vamos te ensinar a nãoexplorar o povo.

As pedras tamborilaram no teto, mas Gideon, sempre meio ébrio,mesmo quando sóbrio, não sentiu medo.

— Eu? Logo eu? É meu irmão que vocês querem, seus idiotas! —resmungou, dando um tapa na coxa. — Siga em frente, Leonid! O carroque eles estão amassando não é nosso! Ah! Ah!

O mordomo era um motorista nervoso, mesmo nos melhoresmomentos, e não estava achando tanta graça.

Estacionaram na Décima Rojdestvenskaia, uma rua estreita, com altosblocos de apartamentos recém-construídos. Gideon pulou do carro,ajeitando o casaco em torno dos ombros.

— Então, já estou indo — disse Leonid.— Hmmm — disse Gideon, que prometera passar algum tempo em

casa: à mulher, às filhas e ao irmão Samuil. Mas não queria comprometer

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todo o tempo. — Eu gostaria que você esperasse.— Desculpe, Gospodin Zeitlin, eu não gosto de deixar o carro do lado

de fora por muito tempo — retrucou o criado. — O barão disse: “Leve elee volte para casa”, e eu trabalho para o barão. Além disso, o motor docarro pode levar uma pedrada e esta é uma excelente máquina, GospodinZeitlin, bem melhor que o Delaunay ou...

— Boa noite, Leonid, boa viagem!Cumprimentando alegremente o porteiro (enquanto pensava: “Seu

miserável informante da Okhrana!”), Gideon atravessou o saguão demármore e tomou o elevador — uma beleza art déco com bronzes polidose entalhes negros — até o quinto andar. O conhaque e o champanheque bebera com Samuil percorriam alegremente seu corpo, fazendo seucoração arder, suas entranhas se agitarem e sua cabeça rodar. Suaesposa, Vera, mãe de suas duas filhas, estava grávida de novo, mas elegastara todo o magro salário em jantares no Contant e em jogos de azar.Que tragédia, riu consigo mesmo. — Ter nascido rico e crescido pobre!

Uma vez mais, seu irmão o tinha socorrido, abrindo sua simpáticacaixa-forte de teca e lhe entregando a mazuma, duas notas novas doImpério. Mas lhe comunicara que não a abriria novamente durante umlongo tempo.

— Ah, aí está ele! — disse Vera, que estava em frente ao fogão, emum surrado casaco e de chinelos.

— Que ótima recepção para um filho pródigo — disse Gideon,beijando seu rosto anêmico. — Logo eu! — Apesar de seu maucomportamento, Gideon sempre se surpreendia com o modo como eratratado. Colocou sua mão enorme e cabeluda na barriga dela. — Comoestá se sentindo, comandante em chefe?

Como a barriga dela está firme e esticada, pensou. Isso é meu, é ofruto de minha semente — mas quem sou eu para trazer mais umacriança para essa vida de pantomima? O mundo está cada vez mais forade controle...

A voz tensa de Vera se suavizou:— É bom ver você de novo, querido.— É bom ver você também!Então o rosto cansado se endureceu novamente.

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— Você vai comer conosco? Por quanto tempo teremos a honra desua companhia, Gideon?

— Estou aqui para ficar com você e as meninas — respondeu Gideon,tão alegremente que quem não o conhecesse ficaria convencido de queele era o melhor marido em Piter. Ali, ninguém o ajudava a tirar o casacoe as galochas. O apartamento estava desarrumado e cheirava a banha erepolho, como uma casa de camponeses. Como muitos homensdesorganizados, que jamais colocam nada em ordem, Gideon odiava adesarrumação e inspecionava com fúria acusatória os pratos sujos, osleitos desfeitos, os lençóis amarelados, os sapatos e botas amontoados, eas pegadas nos tapetes. Era um apartamento agradável, pintado debranco, com despretensiosos móveis de bétula finlandeses, mas osquadros ainda não haviam sido pendurados.

— Este lugar é um esgoto, Vera. Um esgoto!— Gideon! Nós não temos nem um copeque. Temos que pagar vinte

rublos ao açougueiro, ou vamos perder o crédito. Devemos oito aoporteiro, devemos...

— Esqueça, querida. O que temos para jantar?— Kasha e queijo. Não temos condições de comer outra coisa. Não

há nada na cidade para comer. Viktoria! Sophia! Seu papai está aqui!Ouviu-se o som de grossas solas martelando o chão. Uma garota

apareceu à porta, relutante e amuada, observando o pai com olharperplexo, como se este fosse um marciano.

— Olá, papai — disse Viktoria, conhecida como Vika.— Querida Vika! Como vai? Como está a escola? E aquele seu

admirador? Ainda lhe escrevendo poemas?Ele abriu os braços, mas sua querida filha de 15 anos não se

aproximou, nem alterou sua expressão.— Mamãe está muito cansada. Ela chora. Você não vem aqui há

muito tempo. Nós precisamos de dinheiro.Alta, pele azeitonada, cabelos escorridos, óculos com aro de chifre e

um roupão, Vika lembrava a Gideon uma intransigente bibliotecária. Elenão conseguia se aproximar dela.

— Onde você estava? — continuou a garota. — Bebendo? Correndoatrás de mulheres à-toa?

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— Que acusação! Eu? Logo eu? — Gideon baixou os olhos. Emborasua boca rasgada, seus irrequietos olhos negros, sua barba e cabelosrevoltos fossem talhados para gestos grandiloquentes e gargalhadas,sentiu-se vazio e envergonhado. Onde ela aprendera uma expressãocomo “mulheres à-toa”? Com aquela mãe dela, é claro.

— Tenho dever de casa para fazer — disse Vika, afastando-seencurvada.

Gideon deu de ombros: Vera estava envenenando as filhas contraele. Então ouviu um tropel de passos leves. Sophia, uma menina decabelos encaracolados, bem pretos, e queixo saliente, atirou-se em seusbraços. Ele a levantou e rodopiou com ela, fazendo drapejar sua camisolasurrada.

— Mouche! — berrou ele. — Minha querida Mouche! — Este era oapelido de Sophia, porque, ainda bebê, lembrava uma mosca travessa.Agora mais velha, irradiava energia, assim como o pai.

— Onde você esteve? Está havendo uma revolução? Nós vimos umabriga na padaria! Eu quero ir lá fora, papai. Me leve com você! Comoestão seus amigos revolucionários? Você viu alguma coisa? Eu torço pelostrabalhadores! Como está você, papai? Está escrevendo alguma coisa? Eusenti falta de você. Você não se comportou mal, não é? Nós esperamosque não! Nós aqui somos muito moralistas! — Ela se agarrou nele comoum macaco. — O que você está escrevendo, meu velho papai momzer?

Ele adorava o modo como ela o chamava de “papai pilantra”, emiídiche, e fazia cócegas em sua barba.

— Vamos escrever alguma coisa agora, Mouche? Eu tenho queentregar um artigo sucinto.

— Ah, sim!Mouche segurou sua mão e o arrastou até o escritório, onde era

difícil andar sem derrubar pilhas de papéis e jornais. Mas a ágil Mouchecontornou os obstáculos e puxou a cadeira de couro verde dele,colocando o papel, habilmente, na máquina de escrever.

— Pravilno! Certo! — disse ele.— Agora, quem vamos defender hoje? Os kadets? Os

mencheviques?— Os mencheviques! — respondeu ele.

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— Esta semana, então, você é socialdemocrata? — caçoou ela.— Esta semana! — Ele riu de si mesmo.— Quantas palavras?— Quinhentas, não mais. Temos alguma coisa para beber?Mouche se apressou em ir buscar um cálice de vodca.Ele engoliu a bebida e sentou-se na cadeira.Mouche se acomodou em seu colo, pousou as mãos em seus braços

e gritou:— Comece, papai! Que tal isso? “As loucuras reacionárias do regime

estão quase terminando.” Ou “Eu vi uma mulher faminta na rua, viúva deum operário, sacudir seu neném na direção de um rico beneficiário daguerra.” Ou...

— Você é tão parecida comigo — disse ele, beijando sua testa.Gideon era um desses jornalistas que, em poucos minutos, sem

esforço aparente, podem produzir um artigo abalizado, adornado comfrases retumbantes. Como nunca conseguia decidir se era um liberalconstitucional — um kadet — ou um socialdemocrata moderado, ummenchevique, escrevia para os jornais de ambos os partidos, assim comopara diversos outros, usando nomes diferentes. Viajara muito e suasmatérias continham referências a cidades estrangeiras e guerrasesquecidas, que impressionavam o leitor. Suas frases, tãodescuidadamente construídas, frequentemente atingiam o alvo. Aspessoas as repetiam. Os editores pediam mais. Ele jamais se arrependerade ter vendido a Samuil sua parte nos negócios da família, emborapudesse ser hoje um homem rico, se a tivesse conservado. Não searrependia de nada. Aliás, o dinheiro não parava em suas mãos.

Ele prometera ao editor menchevique, para aquela noite, umestimulante artigo sobre a atmosfera das ruas. Agora, com Mouche nocolo, apertando entusiasmada os tendões de seus braços musculosos,trabalhava rápido, martelando as teclas e gritando “Retorno!” ao final decada linha. Mouche acionava então a alavanca de retorno da máquina,cantarolando baixinho, alegremente, sacudindo os joelhos com nervosaenergia.

— Pronto — disse ele. — Acabei. Seu papai acaba de ganhar algunsrublos por isso.

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— Que nós nunca veremos! — disse Vera, que estava à porta.— Dessa vez, posso surpreendê-la! — Gideon sentia-se virtuoso.

Tinha dinheiro suficiente para pagar as dívidas, satisfazer Vera, comprarnovos livros e vestidos para as meninas e pagar algumas ótimas refeições.Estava ansioso para entregar a mazuma: Vera sorriria para ele; Mouchedançaria; até mesmo Vika iria amá-lo de novo.

Ao servir a kasha, um mingau de trigo-sarraceno polvilhado comqueijo de cabra, Vera lhe perguntou novamente sobre o dinheiro, semmencionar que havia uma revolução em andamento. No lado de fora, assirenes das fábricas começaram a ressoar e gemer; um tiro, mais tiros euma barragem de artilharia estrondeou; carros roubados corriam pelasruas, derrapando, fazendo ranger as embreagens, enquanto camponesesse deleitavam com suas primeiras lições de direção.

— Sashenka é mesmo uma bolchevique, papai? Como vai a tiaAriadna? É verdade que o doutor receitou ópio para ela? — Mouche faziaperguntas e cantarolava baixinho, enquanto ele tentava respondê-las.Vika olhava para o pai cada vez que sua mãe apertava os lábios, suspiravaou fungava com ar de mártir.

Ninguém conseguia perturbar uma refeição de Gideon. Fosse kashaem seu lúgubre apartamento, ou filé de esturjão no Contant, ele era umextraordinário glutão, que contava casos de família enquanto comia,estalando os lábios, farejando a comida como um cachorro feliz e sujandoa barba sem o menor constrangimento.

— Você não come como nos ensinou a comer — disse Vika. — Suasmaneiras são horríveis, não são, mamãe?

— Não façam o que eu faço — replicou Gideon. — Façam o que eudigo!

— Isso é hipocrisia — disse Vika.— Vocês duas são um verdadeiro sindicato de mulheres mal-

humoradas! Alegrem-se! — disse Gideon, colocando os pés em umacadeira imunda, já marcada por suas botas.

— Chega de brincadeiras, Gideon — disse Vera, ordenando que Vikae Mouche fossem fazer o dever de casa.

No momento em que ficou sozinho com Vera, tudo mudou. O rostodela, anêmico e emaciado, apropriado para o martírio, o deixava irritado.

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Ela estava sempre limpando o nariz com um trapo manchado de verde.Seu puritanismo o enlouquecia. Ele adorava as filhas — ou melhor,adorava Mouche —, mas o que acontecera com Vera? Nascida naburguesia provinciana, filha de um professor de Mariupol, receberaeducação; era uma intelectual que trabalhava no jornal literário Apollo,cheia de energia e entusiasmo — com seus seios fartos, olhos azuis ecabelos louros. Agora os seios se penduravam em seu peito, comoúberes, os olhos tinham se desbotado até uma palidez morna e o cabeloestava ficando grisalho. Como tinha sido tão louco a ponto de engravidá-la novamente? Nem conseguia acreditar! No aniversário de Mouche,sentira uma nostalgia de como ela fora, esquecendo-se de como eraagora. O fato de que ele próprio era o causador de tudo, e de se sentirculpado, aumentava ainda mais o rancor que sentia contra ela.

Somente Mouche o encantava. Ele decidiu que, quando ela fosse umpouco mais velha, iria convidá-la para morar com ele. Por enquanto, malconseguia permanecer ali por mais tempo. Grandes acontecimentostomavam forma nas ruas, enquanto festas eram realizadas nos hotéis; umescritor tinha que testemunhar a história em andamento; ele estavaperdendo tempo com aquela megera puritana.

Vera desfiava reclamações: o enjoo das manhãs tinha passado, massuas costas doíam e ela não conseguia dormir. O porteiro faziacomentários sobre o comportamento de Gideon. Vika dissera às amigasque seu pai era um revolucionário e um bêbado; Mouche eradesobediente e malcriada, os professores reclamavam dela; seus vestidose botas já não lhe serviam mais. Não havia dinheiro; estava difícil conseguircarne nos mercados e impossível achar pão; alguém no prédio contara aosvizinhos que vira Gideon bêbado, de manhã cedo, no Hotel Europa; comoele achava que ela se sentia com isso?

Um estômago cheio nunca fazia Gideon ficar com sono; a comida iadireto para sua virilha. Fortalecia sua libido. Algo o fez lembrar-se doalmoço da semana passada, na casa de seu irmão. Os Loris eram famosospor seu casamento feliz, mas o tedioso conde não estava no almoço eGideon apresentara a Missy o que ele chamava de “Manifesto de Gideon”:vamos nos divertir agora, pois a vida é curta e amanhã nós morreremos.(Embora óbvio, o manifesto era surpreendentemente bem-sucedido!)

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Quando estava se despedindo de Missy, ela o olhara no rosto, com seusolhos cintilantes — cujas rugas o sorriso acentuava —, e apertara suamão, dizendo inequivocamente:

— Será ótimo conversar sobre Meyerhold e o novo teatro. Presumoque você estará na recepção da baronesa Rozen, no Astória, dia... — emencionou uma data.

Gideon não prestara muita atenção. Mas agora, com seu falo bemalimentado e revigorado — sempre um brilhante intérprete das intençõesfemininas —, lembrara-se de que a festa seria naquela noite. Então,animou-se. Tinha que ir àquela festa, imediatamente.

Missy jamais lhe dera a menor atenção. Era bastante mundana —tinha que ter mente aberta para ser amiga de Ariadna —, mas, naverdade, nunca flertara com ninguém e, certamente, não com ele.Gideon refletiu que a guerra, a perda de respeito, os ministérios sempremudando e os distúrbios nas ruas deviam estar derrubando algumas frutasmaduras que, de outra forma, jamais teriam caído ao chão. Pensou nocorpo de Missy Loris — aquela loura de cabelos curtos era magricela e nãotinha busto —, mas, subitamente, ansiou pela pura e simples alegria deprovar carne nova, aqueles lábios, o interior acetinado de suas coxas.Sorriu consigo mesmo: aquele urso gigantesco era capaz de façanhaseróticas hercúleas que ninguém — com exceção das próprias mulheres —jamais acreditaria ser possível. Com delicadas frases em francês, queacabavam com as inibições tanto de coristas quanto de condessas, elepropunha os atos amorosos mais extravagantes. Seus sucessos eróticos,entretanto, não o tinham deixado vaidoso. Por que aquelas adoráveisbubelehs, aquelas belezocas, escolheram a mim?, pensava ele. Eu? Logoeu! Eu sou um brutamontes, um taberneiro judeu! Mas que diabos,também não vou reclamar!

Simplesmente não conseguia resistir: tinha que encontrar Missynaquela noite. Mas se entregasse os duzentos rublos a Vera, não teriacom que pagar drinques e salgadinhos. O que fazer? Ele gemeu. Faria oque sempre fazia.

Pouco depois, enquanto Vera lavava a louça morosamente, Gideontratou de escapulir, deixando cinquenta rublos na mesa da sala eguardando o restante para si mesmo. Mouche o ajudou a colocar as botas

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e lhe entregou “nosso artigo menchevique!”, enquanto Vika sacudia acabeça, apertando os lábios.

— Você já está saindo, papai? Eu sabia. Eu sabia. Eu sabia!— Nós vamos mudar a fechadura, seu parasita! — gritou Vera, mas

ele já havia partido.

Nas ruas, Gideon não conseguiu encontrar um trenó. Aquela chorona daVera que desse um jeito, pensou. Vera e Vika: que dupla de desmancha-prazeres! Sou um covarde, um hedonista incorrigível e vergonhoso — masestou feliz! Estou tonto com a expectativa! O que há de errado com afelicidade? Nós fazemos nossas próprias vidas! O que são os humanos?Somos apenas animais. Vou morrer jovem. Não vou ficar para semente,então estou fazendo o que faz a minha espécie. Aliás, tenho que ir!Tenho um artigo para deixar no jornal. Farejou o ar gelado. Sonsestranhos ecoaram a distância. Tiros explodiram, apitos de fábrica soaram,motores aceleraram, pneus derraparam e vozes cantaram — mas tudoparecia calmo à sua volta. Então caminhou a passos largos em direção aoHotel Astória, antecipando mentalmente os ombros nus de Missy, seuventre macio, a mescla de perfume e o suor de fêmea, e desembocounas ruas mais largas. Tudo começou com um murmúrio, depois umavibração, que se transformou em um rugido. As largas avenidas seenchiam com milhares de indivíduos, cujas cabeças cobertas e pesadoscasacos os transformavam em embrulhos acolchoados, como se fossemrobôs marchando na mesma direção.

Às vezes acompanhando a corrente, às vezes saindo dela e aobservando passar, Gideon sentia-se empolgado. Como escritor,testemunhava uma coisa importante. Mas onde estariam o exército, oscossacos?

Então entrou no hotel, em casa de novo, entre os assoalhosreluzentes, os lustrosos elevadores preto-e-brancos, o carvalho escuro dobar.

— O de sempre, monsieur Zeitlin? — perguntou Roustam, o barman.No interior do Astória, as formalidades polidas tinham dado lugar a umferiado turbulento e descuidado. Atirando o casaco e o chapéu nadireção da funcionária da chapelaria, e se esquecendo de retirar as botas,

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Gideon andou até a sala privativa onde a baronesa Rozen oferecia umasoirée. Uma garota de vestido laranja, com enorme decote nas costas,um boá de plumas e sapatos amarelos — o que Vera chamaria de umamulher à-toa, mas que Gideon, afetuosamente, chamava de bubeleh —,acenou para ele como para um velho amigo, e ele sorriu para ela. Elasegurava uma bebida e lhe ofereceu um gole. Os recepcionistas riramdela: estariam bêbados também? Um casal — um oficial e o que pareciaser uma dama respeitável, usando um duplo colar de pérolas — estava sebeijando no sofá do vestíbulo, como se estivesse em um kabinet, não emum lugar público. Um porteiro de rosto vermelho abriu a porta dupla quedava acesso ao salão onde se realizava a festa. Gideon notou que ele nãofez nenhuma mesura, apenas deu um sorriso maroto, como se estivesselendo sua mente.

Enquanto abria caminho entre uniformes, ombreiras, sobrecasacas evestidos, ouvindo as pessoas discutirem a situação nas ruas, Gideon quaselevou um tombo. Avistou então um capacete de cabelos louros, unsombros pálidos e um longo braço enluvado que segurava um cigarro deponta dourada, cuja espiral de fumaça lembrava uma cobra saindo de umacesta.

— Então você veio — disse Missy Loris com seu sotaque americano.— Era para eu vir?O sorriso dela desenhava covinhas atraentes.— Gideon, o que está acontecendo lá fora?Ele encostou os lábios em sua pequena orelha.— Todos nós podemos morrer hoje à noite, bubeleh! O que

devemos fazer em nossos últimos momentos? — Era uma das frases quemais apreciava no Manifesto de Gideon. E iria funcionar a qualquermomento.

32

Não havia táxis na estação Finlândia quando Sashenka retornou à cidade.O trem estava quase vazio, com exceção de duas velhas senhoras,

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provavelmente professoras aposentadas, que discutiam seriamente seTrinta Abominações, de Lidia Zinovieva-Annibal, um romance sobrelesbianismo, seria uma exposição clássica da sensualidade feminina ouliteratura barata.

A discussão começou bastante educadamente, mas, quando o tremchegou à estação Finlândia, as duas senhoras estavam gritando uma coma outra, e se xingando.

— Olesia Mikhailovna, sua filistéia, isso é pura e simples pornografia!— Marfa Constantinova, sua cobra puritana, você nunca viveu, nunca

amou, nunca sentiu nada.— Pelo menos, sou temente a Deus!— Você me deixou tão enojada que estou passando mal. Preciso das

minhas pílulas.— Não vou lhe dar as pílulas até você admitir que está sendo

completamente irracional...Sashenka apenas sorriu quando ouviu o ruído de tiros na cidade.A estação estava lúgubre, nem os habituais vagabundos e meninos

de rua estavam por ali. Começava a escurecer, mas as ruas estavamcheias de pessoas correndo, algumas com armas. A neve caía novamente,grandes flocos que pareciam grãos de cevada; a meia-lua projetava umapálida luz amarelada. Sashenka notou que as pessoas pareciamestranhamente inchadas, mas percebeu que muitos usavam dois casacos,ou acolchoamentos sob os casacos, para se proteger dos cnutes doscossacos. Um operário de uma das grandes usinas lhe disse que a situaçãona Ponte de Alexandre era de impasse, mas antes que ela pudesse fazermais perguntas, ouviu-se um tiroteio e todos começaram a correr, semsaber ao certo do que fugiam. Uma operária da Fábrica Putilov lhe disseque houvera batalhas na Ponte de Alexandre e na praça Znamenskaia; eque alguns dos cossacos, os Guardas Volinski, tinham mudado de lado eatacado a polícia. Um velho bêbado alegou que era socialista e enfiou asmãos por baixo do casaco de Sashenka, apertando seu seio. Ela lhe deuum tapa e correu. Na Ponte de Alexandre, pensou ter visto corpos depoliciais. Não havia bondes.

Ela foi para casa devagar, andando pelas famosas avenidas, agorarepletas de figuras sombrias. Fogueiras estavam acesas nas ruas. Moleques

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dançavam ao redor das chamas, como se fossem gnomos demoníacos.Um arsenal fora assaltado: os operários carregavam rifles. Ela seguiu emfrente, exausta, mas tremendo de medo e empolgação. Apesar do quedissera o tio Mendel sobre a Revolução, o povo não fugira ao primeirosinal de resistência. Ouviu-se o estrépito de mais tiros. Dois rapazes,jovens operários, beijaram as bochechas dela e saíram correndo.

Na Nevski, deparou-se com uma multidão de soldados.— Irmãos, irmãs, filhas e mães, eu proponho que não atiremos em

nossos irmãos — gritou um oficial subalterno, enquanto se ouviam gritosde “Hurra! Abaixo a autocracia!”.

Sashenka tentou encontrar os camaradas, mas não havia nenhumnos cafés dos cocheiros, ou nos esconderijos da Nevski.

Seguiu em frente, apressando o passo, sentindo-se loucamente feliz.Era isso? Uma revolução sem líderes? Onde estavam os ninhos demetralhadoras, os cossacos e os faraós? Ouviu um ruído de motor. Aspessoas nas ruas ficaram imóveis e observaram, erguendo rostos brancoscomo a Lua: o que poderia ser? Como um dinossauro, um carro blindadoAustin, equipado com um morteiro, passou pela Nevski, sem rumoaparente, com a embreagem rangendo a cada troca de marcha ou curvaque fazia a esmo. Dispersando a multidão, o veículo subiu na calçada eavançou diretamente sobre uma fogueira em frente ao armazém Ielisev’s,parando perto de um grupo de soldados.

— Alguém aí sabe dirigir essa coisa? — berrou o motorista.— Eu sei! — Um jovem de cabelos pretos, revoltos, e olhos

castanhos brilhantes pulou para a frente. — Aprendi no exército.Era o camarada Vânia Palitsin, o metalúrgico bolchevique. Sashenka

apressou-se em sua direção, para pedir instruções, mas ele já estavadentro do carro blindado, que roncou, chacoalhou e acelerou pelaProspect.

— Você é a favor da Revolução? — perguntou um desconhecido, umrapaz com sotaque ucraniano, nariz azulado e casaco militar. Era a primeiravez que alguém usava essa palavra.

— Sou uma bolchevique! — disse Sashenka, orgulhosa. Eles seabraçaram espontaneamente. Logo, ela mesma estava fazendo apergunta. Desconhecidos se abraçavam ao seu redor: um sargento de

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cabelos grisalhos, um estudante polonês, uma mulher gorda usando umavental sob o agasalho de pele, um metalúrgico com roupas de couro eum cinto de ferramentas, e até mesmo uma mulher elegante com umcasaco de pele de foca. Mais perto de casa, carros repletos de soldadosque empunhavam bandeiras e rifles deslizavam em direção à Nevski e àavenida Marítima.

Tonta com a agitação daquela noite caótica, Sashenka pensou emSagan. Estava ansiosa para fazer o relatório a Mendel. Obtivera o nomedo traidor, transformara Sagan em uma fonte bolchevique dentro daOkhrana e, agora, era uma experiente profissional da arte da conspiração.Se não encontrasse Mendel, poderia revelar a identidade do traidor aoutro camarada. Sua missão fora cumprida; longe de Sagan e de seuefeito sobre ela, sentia-se aliviada. O partido ficaria satisfeito.

Quebrou a cabeça, tentando lembrar-se de todos os esconderijos dopartido. Tentou a Nevski, 106. Não encontrou ninguém. Então, onúmero 134. Subiu escada acima com os sentidos em prontidão. A portaestava aberta. Ouviu a trombeta de Jericó — a voz de Mendel.

— O que estamos fazendo? — gritava ele.— Eu simplesmente não sei — respondeu Chliapnikov, que usava um

sobretudo acolchoado. — Não tenho certeza...— Vamos para o apartamento de G-g-gorki — sugeriu Molotov,

coçando a testa proeminente. — Ele deve saber de alguma coisa...Chliapnikov assentiu e se encaminhou para a porta.— É a Revolução — disse ela. Sua voz parecia um guincho, não era

sua voz.— Não dê lições ao comitê, camarada — respondeu Chliapnikov,

enquanto descia as escadas junto com Molotov. — Você ainda é pirralha.Mendel hesitou por alguns momentos.— Quem está no comando? — perguntou Sashenka. — Onde está o

camarada Lenin? Quem está no comando?— Nós estamos! — Mendel sorriu de repente. — Lenin está em

Genebra. Nós somos a liderança do partido.— Eu me encontrei com Sagan — murmurou ela. — Verezin, o

zelador dos Guardas Montados é o traidor. Mas acho que isso não temmais importância...

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— C-c-camarada — gritou Molotov do saguão, a gagueirareverberando pelas escadas.

— Eu tenho de ir — disse Mendel. — Procure camaradas nos outrosapartamentos. Vai haver uma reunião no palácio Taurida. Diga a eles parairem lá, mais tarde.

Manquitolou pelas escadas, deixando Sashenka sozinha.Ela retornou à Nevski, dirigindo-se para casa. Tomou um pouco de

sopa solianka e comeu um pedaço de pão preto Borodinski no café doscocheiros, que estava cheio não só de cocheiros, como também deoperários. Cada qual contava histórias de distúrbios, orgias, massacres,fome e traição, em voz alta e ébria, sem ouvir os demais. Os preços docarvão e da aveia haviam quadruplicado. A tigela de sopa, no café, estavasete vezes mais cara. Havia agentes alemães, traidores judeus e bandidosem toda parte.

Sashenka colocou algumas moedas no realejo, que,incongruentemente, tocava “Deus Salve o Tsar”, levantando gargalhadasentre os cocheiros. As ruas escureceram. Ouviram-se sons ao longe,como leões tossindo na noite. O ruído cresceu até se transformar em umrugido ensurdecedor e a cabana estremeceu. No início, ela não conseguiuentender a razão — então percebeu que, enquanto estivera comendo, ocafé fora cercado, atropelado, por um mar de indivíduos de casacosescuros que bloqueavam as ruas. Tiros foram disparados a distância e umafumaça rosada se levantou contra a pálida escuridão: a Prisão de Krestiestava em chamas.

Caminhando pela avenida Marítima, Sashenka avistou um soldado euma garota se beijando, encostados em uma parede. Não conseguiu verseus rostos. O homem tateou por baixo da saia da garota, enquanto estaarrancava os botões da braguilha dele. Uma das pernas da garota selevantou, como uma das pontes do Neva. Ela ronronou e se contorceu.Pensando em Sagan e no passeio de trenó pela neve, Sashenka seapressou.

Em frente ao Astória, alguns soldados estavam roubando um Rolls-Royce, socando o chofer uniformizado. O porteiro, um oficial e umgendarme correram para fora, gritando. Calmamente, os soldados atiraramno oficial e no gendarme, e o carro partiu buzinando.

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Um homem barbado, cambaleante, passou então por ela, cantando“Rouxinol, rouxinol”, acompanhado de uma loura com um casaco depeles. Sashenka reconheceu Gideon e a condessa Loris. Sentiu-se aliviadapor encontrar gente amiga e estava para chamá-los quando Gideonagarrou as nádegas de Missy e a arrastou para fora da multidão, levando-aaté um pórtico, onde começaram a se beijar freneticamente.

Uma saraivada de tiros distraiu Sashenka. Alguns vultos escalaram afachada do palácio Mariinski e jogaram ao chão a águia de duas cabeças —o brasão dos Romanovs.

O corpo do gendarme jazia na rua, tão contorcido que sua barriga seprojetava das calças, como um peixe morto. Incrivelmente exausta,Sashenka pulou por cima do corpo e andou depressa pela Nevski — nadireção do palácio Taurida.

33

— O que vocês estão fazendo aí parados? — gritou Ariadna do alto dasescadas, bem penteada, elegante em um vestido de xantungue combabados. Quando começou a descer os degraus, os rostos de Leonid, omordomo, dos dois choferes e das criadas de quarto se ergueram em suadireção.

— A senhora não ouviu, baronesa? — perguntou Pantameilion,sempre o mais insolente, com seu bigode bem aparado, cabelosbesuntados e o queixo afilado espetado de forma impertinente.

— Ouviu o quê? Falem!— Eles formaram um Soviete dos Trabalhadores, no palácio Taurida

— disse Pantameilion excitado —, e nós soubemos que...— Isso é notícia antiga — atalhou Ariadna. — Por favor, continuem o

trabalho.— E o pessoal está dizendo... que o tsar abdicou! — disse

Pantameilion.— Besteira! Pare de espalhar boatos, Pantameilion. Vá descarbonizar

o carro — replicou Ariadna. — O barão saberia se isso fosse verdade, ele

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está no Taurida!Nesse momento, a porta da frente se abriu e Zeitlin irrompeu, uma

figura imponente em seu comprido casaco negro, com gola de castor, echapka. Ariadna e os criados o observaram ansiosos, como se somenteele pudesse resolver os grandes dilemas da época.

Alegremente, Zeitlin jogou o chapéu no cabide. Parecia anos maisjovem, irradiava confiança. Aí está! — pensou Ariadna, o tsar está denovo no controle. Que bobagem dos criados! Idiotas! Camponeses!

Zeitlin se apoiou na bengala e olhou para Ariadna como um tenorprestes a cantar uma ária italiana.

— Trago notícias — disse ele, em uma voz que tremia de excitação.Pronto! Os cossacos estão vigiando as ruas, os alemães estão

batendo em retirada, tudo vai se acalmar de novo, como sempreacontece, refletiu Ariadna. Vida longa para o imperador!

Como se tudo tivesse sido combinado, Lala desceu as escadas, Shifraemergiu do Caminho Negro e Delphine, a cozinheira, saiu da cozinha, coma habitual gota de muco pendente na extremidade do nariz.

— O imperador abdicou — anunciou Zeitlin. — No início, em favor dotsarévitche, depois em favor de seu irmão, o grão-duque Miguel. Opríncipe Lvov formou um governo. Todos os partidos polít icos são legaisagora. É isso! Estamos entrando em uma nova era!

— O tsar se foi! — Leonid fez o sinal da cruz e começou a soluçar. —Nosso paizinho... abdicou!

Pantameilion sorriu com insolência, cofiando o bigode e assoviandoentre dentes. As duas criadas empalideceram.

— Pobre de mim! — murmurou Shifra. — Os tronos estão caindocomo no Livro do Apocalipse!

— Quem é o próximo? George V? — disse Lala. — O que vai ser demim aqui?

Delphine começou a chorar e seu eterno muco pendente se desligoudo aconchego das narinas e caiu no chão — um acontecimento históricoque todos na casa aguardavam há vinte anos. Mas, agora queacontecera, ninguém pareceu notar.

— Vamos, Leonid — disse Zeitlin, oferecendo ao mordomo seu lençode seda, algo que jamais teria feito uma semana antes, reparou Ariadna.

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— Animem-se. Nada mudou na minha casa. Tome o casaco. A que horasé o almoço, cozinheira? Estou morrendo de fome.

Ariadna agarrou os corrimãos de mármore, enquanto observava oscriados tirando as botas de Zeitlin. O imperador se fora. Ela crescera noimpério de Nicolau II e, subitamente, sentiu-se sem raízes.

Zeitlin subiu a escadaria de dois em dois degraus, como se fosse umjovem. Seguindo a esposa até o quarto, beijou-a com tanta energia quefez a cabeça dela girar; então falou sobre a nova Rússia. As massas aindaestavam fora de controle. O quartel-general da polícia fora incendiado;policiais e informantes estavam sendo mortos; soldados e bandidosdirigiam automóveis e carros blindados pelas ruas, disparando tiros para oalto. O ex-imperador pretendia retornar a Tsarkoe Selo, mas estava sobprisão, no momento, e logo seria reunido à mulher e aos filhos — eles nãoseriam maltratados. O grão-duque Mikhail iria renunciar ao trono.

Zeitlin estava radiante, conforme disse a Ariadna, porque muitos dosamigos que tinha entre os kadets e os outubristas serviam ao governo dopríncipe Lvov. A guerra continuaria; o novo ministro da Guerra já lheencomendara mais rifles e morteiros; e Sashenka ainda era umabolchevique. Ele a vira no palácio Taurida com seus camaradas — umbando heterogêneo de fanáticos —, mas jovens são jovens.

— Percebeu, Ariadna? Somos uma república. A Rússia é uma espéciede democracia!

— O que vai acontecer com o tsar? — perguntou Ariadna, perplexa.— O que vai acontecer conosco?

— Como assim? — respondeu Zeitlin com afabilidade. — Haverámudanças, é claro. Os poloneses e os finlandeses querem independência,mas nós vamos ficar bem. Há oportunidades nisso tudo. Na verdade, euestava no Taurida e conversei com...

Ariadna mal notou quando Zeitlin, ainda falando entusiasticamentesobre ministros e contratos lucrativos, conferiu as horas em seu relógio deouro e foi até o escritório, dar alguns telefonemas. Quase em transe, elao seguiu para fora do quarto e ficou observando, enquanto ele descia.Ouviu o clangor da Cadeira Trotadora entrando em ação.

Leonid correu até a porta da frente. Sashenka estava entrando nosaguão, pálida e radiante, vestida com a blusa simples e saia cinzenta, o

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cabelo preso em um feio coque e sem nenhum ruge. Ariadna estavadesapontada com a filha: por que ela se vestia como uma professora daprovíncia? Fedia a fumaça e a cozinhas pobres, fedia como essas pessoasque andam por aí. Até uma bolchevique precisava usar maquiagem ebatom, por que ela se recusava a usar seus novos vestidos daChernitchev’s? Um vestido decente a deixaria muito melhor.

De qualquer forma, Sashenka estava absolutamente triunfante.— Olá, mamãe — gritou ela.Então, tirando o chuba de peles e as botas, concentrou-se em

responder às perguntas de Lala e dos criados. Entusiasticamente, contou-lhes que o Soviete dos Trabalhadores estava reunido; que tio Mendelfazia parte do comitê executivo; que tio Gideon também estava lá —escrevendo sobre o evento — e os amigos dele, os mencheviques,dominavam o Soviete.

Ariadna não se importava com essas polit icagens, mas percebeu queSashenka precisava dormir. Os olhos dela estavam vermelhos, suas mãostremiam, por excesso de café e excitação. Porém, enquanto observava orosto animado da filha, viu-a sob uma nova perspectiva. Era como se afilha tivesse crescido até se tornar forte e bela, como uma larvadevorando o corpo da mãe a partir do interior. Transbordava de vida,enquanto Ariadna estava inerte e vazia.

Sufocando a vontade de chorar, retirou-se para o quarto.

Sentindo-se não exatamente tranquila, mas tranquilizada, Ariadna mediuuma porção do tônico de ópio, receitado pelo dr. Gemp, e a engoliu. Masdaquela vez não funcionou. Sentia as pernas pesadas, como se estivessese movendo através de melado. A rotação do planeta como quediminuiu, até quase parar no eixo. A passagem do tempo tornou-sepenosa. Ela não tinha como se alegrar com notícias que faziam seu maridose sentir mais jovem e sua filha parecer linda — isso apenas a envelhecia.O chão estava se desintegrando sob seus pés. Já não havia tsar; Rasputinestava morto; Zeitlin falara em divórcio. Mas o que mais a deprimia era aluminosidade jovial de Sashenka. Sua filha estava envolvida em polít icaséria, rindo de seus pais. Tinha uma missão na vida — mas o que Ariadnatinha? Por que Sashenka estava feliz? Por que era tão presunçosa? O

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relógio batia cada vez mais devagar. Cada tique demorava séculos e,quando se fazia ouvir, era como o badalar de um sino distante.

Quando Ariadna estava crescendo, em Turbin, sabia que os tsaresnão eram amigos dos judeus; mas os judeus acreditavam que, sem ostsares, seria tudo pior. O tsar morava longe e prejudicava muito os judeus— assim como os russos —, mesmo quando suas intenções não eramruins. Mas o tsar protegera os judeus dos cossacos, proprietários de terra,anti-semitas e pogroms. Agora que ele fora embora, quem os protegeria?Quem cuidaria dela? Subitamente, ansiou pelo abraço de sua mãe, a mãea quem sempre ignorara. Miriam estava na mesma casa, assim como seupai, mas poderiam estar em outro universo. Alcançá-los levaria umaeternidade.

Os sons da casa eram abafados. Ela não tinha nada para fazer e onada demorava infinitamente para passar. O mundo estava encharcadode sangue, como Rasputin lhe avisara que aconteceria; as ruas de Piterestavam mergulhadas na anarquia. No lado de fora, ouviu passos ruidosos,buzinas de carros, gritos de comemoração e tiroteios. Os sons nadasignificavam, tudo perdera o sabor. Tudo parecia cinzento, até seusvestidos escarlates e suas safiras.

Ariadna se levantou com um suspiro e andou até o quarto deSashenka. Deu-se conta de que há anos não entrava lá.

34

O barão Zeitlin estava em seu escritório, com um charuto entre osdentes, fazendo retinir energicamente a Cadeira Trotadora. Tinha certezade que poderia adaptar-se ao novo mundo, na verdade quase simpatizavacom os socialistas. Estava cheio de novos planos. Então, ouviu a voz deSashenka no saguão e se lembrou de como falhara em entendê-la.Deveria tentar mais arduamente — ou iria perder a filha.

Ofegante, Sashenka irrompeu no escritório. Não se sentou.— Querida Sashenka! — disse ele. — Não consigo acreditar nos

últimos dias. Mas vida que segue. Quando você vai começar seus

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estudos?— Estudos? Estamos muito ocupados para estudos. Eu menti ao

senhor a respeito de polít ica, papai, porque fui obrigada a isso. Nós,bolcheviques, vivemos segundo regras especiais. Eu estava fazendo o queera certo.

O rosto dela estava resoluto, quase agressivo.— Está bem, Sashenka, eu compreendo — disse Zeitlin, porém não

compreendia. Censurava a si mesmo por ter transformado a filha nesseanjo vingador. Ela mentira para ele e rejeitara a família. Ele lhe ensinara adesrespeitar a fé — esse era o resultado. Mas não era o momentoapropriado para uma nova altercação. — Sua mãe pensou que você tinhaum namorado.

— Que absurdo! Ela mal me conhece. Eu agora trabalho no jornalPravda, como intermediária entre o Comitê de Petrogrado e o Soviete.

— Mas você tem que voltar para a escola. A Revolução está quaseterminando, Sashenka. O governo...

— Papai, a Revolução mal começou. Existem exploradores eexplorados. Não há meio-termo. Esse governo é apenas um estágioburguês, temporário, na marcha para o socialismo. Os camponeses devemter sua própria terra e os operários, direitos iguais. Os soldados, agora,obedecem às ordens do Soviete dos Trabalhadores e dos Delegados dosSoldados. — Ela estava quase gritando com ele, ruborizada, desafiadora,agarrando seus braços. — Haverá mais um estágio de corrupção capitalistae, depois, toda essa podridão, todos os sanguessugas — sim, até você,papai — serão varridos. Haverá sangue nas ruas. Eu amo você, papai, masnós, bolcheviques, não temos família. Meu amor não tem importânciadiante da história.

Zeitlin tinha parado de trotar no aparelho. Olhou para a filha, parasuas sardas extravagantes e olhos sarapintados, sentindo-se aturdido.

Silêncio. Em algum lugar, na casa, houve um pequeno estalo.— Você ouviu isso? — disse Zeitlin, tirando o charuto da boca. — O

que foi isso?— Acho que veio lá de cima.Pai e filha foram até o saguão e então, por algum motivo,

começaram a correr. Leonid estava no alto das escadas; Lala, no piso

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superior. Todos olhavam para a porta do quarto de Ariadna. Zeitlin sentiuum frio no coração e subiu a escadaria em disparada.

— Ariadna! — gritou ele, batendo na porta. Os criados olhavam paraa frente, de olhos arregalados.

Ariadna estava estendida no divã, completamente nua, branca comoa neve. A Mauser fumegante, escura e maciça, repousava sobre seuestômago. Um filete de sangue fluía de um dos seios, corria sobre a pelealva e formava uma poça no chão.

35

Sashenka estava na janela do esconderijo da rua Gogol, não muito longedo Ministério da Guerra. Fumava um cigarro, enquanto contemplava oNeva congelado e a Fortaleza de Pedro e Paulo. Escurecera, mas o céutinha um brilho púrpura, anormal, como se fosse um pano de fundo, comuma luz por detrás. O lampião sobre o pináculo da igreja da fortalezabalançava suavemente ao vento.

Os operários controlavam a fortaleza. Todos os detentos do ForteTrubetskoi, que já abrigara em suas celas Mendel e Trotski, haviam sidolibertados no dia anterior. Era o início da noite e as ruas ainda fervilhavam,enquanto multidões derrubavam alegremente quaisquer remanescentesdas águias dos Romanovs. O quartel-general da Okhrana estava emchamas.

Os sonhos de Sashenka tornavam-se realidade, mas ela estavaentorpecida. Andava pelas ruas sem prestar atenção aos acontecimentosespetaculares. Pessoas esbarravam nela. Algumas a abraçavam. VâniaPalitsin gritou seu nome — estava no interior de um carro repleto deGuardas Vermelhos, com o brasão dos Romanovs nas laterais, que passouem disparada. Ariadna conseguira o impossível: eclipsara a RevoluçãoRussa.

No apartamento quente, Sashenka suava muito, pois não havia tiradoo casaco nem o chapéu. Por que mesmo fora direto para lá? Era um lugarque prometera nunca mais revisitar. Tentara tirar Sagan de sua mente; a

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época dele passara e ele, provavelmente, já deveria estar em Estocolmo,ou no sul. Mas lá estava ela, naquele apartamento, esperando pelapessoa com quem se habituara a fazer confidências sobre a mãe.

Ouviu um barulho e se virou lentamente. O capitão Sagan, ainda emuniforme completo de gendarme, mas pálido e exausto, estava de pé,apontando uma pistola Walther para ela. Subitamente, pareceu ter aidade que tinha, e até mais.

Por alguns momentos, não disseram nada. Então, guardando a pistolano coldre, sem uma palavra, ele caminhou até ela. Trocaram um abraço.Ela sentiu-se agradecida por ele estar lá.

— Tenho um pouco de conhaque — disse ele — e o samovar acaboude ferver.

— Há quanto tempo você está aqui?— Cheguei na noite passada. Não sabia de outro lugar para ir. Alguns

operários ocuparam minha casa. Minha esposa partiu. Os trens não estãofuncionando. Não sabia para onde ir e então vim para cá. Sashenka,quero lhe dizer uma coisa que vai surpreendê-la. Meu mundo — tudo oque eu prezava — desapareceu em uma noite.

— Não foi o que você me disse que iria acontecer.— Estou em suas mãos. Você pode me denunciar, se quiser. Eu

acreditava no Império. Mas eu lhe disse a verdade sobre mim mesmo.Ele pegou uma garrafa de conhaque armênio, um cha-cha barato, e

serviu duas doses, entregando uma a Sashenka. Depois, engoliu a dele.Ela tirou o casaco e o chapéu.

— Por que você está aqui? — perguntou ele. — Pensei que estariacelebrando.

— Eu estava. Mas aconteceu uma coisa terrível. Eu estava indo parao palácio Taurida, mas, quando passei pelo pavilhão anexo ao quartel dosGuardas Montados, bati na porta. A porta estava aberta. O porteiro —lembra-se do porteiro Verezin? — estava caído no chão, com um tiro nacabeça. Então fui para o Soviete, para me encontrar com meuscamaradas.

— Você disse a eles que Verezin era um traidor?Ela assentiu.— E ficou surpresa de que ele tenha sido morto?

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— Não fiquei surpresa. Um pouco chocada, acho. Mas isso é arevolução, segundo você: quando se corta a madeira, as lascas voam.

— Mas você não disse que aconteceu uma coisa terrível?— Minha mãe tentou o suicídio, deu um tiro nela mesma.Sagan se mostrou chocado.— Sinto muito, Sashenka, muito mesmo. Ela está morta?— Não, ainda está viva. Deu um tiro no peito. Dizem que as mulheres

bonitas tendem a preservar o rosto. Ela encontrou minha Mauser, aMauser do partido, embaixo do meu colchão. Como ela sabia que estavalá? Como pode ter encontrado? Os médicos estão com ela agora. —Sashenka fez uma pausa, lutando para controlar a respiração. — Eudeveria ter ido para o jornal, mas, em vez disso, vim parar aqui. Porque foiaqui... com você... que conversamos tanto sobre ela. Eu a odiava. Eununca disse a ela quanto...

Começou a chorar e Sagan a abraçou. O cabelo dele cheirava afumaça, seu pescoço recendia a conhaque. Ela percebeu que ficara maiscalma só de contar a Sagan sobre a mãe. Seu abraço a tinha revigoradoe, ironicamente, deu-lhe forças para se afastar dele.

— Sashenka — disse ele, com as mãos sobre seus ombros. — Tenhouma coisa para lhe dizer. Eu estava fazendo meu trabalho, mas nunca lhedisse quanto eu fiquei... gostando de você. Eu não tenho mais ninguém.Eu...

Subitamente, ela se sentiu gelada.— Você é tão mais jovem que eu, mas acho que amo você.Sashenka deu um passo para trás. Precisara dele, mas não como o

homem que a beijara no campo nevado, e sim como confidente. Agora, anecessidade que ele tinha dela e seu fedor de desespero lhe causavamrepulsa; aquele espectro do regime derrubado a assustava. Queria ficarlonge dele.

— Você não pode me deixar assim — gritou ele —, depois de tudo oque eu lhe disse.

— Eu nunca lhe pedi isso, nunca.— Você não pode ir embora...— Tenho que ir — disse ela. Sentindo uma mudança nele, correu

para a porta.

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Ele estava bem atrás dela e a agarrou em torno da cintura, puxando-a até o divã, onde tantas vezes ela se sentara, falando sobre poesia esobre os pais.

Ela lhe deu um soco no queixo.— Me largue — gritou ela. — O que você está fazendo?Mas Sagan a colocou por baixo dele, seu rosto longo e magro

terrivelmente perto, porejando suor e pingando saliva. Enfiando uma dasmãos sob a saia dela, rasgou suas meias, tentando chegar ao alto dascoxas. Então, arrancou-lhe os botões da blusa, despedaçou as roupas debaixo e agarrou seus seios.

Sashenka virou-se rapidamente, soltou as mãos e o socou no nariz,arrancando sangue, que se derramou sobre ela. Usando o próprio peso,ele a manteve por baixo. Ela conseguiu sacar a Walther, que estava nocoldre dele, e o golpeou com a arma. Sentiu o metal se chocar comdentes, ossos e carne, e mais sangue escorreu por seus dedos.

Ele rolou para um lado. Sashenka levantou-se e correu para a porta.Enquanto a escancarava, olhou para trás e o viu encurvado no divã,chorando como uma criança.

Ela não parou de correr até descer as escadas e sair do prédio.Precipitou-se então para dentro de um bar-porão, cheio de soldadosbêbados. Estes ficaram tão chocados com a aparência dela que,empunhando seus rifles com baionetas, ofereceram ajuda para matarquem quer que tivesse encostado um dedo nela. No banheiro, ela limpouo sangue do rosto e abotoou a blusa. Tinha na boca o gosto metálico dosangue de Sagan; tentou lavá-lo, mas o cheiro a fez engasgar e elavomitou. Quando saiu do banheiro, tirou uma vodca das mãos de umsoldado e a engoliu de um trago. Sentiu-se mais limpa e, aos poucos,mais calma.

Do lado de fora, as ruas ainda se agitavam. Ela escutou um tiroteiona Nevski. Viu batedores de carteira serem linchados; bandos dedesertores bêbados e bandidos estavam à solta. Ela sabia que Sagantentaria sair do apartamento. Então, escondeu-se em um portal eobservou a saída do prédio. Sua cabeça estava latejando e o gostopersistente de sangue, em sua boca, deu-lhe ânsia de vômitonovamente. Seu corpo tremia. Tudo o que passara fora pelo partido,

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agora tudo terminara. Disse a si mesma que deveria estar desfrutandouma sensação de triunfo — pois vencera o Jogo Supremo. Sagan e seuschefes estavam liquidados. A investida dele contra ela refletia suahumilhação. Mas tudo o que sentia era uma vergonha corrosiva e umafúria selvagem. Pensou em retornar com a pistola do partido e fuzilá-locomo espião da polícia. Em vez disso, desajeitadamente, acendeu umCrocodilo.

Cerca de meia hora mais tarde, Sagan saiu à rua e, sob a estranha luzpurpúrea da noite, Sashenka viu seu rosto inchado, que sangrava, seupasso hesitante e sua postura de humilhação. Era apenas um vultodesengonçado, curvado sob um alto chapéu de astracã, com o uniformecoberto por um sobretudo cáqui. As ruas fervilhavam com grupos dehomens cambaleantes, vestindo sobretudos pesados, armados comBerdanas e Mausers. A noite se equilibrava em uma fina divisa entrealegria radiante e horror crescente. Sagan se encaminhou para a Gogol,pelas ruas laterais, e atravessou a Nevski. Ela o seguiu e percebeu que,em frente à Catedral de Kazan, ele entrara no meio de uma multidão deoperários. Talvez lhe apliquem uma boa surra e ele seja punido, pensou,porém eles não o incomodaram. Mas ele tropeçou em uma pedra docalçamento e os operários viram seu uniforme.

— Um gendarme! Um faraó! Vamos prendê-lo! Lixo! Miserável! Vamoslevá-lo até o Soviete! Vamos jogá-lo na cadeia! Tome esse na cara, seucrápula!

Sagan sacou a pistola e deu um tiro — um estalo seco. Mas eles ocercaram e começaram a chutá-lo, como se fosse um embrulho no chão,caçoando, gritando, e erguendo os rifles. Com a respiração entrecortada,Sashenka observou a sucessão de acontecimentos, rápidos demais paraque realmente os entendesse.

Em meio à barulheira de golpes e gritos, ela ouviu a voz de Sagan e,então, o guincho de um animal ferido. Seguiram-se as batidas secas dascoronhas dos rifles. Por entre as botinas dos operários e as abas de seussobretudos, ela avistou sangue, que escorria do uniforme escuro.

Após o frenesi, houve uma quietude, enquanto os integrantes daturba pigarreavam, endireitavam as roupas e iam embora. Ela também foiembora. Não queria ver o resultado da transformação de um homem em

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massa amorfa. Já vira o poder do povo em ação — o julgamento dahistória.

Mas não se sentia vitoriosa. Uma onda de tristeza e culpa aesmagava, como se sua raiva tivesse atraído o horror que se abaterasobre Sagan. O corpo de Verezin e agora isso. Mas isso era o objetivopelo qual ansiara e ao qual deveria dar as boas-vindas: a Revolução era umobjetivo nobre. Muitos morreriam nas batalhas, pensou ela. A destruiçãode um homem, porém, era uma coisa horrível.

Viu-se então encostada em uma estátua, em frente à Catedral deKazan, com lágrimas rolando pelo rosto. Aquilo era um final, mas não ofinal que ela quisera. Desejava nunca ter conhecido Sagan e, também,que ele tivesse conseguido percorrer aquela rua até um destino seguro,bem distante.

36

Uma fala rouca e arrastada quebrou o silêncio sepulcral do quarto.— O que diz o jornal? — perguntou Ariadna.A voz familiar deu um susto em Sashenka. Sua mãe não falara

durante dias. Apenas dormira, a respiração difícil, a infecção se alastrandoem seu peito, parecia que jamais acordaria. Sashenka estava lendo oPravda, o jornal do partido, quando Ariadna se moveu. Ela falou comtanta clareza que Sashenka largou o jornal, deixando que as folhas seespalhassem pelo tapete.

— Mamãe, você me deu um susto!— Eu ainda não estou morta, querida... ou estou? Está fedendo,

aqui. Nem consigo respirar. O que diz o jornal?Sashenka recolheu as folhas.— Tio Mendel está no Comitê Central do Partido. Lenin está para

chegar a qualquer hora.Sashenka ergueu os olhos e descobriu que os olhos aveludados de

sua mãe repousavam nela, com espantosa doçura. Ficou surpresa eembaraçada.

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— Quando eu finalmente cheguei ao seu quarto... — começouAriadna, e Sashenka se esforçou para entender.

— Mamãe, você parece melhor. — Era mentira, mas quem diz averdade para os que estão morrendo? Sashenka queria consolar a mãe.— Você está melhorando, mamãe, como você se sente?

— Eu me sinto... — Ela apertou a mão de sua filha. Sashenkaapertou a mão de sua mãe. Os olhos de Ariadna começaram a se fecharnovamente.

— Faz muito tempo que estou querendo lhe fazer uma pergunta,mamãe. Por que você...? Mamãe?

Nesse momento, o dr. Gemp — um homem gorducho, mundano,com uma reluzente calva rosada e o ar teatral frequentemente associadoaos médicos da alta sociedade — entrou no quarto.

— Então sua mãe acordou? O que ela disse? — perguntou. —Ariadna, você está sentindo alguma dor?

Ele inclinou-se sobre Ariadna, banhando-lhe a testa e o pescoço comuma compressa fria. Depois, desfez o curativo no peito dela e limpou oferimento, que parecia um punho de sangue coagulado.

Seu pai também se curvou sobre o leito da doente. Ele tinha umaspecto horrível, o colarinho sujo e uma barba grisalha despontando norosto. Lembrava a Sashenka um judeu do Assentamento.

— Ela está voltando a si? Ariadna? Fale comigo! Eu a amo, Ariadna! —disse ele. Ariadna abriu os olhos. — Ariadna, por que você se feriu? Porquê?

Atrás dele, estavam os pais de Ariadna. Miriam tinha um rostopequeno e murcho, afilado como o de um rato. O rabino de Turbin usavasolidéu e um casaco de gabardina; seu rosto era emoldurado por umabarba profética e extravagantes cachos de cabelo anelado.

— Querida Silberkind — disse Miriam, em seu forte sotaque iídiche-polonês, segurando as mãos de Sashenka e beijando ternamente seuombro. Sashenka notou que o velho casal se sentia deslocado no quartode Ariadna. Tinham estado lá antes, mas ainda olhavam como indigentespara as pérolas, vestidos, cartas de tarô e poções. Para eles, aquilo era oTemplo do Bezerro de Ouro, a própria ruína de seus sonhos como pais.

O dr. Gemp, um especialista em tragédias secretas — abortos,

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suicídios e vícios — de grão-duques e condes, olhava para os velhosjudeus como se estes fossem leprosos, mas terminou de colocar um novocurativo no ferimento de Ariadna.

Ariadna apontou para os pais.— Vocês são de Turbin? — perguntou ela. — Eu nasci em Turbin.

Samuil, você precisa se barbear...

* * *

Horas, noites e dias se passaram. Sashenka, sentada ao lado do leito,perdeu a noção do tempo. A respiração de Ariadna era rouca e penosa,lembrando um velho fole. Seu rosto estava cinzento, pálido e encovado.Ela envelhecera, ficara menor e encolhera. Sua boca permanecia aberta eseu peito chiava com o catarro dos pulmões, que também produziaestalidos em sua respiração. Não havia mais sinal de beleza ou vivacidadenela, apenas um animal trêmulo onde antes houvera uma mulhervibrante, uma mãe, a mãe de Sashenka.

Às vezes, lutando para respirar, Ariadna entrava em pânico. Suava,ensopando os lençóis, e se agarrava ao leito. Sashenka se levantava esegurava sua mão. De repente, queria dizer tanta coisa à mãe: que queriaamá-la, que queria ser amada por ela. Seria muito tarde?

— Mamãe, estou aqui com você, sou eu, Sashenka! Eu a amo,mamãe! — Amava mesmo? Não tinha certeza, mas era o que sua vozdizia.

O dr. Gemp apareceu novamente. Chamou Zeitlin e Sashenka delado.

— Não tenha muitas esperanças, Samuil — disse.— Mas ela às vezes acorda! Ela fala... — disse Zeitlin.— O ferimento está infeccionado e a infecção se espalhou.— Ela pode se recuperar, ela pode... — insistiu Sashenka.— Talvez, mademoiselle — respondeu o dr. Gemp suavemente,

enquanto uma criada lhe entregava sua capa negra e seu chapéu-coco.— Talvez no mundo dos milagres.

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37

— Você quer que eu leia alguma coisa para você? — Ariadna ouviu suafilha perguntar na manhã seguinte.

— Não precisa — respondeu ela —, porque eu posso ir até aí e ler eumesma.

Sentia-se como se tivesse saído de seu corpo e pairado sobre oombro de Sashenka. Olhou para baixo e mal reconheceu a criatura lívida,com um curativo no peito, respirando aos arrancos, como um cãodoente. Seu cabelo estava desgrenhado e oleoso, mas não pediu a Ludaque trouxesse os bobes — então ela deve estar morrendo, pensou.Conjeturou então se fora amaldiçoada pelo Mau-Olhado, possuída por umdybbuk, ou se ela mesma teria atraído aquelas desgraças.

Afastou-se da realidade e mergulhou em sonhos maravilhosos. Voavagraciosamente pelo quarto. Que visões ela teve! Ela e Samuil estavamjuntos em um jardim, com fontes borbulhantes e pêssegos saborosos.Estariam no Jardim do Éden? Não, as florestas eram finas bétulas cor deprata: eram os bosques de Zeitlin, que logo seriam coronhas de rifles nasmãos dos soldados mortos. As árvores se transformaram em bailarinas —em um primeiro momento, vestidas com suas malhas; no momentoseguinte, completamente nuas.

Abriu os olhos. Estava em seu quarto, de novo. Sashenka dormia nodivã. Era noite. O quarto estava suavemente iluminado por um lampião,não por luz elétrica. Samuil e dois velhos judeus, um homem e umamulher, conversavam em voz baixa.

— Eu me perdi, rabino — disse Samuil em iídiche. — Não sei maisquem eu sou. Não sou judeu, não sou russo. Há muito tempo deixei deser bom marido e bom pai. O que devo fazer? Devo usar amuletos erezar, como um judeu religioso, ou devo me tornar socialista? Pensei queminha vida estava em ordem e agora...

— Você é apenas um homem, Samuil — respondeu o sábio barbudo.Ariadna conhecia aquela voz: era de seu pai. Que voz bonita, tão

profunda e gentil. Será que ele iria amaldiçoar Samuil e chamá-lo depagão? — perguntou-se.

— Você fez coisas ruins e coisas boas. Como todos nós — disse seu

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pai.— Então o que devo fazer?— Faça o bem. Não faça nada de ruim.— Parece simples.— É muito difícil, mas é uma coisa importante. Não faça mal a si

mesmo ou aos outros. Ame sua família. Peça a misericórdia de Deus.— Mas nem sei se acredito Nele.— Você acredita. Ou não estaria fazendo essas perguntas. Todos nós

pecamos. O corpo serve para pecar neste mundo. Sem a possibilidade deescolha, a bondade não teria sentido. A alma é a ponte entre estemundo e o próximo. Mas tudo é o mundo de Deus. Mesmo para você,mesmo para a pobre e querida Finkel, a misericórdia de Deus está lá,esperando. Isso é tudo o que você precisa entender.

Quem seria essa Finkel?, perguntou-se Ariadna. Claro, era seuverdadeiro nome. Seu pai e sua mãe — com aquela peruca — às vezeslhe pareciam caricaturas engraçadas; mas, no momento seguinte, eramtão sagrados quanto sacerdotes no Templo de Salomão.

— E Ariadna? — perguntou Samuil.— Um suicídio. — O pai dela sacudiu a cabeça. Sua mãe começou a

chorar.— Eu me sinto culpado — disse Samuil.— Você fez mais por ela do que qualquer um — disse o rabino. —

Nós fracassamos com ela; ela fracassou conosco. Mas nós a amamos. Deusa ama.

Ariadna estava emocionada; sentia ternura pelos pais, mas não amor.Não amava mais ninguém. Aqueles eram personagens em sua vida, rostose vozes familiares, mas ela não amava nenhum deles.

Sentia-se leve como uma pena de ganso, a brisa de uma janela alevava de um lado para outro. Seu corpo estava estirado lá, ofegante. Elao achava interessante, mas não estava envolvida em suas funçõesmecânicas. O dr. Gemp entrou no quarto e tirou o boné, como umtoureiro espanhol. Ela sentiu sua testa sendo umedecida; o curativo,trocado; morfina, injetada; seus lábios, molhados com chá quente eaçucarado. Sua barriga doía; as entranhas gemiam; o edema em seu peitolatejava em torno da bala que ela mesma colocara lá. Aquela coisa no leito

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— o corpo que ela reconhecia como o seu — não era mais importanteque um par de meias, de boa qualidade, mas um objeto que poderia serdescartado sem hesitação.

O pai dela rezava em voz alta, lendo os Salmos, cantando um cânticoprofundo, que a encheu de alegria desinteressada. Era a voz de umrouxinol no jardim. Mas, quando olhou para o rosto dele, viu um jovem,de barba avermelhada, olhos poderosos e brilhantes. Sua mãe estava látambém, cheia de vida, até mais jovem. Não usava peruca, e sim seuspróprios cabelos longos, enrolados em tranças, e um vestido de menina.E seus avós também, todos mais jovens que Ariadna. Seu marido era umadolescente e Sashenka, uma garotinha. Poderiam ser suas irmãs eirmãos.

O cântico do rabino a transportou até Turbin, três décadas antes. Opai dela e o bedel caminhavam perto da casa de estudos; sua mãe estavapreparando bolinhos de massa e macarrão, temperados com açafrão,canela e cravos. Ariadna estava em dificuldades já naquela época: nãoquisera se casar com o filho de um rabino de Mogilevski, fora vistaconversando com um dos garotos Litvak, que nem mesmo usava o cabeloem cachos — e tinha se encontrado com um oficial russo, no bosque,perto do quartel. Ela adorava aquele uniforme, os botões dourados, asbotas, as ombreiras. Ninguém sabia que ela beijara não só o garoto Litvak,mas também o jovem russo, enquanto bebia conhaque, que a deixavaem brasa, as mãos deles passeando por ela, que se arrepiava com ascarícias. Como aquele oficial deve ter se vangloriado e rido com os amigosna missa dos oficiais: “Vocês nunca vão adivinhar o que eu encontrei nobosque hoje. Uma deliciosa judia, fresca como orvalho...”

Eu era linda demais para a corte do rabino em Turbin, disse a simesma. Era um pavão em um estábulo. E agora, alegremente, estava devolta a Turbin. Ou, pelo menos, passando por lá, a caminho de algumlugar. O que estaria escrito para ela no Livro da Vida?

Mas quando voou de volta para o quarto, onde estava sua família, ereingressou em seu corpo, percebeu que não era mais o seu quarto,Sashenka não era mais sua filha, Miriam não era mais sua mãe — e elamesma não era mais Ariadna Finkel Barmakid, a baronesa Zeitlin. Tinha setransformado em outra coisa e estava repleta de alegria.

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Sashenka foi a primeira a notar.— Papai — disse ela —, olhe! Mamãe está sorrindo.

38

— Ela se foi — disse Miriam, segurando a mão da filha.— Desgraça é sobreviver ao próprio filho — disse o rabino em voz

baixa, começando a rezar pela filha. Sashenka sentiu que alcançara certapaz com a mãe, mas seu pai, que estivera cochilando no divã, acordou ese jogou chorando sobre o corpo.

Tio Gideon, agora escrevendo para o jornal Nova Vida, de Gorki, eflertando tanto com os mencheviques quanto com os bolcheviques,também estava lá, esperando no corredor, cheirando a charutos eperfume feminino. Ao ouvir o choro do irmão, correu até o quarto e otirou de cima do corpo de Ariadna. Imensamente forte, carregou o barãopara fora do quarto e o sentou em uma cadeira do lado de fora.

O médico pediu que todos saíssem. Fechou a boca de Ariadna,depois os olhos e então os chamou de volta.

— Venham vê-la agora — convidou.— Ela está... bonita de novo — murmurou Sashenka. — Mas não há

ninguém aí.De fato, Ariadna deixara de ser uma ruína trêmula e se tornara tão

bela quanto fora quando jovem. Estava serena, com sua pele muitobranca, seu gracioso nariz arrebitado e os lábios opulentos entreabertos,como se esperassem ser beijados por algum jovem e intrépido oficial.

Como é bonita! É como sempre vou me lembrar dela, pensouSashenka, que, no entanto, sentia-se corroída por uma insatisfação:nunca chegara a conhecê-la. Sua mãe fora uma estranha para ela.

E onde ela própria se encaixava nesse quadro? Não fazia mais partedele. Enquanto sua mãe agonizava, ela se tornara novamente sua filha.Seu pai, que, imperturbável, atravessara revoluções, guerras, greves,abdicações, a prisão da filha, o mau comportamento do irmão, os casosamorosos da mulher, que desafiara os operários de Petrogrado, os

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assassinos de Baku e os aristocratas anti-semitas, desmoronara diantedaquilo, um suicídio doméstico. Abandonara os negócios, deixaracontratos sem assinar, negligenciara os contatos e, em poucas semanas,perdera quase todo o interesse pelo dinheiro. Depois que os turcosazerbaidjanos, os ucranianos e os georgianos se livraram do ImpérioRusso, os negócios em Baku, Odessa e Tbilisi já estavam voltando aonormal. Mas todos os pormenores estavam dentro da cabeça de Zeitlin e,ao que parecia, aquele homem angustiado, com a barba por fazer, estavaassaltado por dúvidas a respeito de tudo. Ela podia ouvi-lo balbuciar echorar.

Sashenka teve a impressão de que perdera ambos os pais no mesmodia.

Não chorou mais — chorara bastante nas últimas noites —, porémainda desejava saber por que a mãe usara seu revólver. Ariadna a estariapunindo? Ou foi, simplesmente, a primeira arma que encontrara à mão?

Sashenka permaneceu ao lado da cama durante muito tempo,enquanto pessoas apresentavam condolências e partiam. Gideoncambaleou pelo quarto e beijou a testa de Ariadna. Pedira ao médico quesedasse o irmão. Os velhos judeus rezavam. Sashenka observava,enquanto Turbin recebia de volta o demônio feminino de SãoPetersburgo.

O sorriso de Ariadna permaneceu, mas sua face, gradativamente,começou a murchar. As maçãs do rosto afundaram, e seu nariz gentio, operfeito narizinho que lhe permitira namorar oficiais dos Guardas e nobresingleses, tornou-se semítico e adunco. O avô de Sashenka cobriu o corpocom uma mortalha branca e acendeu as duas velas que estavam emsuportes na cabeceira do leito. Miriam cobriu os espelhos com panos eabriu as janelas. Como Zeitlin parecia paralisado, o rabino assumiu ocontrole. Judeus ortodoxos, liberados pela Revolução e autorizados avisitar a capital, apareceram como que por mágica naquela casa tãosecular. Banquinhos baixos foram providenciados para que as mulherespudessem sentar shiva.

Houve um debate entre os rabinos sobre o que fazer com o corpo.Um suicídio estava além da lei de Deus, o que destinaria Ariadna a umfuneral profano, mais uma tragédia para o pai dela. Mas dois outros

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rabinos apareceram e perguntaram o que, realmente, matara Ariadna.Uma infecção, respondeu o dr. Gemp, não uma bala. Mediante esseartifício pragmático e misericordioso, o rabino de Turbin foi autorizado aenterrar sua filha Finkel, conhecida como Ariadna, no cemitério judeu.

Finalmente, os criados desfilaram ao pé do leito, chocados eperturbados com a presença daqueles judeus de gabardina, mechasaneladas nos cabelos e chapéus pretos.

Sashenka pensou que deveria retornar ao trabalho no jornalbolchevique. Como em um ato ensaiado, a porta se abriu e Mendel, queaparecera por apenas dez minutos, poucos dias após a tentativa desuicídio, coxeou pelo aposento entre dois jovens camaradas, o forte erobusto Vânia Palitsin, de casaco de couro, botas e revólver no coldre, eo esguio e viril georgiano Satinov, com uma jaqueta de marinheiro ebotas. Os três homens trouxeram, para dentro daquele quartodecadente, uma bem-vinda lufada de novos tempos.

Mendel usava um longo casaco de pele de cordeiro e um boné deoperário. Aproximou-se do leito, olhou friamente para o rosto da irmã,abanou a cabeça e, então, fez um aceno para seus pais, que soluçavam.

— Mamãe, papai! — disse com sua voz profunda. — Eu lamento.— Isso é tudo o que você tem para dizer? — perguntou Miriam

através de uma cortina de lágrimas. — Mendel?— Você já perdeu muito tempo aqui, camarada Zeitlin — disse

Mendel bruscamente a Sashenka. — O camarada Lenin desembarcouontem à noite na estação Finlândia. Eu tenho um trabalho para você.Pegue suas coisas. Vamos.

— Espere, camarada Mendel — disse Vânia Palitsin calmamente. — Elaperdeu a mãe. Deixe ela demorar quanto quiser.

Mendel hesitou.— Temos trabalho a fazer. Os bolcheviques não podem e não devem

ter família. Mas se você acha isso... — disse ele, olhando para seus pais aolado do leito. — Eu também perdi uma irmã.

— Eu levarei a camarada Raposa — disse Vânia Palitsin. — Vocês doisvão na frente.

Satinov beijou Sashenka três vezes e a abraçou — afinal, era umgeorgiano, lembrou-se ela.

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— Fique o tempo que precisar — disse ele, seguindo Mendel que saíamanquitolando.

Vânia Palitsin, a quem o coldre e o casaco de couro davam umaspecto vigoroso, parecia deslocado no requintado boudoir, masSashenka ficou agradecida por seu apoio. Viu seus olhos castanhosesquadrinharem o quarto e conjeturou sobre o que o camponês-operárioestaria achando daqueles símbolos decadentes do capitalismo: os vestidose as joias, o industrial Zeitlin prostrado e soluçante, o doutor grã-fino comsua capa, o semiembriagado bon-vivant Gideon, os criados chorosos e orabino. Vânia não conseguia tirar os olhos dos lamuriantes judeuspoloneses!

Sashenka achou bom poder sorrir de alguma coisa.— Já li sobre leitos de morte nas histórias de Tchekhov — disse

baixinho a Vânia —, mas nunca pensei que fossem tão teatrais. Todostêm um papel a desempenhar.

Vânia apenas assentiu; depois deu uns tapinhas no ombro deSashenka.

— Não se apresse— sussurrou ele. — Nós vamos aguardar. Chore oque precisar. Depois limpe o rosto, Raposinha. — O tamanho de Vâniatornava sua ternura ainda mais comovente. — Vou esperar você láembaixo, no automóvel. Amanhã, trago você de volta, para o funeral.

Sashenka deu um último e abrangente olhar de despedida para afamília. Aproximando-se do leito, beijou a testa da mãe. Estava chorandonovamente. Percebeu que os olhos de Vânia também estavam marejadosde lágrimas.

— Espere, Vânia, eu vou com você — disse com voz embargada,enquanto saía do quarto.

39

Ao meio-dia do dia seguinte, no esplendor modernista da MansãoKschessinskaia, onde a bailarina Mathilde outrora entretivera seus doisamantes Romanovs, Sashenka estava sentada em frente a uma bem-

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arrumada escrivaninha de madeira, no primeiro andar, sobre a qualrepousava uma máquina de escrever Underwood. Usava uma blusabranca, abotoada até o pescoço, uma longa saia de lã marrom e práticasbotas de amarrar. Não se encontrava sozinha. Três outras garotas, duasdelas usando óculos de aro redondo, também estavam diante deescrivaninhas, de onde se viravam para olhar a porta.

A mansão era controlada pelos Guardas Vermelhos, na verdadeoperários que usavam partes de uniformes diferentes, comandados pelopróprio Vânia. Ele e Sashenka tinham feito uma rápida refeição, na noiteanterior; depois, ele a conduzira até a casa dela, na avenida Marítima. Namanhã seguinte, ela visitara, pela primeira e última vez, a sinagoga emestilo mouro da Lermontovskaia (cuja construção fora paga por seu pai) evira a mãe ser enterrada no cemitério judeu, onde ela, seu pai e o tioGideon foram engolidos por um mar de judeus enlutados, que usavamlargos chapéus e se vestiam totalmente de preto, exceto pelas bordasbrancas de seus xales de oração.

Vânia lhe dissera para tirar um dia de folga, mas ela alegara que suamãe já consumira muitos dias de sua vida e retornara depressa aoescritório — para se encontrar com seu novo chefe. Como uma pessoajovem poderia querer estar em qualquer outro lugar do mundo, senão ali,na mansão da bailarina, a forja da revolução, o âmago da história?

De sua escrivaninha, Sashenka ouviu um murmúrio de excitação. Oencontro no salão de baile, que reunia todo o Comitê Central, estavaterminando. As portas se abriram; sons de vozes e risos, juntamente como martelar de botas na escadaria, foram se aproximando.

Sashenka e as outras três garotas empinaram os traseiros nosassentos, ajeitaram as blusas e arrumaram, mais uma vez, os tinteiros emata-borrões.

As portas de vidro fumê se abriram.— Bem, Illitch, este é seu novo gabinete. Suas assistentes estão

esperando por você, prontas para começar a trabalhar. — Mendel entrouno aposento, com o camarada Zinoviev, um judeu com cabelos negros ecrespos, vestindo um casaco de tweed desalinhado, e Stalin, umgeorgiano bigodudo, baixo e robusto, que vestia uma jaqueta naval ecalças largas, enfiadas em botas macias.

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Perto da escrivaninha de Sashenka, os homens pararam: os olhosnervosos de Zinoviev esquadrinharam o busto e a saia dela, enquanto ocamarada Stalin, com um leve sorriso nos lábios, olhou seu rostoatentamente com seus olhos cor de mel. Os georgianos têm um jeitocharmoso de olhar para as mulheres, pensou ela.

Os homens pareciam tomados por uma onda de energia eentusiasmo. Zinoviev recendia a conhaque; Stalin, a tabaco. Tinha umcachimbo apagado na mão esquerda e um cigarro no canto da boca.Todos se viraram quando um homem baixo, gordo, calvo, com testaproeminente e uma barba ruiva bem cuidada irrompeu no aposento.Usava um terno de três peças, bem burguês, e um relógio pendurado emuma corrente. Segurava um chapéu-coco em uma das mãos e, na outra,um maço de jornais. Falava sem parar, com voz rouca e educada.

— Bom trabalho, camarada Mendel — disse Lenin, olhando paraSashenka e para os outros, com seus cintilantes olhos oblíquos. — Tudoparece bom. Onde é meu gabinete? Ah, sim, por aqui. — A mesa estavapronta, com papel, tinteiro e um telefone. — Mendel, qual delas é a suasobrinha, aquela que estudou no Smolni?

— Sou eu, camarada! — disse Sashenka, levantando-se e quasefazendo uma mesura. — Camarada Zeitlin.

— Uma bolchevista do Smolni, hein? Vocês tinham mesmo que securvar para a imperatriz todas as manhãs? Bem, bem... nósrepresentamos os trabalhadores do mundo, mas não temos nenhumpreconceito contra uma educação decente, temos, camaradas?

Lenin riu alegremente, enquanto se encaminhava para a dupla portaenvidraçada de seu gabinete; então voltou-se bruscamente, já sem sorrir.

— Está bem, senhoritas: a partir de agora, vocês trabalham para mim.Não vamos esperar que o poder caia em nossos colos. Nós mesmostemos que tomar o poder e esmagar os inimigos. Vocês precisam estardisponíveis para o trabalho. O tempo todo. Muitas vezes, terão quedormir no escritório. Preparem-se. E nada de fumar aqui!

Então, apontou para Sashenka.— Bem, entre, camarada Zeitlin, vou começar com você. Tenho um

artigo para ditar. Vamos lá!

1 Scone — pãozinho tipicamente inglês, semelhante ao pão de minuto brasileiro. (N. do T.)

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2 Bolinho típico inglês, semelhante a um sonho, mas salgado, que acompanha carnes commolho. (N. do T.)

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Parte DoisMoscou, 1939

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1

Sashenka observou o marido saltar como um artista da nuvem de poeiraque cercava a limusine. O sol fazia refulgir suas botas polidas, a pistolacom cabo de marfim e os debruns escarlates que orlavam sua túnica azul,bem passada.

— Cheguei — gritou Vânia Palitsin para ela, acenando para que omotorista abrisse o porta-malas. — Traga as crianças, Sashenka. Diga queo papai chegou! Trouxe uma coisa para elas. E para você também,querida!

Ela estivera deitada em um divã no deque da casa de campo queambos possuíam, tentando ler as provas de sua revista. A villa de umandar, com pilares brancos, fora construída nos arredores de Moscou, navirada do século, por um magnata do petróleo, oriundo de Baku. Pétalasesvoaçavam ao sabor do vento quente. As macieiras e pereiras do pomarestavam repletas de flores cor de creme e a varanda cheirava a jasmins,jacintos e madressilvas. Um crepitante fonógrafo, na dacha vizinha, tocavaa ária de Lenski, de Eugênio Onegin, interpretada pelo tenor Kozlovski —que uma voz de homem começara a acompanhar com entusiasmo.

Sashenka logo se vira cantarolando a ária. Seu filho Carlo, de 3 anos emeio, estava em seu colo e não lhe permitia ler nada, pois era bastanteexigente e brincalhão. Na verdade, ele se chamava Karlmarx. Mas,durante a Guerra Civil Espanhola — quando era ainda um bebê eSashenka usava uma boina espanhola todos os dias —, seu nome foralatinizado.

— Carlo, eu tenho que ler isso. Vá brincar com Branquinha ou peçapara Carolina cozinhar alguma coisa para você!

— Não — respondeu Carlo com sua voz aguda, beijando o rosto deSashenka. Era um garoto robusto e bonito, com cabelos castanhos ecovinhas no rosto largo. Parecia um filhote de urso, mas teimava que eraum coelho. — Eu quero ficar com a minha mamãe. Olhe, mamotchka,estou fazendo carinho em você.

Sashenka olhou para o filho, para seus lindos olhos castanhos, e obeijou.

— Você vai partir corações, Carlo, meu ursinho! — disse ela.

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— Eu não sou ursinho, mamãe, eu sou um coelhinho!— Está bem, tovarich Zaika — disse ela. — Você é o meu camarada

Coelhinho favorito no...— ... mundo inteiro! — completou ele. — E você é a minha melhor

amiga!Foi quando ela ouviu o carro entrando na aleia.— Papai chegou! — disse, sentando-se.— Abram os portões — gritou o motorista.— Está bem, já vou — respondeu uma voz de homem, que ela

reconheceu. Era de um dos criados, o velho cossaco que cuidava doscavalos.

Os portões se abriram. Sashenka observou a pequena guarita no finalda aleia do condomínio, com os sujeitos em uniformes azuis. Na verdade,não estavam vigiando sua casa — Vânia era importante agora, mas algunsfigurões, como Molotov e Jdanov, ambos membros do Politburo, omarechal Budionni e o tio Mendel viviam no mesmo condomínio.

O carro, um reluzente ZiS verde, com um longo capô, inspirado noLincoln americano, passou pelos portões, com a suspensão rangendo.Enquanto rodava, levantava nuvens de poeira, desviando-se de galinhas,patos e cachorros que latiam. O pônei das crianças, amarrado ao portão,observava tudo, impassível.

— Olhe, camarada Coelhinho, é o papai!— Eu só quero beijar a mamãe — teimou Carlo, mas pulou do colo

dela, e correu para abraçar o pai.Sashenka o seguiu pelos degraus de madeira da varanda.— Vânia, que surpresa! Você deve estar assando nessas botas!O uso de botas no escritório, mesmo no auge do verão — e a

planície moscovita estava quente naquele mês —, devia-se mais aomachismo militarista dos bolcheviques que ao conforto ou utilidade. Ocamarada Stalin usava botas o tempo todo.

Carlo pulou para os braços de Vânia, que o segurou e rodopiou comele. Carlo guinchou de alegria.

— Como foi a parada? — perguntou Sashenka, observando pai efilho, que se pareciam muito.

— Nós sentimos a sua falta no palanque VIP — respondeu o marido.

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— Os novos aviões são lindos. Eu vi Mendel — e meu novo chefe, comseus georgianos. Satinov disse que vai passar aqui mais tarde...

— No ano que vem, vou tentar organizar melhor as coisas —prometeu ela. Ela tinha dado folga a Carolina, na parte da manhã, paraque ela assistisse à parada, mas a babá já estava de volta. No início,Sashenka lamentara perder o espetáculo na Praça Vermelha, umademonstração do poderio soviético, com suas fileiras de operários-padrão,soldados e atletas — todos em uniformes deslumbrantes —, e o desfilede aviões e tanques. O exército a enchia de orgulho, pelo que alcançaradesde 1917; e ela gostava de cumprimentar os líderes ao lado dela, nosassentos vips. Mas naquele ano quisera ficar na dacha com os filhos.

— O tio Hércules vem para a festa? — perguntou Carlo. — Eu querobrincar com ele!

— O papotchka disse que ele vem, mas você já vai estar dormindo,Coelhinho.

Vânia abraçou a estreita cintura de Sashenka, segurou seu rostoentre as mãos enormes e a beijou.

— Você está tão bonita, querida — disse ele. — Como vai?Ela se desvencilhou de suas mãos.— Estou exausta, Vânia, depois da reunião com as mulheres e dos

planos para a escola e o orfanato. Aconteceu um problema na gráfica, umerro tipográfico idiota...

— Nada sério? — Sashenka viu os olhos dele se estreitarem e seapressou a tranquilizá-lo. O Terror havia terminado, mas até mesmo umerro em provas tipográficas poderia ser perigoso. Vânia e Sashenka nãohaviam se esquecido do destino do tipógrafo que escrevera “Solin”(Homem de Sal) em vez de “Stalin” (Homem de Aço).

— Não, não, nada disso. Mas depois Carolina queimou os pirojki eCarlo chorou... O que é isso tudo? — perguntou ela, apontando para ascaixas no carro.

— É um presente para mim? — perguntou Carlo.— Esperem para ver — respondeu Vânia, rindo. Desprendendo o

cinturão, o coldre e a correia de couro que cruzava seu peito musculoso,atirou tudo para Razum, o motorista. Depois, despiu a túnica azul. Usavapor baixo uma camisa branca e um par de suspensórios — que

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sustentavam calças azuis orladas de vermelho, enfiadas nas botas.Retornando ao carro, ajudou Razum, que usava uniforme idêntico, adescarregar três grandes volumes, embrulhados em papel azul.

Razum era um velho boxeador com o nariz quebrado — legítimoveterano, com uma cicatriz na bochecha direita, que ele alegava ter sidoobra do próprio general Skuro, durante a guerra civil (embora Vâniabrincasse, dizendo que ele havia, na verdade, atravessado uma vidraçadurante uma bebedeira).

Colocando os dois embrulhos menores ao lado do carro, Vânia eRazum, lentamente, carregaram o terceiro em direção à casa.

— Papotchka! — Segurando uma almofada cor-de-rosa e vestindoapenas shorts, Branquinha, a filha deles de 5 anos, correu para fora dacasa e abraçou o pai. Vânia a tomou nos braços e beijou sua testa.

— Olhe para mim! Olhe isso, papai! — disse ela, sacudindo no ar sua“amiga” preferida, uma almofada.

— Nós estamos sempre olhando para você — respondeu Sashenka.— Mostre ao papai a sua dança da almofada.

Branquinha era alta para a idade, esguia e muito branca — daí oapelido —, com olhos azuis e lábios rosados. Sashenka quase nãoconseguia acreditar que uma criatura tão linda tivesse vindo dela e deVânia, embora ela se parecesse um pouco com o avô, pai de Sashenka —a “não-pessoa” Samuil Zeitlin, ex-barão, ex-sanguessuga. Sentindo umasúbita pontada de tristeza, Sashenka não pôde deixar de conjeturarsobre onde ele estaria agora. Ninguém sabia dizer se ainda estava noreino dos vivos — e um bolchevique não fazia perguntas.

Branquinha chutava o ar, sacudia a almofada e pulava como umpotro.

— Olhe, papotchka, você gosta da minha nova dança da almofada?— e executou seu número maluco, que sempre terminava com um “Trá-lá-lá-lá-lá-lá-lá!”. Sashenka aplaudiu. Vânia riu. Achava bonito tudo o que afilha fazia.

— Olhe! — Branquinha apontou para uma borboleta escarlate e fingiuvoar atrás dela, sacudindo as mãos, como asas.

— Você ainda vai dançar no Bolshoi! — disse Vânia. — Uma Artista doPovo!

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Branquinha correu de volta para o pai, pulando para cima e para baixocom exuberância. Ele a pegou no colo de novo. Era tão alto que os pésdela ficavam longe do chão.

— O que você fez hoje, Branquinha?— Eu não sou Branquinha. Mostre os presentes para nós, papotchka!— Volia, então.Volia era o verdadeiro nome dela — significava “liberdade”, mas

também “vontade”, um tributo ao Vontade do Povo, um dos primeirosgrupos revolucionários. Mais um bom nome revolucionário, pensouSashenka, olhando para eles com indulgência.

Ela sabia que tinha sorte por Vânia ser um pai tão carinhoso,naqueles tempos difíceis, de tantas lutas, quando a ternura não era coisaem moda entre os líderes, embora Satinov lhe tivesse cochichado queaté o camarada Stalin fazia seu dever de casa, todas as noites, com a filhaSvetlana. Sashenka e Vânia formavam uma verdadeira equipe soviética edividiam a carga de trabalho — quando possível, porque ambostrabalhavam muito e eram pais inusitadamente afetuosos. Mas, comodissera o camarada Kaganovitch, fiel aliado de Stalin, ao Comitê dasEsposas de Comandantes: “Criar filhos soviéticos é tão importante quantoliquidar espiões ou lutar contra os fascistas, e uma esposa soviética devecuidar de seu marido e de seus filhos!”

Uma mulher ossuda e nariguda, com sapatos confortáveis e o cabelopreso num coque, surgiu apressada, à procura da garotinha.

— É melhor você pôr um chapéu, Branquinha — advertiu Carolina, ababá, uma alemã do Volga, que também cozinhava para a família —, ouvai ficar queimada de sol como o Carlo!

Vânia recolocou Branquinha no chão.— Está bem, hora de abrir os presentes — disse ele. — Mas, primeiro,

esse grandão para sua linda mamãe. — Ele e Razum levaram o volumosoembrulho até a varanda. — Aí está! Abra!

— Posso abrir? — disse Branquinha, pulando para cima e para baixo.— Posso abrir? — gritou Carlo, lutando para sair dos braços da mãe.— Perguntem para a mamãe! — disse Vânia, sorrindo para Sashenka.

— É o presente dela, do Dia do Trabalho!— É claro que podem — disse Sashenka.

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— Então venham, camaradas Almofada e Coelhinho! — disse o pai. Ascrianças rasgaram o papel até que, sob o sol inclemente, surgiu umvoluptuoso refrigerador de cor creme, com acabamentos em açoinoxidável e as palavras General Electric estampadas na porta. — Gostou,querida?

Sashenka ficou encantada. Uma geladeira americana faria umaenorme diferença em suas vidas, quando estivessem na dacha, ainda maiscom um calor daqueles. Ela abraçou Vânia, que tentou beijá-la nos lábios;ela se desviou ligeiramente e o beijo atingiu seu rosto. — Obrigada,Vânia. Mas onde você arranjou isso?

— Bem, é do Narkom — o Comissário do Povo —, pelo nosso bomtrabalho, mas ele disse que o próprio camarada Stalin aprovou a lista.

Atrás deles, os criados — Razum, o motorista, Golavati, o cavalariçocossaco de pernas arqueadas e bigode encerado, Carolina, a babá, eArtiom, o velho jardineiro — admiravam o refrigerador americano.

Mas Branquinha e Carlo já estavam rasgando os outros pacotes, querevelaram uma armação de metal, rodas, guidom...

— Uma bicicleta! — gritou Branquinha.— Puxa, Branquinha, tudo o que você queria ganhar no Dia do

Trabalho! — disse Sashenka, olhando para Vânia. — Você é mesmo umpai adorável, muito obrigada por tudo isso! — Ela segurou a mão deBranquinha. — Branquinha, diga obrigada para o seu maravilhosopapotchka!

— Branquinha, não. Meu nome é ALMOFADA! Obrigada, papotchka!— Branquinha correu até o pai e se pendurou em seus braços.

— Você tem que agradecer ao partido, também, e ao camaradaStalin! — disse Sashenka. Mas as crianças estavam tentando se equilibrarnas bicicletas.

— Obrigada, camarada Sta... — Branquinha perdeu o interesse ecorreu atrás de outra borboleta, enquanto Carlo tentou andar de bicicletae caiu, o que resultou em lágrimas, abraços e sorvete dentro de casa.

No meio da tarde, o calor estava forte demais para se ficar do lado defora. Um papa-figo cantava. No bosque de pinheiros, ao redor, ouviam-seos zumbidos da primavera, murmúrios de vozes, copos tilintando, cavalos

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relinchando.Sashenka se balançava em uma rede, observando Vânia, ainda com

as botas e calças do uniforme, mas agora de torso nu. Troncudo e deombros largos, ele trabalhava com suas ferramentas, adicionando rodas deapoio à bicicleta de Carlo, canibalizando as peças de um velho carrinho debebê. Sashenka estava maravilhada com a engenhosidade dele — mas, éclaro, ele fora torneiro mecânico, um verdadeiro operário desde ainfância. Ela se lembrou da primeira vez que o encontrara, no esconderijo,em Leningrado, quando tinha 16 anos e ele um pouco mais. Não houveranamoro, nenhuma proposta sentimental, pensou Sashenkaorgulhosamente, nenhum filistinismo burguês ou liberalismo pútrido;estavam ambos ocupados demais, desencadeando uma revolução.Tinham apenas concordado em se casar, e sequer registraram ocasamento em cartório até o governo se mudar para Moscou. Entãoexplodira a Guerra Civil. Ela trabalhava para o partido e dava aulasnoturnas na Escola Industrial. Depois, ambos partiram para o campo, paraarrancar cereais de camponeses recalcitrantes e coletivizar suas pequenaspropriedades. Dividiam acomodações com outros casais na Casa dosSoviéticos e não possuíam nada. Não consigo acreditar, pensou ela, quejá estou com quase quarenta anos. O Instituto Smolni para NobresImbecis parecia tão distante quanto a Idade Média.

Do outro lado da cerca, o vizinho trocou a gravação do gramofone ecomeçou a acompanhar uma das cativantes canções de Os AlegresCompanheiros, o musical jazzístico de Dunaievski.

— Dunaievski pode aparecer para lanchar mais tarde, Vânia — disseela. — Junto com Utesov e alguns novos escritores. Tio Gideon vai trazê-los. Pode ser que ele convença Bênia Golden a vir também.

— Quem? — disse Vânia de testa franzida, enquanto apertava osparafusos que prendiam uma roda à bicicleta.

— O escritor daquelas histórias da Guerra Civil Espanhola, que eu li hápouco tempo — respondeu ela.

Vânia sacudiu os ombros musculosos. Sashenka gostaria que ele fossemais interessado em cantores, escritores e astros de cinema. Ela era, porque ele não poderia ser? Vânia certa vez os chamara de “bando deescroques arruaceiros — e o seu tio Gideon é o pior”. Ela sabia que Vânia

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preferia a companhia de membros do partido ou de militares, mas eleseram tão sérios e secos — e tinham piorado desde o Terror. Além disso,ela era editora de uma revista lida pelas mulheres de todos os“trabalhadores responsáveis” — como os líderes eram chamados. Faziaparte de seu trabalho conhecer astros glamorosos.

— Bem, Satinov está vindo e também o tio Mendel, se você quiserfalar de polít ica — disse ela.

— Quantas pessoas você convidou? — disse ele, testando o equilíbrioda bicicleta.

— Não sei — respondeu ela sonhadoramente. — A casa é grande.A dacha era uma dádiva recente. Às vezes, a despeito de si mesma,

seus sons e odores faziam Sashenka se recordar de Zemblichino, apropriedade da família Zeitlin, onde Mendel a convertera ao marxismo.

Sashenka e Vânia haviam recebido a dacha um ano antes, no verãode 1938, quando também foram contemplados com o apartamento daGranovski e com o motorista. A limpeza efetuada no partido fora umprocesso brutal e sangrento. Muitos haviam tombado pelo caminho,sentenciados à morte — a Punição Maior, segundo a terminologia oficial.Alguns dos mais antigos amigos e conhecidos de Sashenka haviam serevelado traidores, espiões e trotskistas. Ela nunca notara que muitosdeles usavam máscaras, fingiam ser bons comunistas, quando, narealidade, não passavam de fascistas, sabotadores e traidores. Comotodos os seus amigos, riscara, nos álbuns de fotos da família, os rostosdos camaradas engolidos pelo chamado “moedor de carne”. Sashenka eVânia também tinham ficado preocupados, embora fossem totalmentededicados à Revolução. Até o casamento deles era um casamentocomunista. Ambos compartilhavam a fé no partido — que era tudo paraeles. Compartilhavam muitas coisas, embora, pensou ela de repente, suasdiferenças se acentuassem à medida que ficavam mais velhos.

Mas o Terror terminara; agora podiam respirar sossegados. O paísestava preparado e unido para a guerra contra os fascistas de Hitler, quese aproximava.

Vânia ficou de pé e chamou Branquinha, que chegou em disparada,com o pequeno Carlo tentando acompanhá-la.

— As bicicletas estão prontas. — Ele a colocou sobre o selim. — Vá

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devagar, camarada Almofada, calma agora, não muito rápido, pés nospedais, comece a pedalar.

— Eu também — esganiçou-se Carlo.— Espere, Carlo, ah, Carlo... Não se preocupe, ursinho, eu estou

segurando você.— Eu sou um coelhinho, papotchka! — gritou o garotinho

furiosamente, fazendo os pais rirem. — Não ria, mamãe boba!Sashenka sorriu, o coração repleto de amor pelo filhinho. Não

importava que ele fosse rude com ela, contanto que não fosse rude como pai, que tinha um temperamento explosivo.

— Cuidado, Coelhinho — gritou ela. Mas era tarde demais.Desesperado para alcançar a irmã, Carlo andou rápido demais, tentou sedesviar de uma galinha e caiu da bicicleta.

— Eu quero minha mamãe! — soluçou.Sashenka o ajudou a se levantar. Imediatamente, ele parou de

chorar e pediu para montar de novo na bicicleta.— Olhem para mim, olhem para mim, papotchka e mamotchka! — e

partiu de novo.— Quando é que não estamos olhando para você? — respondeu

Sashenka ternamente. Virando-se, percebeu que Branquinha já dominaraa bicicleta. Triunfante, a garotinha pulou do selim e começou a dançar,sacudindo a almofada.

— Está muito quente e estou com fome — disse Vânia. — O sol estápelando. Quero que vocês saiam do sol, agora.

2

Uma hora mais tarde, sentada no chão de pernas cruzadas, Sashenkabrincava com as crianças na sala de recreação, perto do SantuárioVermelho — com seus pôsteres de Lenin e Stalin — e do rádio-telégrafoda família, montado em uma prateleira de carvalho envernizada. Podiaescutar Razum e Vânia na cozinha, discutindo a partida de futebol entre oDínamo de Moscou e o Spartak. O Dínamo jogara mal. Seu artilheiro fora

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tirado de campo com uma falta desleal, mas o árbitro não expulsara ojogador do Spartak que a cometera.

— Acho que esse juiz é um sabotador! — brincou Razum.— Ou talvez precise de óculos!Ninguém brincaria com a palavra “sabotador” seis meses atrás,

pensou Sashenka, mesmo no âmbito do futebol. Pessoas tinham sidopresas e fuziladas por menos que isso. Ela se lembrou de como o diretordo Zoológico de Moscou fora detido por envenenar uma girafa soviética,e de como um garoto que estudava na Escola 118, perto de onde elesmoravam, fora preso por atirar um dardo que, acidentalmente, atingiraum pôster de Stalin. Sempre que um de seus amigos era preso, Vâniafechava a porta da cozinha (para que as crianças não escutassem) esussurrava o nome para ela. Se fosse alguém famoso, como Bukharin, elaapenas dava de ombros:

— Os inimigos estão em toda parte.Se fosse um bom amigo, com quem tivessem passado as férias em

Sochi, por exemplo, ela ficava perplexa e preocupada.— Os Órgãos devem saber alguma coisa, mas...— Sempre há uma razão — dizia ele. — Quer dizer, é necessário.— Como as pessoas são fingidas! A maldade dos nossos inimigos

desafia a compreensão. Branquinha vai brincar com os filhos deles...— Cancele a visita de Branquinha — dizia Vânia bruscamente — e não

telefone para a Elena! Cuidado! — Dava-lhe um beijo na testa e nada maisera dito.

“Não se pode fazer uma revolução com luvas de pelica”, dizia ocamarada Stalin — e Sashenka repetia isso para si mesma todos os dias.Mas, agora, o camarada Stalin dissera, no 18º Congresso, que os Inimigosdo Povo tinham sido destruídos. Iejov, o insano chefe da polícia secreta,fora destituído e preso por seus excessos, enquanto o novo Narkom doNKVD, Lavrenti Beria, trouxera de volta a justiça e a moderação.

Os homens, com as vozes cada vez mais empastadas pelas cervejas epelo calor, estavam dando gargalhadas por causa de um gol que Vâniatinha marcado, jogando por seu time de futebol amador. Sashenka nãoconseguia imaginar como alguém podia gostar de discutir futebol. Deu umsuspiro. Ela e Vânia eram opostos — ele, um operário de origens

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camponesas; ela, uma intelectual de formação burguesa. Mas todossabiam que os opostos fazem bons casamentos, e ela tinha um maridogentil e bem-sucedido, dois lindos filhos, motoristas, carros, a dacha idílica— e agora uma geladeira americana.

Carolina começou a preparar a mesa na varanda, para um jantarantecipado. Sashenka, que sempre dava uma festa no Dia do Trabalho,pensou na noite que tinha pela frente — e nos convidados. Tio Gideontraria seus amigos pouco convencionais e iria propor que convidassemalguém inconveniente, supunha ela. Então ouviu um grito agudo. Carlo seapoderara da adorada almofada de Branquinha, que estava correndo atrásdele pela sala, contornando o Santuário Vermelho, ambos rindo àsgargalhadas.

Sashenka andou até a varanda, cantarolando uma das canções deLiubov Orlova.

De repente parou, atingida por um incrível ataque de felicidade. Elaestava do lado certo da história; os soviéticos eram poderosos, com suascolossais usinas de aço, milhares de tanques e aviões; o camarada Stalinera amado e admirado. Quanta coisa o partido conseguira! Que temposfelizes estavam atravessando! O que diria seu avô, o rabino de Turbin,provavelmente ainda vivo em Nova York, sobre a atordoante felicidadedela? “Não desafie o destino.” Esta teria sido a advertência dele — todaaquela bobagem sobre Mau-Olhado, dybbuks e Golems. Aquilo era apenassuperstição medieval! Havia muita coisa a ser comemorada.

— Temos vodca? — perguntou a Vânia.— Sim, e uma caixa de vinho georgiano na mala do carro.— Então me sirva um copo! Coloque o jazz-tango de Utesov no

gramofone.As crianças e o marido se juntaram a ela na varanda. Vânia levantou

Branquinha e fingiu dançar com ela, como se ela fosse adulta. Sashenkasegurou Carlo no colo e dançou com ele, cantando junto com a música.Ela e Vânia, ao mesmo tempo, viraram as crianças de cabeça para baixo e,depois, para cima de novo. As crianças guincharam de alegria. Quantoscamaradas dançam com os filhos como nós fazemos?, pensou Sashenka.A maioria deles é muito chata.

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3

O sol estava se pondo, cobrindo o jardim com a luz lilás que sempre faz osmoscovitas pensarem em verões de outrora, passados em suas dachas. Afesta começara às sete e, como Sashenka previra, tio Gideon chegouprimeiro, trazendo alguns amigos — os famosos cantores de jazz Utesov eTseferman, juntamente com Masha, uma jovem e mal-humorada atriz doTeatro Mali — sua última conquista.

Gideon não era mais um jovem, mas continuava forte e tãoirrefreavelmente desavergonhado quanto há vinte anos. Usava uma blusade camponês e uma boina azul comprada em Paris, presente, disse ele,de seu amigo Picasso, ou teria sido Hemingway? Gideon alegava conhecertodo mundo — bailarinas, pilotos, atores e escritores. Sashenka dependiade seu tio para que aqueles artistas visitassem sua casa à noite, no Dia doTrabalho.

Tio Mendel, assando em um terno de inverno e gravata, chegouexatamente na hora marcada, acompanhado por sua esposa, Natacha, aiacuta gorducha que Sashenka conhecera antes da Revolução, e porLena, a bela filha de ambos, uma estudante que herdara os olhosoblíquos e a pele ambarina de sua mãe.

Imediatamente, começou a conversar com Vânia sobre polít icaexterna.

— Os japoneses estão loucos por uma briga — disse ele.— Por favor, não converse sobre polít ica — disse Lena, batendo o

pé.— Eu não sei falar de outra coisa, doçura — protestou Mendel, com

sua ressoante voz de barítono.— Exatamente! — gritou sua filha.Não demorou, a frente da casa estava entupida de ZiSes, Buicks e

Lincolns, cujos motoristas tentavam estacionar à beira do gramado;Sashenka pediu a Razum que impusesse alguma ordem. Razum, jácompletamente bêbado, gritou, apontou e bateu nos tetos dos carros,mas acabou oferecendo vodca aos outros motoristas e dando uma festanos portões. O engarrafamento piorou e os choferes começaram aentoar canções maliciosas, o que divertiu Sashenka. Razum de pileque era

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a alegria de suas festas.Dentro de casa, ela disse aos convidados que se servissem no bufê.

Eles encheram os pratos com os petiscos do zakuski, que estavam sobrea mesa: pirojki, arenque e esturjão defumados, costeletas de vitela.Beberam vodca, conhaque, vinho e champanhe da Criméia. Ela trabalharaduro, mas estava gostando da festa e, principalmente, de conhecer osamigos artistas de Gideon.

— Então esta é a sua sobrinha, Gideon? — disse Len Utesov, ocantor de jazz de Odessa, sem querer largar a mão dela. — Que beleza!Estou encantado. Você não gostaria de fugir do seu marido e meacompanhar numa excursão ao Extremo Oriente? Não? Ela disse que não,Gideon. O que eu faço?

— Nós adoramos as suas canções — disse Sashenka, deliciando-secom a atenção e agradecida por ter colocado um vestido de verão tãobonito. — Vânia, vamos tocar o disco de Len no gramofone.

— Para que tocar o disco dele — gritou Gideon — quando você podetocar nele?

— Comporte-se, tio, ou vai lavar a louça — brincou Sashenka,ajeitando atrás das orelhas o volumoso cabelo tisnado de ruivo.

— Com Carolina? — rugiu ele. — Por que não? Eu gosto delas emtodos os tipos e tamanhos!

Vânia pediu silêncio e brindou ao Dia do Trabalho — “e ao nossoquerido camarada Stalin”.

Quando começou a escurecer, Utesov dedilhou o piano, eTseferman juntou-se a ele. Logo estavam entoando as canções dosprisioneiros de Odessa. Tio Gideon os acompanhava no baian, umaespécie de acordeão. O pianista do Teatro das Artes começou a tocar,observado pelo escritor Isaac Babel — robusto, olhos sorridentes por trásde óculos redondos, um ar travesso na boca larga e bem-humorada —,que estava encostado no piano. Havia sempre uma festa, dizia Gideon,quando Babel estava por perto.

Sashenka adorara seu livro de contos, A Cavalaria Vermelha, eadmirava o modo como ele via as coisas. “Babel é o nosso Maupassant”,disse ela a Vânia, que aparecera para dar uma olhada, mas este deu deombros e voltou para o escritório. Ela permaneceu junto aos músicos,

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segurando Carlo, que ainda estava acordado, e cantando com eles,enquanto Branquinha, em um vestido de baile cor-de-rosa, dançava pelasala, membros compridos como os de uma potranca, sacudindo sua fielcompanheira.

Enquanto as canções dos ladrões do mar Negro ecoavam pela dacha,os convidados de Sashenka — escritores em ternos bege folgados,bigodudos membros do partido em túnicas brancas, quepes e calçaslargas, um piloto de uniforme (um dos Águias de Stalin), atrizes cheirandoa perfume Coty e usando vestidos decotados à Schiaparelli —conversavam, cantavam, fumavam e flertavam. Os Dias do Trabalhocomeçavam com uma parada na Praça Vermelha e terminavam com umafestança soviética, celebrada por todos os escalões, desde o alto até abase. O próprio camarada Stalin e seus camaradas deviam estar brindandoà Revolução em algum lugar. Vânia dissera a Sashenka que atrás doMausoléu, na Praça Vermelha, havia um pequeno aposento onde oslíderes consumiam bebidas e zakuski; em seguida, passavam a tarde sebanqueteando na casa do marechal Vorochilov, para depois farrear até demadrugada em alguma dacha nos subúrbios.

Ligeiramente embriagada de champanhe e ainda tomada por umaembaraçosa euforia, Sashenka foi para o jardim e se deitou na redeestendida entre duas macieiras retorcidas. Ouviu-se cantando as músicas,enquanto olhava para os filhos, oscilando para a frente e para trás,acompanhando o cambaleante mundo ao redor.

— Sashenka. — Era Carolina, a babá. Parecia seca, séria e formal,mas, por dentro, era afetuosa e amorosa com as crianças. Sashenka aescolhera cuidadosamente. — Não é melhor pôr as crianças na cama?Carlo está exausto. Ele ainda é tão pequeno.

Sashenka podia ver Carlo, de pijama azul, bordado com aviõessoviéticos, sentado em uma cadeira, observando os músicos com arsonhador. Tio Gideon tocava seu baian para Branquinha e gritava:

— Bravo, Almofadinha! Urra!— Minha almofada, almofadinha, dança com o tio Gideon — cantava a

menina, mergulhada em seu próprio mundo. — Trá-lá-lá-lá-lá-lá-lá!— Obrigada, Carolina — disse Sashenka. — Vamos pôr Carlo na cama

daqui a pouco. Eles estão se divertindo tanto.

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Já havia passado muito da hora em que os filhos costumavam dormir,mas, quando ficassem mais velhos, eles poderiam se vangloriar: “VimosUtesov e Tseferman tocando as canções dos ladrões! Sim, foi em 1939,na nossa dacha, durante o Segundo Plano Quinquenal, naquela épocafeliz depois da Grande Virada, da coletivização e dos tempos de luta!

Ela se congratulou pelo sucesso de sua soirée. Por que todos vinhamà sua casa? Seria porque ela era uma editora? Ela era uma “mulhersoviética de cultura”, bem conhecida por sua partiinost, sua estritafidelidade ao Partido. Seria porque os homens a achavam atraente?Nunca vi tanto rebuliço por minha causa, pensou ela, e ficou feliz porestar usando seu vestido de verão, em linho branco, que deixava àmostra seus ombros bronzeados. E também, claro, havia a atração dopoder de seu marido. Todos os escritores eram fascinados pelo poder!

De repente, a rede balançou de forma tão violenta que ela quasecaiu.

— Então aqui está a camarada editora da revista Esposa Soviética eAdministração do Lar Proletário — uma voz zombeteira murmurou por trásdela.

— Você me deu um susto, vindo por trás de mim desse jeito — disseela, rindo, enquanto se virava na rede, para ver quem a tinhaemboscado. — Você poderia tratar a camarada editora com um pouco derespeito soviético! Afinal de contas, quem é você? — perguntou ela,sentando-se, agradavelmente atordoada pelo champanhe.

— Você não me convidou — disse o homem —, mas eu vim assimmesmo. Ouvi falar de suas festas. Todo mundo vem. Ou quase todomundo.

— Você quer dizer que eu sempre me esqueço de convidar você.— Exatamente, mas eu também sou difícil de encontrar.— Você não me parece tímido. Ou muito difícil de encontrar — ela

estava contente por estar usando o perfume da Coty. — Então, por queveio?

— Vou lhe dar três chances de adivinhar quem eu sou.— Você é um engenheiro de minas de Iuzovka?— Não.— Um piloto-herói dos Águias de Stalin?

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— Não. Última chance.— Um importante apparatchik de Tomsk?— Você está judiando de mim — sussurrou ele.— Então está bem — disse Sashenka. — Você é Bênia Golden,

escritor. O meu arteiro tio Gideon disse que tinha convidado você. Euadorei suas histórias passadas na Espanha.

— Ah, obrigado — disse ele, em inglês, com sotaque americano. — Oque eu queria mesmo era escrever para a Esposa Soviética eAdministração do Lar Proletário. É uma das maiores ambições que tenhona vida.

— Agora você está caçoando de mim. — Ela suspirou, consciente doquanto estava gostando de conversar com aquele homem estranho. —Mas, realmente, para a edição de outono, estamos precisando de umartigo sobre “Como preparar bolos de chocolate Infância Feliz e bombonsà moda da União Soviética — alimentos saborosos e nutritivos para afamília soviética”. Ou, se isso não lhe agrada, que tal mil palavras sobre onovo perfume Praça Vermelha, produzido pela Indústria de Cosméticos dacamarada Polina Molotov? Não ria, estou falando sério.

— Eu não ousaria rir. Ninguém mais ri nos dias de hoje, sem antespensar muito bem, principalmente do perfume da camarada Polina, que,como toda mulher soviética sabe, representa uma evolução na indústriada perfumaria.

— Mas você costuma lidar com guerras — lembrou Sashenka. — Vocêacha que Bênia Golden poderia lidar com um assunto realmente sério,para variar?

— Os seus assuntos são sérios, camarada editora — respondeu BêniaGolden. — E eu sei que você não zombaria de um pobre escriba.

— Pobre escriba, claro. Mas suas histórias vendem muito bem.Houve um silêncio.— Devo permanecer aqui, em atitude de devoção — perguntou

Bênia, mudando de assunto —, ou posso me sentar a seu lado?— Claro. — Ela abriu espaço na rede. Bênia estava usando um terno

branco, com calças de marinheiro bem largas, e olhava intensamente paraela, por baixo de sobrancelhas cerradas, com seus olhos azuis, salpicadosde amarelo. Seu cabelo claro estava rareando. À luz rosada da noite que

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caía, ela notou que ele tinha longas pestanas, como uma garota. Sabiaque ele era um judeu da Galícia habsburguiana e lembrou-se de que suamãe dizia que os galicianos eram arrogantes e trapaceiros, piores que oslitvaks — e Ariadna provavelmente conhecera ambos os tipos. Não tenhocerteza se gosto dele, pensou ela subitamente; há algo de atrevido nele.

Ela notou que vigiava os próprios movimentos, enquanto sereacomodava na rede, e se sentiu irritada pelo modo como ele havia seesgueirado para perto dela. Ele estava invadindo sua privacidade; suaproximidade a fazia tremer por dentro.

— Tenho uma ideia para o nosso artigo — disse Bênia. — O que achade “O efeito perturbador do perfume Praça Vermelha e das meias daFábrica de Confecções de Moscou sobre as promíscuas operárias-padrão estakhanovistas das usinas de Magnitogorsk”? Isso realmente atiçaria asfornalhas delas.

Ele começou a rir e Sashenka pensou que deveria estar bêbado parafalar uma coisa tão grosseira e perigosa.

— Não gosto muito dessa ideia — disse ela sobriamente. E ficou depé, fazendo a rede balançar.

— Agora você está se comportando como uma solene matronabolchevique.

Ele acendeu um cigarro.— Eu posso ser quem eu quiser dentro da minha casa. Essa piada foi

filistina e antissoviética. Acho melhor você ir embora.Ela voltou para a dacha pisando duro. Estava tão furiosa que tremia.

Tinha relaxado por alguns momentos, com a cabeça virada pela famadele, por sua presença na casa, mas sua lealdade ao partido lhe curara aembriaguez. Aquele indivíduo vulgar e debochado estaria ali porcoincidência ou teria sido enviado para levá-la a fazer alguma brincadeirafilistina, que poderia arruiná-la e à família dela? Por que estaria tão furiosacom a arrogância ébria e a agressiva tentativa de flerte daquele sujeito?Será que ele não temia a posição de seu marido? A inquietação quesentia em relação à sua frágil felicidade tornava tudo mais perturbador.

Saindo da penumbra indistinta e entrando na casa iluminada, elaavistou Carlo, dormindo na cadeira grande, perto do piano. Era ummenino adorável, com seu nariz arrebitado e olhos fechados, naquela

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pose tão inocente. Branquinha estava sentada nos joelhos de tio Gideon,tentando lhe enfiar na boca os cantos de sua almofada cor-de-rosa,enquanto ele conversava com Utesov a respeito do novo filme deEisenstein, Alexandre Nevski. A namorada de Gideon, a atriz, quase umacriança também, estava sentada ao lado deles, no divã, ouvindo de olhosarregalados as reflexões de Gideon sobre escritores famosos, belasmulheres e cidades distantes.

— Tio Gideon? — disse Sashenka.— Fiz alguma coisa de errado? — respondeu ele, com medo fingido.— Eu não gosto muito do seu amigo Golden. Quero que ele vá

embora — Sashenka pegou Carlo nos braços e o beijou, tomando cuidadopara não acordá-lo.

— Vamos, Branquinha. Hora de ir para a cama. — Carolina apareceumagicamente na porta e acenou para a menina.

— Eu não quero ir para a cama! Eu não vou para a cama — berrouBranquinha. — Estou brincando com o tio Gideon.

Gideon deu um tapa na perna.— Até eu tinha que ir para a cama quando era criança!Subitamente, Sashenka sentiu-se cansada da festa e de seus

convidados.— Não banque a menina mimada, Branquinha — disse ela. — Você

ganhou um ótimo presente hoje. Nós deixamos você ficar acordada atétarde e agora você está cansada.

— Eu NÃO estou cansada, sua boba, e eu quero dar um abraço notio Hércules! — Branquinha bateu o pé e fingiu estar mesmo zangada, eSashenka teve vontade de rir.

A sala de estar formava um ângulo reto com o escritório de Vânia.Enquanto caminhava em direção à porta, Sashenka podia avistar omarido, com seu corpo troncudo e cabelos crespos, ficando grisalhos. Eleainda vestia as calças azuis, mas agora usava uma camisa bordada — a suafavorita.

Estava sentado em frente a uma mesa onde repousavam trêstelefones de baquelite, um deles seu novo vertuchka, com linha diretapara o Kremlin. Conversava com tio Mendel, um dos poucos bolcheviquesda velha-guarda eleitos para o Comitê Central, no Congresso dos

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Vencedores de 1934, e reeleitos no 18º Congresso. Quase todos osoutros haviam desaparecido no “moedor de carne”; Sashenka sabia que amaioria fora fuzilada. Mas Mendel sobrevivera. Estavam discutindo jazz:soviét ico versus americano. Mendel gostava da versão de Utesov eTseferman, enquanto Vânia preferia Glenn Miller.

— Vânia — vociferou Mendel, com a voz trovejante que saía de seucorpo pequeno e disforme —, o jazz soviético reflete a luta dotrabalhador russo.

— E o jazz americano — retrucou Vânia — representa a luta dosnegros contra os capitalistas brancos da...

— Eu não vou para a cama — gritou Branquinha, atirando-se nochão.

Vânia pulou da cadeira, levantou Branquinha, sem nenhum esforço, ea beijou.

— Já para a cama, antes que eu lhe dê um puxão de orelhas! —disse ele, colocando-a no chão e lhe dando um pequeno empurrão. —Agora!

— Sim, camarada papai — disse Branquinha mansamente. — Boanoite, papotchka, boa noite, tio Mendel. — E saiu.

— Obrigada, Vânia — disse Sashenka, enquanto a seguia, com Carlonos braços.

No lado de fora, uma porta de carro bateu. Ouviram-se passadasleves na varanda e Hércules Satinov, o favorito da família, elegante emuma túnica branca de verão, do tipo stalinka, botas bege macias e umquepe branco, espreitou por trás de uma parede.

— Onde está a minha Branquinha? — gritou ele. — Não digam àAlmofada que eu estou aqui!

— Tio Hércules! — gritou Branquinha, precipitando-se de volta à sala,abrindo os braços e lhe dando um beijo.

Sashenka beijou o amigo três vezes, esbarrando na filha, enquanto ofazia.

— Hércules, seja bem-vindo. Branquinha estava ansiosa para vervocê! Mas agora que você já viu o tio, Branquinha, você vai para a cama!Diga boa-noite para o camarada Satinov!

— Mas, mamãe, eu e a Almofada queremos brincar com o tio

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Hércules — choramingou Branquinha.— Já para a cama! — gritou Vânia, e Branquinha disparou de volta

pelo corredor, em direção ao quarto.Uma coisa há que se reconhecer, refletiu Sashenka: Hércules Satinov

ficara mais bonito com o tempo. Seus cabelos negros ainda brilhavam,com pouquíssimas mechas cinzentas. Ela se lembrou de como ele e Vâniatinham ido buscá-la, após a morte de Ariadna, como haviam sido gentiscom ela.

Satinov abraçou seu melhor amigo, antes de perceber Mendel eapertar-lhe a mão, de modo formal.

— Feliz Primeiro de Maio, camaradas! — disse com forte sotaquegeorgiano. — Desculpem o atraso, eu tive que terminar uns trabalhos naPraça Velha.

Satinov, que ajudara a governar o Cáucaso, trabalhava agora nosecretariado do partido, que funcionava no prédio de granito cinzento daPraça Velha, colina acima a partir do Kremlin.

— Que festa, Sashenka! Os jazzistas cantando juntos? Nem nasrecepções dos líderes, no salão São Jorge, eu vi uma coisa dessas. Esperoque você não se importe, Vânia, mas alguns amigos georgianosconvidaram a si mesmos e vêm para cá daqui a pouco.

4

— Você ainda não foi embora? — Gideon apareceu subitamente ao ladode Bênia Golden, que fumava um cigarro na varanda. — Seu idiota!

— Cale a boca, Gideon. Você ouviu o que o Satinov disse? Unsgeorgianos vão chegar! Quem será? Algum graúdo? — sussurrou Bênia.

— Como vou saber, seu schmendrik? Devem ser alguns cantoresgeorgianos, ou cozinheiros, ou bailarinos!

Gideon agarrou a mão de Bênia e o puxou para o pomar, que estavaàs escuras. Bênia olhou em volta, nervosamente.

— Ninguém pode nos ouvir aqui — disse Gideon, verificando queRazum e os motoristas ainda estavam nos portões, entoando canções

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obscenas.— Se são apenas cozinheiros ou cantores, por que você me arrastou

até aqui e por que está sussurrando, Gideon?O céu tinha uma tonalidade rosada, naquela noite cálida. Uma coruja

piava e o pomar exalava um doce perfume de flores. Gideon gostavaenormemente de Bênia Golden e o admirava como escritor. Ambosgostavam de mulheres, embora, como Gideon costumava afirmar, “Eu souum animal, enquanto Bênia é um romântico”. Ele colocou o braço emtorno dos ombros do amigo.

— Se esses georgianos são chefões — disse —, quanto menospessoas como eles saibam sobre pessoas como nós, melhor. — Ele selembrou de seu irmão Samuil, o pai de Sashenka, que presumia estarmorto há muito tempo, e, de repente, sentiu uma pontada no peito evontade de chorar. — Bem, é hora de ir embora! Deixe de ser curioso,Bênia! Mas eu estou sussurrando, seu grande schmendrik, porque vocêofendeu minha sobrinha. O que me diz?

— Eu dei uma mancada com a camarada editora. Ela não é nenhumaDuchenka — disse Bênia —, nenhuma boba. Eu não sabia que ela era tãoincrível. Ela é bem-casada?

— Seu idiota! Em primeiro lugar, meu caro Bênia, ela é a mulher deVânia Palitsin, e em segundo, ela nunca olhou para outro homem!Primeiro amor, e estão juntos desde sempre. O que você fez, beliscou otraseiro dela ou sugeriu que o marechal Vorochilov é um imbecil?

Bênia ficou em silêncio por um momento.— As duas coisas — admitiu.— Seu schlemiel galiciano, seu paspalhão!— Gideon, qual é a diferença entre um schlemiel e um schlimazel?— O schlemiel sempre derrama a bebida no schlimazel.— Qual deles sou eu?— Os dois! — disse Gideon, e ambos riram às gargalhadas.— Mas o problema é que estou sem trabalho — disse Bênia. — Não

escrevo nada há séculos. Eles notaram, é claro. Eu realmente preciso quea revista dela me mande um trabalho.

— Sobre o quê? Sobre como organizar um baile de máscaras jazzísticopara os operários, em comemoração a metas de trabalho cumpridas?

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Você não tem vergonha? — perguntou Gideon.— Por que fui provocá-la? — gemeu Bênia. — Por que não consigo

calar a boca? Agora você me deixou preocupado, Gideon. Ela não vai medenunciar, vai?

— Não tenho a menor ideia, Bênia. Os órgãos e o partido estão portodos os lados, aqui. Você tem que se comportar de forma diferente emcasas como essa. As amabilidades, aqui, são apenas superficiais.

— Foi por isso que eu tinha que vir. Quero saber o que mexe comeles, os poderosos e a violência. E essa Vênus, com seus olhosmisteriosos e desdenhosos, está no centro de tudo.

— Ahhh, estou percebendo. Você quer entender a essência danossa época e escrever uma Comédie Humaine, ou um Guerra e Paz, combase na nossa Revolução, estrelada pela princesa Sashenka, criada namansão da avenida Marítima? Nós, escritores, somos sempre os mesmos.Quer dizer que a vida da minha sobrinha é um espetáculo?

— Bem, é uma história e tanto, você tem que reconhecer. Eu jáestive com todos eles; marechais, membros do Politburo, agentessecretos. Alguns dos matadores eram delicados como mimosas; algunsdos que foram esmagados por eles eram duros como aço. Você sabiaque, na casa de Gorki, eu encontrei o sinistro Iagoda? E uma vez toqueiguitarra na praia com Iejov, aquele maníaco homicida. — Bênia não estavasorrindo. Olhava ansiosamente para Gideon. — Mas o moedor de carneparou de funcionar, não?

— O camarada Stalin diz que o Terror terminou e quem sou eu paranão acreditar nele? — respondeu Gideon, agora realmente sussurrando.— Você acha que sobrevivi tanto tempo fazendo perguntas bobas? Eu?Logo eu? Com as origens da minha família? Eu faço o que tenho quefazer, sou um individualista tolerado. E me consolo na comunhão sagradacom a bebida e as mulheres. Passei os últimos três anos esperando abatida na porta; mas, até agora, eles têm me deixado em paz.

— Eles? O camarada Stalin, com certeza, não sabia o que estavaacontecendo, sabia? Não eram Iejov e os agentes da Tcheka queestavam fora de controle? Agora Iejov se foi; aquele bom sujeito, o Beria,desligou o moedor de carne; e, graças a Deus, o camarada Stalin está denovo no controle.

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Gideon sentiu uma ponta de medo. Embora se visse como merojornalista, glorificara Stalin e votara pela Punição Maior para os Inimigos doPovo, como os escritores famosos — o próprio Bênia, Cholokhov,Pasternak, Babel — e até Mandelstam, antes de desaparecer. Nosencontros da União dos Escritores, levantara a mão e votara pela mortede Zinoviev, Bukharin e do marechal Tukhatchevski: “Fuzilem esses cãesraivosos!”, dissera ele, assim como todo mundo, assim como BêniaGolden. Agora percebia a temeridade de discutir assuntos tão delicadoscom o superexaltado Bênia. Puxou-o então para mais perto, tão pertoque sua barba roçou na orelha de Bênia.

— Nunca foi só Iejov! — murmurou ele. — As ordens vieram mais decima...

— Mais de cima? O que você está dizendo...?— Não escreva esse livro sobre os órgãos e não provoque minha

sobrinha, falando de bolos Komsomol e das “fornalhas” das metalúrgicas!E, Bênia, você precisa escrever alguma coisa que agrade. Vamos paraPeredelkino; Fadeiev está dando uma festa e é ele quem distribuitrabalhos para os redatores. É melhor ser gentil com ele, desta vez, e nãofique por aqui mais tempo, se quiser voltar a trabalhar!

— Você tem razão. Devo me despedir de Sashenka?— Você está querendo levar um chute no saco? Vou pegar o carro e

procurar minha garota, para dizer àquela desinibidazinha que já estamosindo.

Enquanto saíam, dois luxuosos Buicks entraram roncando na aleia.— Eram os georgianos? — sibilou Bênia, que estava no banco

traseiro. Sentada à sua frente, em silêncio, Macha acendeu um cigarro.— Não olhe para trás — berrou Gideon —, ou vamos nos transformar

em estátuas de sal!Então pisou no acelerador, fazendo os pneus cantarem.

5

A festa terminara. No lado de fora, a meia-lua derramava uma luz leitosa

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na cálida escuridão. Mendel, fumando sem parar e pigarreandoruidosamente, e Satinov, que também trabalhava na Praça Velha,conversavam sobre a reposição de quadros nas Estações de Máquinas eTratores. Sashenka e Vânia começaram a arrumar a casa. Com exceçãodo constrangimento causado por Bênia Golden, fora uma noite bem-sucedida, refletiu Sashenka.

Uma estatueta seminua, branca como alabastro, surgiu na penumbra.— Mamotchka, eu não consigo dormir — disse Branquinha, brandindo

a almofada, com ar tão triunfante que Satinov a aplaudiu.Sashenka sentiu-se invadida por um turbilhão de amor. Não

conseguia deixar de perdoar a filha, talvez se lembrando da frieza de suaprópria mãe. Mas a verdade era que sempre ficava feliz quando viaBranquinha.

— Venha me dar um abraço rápido! Depois, direto para a cama. Nãofaçam ela ficar muito agitada; principalmente você, Hércules!

Branquinha pulou para os braços da mãe.— Esse anjinho nunca vai para a cama? — resmungou Vânia.— Mamãe, eu tenho que dizer uma coisa para você.— O quê, querida?— A Almofada me acordou para dar um recado ao tio Hércules!— Fale baixinho, para mim, depois volte para a cama, ou o papai vai

ficar zangado.— Muito zangado! — disse Vânia, abraçando as duas e beijando o

rosto de Sashenka, que estava colado na bochecha de Branquinha.— Mamotchka, o que aqueles fantasmas estão fazendo no jardim? —

perguntou Branquinha, apontando por cima do ombro da mãe.Sashenka virou-se e olhou através da janela.Os “fantasmas” eram quatro homens jovens, de terno branco e

cabelos à escovinha, que estavam entrando na varanda.— Saudações comunistas, camarada Palitsin — disse um deles,

enquanto o telefone tocava no escritório de Vânia — o que tinha linhadireta com o Kremlin, com sua campainha alta e inconfundível.

Alguns minutos mais tarde, Vânia retornou, com a testa franzida e arperplexo. Dirigiu-se a Satinov:

— Hércules, era o seu amigo, o camarada Egnatachvili. — Sashenka

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sabia que Egnatachvili era um agente graduado da polícia secreta,incumbido das dachas e da alimentação do Politburo. — Ele disse queestá vindo com algumas pessoas. Acho que vamos precisar de comidageorgiana...

Satinov, sentado no sofá, levantou os olhos.— Bem, ele me disse que talvez viesse. Quem ele está trazendo?— Ele só disse alguns amigos georgianos.— Comida georgiana? — perguntou Sashenka, pensando rápido. —

Ainda é meia-noite. Razum! — O motorista apareceu, cambaleando umpouco, o uniforme amarrotado. — Você pode dirigir?

Razum estava naquele estágio de embriaguez embalsamada,conhecido apenas pelos alcoólatras russos: de tão bêbado, já ficara quasesóbrio.

— Tranquilamente, camarada Sashenka — e arrotou ruidosamente.— Vou telefonar para o Restaurante Aragvi — disse Satinov,

encaminhando-se para o telefone no escritório.— Camarada Razum, corra até o Aragvi, em Moscou, e traga um

pouco de comida georgiana. Vá logo!Razum pulou da varanda, perdeu o equilíbrio, quase caiu, endireitou-

se e conseguiu chegar até o carro.— Espere! — gritou Satinov. — Egnatachvili vai trazer alguma coisa.

Ele tem acesso à melhor comida de Moscou.Fez-se uma pausa, enquanto ele e Vânia olhavam novamente para os

jovens de ternos brancos, que vigiavam os portões, os ternos brilhandocomo se a Lua os tivesse pintado com prata.

— Quem está vindo, mamotchka? — perguntou Branquinha,quebrando o silêncio.

— Silêncio, Volia! Já para a cama! — disse seu pai, com os olhosfaiscando.

Ele nunca usava o verdadeiro nome dela, a não ser que estivessefalando muito sério.

— Sashenka, temos que disciplinar um pouco essa menina...— Quem você acha que está vindo? — Sashenka perguntou a Vânia,

com uma ponta de preocupação.— Talvez Lavrenti Pavlovitch...

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— Acho que já vou indo. Foi uma ótima noite — disse Mendel, cujamulher e filha já tinham partido há horas. Sashenka observou que ele eraum dos poucos líderes a usar terno — burguês e mal cortado — egravata, sem jamais ter adotado a túnica de Stalin e seus partidários.Tirando do bolso sua caixa de pílulas, Mendel colocou sob a língua umtablete de nitroglicerina. — Vou chamar meu motorista — murmurou parasi mesmo. — Não consigo aguentar esses georgianos exibicionistas etodos aqueles brindes! Epa! Tarde demais!

Um comboio de automóveis estava enfileirado no portão, poderososfaróis iluminavam os verdes e vermelhos do jardim luxuriante. Uma cortinade poeira, erguendo-se em direção à Lua, escurecia o céu estrelado. Osfantasmas de terno branco abriram os portões. Surgiram diversos Lincolnsnegros e um ZiS novo.

O piano soava no interior da casa e ouviam-se risos na dacha ao lado.Sashenka viu um homem louro e atlético, vestindo o familiar uniforme azulcom listras vermelhas, saltar do carro da frente.

Satinov gritou em georgiano:— Gagimajos! — E em russo: — É Egnatachvili, e trouxe comida!Sashenka viu que Egnatachvili carregava um engradado com vinhos.

Guardas de uniformes azuis se materializaram nos portões, como quesaindo do nada.

— Entrem, camaradas — disse Sashenka. — Satinov disse que vocêstalvez viessem.

Os olhos do camarada Egnatachvili luziram na direção dela,atravessando a penumbra, olhos que se estreitaram em mudaadvertência. Ela se adiantou com a mão estendida, para dar as boas-vindas aos novos convidados — e então ficou imóvel.

6

Lavrenti Beria, rosto redondo, pele morena, vestido com largas calçasbrancas e uma blusa georgiana, bordada, carregava uma caixa de comida.Ele era, como Sashenka sabia, o novo Comissário Popular de Assuntos

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Internos. Ou, por outra: chefe do NKVD, a polícia secreta.— Lavrenti Pavlovitch! Seja bem-vindo! — Vânia desceu as escadas

da varanda. — Deixe-me ajudar você com esses...— Eu levo, não se incomode — disse Beria, olhando para trás.Sashenka percebeu que Vânia se colocara em posição de sentido. Na

casa ao lado, cessaram a cantoria e o tilintar de copos. A noite ficousilenciosa.

Uma estátua se erguia no jardim de Sashenka.O camarada Stalin, rosto felino, quase oriental, apareceu no sopé da

escada, rubicundo e sorridente, vestindo uma túnica branca, de verão,calças largas e botas bege, adornadas com debruns vermelhos. A Luaparecia iluminá-lo, como um holofote particular.

— Soubemos que o camarada Satinov iria a uma festa do camaradaPalitsin — disse Stalin, com leve sotaque georgiano, casquinando comoum sátiro travesso. — E soubemos que ele tinha convidado o camaradaEgnatachvili. O camarada Beria disse que também tinha sido convidado.Isso só poderia significar que o camarada Stalin tinha sido deixado de fora— e o camarada Stalin queria conversar com o camarada Satinov. Entãoapelei para os meus camaradas e reconheci que não conhecia o camaradaPalitsin bem o bastante para aparecer em sua festa. Eu disse: “Vamosfazer uma votação.” A votação foi a meu favor e os camaradas decidiramme convidar. Mas eu estou aqui por minha própria conta e risco. Não voulevar a mal, camaradas anfitriões, se vocês quiserem me mandar embora.Mas nós trouxemos vinho e uns petiscos georgianos. Camaradas, ondeestá a mesa?

Satinov deu um passo à frente.— Camarada Stalin, você já conhece um pouco o camarada Palitsin —

disse Satinov —, e esta é a esposa dele, Sashenka, de quem você devese lembrar...

— Entre, por favor, camarada Stalin, quanta honra — disse Sashenka,finalmente encontrando a voz.

Sentia uma aterrorizante e nada bolchevique compulsão para fazeruma mesura, como era praxe no Smolni, diante do retrato da ImperatrizViúva. Sem saber como, conseguiu descer os degraus até o jardim e, dealgum modo, aproximou-se de Stalin — menor, mais velho, mais pálido e

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mais cansado do que ela se lembrava. Ele mantinha o braço esquerdo emuma posição rígida. Era um pouco barrigudo, reparou ela, e os bolsos desua túnica estavam mal costurados. Mas, presumiu, gigantes não ligampara essas coisas.

Stalin parecia espantado pelo efeito que causava — mas se deliciavacom isso. Segurou a mão dela e a beijou, segundo o velho costumegeorgiano, olhando para ela com olhos de mel e ouro.

— Camarada Raposa, você está muito bem-vestida.Ele ainda se lembra do velho codinome do Partido que eu usava em

São Petersburgo! Que memória! Que coisa embaraçosa! Que coisalisonjeira!, pensou ela, confusa.

— É uma sorte que você e seu jornal estejam ensinando a arte de sevestir às mulheres soviéticas. Seu vestido é muito bonito — acrescentouStalin, subindo as escadas.

— Obrigada, camarada Stalin — disse ela, lembrando-se de nãomencionar que o vestido fora feito no exterior.

— Pelo menos desta vez, camaradas, o partido indicou a pessoa certapara o lugar certo.... — Stalin riu e os outros riram também, até Mendel.— Venham juntar-se a nós, camaradas Satinov e Palitsin. E você,camarada Mendel. — Sashenka percebeu que ele não demonstrava muitoentusiasmo pelo austero Mendel.

Beria deu um tapinha afável na barriga de Palitsin, enquanto passava.— É bom te ver, Vânia. — Ele estalou a língua. — Tudo tranquilo?

Tudo na mesma?— Seja muito bem-vindo à minha casa, Lavrenti Pavlovitch!— O que você achou do jogo de futebol? O Spartak merece uma

lição e da próxima vez, se nossos artilheiros não jogarem melhor, vouarrancar as tripas deles! — Beria bateu as mãos alegremente. — Vocêquer jogar no meu time de basquete amanhã? Vamos jogar contra osguardas de Vorochilov.

— Estarei lá, Lavrenti Pavlovitch.Sashenka sabia que o marido o admirava. Beria trabalhava como um

cavalo. Era jovem e tinha o rosto liso, sem rugas.— Posso me sentar ali? — perguntou Stalin modestamente,

apontando para a mesa.

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— Claro, camarada Stalin, onde você quiser — disse ela.O camarada Egnatachvili colocou a comida na mesa e Sashenka

pegou uma garrafa de vinho.— Deixe que eu abro — disse Stalin.E serviu, para todos, copos do rústico vinho tinto. Então encheu

uma tigela com feijões lobio, o rico ensopado georgiano, acrescentoualguns pedaços de pão e colocou um prato por cima, para encharcar opão. Então, serviu-se de cordeiro chachlik e de satsivi, a condimentadagalinha à georgiana. Louro e bonitão no uniforme bem cortado, com seusgrandes ombros de lutador, Egnatachvili agigantava-se perto de Stalin,servindo-se dos mesmos pratos. Ao se sentarem para comer, Egnatachviliprovou o lobio, um pouco antes de Stalin. Era na verdade, pensouSashenka, o provador de Stalin.

— Camarada Satinov — disse Stalin mansamente, acenando para queSatinov se sentasse ao lado dele. Beria estava do outro lado. Egnatachvili,Vânia e Mendel sentaram-se mais afastados.

— Lavrenti Pavlovitch, quem será o tamada? — Stalin perguntou aBeria.

— O camarada Satinov é quem deve fazer os brindes! — sugeriuBeria.

Segurando um copo de vinho georgiano, que tinha a forma de umchifre de boi, Satinov se levantou e fez o primeiro brinde.

— Ao camarada Stalin, que nos conduziu a grandes vitórias, nestestempos tão difíceis!

— Tenho certeza de que você pode pensar em coisas maisinteressantes! — brincou Stalin, mas todos na casa ficaram de pé ebeberam a ele.

— Ao camarada Stalin!— Não esse de novo — protestou Stalin. Sua voz era

surpreendentemente suave e aguda. — Deixem-me fazer um brinde: aLenin!

Seguiram-se outros brindes: ao Exército Vermelho, aos anfitriões, aSashenka e às mulheres soviéticas. Sashenka observava tudo, tornando aencher os copos e voltando a sentar-se. Queria se lembrar de cadamomento daquela cena. Stalin gracejava com Satinov em georgiano, mas

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Sashenka sentia que o Líder o estava avaliando. Sabia que Stalin gostavade jovens simples e decentes — que fossem implacáveis e vigorosos, mastambém alegres e descontraídos. Embora trabalhador e competente,Satinov estava sempre cantarolando trechos de óperas.

Mendel começou a tossir.— Como estão seus pulmões, Mendel? — perguntou Stalin, ouvindo

pacientemente, enquanto Mendel lhe respondia, com profusão dedetalhes médicos. — Mendel e eu dividimos uma cela na prisão deBailovka, em Baku, no ano de 1908 — informou Stalin aos presentes.

— É verdade — disse Mendel, cofiando a barba discreta.— Mendel recebeu um cesto de comida, enviado por sua bondosa

família, e dividiu a comida comigo.— É verdade, eu dividi a comida com todos os camaradas da cela —

disse Mendel, em seu feitio formal e minucioso, deixando claro que nãohavia favoritismo em sua camaradagem. Mas apenas um companheiro decela tinha importância, pensou Sashenka.

— Esse é o Mendel! O incorruptível autor de Moral Bolchevique,aquele livro best-seller! Você não mudou nem um pouco, Mendel — disseStalin zombeteiramente, mas com o rosto sério. — Você era velhonaquela época e é velho agora! — Ele riu e os outros o acompanharam.— Mas todos nós envelhecemos...

— De modo algum, camarada Stalin — retrucaram Egnatachvili, Vâniae Beria ao mesmo tempo. — Você parece ótimo, camarada Stalin.

— Chega de falar dessas coisas — disse Stalin. — Mendel já merepreendeu por beber muito em uma reunião, quando nós, exilados,dividíamos aquele velho estábulo na Sibéria, e até hoje dá lição de moralem todo mundo!

Sashenka lembrou-se de como Mendel apoiara Stalin na Comissão deControle, depois da morte de Lenin, jamais vacilando durante a fome de32, nem hesitando em reduzir a pó os “bastardos”, nos Plenários de 37.

— Na verdade — troçou Stalin —, eu sempre tenho que segurarMendel, para que ele não se descontrole e acabe tendo um colapso!

Todos riram de Mendel, cujo fanatismo pedante era notório. Mas eraa razão de ele ainda estar vivo.

Stalin saboreou seu vinho, dardejando de pessoa a pessoa os olhos

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semicerrados.— Você gostaria de ouvir música, camarada Stalin? — sugeriu

Satinov.Stalin sorriu como um gato. Quando começou a cantar “Suliko”,

todos os georgianos o acompanharam. Então Satinov entoou “AndorinhaNegra” e, sem hesitação, Stalin assumiu a liderança, com uma bela voz detenor, secundado por Egnatachvili, um barítono, e por Beria e Satinov,em harmonias polifônicas. Sashenka escutava encantada.

Voe para longe, andorinha negra,Voe pelo rio Alazani,Traga notícias para nósDos irmãos que foram para a guerra...

Também foram entoados hinos, canções dos ladrões de Odessa —“Murka” e “Dos Cárceres de Odessa” — e as melodias de bandidosfavoritas de Stalin: “Eles enterraram o ouro, o ouro, o ouro...” Sashenkaconjeturou se Stalin escolhia as canções para colocar todos à vontade:hinos ortodoxos para os russos, harmonias georgianas, canções de Odessapara os judeus — sim, lá estava a profunda voz de Mendel enriquecendo“Dos Cárceres de Odessa”.

— Precisamos de umas mulheres quentes aqui! — disse Beria. — Masbebi tanto que acho que nem...

— Camarada Beria, olhe o decoro! Há damas presentes — disseStalin, com fingida seriedade e um sorriso levemente malicioso. —Podemos ligar o gramofone? Vocês têm discos? Danças?

Sashenka trouxe sua coleção. Graças a Deus, Satinov sempre lhesdava um disco georgiano — no Dia do Trabalho e em 8 de novembro.Assim, Stalin encontrou o que queria. De pé ao lado do gramofone,colocou os discos para tocar. Às vezes levantava as mãos e ensaiavaalguns passos de danças caucasianas; mas, durante a maior parte dotempo, apenas dirigia a festa.

Os georgianos empurraram o divã. Sashenka enrolou o tapete e,quando se levantou, deparou-se com Satinov e Egnatachvili dançando alezginka para ela. Ela preferia o tango, o foxtrote e a rumba, mas

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conhecia também as danças caucasianas. Então executou os graciosospassos, enquanto Satinov, em primeiro lugar, e depois Beria e Egnatachvilidançavam com ela.

— Camarada Hércules, você realmente sabe dançar — disse Stalin emtom aprovador. — Nunca vi ninguém dançar tão bem desde que eu eragaroto... De onde é sua família?

— Borjomi — respondeu Satinov.— Não muito longe da minha cidade — disse Stalin, reiniciando o

disco. Era uma conversa entre georgianos, mas Sashenka concordavacom Stalin: Satinov dançava muito bem. Seus olhos azul-escurosbrilhavam, seus passos eram leves e ágeis, suas mãos faziam movimentoselegantes e expressivos. Ele a segurava com firmeza, ao passo que Beria aapertava com a mão e colocava seu rosto muito próximo ao dela. Seuslábios eram tão grossos que parecia haver excesso de sangue neles.Cansada, ela parou de dançar, e ficou só observando. Percebeu queestava perto do gramofone, onde Stalin punha os discos para tocar.

De repente, sentiu-se feliz e à vontade, quase relaxada demais.Ficara aterrorizada quando vira Stalin pela primeira vez, bem ali, no seujardim. Mas ele tranquilizara a todos. Agora ela lutava contra seu próprioinstinto de flertar e tagarelar. Estava superexcitada e provavelmentebêbada, com o pesado vinho tinto georgiano. Muitas vezes, esteve paradizer coisas loucas. Tenha cuidado, Sashenka, ordenou a si mesma, esseé o Stalin! Lembre-se dos últimos anos — do moedor de carne! Cuidado!

Sentia enorme devoção por aquele homem duro, mas modesto, tãorespeitoso e, ainda assim, tão implacável com os inimigos. Mas pressentiaque essa fastidiosa devoção apenas o irritaria e o deixaria pouco àvontade. Ela queria convidá-lo para dançar — e se ele estivesse querendodançar com ela? E se não a convidava por inibição, ou por achar que oconvite seria uma insolência? De todo modo, ela queria dançar com ele, eele deve ter lido a intenção na mente dela.

— Eu não danço, Sashenka, porque não posso segurar uma mulhercom meu braço. — Seu braço esquerdo era um pouco mais curto que odireito e ele o mantinha colado junto ao corpo. Permaneceram então depé, junto ao piano. Um tenso silêncio caiu sobre eles e ela pôde sentir aatmosfera de perigo que envolvia aquele homem extraordinário.

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— Eu adoro essa música, camarada Stalin.— A música acalma o animal que existe dentro do homem — disse

Stalin. E olhou em torno. — Você e o camarada Palitsin estão felizes comessa dacha?

— Ah, sim, camarada Stalin — respondeu ela. — Muito felizes.— Espero que sim. Posso dar uma olhada nela?Beria e os outros ficaram observando, mas não os seguiram.

Sashenka estava enormemente orgulhosa e empolgada por Stalin sedirigir somente a ela.

— Estamos muito gratos pela dacha, e hoje recebemos orefrigerador. Muito obrigada pela confiança do partido!

— Temos que recompensar quem trabalha para o partido de formaresponsável. — Stalin olhou o escritório de Vânia. — É quente o bastanteno inverno? Eu gosto de escritórios bem arejados. Os quartos são emnúmero suficiente? Você gosta da cozinha?

Oh, sim. Sashenka gostava de tudo na dacha. Ela lutou contra suaeuforia, seus sentimentos de alegria e liberdade, enquanto uminexprimível, mas poderoso pensamento cruzou sua mente. Pensava nopai, Samuil Zeitlin. Será que não poderia fazer uma pergunta ao camaradaStalin? Estava tão íntima dele, agora, como ele lhe recusaria alguma coisa?Sabia que a admirava como mulher soviética.

— Camarada Stalin... — começou ela.Seu pai se descontrolara, após o suicídio de Ariadna, e perdera a

fortuna, após a Revolução de Outubro. Mas permanecera em SãoPetersburgo, colocando seus conhecimentos financeiros a serviço dosbolcheviques. Durante os anos 20, prestara serviços ao partido como“especialista externo”, no Comissariado Popular de Finanças e ComércioExterior, o Banco Central de então — antes de ser expurgado, em 1930,como “saqueador com tendências trotskistas”. Recebeu, entretanto,autorização para se aposentar e viver na Geórgia, onde Beria o prendeu,em 1937. Desde então, desaparecera. É claro que eles tinham razão em“investigar” esse inimigo do povo, pensou Sashenka. Teoricamente,Zeitlin estava entre os piores opressores sanguessugas. Apesar disso, elese “desarmara” e servira sinceramente ao poder soviético, sem nenhumafalsidade. Stalin, sem dúvida, perceberia que ele já não representava uma

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ameaça.Stalin sorriu para Sashenka, com indulgência. Parecia um tigre

amigável, pensou ela, com vincos que se formavam em cada lado de suaboca — e ela hesitou por um momento. O mel nos olhos dele se tornouamarelo e uma sombra de constrangimento cruzou seu rosto.Subitamente, ela se deu conta de que Stalin poderia reconhecer suaexpressão. Ele podia adivinhar tudo, saberia que ela estava para lheperguntar sobre a prisão ou a execução de algum parente — e não havianada que ele detestasse mais do que esta pergunta.

— Camarada Stalin, posso perguntar... — As palavras estavam seformando novamente nos lábios de Sashenka, sem que ela conseguissesegurá-las. Ela extirpara o pai de sua memória em 1937; mas, agora,naquele momento tão inadequado, tão fatídico e, ainda assim, oportuno,ela ansiava por dizer seu nome. O que estaria acontecendo com ela? Umabolchevique não precisava de família, apenas do partido. Mas ela amavaseu papai! Queria saber — estaria ele cortando árvores em algum lugar?Seus ossos estavam em alguma cova rasa na taiga siberiana? Já teriarecebido, há muito tempo, a Punição Maior? Por favor, camarada Stalin,rezou ela, diga que ele está vivo! Liberte-o!

— Camarada Stalin...— Mamotchka! — Stalin e Sashenka se viraram para a porta e Vânia

ficou boquiaberto. — Mamotchka, eu não consigo dormir — gritouBranquinha. — Está muito barulho. Vocês me acordaram. Eu quero umabraço!

Vestindo uma camisola estampada com borboletas, com os longoscachos de cabelos dourados emoldurando bochechas róseas e um sorrisoque revelava dentes brancos e regulares, Branquinha pulou nos braços damãe.

7

— Branquinha! — Alegremente bêbado um minuto antes, Vânia levantou-se, com ar sombrio.

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Sashenka sentira também um perigo real. Tentara ensinar aos filhosque não falassem nada, não repetissem nada, não ouvissem nada, masBranquinha era capaz de tudo! Com Stalin na casa? Uma palavraimprudente ou uma brincadeira tola poderia levá-los, na melhor dashipóteses, a fazer papel de bobos na frente de Stalin; na pior, poderiadespachá-los para o pelotão de fuzilamento. O que Stalin faria? O queBranquinha iria dizer a Stalin?

— Quem é essa? — perguntou Stalin em voz baixa, aparentementese deliciando com a expressão de pânico no rosto de Vânia.

— Camarada Stalin — disse Sashenka —, deixe que eu lhe apresentea minha filha Volia.

Stalin sorriu para a menina. Não diziam que todos os georgianosgostavam de crianças?, pensou Sashenka, enquanto ele se curvava efazia cócegas no nariz de Branquinha.

— Olá, Volia — disse ele. — Você tem um bom nome comunista.— Esse barulho me acordou — resmungou Branquinha.Stalin deu um leve beliscão na bochecha dela.— Pare! — gritou ela. — Você está me beliscando!— Estou, assim você vai se lembrar de mim — disse Stalin. —

Confesso minha culpa para você, camarada Volia. Era eu quem estavatocando a música, não sua mamãe, então fique zangada comigo.

— Ela não está zangada, de jeito nenhum. Eu peço desculpas,camarada Stalin — disse Sashenka rapidamente. — Branquinha, agora jápara a cama!

— Eu detesto dormir.— Eu também... Branquinha — disse Stalin alegremente.— Essa é a minha almofada! — Branquinha estendeu a almofada na

direção do rosto de Stalin, mas Sashenka a segurou a tempo.— Bem, o que é isso? — perguntou Stalin, divertido, com um meio

sorriso.— É minha melhor amiga, a srta. Almofada — disse Branquinha. — Ela

dirige a produção de almofadas para o Segundo Plano Quinquenal e querentrar para as Jovens Almofadeiras, para poder usar o lenço vermelho!

— Chega, menina — disse Sashenka. — O camarada Stalin não quermais ouvir essas bobagens! Já para a cama! — Do outro lado do

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aposento, seu marido escondeu o rosto nas mãos.— Sim, para a cama! — disse ele, em voz alta demais.— Calma, camarada Palitsin — disse Stalin, afagando os cabelos de

Branquinha. — Ela não poderia ficar mais um pouco? Seria um prazer paramim.

— Bem... claro, camarada Stalin.Branquinha executou uma rápida dança da almofada e atirou um

beijo para o pai.— Então você é uma almofadista? — disse Stalin solenemente.— Eu estou no Politburo das Almofadas — disse Branquinha com seu

largo sorriso, exibindo as gengivas. Sashenka percebeu que ela estavaempolgada por ser o centro das atenções. — Viva o almofadismo!

Sashenka sentiu-se como se estivesse morrendo afogada, enquantoesperava pela reação de Stalin. Houve um longo silêncio. Beria deu umrisinho. Mendel olhou carrancudo. Stalin franziu as sobrancelhas, olhandoseriamente em torno, com seus olhos amarelos.

— Acho que, como eu acordei essa bonequinha — disse lentamente—, nós deveríamos deixar que ela ficasse acordada até mais tarde,cantando com a gente. Mas se seus pais acham que você deve ir para acama... — Sashenka sacudiu a cabeça e Stalin ergueu um dedo. — Eudecido: um, o partido reconhece que o almofadismo não é um desvio.Dois, se você ficar acordada, vai ter que se sentar em meus joelhos e mefalar sobre o almofadismo! Três, você vai para a cama quando sua mãemandar. Que tal assim, camarada Almofada Branquinha?

Branquinha assentiu e perscrutou Stalin com seus olhos muito azuis edesconcertantes. Então levantou o braço.

— Eu conheço você — disse ela, apontando para ele. Sashenkasobressaltou-se de novo.

Stalin a observou sem dizer nada.— Você é o pôster no Santuário Vermelho — disse Branquinha. — O

pôster veio jantar.Todos riram. Sashenka e Vânia, com alívio.Stalin sentou-se à mesa novamente e abriu os braços. Apavorada

com a ideia de que sua filha pudesse rejeitar Stalin, Sashenka a colocounos joelhos do Líder, mas Branquinha parecia mais interessada em sacudir

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a almofada ao ritmo da música. Todos entoaram mais uma série decanções. Depois da primeira delas, Stalin pôs a menina no chão e beijousua testa. Ela correu de volta para a mãe.

— Diga boa-noite e obrigada para o camarada Stalin — disseSashenka, segurando Branquinha com firmeza.

— Boa noite, camarada Almofada — disse Branquinha, sacudindo aalmofada cor-de-rosa.

— Desculpe, camarada Stalin...— Que nada. É a primeira vez que me chamam assim! — Stalin riu. —

Boa noite, camarada Almofada.— Camarada Stalin, você é tão bom com as crianças. Ela vai se

lembrar disso a vida inteira. Eu não tenho como lhe agradecer por suagentileza e paciência com Branquinha — disse Sashenka, enquanto saía dasala, carregando a filha. Suspirando de alívio, colocou-a na cama. Umsegundo depois, a menina já dormia.

Sashenka retornou à sala de estar segurando alguma coisa. Os olhosde Stalin se desviaram para suas mãos.

— Camarada Stalin, como agradecimento pela honra de ter vocêcomo nosso convidado, mas realmente por gratidão pela sua paciênciacom nossa filha, permita que eu dê um presente para sua filha, Svetlana.

Exibindo um suéter de caxemira, no tamanho certo para SvetlanaStalin, que tinha 13 anos, ela o entregou a Stalin.

— De onde é isso? — perguntou Stalin friamente.Sashenka engoliu em seco. Era de Paris. O que deveria dizer?— Foi feito no exterior, camarada Stalin. Eu tenho muito orgulho de

nossos produtos soviéticos, que são melhores que qualquer objeto deluxo estrangeiro. Mas é só um simples suéter.

— Eu não aceitaria, se fosse para mim — disse Stalin, dando umasbaforadas no cigarro —, mas como Svetlana é quem realmente dirige opaís, vou aceitar o presente para ela. — Todos riram e Stalin ficou de pé.— Tudo bem! Quem gostaria de assistir a um filme? Eu quero ver Volga,Volga de novo.

Todos gostariam de assistir a um filme, com exceção de Sashenka,que tinha que tomar conta dos filhos, e do camarada Mendel, que disseque se sentia cansado e doente. Começaram então a se apinhar nos

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carros, para ir ao cinema do Grande Palácio, no Kremlin. Stalin beijou amão de Sashenka e elogiou seu vestido mais uma vez. Do lado de fora,verificou as flores no jardim.

— Você planta rosas aqui. E jasmins. Eu adoro rosas.Cercado pelos arrogantes georgianos e pelos jovens de terno branco,

andou até os carros que o aguardavam, com sua postura pesada eligeiramente recurvada.

Enquanto entrava em um dos carros, Vânia acenou para Sashenka,eufórico por fazer parte daquele séquito, pela primeira vez.

— Volto logo, querida! — gritou ele.Com seus lábios inchados como salsichas, Beria beijou Sashenka na

boca.— Ele gosta de você — disse, com seu forte sotaque mingrélio. —

Parabéns. Ele gosta de você, o Mestre. Você é meu tipo também!Satinov foi o último a sair, olhando em volta, para se certificar de que

os chefes estavam nos carros. Portas bateram, pneus cantaram, nuvensde fumaça e poeira se ergueram sobre os pomares banhados pela Lua —os Buicks e ZiSes aceleraram e partiram, derrapando pela aleia.

— Ufa, Sashenka! — disse ele. — Viva o almofadismo! Beije a minhaafilhada por mim, a pequena bruxa!

Sentindo-se fraca, Sashenka deu um beijo de boa-noite no amigo.Satinov pulou para dentro do último carro, que saiu em disparada.

Os jovens de terno branco haviam desaparecido.Sozinha na varanda, Sashenka olhou para o céu. O dia raiava.

Perguntando a si mesma se estivera sonhando, entrou em casa e foi olharos filhos.

Carlo estava dormindo, mas tinha tirado o pijama e agora estava nu,com a cabeça voltada para o lado errado da cama. Segurava umcoelhinho de pano. Seu corpo ainda tinha as dobras carnudas e rosadasde um bebê. Prazerosamente, Sashenka meneou a cabeça e beijou suatesta sedosa.

Branquinha dormia como um anjo, em seu quarto cor-de-rosa, comas mãos abertas repousando sobre o travesseiro, uma de cada lado dacabeça. A incrível almofada repousava sobre seu peito nu. Sashenkasorriu. Até o camarada Stalin gostara da Almofada. Fora uma noite

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estranha.

8

Stalin estava sentado no assento removível de sua nova limusine ZiS,entre os bancos dianteiro e traseiro. Beria ia na traseira, com Egnatachvili.Vlasik, o chefe dos guarda-costas, sentava-se ao lado do motorista. Osdemais viajavam em outros carros.

— Para o Kremlin, por favor, camarada Salkov — disse Stalin,gentilmente, ao motorista. Ele conhecia o nome e as particularidades detodos os seus guarda-costas e motoristas. Era sempre gentil com eles eeles lhe eram devotados. — Vá pela Arbat.

— Está bem, camarada Stalin — disse o motorista. Stalin acendeu ocachimbo.

Seguiram por avenidas margeadas por bétulas e abetos, cujas floresem botão brilhavam à luz da Lua. Desembocaram na estrada Mojaisk edobraram na rua Dorogomilov.

— Ela é uma boa mulher soviética, a Sashenka — disse Stalin a Beria,depois de alguns momentos. — Você não acha, Lavrenti? E Vânia Palitsiné um bom trabalhador.

— Concordo — disse Beria.O comboio estava na ponte Borodino, com seus touros de pedra,

colunatas e obeliscos, prestes a atravessar a praça Smolensk.— Aquela Sashenka sabe dançar muito bem — refletiu Egnatachvili,

que não era polít ico, vivia para os esportes, comida, cavalos e garotas.— E também sabe ser editora — brincou Stalin —, embora aquela

revista não seja uma publicação séria. Mas essa droga é importante paraas donas de casa. As mulheres soviéticas precisam saber dessas coisas. —Estavam passando pela Arbat. — Mas que família! Ela ainda tem vestígiosde suas origens burguesas — você sabia que ela estudou no Smolni? Masnão nos chateia com leituras idiotas, como a mulher de Molotov. Cuida dacasa, faz bolos, cria os filhos, trabalha para o partido. Ela se “refundiu” emuma mulher soviética decente.

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— Concordo, camarada Stalin — disse Beria.— Essa vai ser a décima vez que eu vejo Volga, Volga — disse Stalin.

— Quando eu vejo esse filme é como se fosse um feriado! Acho que jádecorei tudo!

— Eu também — disse Beria.Seguindo por ruas largas e vazias, aproximaram-se do Kremlin, uma

fortaleza medieval de tijolos vermelhos, cuja fachada era protegida pordiversos carros, assim como as laterais e os fundos. Seus portões seabriram lentamente. Guardas bateram continência. Pneus chacoalharamsobre o calçamento de pedras.

— Ivan, o Terrível caminhou aqui — disse Stalin em voz baixa. OKremlin era sua casa há cerca de vinte anos, e isso era mais tempo doque passara na casa de sua mãe ou no seminário.

Ele olhou para Beria, cujos olhos estavam fechados.— Me diga uma coisa, Lavrenti — disse em voz alta, apontando com

o cachimbo. Beria acordou com um sobressalto. — Onde está Zeitlin, ocapitalista, pai de Sashenka? Eu me lembro de que nós o investigamos.Ele ainda está com você, em algum dos seus lugares, ou foi fuzilado?Temos como descobrir?

9

— Eu gosto deste artigo, “Como dançar o foxtrote” — disse Sashenka,em sua mesa em formato de T, conferindo as provas. — Vocês gostaram,camaradas?

Dois dias haviam se passado e ela estava na redação de EsposaSoviética e Administração do Lar Proletário, na Petrovka. Nas paredes,havia retratos de Stalin, Puchkin e Máximo Gorki; fotos de Branquinha,Carlo e Vânia — este de uniforme, na última parada do Dia do Trabalho —enfeitavam sua escrivaninha; um telefone de baquelite e um pequenocofre repousavam sobre uma mesa, em um canto. O tamanho do cofre,o número de telefones e a qualidade dos retratos de Stalin constituíamsinais de poder. Aquele escritório não era poderoso.

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— Devemos entreter nossas leitoras, é claro, camarada editora —disse Klavdia Klimov, a editora-assistente de rosto afilado e olhosesbugalhados, que se vestia com as horrendas mortalhas confeccionadaspela Fábrica de Confecções de Moscou. — Mas não deveríamos consideraras implicações classistas do foxtrote?

Sashenka era mestre em jogar esse jogo; era realmente comunistaconvicta e levava a sério sua missão. Talvez estivesse ainda um poucoatordoada, com a excitação do feriado, mas conhecia as regras: nuncafalar sobre os superiores, especialmente sobre o Mestre. Apesar disso,gostaria que, de alguma forma, a história vazasse. Queria que Klavdia e ostrês outros editores da redação soubessem quem havia visitado osPalitsins na noite do Dia do Trabalho! Afinal de contas, o camarada Stalintinha apoiado a revista e o trabalho dela, será que ela não poderiapartilhar isso com seus camaradas? Diversas vezes esteve prestes a contartudo, mas recuava ante a enormidade da revelação, engolindo-a devolta... E voltava ao foxtrote e ao jazz.

— Concordamos com a camarada editora-assistente? Uma votação?— Todos cinco levantaram as mãos. — Podemos encomendar um artigoadicional que enfoque o jazz como uma expressão da exploração dosnegros pelos capitalistas americanos? Klavdia, você quer escrever issovocê mesma, ou tem algum redator em mente? E fotografias? Devemoscolocar uma foto com dançarinos profissionais ou mandamos alguém aoMetrópole uma noite dessas?

Os editores concordaram em colocar uma foto; às vezes haviaestrangeiros no Metrópole. Finalmente, dispersaram-se. A reunião estavaterminada. Sashenka puxou um cigarro Herzegovina Flor e o acendeucom seu isqueiro. Ofereceu o maço aos demais. Todos acenderamcigarros.

— Vocês sabiam que Utesov e Tseferman tocaram em nossa casa noferiado? — disse Sashenka, incapaz de evitar um pouco de alardeinofensivo.

Fez-se um silêncio embaraçoso. Imediatamente, Sashenka lamentouter falado.

— Será que eles dariam uma entrevista à nossa publicação? —perguntou Klavdia.

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— Bem, eu não tinha como perguntar isso a eles naquela hora —disse Sashenka, expelindo fumaça azulada. — Mas vou pensar nisso.

Naquele momento, alguém bateu na porta. Era Galia, a secretária deSashenka.

— Um escritor está querendo falar com você.— Ele tem hora marcada?— Não, mas é muito arrogante. Disse que você sabe quem ele é e

que quer pedir desculpas.Sashenka sentiu o estômago se contrair, como se tivesse dirigido

rápido demais até o alto de um morro íngreme.— Deve ser Bênia Golden — disse ela com indiferença. — Que

atrevimento! Um homem muito rude. Diga a ele que não tenho tempo,Galia.

— Bênia Golden? — disse Micha Kalman, o único editor do sexomasculino. Tinha se levantado para ir embora, mas pousou a pastanovamente. — Ele vai escrever para a revista?

— Como você conheceu ele? — perguntou Klavdia, quase em tomacusatório, de olhos arregalados. Estava sentada em sua cadeira e,quando tragava, emitia um som úmido, de sucção.

— Eu não o conheço. Mas ele esteve em minha dacha no feriado.— Deve ter sido uma festa e tanto — disse a editora-assistente, em

seu vestido marrom mal cortado. — Utesov, Tseferman... e agoraGolden, também.

Sashenka lamentou ter alardeado sua lista de convidados. Virou-separa Galia.

— Eu não quero vê-lo. Ele deveria ter marcado hora. Aliás, eu soubeque ele está acabado. Não escreve nada há dois anos. Peça para ele irembora, Galia.

— Está bem, camarada — disse Galia.— Não, espere — disse Micha Kalman, cuja voz era alta e ligeiramente

zombeteira.Galia virou-se para deixar a sala.— Diga isso a ele, Galia — insistiu Sashenka, e Galia se moveu em

direção à porta.— Espere! — disse Kalman. — Eu sou fã do trabalho dele. É muito

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raro nós termos escritores dessa qualidade na revista. Carpe diem!Os olhos protuberantes de Klavdia, como os de um grande

caranguejo, giraram na direção de Sashenka.— Você está permitindo que o individualismo penalize o coletivo? —

perguntou ela.Sashenka percebeu o perigo de exagerar na antipatia. Banhando-se

na magnanimidade do próprio Stalin, sentiu-se subitamente generosa.Reagira de forma emocional demais na festa. Bênia tinha se comportadotão mal?

— Espere um pouco, Galia — disse então. Galia parou, dando risinhos.— Camaradas, precisamos decidir se queremos que ele realmente escrevapara a Esposa Soviética e Administração do Lar Proletário.

Klavdia lembrou que Golden participara da delegação que fora aoCongresso dos Escritores, no ano de 1936, em Paris, juntamente comEhrenburg, Babel e outros, e que estivera envolvido na celebração docentenário de Puchkin, em 1937.

— As histórias dele são inesquecíveis — disse Kalman, desgrenhandoainda mais os cabelos encaracolados, enquanto elogiava o trabalho deBênia sobre a Guerra Civil Espanhola. Sashenka lembrou-se de que algunsdos generais que Bênia conhecia haviam sido desmascarados comoInimigos do Povo, e executados em 1937/8. Gorki, protetor dele, jámorrera, e outros escritores tinham sido liquidados.

— Mas por que Golden não tem escrito nada ultimamente? —perguntou ela. — É um protesto contra o partido ou uma “orientação” daSeção Cultural, na Praça Velha?

— Vou telefonar para Fadeiev, na União — disse Klavdia —, e entrarem contato com o apparat cultural do Comitê Central. Vou fazer umassondagens.

— Proposta aceita. O que você gostaria que ele escrevesse, Klavdia?— Ele poderia escrever sobre a Fábrica Bolchevique de Doces, que

confeccionou o maior bolo de chocolate do mundo, em forma de tanque,para o aniversário do camarada Vorochilov. Golden poderia entrevistar ostrabalhadores e revelar como eles utilizaram a engenhosidade bolcheviquepara criar o canhão, o tanque de massa de biscoito...

A Fábrica Bolchevique de Doces tinha muito destaque nas

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reportagens da revista, mas Sashenka franziu a testa ao imaginar a reaçãode Bênia a uma história sobre um bolo, apesar do tamanho e daconcepção militar.

— Que tal o artigo sobre dança — sugeriu Klavdia. — Sob a minhaestrita supervisão.

— Camarada, você mesma já teve uma ideia melhor — disseSashenka. — Você se lembra do trabalho do nosso Comitê de Mulheres?Você sugeriu um artigo sobre o orfanato dos filhos dos Inimigos do Povo!

— Uma história emocionante sobre redenção de classe ereestruturação de personalidades — disse Klavdia.

— Com certeza, essa é a matéria ideal, em nossa revista, para umescritor sério. Vamos fazer uma reportagem longa, uma história de capa,cinco mil palavras. Eu soube que o lugar é delicioso e muitas crianças sãoadotadas por amorosas famílias soviéticas. Então, camaradas, devo pedir aele que escreva o artigo sobre o Orfanato Comunal Félix Dzerjinski paraFilhos de Traidores da Pátria?

Sashenka sentia-se cansada. Eram quase sete da noite. Carloacordara às seis da manhã e subira na cama deles. No lado de fora,Moscou se aquecia com a luz avermelhada de uma noite de maio. Apesardo Plano Qüinqüenal e dos sinais de obras em toda parte, ainda havia algode primitivo na cidade. As ruas estavam meio vazias, não havia muitoscarros. Um cavalo, puxando uma carroça, trotava pela Petrovka,entregando vegetais.

— Obrigada, camaradas! — disse Sashenka. — Decisão acatada. — Oscamaradas saíram da sala. — Galia?

— Decisão final, camaradas? — brincou Galia, mostrando a cabeçapela abertura da porta.

— Diga a ele que entre e pode ir para casa!Pouco depois, Bênia Golden estava em seu gabinete.— Eu não consigo conversar nesse necrotério burocrático sujo de

tinta — exclamou ele, com sua voz áspera. — Lá fora há uma brisarefrescante, que dá vontade de cantar. Venha comigo!

Mais tarde, muito mais tarde, quando teve tempo de sobra pararecapitular aqueles momentos, Sashenka percebeu que tudo começaraali. Com o sangue latejando nos ouvidos, foi com ele até os elevadores.

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Então parou.— Esqueci uma coisa na minha mesa, Bênia. Tenho de voltar. Com

licença!Deixou-o esperando no saguão e correu de volta à redação. Tocando

os lábios com os dedos, olhou para sua mesa, para as fotos de Vânia edas crianças, para seu telefone, para as provas tipográficas, para todos epara tudo o que era importante em sua vida. Disse a si mesma queaquele homem, cheio de si, era mau agouro. Era rude, arrogante, falso,não tinha lealdade ao partido (nem mesmo era membro do partido) — enão temia pela própria vida como deveria. Ela não deveria passear comele.

Então, cônscia do que estava fazendo, mas estranhamente incapazde se refrear, virou-se e retornou ao lugar onde Bênia Golden esperavapor ela.

10

— Este é um daqueles raros momentos em que ninguém sabe ondeestamos — disse Bênia Golden, enquanto caminhavam nos Jardins deAlexandre, ao lado das torres reforçadas e guarnecidas de ameias doKremlin, que se elevavam até perfurar o céu rosado.

— Às vezes fico espantada de ver como você é ingênuo, para umescritor — respondeu Sashenka bruscamente, lembrando-se dos toloscomentários que ele fizera na dacha. — Nós somos bem conhecidos eestamos passeando no parque mais famoso da cidade.

— É verdade, mas ninguém está nos observando.— Como você sabe?— Bem, eu não contei a ninguém que viria à redação da revista, e

você não contou a ninguém que iríamos dar um passeio em Moscou. Euestava a caminho de casa, para me encontrar com minha esposa, e vocêia ao encontro do seu marido, na Granovski. Então não havia motivo paraque alguém seguisse qualquer um de nós. Seus camaradas acham queestamos conversando honestamente sobre trabalho, no seu gabinete. Se

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os Órgãos souberem que não estávamos lá, irão presumir que tínhamosido para casa, como sempre fazemos.

— Só que não fomos.— Exatamente, Sashenka, se posso chamar você assim. De qualquer

forma, ninguém me reconheceria com este chapéu. Bênia tirou seuquepe branco e fez uma profunda mesura.

— Bem, certamente iriam reconhecer você agora — disse ela,olhando para os arrepiados fios de cabelo claro, que já estavam rareando.

— Olhe em volta. Moscou inteira está passeando hoje. Você nuncaquis se libertar de todas as responsabilidades? Apenas por uma hora?

Sashenka suspirou.— Apenas por uma hora.A brisa refrescante acariciava-lhe a pele e penetrava em seu vestido

branco, enfunando e agitando o algodão frio, fazendo com que sesentisse leve e alegre como uma vela ao vento. Golden começou a andarmais rápido, falando igualmente rápido, enquanto ela se esforçava paraacompanhá-lo, quase correndo com seus saltos altos.

Pensou em suas responsabilidades. Havia seu marido, convencional,laborioso e bem-sucedido, e seus dois travessos e espertos querubins,exuberantes de saúde e felicidade. Tinham dois domicílios: a nova dachae o enorme apartamento novo no prédio rosado, conhecido como aQuinta Casa dos Soviéticos, localizado na Granovski, uma pequena ruapróxima ao Kremlin. Havia os trabalhadores domésticos: Carolina, babá ecozinheira, Razum, o motorista, os jardineiros, o cavalariço. Havia tambémos pais de Vânia, que viviam com eles no apartamento — e davambastante trabalho, principalmente a mãe de Vânia, que ficava sentada nopátio o dia inteiro, fofocando em voz perigosamente alta. Sashenkaanalisou a posição de Vânia, prestigiosa e estressante, e suas própriasobrigações no Comitê de Mulheres e no Comitê do Partido. Amboslevavam vidas agitadas; a guerra se aproximava; eles tinham construídoseu mundo socialista; estavam emergindo de uma época de profundatristeza e tragédias; muitos haviam desaparecido sob as vagas daRevolução. Naquela noite, como em muitas outras noites, Vânia teria quetrabalhar até de madrugada — todos faziam isso, seguindo os hábitosnoturnos do Mestre. Vânia lhe contara como os líderes permaneciam

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sentados diante de suas escrivaninhas, esperando, até que as palavrasviessem da vertuchka: “O Mestre acabou de sair do Cantinho e foi para aDacha.”

No momento, alguma coisa grande estava ocorrendo. Depois deMunique, Stalin estava modificando sua polít ica externa — e seuministério. Isso era significativo para o futuro da Europa — mas tambémsobrecarregava Vânia, que estava atarefado, trabalhando nas mudançasefetuadas no Comissariado Popular de Relações Exteriores.

Pouco antes disso, como sempre fazia quando tinha segredos paracompartilhar, ele puxara Sashenka até o jardim da dacha.

— Litvinov saiu; Molotov entrou. Vou ficar ocupado alguns dias —dissera ele.

Aquilo significava, como Sashenka sabia, que não veria Vânia duranteas noites também, e que não deveria mencionar nada a ninguém. Os paisdele tomavam conta de Branquinha e de Carlo no apartamento daGranovski.

Sentindo-se leve na companhia de Bênia, Sashenka parou e rodopioucomo uma garota.

— Apenas por uma hora. Posso sumir durante uma hora. Que ideiadeliciosa!

Suas palavras soaram extravagantes — não pareciam palavras dela. Elagostaria de retirá-las.

— Você era integrante do Partido antes da Revolução, não era,camarada Raposa? — disse Bênia. — Deve ter se acostumado a enganaros espiões da Okhrana. Então, estamos sendo seguidos?

Ela abanou a cabeça.— Não. Nossos órgãos nunca foram tão bons em vigilância quanto a

Okhrana.— Cuidado, camarada editora! Palavras imprudentes!Sashenka podia perceber que ele estava caçoando.— Mesmo assim, sinto que posso confiar em você.— Você pode, posso prometer isso — disse Bênia. — Não é

maravilhoso, às vezes, poder escapar das obrigações e sercompletamente egoísta, por alguns momentos?

— Nós, comunistas, não podemos fazer isso nunca — objetou ela. —

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Nós, mães, também não podemos fazer isso...— Ah, pelo amor de Deus, feche a boca um instante e tente fazer

isso, só um pouco. O tempo é muito curto.Sashenka não disse nada, mas sentia-se escandalizada e sua cabeça

rodava em uma espécie de vertigem.Eles contornaram o Kremlin. Sob o céu noturno, o Grande Palácio

emitia uma fraca luz dourada. Passaram pelo labirinto lúgubre emodernista da Casa dos Funcionários do Governo, às margens do rio,onde Satinov, Mendel e diversos outros chefes viviam, onde tantoshaviam sido presos na época tenebrosa, quando os elevadores gemiamdurante toda a noite e o NKVD levava as pessoas embora, em seusCorvos Negros. Não havia tráfego nas ruas no momento, apenas algunscavalos e carroças — e uma velha vendendo pirojki gordurosos em umquiosque.

Moscou, pensou Sashenka, que um dia fora chamada de a cidade dasmil cúpulas, por abrigar tantas igrejas, é hoje uma cidade triste. Ocamarada Stalin vai torná-la bela, uma digna capital para os trabalhadoresdo mundo inteiro. Mas, por enquanto, era uma mistura de alguns palácioscom uma série de vilarejos. O restante era um canteiro de obras. Elasentiu uma de suas habituais pontadas de nostalgia por sua cidade natal:São Petersburgo, ou Leningrado, como era chamada agora, o berço darevolução.

Eu a amo, criatura de Pedro, pensou ela, citando Puchkin.— Você está com saudade de Piter, não está? — disse Bênia, sem

mais nem menos.— Como você sabia?— Eu consigo ler seus pensamentos, você não percebeu?Ela percebera, e aquilo a deixava desconfortável.Eles permaneceram na Ponte de Pedra, olhando para o Grande

Palácio e para o rio Moscou, que refletia e ampliava a cidade nos menoresdetalhes, como se esta repousasse sobre um espelho.

— Quer dançar comigo? — perguntou ele, segurando a mão dela.— Aqui? — Ela sentiu seus braços e pernas se arrepiarem.— Aqui mesmo.— Você é o homem mais maluco que já vi.

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Sentiu-se tonta de novo, e despreocupadamente jovem. Sua pelefaiscava onde ele a tocava. Ele a tomou nos braços, confiante, e giroucom ela para a esquerda, mais para a esquerda, para a frente e para trás,dançando o foxtrote, enquanto cantava uma canção de Glenn Miller, comsotaque americano e afinação perfeita.

Quando se separaram, o corpo dele parecia ter deixado umaimpressão a fogo em seu ventre, onde a tinha pressionado. Ela percebeuque havia outro casal na ponte. Eram dois jovens, que não esboçaramnenhuma reação quando eles se aproximaram. O rapaz vestia o uniformedo Exército Vermelho e a moça, um casaco branco sobre um vestido comabertura na lateral — provavelmente era uma das atendentes quetrabalhavam nas lanchonetes da rua Gorki. Beijavam-se abertamente, comenorme sofreguidão, bocas bem abertas, línguas se lambendo, comogatos em um prato de leite, rostos brilhantes, olhos fechados, os cabelossedosos da moça entrando na boca do rapaz, as mãos dele enfiadas sob asaia dela, os dedos dela encostados no zíper dele.

Sashenka sentiu-se nauseada: lembrou-se do casal que se agarravana rua, durante a Revolução, e de Gideon e a condessa Loris, em frenteao Astória. Mas não conseguia tirar os olhos da dupla. Subitamente, umaânsia por devassidão explodiu em seu corpo, um espasmo tão selvagem,estranho e inusitado que não reconheceu a si mesma — e tãoinsistentemente físico que ela receou que fosse sua menstruação,chegando mais cedo.

Bênia a conduzia pelas margens do rio, com arrogânciadespreocupada, sem falar nada, apenas cantando velhas canções,românticas e ciganas.

Ah, esses olhos negros me cativaram,São impossíveis de esquecer,Queimam diante dos meus olhosOlhos negros, olhos apaixonados, lindos olhos em brasa, como eu

amo vocês, como vocês me dão medo.A primeira vez que vi vocês foi um momento cruel...

Quando ele terminou de cantar, ela continuou segurando a mão

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dele, a princípio acidentalmente. Quando se deu conta, ficou tensa, masnão tentou retirar a mão.

Ele estava flertando com ela de forma atrevida e perigosa, disse a simesma. Ele não sabia quem era ela? Não entendia o que seu maridofazia? Sou uma comunista, fiel ao partido, pensou, uma mulher casada,com dois filhos. Mas naquela cálida noite moscovita, após vinte anos desobrevivência e disciplina — e três anos de terror e tragédia, quandomilhares e milhares de Inimigos foram desmascarados e liquidados —, elasentia-se tomada por uma loucura palpitante, ao lado daquele esguiojudeu galiciano, meio calvo, que a tinha emboscado com frívolos passosde dança, olhos azuis e canções vulgares.

Bênia levou-a pela mão até uma pequena escadaria que descia até orio, um cais secreto.

— Ninguém pode nos ver! — disse ele novamente.Sentaram-se nos degraus, com os pés pendurados pouco acima da

água. O rio era lamacento e espumoso, mas seus reflexos eram comodiamantes, refletindo a luz em seus rostos, colorindo-os de púrpura ebronze, fazendo com que se sentissem mais jovens. Um ardor seespalhou pelo corpo dela, uma sensação de asas batendo. Ela forapoderosamente possuída pelo marido, com quem tivera filhos — masnunca sentira nada como aquilo.

— Alguma vez você fez isso, quando era adolescente? — perguntouele. De forma incrível, continuava a ler a mente dela.

— Nunca. Eu fui uma criança séria e uma bolchevique seriíssima.— Você nunca quis saber sobre o que falam as canções populares?— Eu sempre achei que eram bobagens.— Bem — disse ele —, então você merece uma hora no mundo das

canções populares.— O que você quer dizer com isso? — disse ela, reparando em seus

lábios, seu pescoço queimado de sol, seus olhos que brilhavam para ela.Ele lhe ofereceu seu último cigarro, um Estrela do Egito de pontadourada — e aquilo a fez retroceder vinte anos. Acendeu-o para ela, comum isqueiro de prata, e lhe ofereceu um trago de um frasco que trazia.Ela esperava vodca; mas, em vez disso, uma doçura invadiu seus sentidos.

— O que é isso?

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— É um novo coquetel americano — disse ele. Um manhattan.A bebida subiu-lhe à cabeça — mas ela estava mais sóbria do que

jamais estivera.Uma enorme barcaça, entulhada com carvão e minério, como uma

montanha enferrujada flutuante, passou estrondeando por eles. Osmarinheiros bebiam e fumavam. Um deles tocava uma guitarra; outro, umacordeão. Quando viram Sashenka, com seu chapéu de abas largas, ovestido esticado sobre os quadris e as meias brancas que se refletiam naságuas turvas, começaram a gritar e a apontar para ela.

— Ei, olhem lá! Isso é que é paisagem!Sashenka acenou para eles.— Trepe com ela, cara! Beije ela por nós! Ponha ela de quatro,

camarada! Seu sortudo miserável! — gritou um dos marinheiros.Bênia ficou de pé, com um pulo, e levantou o chapéu como um

dançarino.— Quem, eu? — gritou ele.— Beije ela, cara!Ele deu de ombros, como que se desculpando.— Eu não posso desapontar minha plateia — e antes que ela

pudesse protestar, beijou-a nos lábios. Ela lutou por um segundo, eentão, para seu próprio espanto, rendeu-se.

— Hurra! Beije ela por nós! — aplaudiram os marujos. Ela riuenquanto o beijava. Ele empurrou a língua por entre seus lábios,penetrando o mais profundamente possível, e ela gemeu. Seus olhos sefecharam. Ninguém no mundo, com toda a certeza, jamais a beijaraassim.

Ela nunca conseguira entender. Durante a Guerra Civil, era jovem,mas estava com Vânia e homens como Vânia não beijavam assim. E elanunca quisera que ele a beijasse desse modo: tinham sido camaradas; elecuidara dela depois do suicídio de Ariadna; trabalharam juntos durante aRevolução de Outubro de 1917; então ela viajara pela Rússia nos trens doAgitprop; e ele era comissário no Exército Vermelho. Depois disso,reencontraram-se em Moscou. Não havia tempo para romance, naquelesdias: mudaram-se para um apartamento, juntamente com outros jovenscasais; todos trabalhavam dia e noite, viviam de bolachas e chá de

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cenoura. Sashenka ainda era a bolchevique puritana e gostava disso.Sempre se lembrava com horror e pesar de sua libidinosa mãe. Mas esseinsolente galiciano, esse Bênia Golden, não tinha inibições. Lambia seuslábios, esfregava o nariz em sua testa e inalava o aroma de sua pele comose fosse mirra — o prazer que sentia com essas coisas simples a deixavamaravilhada!

Abriu os olhos como se estivesse dormindo há séculos. Osmarinheiros e a barcaça tinham desaparecido, mas Bênia continuava abeijá-la. Locais secretos do corpo dela estavam ronronando. Ela mudoude posição, embaraçada; mas, cada vez que se movia, sentia que suaregião púbica ficava mais úmida e pesada. Tinha quase quarenta anos — eestava perdida.

— Eu não costumo fazer essas coisas — disse ela, finalmente, umpouco sem fôlego.

— Ora, por que não? Você é muito boa nisso.Ela devia estar meio louca, pois se inclinou novamente, segurou a

cabeça dele com as mãos e começou a beijá-lo de um modo como nuncafizera antes.

— Eu queria que você soubesse, Bênia, que eu amo seus contos.Quando li suas histórias, eu chorei...

— E eu amo essas sardas em cada lado do seu nariz... e esses lábios,meu Deus, eles nunca se fecham, é como se você estivesse sempre comfome — disse Bênia, beijando-a mais uma vez.

— Por que você parou de escrever?— Minha tinta congelou.— Não seja ridículo. — Ela empurrou o rosto dele bruscamente e

ficou segurando seu queixo com uma das mãos. — Eu não acredito quevocê não esteja escrevendo. Acho que está escrevendo em segredo.

Ele olhou para o rio, que refletia as luzes da imponente mansão daEmbaixada Britânica, situada na margem oposta.

— Eu sou escritor. Todos os escritores têm de escrever, ou morrem.Se eu não fizer isso, murcho e apodreço. Então traduzo artigos de jornaissocialistas e recebo encomendas para roteiros de filmes. Mas a fonte estásecando. Estou quase sem dinheiro agora, apesar de ainda ter meuapartamento no prédio dos escritores.

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— Por que você não ficou em Paris?— Eu sou russo. Sem a pátria, eu não sou nada.— Agora você está trabalhando em quê?— Em você.— Você está escrevendo sobre a polícia secreta, não está? Escreve a

mão durante a noite e esconde os papéis no colchão. Ou quem sabe nossubúrbios, na casa de alguma garota? Eu sou material para o seu trabalhosecreto? Você está me usando para penetrar em nosso mundo?

Ele suspirou e coçou a cabeça.— Todos nós, escritores, temos algum segredo que nos mantém

vivos e nos dá esperanças, embora nem sempre possamos publicá-lo.Isaac Babel está trabalhando em alguma coisa secreta, Micha Bulgakovestá escrevendo um romance sobre o diabo em Moscou. Mas ninguémnunca vai ler nada disso. Ninguém nunca vai ler o que escrevo.

— Eu vou. Posso ler o seu trabalho?Ele abanou a cabeça.— Você não confia em mim, não é?— Eu gostaria muito de confiar em você, Sashenka. Eu adoraria lhe

mostrar o romance, porque ninguém sabe que ele existe, nem mesmominha mulher; se eu o mostrasse a você, então eu teria uma leitora, umalinda leitora, em vez de ninguém, e me sentiria um artista novamente, emvez de um escriba acabado, nesses dias em que todos nós nos tornamoscanibais.

Bênia olhou para um ponto além de Sashenka. Mesmo sem ver, elasentiu que havia lágrimas nos olhos dele.

— Vamos fazer um pacto — disse ela, segurando as mãos dele. —Você pode confiar em mim para tudo, inclusive o romance. Eu vou sersua leitora. Em troca, se você jurar nunca me ferir, nunca trair nossosegredo, você pode me beijar de novo à beira do rio Moscou, depois dopôr do sol.

Ele assentiu e ficaram de mãos dadas, rostos iluminados na noite deverão, como reluzentes máscaras mortuárias de faraós. Às suas costas, elaouviu um grasnido, depois um bater de asas, e dois cisnes, espalhandoespuma, pousaram na superfície encrespada do rio.

Naquele momento, sentiu-se mais feliz do que jamais se sentira

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antes.

11

Bênia subiu os degraus da margem do rio e se dirigiu ao Hotel Metrópole,conduzindo Sashenka pela mão. Enquanto o porteiro, de cartola ecasaca, abria a porta, ela permanceu a distância. Mas Bênia sabia que,tanto quanto ele, ela queria dançar.

Ele adorava a atmosfera do Metrópole, onde, mesmo durante oTerror, a banda de jazz continuou a tocar. No clangor dos trompetes edos saxofones, ele dançava até esquecer os problemas. Antes de 1937,o hotel vivia cheio de estrangeiros, acompanhados de garotas russas emvestidos franceses; agora, os homens de negócio, diplomatas, jornalistase delegações do exterior ficavam em outros lugares. Antes que acarnificina começasse, Gideon o levara lá algumas vezes, para jantar comimportantes escritores estrangeiros. Ele conhecera H.G. Wells, Gide eFeuchtwanger. Ouvira o discurso que seu chefe, Gorki, fizera para osescritores do partido e para burocratas do teatro, como Averbakh eKirchon. Um por um, todos tinham desaparecido. Elementos discrepantesliquidados! Mas ele sobrevivera, e Sashenka, por algum milagre, tambémsobrevivera ao Terror. Ocorreu a Bênia que, naquela noite, eles deveriamcelebrar o simples fato de estarem vivos.

Ao entrarem no hotel, Sashenka ficou tão próxima a ele,momentaneamente, que ele pôde ver a madeira negra e os metaiscromados da recepção refletidos em seus olhos cinzentos. Mas, quandochegaram ao saguão, notou que ela se mantinha afastada dele. Percebeuque estava preocupada com a possibilidade de ser reconhecida. Mas elacostumava fazer companhia aos redatores de sua revista e ele era umnovo redator.

— Relaxe — sussurrou ele.Os garçons, de casacos pretos, levaram-nos até uma mesa negra, em

est ilo art déco. Como o salão de jantar parecia diferente! Os espelhosbrilhantes, a fumaça que subia até o teto trabalhado, como a neblina em

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uma montanha, as luzes do palco, as silhuetas dos homens, com seuscabelos cortados à escovinha e bigodes bem aparados, as botasreluzentes e as calças de montaria dos oficiais do Exército Vermelho, aspermanentes nos cabelos das moças — tudo era infinitamente maisglamoroso naquela noite.

Uma garota de blusa branca, com um archote e uma bandeja comcigarros e chocolates, surgiu diante deles. Sem tirar os olhos deSashenka, Bênia comprou um maço de cigarros, oferecendo-lhe um.Acendeu o dela e depois o dele. Não falaram nada, mas, quando elaolhou para ele, seu olhar era como um farol brilhando em um litoralacolhedor. A fumaça espiralou em torno dela, em círculos irregulares,como se também quisesse permanecer próxima a ela. Naquela casanoturna, tudo orbitava em torno dela.

Ela parecia calma e controlada novamente, pensou ele, a “mulhersoviética de cultura” em seu vestido branco. Mas seus lábios, abertos obastante para que ele vislumbrasse o fulgor de seus dentes, moveram-seum pouco, quando ela deu uma tragada no cigarro, fechando por algunsmomentos, suas pestanas escuras acariciando a pele e os rarosarquipélagos de sardas. A iluminação se refletia em seu volumoso cabelocastanho. Ele notou que, por baixo de toda a compostura, ela estava umpouco ofegante. Ele também estava ofegante. Naquela noite, pareciaque o mundo girava um pouco mais rápido e seu eixo se inclinara umpouco.

O espetáculo estava prestes a começar. Luzes iluminaram um pontono meio do salão. Tambores rufaram. Não era a banda de Utesov queestava tocando naquela noite, mas outro grupo de jazz, com trêstrompetistas, um saxofonista e dois contrabaixistas, todos de terno pretoe colarinho branco. Na cadência de um ritmo que evocava lugaresenfumaçados e mal-afamados, Nova Orleans se encontrou com Odessa.

Bênia pediu vinho, vodca e zakuski: caviar, arenque, pelmeni.Percebeu então que não tinha nem um copeque no bolso.

— Eu peço e você paga — disse ele. — Estou mais quebrado queuma barata na rua Millionaia!

Ele ficou olhando para ela, enquanto ela bebia o vinho georgiano,suspirando de prazer enquanto aplacava a sede — e mesmo esse gesto

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tão banal lhe pareceu precioso. Depois, convidou-a para dançar.— Só uma vez — disse ela.Bênia sabia que era bom no foxtrote e no tango, e eles dançaram

mais de uma música. Ele era esbelto e ágil. Rodopiava com ela, executavaos passos como se estivesse andando no ar. De repente, teve a sensaçãode que o tempo era curto. As circunstâncias que haviam permitido aliberdade daquela noite poderiam jamais se repetir; ele teria que levar ascoisas até o limite máximo. Assim, apertou-a contra si; pela respiraçãodela, notou que também estava excitada.

Rapidamente, ela se afastou dele e sentou-se à mesa.— Agora tenho que ir — disse.— Esta é uma noite que não existe em nossas vidas — sussurrou ele.

— Nada do que está acontecendo hoje aconteceu antes. Que talalugarmos um quarto?

— Nunca! Você está louco!— Mas imagine a felicidade que iria ser.— E como poderíamos fazer a reserva? — respondeu ela. — Boa

noite, Bênia. — E agarrou a bolsa.— Espere. — Ele segurou a mão dela sob a mesa e então, em uma

aposta arriscada, que poderia arruinar ou salvar a noite, colocou a mãodela sobre seu zíper.

— O que diabos você pensa que está fazendo? — perguntou ela,retirando bruscamente a mão.

— Não — disse ele. — Veja o que você está fazendo comigo. Euestou sofrendo.

— Eu tenho que ir embora, já — disse ela. Mas não o fez e ele pôdeobservar os efeitos da própria impudência em seus grandes olhoscinzentos. Ela estava embriagada, mas não de vinho.

— Você não tem um quarto aqui, Sashenka? Da revista?Ela se ruborizou.— Sim, o quarto 403 pertence ao Litfond. Os editores da Esposa

Soviética podem usá-lo para redatores não-residentes, mas isso seriacompletamente fora...

— Alguém está usando o quarto agora?Uma raiva fria faiscou nos olhos dela e ela se levantou.

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— Você deve estar pensando que eu sou alguma... bummekeh!Ela se surpreendeu ao perceber que tinha usado o iídiche para se

referir a uma mulher da vida. Era uma lembrança da infância.— Não uma bummekeh — respondeu ele, rápido como um raio —,

apenas a mais deslumbrante bubeleh de Moscou!Ela começou a rir — ninguém jamais a chamara de beldade,

bonequinha, e Bênia compreendeu que ambos compartilhavam umreconfortante passado no velho mundo judeu da Área de Assentamento.

— Quarto 403 — disse ele, quase para si mesmo.— Bonsoir, Bênia. Você fez com que eu surpreendesse a mim

mesma, mas já basta. Entregue seu artigo na próxima segunda-feira.Ela se virou e saiu do salão. A porta dupla, de cromo e vidro, ficou

balançando atrás dela.

12

Sashenka riu da própria estupidez. Empurrara a porta errada, mas depoisde uma saída como aquela, não poderia retornar ao salão de jantar.Então, ficou sentada nas escadas que conduziam aos elevadores dosfundos do hotel e acendeu um dos seus Herzegovina Flors. Sua presençanaquele espaço escondido, no coração do hotel, parecia bastanteapropriada. Ninguém sabia que ela estava lá.

Sem se dar conta, entrou no elevador de serviço e subiu até oquarto andar. Como uma sonâmbula, arrastou-se pelos corredores úmidose mofados, que recendiam a cloro, repolho em decomposição e carpeteapodrecido — mesmo no hotel mais elegante de Moscou. Estava perdida.Tinha que ir para casa. Temia que a habitual velha senhora (e informantedo NKVD) pudesse estar de plantão no balcão do quarto andar. Maspercebeu que, ao entrar pelos fundos, evitara ser vista pela velha.

Quando chegou ao quarto 403, ouviu passos atrás de si. Era Bênia.Abriu a porta com a chave que carregava, como editora da revista, eambos quase caíram no interior do pequeno quarto — uma cápsulafechada, cheirando a naftalina e desinfetante (ela nunca mais esqueceria

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esses odores enquanto vivesse). O quarto era escuro, iluminado apenaspela pálida luz escarlate que entrava pela janela, emitida pelas estrelaselétricas no topo de cada um dos oito pináculos do Kremlin. Moveram-seentão até um leito afundado, com lençóis emporcalhados pelo que elamais tarde identificou como esperma e álcool, o coquetel típico doshotéis soviéticos. Ela queria lutar, repreender, reclamar, mas ele segurouseu rosto e beijou-a tão vigorosamente que uma chama a fez arder até amedula.

Ele retirou o vestido dos ombros dela e afundou o rosto em seupescoço, depois em seu cabelo, afagando-a entre as pernas. Então tirouseu sutiã, cobrindo-lhe os seios com as mãos, suspirando de prazer.

— Essas veias azuis são divinas — sussurrou ele.Naquele momento, toda uma vida de constrangimento com aquela

feia característica de seu corpo foi substituída por regozijo. Ele lambeuseus seios, contornando vorazmente os mamilos. Então desapareceu porbaixo de sua saia.

Ela o empurrou uma vez, depois duas. Mas ele retornava. Ela deu umtapa em sua boca, com força, mas ele não se importou.

— Não, não, não aí, vamos, não, obrigada, não... — murmurou ela.Então se encolheu, fechando os olhos timidamente.

— Você é linda — disse ele.Seria verdade? Sim, ele insistia, enquanto a lambia toda. Ninguém

jamais fizera isso com ela. Ela tremeu, mal conseguia se controlar.— Delicioso! — disse ele.Ela estava tão envergonhada que escondeu o rosto nas mãos.— Não faça isso!— Tente fingir que não está acontecendo! — foi a sugestão dele,

enquanto enterrava o rosto nela.Quando ela finalmente olhou para baixo, ele olhou, rindo. Tenho um

amante, refletiu ela, incrédula. A sensualidade irreprimível dele ahipnotizava. Era como na primeira vez com seu marido, seu único outroamante — mas também não era como daquela vez, de jeito nenhum. Naverdade, pensou ela, esta sou eu, perdendo minha virgindade para valer,com esse palhaço judeu infernal, adorável, tão diferente de qualquer umdos machos bolcheviques que conheci na vida.

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Ele é louco, pensou, enquanto fazia amor com ele mais uma vez. Ah,meu Deus, depois de vinte anos sendo a bolchevique mais racional deMoscou, esse duende me enlouqueceu!

Ele saiu de dentro dela, novamente, mostrando-se.— Olhe — sussurrou ele, e ela o fez. Era mesmo ela? Lá estava ele

entre suas pernas de novo, fazendo as coisas mais absurdas e adoráveisem lugares atrás de seus joelhos, nos músculos no alto de suas coxas, emsuas orelhas, no meio de suas costas. Mas os beijos, os beijos já eramdivinos.

Ela perdeu a noção de tempo, espaço e decoro. Ele a fez esquecerque era comunista e a fez esquecer-se de si mesma. Enfim — pelaprimeira vez em vinte anos — ela começou a viver no presente, sedutor eimbatível.

13

Tudo estava em silêncio. Deitada em lençóis amarrotados, ela abriu osolhos, como alguém que tivesse caído em sono profundo e acordassedepois de uma inundação, ou terremoto. Aquelas estrelas do Kremlinainda estariam do lado de fora da janela ou teriam sido varridas pelo amorque estavam fazendo? Lentamente, a realidade retornou a ela.

— Ah, meu Deus — disse ela. — O que eu fiz?— Você adorou isso, não foi? — disse ele.Ela abanou a cabeça, fechando os olhos.— Olhe para mim — disse ele. — Diga que adorou isso. Ou nunca

mais beijo você de novo.— Não posso dizer isso.— Só confirme com a cabeça.Ela assentiu com a cabeça e tateou seu rosto marcado. Mal podia

acreditar no frêmito que dominava seu corpo pulsante naquele pequenoquarto do Metrópole, em uma noite de maio de 1939, após o término doTerror.

O vestido dela e a roupa de baixo estavam no chão, mas o sutiã

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estava sobre seu estômago; uma meia estava no lugar, a outra estavapendurada na lâmpada, jogando uma luz sépia sobre as pernas deles.Suas bocas tinham um gosto salgado. As manchas de prazer e suor adeixavam tonta de puro deleite.

Bênia a beijou de novo, primeiro nos lábios, depois entre as pernas —o local estava tão sensível que ela teve um sobressalto. Deu-lhe um beijona boca e então, delicadamente, beijou-a lá mais uma vez. Elaestremeceu, enquanto gotas de transpiração cobriam seu ventrearredondado. Então puxou-o para baixo dela e o deitou de costas, deforma a ficar por cima — e ele entrou nela mais uma vez. De algumaforma, encaixavam-se perfeitamente. Por que se sentia tão à vontadenos braços dele? Por que aquilo parecia tão natural?

A enormidade do que acontecera a atingiu como um raio. Ela traíra oseu gentil e amoroso Vânia, seu marido e amigo durante todos aquelesanos, o pai de seus filhos. Ela o amava, mas essa febre avassaladora eraoutro tipo de amor, completamente estranho, o contrário do amorcostumeiro, proporcionado pelo lar e pelos filhos. Dizem que as mulheresnão podem amar dois homens ao mesmo tempo, pensou Sashenka, masagora vejo que isso é absurdo. Ainda assim, uma sensação de culpa lhedeslizou pela garganta e chegou ao seu coração contrafeito.

— Eu nunca fiz nada assim antes — murmurou ela. — Aposto quetodas dizem isso para você...

— Bem, é engraçado você dizer isso, mas, segundo O Guia ProletárioSoviético para a Etiqueta do Adultério, esse é o tradicional comentáriofeminino durante o primeiro encontro.

— E segundo esse... Guia Proletário Soviético para a Etiqueta doAdultério, qual é a resposta masculina correta?

— Eu devo dizer “Ah, eu sei”, como se estivesse acreditando.— Mas você não acredita.— Na verdade, eu acredito.— E quem é o autor desse livro sábio e famoso?— Um tal de B.Z. Golden — respondeu Bênia Golden.— O livro diz o que acontece depois?Ele ficou em silêncio, enquanto ela observava uma sombra passar por

seu rosto.

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— Você está com medo, Sashenka?Ela estremeceu.— Um pouco.— Nós temos que nos encontrar de novo — disse ele.— Você não está falando sério, está? — perguntou ela, subitamente

aterrorizada com a ideia de que ele estivesse.Ele assentiu com a cabeça, seus olhos bem próximos aos dela.— Sashenka, acho que essa é a coisa mais feliz que já aconteceu

comigo. Já tive montes de garotas, dormi com montes de mulheres...— Não conte vantagem, seu galiciano nojento.— Talvez seja a época. Talvez nós estejamos vivendo tudo mais

intensamente agora. Mas nós merecemos um pouco de egoísmo, não? —Ele segurou o rosto dela entre as mãos e ela ficou surpresa com aseriedade dele.

— Você sente alguma coisa por mim?Sashenka o empurrou e cambaleou até a janela, ainda sentindo uma

pulsação entre as pernas, o suor secando nas costas. O quarto deles erapróximo aos beirais do velho prédio. Naquela noite enluarada, ela olhoupara baixo, para o rio Moskva, para as pontes, para os ornamentadosdomos da Catedral de São Basílio, para o Kremlin — 28 hectares depalácios de cor ocre, tetos verde-esmeraldinos, muralhas vermelhas,cúpulas douradas e pátios calçados com pedras —, e avistou o local ondetrabalhava o camarada Stalin, no Sovnarkom, um edifício triangular,encimado por um domo verde. Até podia ver a luz acesa em seugabinete. Ele estaria lá, agora? Muita gente achava que sim, mas ela sabiaque, provavelmente, ele estaria em Kuntsevo. Era Josef Vissarionovitch,seu amigo... bem, nem tanto. O camarada Stalin estava além da amizade,mas o Pai dos Povos — sim, seu novo conhecido e convidado eventual,que promovera seu marido e admirava sua revista — era o maior estadistada história das classes proletárias. Ela não duvidava disso e permaneciabolchevique até a medula. O que acontecera naquele quarto não mudaraisso.

Mas alguma coisa mudara. Bênia estava acendendo um cigarro,estirado na cama. Olhava para ela em silêncio, mal respirando. A bandaainda tocava lá embaixo, mas o quarto estava silencioso e tranquilo.

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Silêncio e tranquilidade eram coisas que ela não tinha em sua vida. Eracomunista e mãe, enquanto Bênia era um escritor que não escrevia, emdescompasso com os maiores ideais de seu tempo, alienado da grandedialética da história, um náufrago sem fé, que observava o camaradaStalin e o Estado proletário com um zombeteiro interesse zoológico. Masaquele galiciano fútil, impertinente e presunçoso, com sua covinha noqueixo, suas sobrancelhas espessas flutuando sobre olhos azuis, suasúltimas e desamparadas mechas louras em meio à calva crescente e, sim,seu sexo, tinha feito com que se sentisse selvagemente feliz.

Ele se levantou e ficou por trás dela.— O que houve? — perguntou, envolvendo-a com os braços.— Eu fiz uma coisa pior do que ser infiel, uma coisa que achei que

nunca iria fazer: eu me tornei minha mãe.Mas ele não estava escutando.— Você não faz ideia de como é sensual — disse ele, acariciando a

parte de trás de suas coxas. Então recomeçaram, mais uma rodadaarrepiante. Quando terminaram, haviam se transformado em criaturas domar — lustrosos e molhados como golfinhos saltadores.

Mais tarde, ela descansou os cotovelos no peitoril da janela e olhoude novo para o Kremlin. Bênia chegou por trás e a tocou, os dedosdesenhando filigranas em sua pele, tão ternamente que ela malreconheceu a geografia do próprio corpo.

— Que glutão você se revelou! — brincou ela.Ele parecia viver com alegria, uma jovialidade que coloria o mundo

dela com as cores do arco-íris.Então é isso, refletiu ela, isso é a causa de todo o alvoroço.

14

Com o corpo ainda formigando e ardendo, Sashenka andou de volta paracasa, ao longo do Kremlin — mais alto e luminoso do que nunca, com osholofotes emitindo feixes de luz branca que perfuravam os céus —,atravessando a Manege e passando pelo Hotel Nacional. Quando olhou de

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novo para o Kremlin, as oito estrelas negras dos pináculos a fizerampensar em Bênia. Segundo lera nos jornais, eram feitas de cristal,alexandritas, ametistas, águas-marinhas, topázios — e sete mil rubis! Sim,sete mil rubis para homenagear Bênia Golden e ela. O que aconteceracom ela?, conjeturou. Não conseguia acreditar na desinibida sensualidadede Bênia, nem na nuvem de suor que enevoara o quartinho. Passandopela velha universidade, à direita, dobrou na pequena rua Granovski. Oprédio onde morava, um bolo de casamento cor-de-rosa construído navirada do século, conhecido como a Quinta Casa dos Soviéticos, era àesquerda, com guardas postados do lado de fora. Os guardas acenarampara ela. O zelador regava o pátio com uma mangueira.

Ela entrou em seu apartamento, no primeiro andar. Não acendeu asluzes, mas recreou os olhos nos assoalhos envernizados, que cheiravam acera e captavam a luz rarefeita; deliciou-se com os tetos altos, tãobelamente trabalhados, e com o aroma de pinho careliano da mobília,fornecida pelo governo. Seus sogros estavam adormecidos em um cantodo corredor em forma de L. Ela acendeu a luminária ao lado de sua cama,cuja base era um dourado bíceps musculoso, segurando uma lâmpadacercada por um quebra-luz verde. Para recobrar o fôlego, sentou-se nacama por alguns momentos. Estaria traindo alguém que amava? Poderiaperder tudo? Mas não conseguia se arrepender do que fizera.

Abriu a porta do quarto dos filhos e olhou para ambos. Conseguiriamsentir o cheiro de pecado que estava grudado nela? Mas dormiam deforma tão angelical. Ela não os traíra, disse a si mesma firmemente.Apenas descobrira mais uma parte de si mesma.

Ficou de pé, olhando as crianças. Então beijou a testa de Branquinhae o nariz de Carlo. Carlo tinha nos braços um de seus muitos coelhinhos.Subitamente, sentiu vontade de acordá-los e acariciá-los. Ainda sou amãe deles, ainda sou a Sashenka, disse a si mesma.

Nesse momento, Branquinha sentou-se, segurando a almofada.— Mamãe, é você?— Sim, querida. Voltei. A babuchka colocou você na cama?— Você foi dançar?— Como é que você sabe?— Você está cantando uma canção, mamãe. Que canção você está

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cantando? Uma canção boba?Sashenka fechou os olhos e cantou suavemente, apenas para ela e

Branquinha:

Olhos negros, olhos apaixonados, lindos olhos em brasa, como euamo vocês, como vocês me dão medo.

A primeira vez que vi vocês foi um momento cruel...

Que linda canção cantara com Bênia Golden!, pensou ela. Ele ainda aestaria cantando?

Branquinha segurou a mão da mãe, embrulhou-a em sua almofada,colocou ambas sob sua cabeça dourada e voltou a dormir.

Sentada no leito, com a mão aprisionada sob o rosto de Branquinha,alvo como alabastro, o mal-estar de Sashenka se evaporou. Ela não eraAriadna; não conseguia se lembrar de Ariadna ter lhe dado, algum dia, umbeijo de boa-noite. Sua mãe se tornara uma criatura devassa, um animallunático. Sentada na cama de Branquinha, lembrou-se da morte da mãe.Gostaria que tivessem conversado. Por que Ariadna usara sua Mauser parase matar? Sashenka nunca conseguiria se esquecer dos momentos emque esteve sentada ao lado da mãe, ouvindo sua respiração ofegante,aguardando sua morte.

Agora, ao som da suave respiração das crianças, pensou novamenteno pai. Como ficara orgulhosa por ele não ter fugido para o exterior. Emvez disso, renunciara ao capitalismo e se aliara ao novo regime. Mas elanão o via desde 1930, quando ele deixara de ser um “especialista externodo Partido” para se tornar uma “não-pessoa” e “sabotador”, sendoenviado para um indulgente exílio em Tbilisi, onde passara a viver em umquarto. Durante o Terror, na condição de “filha de um capitalista”,Sashenka poderia ter ficado em posição vulnerável, mas era umaBolchevique Veterana, até entusiasta do Terror, e se “refundira” em umadas Novas Mulheres Soviéticas de Stalin. As credenciais proletárias e osucesso de Vânia a protegeram, mas ela aceitou o fato de que nãopoderia pedir pelo pai, ajudá-lo ou mesmo lhe enviar coisas.

— Esqueça ele — dissera-lhe Vânia. — Vai ser melhor para ele e paranós.

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Ela quase apelara para o camarada Stalin, mas Branquinha a detivera atempo.

A última vez que ouvira a voz gentil e educada de Samuil Zeitlin —com sua entonação e maneirismos tão evocativos da velha mansão emque moravam e da vida anterior à Revolução — fora ao telefone, poucoantes da prisão dele, em 1937. Seus filhos nunca chegaram a conhecê-lo:acreditavam que os pais dela tinham morrido há muito tempo. Sashenkajamais crit icou o partido pelo modo como tratara seu pai, nem mesmo empensamentos, mas isso não a impedia de conjeturar: você está por aí,papai? Está cortando troncos em Vorkuta, na desolação de Kolima? Oueles já lhe deram os sete gramas de chumbo — a Punição Maior?

Lentamente, retornou ao seu quarto, tomou um banho de chuveiroe, então, tomando Carlo nos braços, deitou-se na cama com ele. Carloacordou e a beijou nos lábios.

— Você achou um filhotinho de coelho na floresta — sussurrou ele. Eadormeceu, com a boca ainda próxima ao ouvido da mãe.

Na manhã seguinte, quando ela acabara de sentar-se à sua mesa emformato de T, na redação, o telefone tocou.

Uma voz baixa e bem-humorada, com aquela entonação judaico-galiciana que, imediata e embaraçosamente, repercutiu entre as pernasdela, disse:

— Aqui é o seu novo redator, camarada editora. Eu não tenhocerteza; você encomendou aquele artigo ou não?

15

Dez dias mais tarde, como de costume, Bênia Golden estava lanchandocom o tio Gideon no Clube dos Escritores. Depois, foram aos BanhosSandunovski. De lá, Bênia seguiu para o salão de Stas, o barbeiroarmênio, que ficava ao lado. No salão, havia um retrato de Stalinpendurado na parede, um sortimento de tesouras de metal, algumaslâminas de navalha, presas em uma tira magnética, e uma planta de

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plástico na janela. O rádio-telégrafo, sempre ligado no salão de Stas,noticiava escaramuças com os japoneses, na Mongólia. A guerra seaproximava. Bênia sentou-se na macia cadeira de couro e Stas banhouseu rosto com espuma e água quente.

— Você parece estar muito feliz — disse Stas, um velho caucasianode cabelos grossos e oleosos, tingidos com um preto pouco natural.Usava um bigodinho mal aparado, que lhe dava um ar velhaco. —Arranjou trabalho? Ou está apaixonado?

— As duas coisas, Stas, as duas coisas ao mesmo tempo! Tudomudou na minha vida, desde a última vez que estive aqui.

Deleitando-se com as toalhas quentes enroladas no rosto e nopescoço, Bênia sentia-se entusiasmado. Não dava a mínima para otrabalho da revista. Só conseguia pensar em Sashenka: naquela voz roucae enternecedora, no modo como ela batia com o dedo no lábio superior,quando se concentrava, no modo como tinham dançado, feito amor,cantado, e se dado bem um com o outro.

— É como se tivéssemos nascido sob a mesma estrela — disse ele emvoz alta, sacudindo a cabeça devagar.

Nem um dia, nem uma hora, nem um minuto se passava sem que eleestivesse consumido pela necessidade de vê-la, falar com ela, tocá-la.Queria regalar os olhos nela e armazenar lembranças, de modo que,quando não estivesse com ela, pudesse encontrá-la na memória. Naqueledia, ficou perambulando pela rua Gorki. As estrelas e as torres do Kremlinnão celebravam os tsares, nem Stalin, mas ela, Sashenka. Quando passoupela Granovski, onde ela vivia, um halo diáfano iluminou a rua. Os guardasdo NKVD não estavam lá para proteger marechais ou comissários,protegiam o coração dele, que morava lá.

Mas, com o amor, sempre vem o sofrimento: ela era casada, assimcomo ele. E haviam se encontrado em tempos cruéis. Ele já amara aesposa, mas as batalhas do dia a dia tinham transformado a paixão emrotina; tornaram-se irmão e irmã — ou, pior, apenas moradores do mesmoapartamento, que dividiam com a filha pequena. E Sashenka era — frasesbombásticas de amor não lhe vieram à mente — simplesmente a mulhermais adorável que já conhecera. Sentia que estava sentado sobre umpico vertiginoso, coroado de estrelas, olhando para a terra incandescente

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lá embaixo. Aquilo poderia durar? Não podemos desperdiçar um segundo,pensou.

— Que horas são? Estou atrasado. Ande logo, Stas! — Sentia-seimpaciente, como se tivesse urgência de contar seu segredo a alguém. —Estou amando, Stas. Não, é mais do que amor. Estou louco por ela!

No outro lado da cidade, em Kitaigorod, o bairro chinês de Moscou,envergando o elegante terninho escarlate, que às vezes usava paratrabalhar, Sashenka subia a pequena escada que conduzia ao ateliê deMonsieur Abram Lerner, o último alfaiate à moda antiga em Moscou. Eletrabalhava para a seção de serviços especiais do NKVD; passara adesenhar os novos uniformes dos marechais, depois que Stalin restauraraa velha hierarquia militar. Diziam que confeccionava as túnicas de Stalin,mas o Mestre detestava roupas novas, e isso, provavelmente, era umboato.

Lerner contratara Cleópatra Fishman para atender as esposas doslíderes. Sashenka sabia que Polina Molotov e outras esposas usavam seusserviços (algumas insistiam em pagar, outras não pagavam nada). Agora,ao final de um dia atarefado, Sashenka viera buscar um vestido.Impaciente, aguardou na sala de espera, onde pilhas das revistasamericanas Bazaar e Vogue estavam espalhadas. Quando alguma clientegostava de um determinado modelo, apontava-o na Vogue. Então, Cleoe sua equipe de costureiras o confeccionavam para ela. Lerner eCleópatra, que não eram parentes, mas trabalhavam juntos há décadas,viviam em uma ilha de cortesia à moda antiga: seu ateliê era,provavelmente, a única instituição em toda a União Soviética ondeninguém fora denunciado ou fuzilado durante a última década.

Cleópatra Fishman, uma mulherzinha robusta de cabelos crespos egrisalhos, que cheirava a chicória, escoltou Sashenka até a sala de provas,onde desdobrou um vestido de seda azul, com saia pregueada.

— Você quer experimentar aqui ou vai levar logo?Sashenka olhou para o relógio.— Vou vesti-lo.Rapidamente despiu as roupas — de um modo, refletiu, como nunca

se despira antes —, dobrou-as em um pequeno volume e vestiu a roupa

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nova. Tremeu quando a seda se acomodou em seu corpo, que pareciarecém-moldado.

— Você está com um novo penteado, Sashenka.— Fiz permanente para ondular o cabelo. Você gostou?A mulher mais velha olhou-a de alto a baixo.— Você está resplandecente, camarada Sashenka. Está grávida?

Quer contar alguma coisa para a velha Cleópatra?

Quinze minutos mais tarde, às sete da noite, no ninho de amor doMetrópole, com seu novo vestido, novo penteado, novo sutiã, novoperfume e novas meias de seda, Sashenka beijava Bênia Golden, queainda usava o mesmo terno branco, agora mais sujo e mais roto. Masestava barbeado e de banho tomado.

Fizeram amor, conversaram, riram. Depois, ela tirou um embrulho dabolsa e o jogou no leito.

Ele deu um pulo e o abriu, sopesando-o com as mãos.— Um presentinho.— Papel! — suspirou ele. — A Loja do Fundo Literário havia se

recusado a lhe ceder mais papel e, assim, ela o encomendara para ele. —Papel é o caminho para o coração de um escritor.

Eles vinham se encontrando no Metrópole há dez dias, todos os dias,e seu relacionamento ultrapassara o mero interesse sexual. Sashenka lhecontara a história de sua família; ele lhe contara sobre sua criação emLemberg, sobre suas aventuras na Guerra Civil e sobre as diversas eincríveis trapalhadas eróticas em que se vira metido. Depois de vinte anossob o jugo da burocracia bolchevique, Sashenka estava espantada com aexuberância da vida de Golden: todas as tragédias se transformavam emcomédias ridículas, que ele protagonizava como palhaço-mor. Seusentreveros com a burocracia — lúgubre e desesperadora para qualquerpessoa — tornavam-se casos hilariantes, povoados por figuras grotescas.Suas opiniões acerca dos Realistas Socialistas, escritores e diretores, eramescandalosamente escabrosas. Mas Bênia falava de poesia com lágrimasnos olhos. Emprestou livros a ela e a levou ao cinema no meio do dia: elesse deliciavam em Moscou, na primavera — quando floresciam os lilases eas magnólias. Até lhe comprou grinaldas de mimosas e ramos de violetas,

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cultivadas na Criméia, segundo assegurou a vendedora.— Você me trouxe de volta à vida — Bênia disse a ela.— O que estamos fazendo? — respondeu ela. — Sinto como se

estivesse em uma deliciosa queda livre. Quando uma mulher vive uma vidadisciplinada por vinte anos e, então, a disciplina se rompe, ela podeperder o juízo.

— Mas você gosta um pouco de mim? — insistiu ele.— Você está sempre procurando novos elogios, querido. — Ela sorriu

para ele, prestando atenção em seus olhos azuis com pintas amarelas,que a atravessavam tão intensamente, sua covinha no queixo, sua bocasempre prestes a rir. Sashenka percebeu que, embora risse muito com osfilhos, nunca rira tanto em sua vida, desde seus tempos com Lala. Riapouquíssimo com Mendel e Vânia. Agora percebia quantas pessoas semalegria existem no mundo (especialmente no Partido Bolchevista).Quando ela não estava fazendo amor com Bênia, estavam ambos rindo,bocas escancaradas, olhos brilhando. — Cada vez mais, você precisa deelogios, não é? Posso dizer que sua mãe o amava, quando você eracriança.

— E amava. Isso é tão óbvio? Eu era muito mimado.— Bem, não vou lhe dizer o que penso de você, seu galiciano bobo.

Você já é muito convencido. Mas, se eu provei do doce, isso não querdizer que ele é bom?

— Este doce está sempre querendo ser provado — disse ele.Ela suspirou.— Eu quero estar com você o tempo todo.Estava na janela, usando apenas as meias, deixando que a brisa lhe

secasse o suor. Ele estava estirado na cama, fumando um Belomor,completamente nu, exceto pelo quepe branco. Ela foi até ele e sedeitou sobre suas pernas, com a cabeça repousando em uma das mãos.Tirou o cigarro da mão dele, deu uma tragada e soprou círculos azuis defumaça dentro de sua boca. Mas, dessa vez, ele não começou a fazeramor com ela.

— Escrevi o seu artigo — disse, sem olhar para ela.— O Orfanato Comunal Félix Dzerjinski...— ...para Filhos de Traidores da Pátria.

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— Bem, deve ser uma instituição muito edificante — disse elapensativa. — A linha de frente para a criação das novas criançassoviéticas.

— Eu não posso escrever isso, Sashenka. Mesmo que eu me tornasseo canalha mais frio, covarde e sanguinário que existe, eu não conseguiriaescrever isso...

— Como assim? É uma história de redenção. — Ela estava chocadacom a súbita veemência dele.

— Redenção? Está mais para perdição. O último círculo do Inferno deDante! — De repente, ele estava gritando; ela esfregou o dedo noslábios, surpresa com sua cólera. — Nem sei por onde começar. Adistância, o lugar parecia agradável — uma velha casa senhorial nafloresta, provavelmente parecida com a de Zemblichino da sua infância.Crianças de uniformes brancos desfilavam de manhã e depois se reuniampara discutir a nova História do Partido Bolchevique — Curso Abreviado.Mas quando eu quis entrar e observar as coisas, o diretor, um ucranianobrutal chamado Khanchuk fez um monte de objeções. Só cedeu depoisque soube o nome do marido da editora. Lá dentro, longe dos olhos daspessoas, as crianças estão sujas e morrendo de fome. Não recebemeducação. Um menino de 6 anos morreu ontem — havia cortes equeimaduras no corpinho dele. Os médicos disseram que ele eraespancado por Khanchuk todos os dias. Os professores são selvagensdegenerados que abusam sexualmente das crianças. As crianças sãotratadas como escravos. As menores são aterrorizadas por gangues degarotos mais velhos, mentalmente perturbados. É um dos lugares maishorríveis que eu já vi.

— Mas é dirigido pelo NKVD... para o partido, e eles querem reabilitaras crianças. O camarada Stalin disse...

— Não! Você não entende! — Ele estava gritando de novo e elasentiu um pouco de medo. Nunca o vira furioso antes. Ele a afastou decima dele, pulou da cama, tirou um pedaço de papel do bolso de seucasaco e começou a ler:

O Orfanato Comunal Félix Dzerjinski para Filhos dos Traidores daPátria é um dos mais encantadores exemplos de redenção em

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nosso paraíso soviético. Aqui, em uma agradável clareira rústica,essas crianças inocentes, maculadas somente, por crueldade dasorte, pelo relacionamento com seus perversos pais — terroristassanguessugas, espiões perniciosos, serpentes, ratos, assassinostrotskistas —, são apresentadas, de forma admirável, àgenerosidade da educação soviética. Não é de admirar que, àsseis horas da manhã, elas cantem alegremente a Internacional,digam “Obrigado, Camarada Stalin, pela nossa infância feliz” ecomecem a estudar o Curso Abreviado. Enquanto isso, noPequeno Santuário Vermelho, uma turma de adolescentesfamintos, sujos e brutalizados, com um canivete e um isqueiro,começam a torturar uma garotinha de 4 anos, sob o olharindiferente do corrupto e depravado diretor Khanchuk. Antes dofinal do dia, provavelmente, ela será estuprada mais uma vez poresses garotos ferozes, privada de toda a bondade e inocência dainfância. Isso não é de admirar, pois, nesta mesma manhã, doismeninos que completavam 12 anos foram presos comotrotskistas e espiões japoneses, e levados embora, para seremexecutados ou sentenciados ao trabalho árduo nos campos...

Sashenka prendeu a respiração.— Não podemos publicar isso! Se eu entregar isso para Klavdia, minha

assistente, ela levará seu nome ao Comitê do Partido, imediatamente, evocê será denunciado aos órgãos.

Bênia permaneceu em silêncio.— Você não quer que eu entregue isso, quer? — disse ela.— Eu não quero morrer, se é isso o que você quer dizer, mas

também não quero ser um bajulador russo. Eu não consegui dormir essanoite. Vi minha própria filha naquele inferno dantesco e acordei chorando.Eu quero que você fale desse lugar para o seu marido.

O marido dela. De acordo com o livro imaginário de Bênia, O GuiaProletário Soviético para a Etiqueta do Adultério, eles tinham concordadoem jamais mencionar Vânia ou Kátia, a mulher de Bênia.

— Eu não sei se devo mencionar você ao meu marido.— Não acho que ele vá ficar muito interessado, principalmente se

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ainda estiver massacrando aqueles diplomatas... — Havia uma aspereza navoz dele que não lhe agradava.

— Massacrando? Ele trabalha duro.— Bem, todo mundo conhece o trabalho duro dele.Sashenka olhou para ele durante um longo tempo, sentindo o

estômago se revirar com a dor causada por aquelas palavras, que ela nãoentendia bem. Eles haviam feito amor freneticamente, e fazia calor sob osbeirais do Metrópole. Ela ficara horrorizada com o artigo de Bênia, queevocava aquela canção de sua juventude em São Petersburgo:

Aqui estou eu, abandonado e órfão, sem ninguém para cuidar demim...

Só o rouxinol...

Bênia deitou-se ao lado dela novamente e acariciou-lhe as costasluminosamente brancas, os dedos explorando a região entre suas coxas,mas ela empurrou sua mão e ateou fogo ao artigo, com seu isqueiro,segurando-o até que ardesse e se consumisse.

— Você me despreza? — Sua voz rouca estava fraquejando.Ele suspirou.— O Guia Proletário Soviético para a Etiqueta do Adultério informa

que essa é a pergunta mais comum das adúlteras. Não, na verdade eupenso as melhores coisas a seu respeito...

Cheia de desejo, ela o puxou para cima dela, sonhando em passar anoite com ele, em cantar com ele ao lado do piano e em despertar juntodele.

16

Lavrenti Beria sabia que não ficava bem no uniforme azul e vermelho decomissário-geral, primeiro grau, da Segurança Estatal. Suas pernas eramcurtas demais para as calças pregueadas e botas, seus ombros largosdemais, seu pescoço grosso demais. Mas ele tinha que usar aquela

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vestimenta ridícula de vez em quando. Atravessando os Portões Spasski,seu Buick negro de janelas escuras entrou no Kremlin, dobrou na Praçada Trindade e freou, derrapando, em frente ao Prédio Sovnarkom. Asegurança no Cantinho, como o gabinete de Stalin era conhecido, eramuito rígida. A Seção dos Guardas respondia somente ao próprio Stalin,de modo que até o Comissário Popular de Assuntos Internos precisavaexibir seu passe e entregar sua arma.

Beria estava em Moscou há apenas dez meses; portanto, ainda eranovo o bastante para se deleitar com sua posição — emboraperfeitamente consciente de que teria que lutar para conservá-la. Mastinha certeza de que se sairia bem em qualquer nível de responsabilidade— era infatigável, conseguia trabalhar sem necessidade de sono.

Segurando sua sacola de couro, passou pela primeira barreira desegurança e entrou no gabinete de Aleksandr Poskrebichev, chefe degabinete de Stalin. Lá, entregou sua Mauser. Poskrebichev, um anãocareca com rosto de babuíno e pele avermelhada, como se tivesse sidoescaldada, registrou sua chegada na agenda do Mestre.Respeitosamente, cumprimentou Beria, um sinal do favoritismo de Stalin.

— Entre logo! O Mestre está esperando — e está pensativo.Poskrebichev oferecia esse serviço aos visitantes importantes: um

preâmbulo do estado de espírito de Stalin.A porta se abriu e alguns comandantes militares e tipos intelectuais

saíram, segurando pranchetas de desenho, sobre as quais Beria julgou tervisto projetos de tanques e armas. Soldados e projetistas olharam paraele e Beria os viu empalidecer: sim, ele era a espada impiedosa daRevolução. Eles tinham que temê-lo. Se não o temessem, seria um sinalde que seu trabalho não estava sendo bem-feito.

Quando se foram, Beria passou pela última barreira de segurança.Homens de azul bateram continência para ele.

A sala estava vazia. Beria sabia que o Mestre, no momento, estavapensando na situação europeia. Madri, a capital da República Espanhola,acabara de cair — e isso removia qualquer obstáculo ao diálogo com osalemães hitleristas. A Grã-Bretanha e a França haviam transigido comHitler, em Munique, e mudanças significativas ocupavam agora a mentedo Mestre. Esta era a razão do processo contra os antigos diplomatas do

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Comissariado do Exterior — tratava-se de uma sinalização, enviada aBerlim, de que a polít ica soviética estava mudando.

Poskrebichev fechou a porta atrás dele.Beria aguardou perto da porta de um escritório grande, alto e

retangular, com diversas janelas. No centro, havia uma enorme mesa,coberta de pano verde. Retratos de Lenin e Marx estavam penduradosem uma das paredes; em outra, viam-se os retratos dos marechais decampo Kutuzov e Suvorov (dois acréscimos que antecipavam a guerraiminente). A máscara mortuária de Lenin, iluminada por uma lâmpada comquebra-luz verde, lembrava aos visitantes que aquele era o mais sacro doslugares sagrados.

Na extremidade mais afastada da sala, atrás de uma escrivaninhavazia, abriu-se uma pequena porta, quase invisível no painel de madeira.Stalin entrou, segurando um copo que soltava vapor. Beria ficava sempreimpressionado com a mistura de graça animal, autossuficiência camponesae intelecto analít ico que caracterizava o Mestre. Um grande estadistatinha que ter as três qualidades.

— Lavrenti, gamajoba! — disse Stalin em georgiano.A sós, podiam falar georgiano. Quando havia russos presentes, Stalin

não gostava de falar em sua língua nativa, pois era um líder russo e aGeórgia era uma província menor dentro do Império Russo; “um brejoparoquial”, como ele uma vez a chamara. Mas quando estavam a sós, nãohavia nenhum problema.

Stalin sorriu para Beria com seu sorriso tigrino.— Ah, o novo uniforme. Nada mau, nada mau mesmo. Como está

Nina?— Muito bem, obrigado, camarada Stalin. Ela manda lembranças. —

Beria sabia que Stalin gostava de Nina, sua loura esposa.— E seu filhinho Sergo?— Se acostumando com a escola. Ele ainda se lembra do dia em que

você o colocou na cama, quando ele era bem pequeno.— Eu também li uma história para ele. Svetlana está muito feliz

porque ele agora está em Moscou. Nina gostou da mansão que escolhipara vocês? Ela recebeu as geleias georgianas que eu mandei? Você éum funcionário particularmente confiável e responsável, precisa de um

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pouco de espaço. Precisa de condições especiais.— Agradeço a você e ao Comitê Central pela confiança, pela casa e

pela dacha. Nina ficou deslumbrada!— Mas ela mesma pode me agradecer as geleias.Eles riram.— Acredite, Josef Vissarionovitch — disse Beria, usando o nome e o

patronímico de Stalin —, ela está escrevendo uma carta para você.— Não precisava. Sente-se.Beria sentou-se à mesa forrada de pano verde, abriu sua pasta e

tirou alguns papéis. Stalin sentou-se à cabeceira da mesa, mexendo seuchá. Depois, espremeu uma fatia de limão na bebida.

— Bem, o que você tem para mim?— Temos muitas coisas para examinar, camarada Stalin. Esse caso do

Comissariado Exterior está progredindo bem. Existem espiões alemães,poloneses, franceses e japoneses entre os velhos diplomatas.

— Quem está trabalhando nisso?— Kobilov e Palitsin.— Kobilov nós conhecemos. É um touro numa loja de louças, mas um

bom operador. Ele não usa luvas de pelica. Palitsin trabalha bem?— Muito — respondeu Beria, embora tivesse herdado, não escolhido

Palitsin. — Eis algumas das confissões já assinadas pelos prisioneiros.Camarada Stalin, você perguntou por aquela não-pessoa, o barão Zeitlin,pai da mulher de Palitsin e irmão do jornalista Gideon Zeitlin.

— Sashenka Zeitlin-Palitsin é uma mulher soviética decente — disseStalin.

Beria notou que o Mestre não estava com disposição para piadassobre sexo — um assunto que nunca ficava por muito tempo ausente desua cabeça. Podia ver que, naquele dia, a mente de Stalin estavaconcentrada nas tensas fronteiras da Mitteleuropa. O Mestre bebericou ochá e tirou um novo maço de Herzegovina Flors de sua surrada túnicaamarela. Abriu-o, acendeu um cigarro e começou a brincar com os lápisque estavam em sua mesa.

— Ela e Palitsin já entraram em contato com ele? — perguntouStalin.

— Não.

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— Eles colocam o partido em primeiro lugar — disse Stalin, com osolhos astutos fixos em Beria. — Percebe? Uma mulher soviética decente,que se “refundiu”, apesar de sua classe social e conexões. Eu me lembrodela datilografando no escritório de Lenin. Não se esqueça de que opróprio Lenin era nobre e cresceu numa propriedade rural, comendomorangos e rolando no feno com as camponesas.

Beria conhecia esse truque do Mestre: somente Stalin podia criticarLenin, como um deus zombando de outro. Exibiu a necessária expressãochocada e os olhos do velho tigre brilharam. Stalin era o Lenin domomento.

Beria espalhou alguns papéis.— Você perguntou pelo paradeiro de Zeitlin. Foi preciso algum

tempo para descobrir o destino dele. No dia 25 de março de 1937, porordem minha, ele foi preso em Tbilisi, onde estava exilado desde a suadispensa, em 1930, vivendo tranquilamente com a sua esposa inglesa. Elefoi interrogado...

— Com luvas de pelica ou sem elas?Em uma folha de bloco timbrada J.V. Stalin , Stalin desenhou, com

um crayon verde, uma cabeça de lobo. Depois, escreveu as palavrasZeitlin e luva.

— Com bastante dureza. Nós não estávamos dirigindo um hotel! Masele não confessou nada.

— O quê? Aquele vira-casaca sobreviveu a uma sessão com Kobilov?— Se eu não tivesse supervisionado, Kobilov o teria transformado em

pó. O Touro às vezes vai longe demais.— A Revolução exige que todos nós façamos algum trabalho sujo.— Eu e meus rapazes não usamos luvas de pelica. Segundo o Artigo

58, Zeitlin foi sentenciado à Vichka — esse era o apelido que os líderesdavam à execução, a Punição Maior —, como terrorista trotskista, quetinha conspirado para assassinar os camaradas Stalin, Vorochilov, Molotove até a mim.

— Até você? Você está sendo modesto! — disse Stalin, com umrisinho malicioso; depois, suspirou tristemente. — Às vezes cometemoserros. Temos puxa-sacos demais neste país.

Beria estava acostumado a essas inquirições. Stalin tinha uma

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memória extraordinariamente detalhista, mas nem ele conseguiria selembrar de todos os nomes que constavam das listas de execuções.Afinal, pessoalmente, assinara listas referentes a 38 mil Inimigos,acompanhadas de “álbuns” — biografias sucintas e fotos dos relacionados.Cerca de um milhão haviam sido executados, desde 1937, e um númeromaior tinha morrido nos gulagui, ou a caminho deles. Beria estava curiosoem saber por que o Mestre estava interessado em uma relíquia esquecidacomo Zeitlin — a menos que se sentisse atraído por Sashenka. Nessecaso, não lhe poderia crit icar o gosto. O Mestre era extremamentereservado com sua vida privada, mas Beria sabia que ele tivera, nopassado, diversas aventuras amorosas. Outra possibilidade ocorreu a Beria.Zeitlin já tivera negócios em Baku e Tbilisi. Stalin conheceria Zeitlinpessoalmente?

Isso não tinha importância. Às vezes Stalin expressava remorso pelasexecuções.

— Então Zeitlin se foi? — perguntou ele, sombreando a cabeça delobo.

— Não, ele estava em um álbum com 743 nomes, preparado paravocê e para o Politburo pelo Narkom NKVD, no dia 15 de abril de 1937.Você confirmou todas as sentenças de Vichka, mas colocou um traço aolado do nome de Zeitlin.

— Um dos meus traços? — murmurou Stalin.Beria sabia que um pequeno sinal do Mestre — um mero risco em um

pedaço de papel, uma entonação de voz, uma sobrancelha erguida —poderia mudar um destino.

— Sim. Zeitlin não foi executado, foi enviado para Vorkuta, ondeestá agora, no hospital do campo, com pneumonia, angina e disenteria.Ele trabalha como contador no armazém do campo.

— Esses burgueses ainda são cheios de truques — disse Stalin.— Ele está sempre doente.— Muitas vezes, o portão que range é o mais forte.— Pode ser que ele não sobreviva.Stalin deu de ombros e soprou fumaça.— Lavrenti Pavlovitch, ainda temos que considerar a não-pessoa

Zeitlin como uma ameaça real? Venha jantar em Kuntsevo hoje à noite.

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Eu convidei Chaureli, o diretor de cinema, e alguns atores georgianos mal-afamados. Sei que você está ocupado — venha só se tiver tempo.

Stalin empurrou a ficha que estava sobre a mesa de volta para Beria.Beria sabia que isso era um sinal para que saísse. A reunião terminara.

17

Em sua mesa habitual no Clube dos Escritores, em Moscou, Gideon Zeitlin,tio de Sashenka, terminou seu almoço habitual — borscht, arenquesalgado e costeletas de vitela —, colocou o chapéu e saiu para a rua. Elealmoçara com seus melhores amigos: o obsequioso, mundano e gordoAlexei Tolstoi, conhecido como o “Conde Vermelho”, um dos escritoresfavoritos de Stalin; Fadeiev, o bêbado secretário da União dos Escritores;Ilia Ehrenburg, o turbulento romancista; e sua própria filha, a graciosaMouche, hoje uma atriz que começava a obter papéis principais nocinema. Os leões literários apreciavam a boa comida, o vinho, a dacha emPeredelkino, as férias em Sochi e todos os demais privilégios de quedesfrutavam — pois haviam sobrevivido aos terríveis anos de 37/38.

Gideon, um gigante de barba cerrada, queixo bovino e olhos negrosbrincalhões, resolveu dar uma volta pelas ruas, acompanhado porMouche. Era o início do verão. Garotas passeavam.

— Mouche, você reparou que, até recentemente, todo mundo sevestia como freiras puritanas? — perguntou Gideon. — Graças a Deus issoacabou! As saias estão ficando mais curtas e as aberturas nas saias,maiores. Eu adoro o verão!

— Pare de olhar, papai momzer — repreendeu-o Mouche, chamando-o de pilantra em iídiche, como nos velhos tempos. — Você já está muitovelho.

— Tem razão. Sou muito velho, mas estou meio de pileque e aindaposso enxergar. E ainda posso fazer as coisas.

— Você é uma desgraça.— Mas você me ama, não é, Mouche? — disse Gideon segurando a

mão da filha.

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Sua filha, agora com cerca de trinta anos, estava casada e com filhos.Era notavelmente bonita — olhos negros, volumosos cabelos negros,maçãs do rosto salientes — e já quase famosa pelos próprios méritos.Gideon já tinha netos, mas que se danasse! As garotas estavam à soltaem Moscou, naquele mês de maio, e o velho apreciador se deliciava coma visão das pernas, dos ombros nus, dos novos cabelos com permanente— ah, ele poderia sentir o sabor daquelas peles, daquelas coxas. Decidiuentão visitar Macha, a garota que o acompanhara na festa de Sashenka.Macha, segundo ele, era uma dessas meninas tranquilas e dóceis. Seriaenfadonha se não fosse por seu insano apetite por sexo, em todas asvariantes. Ele ficou imaginando as variações, quando percebeu queMouche estava puxando seu braço.

— Papai, papai!Um Emka branco parara ao lado deles. O motorista acenava para

Gideon e o passageiro, um jovem vestindo um terno largo, com óculosredondos de intelectual e um enorme topete, saltou para fora, abrindo aporta traseira do carro.

— Gideon Moseievitch, podemos conversar? Não vai demorar muito.Mouche empalidecera. As garotas na rua desapareceram do campo

visual de Gideon, e ele pôs a mão no peito.— Se não estiver se sentindo bem, podemos conversar em outra

hora — disse o jovem, que exibia um fino bigode avermelhado.— Papai, você está bem? — perguntou Mouche.Gideon encheu de ar o peito volumoso e assentiu com a cabeça.— Deve ser só um bate-papo, querida. Vejo você mais tarde.Era apenas rotina, disse a si mesmo. Não havia nada com que se

preocupar. Em algumas horas estaria de volta, conversando com Mouche.

Enquanto observava o pai entrar no carro, Mouche teve a terrívelsensação de que poderia nunca mais voltar a vê-lo. Onde estava seu tioSamuil? Sumira. Metade dos amigos de seu pai desaparecera. No início, ostrabalhos deles eram ridicularizados nos jornais; depois, seus apartamentoseram revistados e lacrados. Quando ela via aqueles amigos novamente,mal conseguia lhes dizer alô. Era como se estivessem com a praga. Atéque eram presos e sumiam. Mas Gideon pulara sobre seus corpos, e

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Mouche sabia que ele era um mestre da sobrevivência. Fazia o que tinhaque ser feito, embora suas origens familiares fossem altamentecomprometedoras. Sobrevivia apenas porque, dizia-se, o camarada Stalingostava de seus trabalhos e de suas conexões com a intelligentsiaeuropeia.

Agora, cambaleando na brisa de verão, Mouche observou o carropartir em direção à Lubianka, cantando os pneus ostensivamente.Enquanto se afastava, viu o pai se virar e lhe atirar um beijo.

Correu até um telefone público e discou para sua prima.— Sashenka? Papai ficou doente de forma inesperada. — Ela sabia

que era tudo o que precisava dizer.— Em que hospital ele está?— Aquele no alto da colina.

18

Em seu apartamento, na Granovski, Sashenka brincava com as crianças nasala de recreação. Carolina, a babá, tinha lhes preparado torradas comgeleia de pêssego, para o chá; agora, estava fritando fígados de vitelo,que seriam servidos no jantar. Vânia deveria estar em casa às sete, masestava atrasado. Satinov e sua esposa, Tamara, que tinha rosto deboneca e estava no final da gravidez, já haviam chegado.

— O que houve? — perguntara Satinov, assim que percebeu aansiedade no rosto de Sashenka.

— Hércules, posso lhe mostrar nosso novo carro, lá embaixo?Sashenka sabia que Satinov compreendia o código perfeitamente.

Deixando Tamara com as crianças, eles tomaram o elevador até o pátio,onde limusines das mais deslumbrantes estavam estacionadas — sob osolhos vigilantes do zelador, um guarda do NKVD. Granovski se tornara umdomicílio de chefes tão importante que tinha sua própria guarita demadeira.

Alguns idosos, homens e mulheres, sentados em cadeiras de lona,formavam um semicírculo, aquecendo-se à luz da tarde sobre o asfalto

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morno. Os homens, com chapéus de feltro, camisetas brancas e shorts,exibiam os velhos ventres enrugados, os peitos forrados de cabelosbrancos e as peles cheias de sardas. As mulheres usavam sandáliasbaratas, vestidos leves e chapéus de abas moles. Eram enormes, comamplos quadris e peles muito brancas — quase em carne viva, pela açãodo sol. Os homens liam jornais ou jogavam xadrez, enquanto as mulheresconversavam, apontavam, riam, cochichavam e voltavam a conversar.

No centro do grupo feminino, estava a megera Marfa, mãe de Vânia,uma alegre morsa de chapéu de palha.

— Ei, lá está minha nora — gritou Marfa em voz roufenha. —Sashenka, estou contando a elas sobre o Dia do Trabalho e sobre quemapareceu lá na dacha. Elas não conseguem acreditar.

O sogro, Nikolai Palitsin, um velho camponês, apontouorgulhosamente para Sashenka.

— Ela falou com ELE! — disse. — ELE! — E levantou os olhos para océu.

— Mas ELE disse como admirava Vânia! — acrescentou a sogra.Sashenka tentou sorrir, mas os pais de Vânia eram uma fonte de

perigo. O pátio era, a seu modo, bastante selecionado: todos ali erampais dos chefes, mas a tagarelice corria à solta e poderia ser fatal.

— Olá, camarada Satinov — gritaram os velhos Palitsins.Satinov acenou, impecavelmente elegante em sua túnica e botas.— Vou mostrar o carro novo a Hércules — disse Sashenka. — Viu

como eles são? — sussurrou ela. — O que podemos fazer para que elescalem a boca?

— Não se preocupe, Vânia vai mantê-los em silêncio. Agora me digao que aconteceu — disse ele.

— Mouche ligou. Prenderam Gideon. Pensei que tudo isso tinhaacabado, com exceção de alguns casos especiais. Pensei...

— Acabou, na maior parte, mas é o nosso sistema agora. Nunca vaiacabar. É o modo de tornar a URSS segura, estamos vivendo em umaépoca muito perigosa. Não há de ser nada, Sashenka. Gideon tem suaspróprias leis. Provavelmente ficou bêbado e contou uma piada idiota, oupassou a mão na esposa rabugenta do Molotov. Lembre-se: nunca façanem diga nada.

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Um Buick entrou no pátio. O motorista abriu a porta.— É Vânia.Sashenka não ficou surpresa com a aparência do marido, trôpego,

com a barba por fazer e exausto — eram as muitas horas de trabalho, e atensão.

— O que houve? — perguntou ele, antes mesmo de beijar Sashenkaou cumprimentar Satinov.

— Vou subir para brincar com as crianças — disse Satinov.— Você soube da prisão de Gideon? — Sashenka perguntou ao

marido, enquanto, para burlar os anciãos e os guardas, fingia olhar para ocarro.

Vânia segurou as delicadas mãos dela em suas mãos enormes.— Tenha confiança, eles estão muito satisfeitos comigo, no

momento. Eu não sei dos detalhes, mas mencionaram o fato para mim eeu só disse: “Deixem nossos camaradas investigarem ele.” Entendeu? Eulhe prometo que isso não vai nos atingir de modo nenhum.

Sashenka olhou para o rosto tranquilizadoramente proletário deVânia, observando sua testa enrugada, têmporas grisalhas e uniformeamarrotado. Sentia-se bastante aliviada por estarem a salvo. Gideon eraum caso especial, disse a si mesma, um escritor europeu, que conheciaestrangeiros, que visitava prostíbulos em Paris, que dava entrevistas ajornais ingleses. Mais uma vez, ficou grata pela estabilidade férrea domarido. Então, lembrou-se do sarcasmo de Bênia sobre seu “trabalhoduro” — o que, por sua vez, foi obscurecido por uma deliciosa recordaçãodos lábios de Bênia em seu corpo, naquele mesmo dia, mais cedo. Umagota de inquietação percorreu sua espinha.

Em casa, Branquinha e Carlo estavam correndo pelo apartamento,atrás de Satinov. Sashenka entrou no momento em que agarravamSatinov e lhe faziam cócegas.

— Me diga uma coisa, tio Hércules — disse Branquinha, montada acavalo no padrinho —, onde as almofadas vivem?

— Na Almofadolândia, é claro. — Satinov ajudara Branquinha adesenvolver seu mundo de fantasia. — São Almofadas do Bosque,Almofadas do Céu ou Almofadas do Mar?

— Hércules, você realmente sabe brincar — disse Sashenka. — Você

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vai ser um pai maravilhoso quando tiver seus próprios filhos!— Eu adoro essas crianças — disse Satinov, enquanto se rendia a

elas, permitindo que Carlo tirasse suas botas.Carolina entrou para anunciar que o jantar estava pronto.

19

Gideon estava entorpecido de medo, enquanto o carro cruzava as praçasVermelha e da Revolução, subindo a colina em direção à praça Lubianka.Sua visão entrou em colapso quando cinco altíssimos andares de granitocinzento e três de tijolos amarelos lançaram sua sombra sobre o carro,que entrou na prisão de Lubianka através de um portão lateral.

Sua mente não parava de trabalhar. Cheio de remorsos, pensou emseu irmão, a quem não via há quase dez anos e a quem não telefonavadesde 1935. Samuil teria compreendido que era arriscado eles manteremcontato? Mas onde estaria ele agora?

Gideon lembrou-se do irmão, na mansão da avenida Marítima, noescritório cheio de quinquilharias eduardianas, fazendo estrondear suaCadeira Trotadora. Como poderia ele ter deixado de existir?

Sem nem mesmo pensar, Gideon baixou a cabeça e murmurou okadish para seu irmão, surpreso de ainda conseguir se recordar daquelavelha oração judia para os mortos... Diante da morte, as pessoasretornam à infância, à família. Gideon percebeu que amava sua filhaMouche mais do que qualquer pessoa no mundo. Será que Mouche vaime entender, vai se lembrar de mim, depois que eu receber os setegramas na nuca?, conjeturou ele. A dor em seu peito era insuportável.Ele estava quase chorando de medo.

— Chegamos! — O jovem sorriu para Gideon. Ele não tratava Gideoncomo prisioneiro. Pelo contrário, um tchekista — como os agentessecretos eram conhecidos, em homenagem à organização “cavaleiros daRevolução”, a Tcheka, estabelecida por Lenin — abriu a porta e o ajudoua sair do carro. Sim, sou uma celebridade literária, pensou Gideon,revivendo um pouco. Não havia tônico melhor do que a fama.

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Ele notou os numerosos Buicks e ZiSes estacionados em volta. Alinão era o pátio que acolhia os prisioneiros.

Através de portas duplas de madeira, Gideon foi guiado até umsaguão de mármore e, de lá, a um corredor com painéis de madeira euma passarela de carpete azul, fixada no centro. Oficiais em uniformes doNKVD e secretárias passavam apressados. Era como qualquer outrarepartição governamental. Gideon sentia-se aliviado por não estar sendoconduzido à Prisão Interna, mas não parava de procurar em sua menteum motivo para a convocação. O que escrevera recentemente? O quedissera? O que estaria acontecendo na Europa que poderia envolvê-lo?Ele era judeu e eles tinham acabado de demitir Litvinov, o comissário doExterior, também judeu. Os judeus estariam caindo em desgraça? A URSSestaria se aproximando de Hitler?

Se vou morrer, pensou Gideon subitamente, será que trepei com umnúmero suficiente de mulheres? Nunca o bastante! Uma queimaçãoperfurou seu peito e o engasgou.

— Este é o meu escritório — disse o jovem, cujo topete formavauma onda perfeita sobre sua testa rosada. — Sou o investigadorMogiltchuk, da Seção de Ocorrências Graves, Segurança Estatal. Vocêestá bem? Aqui! — Ofereceu a Gideon uma caixa de pílulas. —Nitroglicerina? Como vê, eu estava esperando por você.

Gideon engoliu duas pílulas e a dor em seu peito diminuiu.Uma ruiva sardenta, de seios volumosos, com uma abertura lateral no

vestido, estava batendo à máquina na ante-sala. Mesmo ali, a mente deGideon passeou pela saia da garota, subindo até aquela deliciosa... Haviaflores na mesa dela. Ela tirou o chapéu de Gideon.

— Entre, Gideon Moiseievitch — disse o investigador Mogiltchuk,jovem e bem-apessoado. Depois que se sentaram, a garota sardentatrouxe chá para ambos e saiu, fechando a porta.

— Obrigado por vir, cidadão Zeitlin — começou Mogiltchuk, pegandoum bloco de papel e uma caneta. Gideon conseguia sentir o cheiro decoco emanado por aquela droga de brilhantina que o jovem usava nocabelo. — Eu tenho que tomar notas. A propósito, você viu o novo filmede Romm, Lenin em 1918? Como um jovem fã do que você escreve,gostaria de saber o que achou do filme.

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Gideon quase cuspiu fora o chá: aqueles idiotas o tinhamaterrorizado, trazendo-o até ali apenas para um bate-papo sobre cinema?Não, claro que não. Desde os anos 20, a Tcheka utilizava falsosintelectuais sofisticados para lidar com os verdadeiros. Esse jovem eraapenas o último de uma longa linhagem.

— Lenin em 1918 é um filme maravilhoso; e Stalin está muito bemretratado, em contraste com o sanguinário terrorista Bukharin —respondeu ele.

— Você conhece Romm, é claro. E o que achou do AlexandreNevski, de Eisenstein?

— Eisenstein é um artista sublime e um amigo. O filme mostra comoo bolchevismo é completamente compatível com a nação russa e suaresistência contra os nossos inimigos.

— Interessante — disse o interrogador com sinceridade, alisando obigode ruivo. — Devo lhe dizer que também sou escritor. Você já leuminha coletânea de histórias policiais publicadas com o nome de M.Slujba? Uma delas vai ser representada brevemente no Teatro das Artes.

— Ah, sim — disse Gideon, lembrando-se vagamente de uma resenhaque lera em algum jornal, a respeito de umas banalidades policiaispublicadas por um certo Slujba. — Acho que seus contos têm um travode realidade.

Mogiltchuk sorriu, mostrando os dentes.— Você me deixa lisonjeado! Obrigado, Gideon Moiseievitch. Vindo

de você isso é um cumprimento. Quaisquer comentários são bem-vindos.— Ele alisou os papéis diante dele, mas não mudou de tom. — Agora,deixe-me começar mostrando isso. — Empurrou um maço de papéis nadireção de Gideon.

— O que é isso? — perguntou Gideon, com a segurança abaladanovamente. — Apenas umas confissões de seus amigos íntimos, nosúltimos dois anos. — Gideon examinou as páginas datilografadas, com amarca do NKVD, todas com uma assinatura em um canto.

— Você é um nome importante e aparece frequentemente nessasconfissões — explicou o jovem com veemência, quase com admiração. —Todos mencionam você. Veja aqui, nesses protocolos de interrogatório, eveja ali!

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Aquela megera de olhos esbugalhados, na foto, poderia mesmo serLarissa, aquela flexível e prazerosa criatura, de cujo riso gutural e seiosdeliciosos ele se recordava com tanta alegria, desde aquele verão nosanatório de Mukhalatchka, na Criméia, quatro anos atrás? Ela o teriadenunciado, realmente, por planejar o assassinato do camarada Stalin?Mas então se lembrou de que ele mesmo denunciara Larissa comotraidora, nos encontros da União dos Escritores, uma serpente e umaespiã, que deveria ser fuzilada juntamente com Zinoviev, Kamenev eBukharin. E ninguém precisara torturá-lo para isso.

Onde estavam aqueles seus amigos? Estariam todos mortos?Gideon estava ofegante de medo; manchas vermelhas surgiram

diante de seus olhos.Além daquele gabinete confortável e ensolarado, com seu melífluo

Novo Homem Soviético, havia inúmeros outros gabinetes, onde tiranosmirins se transformavam em grandes tiranos, onde valentões ambiciososse tornavam torturadores sistemáticos. E em algum lugar daquele ninhode misérias estava a Prisão Interior, com as celas em que seus amigostinham morrido, onde ele ainda poderia morrer. Gideon estavaassombrado com o mal que existia no mundo.

— Isso é totalmente falso — disse Gideon. — Eu nego esse absurdo.O topetudo sorriu amavelmente.— Nós não estamos aqui para discutir isso agora. Queremos apenas

bater um papo. Sobre seu parente Mendel Barmakid.— Mendel? Discutir o que sobre Mendel? Ele é um homem

importante.— Você o conhece bem?— Ele é irmão da falecida mulher do meu irmão. Conheço ele desde

que eles se casaram.— E você admira o camarada Mendel?— Nós não somos amigos. Nunca fomos amigos. Na minha opinião,

ele é um idiota! — Gideon sentiu um alívio culposo. Nunca gostara deMendel, que banira duas de suas peças do Teatro Pequeno — mas não,não queria esse destino para ninguém. Por outro lado, estava na casa doscinquenta anos, ansioso como nunca para abraçar a vida, para devorá-la.Quem ama a vida tanto quanto eu, conjeturou, quem merece viver mais

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do que eu?Gideon agradeceu a Deus por estarem atrás de Mendel, não dele!— Quando você viu o camarada Mendel pela última vez?— Na casa dos Palitsins, na noite do Dia do Trabalho.— Você falou com ele?— Não.— Com quem ele estava falando?— Não me lembro. Eu não presto atenção nele. Ele não gosta de

mim. Nunca gostou.Gideon notou que o interrogador ainda se referia a Mendel como

“camarada”, o que significava que a entrevista era meramenteespeculativa. Os torturadores sempre tentavam comprometer outrosnomes importantes, para aumentar o peso de suas conspiraçõesinventadas. Esse era o motivo pelo qual seus velhos amigos o tinhamdenunciado: o NKVD estava apenas lhe comunicando que ele estavaandando sobre gelo fino. Tudo bem, ele se rendia. Eles eram donos delee pronto!

— O camarada Mendel também aparece em muitas confissões quetemos aqui. O camarada Mendel ainda se lembra do início de sua carreiracomo revolucionário, atuando nos subterrâneos? Do seu papel em 1905?No exílio? Em Baku? Em São Petersburgo? Nos primeiros dias de 1917?Ele faz alarde de suas proezas?

— O tempo todo. Ad nauseam. — Gideon, com as mãos pousadassobre a próspera e avantajada barriga, riu com tanta disposição e tãoinesperadamente que o jovem investigador riu também, soltando umguincho alto e agudo. — Eu conheço de cor todas as histórias dele. Elenem faz tanto alarde, mas fica murmurando aquelas ladainhas que nãoacabam nunca.

— Você já tomou o chá, cidadão Zeitlin? Quer bolo? Frutas? Nósdamos muito valor a essas conversas amigáveis. Então me conte ashistórias.

O jovem abriu as mãos. Gideon sentiu-se mais corajoso.— Terei o maior prazer em lhe contar velhas histórias, mas, se você

quer um informante, eu não sou a pessoa indicada para o trabalho...— Eu compreendo — disse Mogiltchuk suavemente, juntando as

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fichas. Uma fotografia saiu do bolo. Gideon sentiu um forte aperto nopeito. Era Mouche, sua amada filha, andando ao lado de Rovinski, odiretor de cinema que desaparecera em 1937. Então Mouche era omotivo de lhe terem perguntado sobre cinema. Rapidamente, Mogiltchukrecolheu a foto, que desapareceu entre seus papki.

— Essa era Mouche — gritou Gideon.— Com seu amante, Rovinski — disse Mogiltchuk. — Você sabe onde

Rovinski está agora?Gideon abanou a cabeça. Ele não sabia do caso amoroso de Mouche

— mas ela era muito parecida com ele. Ele tinha que proteger sua filhaadorada.

Mogiltchuk apenas abriu as mãos, como se houvesse areia deslizandopor elas.

— Você quer todas as histórias de Mendel? — disse Gideon. — Issopode levar a noite toda!

— O Estado pode lhe conceder toda a eternidade, se você precisar.Você está sonhando com Macha, aquela namoradinha sua? Ela é muitojovem para você — e tão exigente! Pode acabar lhe provocando umataque cardíaco. Não... é melhor que você pense em sua filha, enquantonos conta essas histórias de Mendel.

20

Dois dias haviam se passado. A noite caía nas Lagoas do Patriarcado. Nocalor do crepúsculo, como sombras rosadas, casais passeavam de mãosdadas, sob as árvores ao redor das lagoas. Seus passos estalavam nocascalho, seus risos ecoavam e alguém tocava um acordeão. Dois velhosfitavam um tabuleiro de xadrez, imóveis.

Sashenka, com seu chapéu branco e vestido bordado, apertado nosquadris, comprou dois sorvetes e entregou um a Bênia Golden. Elesandavam ligeiramente afastados, mas um observador saberia que eramamantes, pois mantinham uma constante simetria entre seus corpos,como se estivessem ligados por fios invisíveis.

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— Você está atarefado? — perguntou ela.— Não, eu praticamente não tenho nada para fazer e estou sem

dinheiro. Mas — ele sussurrou — tenho escrito o dia inteiro,brilhantemente, nas suas deliciosas folhas de papel! Você pode arranjarmais? Estou muito feliz em ver você. Estou ansioso para beijar você denovo, saborear você.

Ela suspirou, semicerrando os olhos.— Posso continuar?— Não consigo acreditar que quero ouvir você falar... mas quero.— Vou lhe dizer uma coisa maluca. Quero fugir com você para o mar

Negro. Quero caminhar com você pela orla do mar, em Batum. Nodeque, há um realejo que toca nossas canções românticas favoritas, euposso cantar junto, e quando o sol tropical baixar, podemos nos sentarno café Mustapha’s e nos beijar. Ninguém vai nos impedir. À meia-noite,alguns velhos tártaros que eu conheço podem nos levar no barco delesaté a Turquia.

— Mas e os meus filhos? Eu nunca os deixaria.— Eu sei, eu sei. Esse é um dos atrativos.— Você é muito desavergonhado. O que estou fazendo junto de

você?— Você é uma mãe maravilhosa. Eu me comportei mal durante toda

a minha vida — mas você, não. Você é uma mulher real, de carne e osso,matrona do partido, editora e mãe. Diga, como vai a revista?

— Tremendamente movimentada. O Comitê de Mulheres estáplanejando uma recepção de gala para os sessenta anos do camaradaStalin, em dezembro; e estamos preparando uma edição especial para osferiados da Revolução. Consegui que Branquinha fosse ao seu primeiroAcampamento das Pioneiras, em Artek — ela já está sonhando em usarseu famoso lenço vermelho. Mas o melhor de tudo é que Gideon está devolta.

— Mas você sabe que ele ainda pode estar em apuros. Eles podemestar só brincando com ele, como um peixe num anzol.

— Não, Vânia disse que ele deve estar bem. O camarada Stalin disseno Congresso...

— Pare com essa conversa fiada de partido, Sashenka — disse Bênia,

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impacientemente. — Nós não temos tempo para falar de congressos. Sóexiste o agora! Só nós.

Eles fizeram uma curva, longe das lagoas, e de repente se viram sós.Sashenka segurou a mão dele.

— Você estava ansioso para me ver?— O dia inteiro. Cada minuto.— Então por que está com essa cara de quem está fazendo uma

travessura? Por que você me atraiu até aqui?Eles estavam se aproximando de uma arcada que cercava um pátio.

Verificando que ninguém os seguia e conduzindo Sashenka pela mão,Golden passou pela arcada, atravessou o pátio e chegou a um jardim,onde se erguia um frágil barracão, do tipo usado por aposentados paraguardar sementes de gerânios. Ele exibiu uma chave.

— Esta é a nossa nova dacha.— Um barracão?Ele riu dela.— Você está dando uma demonstração de moralidade burguesa.— Sou comunista, Bênia, mas no que diz respeito a fazer amor eu

não poderia ser mais aristocrática!— Finja que é o pavilhão secreto do príncipe Iusupov, ou do conde

Cheremetev! — Ele destrancou a porta. — Veja! Imagine!— Como você poderia pensar, mesmo por um momento que eu iria...

— Sashenka percebeu que a época em que vivia com Vânia no quartinhoda Sexta Casa dos Soviéticos, dormindo em beliches, ficara para trás hámuito tempo. Ela era bolchevique, mas fizera por merecer seus luxos. —É horrível e tem cheiro de esterco.

— Não, é o novo perfume de madame Chanel.— Aquilo me parece um forcado!— Não, baronesa Sashenka, é um objeto incrustado de diamantes

feito para a própria imperatriz pelos célebres artesãos de Dresden.— E o que é aquele velho trapo imundo?— Aquele cobertor? É um casaco de seda e pele de chinchila para o

conforto da baronesa.— Eu não vou entrar aí — disse Sashenka resolutamente.O rosto de Golden ficou triste, mas ele insistiu.

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— E se eu lhe dissesse, sem brincadeira, que essa porta nosconduzirá a um mundo secreto, onde ninguém poderá nos ver ou tocar,e onde eu irei amá-la mais do que a própria vida? Não é uma mansão, eusei. Pode ser um patético barracão de jardim, mas é o barracão onde euquero adorar você e acariciar você, sem perder nem um segundo destaminha vida curta, neste mundo ameaçador. Pode parecer uma coisaboba, mas você chegou no verão da minha vida. Não sou velho, mas nãosou mais jovem e me conheço. Você é a única mulher da minha vida, amulher de quem vou me lembrar quando morrer. — Ele ficou muito sério,subitamente, enquanto entregava a ela um livro que retirara da jaqueta:um volume com poemas de Puchkin. — Preparei isso para que a gentenunca se esqueça deste momento.

Ela abriu o livro e, na página de seu poema favorito, “O Talismã”,havia uma única e rara orquídea seca.

Ele começou a recitar:

Você não deve perdê-lo,Seu poder é infalível,O amor deu isso a você.

— Você vive me surpreendendo — sussurrou ela.Sentia-se tão emocionada e desesperada para beijá-lo que suas mãos

tremiam. Então entrou no barracão e fechou a porta com um chute.Tudo ali dentro — ferramentas, sementes e umas botas velhas — pareciatão vivo e cheio de amor quanto ela.

Bênia a tomou nos braços. De alguma forma, pelo olhar nos olhosdele e pela posição de sua boca, ela sabia que tudo o que ele dissera eraverdade: ele a amava e aquele instante, no mundo particular de ambos,era um desses momentos que ocorrem uma ou duas vezes na vida, e àsvezes nunca. Ela gostaria de engarrafá-lo, armazená-lo, guardá-lo parasempre em uma caixinha colocada na parte frontal de sua memória, paraque pudesse alcançá-lo sempre e reviver tudo outra vez. Mas estava tãoextasiada que nem conseguiu segurar esse pensamento. Simplesmente,foi em direção a Bênia e o beijou sem parar, até chegar a hora em quetinham de ir para casa. Quando se separaram, ela repetiu para si mesma:

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Você não deve perdê-lo, Seu poder é infalível, O amor deu isso a você .Mal conseguia acreditar na própria felicidade, nem na sorte que tinha poralguém, realmente, ter-lhe dito aquelas palavras.

21

— O que é agora? Vou reclamar com o Comitê de Habitação. Parem comessa balbúrdia! São três horas da manhã! — berrou Mendel Barmakid,membro do Comitê Central, membro do Orgburo, vice-presidente daComissão de Controle Central e deputado do Soviete Supremo. Sua filhaLena também fora acordada pelas batidas na porta; por um momentoficou deitada, sorrindo com a fúria absurdamente operística do pai,imaginando-o em sua ancestral camisola de dormir, manchada e comidapor traças. Então, ouviu-o abrir a porta do apartamento da família, naCasa do Governo, às margens do rio.

— O que houve, Mendel? — gritou Natacha, sua mulher.Agora minha mãe se levantou também, pensou Lena, e quase podia

ver a gorda iacuta, com traços esquimós, em seu largo cafetã azul. Seuspais estavam falando com alguém. Quem poderia ser?

Lena pulou da cama, vestiu um quimono escarlate, pôs os óculos,saiu do quarto e dirigiu-se à porta da frente.

Viu seu pai esfregar os olhos de pálpebras vermelhas e olhar para umgigante vestido com o uniforme do NKVD. De botas reluzentes,imaculado em seu uniforme azul e escarlate, segurando um chicote demontaria com uma das mãos cobertas de anéis espalhafatosos eempunhando uma Mauser cravejada de brilhantes com a outra mão,Bogdan Kobilov olhou para baixo, na direção dos três Barmakids. Ele nãoestava sozinho.

— Quem é? O que eles querem, papai?Antes que Mendel pudesse responder, Kobilov entrou no saguão,

empertigado, quase sufocando Lena com sua colônia turca e fazendo-alacrimejar.

— Boa noite, Mendel. De acordo com as ordens do Comitê Central,

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você tem de vir conosco — disse ele, com um sotaque georgiano quaseindecifrável. — Temos que revistar o apartamento e selar o seu escritório.

— Vocês não vão levá-lo — disse Lena, bloqueando o caminho.— Está bem! Recuem — disse Kobilov com uma voz

surpreendentemente macia. — Se vocês me fizerem perder tempo eficarem enchendo o meu saco, vou reduzir vocês a pó, inclusive apequena égua. Se vocês forem educados, vai ser melhor para todos.Caso vocês não saibam, eu tenho coisa muito melhor para fazer a essahora da noite. — Ele flexionou os músculos.

Lena olhou raivosamente para o algoz de sua família, para suas joias eseu cabelo crespo. Mas seu pai pousou a mão gentilmente em seuombro, tirando-a do caminho de Kobilov.

— Obrigado, Vladlena — escarneceu o intruso, com um brilhantesorriso. O nome completo, revolucionário, de Lena era Vlad-Lena, umaabreviação de Vladimir Lenin.

— Boa noite, camaradas — disse Mendel com seu sotaque iídiche-polonês de Lublin, que jamais perdera. — Como bolchevique desde 1900,obedeço às ordens do Comitê Central.

— Que bom! — Kobilov sorriu zombeteiramente.Lena, que tinha 20 anos e estava estudando, percebeu como aquele

agente secreto sem educação, oriundo de algum vilarejo na Geórgia,odiava os velhos bolcheviques, a nobreza bolchevique, com suasbibliotecas, seus ares afetados, suas pretensões intelectuais.

— Posso me vestir, camarada Kobilov? — perguntou Mendel.— Suas mulheres podem ajudá-lo. Um dos meus rapazes vai ficar de

olho em você. Onde estão as armas?Lena sabia, por intermédio do pai, como o camarada Stalin detestava

os suicídios.— Há uma Nagan, na mesa de cabeceira, e uma Walther no escritório

— disse Mendel, com seu vozeirão, enquanto mancava até o quarto.— Tenho que me sentar — murmurou Natacha, desmoronando em

um divã na sala.— Mamãe! — gritou Lena.— Você está bem, Natacha? — gritou Mendel.— Estou bem. Lena, ajude o papai a se vestir, por favor. — Natacha

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se deitou, respirando pesadamente.Lena trouxe um copo com água para a mãe e, então, ficou

observando os tchekistas abrirem as gavetas e formarem pilhas noescritório, com os documentos de Mendel. Durante os anos 37/38houvera incursões e prisões no bloco todas as noites — ela ouvia oselevadores trabalhando nas primeiras horas da manhã e via os CorvosNegros do NKVD estacionados em frente ao prédio. Na manhã seguinte,notava que as portas dos apartamentos tinham sido lacradas pelo NKVD.

— A Tcheka está defendendo a Revolução — seu pai lhe dizia. —Nunca fale sobre isso. — Mas aquilo acabara. As prisões tinham parado háum ano. Aquilo deveria ser um engano, pensou ela.

— Mendel — gritou Kobilov. — Você tem cartas do Comitê Central?Coisas velhas? — Ele queria dizer cartas do camarada Stalin. — Suasmemórias?

— No cofre. Está aberto — replicou Mendel, de seu quarto. Para asurpresa de Lena, havia alguns cartões-postais de Stalin no exílio; algunsapontamentos dos anos 20; e memórias datilografadas em folhas de papelamarelecido, cobertas de anotações, com a intricada caligrafia de Mendel.Seu pai era tão modesto. Contava histórias de suas aventuras, mas nuncacitava nomes. — Lena!

Lena seguiu o pai até o quarto. Abriu o armário dele e retirou seuterno preto, de três peças, seu chapéu de feltro preto, suas botas, umagravata de couro, sua Ordem de Lenin. Então, lutando para nãodemonstrar emoção, e compreendendo que não deveria aumentar osproblemas dele, ajudou-o a se vestir, como a mãe sempre fazia. Ele nãofalou nada, até estar pronto.

— Obrigado, Lenotchka.— O que está acontecendo, papai? Você sabe? — perguntou ela,

desejando, logo em seguida, não tê-lo perturbado.Ele apenas abanou a cabeça.— Provavelmente, nada.Mendel entrou na sala e beijou a testa da esposa.— Eu a amo, Natacha — disse ele com sua voz profunda. — Viva o

partido!Então, virou-se para a filha.

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— Vou com você até lá embaixo — disse Lena, sentindo-seentorpecida.

No saguão, ajudou o pai coxo a passar por cima de uma pilha defotos de família, papéis, cartas e provas de seu famoso livro, MoralBolchevique. O andar parecia uma colagem fragmentada de suas vidas.

Desceram pelo elevador ornamentado, que rangia. No lado de fora, anoite estava cálida. O Grande Palácio do Kremlin brilhava majestosamente.Embora fosse muito tarde, havia dois namorados na Ponte de Pedra;música de tango escapava de alguma janela aberta do grande prédio. Nãohavia trânsito, apenas uma limusine Packard e uma caminhonete CorvoNegro, pintada com as palavras “Ovos, Pão, Vegetais”. Os motores deambos os veículos trabalhavam em ponto morto.

Na rua úmida de orvalho, o cintilante e descomunal comissário deSegurança Kobilov lembrava a Lena uma cintilante estátua de papiermâché em um carro alegórico do Dia do Trabalho.

— Sua carruagem está esperando, Mendel — disse ele, inclinando acabeça em direção ao Corvo.

Em seu terno fora de moda, botas retinindo metalicamente noasfalto, Mendel capengou até a porta da caminhonete negra, que estavaaberta. Fez então uma pausa. Lena prendeu a respiração, com o coraçãona boca. Mas Mendel apenas olhou para o supermoderno bloco deapartamentos do qual eles tanto se orgulhavam; não disse nada, emboraum tique nervoso tivesse aparecido em seu rosto. Aquele homem severo,lacônico e antiquado não era de demonstrar seus sentimentos. Mas Lenasabia, por milhões de pequenas coisas, que ele a amava — sua única filha— acima de tudo. De repente, fez uma coisa que jamais fizera. Segurou amão dele entre as suas e a apertou. Ele olhou para o outro lado e suarespiração se tornou ofegante. Tinha 60 anos, mas parecia muito maisvelho.

Então — para enorme espanto e emoção de Lena —, ele virou-separa ela e a beijou três vezes, formalmente, no velho estilo russo.

— Seja uma boa comunista. Adeus, Lena Mendelovna.— Adeus, papai — respondeu ela.Ela inalou seu cheiro de café, cigarros e sabonete, sua presença e

seu amor, lutando contra o ímpeto de segurar seu terno, cair no chão,

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agarrar suas pernas, para que não conseguissem levá-lo — mas tudoacabou muito rápido.

Mendel não olhou para ela novamente — e ela entendeu por quê: odegrau era muito alto. Dois tchekistas o levantaram e o colocaram dentroda caminhonete. O interior era dividido em gaiolas de metal, sem nenhumlugar para sentar. Eles o trancaram em uma delas e bateram a porta.Lena ainda conseguiu divisar os olhos úmidos do pai, que captavam a luz.

Kobilov bateu no teto da limusine e se acomodou no assento depassageiros. De pé no meio da rua, Lena observou os dois veículosatravessarem a ponte em seguida ao Kremlin e desaparecerem de vista.

O zelador, tão amigável, que sempre fazia trabalhos para a família,estava em pé nos degraus do prédio, observando, mas não disse nada eevitou o olhar dela. Lena subiu para cuidar de Natacha.

Sua mãe estava chorando tanto que não conseguia falar. Lenasentou-se, fatigada, e pensou no que fazer. Então lembrou-se de quesua mãe cuidara de Sashenka, durante a noite que esta passara na prisão,em 1916.

Ao amanhecer, telefonou para Sashenka de um telefone na rua. Aofundo, ouviu Branquinha cantando e o barulho de talheres. Sashenka, naGranovski, servia o café da manhã às crianças.

— É Lenotchka — disse ele.— Lenotchka, o que houve?— Papai ficou doente de forma inesperada e eles... ele foi levado

para tratamento.Lena estava tomada por maus presságios. Lágrimas inundaram seus

olhos e ela desligou o telefone.

— Quem era? — perguntou Branquinha. — Lenotchka? Tia Lenotchka éuma almofada gorda. O que foi, mamãe?

— Meu Deus — suspirou Sashenka, afundando em uma cadeira, coma mão na testa. O que aquilo significava? Primeiro Gideon, agora Mendel.Ela sentiu-se nauseada.

— Mamotchka — disse Carlo com sua voz aguda, subindo em seusjoelhos, como um ursinho amestrado. Usava um pijama azul. — Está sesentindo mal? Vou fazer carinho em você e beijar você assim! Eu amo

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você, mamotchka, você é minha melhor amiga!Carlo a beijou no nariz com tanta doçura que Sashenka estremeceu

de amor.

22

No sábado seguinte, sentada na varanda da dacha, Sashenka esperavapor Vânia, cercada por uma imobilidade sufocante. As crianças estavam nacozinha, ajudando Carolina a preparar um bolo.

Pombas arrulhavam no pombal e corvos grasnavam nas bétulas. Oscavalos do estábulo do marechal Budionni relinchavam e o pônei dascrianças respondia. Abelhas zumbiam; o perfume dos jasmins eraenjoativamente doce. O importante vizinho ao lado entoava uma cançãodo filme Os Alegres Companheiros. Mas o telefone não tocou. Satinovnão ligara para confirmar o jogo de tênis.

O dia transcorria em ritmo lento. Sashenka fingia ler os jornais e asprovas da revista. Não havia nenhuma pista nos jornais, nenhumalembrança da mania de espionagem nem dos julgamentos espetacularesde um ano atrás. Pessoas eram libertadas; casos eram revistos. Talvez elaestivesse sendo paranoica. Telefonara a Bênia e o informara em código arespeito dos tios.

— Os gerânios estão florescendo — respondera ele calmamente, eela se lembrou do barracão no jardim e do talismã de ambos.

Ela pensava em Bênia o tempo todo. Poderiam se encontrar napróxima semana. Ele a confortaria; ele a faria rir, naquele seu jeito fatalistajudeu. Como ela conseguira sobreviver tanto tempo sem o primeiro eúnico Bênia? Estava ansiosa para lhe telefonar, mas não da dacha. Haviaum telefone público na alameda. Bênia ficava insistindo com ela, tentandofazê-la dizer que o amava.

— Você não sente nada especial por mim? — perguntava ele.Depois de dez dias? Ela, integrante do partido, mãe, editora e velha

bolchevique, apaixonar-se por um escritor ocioso? Será que ele estavamaluco? Não, era ela quem estava maluca. Ah, Bênia! O que ele iria achar

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de tudo o que estava acontecendo?Os sinais eram confusos. Gideon não fora preso, e Mouche tinha

telefonado para dizer que “eles” só queriam discutir cinema com ele,“cinema e a história dos gregos e dos romanos”. Seria uma alusão paraSashenka ou uma frase jogada ao acaso? Gideon os estaria alertandosobre a prisão de Mendel? “Os gregos e os romanos.” Mendel conheciahistória antiga. Ele era história antiga. Sua prisão deveria estar relacionadacom alguma coisa no distante passado bolchevique. Um velho amigogeorgiano de Stalin, o “Tio” Abel Ienukidze, escrevera um livro sobre ahistória da imprensa bolchevique, em Baku, no qual era mínima aparticipação do Mestre — e nem tinha como não ser. Sashenka selembrava bem do camarada Abel, um playboy de cabelos castanho-claros,olhos azuis, mãos bobas e um harém de bailarinas. Fora fuzilado em 1937.

Mas Mendel não era nenhum Abel. Tio Mendel nunca se juntara àoposição e lutara ferozmente por Stalin. Ele era a Consciência do Partidoe não era tagarela. Por que Mendel e por que agora, quando o Terror,realmente, havia terminado? Eles poderiam ter prendido Mendel aqualquer momento desde 1936. Aquilo não fazia sentido.

Ou Gideon quisera se referir a uma antiga história de família? Mastodos sabiam a respeito dos Zeitlins e que ela datilografara para Lenin,ela, a filha bolchevique do milionário, a camarada Raposa! Os Órgãos aestariam cercando e à sua família? Seus antecedentes poderiam serburgueses — mas ela estava protegida pelo casamento com Vânia Palitsin— com seu pedigree proletário e serviços leais — e pela ortodoxiapartidária de ambos.

Ou o problema seria com seu marido? Haveria alguma rivalidadedentro dos órgãos, os novos georgianos de Beria contra os velhosmoscovitas? Mas Vânia nunca fora um vassalo do antigo chefe, Iejov, ede qualquer forma Beria demitira todos os criminosos homicidas de Iejov,meses antes. Aqueles maníacos tinham ido embora. Viraram poeira.

Prisões na família não se refletiriam nela, necessariamente, disse a simesma. Aconteciam o tempo todo. Até os Svanidzes, parentes de Stalinpor afinidade, tinham sido presos. Até os irmãos do camarada Sergo,querido amigo de Stalin, haviam sido executados. O próprio pai deSashenka estava desaparecido. Stalin dissera que não se deve culpar os

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filhos pelos pecados dos pais, mas em um jantar secreto no Kremlin, doqual Vânia participara, ele ameaçara destruir os Inimigos do Povo e “todosos membros de seus clãs! Sim, seus clãs!”.

Stalin, a história e o partido trabalhavam de modos misteriosos,Sashenka sabia disso. Nós, membros do partido, somos devotos de umaordem militar-religiosa, numa época em que a luta de classes seintensificava e a guerra se aproximava, pensou ela. Quanto maiores foremas conquistas do partido, mais nossos inimigos lutarão contra nós: esta eraa fórmula do camarada Stalin. Devemos lealdade ao partido e ao santograal da Ideia, não ao sentimentalismo burguês. Mendel é um polít ico eem nosso sistema progressista, mas imperfeito, isso é polít ica. Tudo iriacorrer bem, disse a si mesma. Mendel retornaria, assim como Gideon. Estaera uma nova era, menos carnívora. Os tempos ruins haviam terminado.

As pombas no pombal esvoaçaram como ventiladores quando umcarro se aproximou. Sashenka, descalça, foi ajudar o chofer a abrir osportões.

Seu marido saiu do automóvel com ar cansado, mas Sashenka sentiu-se reconfortada ao vê-lo. Vânia era Comissário Popular Assistente deAssuntos Internos e, desde o Congresso de Março, candidato a membrodo Comitê Central — e ali estava ele, melhor do que nunca. Apenas umpouco abatido e com mais fios brancos em seus cabelos grossos — masele sempre chegava cansado.

Ela fora tola em se preocupar. Branquinha e Carlo correram para fora.Carlo estava nu e Branquinha usava seu vestido cor-de-rosa de verão: elaestava crescendo rápido. Seu pai os abraçou, apertou-os, cumprimentouseus coelhinhos e almofadas, ouviu sobre os bolos e doces que estavampreparando na cozinha — e os mandou entrar em casa. Então olhou paraSashenka, olhou para ela como nunca olhara antes, com olhos irados,pretos como corvos. Estava prestes a dizer alguma coisa quando Carolina,da varanda, anunciou o almoço.

Virando as costas para Sashenka, ele entrou em casa.

23

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A refeição à mesa da varanda pareceu demorar mais que o habitual. Oaroma dos lilases era divino. De repente, Branquinha atirou um pão noirmão. Vânia interveio, pondo-se de pé com um pulo e atirando longe acadeira.

— Parem com isso! — berrou.Branquinha ficou chocada e começou a soluçar. Carlo pareceu ficar

aterrorizado e seu rosto se cobriu de lágrimas.— Eu não fiz nada — disse ele, chorando. Então correu para a mãe,

mas Sashenka não disse nada. Todos os seus sentidos estavamconcentrados no marido.

Vânia evitava os olhos dela e mal comera alguma coisa. Em vez desentir-se culpada, como esperava, ela sentiu-se ressentida. Ansiava porBênia e seu irreprimível senso de humor, sua desfaçatez rabelaisiana e suasensibilidade.

— Vânia, você precisa dormir — disse ela, por fim.— Preciso? De que isso vai adiantar?Ela se levantou.— Vou levar as crianças para nadar no rio.Eram 14h30.Vânia se trancou no escritório.Descalça, carregando as toalhas e segurando as mãos das crianças,

Sashenka seguiu pela alameda de terra, através das bétulas prateadas,em direção às margens do Moskva. Vânia sempre voltava aborrecido deseu trabalho noturno, disse a si mesma. Até mesmo andando, ela sentiacomo Bênia mudara sua vida.

Suas pernas estavam nuas e o sol parecia lamber suas bochechas,ombros e joelhos, como se estivessem recobertos de melado. Suas coxasroçavam uma na outra, suadas, grudando um pouco. Até as pedrinhasentre os dedos de seus pés pareciam sensuais. A jovem Sashenka daGuerra Civil e dos anos 20 jamais teria percebido essas coisas; a matronado partido, nos anos 30, era séria demais, impregnada demais com ascampanhas e slogans do partido. Naqueles tempos, ela se vestia comdeliberada sisudez, usava meias marrons pouco atraentes, vestidos malcortados, o cabelo em um coque apertado, sempre amarrado com omesmo lenço. Agora, tudo brincava com seus sentidos, de uma forma

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que a deixava assombrada. O vestido de algodão parecia acariciar suascoxas e seu pescoço. Ela estava ansiosa para contar a Bênia sobre oaroma delicioso da resina dos pinheiros e sobre cada detalhe do queestava fazendo e sentindo. Uma brisa suave levantou a barra de seuvestido e mostrou suas pernas.

Ela sorriu, pensando em Bênia com as mãos sobre ela, dançando, eno modo como ele ria, com a boca escancarada. Eles conversavam sobrelivros, filmes, pinturas e peças de teatro, mas, ah, como riam. E o riso afez pensar em suas coxas, seios e lábios: tudo pertencia a ele.

Chegaram às margens douradas do rio lamacento, margeado porcerejeiras carregadas de flores cor-de-rosa. Branquinha colheu um ramopara ela. Outras crianças estavam nadando, e ela reconheceu algumasfamílias do partido. Acenou e enviou beijos, aplaudindo os filhos quecorriam e mergulhavam.

— Você está me vendo, mamãe? — gritava Carlo cada vez quepulava na água.

E cada vez ela respondia:— Quando é que não estamos olhando para vocês dois?Quando começaram a sentir frio, ela os secou e vestiu.Retornaram pelo bosque. Um exército de campânulas esperava por

eles sob as árvores. Branquinha e Carlo começaram a construir umacampamento para as Almofadas do Bosque, imersos em um mundo emque sofás eram feitos de musgo e troncos de árvores eram palácios.

Ela sentou-se no banco à beira da alameda e os observou. Sabia porque os conduzira por aquele caminho. Seus olhos oscilavam entre oacampamento e o telefone público, nas imediações. Deveria, nãodeveria? Não, não iria telefonar.

— Queridos, temos que ir para casa agora — disse ela.— Não! — gritou Branquinha. — Queremos brincar.Ela sabia que tinha que telefonar, que iria usar aquele telefone.

Fechou os olhos. Bênia dissera que estaria em sua decrépita dacha, emPeredelkino, o vilarejo dos escritores. Ela tinha o número e tinha vontadede sugerir que se encontrassem de alguma forma. Em algum barracão dejardim — abraçados entre pás e gerânios! Mas tinha que esperar até queo assunto de Mendel estivesse resolvido. Além disso, Bênia estava com a

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família.Telefonaria assim mesmo. Se a mulher de Bênia atendesse, ela se

apresentaria como sua editora. Realmente, iria lhe encomendar um artigopara a revista: “Como organizar um verdadeiro baile de máscaras soviético!Como preparar os vestidos, as máscaras e o banquete!”

Enquanto seus filhos dançavam pelo caminho arenoso, ela discou onúmero de Bênia. O telefone tocou e tocou. Nenhuma resposta. Elapressionou o corpo contra o alumíno da caixa, contemplandosonhadoramente o milagre eletrônico que, através dos fios, levaria a vozdele até seu ouvido. Então parou, abanando a cabeça ante sua próprialoucura.

Você vai ter que esperar, Bênia Golden. Mas vou dar um jeito devocê saber, disse ela a si mesma. Vou lhe dizer que o amo.

24

Às quatro da tarde, Sashenka retornou à dacha. Os pilares brancos desua fachada, a mesa de madeira, as redes balouçantes a faziam se lembrarde Zemblichino, antes da Revolução. As crianças estavam com sono eCarolina as levou para dormir em seus quartos.

Vânia estava sentado no jardim, com sua camisa bordada decamponês, botas e calças largas. Sempre as botas.

— Você está bem, Vânia? — perguntou ela. — Alguma notícia deMendel? — Ele ficou imóvel por alguns momentos. Depois, ergueu-selentamente, virou-se para ela e deu-lhe um soco no rosto, derrubando-ano chão. O soco foi tão forte que ela quase não o sentiu, embora,enquanto jazia atordoada na grama, sentisse na língua o gosto desangue.

Com o rosto impassível estremecendo, Vânia ficou de pé perto dela,cerrando e retorcendo as mãos carnudas. Sashenka ficou de pé e sejogou sobre o marido, com a boca aberta para gritar com ele, mas ele aagarrou pelo pulso e a atirou de novo no chão.

— Onde você esteve, sua vagabunda nojenta?

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Ele estava inclinado sobre ela. Mesmo naquela altercação, ambosestavam conscientes das vozes sobre a cerca, dos empregados da casa,dos guardas: todos ouviam e informavam. Portanto, não gritavam umcom o outro; apenas sussurravam, em meio aos zumbidos de um dia deverão.

— Fomos nadar no rio.— Você foi até o telefone.— Bem, eu passei pelo telefone...— E ligou, não foi?— Não fale comigo como se eu fosse um de seus casos. E daí se eu

liguei? Não posso dar um telefonema?— Para quem você ligou?Ele já sabia, ela podia ver, e isso a aterrorizava.— Você telefonou para aquele escritor judeu, não foi? Não foi? Você

pensa que eu não tive minhas chances? Você acha que não sou fiel avocê?

— Não sei.— Bem, deixe que eu lhe diga, eu nunca toquei em outra mulher,

nem uma vez em todos esses anos. Sashenka, eu venerava você. Faziatudo por você. Eu não lhe dei tudo? — Então sua voz ficou sibilante. —Você se encontrou com ele em nossa casa, sua prostituta! Você levoumeus filhos pela alameda e telefonou para aquele escritor desgraçado!

O que ele sabia? Freneticamente, Sashenka examinou os fatos: seele soubesse que ela tinha telefonado, o que isso provava? Se elesoubesse que ela lhe encomendara um artigo, bem, por que não? Se elesoubesse do hotel, então estava perdida!

Vânia permaneceu de pé perto dela e ela pensou que ele iria socá-lanovamente, ou chutá-la com suas botas, bem ali, no jardim da dacha,com os filhos dormindo na casa.

— Você trepou com ele?— Vânia!— Não importa mais, Aleksandra Samuilovna. Agora não importa mais.

Agora não adianta mais. Você não pode falar com ele porque ele nãoestá lá.

Ela ainda estava tocando nos lábios, que sangravam, quando o

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significado do que seu marido dizia penetrou nela.— O que você está dizendo?O rosto dele estava próximo ao dela. Ele suava.— Ele não está lá, Sashenka! Agora ele foi embora. Esse é o prêmio

dele!Sashenka estava furiosa. Seus lábios ficaram brancos com uma cólera

selvagem, que a tomou de surpresa.— Então essa é a sua vingança? É assim que os tchekistas garantem

a fidelidade de suas mulheres, é assim? Você deveria ter vergonha de simesmo! Eu pensei que você servia ao partido. E o que vai fazer com ele?Espancá-lo em algum porão com um porrete? É isso o que você faz todosos dias, Vânia?

— Você não está entendendo.Vânia sentou-se de repente. Esfregou o rosto com as mãos e

esfregou os cabelos, de olhos fechados. Então pôs-se de pé e voltoulentamente para casa.

Sashenka levantou-se trêmula. Bênia fora preso! Não podia serverdade. O que iria acontecer com ele? Ela não suportava nem imaginarque ele pudesse estar sofrendo. Onde estaria ele?

25

— Mamotchka! — Carlo estava chorando. Sempre acordava de mauhumor.

— Por que você e o papotchka estão falando assim? — disseBranquinha, dançando no jardim. — Mamãe, por que seu lábio estásangrando?

— Ah — disse Sashenka, sentindo-se envergonhada pela primeiravez. — Eu esbarrei na porta.

— Eu quero fazer você ficar boa, mamãe. Posso colocar pomada noseu machucado? — disse Carlo, tocando o lábio dela e beijando suasmãos, enquanto Branquinha, descansada e exuberante, trotava pelojardim como um jovem pônei.

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Sashenka olhou para o corredor, na direção do escritório de Vânia,com várias hipóteses ricocheteando no cérebro. Estava quase feliz porVânia ter batido nela, em vez de descontar nas crianças. Que ele adeixasse cheia de marcas roxas e negras, se isto significasse que Bênianão sofreria. Mas e se Bênia não fosse quem parecia ser? E se tivesse sidopreso não por vingança de um corno, mas porque era um “elementoimpuro”, uma espécie de espião trotskista? E se Vânia tivesse inventado aprisão somente para atormentá-la? E se Mendel estivesse realmente emapuros e a tivesse envolvido de algum modo, juntamente com os amigosdela? Cada vez que um esquema plausível amadurecia em sua imaginação,ela sentia uma onda de medo, até que uma das crianças a chamasse.

— Mamotchka, você está olhando para mim? — Primeiro Branquinha,depois Carlo.

Sashenka andava quase como sonâmbula, na tardeexasperantemente lenta, um exemplo perfeito das delícias da primaveranos bosques prateados da planície moscovita.

O que fiz eu, pensou ela, o que fiz eu?

Eram oito horas da noite, finalmente, hora de dormir.— Você vai me fazer carinho para eu dormir? — murmurou Carlo,

fitando os olhos dela com seus olhos castanhos.— Onze carinhos na sua testa — disse ela.— Isso, mamotchka, onze carinhos.Geralmente, Sashenka ficava totalmente absorvida por Carlo, mas sua

mente, agora, estava em outro lugar. Onde estava? Com Bênia, nosporões da Lubianka? Com Mendel, nas masmorras do inferno? E comoficariam ela e sua família? Ela rezou para que houvesse um alívio naquelesuspense, mas, ao mesmo tempo, temia isso.

— Mamotchka? Posso lhe dizer uma coisa? Mamãe?— Sim, Carlo.— Eu amo você dentro do meu coração, mamãe. — Era uma

expressão nova e atingiu Sashenka duramente. Ela agarrou o robustofilhote e o abraçou com força.

— Que coisa linda você disse, querido. Mamãe ama você dentro docoração dela também.

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Ela pousou as mãos em sua testa sedosa e eles contaram juntos: elaacariciou seu rosto onze vezes, até que seus olhos se fecharam.Branquinha também estava exausta e, abençoadamente, dormiu semnenhum problema.

Era uma noite bonita e abafada. A casa fora invadida por grandesmariposas agitadas, gordas varejeiras preguiçosas e enxames de pulgões.Os ventiladores do teto zumbiam. Carolina estava no quarto dela.

Ninguém telefonara.Vânia foi se sentar na cadeira de balanço da varanda, fumando e

bebendo. Os judeus, pensou Sashenka, nunca bebem quando estão emcrise, pois ficam com erupções cutâneas e palpitações. A cadeira de Vâniaoscilava para a frente e para trás, rangendo, fazendo com que ela selembrasse da Cadeira Trotadora de seu pai, tantos anos antes.

Estava na hora. Os corvos grasnavam na tília. Nervosamente,Sashenka se aproximou do marido.

— Vânia? — disse ela. Ela precisava saber como ele descobrira sobreBênia, o que ele sabia. Até lá, não confessaria nada.

— Vânia, eu não fiz nada — mentiu. — Eu flertei. Estou tãoarrependida...

Ela esperava mais severidade dele, mas, quando ele se virou para ela,seu rosto estava úmido e inchado de lágrimas. Vânia nunca chorava,exceto quando estava muito bêbado, durante filmes tristes, em reuniõesregimentais ou quando via Branquinha nas peças da escola.

— Não faça isso — disse ele.— Você me odeia?Ele abanou a cabeça.— Por favor, me diga o que sabe.Vânia tentou falar, mas sua boca generosa, queixo poderoso e olhos

de ursinho de brinquedo perderam a força, enquanto ele choravasilenciosamente no cálido crepúsculo.

— Eu sei que fiz uma coisa muito errada. Vânia, eu lamento muito!— Eu sei de tudo — disse ele.— Tudo? O que há para se saber?Ele gemeu com uma dor exausta e aterradora.— Não se incomode, Sashenka. Agora, nós estamos além da fase de

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marido e mulher.— Você está me deixando com medo, Vânia.Lágrimas escorreram pelo rosto dele enquanto o sol se punha no

horizonte, deixando um rastro cor de sangue.

26

Sashenka permaneceu ao lado da cadeira de balanço, respirando o aromade jasmins. Pensava em Mendel. Pensava em Bênia e nos filhos, dormindoem seus quartos.

Finalmente, Vânia ergueu-se da cadeira. Estava bêbado, com olhosardentes e inchados — mas conseguia dominar o álcool, como fazem osgrandes bebedores. Então a puxou para si, agarrando-a com força,chegando a tirar os pés dela do chão. Pela primeira vez em um longotempo, ela sentiu-se grata ao ser tocada por ele. Olhou para os coelhosna gaiola e para o pônei, pastando pacificamente perto da cerca — masela e Vânia estavam sós, como sempre.

— Eu posso me separar de você — disse ela. — Ninguém precisasaber. Deixe eu me separar e você vai se livrar de mim. Peça o divórcio!— Poucas horas atrás, isso poderia ter sido uma fantasia de fuga comBênia, agora era uma atitude desesperada. — Eu fiz uma coisa horrível! Eulamento, lamento muito...

— Não diga isso — sussurrou Vânia, apertando-a com mais força. —Eu estou furioso com você, é claro, sua louca. Mas nós não temos tempopara ficar magoados.

— Pelo amor de Deus, o que você quer dizer com isso? Alguém maissabe?

— Eles sabem de tudo, e é tudo culpa minha — disse ele.— Por favor! Me diga o que aconteceu!Ele a abraçou subitamente, beijando seu pescoço, seus olhos, seu

cabelo.— Eu fui tirado do caso do Comissariado do Exterior. Estou sendo

mandado para investigar nossos camaradas em Stalinabad, no

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Turquestão.— Bem, eu vou com você. Nós todos podemos viver em Stalinabad.— Controle-se, Sashenka. Eles podem me prender na estação. Eles

podem vir esta noite.— Mas por quê? Fui eu que errei... Posso pedir perdão, mas como

isso pode ser polít ico?— Gideon, Mendel, agora Bênia Golden — há alguma coisa no ar,

Sashenka, e eu não sei o que é. Quem sabe eles têm alguma coisacontra o seu escritor? Quem sabe ele é um canalha ligado a espiõesestrangeiros? Mas eles também têm alguma coisa contra mim e contravocê. Eu não sei o que é, mas sei que isso pode destruir todos nós. —Seu rosto febril estava pálido sob a luz que ainda restava. — Pode ser quenão tenhamos mais tempo. O que vamos fazer?

A enormidade do desastre esmagou Sashenka.Duas semanas antes, o camarada Stalin estivera em sua casa com o

camarada Beria, Narkom do NKVD. Estrelas do cinema e dos palcoscantaram em sua casa; Vânia acabara de ser promovido e eraconceituado; o camarada Stalin admirava sua revista, admirava Sashenka ebeliscava as bochechas de Branquinha. Não, Vânia estava enganado. Eratudo mentira. Seu coração disparou, faíscas vermelhas dançaram diantede seus olhos e suas vísceras se contraíram.

— Vânia, estou apavorada.Sentaram-se à mesa da varanda, bem juntos, de rostos colados e

mãos dadas, mais próximos naquele momento do que na lua-de-mel,unidos agora por mais laços do que um marido e uma esposa jamaispoderiam desejar.

Vânia se recompôs.— Sashenka, também estou assustado. Temos que preparar um

plano.— Você acredita, realmente, que eles vêm nos buscar?— É possível.— Não podemos perguntar a alguém? Você falou com Lavrenti

Pavlovitch? Ele gosta de você. Ele está satisfeito com você. Você atéjoga no time de basquete dele. E Hércules? Ele sabe tudo. Stalin adoraele. Ele vai nos ajudar.

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— Eu telefonei para os dois — respondeu Vânia. — “O camaradaBeria está incomunicável”, foi o que o funcionário disse. Hércules não meligou de volta.

— Mas isso não quer dizer nada. Beria deve estar com alguma mulher.E Hércules vai telefonar.

— Precisamos decidir agora o que vamos fazer. Eles podem meprender, ou prender você, ou nós dois. Quem sabe o que eles estãoarrancando de Mendel — ou daquela sua porra de escritor.

— Mas eles não podem fazer com que eles inventem coisas!— Deus nos ajude! — exclamou Vânia. — Você deve estar brincando.

Nós temos um ditado nos órgãos: “Me entreguem um homem à noite e,de manhã, ele vai confessar que é o rei da Inglaterra!” Você acreditounas confissões dos julgamentos? Zinoviev, Kamenev, Bukharin eramterroristas, assassinos, saqueadores, espiões?

— Era verdade. Você disse que era verdade, em espírito, naessência.

— Ah, sim, era verdade mesmo. Eram todos uns miseráveis. Eraminimigos, em espírito. Eles perderam a fé, e a fé é tudo. Mas... — Eleabanou a cabeça.

— Você bate nas pessoas para que elas digam essas coisas, não é,Vânia?

— Pelo partido, eu faço qualquer coisa. Eu tenho feito qualquercoisa. Sim, eu sei o que é quebrar um homem. Alguns se quebram comopalitos de fósforo, outros preferem morrer a dizer uma palavra. Mas émelhor fuzilar cem homens inocentes que deixar um espião escapar. Émelhor fuzilar mil.

— Meu Deus, Vânia. — As palavras de Bênia e a sua expressãoenquanto as falava retornaram-lhe à mente. Ele sabia o que Vânia faziadurante a noite, enquanto ela, ela...

— O que você achou que eu fazia? Era segredo, mas não saber foiconveniente para você.

— Mas o partido tem razão em destruir os espiões. Eu sabia que haviaerros, mas todos nós dizíamos que os erros valiam a pena. E se agora nóssomos o erro? Eu acredito no partido e em Stalin, é o trabalho da minhavida. Vânia, você ainda acredita?

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— Depois do que eu fiz para o partido, eu tenho que acreditar. Seeu fosse fuzilado hoje, morreria comunista. E você?

— Morrer? Eu não posso morrer. Eu não posso sumir. Eu quero viver.Eu amo a vida. Eu faria qualquer coisa para viver.

— Fale baixo, camarada Raposa. — O ar de conspirador dele levou-ade volta ao tempo em que era uma jovem e ardente ativista bolchevique,em Petrogrado, no ano de 1916 — isso fora uma das coisas nele que atinham atraído. — Fique calma! Nós não vamos morrer, mas temos queplanejar com antecedência. Se eles nos levarem, não confesse nada. Esseé o truque. Se você não confessar, eles não podem tocar em você.Façam o que fizerem, não confesse nada!

— Não sei se posso aguentar isso. A dor — disse Sashenka, trêmula.— Vânia, você está com seu revólver, não está?

Vânia levantou o quepe que estava sobre a mesa, diante deles.Embaixo, havia uma pistola Nagan. Sashenka colocou a mão sobre o metalfrio e se lembrou dos “buldogues”, em Petrogrado, que transportava parao partido. Com que paixão e orgulho carregara aquelas pistolas para aRevolução. Como admirara Vânia, o robusto operário, com mãos quepareciam patas, rosto largo, olhos castanhos! O que ele se tornara? Oque ambos haviam se tornado?

— Podemos nos matar esta noite, Vânia. Eu poderia me matar evocê ficaria livre de mim. Você ficaria limpo. Eu faço isso, é só vocêpedir...

— Essa é nossa primeira opção. Temos a arma e temos a noite. Massuponha que eles não tenham nada contra você. Vão bater em você,humilhar você. Mas, se você não confessar, eles vão perguntar: “Elaassinou alguma coisa? Não? Bem, talvez ela não seja uma traidora, afinalde contas.” No final, eles vão colocar você em liberdade. Por nós, pelavida, pelas crianças.

As crianças! Ela quase se esquecera das crianças. A morte, a violênciae a possibilidade de desaparecer da Terra, de deixar de existir, era umacoisa tão aterrorizante, tão imediata, que despertara a mais pura formade egoísmo. Como pudera ser tão egoísta?

Sashenka se virou e correu para dentro de casa, seguida por Vânia.Ambos irromperam no quarto das crianças. De mãos dadas, olharam

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angustiados para Branquinha, a pele branca, os cabelos clarosesparramados pelo travesseiro, respirando suavemente, com seus longosbraços dobrados sob ela e a inocente almofada rosa encostada no rosto.E lá estava Carlo, nu, deitado de bruços, o cabelo desgrenhado, braços epernas ainda com as dobras de um bebê, a cabeça enfiada no coelho debelbutina, o seu favorito.

Com a garganta ressecada, Sashenka mal conseguia respirar naquelequarto quente e escuro, que cheirava a feno e baunilha, o aromacaracterístico das crianças no verão. Era como se ela e Vânia fossem osprimeiros e últimos pais do mundo. Mas sabiam o que teriam queenfrentar. Sashenka sentiu o estômago se revirando. Estavam a ponto deperder seus tesouros, para sempre.

— Branquinha, Carlo, ah, queridos! — Ela caiu de joelhos entre osdois leitos, com Vânia ao lado. De repente, estavam chorandosilenciosamente nos braços um do outro.

— Não acorde eles — disse Vânia.— Não devemos — concordou Sashenka, desanimada. Mas não

conseguiu se conter. Com mãos trêmulas, levantou Carlo da cama e oapertou contra si, distribuindo beijos em sua testa acetinada, até que elese mexeu. Vânia segurava Branquinha, com o rosto enterrado em seucabelo, cujos fios dourados grudavam em seu rosto úmido. As duascrianças, despertadas de um sono profundo naquela noite abafada,agarraram-se aos pais, ainda sonolentas, gloriosamente alheias àtempestade que se aproximava. Os quatro permaneceram juntos naconfortável escuridão, os pais ofegantes e cobertos de lágrimas, os filhosse espreguiçando e suspirando, acomodando-se nos braços amorosos,apenas semiacordados.

Finalmente, Vânia puxou Sashenka pela mão.— Ponha eles de novo na cama! — disse ele.Eles recolocaram as crianças nos leitos e foram se sentar no divã que

ficava próximo às janelas francesas. A porta de um carro bateuruidosamente no ar noturno.

— Vânia, o que será isso? Serão eles? Ela se jogou em seus braços.Ele a acalmou com suas mãos desajeitadas, cuja aspereza era agora

tão bem-vinda, tão familiar.

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— Não, não são eles. Não ainda — sussurrou ele. — Mas temos quepensar com calma. Pare de chorar, menina! Controle-se. Pelas crianças...

Então ele também começou a tremer — e ela soltou um gemidoinvoluntário, até que ele pôs a mão sobre sua boca. Por fim, ela saiu doaposento, para lavar o rosto com água fria. Uma terrível sobriedadedesceu sobre eles.

— Vânia, nós não podemos nos matar porque...— Stalin diz que o suicídio é “uma cusparada no olho do partido”. Nós

nos livramos da dor, mas não as crianças. O partido vai descontar nascrianças.

— Entendi. Nós nos matamos e matamos as crianças. Esta noite,Vânia, agora. Morremos juntos e ficaremos juntos. Para sempre!

Que estranho — apesar de tudo, ela acreditava em uma espécie devida após a morte. Na eternidade. Era a crença de seus avós rabínicos,que ela, a comunista, sempre fingira ignorar. Agora, aquelas velhaspalavras de Turbin retornaram a ela — Zohar, o Livro do Esplendor ecoração da Cabala, o Céu e o Geena, os Golems e dybbuks queassombravam os amaldiçoados com o Mau-Olhado, o mundo espiritual tãodistante do marxismo científico e do materialismo dialético. Agoraimaginava sua alma e seu amor, vivendo além do invólucro do corpo,onde veria sua mãe e seu pai, todos jovens novamente. Ficariam juntos!Pegou a Nagan que estava sob o quepe de Vânia. Ainda sabia usá-la.

— Você acredita nisso? — perguntou ele. — Eu acredito. Ficaremostodos juntos no Céu. Talvez você tenha razão. Se eles vierem nosbuscar, nós matamos as crianças e depois nos matamos.

— Então está decidido.Mas, quando Sashenka se virou para ir até o quarto, Vânia a segurou,

tirando a pistola de sua mão e a colocando no coldre.Ele a apertou com força, sussurrando:— Eu não conseguiria. Eu simplesmente não conseguiria. Você

conseguiria?Ela abanou a cabeça. Passava da meia-noite. O cérebro de Sashenka

trabalhava de modo mais sistemático.— Não temos mais tempo para chorar, não é, querido?— Eles têm alguma coisa contra nós. Não sei o quê.

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— Gideon mencionou “os gregos e os romanos” e, então, Mendel foipreso. Bênia Golden não sabe de nada a nosso respeito.

— Será que ele é um provocador? Um espião? Um depravado?— Poderia ser... — Ela estava com tanto medo que acusava o próprio

amante. Seria isso o que acontecera? Bênia destruíra sua família? — Entãofoi inundada por outra torrente de possibilidades. — Poderia ser umaintriga tchekista na Lubianka? Deve haver alguma razão para isso, Vânia,ou não?

Ele abriu as mãos.— Deve haver um motivo — disse ele. — Mas não precisa haver uma

razão.Nesse momento, ouviram o portão dos fundos ranger.— São eles, Vânia. Eu amo vocês, Vânia, Branquinha e Carlo. Se

algum de nós sobreviver, ah, Vânia... Vamos terminar tudo? Onde está obuldogue?

Eles se abraçaram. Vânia tinha a arma na mão e ambos apertaram ofrio metal entre suas palmas, como se fosse um amuleto. Não se ouviumais nenhum som. A noite avançava com exasperante lentidão.

Um assobio rompeu o silêncio e uma figura de capuz branco saiu dassombras do pomar.

Vânia levantou a Nagan.— Quem está aí? Vou atirar. Vou levar vocês junto comigo, seus

miseráveis!

27

— Só posso ficar por alguns minutos — disse o visitante, removendo ocapuz caucasiano que, nos velhos tempos, usava no inverno dePetrogrado.

— Ah, Hércules, graças a Deus você veio! — Sashenka o beijourepetidamente, agarrando-se a ele. — Vamos ficar bem, não vamos?Você veio nos dizer como acertar as coisas... Com quem nós devemosfalar? Por favor, diga para nós!

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As luzes da varanda foram apagadas e Hércules Satinov sentou-se àmesa, com Vânia e Sashenka — que serviu uma dose de conhaquearmênio para cada um.

— Tudo vai ficar bem, não é? — perguntou ela de novo. — Nósestamos imaginando coisas, não estamos? Ah, Hércules, o que nós vamosfazer?

— Psiu, Sashenka — disse Vânia. — Deixe ele falar.Satinov assentiu. Seus olhos eram dois riscos de mercúrio na

escuridão.— Ouçam com atenção — começou ele. — Eu não sei de tudo, mas

sei que alguma coisa mudou. Eles estão trabalhando no Mendel edescobriram alguma coisa contra você.

— Contra mim? — gritou Sashenka. — Vânia, peça o divórcio! Eu memato.

— Apenas escute, Sashenka — disse Vânia.— Agora já passou dessa fase — disse Satinov laconicamente. — Eu

pensei... nas crianças.O coração de Sashenka começou a palpitar.— Eu não posso visitar o Beria? Eu faço qualquer coisa. Qualquer

coisa! Eu posso persuadir Lavrenti Pavlovitch...Satinov abanou a cabeça e Sashenka sentiu a tensão que havia nele.

Nem ao menos tinha tempo para conversar sobre ela e Vânia. Apenassobre as crianças.

— Eu poderia escrever para o camarada Stalin. Ele me conhece, eleme conhece desde março de 1917, quando eu datilografava para Lenin...Ele me conhece.

Os olhos de Satinov dardejaram e Sashenka compreendeu que aquiloviera da Última Instância, do topo, da Instantzia.

— Agora, vocês têm que pensar só nas crianças — disse elesimplesmente.

— Ah, meu Deus — sussurrou Sashenka, manchas vermelhaszumbindo diante dos olhos. — Elas vão ser enviadas para um dessesorfanatos. Vão ser torturadas, assassinadas, estupradas. Os filhos deTrotski estão mortos. Todos os filhos de Kamenev. Todos os de Zinoviev.Eu sei o que acontece nesses lugares...

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— Calma, Sashenka. O que podemos fazer, Hércules? — perguntouVânia.

— Eles podem ficar com alguém de sua família? — perguntouSatinov. Mas Sashenka sabia que Gideon e Mouche estavam à beira doabismo; a outra filha dele, Viktoria, era uma fanática do partido, quejamais ajudaria crianças impuras; Mendel já estava nas teias da Lubianka; eos pais de Vânia, provavelmente, seriam presos depois dele.

— Se não, Branquinha e Carlo devem ser mandados para fora —acrescentou Satinov. Talvez amanhã mesmo. Para o sul. Eu tenho amigoslá que me devem favores. Lembrem-se de que eu estive na ZaKavCompor muito tempo. Fora das cidades, existem pessoas comuns, pessoasapolít icas. Quando eu trabalhei lá, às vezes eu era duro, para quebrar aresistência dos nossos inimigos; mas, quando podia, eu ajudava aspessoas.

— Quem são essas pessoas? O que vai acontecer com Branquinha eCarlo? — Sashenka estava ficando histérica: ofegante, lutava para respirar,mas não conseguia obter oxigênio suficiente.

— Sashenka, você tem que confiar em mim. Eu sou o padrinho deBranquinha. Você confia em mim?

Ela assentiu com a cabeça. Não havia escolha. Satinov era tudo oque tinham.

— Está bem, eles têm que viajar para o sul em segredo. Eu tenhoque ir para o Cáucaso esta noite, mas não posso viajar com eles. Alguémabsolutamente de confiança tem que levar as crianças “a passeio” — nadasuspeito nisso. Em algum lugar, essa pessoa vai entregar as crianças aoutra pessoa que eu tenho em mente.

— E os pais de Vânia?— Sim, minha mãe ama as crianças... — disse Vânia ansiosamente.— Não — interrompeu Satinov. — Eles estão na Granovski. Estão

sendo vigiados o tempo todo. Não seriam uma boa opção. Desculpe,Vânia, mas eles são pessoas simples e fanáticas pelo partido, umacombinação perigosa.

— Você conhece... alguém no sul que possa tomar conta dascrianças, uma pessoa realmente boa, boa o bastante para esses... anjostão amados? — perguntou Sashenka.

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Satinov segurou as mãos de Sashenka e as apertou.— Não fique se torturando. Ah, sim, eu lhe prometo, Sashenka. Eu

tenho uma pessoa em mente que você aprovaria. Mas mesmo essapessoa não vai poder saber o lugar onde as crianças vão ficardefinitivamente.

— Eles vão ficar juntos? Por favor, diga que sim. Eles se amam,precisam um do outro — e sem a gente...

Hércules abanou a cabeça.— Não. Se eles fossem para um orfanato do NKVD, para filhos de

traidores, seriam separados e seus nomes seriam mudados. Além disso,pode haver uma busca em todo o país por um irmão e uma irmã juntos, eeles seriam encontrados. Separados, eles estarão mais seguros. Existemmilhares de crianças perdidas no momento, até milhões, as estaçõesestão cheias delas.

— Mas isso quer dizer que eles vão perder um irmão e uma irmã, alémdos pais. Eles vão deixar de ser parte da mesma família. Vânia, eu nãoconsigo aguentar isso. Eu não vou conseguir levar isso à frente.

— Sim — replicou Vânia —, você vai.— Eles serão colocados em famílias separadas — prosseguiu Satinov

—, famílias que eu já tenho em mente. São casais sem filhos, semnenhum envolvimento polít ico — mas pessoas boas e decentes. Se vocêsretornarem, se isso tudo não der em nada, se vocês forem apenasexilados, vocês não vão ficar em Moscou por muito tempo, mas ascrianças estarão prontas para vocês, eu prometo. E irão se encontrar comvocês onde vocês estiverem. Mas se não, se as coisas correrem mal...

— Me diga quem são elas, por favor, essas famílias. Quem são elas? —implorou Sashenka, com a foz falhando.

— Ninguém, exceto eu, pode saber onde as crianças estão. Ajudaros filhos de Inimigos do Povo pode custar nossas cabeças. Mas eu possofazer isso, Sashenka. Os registros serão perdidos e eles irão desaparecerem segurança. Vocês não estão sozinhos. Muita gente enviou os filhospara os campos em 1937. Então, essa é a minha oferta. Se você aceitar,eu juro que vou cuidar dos seus filhos enquanto estiver respirando. Vaiser a missão da minha vida. Mas vocês têm que se decidir agora.

Vânia olhou para Sashenka e ela olhou para ele. Finalmente, ela virou-

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se para Satinov.— Ah, Hércules — disse ela com a voz embargada, assentindo com a

cabeça.Tentou abraçar Satinov, mas ele se afastou dela; ela entendeu como

ele se sentia, porque sentira isso também. Quando os amigos caídos emdesgraça eram postos na geladeira, em 1937, enquanto aguardavam aprisão, ela os evitava como se tivessem praga, porque, naqueles tempos,tais ligações poderiam ser fatais. Agora ela era a leprosa e esse amigoquerido a estava ajudando.

— Obrigada — disse ela em voz baixa. — Você é um homemdecente, um bom comunista.

— Acredite, eu não sou tão bom — foi tudo o que disse Satinov.Ele pôs-se de pé.— Primeiro, tenho que mandar uns telegramas. Preparem as crianças

ainda esta noite. Vocês podem despachá-las a qualquer momento, apartir de amanhã. Ou podem esperar até que um de vocês seja levado, efiquem sabendo mais. Você parte amanhã para Stalinabad, não é, Vânia?Se eles pegarem você, você tem como mandar uma mensagem? Euparto esta noite em um trem especial do Comitê Central. Chego em Tbilisiamanhã. Estou chefiando uma nova missão e vou ficar no sul durante ummês. É uma bênção, porque posso ajudar vocês. Vou lhes dar umendereço para vocês me enviarem um telegrama, quando estiveremprontos. E uma coisa importante: se vocês forem presos, vou precisar detempo para acomodar as crianças, antes que os órgãos comecem aprocurar por elas. Vânia, você sabe o que estou dizendo. Nem pensemem se matar. Têm que me dar cobertura, a qualquer custo. Eu vou fazerbom uso dela, entenderam? Agora, estágio um. Carolina pode ir com elesna primeira parte do percurso?

Sashenka pensou na esquelética alemã do Volga. Por algunsinstantes, hesitou. Em seu estado de apreensão, analisou a possibilidadede serem traídos pela babá. Na verdade, não podiam confiar em ninguém.

— Sim — disse então —, acho que ela iria até os confins do mundopor essas crianças.

— Chame-a — disse Vânia, mas Sashenka já estava batendo na portade Carolina. Ao ver o rosto ansioso da babá, percebeu que ela sabia que

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alguma coisa estava errada. Nem precisou explicar muito. Poucas palavrasbastaram. Lutando contra as lágrimas, compreendeu então, pela firmedeterminação no rosto de Carolina, que a babá observara o sofrimento deambos nas últimas horas.

— Venha conosco — disse Sashenka. A distinção entre patroa eempregada desapareceu em segundos; o poder de cada uma para salvar(ou destruir) a outra as tornava iguais.

— Tudo bem — disse Satinov, quando Sashenka e Carolinaretornaram. — Vocês entendem que, aconteça o que acontecer, eununca estive aqui. Vânia, Sashenka, a última vez que nos encontramos foina Granovski, no jantar em que fui com a minha mulher. Nós não falamosde polít ica. Eu não sei a respeito do paradeiro de vocês. Vocês têm queobter as passagens e os passes de Carolina o mais rápido possível.Telefonem para a estação, vejam os horários, depressa, esta noitemesmo. — Colocou dois documentos de identidade sobre a mesa. —Esses são papéis para dois órfãos do Orfanato Dzerjinski. Carolina vai viajarcom seus próprios documentos, mas os bilhetes das crianças terão nomesfalsos. As inspeções nas estações e nos trens são constantes hoje emdia. Sashenka, destrua os passaportes das crianças — não deixe quefiquem na dacha!

— Para onde Carolina vai? — perguntou Sashenka. — Ela pode levaras crianças para a cidadezinha dela?

— Os órgãos podem encontrá-la, mesmo lá — disse Satinov. — Temhavido muitas prisões de alemães do Volga na região de Rostov. Carolina,você deve tomar o trem da linha Moscou-Baku-Tbilisi na estação deSaratovski. Quando saltar do trem, em Rostov, haverá uma mensagempara você no escritório do chefe da estação, em seu próprio nome...Gunther, não é? Carolina Gunther? Ou uma pessoa com uma mensagem.Depois, você deve retornar à sua cidade. Fui claro?

Sashenka reparou que Satinov não olhou nos olhos seus velhosamigos ao partir, mas beijou a mão dela, assim como fizera quando seencontraram pela primeira vez vinte anos antes, e abraçou Vânia.

Colocando seu capuz georgiano, ele saiu pelo jardim, como entrara, eo portão rangeu ao se fechar. Sashenka o conhecia desde o inverno de1916, quando todos eram jovens. Ele a vira no leito de morte de Ariadna,

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fora o melhor amigo que ela e Vânia tiveram no mundo. Agora, a amizadeterminara — ou sofrera uma metamorfose. De amigo, ele poderia estar setransformando na única família de seus filhos. Naquela nação de puxa-sacos, covardes, oportunistas e dedos-duros, apenas ele tivera a coragemde permanecer um ser humano.

— Vamos. Temos trabalho a fazer — disse Carolina bruscamente,apertando o braço de Sashenka. — Mas primeiro vamos comer. Umamente alerta precisa de um estômago cheio.

Ela trouxe uma bandeja com queijo de cabra, tomates, pão pretoBorodinski e água mineral Narzan.

Eles não acenderam a luz da varanda, mas se atiraram à comida comose nunca antes tivessem comido. O tempo passava lentamente.Sashenka sentia-se melhor agora: tinha uma missão. Tinha que confiar emHércules Satinov. Ele dissera que seus filhos ficariam com “boas pessoas”,mas oh, como seu coração estava apertado! Ela se lembrou dosnascimentos de Branquinha e Carlo, no Kremlevka, o hospital do Kremlin,na Granovski. Branquinha foi fácil: emergira com sua cabeça loura edormira a primeira noite no peito de Sashenka... Agora, falavainterminavelmente sobre almofadas e borboletas (já conhecia os nomesde algumas) e detestava ovos. Carlo precisava de seus onze carinhosantes de dormir e acordava de noite pedindo um abraço. Detestavaiogurte e tinha uma coleção de coelhos; quando necessitava de açúcarentre as refeições, comia biscoitos Pechene, seus favoritos, aqueles como Kremlin na lata; e estava sempre querendo visitar a nova estação dometrô, com seus saguões de mármore e cúpulas de vidro, para viajar nostrens.

Deveria tomar nota dessas coisas para aquelas “boas pessoas”?Poderia falar com alguém? Quem saberia de tudo isso — exceto a mãe?Começou a tremer de novo.

— Tenha disciplina! Precisamos ser práticos! — A voz de Vâniaatalhou seu terror.

Sashenka se contraiu como se tocada por um bloco de gelo.Não conseguia escrever nada e as crianças só poderiam carregar

poucas coisas — e nada que as ligasse a seus pais. Não havia tempo parasentimentalismos, lágrimas, culpa. Sashenka agora era uma mãe, nada

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mais, apenas uma mãe protegendo os filhotes. Tinha que salvá-los dosorfanatos que Bênia descrevera. Quando tudo estivesse preparado, sehouvesse tempo, poderia saborear a presença daqueles tesouros vivos,conversar um pouco com eles. E chorar à vontade.

Então percebeu que a comida não tinha gosto. O jardim poderia serde papelão; os jasmins, os lilases e as madressilvas cheiravam adecomposição; o pônei, os coelhos, os esquilos, o resto de sua vida, tudopoderia apodrecer, pelo que lhe dizia respeito, se ao menos pudesse criaros filhos, se ao menos pudesse ser livre para ficar com eles...

Aqui estou eu, abandonado e órfão, sem ninguém para cuidar demim... Nunca aquela velha canção fora tão apropriada e insuportável.

— Vânia, temos que pensar com cuidado. Esta pode ser nossa últimanoite juntos. O que vamos dizer a eles? — perguntou ela, engasgandocom as palavras.

— Quanto menos, melhor — disse Vânia. — Eles vão ter queesquecer que nós existimos. Branquinha vai se lembrar de alguma coisa,mas Carlo só tem 3 anos. Ele não vai nem... — Ele não conseguiu falarmais nada. Sashenka segurou a mão de Carolina.

— Carolina, vamos fazer as malas deles. Temos que achar coisasquentes, para que eles não passem frio.

Elas foram até o quarto das crianças, onde Sashenka começou aselecionar roupas, que entregava a Carolina. A cada vez, levava avestimenta até o nariz e inalava o aroma de feno e baunilha.

Eu dei a vida a essas crianças, pensou Sashenka, mas elas nunca mepertenceram. Agora, terão que viver sem mim, como se eu nunca tivesseexistido.

28

O velho Razum, o motorista, com a bebida da noite anterior escorrendopelas crateras dos poros, chegou de madrugada para conduzir Vânia até aestação de Moscou. Buzinou do lado de fora do portão e Sashenka saiude casa, em sua camisola cor de malva. Era uma manhã de maio, fresca,

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radiosa e estimulante. O orvalho na grama cintilava como uma chuva dediamantes, e as rosas estavam brotando. As crianças já estavam de pé eCarlo pulava na cama deles.

— Mamãe, posso dizer uma coisa...Vânia — que bebera durante toda a noite e estava suando vodca —

foi até a sala de recreação para beijar as crianças. Sashenka sabia que eledesejava lhes dizer muitas coisas: conselhos, ditados, erros a seremevitados — joias que todos os pais gostam de transmitir aos filhos, antesde partir em viagem. Mas as crianças estavam superexcitadas e nãoquiseram nem mesmo sentar em seus joelhos.

— Eu não quero beijar o papotchka, você quer, Branquinha? — Carloapontou para o pai, que estava de pé, vestido com o uniforme completodo NKVD, botas, quepe, três fitas no colarinho vermelho, coldre e acorreia de couro que cruzava o peito.

— Nós só queremos beijar a mamãe e Carolina. O papai é ummonstro terrível! Papai vai nos engolir e cuspir para fora! — berrouBranquinha, saltitando como um cabrito.

Ambos pulavam em torno de Vânia. Com lágrimas nos olhos,Sashenka o observou, enquanto ele os levantava e, por apenas algunsinstantes, pressionava o rosto, os lábios e o nariz em cada um deles.

— Ai, papai, você está espetando! — gritou Carlo. — Você memachucou!

— Eu não quero beijar seu rosto espetado — disse Branquinha. —Beije a minha almofada querida. Leve ela com você!

— Você quer que eu leve a sua favorita? — perguntou Vânia,comovido.

— Quero, para você se lembrar de mim, mas prometa que vai medevolver, papotchka!

Os lábios de Vânia tremeram, enquanto ele pegava a pequenaalmofada rosa e a colocava no bolso. Então, levantou Branquinha e asegurou por um momento.

— Me larga, papotchka! Você está com um cheiro esquisito! — E saiucorrendo, pulando sobre as duas pequenas malas de lona que estavamperto da porta.

Vânia começou a andar, lágrimas correndo pelo rosto não barbeado.

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Carlo correu atrás dele.— Papai! Eu amo você aqui — disse ele —, dentro do meu coração.

Deixe eu fazer um carinho em você, porque você está chorando.Vânia parou e levantou o filho, que limpou as lágrimas com seu

coelhinho.— Por que você está triste, papai? — perguntou Branquinha, da

varanda.— Eu não gosto de ir embora sem vocês — disse Vânia, pousando

Carlo gentilmente. — Eu vou voltar logo, mas, enquanto eu estiver fora,se vocês quiserem saber onde eu estou, olhem para as estrelas no céu,como eu ensinei a vocês. Onde a Ursa Maior estiver, é lá que eu estou.

Sashenka foi com ele até a porta. Ele a tomou nos braços, levantou-a e a abraçou com tanta força que os chinelos dela caíram.

— Casar com você... — ele mal podia articular as palavras — ...melhor decisão... na vida. Não se preocupe, isso vai terminar, mas, se nãoterminar, nós temos nosso plano. Ele se virou para Carolina e fez umaprofunda mesura.

Carolina apontou para a frente o queixo poderoso e estendeu a mão,que ele apertou, empertigado como em uma parada.

— Obrigado, Carolina! — Então a segurou, também, e abraçou seucorpo esquelético.

Razum manobrara o carro. Vânia embarcou e o carro partiu. Sashenkaficou observando o veículo se afastar; depois correu para dentro de casae se atirou em sua cama. Como poderia tudo aquilo estar chegando aofim? Ainda não conseguia acreditar inteiramente.

Tentou imaginar onde Bênia Golden poderia estar, e Mendel, masnão conseguiu. Sentiu-se sem escrúpulos: agora não havia mais ninguém,senão ela, Vânia e as crianças. Ninguém. Deveria sentir pena de Bênia,que a amava, e de Mendel também — mas não sentia. Eles quemorressem, para que ela e seus filhos pudessem ficar juntos.

Sentiu um peso na cama.— O que houve? Mamotchka está chorando. Você está triste porque

o papotchka foi embora? — perguntou Branquinha.— Mamãe, mamãe, posso dizer uma coisa para você? Vou beijar você

e fazer carinho em você, mamãe — disse Carlo, com seus olhos castanhos

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nebulosos, como os de um sedutor em um filme. Então, beijou-a nonariz.

— Queridos?— Sim, mamãe.— Vocês vão fazer uma viagem, uma grande aventura.— Com você e papai?— Não, acho que não, Branquinha. Mas vocês amam Carolina, não

amam? Vocês vão com ela e vocês nunca vão falar da família de vocêsnem de nada que ouviram em casa.

— Nós já sabemos disso — disse Branquinha, séria. — O papai semprediz: “Nada de tagarelice.”

— E você e papai? — perguntou Carlo, com um olhar ansioso.— Bem, Carlo, nós vamos chegar depois. Se a gente puder, ou

quando a gente puder... Mas sempre vamos estar perto de vocês,sempre...

— Claro que vocês vão, boba! — disse Branquinha. — Nós vamos ficarjuntos sempre e sempre.

29

No domingo à tarde, Sashenka regressou à cidade, com as crianças.Então tudo começou.

Os guardas na Granovski foram amáveis como sempre — mas haviaum novo sujeito. Que expressão era aquela em seus olhos? Ele saberiaque Vânia estava em Stalinabad? Saberia por quê? Haveria um por quê?Marfa e Nikolai, os pais de Vânia, e outros anciãos, estavam sentados emsuas cadeiras no pátio: por que o pai de Vânia não parou de ler o jornalpara falar com ela? Que olhar furtivo era aquele que lhe lançara o velhopai de Andreiev — teria seu filho, um graduado membro do Politburo,comentado alguma coisa? Teria avisado o pai para tomar cuidado comaqueles Palitsins, para não deixar os filhos irem brincar na casa deles poralgum tempo? O zelador acenou, mas por que não disse alô nem ajudoua carregar as malas? Ele sempre ajudava. Saberia de alguma coisa?

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Um jovem na rua, usando um casaco de gabardine e um chapéu defeltro, observou a chegada deles. Um tchekista? Os guardas na guaritafizeram uma anotação: deviam estar vigiando. Sabiam de alguma coisa. Nocorredor do apartamento, a criada do marechal Budionni se demoroulimpando as escadas. Uma informante? Era uma agonia. Era um absurdo.O círculo de confiança e desespero girava dentro dela, rangendoritmadamente, como um velho carrossel de circo.

Era domingo à noite e ela estava na cama. Havia um buraco em seuventre. Um amargor cobria sua língua. O medo a atingira de novo, oterror de perder os filhos e de morrer. Mas ela não tinha medo de sermorta: jovens que se tornavam revolucionários estavam sempre próximosda forca. Quando ela viajava nos trens do Agitprop, durante a GuerraCivil, sempre estivera preparada para encarar a morte a qualquermomento, caso fosse capturada pelos Brancos. Ser bolchevique era isso.Mas desde que tivera Branquinha e Carlo, sentia a morte como um ladrãona noite, o bandoleiro da estrada que roubaria seus filhos. Apalpava osseios, à procura de tumores cancerosos; tinha medo da gripe e datuberculose — o que seria aquela tosse? Por favor, por favor, suplicava aoDestino, dê-me tempo para amar e acarinhar meus filhos. Dê-me os anosnecessários para que eu os veja casados, com seus próprios filhos.

Quando o Terror surgiu, ela viu outros pais desaparecerem e seusfilhos sumirem depois deles, que nunca mais brincaram às margens do rio,ou ali na Granovski. Mas aqueles pais tinham se desviado da linha dopartido e agiram de forma imprudente, insincera e impura. Pareciamcomunistas honestos, mas, na verdade, usavam máscaras. O partido vinhaem primeiro lugar e eles haviam errado. Ela sempre se prometera quenunca faria aquilo. Mas, de alguma forma, fizera exatamente aquilo.

Escureceu e Sashenka tentou dormir, somente para serbombardeada com fantasias de horror, torturas, prisões e rostos decrianças chorando. Ela tremia e sua pulsação estava acelerada; iria ter umataque cardíaco? Vânia não telefonara. Dormiu espasmodicamente, deleve, nunca mergulhando no sono. Viu sua mãe morta, sua mãe viva, suamãe jovem, seu pai levando um tiro na nuca na frente de seus filhos.

— Quem é esse homem? — perguntou Branquinha.— Você não conhece o seu deduchka, seu avô?

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— O que acontece com ele quando ele morre? — perguntou Carlo.— Ele vira um fantasma?

Sashenka acordou suando e tremendo, entrou no quarto dascrianças e deitou-se junto com Carlo, mal podendo acreditar que ummenino tão adorável poderia existir em um mundo assim. Pousou o rostono ombro dele. Sua pele era lisa e macia. Ela acariciou suas costas nuas edormiu.

Quando acordou, Carlo estava lhe fazendo um afago, o hálito doceperto de seu rosto. Que alegria!

— Mamotchka, posso dizer uma coisa para você? Tem alguémbatendo na porta.

Ela sentou-se. Tudo voltou. Náuseas e vertigem a assaltaram. Asbatidas eram tão altas, tão furiosas.

Beijou ambos os filhos e se aproximou da porta.— Abra!— Quem é? — gritou Branquinha.— É Razum! — disse o motorista. — Telegrama.Sashenka hesitou. Respirou fundo. Abriu a porta.— Bom dia, camarada — sorriu Razum. — Lindo dia! E uma mensagem

do patrão.

EM STALINABAD.SENTINDO BEM.

BEIJOS NAS CRIANÇAS.EM CASA QUARTA. VP

Sashenka se sentiu radiante, certa de que nada de ruim iriaacontecer. Imaginara tudo. Por que um comissário-assistente, comoVânia, não poderia ser enviado a Stalinabad em um trabalho temporário?Acontecia o tempo todo; nem todos os que recebiam missões em outrasregiões eram presos. Satinov também tinha sido despachado para aGeórgia, por alguns dias, e ninguém tinha sugerido que ele estava emapuros.

Enquanto se vestia para ir para a revista, pensou friamente nosinimigos e traidores, como fizera muitas vezes antes, quando os órgãos

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“investigavam” aqueles amigos que jamais retornavam. Estariaperigosamente ligada a Bênia Golden por intermédio da revista? Klavdiatelefonara para o apparat cultural de Andrei Jdanov, na Praça Velha, epara Fadeiev, na União dos Escritores. Ambos o tinham aprovado, entãoela estava coberta. Ela e Bênia haviam se encontrado para conversarsobre a reportagem. Não havia vínculo pessoal entre eles. Subitamente,sentiu-se invadida pelo remorso. Amava apenas seus filhos, seu marido e asi mesma — e mais ninguém.

Satinov estaria enganado? Talvez a única ligação entre Mendel eBênia fosse que ambos eram proeminentes, e era isso que os punha emperigo. Antes de partir, Bênia lhe dissera que outros escritores e artistashaviam sido presos recentemente: Babel, para começar, Koltsov, ojornalista, Meyerhold, o diretor de teatro. Talvez eles estivessemconectados? Vânia tinha sussurrado que um novo julgamento espetacularestava sendo planejado, protagonizado por Iejov, o “Comissário de Ferro”caído em desgraça — e que alguns diplomatas e intelectuais tambémseriam jogados no caldeirão. O pesadelo seria apenas esse?

Ela beijou os filhos e abraçou Carolina. Vestiu seu terninho bege debotões brancos, o favorito, e a blusa com a grande gola branca; passouum pouquinho de perfume Red Moskva atrás das orelhas.Cumprimentando o zelador e os guardas, foi para o trabalho. A Granovskiera uma rua elegante, o prédio rosado era elegante, um lugar maravilhosopara se viver. Rua abaixo, erguia-se o Kremlevka, onde os melhoresespecialistas tinham feito o parto de seus bebês.

Ela saiu da Granovski perto da Universidade de Moscou, ondeBranquinha e Carlo estudariam um dia.

Uma brisa deliciosa dançava ao seu redor, e ela sorriu ao passar peloKremlin, olhando afetuosamente para a graciosa janelinha do requintadoPalácio das Diversões, perto do muro dos Jardins de Alexandre, ondeStalin vivera até o suicídio de Nádia, sua esposa. Enquanto cruzava aManege e passava pelo Hotel Nacional, avistou o esplendor triangular doEdifício Sovnarkom, onde Stalin trabalhava e vivia, onde a luz permaneciaacesa durante toda a noite. Obrigada, camarada Stalin, você sempre sabea coisa certa a ser feita, telegrafou ela, mentalmente, através do arambarino de um dia ensolarado em Moscou. Você conheceu Branquinha,

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você compreende tudo. Saúde e longa vida para você, JosefVissarionovitch!

Com um passo levemente saltitante, virou à esquerda, na rua Gorki.À direita, estava o prédio onde vivia tio Gideon, em um apartamentoespaçoso, perto de outros escritores famosos, como Ilia Ehrenburg.Caminhões roncavam pela rua, transportando cimento para o novo HotelMoskva, que se erguia como um nobre templo de pedras; Lincolns elimusines ZiS moviam-se rapidamente pela avenida, em direção ao Kremlin;uma carroça puxada por um tordilho estava estacionada em frente à sededa prefeitura, um antigo palácio. Moscou ainda estava em formação, eraainda uma coleção de vilarejos, mas Sashenka sentia-se bem na cidade.Subindo a colina até o topo, passou por homens e mulheres quetrabalhavam nos novos prédios, milicianos que rodavam seus cassetetes,crianças a caminho da escola e Jovens Pioneiras, com lenços vermelhos nopescoço. Antes de chegar à estação Bielo-Russa, avistou a bela estátuade Puchkin — e dobrou na Petrovka, com suas decrépitas barraquinhas,que vendiam pirojki fritos.

Na redação, convocou os editores para se sentarem à mesa emforma de T.

— Entrem, camaradas. Sentem-se! Quais são suas ideias para aedição de aniversário do camarada Stalin, em dezembro?

Os dias transcorreram de forma leve e graciosa, como patins novosem gelo liso.

30

— Papai voltou! — gritou Branquinha.— O que você está fazendo fora da cama? — Sashenka estava

vestida com a camisola e um agasalho caseiro. — Já para a cama! É quasemeia-noite.

— Razum está na porta com o papai!— Papai voltou? — Carlo, de pijama azul, emergiu da cama todo

desgrenhado e correu batendo com os pés no assoalho do apartamento.

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— Ele está na porta! — Branquinha pulava para cima e para baixo. —Podemos ficar acordados? Por favor, mamãe!

— Claro! — Ela abriu a porta.— Olá, Razum, você trouxe ele? Ele está atrasado, como sempre...— Para trás, não façam besteiras — disse Razum em voz alta, com um

bafo de vodca e alho. Ele estava de pé, pernas bem separadas, pistola namão, vestido com seu habitual uniforme esfarrapado do NKVD. —Entrem, rapazes, é aqui! Olhem como eles vivem, olhem o que o partidodeu para ele, o chefe gordão — e olhem como ele retribuiu!

Razum não estava sozinho: quatro tchekistas estavam atrás dele, e,atrás dos tchekistas, estava o zelador, suado e embaraçado, remexendoem um extravagante chaveiro com uma centena de chaves. Ostchekistas passaram por ela e entraram no apartamento.

— Ah, meu Deus, começou. — As pernas de Sashenka quasecederam, e ela se encostou na parede.

Um oficial graduado, um comissário de rosto estreito, com duas fitasno uniforme, para o qual era magro demais, parou à frente dela.

— Ordens para revistar este apartamento, ordens assinadas por L.P.Beria, Narkom, NKVD.

Razum empurrou o magricela para o lado, tão empolgado estava emfazer parte da operação.

— Nós prendemos Palitsin na estação Saratovski quando clareou odia. Ele deu um soco num deles, aquele Vânia Palitsin.

— Chega, camarada — disse o magricela que estava no comando.— Onde está ele? — perguntou Sashenka ansiosamente. Então o

trem de Vânia estava no horário. Razum (provavelmente excluído dosegredo, para não avisar o patrão) fora até a estação para encontrá-lo eVânia fora preso naquele lugar e naquela hora. A grotesca pantomima deRazum era uma tentativa desesperada de provar sua lealdade e salvar apele. Sashenka sabia o bastante para perceber que Vânia devia ter sidolevado para a Prisão Interna, para o que eles chamavam de “O Centro”:Lubianka.

— Nem mais uma palavra, camarada Razum — disse o magricela. —Isso é assunto nosso.

— Eu sempre desconfiei desses barins. — Razum ainda estava

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tagarelando. — Eu via quase tudo. Agora, vamos revistar o lugar, achar ospapéis que essa víbora está escondendo. Por aqui, rapazes!

O magricela e seus tchekistas já estavam no escritório. Carolinaobservava da porta de seu quarto. Será que eles tinham vindo paraprendê-la? — conjeturou Sashenka. Anseios frenéticos e pensamentosegoístas encheram sua cabeça novamente: será que ela estaria a salvo?Talvez só quisessem Vânia. Vânia que fosse preso. Que a deixassem ficarcom as crianças.

Sashenka e Carolina se entreolharam em silêncio. Seria tarde demais?As crianças seriam torturadas naquele orfanato? Como iria saber o quefazer? Vânia não enviara nenhum sinal. Carolina deveria partir agora comas crianças? Esta noite! Ou isso traria tormentos maiores?

— O que está acontecendo, mamãe? — perguntou Branquinha,abraçando a mãe.

Carlo percebeu a tormenta no barulho de botas, nas vozes altas, nomodo casual com que os tchekistas estavam abrindo gavetas e batendoas portas dos armários, no escritório, jogando papéis e fotos em uma pilhano chão. Seu rosto maleável desmoronou em três estágios: uma ligeiraqueda nos cantos dos olhos e da boca; lágrimas abundantes e traçosvincados; uma intensa vermelhidão, enquanto ele começava a berrar.

— Fiquem no quarto — gritou Sashenka, escondendo-os atrás de seucorpo. — Fiquem com Carolina.

Carolina abriu os braços, mas as crianças estavam paralisadas em tornode Sashenka, agarrando seus quadris e coxas, abrigando-se embaixo delacomo viajantes em uma tempestade.

A mãe de Vânia saiu do quarto, em uma camisola púrpura, seguidapelo marido.

— O que está havendo? — gritou ela. — O que está acontecendo?— Ela correu até o escritório e começou a empurrar os tchekistas paralonge da escrivaninha de Vânia. — Vânia é um herói! Houve algumengano! Por que ele foi preso?

— Artigo 58, eu acho! — respondeu o magricela. — Agora, fora docaminho. Eles vão retirar o cofre.

Sashenka viu os agentes secretos colocarem um lacre na porta doescritório. Quatro dos rapazes estavam lutando para carregar o cofre de

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Vânia até o elevador. Finalmente, o zelador trouxe um carrinho de metale o cofre foi levado.

— Boa noite, camarada Zeitlin-Palitsin — disse o magricela deuniforme. — Não mexa no lacre do escritório. Nós vamos voltar amanhãpara recolher mais material.

— Esperem! Vânia precisa de roupas?— O espião tem uma mala, obrigado — zombou Razum, com as mãos

nos quadris, fazendo pose. — Vou com vocês, rapazes! — gritou ele parao magricela e os outros, que estavam empilhando papéis no elevador.

— Por que você nos odeia? — perguntou-lhe Sashenka em voz baixa.— Ele vai cantar! Ele vai confessar, a hiena! — Razum disse a ela. —

Vocês, chefes, vivem como nobres! Acham que são melhores do quenós? Vocês ficaram gordos e moles. Agora estão tendo o castigo.

— Silêncio, camarada Razum, ou você também vai para o xadrez! —esganiçou-se o magricela, segurando a porta aberta. O velho Razum sevirou abruptamente, mas ao fazê-lo alguma coisa caiu de seu bolso.Gritando palavrões embriagados, ele correu atrás dos companheiros. Aporta do elevador se fechou.

Sashenka fechou a porta, encostou-se nela e afundou no chão. Carloe Branquinha afundaram junto com ela, agarrados em suas pernas. Elae st ava pensando racionalmente, tentando fazer planos com a friadeterminação de uma mãe em crise — embora suas mãos tremessem, asfaíscas vermelhas diante de seus olhos a cegassem e seu ventre estivessese contorcendo.

— Almofada! — Branquinha inclinou-se, estendeu a mão e pegou apequena almofada cor-de-rosa. — O Razum bobo deixou cair a minhaalmofada querida — e mostrou a Sashenka o pequeno objetoamarrotado.

Sashenka tirou a almofada das mãos de Branquinha, examinou-a,virou-a ao contrário e a cheirou.

— Não, Branquinha. Espere — atalhou ela, quando sua filha tentourecuperá-la.

— Eu quero minha almofadinha! — gritou Branquinha em tomlamuriento.

— Carolina! — a babá já estava lá.

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Os pais de Vânia saíram do quarto novamente e ficaram olhando acena.

— Onde está Vânia? — perguntou a mãe de Vânia. Então apontouselvagemente para Sashenka. — Eu sempre disse a ele que você era umainimiga de nossa classe, desde que nasceu. Foi você quem causou isso,não foi?

— Fiquem quietos por um momento — retrucou Sashenka. — Explicotudo mais tarde. Amanhã vocês têm que ir para a dacha ou para ovilarejo, mas agora vão para os quartos. Eu preciso pensar!

Os velhos camponeses resmungaram alguma coisa contra a rudezadela, mas se recolheram novamente.

— Aquele miserável do Razum — disse Carolina, com desprezo.— De agora em diante todo mundo é um miserável. Nós apenas

cruzamos de uma espécie para outra — disse Sashenka, segurando aalmofada rosa. — Carolina, isso estava na dacha?

— Sim.— Nós não trouxemos esta almofada, trouxemos?— Não, não trouxemos. Ela fica lá, na sala de recreação.Sashenka se virou para a filha.— Onde você achou isso, querida?— Razum deixou cair. Aquele velho bobo! Ele fede!— Mas quem tirou isso da dacha? Você viu alguém pegar a almofada?— Sim, boba. Papai levou ela. Eu dei a almofada para ele tomar conta

e ele colocou ela no bolso.— Então seu papotchka se lembrou de nós — murmurou Sashenka.

— Querido Vânia. A almofada de Branquinha: que sinal poderia ser maisapropriado? Bom e velho Razum.

— Posso ficar com ela, mamotchka?— Pode, querida do meu coração, pode ficar com ela.Sashenka olhou para Carolina e a babá olhou para ela: era uma troca

de absoluto amor maternal, um olhar de tanta importância, tãopungente, que ambas as mulheres ficaram estonteadas.

Naquele instante, Sashenka tentou tocar, provar, ver e sentir todasas impressões e os momentos preciosos das vidas dos filhos. Mas nãoconseguiu segurá-los e eles escorreram por suas mãos, levados pelo

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vento.

31

Na manhã seguinte, Sashenka dirigiu-se à redação. Certas pessoas teriampermanecido na cama, alegando doença, mas isso, por si só, poderialevantar suspeitas. A prisão do marido nem sempre implicava a prisão daesposa. Não, ela iria editar a revista como sempre fizera e enfrentaria oque acontecesse.

Ao sair, beijou os filhos, cheirando suas peles e seus cabelos. Olhouseus rostos. Beijou os olhos castanhos de Carlo e pressionou os lábios natesta sedosa de Branquinha.

— Eu amo você. Eu sempre vou amar você. Nunca se esqueça disso.Nunca — disse ela a cada um, com firmeza. Sem lágrimas. Disciplina.

— Mamãe, mamãe, posso dizer uma coisa para você? — disse Carlo.— Você é uma velha boboca! — e deu uma gargalhada com suabrincadeira malvada.

Branquinha também riu, mas tomou o lado de sua mamãe.— Não, ela não é. Mamãe é uma almofada querida. — Um grande

elogio, de fato.Carolina estava atrás deles. Os pais de Vânia vestiam os casacos.

Sashenka hesitou antes de cumprimentá-los, acenando com a cabeça.Eles acenaram também. Já não havia mais nada a dizer.

Sashenka estremeceu. Estava ansiosa para beijar Carlo e Branquinhanovamente, tão ansiosa que poderia esfolá-los com beijos. Mas, trêmula,colocou o casaco e abriu a porta.

— Mamãe, eu amo você dentro do meu coração — gritou Carlo,mostrando a língua para ela; então pegou a almofada de Branquinha esaiu correndo com ela.

— Me dá isso, seu bobo! — Branquinha correu atrás dele e ambossumiram de vista.

Sashenka aproveitou o momento e saiu, carregando sua bolsa e umapequena sacola de lona. Rapidamente. As crianças nem mesmo notaram.

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Em dado momento, ela era uma mãe com seus filhos; no momentoseguinte, desaparecera. Era como pular de um aeroplano: um segundoque mudava tudo na vida.

Enquanto descia a elegante escadaria de madeira, não conseguiaenxergar bem, lágrimas salgadas flutuavam em seus olhos.

Chegando ao saguão, porém, seus sentidos se aguçaram. Quando seaproximou, os guardas fizeram silêncio e o zelador começou a varrer oestacionamento, com espantoso entusiasmo. Ao passar pelo camaradaAndreiev, secretário do partido, e por sua esposa, Dora Khazan,comissária popular adjunta, que caminhavam na direção do ZiS, seus olhosse encontraram, mas ambos olharam através dela. Provavelmente iriamver o camarada Stalin, o camarada Molotov e o camarada Vorochilovnaquele mesmo dia, nos corredores do Kremlin, no mundo dos vivos.Talvez seus caminhos nunca mais se cruzassem.

Alegremente, acenou para os guardas. Um deles acenou de volta,mas os outros o censuraram.

Começou a caminhar. A luz, as flores dos Jardins de Alexandre, ascarroças e os cavalos, a poeira e o estrondo dos prédios em construção, afileira de Jovens Pioneiras com lenços vermelhos, cantando alegremente— nada disso ficou registrado em seu espírito.

O pavimento não parecia sólido. Ela flutuava no ar, pois seus sapatos,pés e ossos já não eram sólidos. Uma torrente de adrenalina fluía em seucorpo, junto com o ótimo café que preparara durante a noite.

Subitamente, sentiu um impulso para voltar correndo e beijar osfilhos outra vez. Tão forte que seus músculos se puseram em movimento,e ela começou a retornar. Mas conseguiu controlá-los. Mantenha o plano!Pelas crianças. Qualquer tolice, qualquer sentimentalismo idiota, podearruinar tudo.

Seu coração bateu forte e sua visão se aguçou. A acuidade maior deseus sentidos a agradou. Na rua, notou que os zeladores a observavam,enquanto limpavam os pátios. Os milicianos na esquina da Granovskicochicharam uns com os outros.

Ela parou na esquina e olhou para trás. Sim: seus sogros estavam narua. Bem na hora. A mãe de Vânia balançava sua habitual sacola de lona,mas, daquela vez, nenhuma das outras camponesas que tagarelavam no

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pátio a cumprimentou. O pai de Vânia olhou na direção de Sashenka, masnão deu mostras de reconhecê-la.

Ajudada pelo marido, a mãe de Vânia coxeou na direção oposta, comsuas pernas inchadas, fumando um cigarro.

Sashenka virou a esquina, passou pelo Kremlin, à sua direita, peloHotel Nacional, à esquerda, e subiu a rua Gorki. Mais ou menos naquelemomento, Carolina devia estar descendo as escadas com as crianças,levando-as para passear.

Seguiria na mesma direção dos avós das crianças, dobrando àesquerda no portão.

Os guardas na guarita da Granovski as observariam impassíveis: quediferença faria? O NKVD só estava interessado nos pais. Além disso, nãotinham ordens. Ainda.

Sashenka demorou-se em frente ao Nacional. Esperava que Carolinae as crianças tivessem alcançado a babuchka e o deduchka Palitsin, quelhes entregariam uma pequena mala de lona. Pertencia a Branquinha. Oplano era tirar da casa a bagagem das crianças sem que os guardaspercebessem.

Carolina deixou as crianças com os avós. Então dobrou a esquinaseguinte, à direita, e entrou na rua Gorki, que Sashenka estava prestes aatravessar. Ambas se cumprimentaram.

— Toma um café, camarada?— Claro.Entraram no Hotel Nacional e, na lanchonete, pediram uma xícara de

café. Sashenka tentou permanecer calma naquele momento decisivo —mas se sentia tão mal, tão desesperada, que sua garganta se fechou eseu estômago se contraiu, como no primeiro dia em que Lala a deixara nointernato e ela correra atrás da babá. Frenética, afastara-se da professorae disparara pelos corredores do Smolni, empurrando as outras meninas ecorrendo até os portões, onde Lala a avistara e a abraçara novamente. Ofrenesi retornara agora. Mas Carolina, ossuda e impassível, bebeu o café,beijou-a e foi embora rapidamente, carregando a pequena mala de Carlo,com roupas de inverno e de baixo, sabonete, escova de dentes e trêscoelhinhos. Sashenka reexaminou mentalmente os itens: teriam selembrado de tudo? E os biscoitos de Carlo?

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Na porta do café, Carolina virou-se para trás. Ambas trocaram umolhar carregado das mais profundas emoções — amor, gratidão, tristeza.Carolina apertou os lábios e se foi. O plano estava em andamento. Porintermédio de Razum, Vânia enviara o sinal para Sashenka agirimediatamente. Sashenka e Carolina tinham arranjado as coisas conformeas sugestões de Satinov.

Sashenka observou as estreitas costas da babá com inveja selvageme desesperada. Assim como um mutilado sente a perna ausente aocaminhar, ela sentiu, ainda sentada no café, seu corpo fantasma correratrás das crianças. Então se retesou, e pôs-se de pé. Atirou moedas namesa e começou a correr atrás de Carolina. Corria e suava, o coraçãomartelando no peito, como se estivesse tendo um ataque — quasevoava, as lágrimas batendo no chão como chuva na vidraça. Na rua, olhoupara a esquerda e para a direita. Carolina desaparecera. Meu Deus, elatinha que vê-los novamente! O soluço em sua garganta se transformouem um gemido selvagem, um som que nunca ouvira na vida. Disparou poruma rua lateral.

Então os viu. Um bonde parara a distância, emitindo fagulhas.Branquinha estava no primeiro degrau, sacudindo sua almofada rosa erindo. Sashenka pôde ver nitidamente sua grande testa branca e os anéisde cabelos claros. Segurando as sacolas na mão esquerda, Carolina ajudouCarlo a subir, enquanto este fazia graça, cantando e fingindo marchar.

O menino puxou a manga de Carolina.— Carolina, Carolina, posso dizer uma coisa para você? — Sashenka

sabia que ele estava falando isso, mas Carolina já subira os degraus. Doissoldados subiram atrás deles, ambos fumando.

— Parem! Carolina! Carlo! Branquinha! — Sashenka estava realmentegritando.

Carolina efetuou o pagamento. Sashenka só conseguia enxergar oalto das cabeças das crianças, o cabelo desgrenhado de Carlo e as trançascor de manteiga de Branquinha, que captavam a luz solar como fios deouro. Ela iria arruinar tudo, correndo daquele jeito. O NKVD a veria esaberia que ela estava tentando esconder os filhos; seria presa comoespiã; eles jogariam as crianças no Orfanato Dzerjinski, ou as fuzilariam.Mas Sashenka estava fora de controle. Continuou a correr, inclinada para

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a frente, e acabou colidindo com uma velha senhora que carregava umasacola de compras. A sacola rasgou-se e batatas rolaram pelo chão, masela não parou de correr, lágrimas esguichando no rosto. Em meio a umachuva de fagulhas, o bonde deu um solavanco. Portas se fecharam. Oveículo ganhou velocidade. Sashenka conseguiu se aproximar e vislumbraros filhos: Carolina os ajudava a sentar ao lado da janela. Uma impressãoindistinta de olhos azuis, uma testa leitosa, olhos castanhos e cabelos... eeles se foram.

Um homem empurrou Sashenka para fora do caminho e ela caiu emum portal. Sentada na soleira, ouviu-se uivando como sua mãe uivaraquando Rasputin fora morto. Pessoas passavam apressadas e olhavampara ela, ligeiramente aborrecidas. Aos poucos, conseguiu se controlar.

Os avós regressariam ao apartamento e diriam aos guardas queestavam de partida para a dacha, onde passariam o verão. Os guardasdariam de ombros. Vânia Palitsin fora preso: que diferença faria?

Sashenka pôs-se de pé e arrumou as roupas. As crianças estavam asalvo. Esperando que nenhum informante do NKVD tivesse notado suahisteria, limpou o rosto e atravessou a rua Gorki, olhando para o Kremlin epara a janela da casa de tio Gideon. Não faria sentido telefonar para ele,embora estivesse com vontade de fazê-lo. Os telefones dele poderiamestar grampeados; além disso, ele não demoraria a saber de tudo.Mentalmente, enviou-lhe seu amor. Ele viria mesmo a saber de tudo?Então, pensou no pai outra vez: onde estaria ele? Iria ela se juntar a eleem alguma sepultura esquecida? Ela não conseguia — simplesmente nãoconseguia — conceber seu próprio desaparecimento da face da Terra.

Escolheu um caminho diferente para a Petrovka, não pela praçaPuchkin, mas seguindo pela travessa Stolechnikov. Tentava assimilar tudo— os pequenos bares, o restaurante georgiano Aragvi, a banca doengraxate, o quiosque de jornais, Zviad, a barbearia mingrélia. Havia muitacoisa para se observar, mas nada permanecia em sua mente. Tudo eraescuro como a noite.

Onde estariam Branquinha e Carlo naquele momento? Não olhe parao relógio, disse a si mesma. Suponha que esteja sendo observada: elespodem perguntar por que você conferia o relógio a todo instante. Mas otrem para o sul partiria às dez da manhã e eram 9h43. Seus filhos

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estavam a caminho.

32

O porteiro se empertigou quando Sashenka chegou ao trabalho; suasecretária, Galia, ruborizou-se ao vê-la; Klavdia nem mesmo a olhouquando ela passou. Todos sabiam que Sashenka já não era uma pessoareal. Era uma não pessoa; pior: todos sabiam, de algum modo, que elaera a esposa de um inimigo, e que Vânia estava nos porões da PrisãoInterna da Lubianka — assim como Bênia Golden, seu novo escritor, comquem ela se encontrara na dacha, na noite do Dia do Trabalho, comquem deixara o escritório e com quem fora vista passeando...

Sashenka sentou-se à sua mesa. Ninguém apareceu. Ela passou o dialá, exceto por uma breve visita à cantina, onde comeu sozinha um poucod e borscht. Tentou ler as provas da revista, mas não conseguia seconcentrar. Conhecera muitos amigos e camaradas que tinham sidoespionados e vigiados, mas que continuavam seus afazeres como se nadahouvesse acontecido — e sobreviveram. Como tio Gideon. Segure seusnervos e pode ser que você fique com as crianças, prometeu a si mesma.

Voltou para casa à noite.Os tetos altos, os tacos brilhantes do assoalho, os frisos

ornamentados das paredes, o marrom brilhante da mobília de pinhocareliano, as lâmpadas verdes, com as musculosas figuras de bronze, tudoisso pertencia à sua vida com as crianças. Ela odiava o apartamento,agora, onde o silêncio ecoava. Estava ansiosa para olhar os quartos dascrianças. Não faça isso a você mesma. Isso vai quebrar sua resistência e adeixará louca, disse a si mesma. Mas só uma olhada...

Pousando a bolsa e o casaco, andou depressa pelo corredor e sejogou em seus leitos, cheirando seus travesseiros; primeiro, o deBranquinha, depois, o de Carlo. Lá, finalmente, pôde chorar. Imitou asvozes dos filhos e conversou com suas fotos. Então as queimou, todaselas, e também seus passaportes. Branquinha deixara a maioria de suasalmofadas e Carlo, a maior parte do exército de coelhinhos. Sashenka

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levou tudo para sua cama, uma companhia para as noites insones queviriam pela frente.

Depois, preparou uma mala com sua escova de dentes, roupasquentes e roupas de baixo. Escolheu as melhores, por que não?

No dia seguinte, foi para o trabalho novamente, levando sua mala. E nodia seguinte. E no outro. A tensão a estava deixando doente. Tinha agarganta inflamada, o rosto emaciado e mal conseguia comer: estariameles com alguma família? Ou em alguma estação ferroviária, sozinhos,famintos, perdidos? Ela conversava com as crianças o tempo todo, emvoz alta, como uma louca.

Durante a noite, sonhou com Bênia Golden. Acordou cheia deremorso, culpa, desgosto e — horror dos horrores — com uma excitaçãofebril. De repente, teve ódio dele. Gostaria de matá-lo com as mãos,arrancar seus olhos: era ele, com sua rebeldia presunçosa, sua recusa emescrever, sua curiosidade a respeito dos órgãos, seus amigos famosos emParis e Madri — era ele, com suas conexões, que iria causar sua morte eprivá-la dos filhos? Sim, ela o amara, sim, ele lhe proporcionara a maistresloucada felicidade. Mas em comparação com o amor que ela tinhapelos filhos — isso era pó!

No terceiro dia, Sashenka notou algo diferente no olhar dos guardas.Quando cumprimentou o zelador, ele olhou para o alto, em direcão aoseu apartamento, e ela soube que estava para acontecer. Então parounas escadas, quase aliviada por sair do limbo.

Quando entrou no apartamento, o escritório estava sem o lacre.Sentiu cheiro de cravos. Passou pelo Santuário Vermelho, entrou na salae viu pratos de comida, meio vazios, na mesa de jantar. Um homemmuito grande, vestindo um uniforme do NKVD especialmenteconfeccionado, estava deitado com as botas sobre o divã — querangeram quando ele se levantou, brindando Sashenka com um sorrisofaiscante. Sua pele era morena e brilhante, seu cabelo, crespo, e seusdedos grossos e morenos estavam cobertos de anéis coloridos. O cheirode sua colônia de cravos era tão penetrante que Sashenka podia sentirseu gosto. Ele não estava sozinho. Dois tchekistas se levantaram

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cambaleando, talvez um tanto bêbados, rindo zombeteiramente.Sashenka estava usando um vestido rosa, de verão. Fizera o cabelo

há pouco tempo, no novo estilo, ondulado com permanente, e seu rostoestava maquiado. Empertigou-se então, com a postura mais orgulhosapossível.

— Camaradas, desculpem por deixar vocês esperando. Estão aqui hámuito tempo? Eu sou Sashenka Zeitlin-Palitsin, que Lenin chamava decamarada Raposa.

— Bem, camarada, que linda recepção — disse Bogdan “Touro”Kobilov, comissário-geral da Segurança Estatal (Segundo Grau) ecomissário popular adjunto do NKVD. — Você sabia que o camarada Beriaé um admirador seu?

Sashenka respirou fundo, dilatando as narinas e apertando os olhos.— Eu estava esperando vocês a qualquer momento. É quase um

prazer...— Agora sei por que o camarada Beria fala tão bem de você — disse

ele.Como muitos homens gigantescos, a voz dele era melíflua, quase

efeminada. Sashenka sentiu desprezo por ele. Pensou em seus filhos, quedeveriam estar bem longe — já tinham partido há três noites. Sabia que,dentro de minutos, estaria saindo dos limites do mundo, mas se lembroudo que tinha de fazer. Friamente, puxou um cigarro e o segurou comouma estrela de cinema. Kobilov, agitando os anéis nos dedos ambarinos,inclinou-se e acendeu-lhe o cigarro. Ela podia sentir o cheiro de sua peleoleosa — e de cravos.

— Obrigada, camarada. — Ela deu uma tragada, fechando os olhosao expelir a fumaça. Alguém tocava piano em um apartamento próximo,e uma criança cantava: uma família em um mundo normal. — O que vocêquer?

— Quando se trata de buscar uma mulher bonita — disse Kobilov,franzindo o nariz para ela —, gosto de fazer isso pessoalmente.

33

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Mil e quinhentos quilômetros ao sul, na pequena cidade de Tbilisi, umamulher grisalha arrumava a mala. Vivia sozinha em um quarto perto docentro, numa travessa escura e coberta de mato, pouco abaixo dosbanhos sulfúricos, da velha cidade e da Igreja Ortodoxa, com suaarredondada torre georgiana.

O pequeno quarto, que abrigava uma cama, uma lâmpada, umarmário e velhas fotos de uma rica família — onde pessoas com bigodesencerados, chapéus-coco e terninhos de marinheiro posavam ao lado delimusines reluzentes —, ficava em uma elegante mansão, que jápertencera a uma linhagem de príncipes georgianos, o último dos quaisfora um excêntrico antiquário, colecionador de livros e proprietário dosbanhos sulfúricos. (Era, atualmente, motorista de táxi em Paris.) Naépoca da Revolução de 1905, ele vendera o palácio para um magnata dopetróleo, judeu, que morava em São Petersburgo. A mansão era agoradividida em pequenos apartamentos, e a magnífica biblioteca do primeiroandar tornara-se um café extravagante, de um tipo que já não existia emMoscou, ou mesmo na Rússia propriamente dita. Mas na Geórgia, apesardas matanças recentes, que haviam dizimado a intelligentsia, o curiosocafé, com seus velhos livros úmidos, castiçais transbordantes de cera edensos vinhedos espiralados, que escondiam as janelas cobertas de vapor,ainda prosperava, servindo café turco e pratos georgianos.

A dama grisalha trabalhava no café, como garçonete, durante todo odia. Não ganhava muito, mas era um emprego decente para aquelestempos. Ela tinha os papéis em ordem; tudo conforme a lei. Guardavasilêncio a respeito de si mesma e nunca tagarelava com os clientes, nemmesmo com as outras garçonetes, que haviam desistido de fofocar sobreela. Era claro que era burguesa e que não pertencia àquele lugar, mas ascidades das províncias, naqueles tempos, estavam cheias de proscritos —e a Geórgia era mais tolerante que qualquer outro lugar. Dizia-se que ocomunismo lá não se estendia muito além dos limites da capital. Ela jávivera com um homem mais velho, mas ele se fora e ela não demonstravanenhum interesse em discutir sua vida privada.

A garçonete dominava o russo e seu georgiano era mais do quesatisfatório — embora falasse ambas as línguas com sotaque. Tratavatodos com cortesia, mas era notório que reservava sua verdadeira

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solicitude para a biblioteca. A cozinha e o bar do café tinham sidoimprovisados entre duas estantes, na extremidade da velha sala escura. Aumidade das chaleiras e dos caldeirões apodrecera a madeira; os livrosdescascavam e se deformavam; as velhas fotos estavam amareladas eatacadas por fungos. Mas ela fazia o que podia: espanava os livros e, àsvezes, levava-os para secar no próprio quarto, no andar de cima.

No dia anterior, a mulher pedira uma semana de licença, coisa quejamais acontecera. Mas ela tinha anos de férias nunca tiradas. Assim,Tengiz, o gerente, concedeu-lhe duas semanas, em vez de uma.

Hoje, ela acordara cedo, atravessara a praça Beria e fora até oMercado Armênio, onde comprara provisões. Retornando ao quarto, nãoencheu a mala com roupas, e sim com um saco de achatados lavashi —pães georgianos —, carnes curadas e doces. Então tirou da parede a fotode uma garota desengonçada, vestindo o uniforme de um internatotsarista, e removeu a parte traseira da moldura, de onde extraiu algumasnotas. Escondeu duzentos rublos no espartilho, beijou a fotografia e arecolocou na parede.

Inspecionou no espelho, com um muxoxo de desagrado, seu rostoem forma de coração: as bochechas estavam ásperas, curtidas, e tinhabolsas sob os olhos. Suas roupas eram decentes, mas puídas nasextremidades. Aparentava 50 anos, mas era mais jovem. Como é possível,perguntou a si mesma, que você tenha vindo parar aqui? Abanou acabeça e sorriu.

Algumas horas mais tarde, tomou o bonde até a estação de trens,onde comprou uma passagem para Baku e, de lá, para Rostov-no-Don.Trocou de roupa na estação de Baku, um lugar repleto de muçulmanos,turcos e tártaros — em uniformes soviéticos, barretes e túnicas —, quecarregavam galinhas, carneiros e crianças. Uma família lhe ofereceu umpouco de plov turco, um ensopado frio de carneiro, e ela se sentiu grata.Ficou esperando o trem. Quando foi feita a chamada para o embarque,ela teve a impressão de que todos os que estavam na estação corriampara tomar aquele trem; mas seus amigos turcos a ajudaram a entrar novagão. Ela sentou-se perto deles e, mais uma vez, ficou grata pela ajuda.No trem, tentou dormir, mas não conseguiu deixar de refletir sobre osestranhos eventos da semana anterior.

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Quatro dias antes, um oficial suado, vestindo uma túnica do partido,aparecera para inspecionar o prédio e examinar as licenças dosempregados do café. Todos foram convocados a ir até o quartel-generaldo partido, o antigo Palácio do Vice-Rei, na avenida Beria, para terem ospapéis verificados. Tengiz pedira a ela que fosse antes dos outros. Eraestranho, mas ninguém fazia perguntas: inspeções, limpezas e expurgosfaziam parte do dia a dia. Seu marido desaparecera, já deveria estarmorto; ela esperava que viessem buscá-la, também. Certamente, seriapresa e desapareceria, por sua vez. Bem, isso ainda faria algumadiferença?

A mulher subiu a colina até o esplêndido Palácio do Vice-Rei, de ondeo primeiro-secretário governava a Geórgia. A espera a deixou bastanteansiosa. Havia muitas perguntas que ela tinha vontade de fazer. Mas,como todo mundo, sentia-se indefesa perante aquele Estado inflexível ecolossal. Perguntas feitas por você poderiam se transformar em perguntassobre você — era melhor não chamar a atenção. Como as outras pessoas,ela esperou. Jovens e velhos tossiam, coçavam-se e resmungavam naimunda antessala, com suas desconjuntadas janelas de madeira.

Quando chegou sua vez, ela entregou seus papéis através de umguichê. Foi então encaminhada a um escritório sujo e sem pintura.Preparou-se para a rude tirania dos burocratas georgianos de baixoescalão. Mas o oficial que a aguardava não era daquele tipo, de formanenhuma. Um homem esguio e bonito, claramente um chefe do partido,levantou-se, quando ela entrou, e puxou uma cadeira para ela. Depois,ocupou seu lugar atrás da mesa. Sua túnica stalinka se ajustavaperfeitamente a seus ombros largos e físico esbelto. Ele irradiava aenergia da geração de Stalin e parecia sofisticado demais para aqueleescritório decrépito. Seus olhos eram azuis, brilhantes e inquiridores. Deveser um moscovita, alguém poderoso, pensou ela.

— Audrey Lewis?Ela assentiu.— Não fique nervosa. Eu sempre soube que você estava aqui, em

Tbilisi. Lembra-se de mim? Eu vi você há muito tempo, em SãoPetersburgo. Na casa da avenida Marítima, no dia em que a mãe deSashenka morreu. Três camaradas vieram buscar Sashenka naquele dia.

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Um era Mendel, o tio dela. O segundo era Vânia. Eu era o terceiro.Agora, Lala, eu quero que você faça uma coisa.

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Naquela noite de verão, em Moscou, durante todo o trajeto, Sashenkainalou o odor de suor, mesclado à colônia de cravos, que emanava dopescoço e das coxas enormes do comissário Kobilov. Estava espremida aolado dele, que se deliciava com a proximidade e, a cada instante, mudavaa posição de seu traseiro mastodôntico, franzindo o nariz para ela comoum gato gigantesco.

O carro subiu a colina onde se erguia o lúgubre prédio de granito daLubianka, o Comissariado Popular para Assuntos Internos, e entrou emuma rua lateral. Dando uma guinada para transpor os portões que davamacesso a um pátio, trouxe o hálito condimentado de Kobilov para bemperto do rosto de Sashenka. Mas ela já não se importava. Tentava semanter serena, para conservar energia, como todos os prisioneiros devemfazer.

O pátio era invisível do exterior. Suas luzes iluminavam um cenárioque lembrava uma estação ferroviária — uma estação em que as pessoaschegavam, mas de onde jamais partiam. Sashenka presumiu que aqueleprédio oculto, com nove andares, fosse a temida Prisão Interna.Caminhonetes Corvo Negro e caminhões Stolipin, cujas portas abertasrevelavam jaulas, desembarcavam homens de pijama, com olhos turvos elábios ensanguentados, mulheres em vestidos de noite e maquiagemborrada, que gritavam, malas surradas e montanhas de papéis malamarrados. Cada um dos recém-chegados tinha o rosto macilento de umapessoa de boa situação que despencava em um abismo de medo.

Um oficial abriu a porta do carro. Com a respiração ofegante, Kobilovergueu as botas, desajeitadamente, e tentou sair, inclinando-se para afrente. Mas seu peso o fez cair no chão. O oficial o ajudou a se erguer.

A porta do lado de Sashenka foi aberta e um tchekista agarrou seubraço, guiando-a até um amplo porão com arcos carcomidos e

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desgastadas paredes de madeira, onde outras pessoas desnorteadas sealinhavam em filas. O recinto fedia a sopa de repolho, urina e desespero.Sashenka — um caso especial, notou ela pesarosa — foi conduzida até aparte da frente.

— Eu sou uma mulher soviética e integrante do partido — disse ela aum entediado tchekista.

Ela ajudara a construir o sistema soviético; acreditava que aquelamáquina opressiva era necessária para criar um novo mundo, conforme aciência do materialismo dialético marxista-leninista-stalinista; ela queria queos tchekistas soubessem que ela ainda acreditava naquilo, embora aquiloestivesse prestes a devorá-la. Mas o tchekista apenas acenou com acabeça e lhe disse para esvaziar os bolsos, a bolsa e a mala, agitando amão para apressá-la. Então, começou a preencher um formulário. Nomecompleto, patronímico, ano de nascimento. Olhou para ela. Cor docabelo? Cor dos olhos? Sinais particulares? Pressionou os dedos dela emuma almofada com tinta e tirou suas impressões digitais. Ela recebeu umnúmero de prisioneiro.

— Relógio? Anéis? Dinheiro? — Ele tomou nota de seus pertences elhe entregou o formulário para assinar, destacando um recibo. Atrás dela,outros corpos a pressionavam. — Mulheres, por aqui! — apontou.

Sashenka se lembrou de sua prisão, em São Petersburgo, com asmesmas perguntas — mas agora sentia muito mais medo. O ImpérioTsarista era brando; ela havia ajudado a criar essa URSS devoradora degente.

Ela entrou em um pequeno aposento, onde uma mulher de casacobranco estava sentada a uma escrivaninha, fumando um pungente cigarromakhorka.

— Tire a roupa — rosnou a mulher.Sashenka removeu o vestido e os sapatos. Permaneceu de pé,

vestida com a roupa de baixo e as meias, tremendo ligeiramente, nafrialdade noturna do concreto. Lembrou-se de que sua roupa de baixoera de seda. Os olhinhos da mulher também notaram isso.

— Tire tudo! Não desperdice o meu tempo e não seja convencida!— A mulher cravou o cigarro no canto da boca e arregaçou as mangas,revelando antebraços poderosos e peludos.

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Sashenka removeu o sutiã e cobriu os seios com as mãos. Não dospiores, depois de dois filhos, disse a si mesma estoicamente.

— E o resto!Ela despiu as calcinhas e, timidamente, colocou as mãos sobre o

púbis.— Ninguém está interessada em você nem no seu rabinho bonito.

Mexa-se! Abra a boca!A mulher enfiou os dedos na boca de Sashenka. Cheiravam a queijo

rançoso.— Mãos na mesa agora. Abra as pernas.Empurrando para baixo a cabeça de Sashenka, pesquisou

dolorosamente sua vagina e, depois, o seu reto. A dor da invasão fezSashenka perder o fôlego.

— Coragem, princesa. Não foi nenhuma tortura! Vista-se. — Elapegou os sapatos de Sashenka. — Tire os cordões. Me dê o cinto.Canetas não são permitidas. A mulher mediu a altura de Sashenka e aanotou. — Senta!

Sashenka se deixou cair em uma cadeira, aliviada por estarnovamente vestida.

— Vlad! — gritou a mulher.Um velho fotógrafo magricela, com o cabelo gorduroso penteado

para trás, uma cabeça minúscula e um terno azul surrado, apareceu nasala: era, evidentemente, um alcoólatra; estava tremendo e malconseguia segurar sua pesada câmera, de onde saía um flash redondo,que lembrava um girassol cromado.

— Olhe para mim — disse ele.Sashenka olhou para a câmera, a princípio com ar cansado; mas

depois ajeitou os cabelos tentando melhorar a aparência. E se, um dia, ascrianças vissem aquela foto? Então fixou os olhos nas lentes, tentandotransmitir uma mensagem: Branquinha e Carlo — eu amo vocês! Esta é amãe de vocês! Lembrem-se de mim! Sonhem comigo!

— Fique parada! Pronto. — A lâmpada faiscou com um estalo.Sashenka viu estrelas de prata derretendo-se em um céu negro.

Um guarda a segurou pelo braço e a conduziu por uma porta. Ossapatos dela estavam frouxos, sem os cordões, e seu vestido não se

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ajustava. Eram três guardas agora: um na frente, outro que a segurava emais outro atrás. Ela passou por jaulas de metal, subiu degraus de aço,desceu por escadarias de pedra, esperou em áreas de concreto,caminhou por fileiras de celas, com portas de aço e portinholas corrediças.Ouvia o barulho das prisões: tosses, palavrões, rangidos de fechaduras,batidas de portas, arrastar de pés e tilintar de chaves. Assoalhos demadeira, desgastados, brilhavam com detergente abrasivo.

O cheiro das prisões — urina, suor, fezes, desinfetante, sopa derepolho, óleo de armas e fechaduras — recordou-lhe Piter em 1916. Mas,desta vez, não haverá papai para me tirar da cadeia!, pensou elatristemente. Sentia que Vânia, Bênia e o tio Mendel estavam nasproximidades. De certa forma, isso a reconfortava. Em um corredor, outraprisioneira se aproximou, conduzida por um guarda — ela vislumbrou umamulher bonita, mais jovem do que ela, com um olho roxo.

— Desvie os olhos, Prisioneira 778 — rosnou seu guarda, as primeiraspalavras que falava.

Então, levou Sashenka até um canto onde se erguia, em posiçãovertical, uma coisa que parecia um caixão metálico. Abriu o caixão,empurrou-a para dentro e trancou a porta. As costas dela ficarampressionadas. Seria uma tortura? Ela lutou para respirar no espaço quasesem ar. O outro guarda passou com sua prisioneira. O caixão foi aberto eeles prosseguiram, até chegar a uma fileira de celas, onde um guardamantinha uma porta aberta. Nela, em um cartão manchado de óleo, foirabiscado o número 778.

A cela era pequena e fria, com dois beliches, nenhuma janela,paredes de tijolos, chão úmido e um balde em um canto. A porta foifechada; fechaduras rangeram; ela permaneceu parada, sozinha; aportinhola se abriu; olhos a fitaram. A portinhola se fechou. Ela fechou osolhos e escutou a vida ao redor dela. Prisioneiros cantavam, cuspiam,tossiam, tagarelavam e batiam mensagens uns para os outros, utilizando ocódigo dos prisioneiros, que não mudara desde os tempos do tsar. Ogigantesco prédio pulsava como uma grande cidade. Encanamentosgorgolejavam e estremeciam. Um balde de metal foi arrastado e umesfregão molhado rangeu no corredor. Um carrinho passou, rilhando. Elaouviu um murmúrio de vozes e o eco de colheres de metal, batendo em

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xícaras. A portinhola se abriu e fechou. A porta foi aberta novamente.— Jantar!Dois prisioneiros serviam sopa retirada de uma panela que sacolejava

no carrinho. Um deles era barbudo, velho e frágil; o outro era grisalho,mas, provavelmente, tinha a idade dela. O velho entregou-lhe uma xícarade metal, enquanto o outro, com uma concha, encheu a xícara com umlíquido quente, extraído de um caldeirão. Dois guardas, com as mãos naspistolas, observavam atentamente. Não era permitido o contato entreprisioneiros.

— Obrigada! — disse ela.— Não fale! — disse o guarda. — Nunca olhe para os outros

prisioneiros!O prisioneiro mais jovem lhe deu um cubo de açúcar e um pequeno

quadrado de pão preto. Por um instante, olhou para ela — uma fagulhade sentimento em um rosto sensível e bastante malicioso. Antes deBênia, ela não teria reconhecido aquilo, mas agora falava essa linguagemparticular. Meu Deus, pensou ela, era desejo sexual! Aquilo lhe agradou:as pessoas ali ainda sentiam desejo! Talvez a lascívia durasse mais do queoutros sentimentos. Quando a porta bateu, ela bebeu o aguado mingaude trigo-sarraceno. Usou o balde e deitou-se.

Vânia, onde você estiver, pensou ela, eu sei o que fazer. Nadaestava perdido ainda: as crianças tinham partido, mas não havia nada quepudesse pesar contra ela. Vânia sabia disso. Ela ainda poderia retornar. Elairia retornar. O que poderiam eles ter contra ela, a comunista mais lealentre todos os comunistas? Então, em voz alta, disse uma palavra:

— Almofada!As luzes permaneceram acesas. Sashenka tentou dormir. Conversava

em voz alta com os filhos, mas eles já pertenciam a outro mundo. Seráque ainda conseguiria sentir os cheiros deles? A textura de suas peles, osom de suas vozes, tudo ainda estava vívido e fresco para ela. Entãocomeçou a chorar, suavemente e com resignação.

A portinhola se abriu.— Silêncio, prisioneira! Mostre seu rosto e suas mãos o tempo todo!Ela dormiu e era uma criança novamente, na propriedade dos Zeitlins,

em Zemblichino: seu pai, de terno branco e mocassins, segurava um

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pônei pelas rédeas — enquanto a querida Lala a ajudava a subir na sela...

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Sashenka foi acordada pelos carrinhos chiando, esfregões rangendo,fechaduras rilhando. A portinhola se abriu e fechou, a porta se abriu.

— Limpeza! Traga o balde!Um guarda a levou até o lavatório, onde a emanação de cloro fez

arder seus olhos. Ela jogou fora seus dejetos e lavou o rosto com água.Depois, voltou para a cela.

— Café-da-manhã!O mesmo prisioneiro, cujo olhar fora tão dissimuladamente sensual,

agora segurava uma bandeja de compensado, como a de uma vendedorade cigarros. O outro prisioneiro, barbado e coberto de tatuagens — umverdadeiro criminoso, presumiu Sashenka —, serviu o chá e lhe entregouum pequeno pedaço de pão, um cubo de açúcar, oito cigarros e algunsfósforos. O rosto comprido do homem que carregava a bandeja, maisuma vez, não revelou nada, mas seus olhos voltaram a passear por seucorpo e pescoço, reluzindo com a mais crua volúpia, antes que a porta sefechasse novamente. O chá e o pão tinham agora um sabor divino.Sashenka sabia, por intermédio de Vânia, que os prisioneiros, por vezes,esperavam semanas até que fossem interrogados. Assim, muito tempopoderia se passar antes que ela pudesse se defender como boacomunista — e descobrir o que a trouxera àquele lugar.

Então, deitou-se de novo. Onde estariam as crianças agora? —conjeturou. E pronunciou em voz alta a palavra que estava se tornandoseu talismã, seu código para transmitir amor para os filhos distantes,através das vastas estepes e grandes rios da Rússia:

— Almofada!A porta se abriu.— Prisioneira 778?— Sim.— Venha!

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Três guardas a conduziram pelos corredores, subindo por escadasmetálicas, descendo por escadas de concreto — com grades de metalpara evitar suicídios —, caminhando sobre instáveis pontes de madeira,suspensas sobre desfiladeiros de granito, percorrendo outros corredores,até que atravessaram duas portas de segurança, com barreiras e guardas,e entraram em uma ampla galeria, com escritórios em vez de celas.Sashenka cantarolou baixinho — e descobriu, para sua surpresa, queentoava a canção romântica, tão amada por Bênia Golden, a canção deamor deles:

Olhos negros, olhos apaixonados, lindos olhos em brasa, como euamo vocês, como vocês me dão medo.

A primeira vez que vi vocês foi um momento cruel...

Era uma hora bastante imprópria para o amor, mas a melodia trouxe-lhe uma onda de otimismo. Agora tinha certeza de que não haverianecessidade de executar o terrível plano de Vânia. Ela descartariafacilmente as acusações dos tchekistas. Eles a libertariam. Ela esperariaum pouco e chamaria as crianças de volta. Ah, a alegria que seria!

— Aqui!O guarda a empurrou para dentro de um escritório pequeno e limpo,

com o chão coberto por um linóleo, uma mesa vazia, um telefonecinzento e uma luz virada para ela. O brilho da lâmpada a cegou por umsegundo. Contas douradas faiscaram diante de seus olhos e ela sentiu ocheiro adocicado de brilhantina com óleo de coco.

Um jovem com uniforme do NKVD, óculos redondos, um bigodeavermelhado e um ridículo topete abriu um arquivo papka, lambendo osdedos enquanto virava as páginas. Demorou-se um pouco nisso e,quando terminou, recostou-se na cadeira, com as botas rangendo. Entãoalisou, quase massageou a folha de papel à sua frente.

— Prisioneira, meu nome é investigador Mogiltchuk. Você estápreparada para cooperar conosco?

Ele não a chamara de “camarada”, mas parecia gentil e razoável. Suavoz era fanhosa como a de um menino de escola; seu sotaque era do sul,da região do mar Negro, Mariupol talvez; ela presumiu que ele deveria ser

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filho de algum professor da intelligentsia provinciana, provavelmenteformado em letras, convocado a Moscou para preencher vagas abertaspelo falecimento de velhos tchekistas.

— Sim, investigador, estou, mas gostaria de poupar seu tempo. Souintegrante do partido desde 1916; trabalhei no apparat de Lenin egostaria de perguntar...

— Silêncio, prisioneira! Eu faço as perguntas aqui. Nós, tchekistas,somos o braço armado do partido e vamos decidir seu caso. É nossamissão. Agora, você vai cooperar conosco?

— Totalmente. Quero esclarecer tudo.O investigador Mogiltchuk levantou o queixo, estendendo o pescoço.— Esclarecer o quê? — disse ele.— Bem, seja lá o que for de que estão me acusando.— Você sabe o que é.— Nem imagino.— Ora, vamos, prisioneira. Eu pergunto a você: por que você está

aqui?— Não sei. Sou inocente. Genuinamente.Verificando cuidadosamente a superfície encrostada de seu topete,

Mogiltchuk franziu as sobrancelhas.— Isso não é cooperação. Você é sincera em seu desejo de servir ao

partido? Tenho lá minhas dúvidas. Se fosse sincera, você saberia por queestá aqui.

— Sou uma comunista sincera, camarada investigador, mas não fiznada de errado! Nada! Não me juntei a nenhuma oposição. Nunca! Apoieitodas as polít icas da linha leninista-stalinista do partido. Nunca tolereinenhum tipo de conversa antissoviética. Nem mesmo pensamentosantissoviéticos. Minha vida tem sido devotada ao partido...

— Cale a boca! — disse o investigador, batendo na mesa, um gestotão absurdo que Sashenka lutou para esconder seu desprezo. Sentia umainoportuna vontade de rir. — Não desperdice nosso tempo! Você achaque foi trazida aqui por brincadeira? Estou até aqui de casos e precisoque você confesse agora o que fez. Nós sabemos como lidar com pessoascomo você.

— Pessoas como eu?

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— Princesas mimadas do partido, que pensam que o Estado lhesdeve suas roupas elegantes, carros, dachas. Nós nos especializamos emesmagar as pessoas do seu tipo. Então eu repito: olhe para sua vida, suaconsciência comunista, seu passado! Por que você está aqui? Umaconfissão vai tornar as coisas muito mais fáceis para você!

— Mas eu não posso... sou inocente!— Como você explica a sua prisão se é inocente? Comece a

confessar! Não fique esperando até que nós obriguemos você a fazerisso!

Sashenka estava aturdida. O que ele estava pedindo? Se elaadmitisse alguma coisa trivial, isso o satisfaria? Ela passou em revista asinstruções cuidadosas de Vânia, enquanto estavam sentados na rede dojardim, naquela noite quente e desesperada: “Não confesse nada. Semuma confissão, eles não podem tocar em você! Acredite, querida, eu seido que estou falando. Eu já quebrei legiões de homens e talvez esta sejaa vingança deles. Mas não invente nenhum crimezinho. Isso não vai aliviara pressão! Se eles tiverem alguma coisa específica, eles vão confrontarvocê. Se eles quiserem alguma coisa específica, eles vão arrancar devocê.”

Mogiltchuk se inclinou para a frente. O cheiro de óleo de coco de suabrilhantina era sufocante.

— Você vem de uma família burguesa, verdadeiros sanguessugas.Você realmente abraçou o partido — ou ainda continua sendo umarepresentante de sua classe nojenta, uma inimiga dos trabalhadores?

— Eu trabalhei para Lenin.— Você acha que eu me importo com isso agora? Se você enganou

o camarada Lenin, vai pagar em dobro.— Ele me chamava de camarada Raposa. Ele conhecia a minha

história e me disse que viera da nobreza, mas não fazia diferença, porqueele acreditava realmente no bolchevismo.

— Como você ousa sujar a imagem do camarada Lenin! Você nãopercebe quem você é? Não percebe o que você é agora? Você valetanto quanto pó! Você está diante do Tribunal da Revolução: a Tcheka.Apenas responda às minhas perguntas. — Ele olhou para a ficha,massageando o papel sem parar. — Há quanto tempo você conhece

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Mendel Barmakid?— Ele é meu tio. Desde que nasci.— Você acredita que ele é um bom comunista?— Sempre pensei isso.— Você fala como se tivesse dúvidas.— Eu sei que ele foi preso.— Então você sabe que nós não prendemos pessoas por nada.— Camarada Mogiltchuk, eu acredito no braço armado do partido.

Acredito que vocês, tchekistas, como disse Dzerjinski, são os cavaleiros daRevolução. Meu próprio marido...

— O acusado Palitsin. Você acha que ele é um paradigma defidelidade ao partido? Realmente? Procure em suas memórias, em suasconversas: ele sempre foi um tchekista leal?

— Sim, sempre foi. — Repentinamente, ela questionou até isso: e seVânia fosse um espião fascista?

— E Mendel? Ele nunca foi um comunista de verdade, não é...camarada Raposa? Se posso chamar você assim — acrescentou ele, comum risinho zombeteiro.

— Um bolchevista honesto, que foi exilado cinco vezes, que foiencarcerado no Forte Trubetskoi, que arruinou sua saúde com trabalhopesado e que nunca se desviou nem se juntou a nenhuma oposição...

Mogiltchuk removeu os óculos. Sem eles, era extremamente míope.Esfregou o rosto e passou a mão no cabelo ruivo. Ela sentiu como eleestava ansioso para entregar a confissão dela ao superior. Talvezimpressionasse Beria. Quem sabe até a Instantzia — o próprio camaradaStalin — ouvisse falar desse jovem e ardoroso investigador? Ele recolocouos óculos.

— Levante a máscara de Mendel, revele esse chacal e entregue elepara nós!

— Eu não sei de nada — disse ela. — Mendel! Estou tentandopensar...

— Pense e me diga! — Mogiltchuk levantou sua caneta. — Você falae eu escrevo. Mendel alguma vez mencionou o diplomata japonês que eleencontrou em Paris?

— Não.

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— O lorde inglês que visitou a embaixada em Londres?— Não.— Quais os estrangeiros que ele conhecia? Ele alguma vez pediu que

você se encontrasse com eles? Pense — explore sua mente!Então era o tio Mendel que eles queriam! Sashenka sabia que não

era ela. Eles tinham levado Gideon à Lubianka para falar sobre Mendel.Então Vânia fora arrastado para dentro disso: talvez alguém tivesseouvido Mendel e Vânia discutindo jazz? E, através de Vânia, ela. Bênia,claramente, não estava ligado a Mendel. Exceto através dela — mas issoera muito vago. Não, Bênia era parte de outra coisa, do caso contra osintelectuais — e Mogiltchuk não o tinha mencionado. O que era claro, noentanto, era que eles precisavam dela para denunciar Mendel.

Então era Mendel que atraíra o desastre que se abatera sobre ela:era ele quem tinha levado seus filhos embora. A mãe dentro dela ficariafeliz em sacrificar Mendel a qualquer momento: faria qualquer coisa paraver seus filhos de novo. Mas se ela inventasse o fato de que Mendel eraum espião japonês, eles acreditariam que ela era inocente, que tinhaservido lealmente ao partido?

Ela repassou as instruções de Vânia: “Se eles estiverem montandoum processo contra Mendel, vão querer seu testemunho, mas lembre-sede que foi ele quem nos converteu ao marxismo e nos apresentou aopartido — e um ao outro! Essa confissão nos destruirá a todos! Espereaté nós sabermos o que eles têm contra nós.”

O investigador verificou seu topete novamente.— Então?— Não, Mendel é um camarada decente.— E você não tem nada para me dizer?Ela abanou a cabeça, sentindo-se fraca e exausta. Mas havia

esperanças, disse a si mesma. Como alguém soterrado por umaavalanche, pensou que haveria um caminho até a luz. Vânia também nãoconfessaria; e ainda que o pobre Vânia estivesse destinado ao moedor decarne, não havia nada contra ela. Vânia, como qualquer pai, morreria maistranquilo se soubesse que sua mulher estava a salvo com seus filhos! Sejaforte, não confesse nada — e você vai rever Branquinha e Carlo, pensou.Afinal de contas, eles tinham sido polidos. Talvez estivessem apenas

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sondando...— Está bem, você quer brincar com a gente? — disse Mogiltchuk

calmamente. — É bom você entender, camarada Raposa, que eu sou umintelectual como você, como seu tio Gideon. Talvez você tenha visto oscontos que publiquei com o nome de M. Slujba. Bem, eu só gosto deconversar com as pessoas. Esse é o meu jeito. Eu dei todas as chances avocê, mas você vai ter uma surpresa desagradável, se não começar afalar. — Ele pegou o telefone de baquelite e discou um número. — ÉMogiltchuk... Não, ela não quer... Está bem! — Colocou o fone nogancho. — Venha comigo.

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Acompanhado por um guarda, o investigador Mogiltchuk conduziuSashenka por uma longa galeria, que ela nunca vira antes, subindo algunsdegraus, atravessando a ponte coberta e descendo outros degraus.Emergiram em um largo corredor assoalhado, ladeado por reluzentespainéis de pinho careliano, bandeiras de seda, retratos e bustos dosprimeiros heróis tchekistas. Um carpete azul corria pelo centro docorredor, afixado por grandes tachas douradas. Guardas com o uniformecerimonial do NKVD estavam postados ao lado de uma bandeira soviéticae uma estátua em tamanho natural de Dzerjinski. O corredor terminavaem uma imponente porta dupla, de carvalho. Um guarda a abriu.

— Investigador Mogiltchuk?Eles entraram em um escritório claro e arejado, de proporções

monumentais, assoalho luzidio e móveis de pinho careliano, que cheirava acera e florestas geladas. À esquerda, alguns sofás e cadeiras estofadasestavam dispostos sobre tapetes persas. Sobre a lareira, avultava umimenso retrato do camarada Stalin, pintado a óleo por Gerasimov. Umcofre prateado, mais alto que um homem, repousava em um canto.Bustos de mármore de Lenin e Dzerjinski erguiam-se de cada lado da salae, tão distante que Sashenka mal conseguia enxergá-lo, havia outroquadro de Gerasimov, desta vez de Dzerjinski, o Félix Ferro, o fundador

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da Tcheka, com seu cavanhaque e olhos insanos.No meio do aposento, uma grande escrivaninha de carvalho polido

fora encostada em uma mesa de conferências, de modo a formar um T— a configuração comum a todos os escritórios da URSS. Sobre a mesa,em perfeita ordem, alinhavam-se tinteiros com tinta turquesa, umconjunto de canetas prateadas e algumas folhas de papel, sobre ummata-borrão. Uma mesa menor, atrás, ostentava oito telefones — e alinha vertuchka para o Kremlin. Presidindo aquilo tudo, em uma cadeira deseda arroxeada, com espaldar alto, sentava-se o camarada LavrentiPavlovitch Beria, Narkom do Comissariado Popular para Assuntos Internos.

Tinha um prato à sua frente, com o que parecia serem folhas deespinafre. Com a mão aberta, fez um gesto para que ela entrasse na sala,enquanto mastigava vigorosamente.

Mogiltchuk bateu continência e saiu do aposento.— Ah, Lavrenti Pavlovitch — disse Sashenka —, estou tão feliz em

ver você! Agora podemos esclarecer tudo.Beria engoliu o que tinha na boca, ficou de pé cortesmente,

contornou a mesa e beijou a mão dela.— Seja bem-vinda, Aleksandra Samuilovna — disse ele formalmente,

em seu carregado sotaque mingrélio, ainda segurando a mão dela entreseus dedos macios. — Você deve estar se perguntando o que estoucomendo.

— Sim — disse ela, embora não desse a mínima para o que ele estavacomendo.

— Veja bem, eu não como carne. Detesto matar qualquer coisa.Aqueles pobres bezerros e cordeiros! Não, não consigo aguentar isso.Aliás, a Nina diz que eu não devo engordar! Sou vegetariano, então sócomo isso — até na casa do Josef Vissarionovitch. “O capim do Beria”,como diz o camarada Stalin. “Olhem, o Lavrenti Pavlovitch está comendocapim de novo!” Bem, deixe-me olhar para você. — Ele segurou a mãodela e a fez girar, como se estivessem dançando. — Ah, você está tãopálida. Mas ainda lin-dís-si-ma. Esse corpo faz um homem como eu ficarmaluco, disposto a arriscar qualquer coisa por um carinho! Você é comoum bolo de creme. Que pena nos encontrarmos assim, não é?

Os olhos incolores de Beria fitaram Sashenka através do pincenê —

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com uma cobiça tão voraz que ela se encolheu. Então, o corpulento ecareca Comissário Popular deu uma volta em torno dela, sem que seusmacios sapatos de pelica fizessem qualquer ruído. Ele não estava deuniforme, vestia apenas calças largas, amarelas, e uma blusa bordada, semcolarinho, como um georgiano do litoral. Sashenka não se esquecera deque seu marido costumava jogar no time de basquete de Beria, na dachaque este possuía em Sosnovka. Quando ela assistia aos jogos, ela notara,Beria se mexia com uma incrível rapidez.

— Estou tão feliz em ver você — repetiu ela. Era verdade. Beria erainescrupuloso, mas competente. Vânia o admirava por seu zelo, empenhoe sentido de justiça, que substituíra o frenesi alcoólico de Iejov. — Vocêpode resolver isso, Lavrenti Pavlovitch! Abençoado seja!

— Eu poderia olhar para os seus quadris e seios durante todo o dia,meu bolo de creme, mas posso ver que você está cansada. Quer comeralguma coisa? — Ele pegou o telefone e disse: — Traga uns sanduíches.

A convite de Beria, ela sentou-se em uma das cadeiras forradas decouro, na mesa de conferências, adjacente à escrivaninha de Beria. Elesentou-se também. A porta dupla se abriu e uma mulher de aventalbranco entrou empurrando um carrinho de chá. Com um guardanapopendurado no braço (como uma das garçonetes no Hotel Metrópole), elaserviu o chá, arrumou alguns sanduíches e peixe zakuski, e saiu.

— Pronto! — disse Beria, estalando os lábios frouxos e inchados. —Agora coma, enquanto conversamos. Você vai precisar de energia.

Sashenka hesitou, temerosa de que o fato de comer aquelespetiscos pudesse, de alguma forma, colocá-la na obrigação de trair seumarido, ou Mendel. Mas concentrou-se e pensou nos filhos. Agora era suachance.

— Eu não sei do que sou acusada, respeitável camarada Beria, massou inocente. Eu sei que você sabe disso. Você não faz ideia de comofiquei alegre em ver você.

— Ah, e eu em ver você. Coma, minha querida bolo de creme. Juroque a comida não está envenenada. — Ela começou a comer ossanduíches. — Como você sabe, você é o tipo de mulher de que eugosto, Sashenka. Desde o momento em que vi você, eu percebi quealguma coisa nessa sua boca indicava capacidade para o prazer. Mas você

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não pareceu ficar feliz quando eu flertei com você na sua casa, no Dia doTrabalho. Eu penso em mulheres o dia inteiro, como você sabe. Sou umlegítimo georgiano, não sou? Hein? — Os olhos de Beria ficaramenevoados, com as pálpebras baixas. — Você sabe o que eu gostaria defazer, Sashenka? Eu gostaria de ir com você até a minha casa emMoscou. Nina e meu filho vivem em Sosnovka, na dacha. Vamos comeruma supra georgiana, você e eu na minha bania, bebendo os melhoresvinhos. Depois eu vou deitar você no divã, levantar sua saia e esfregarmeu nariz até sentir o cheiro das suas joias...

Sashenka sabia que Beria estava lhe dizendo que podia fazer o quetivesse vontade. Mas não queria encorajá-lo. A obscenidade dele poderiaser um truque, um engodo. Ou seria um sinal de que ele realmente adesejava e que, se ela quisesse sair da prisão, haveria um preço a pagar?

Mas aquele era Lavrenti Beria, Comissário Popular, um homem que elarespeitava e de quem gostava, um bolchevique confiável, escolhido pelopróprio camarada Stalin. Como ele podia falar assim com uma camaradaque conhecera Lenin e recebera Stalin em sua própria casa? Ela pensourapidamente e decidiu, naquele momento, que faria qualquer coisa, vil edegradante que fosse, para rever seus filhos.

— Você está me deixando embaraçada, Lavrenti Pavlovitch —sussurrou ela em voz rouca. — Eu não estou acostumada a...

— Não está? Ora, Sashenka. Eu mesmo fiquei surpreso. Você, umapessoa tão respeitável — uma mulher soviética tão decente, queensinava nossas donas de casa a preparar bolos e cerzir as saias dasJovens Pioneiras. Mas nós sabemos a criatura devassa que você é. Ascoisas que você grita e que você pede quando está realmente excitada.Igual à sua mãe. Ela era famosa, não era?

Uma pedra de gelo congelou as entranhas de Sashenka. BêniaGolden devia ter traído os segredos sexuais de ambos, e fora assim queseu marido também soubera.

Beria sorriu com seus lábios grossos demais, largos demais.— Nós sabemos de tudo, caríssima bolo de creme — disse ele

lascivamente. — Se você trepou com aquele escritor judeu, poderia tertrepado comigo também. Mas não alimente muitas esperanças. Você nãoconfessou para o meu garoto, o Mogiltchuk. Você já leu as histórias dele?

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Fique sabendo que são uma merda. Ele escreve porcarias policiais — quercriar um Sherlock Holmes soviético. Mas, coitado, o trabalho interfere comos prazeres dele. O seu caso é sério, Sashenka, e por mais que eu queiracomer você, a Instantzia está acompanhando esse caso de perto.

— O camarada Stalin sabe que eu sou inocente.— Cuidado, cuidado. Não mencione esse nome para mim, Prisioneira

Zeitlin-Palitsin. Quero que você saiba que sua única oportunidade éconfessar agora. Relaxe, revele suas traiçoeiras atividades antissoviéticas.Nós trabalhamos duro aqui. Você vai nos obrigar a forçar você aconfessar? — Ele ficou em pé e contornou a escrivaninha, envolvendo-acom um aroma de colônia de limão. Acariciou o cabelo dela e passou asmãos sobre um de seus seios. Sashenka encolheu-se, tentando nãogritar. Ele tocou-lhe os lábios e, em seguida, enfiou o nó de um dedo emsua boca. Tinha gosto de cobre.

Fazendo voz de bobo, ele falou:— Eu não quero ser bruto. Não faça isso comigo! Eu adoro as

mulheres! Ah, o gosto delas! Não me obrigue. — Depois sentou-se,novamente homem de negócios. — Pense com cuidado. Não há nadaque eu não saiba sobre você, seu passado, família, trabalho, sua xoxota...— Martelou os dedos sobre a mesa. — Você vai cooperar? Fique de pé!Agora! Se você não cooperar, vamos transformar você em pó e atirar emvocê como se fosse uma perdiz! Dentro de um minuto, você vai voltarpara sua cela e eu vou voltar ao trabalho. Espere. Não se vire! Feche osolhos.

Ela o ouviu mexer em uma gaveta. Uma porta na outra extremidadedo escritório se abriu. Ela ouviu homens respirando e rangidos de botas,que se aproximaram e pararam atrás dela.

— Não no tapete persa, esse é bom. Enrole aquele. Isso mesmo —ela ouviu Beria dizer.

Um barulho seco se seguiu. Seus olhos lacrimejaram — de novo, apungente colônia de cravos, que ela conseguia sentir na língua.

— Obrigado, camarada Touro!Era Kobilov novamente. O que seria aquilo? Alguma espécie de

brincadeira? O medo a dominou de repente.— Está bem! Vamos levar a camarada Raposa de volta para a cela —

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um, dois, três e... vire!Alguma coisa atingiu Sashenka no lado direito do rosto, com tanta

força que a fez dar uma volta, derrubando-a no assoalho. O mundo sedissolveu em um caleidoscópio de prismas vermelhos. Ela viu-se no chão,olhando para a escrivaninha, em frente à qual estava Beria, sorrindo, comum cassetete nas mãos.

Segurando o lado do rosto, que parecia se mover sozinho, conseguiuolhar para trás. Por entre as botas lustrosas, avistou um embrulho deroupas, coberto de lama seca. Percebeu então que estava vivo,movendo-se, estremecendo. Seu olhar foi atraído para a profusão demarcas vermelhas, roxas e amarelas na pele exposta, para dedos quesangravam nas extremidades, para um rosto não barbeado, compálpebras tão roxas e inchadas que mal podiam se abrir. O choque adeixou boquiaberta.

— O que você acha que está fazendo, trazendo isso aqui? —perguntou Beria. — Você não sabe que estou com a Sashenka? Vocênão bateu na porta, camarada Kobilov! Que maus modos!

— Desculpe, Lavrenti Pavlovitch, eu não sabia que você estavaocupado — disse o gigante Kobilov. — Precisamos trabalhar um pouconesse velho saco de merda, outro teimoso. Mas não queremos que elaveja nada que assuste, queremos?

— De jeito nenhum — disse Beria. — Ajude-a a se levantar e leve-ade volta para a cela.

— Que machucado horrível! — disse Kobilov, tocando o rosto dela efranzindo o lustroso nariz. — Você deve ter esbarrado em alguma coisa.— Ajudou Sashenka a se levantar. Ela não conseguia tirar os olhos docorpo caído no carpete manchado. — Vamos, temos que proteger vocêdessa visão horrível; é tão difícil segurar o camarada Rodos quando eleestá atacado...

— Rodos? — murmurou ela.No outro lado da sala, um homem corpulento, com um sinal cabeludo

no rosto afilado e cabeça fusiforme, acariciava um cassetete preto. Usavauma túnica cinzenta, presa com um largo cinturão do Exército, e botassujas.

Dando de ombros modestamente, o investigador Rodos lançou um

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olhar desafiador para Sashenka e começou a desferir golpes no estômagodo homem caído, levantando o cassetete sobre o ombro, bem devagar,como se fosse sacar uma bola de tênis. O homem gemia a cada golpe,como uma vaca que Sashenka vira parindo na propriedade ucraniana dosZeitlins.

— É duro de olhar, mas é fascinante, não é? — disse Beria, enquantoela saía.

Kobilov segurou o braço dela e a conduziu pelo corredor, onde oinvestigador Mogiltchuk a aguardava com um enorme sorriso.

— Vamos nos encontrar de novo, eu espero — disse Kobilov,retornando ao gabinete de Beria, em um bafejo de cravos.

Sashenka estava tremendo. Incapaz de se controlar, curvou-se evomitou a comida que acabara de ingerir, o que deixou um gosto dequeijo em sua boca. O som surdo das pancadas no homem caído aindapulsava em seus ouvidos. Não conseguia acreditar no que vira. Quemera...? Ela conhecia — ou estaria vendo coisas? Era assim que Beriatratava os velhos bolcheviques? Era isso o que Vânia fazia durante anoite, antes de voltar para a dacha e para seus filhos? Era isso o queacontecera aos antigos donos de sua dacha e de seu apartamento?

Recitou para si mesma as instruções de Vânia: “Não confesse nada,aconteça o que acontecer, até saber se eles têm alguma coisa realmentegrave... Eu nunca vou ser solto, mas você, Sashenka, você vai poder veras crianças de novo. Nunca se esqueça delas! Não assine nada, façam oque fizerem com você!”

Ela ainda não conseguia acreditar que eles tivessem alguma coisacontra ela, e estava claro que nenhuma das pessoas ligadas a ela haviaconfessado. Ainda poderia ser solta, se mantivesse a cabeça. Tinha quese agarrar a isso, custasse o que custasse.

Mas onde estaria Vânia? Onde estaria Bênia? O tempo que ela eBênia tinham passado no hotel, no barracão do jardim, beijando-se nasruas como garotos, cantando “Olhos Negros” à beira do rio, trocandoflores secas, fora a época mais romântica de sua vida. Os sete mil rubisdas estrelas do Kremlin ainda eram deles! Ela amava a ambos agora, Vâniae Bênia, diferentemente, insistentemente. Eles eram sua família agora.Eles eram tudo o que ela tinha naquele insondável desfiladeiro de

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sombras.Ela foi conduzida de volta, subindo e descendo várias escadas —

saindo do mundo do pinho careliano, palmeiras e colônia de cravos ereingressando na pungente atmosfera da Prisão Interna, com seu fedorde repolhos, urina e detergente. Para não cair, teve que se apoiar naparede algumas vezes. Tocou o rosto; estava sangrando e inchandoperto do olho.

Branquinha, Carlo, Almofada, Coelhinho! Branquinha, Carlo, Almofada,Coelhinho! — recitou ela.

Estariam a salvo? Calculou que tinham partido há seis dias; três noitese três dias, desde que fora presa. A certeza de que Satinov manteria ascrianças a salvo formou um casulo de amor, cálido e intocável, no maisfundo de seu ser.

— Aqui estamos, em casa de novo — disse Mogiltchuk, empurrando-apara dentro da cela. — Descanse. Vamos conversar amanhã. — Sashenkaafundou-se pesadamente na cama de baixo do beliche. — Ah, apropósito: você reconheceu o seu tio Mendel? Acho que era ele, pelomenos o que restou dele.

37

Naquela noite, eles a mudaram para uma cela com luzes brilhantes, cujaintensidade se recusaram a diminuir, e cujos canos de calefação, depoisde chacoalharem e resfolegarem, começaram a aquecer o ambiente — jánormalmente sufocante —, embora fosse pleno verão.

Sashenka martelou a porta.— Fique sentada em sua cama, prisioneira. — As fechaduras

rangeram. Dois guardas estavam de pé à porta.— Quero reclamar com o Narkom Beria e com o Comitê Central. O

aquecimento foi ligado e é verão. Por favor, desliguem as luzes. São tãobrilhantes que estão me mantendo acordada.

Os guardas se entreolharam.— Vamos relatar suas reclamações aos nossos superiores.

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A porta bateu. O calor aumentou. Sashenka estava suando. Malconseguia respirar e estava torturada pela sede. Despiu o vestido e sedeitou no beliche só com as roupas de baixo. As luzes eram tãobrilhantes, tão quentes, que ela não conseguia dormir, mesmo apertandobem os olhos. Quando enterrava o rosto no colchão, eles a sacudiam.

Quando finalmente dormiu, de forma espasmódica, a portinhola seabriu.

— Acorde, prisioneira!— Estou dormindo, já é noite.Ela dormiu de novo.— Acorde, prisioneira. Coloque suas mãos onde a gente possa ver.Quando os gritos não eram o bastante para mantê-la acordada, eles

a jogavam no chão, davam-lhe chutes e tapas no rosto.Agora Sashenka entendia. Era nisso que se transformara o partido.

Ela conseguiu aguentar uma noite sem dormir. Mas, na segunda noite,achou que estava começando a se desintegrar. Sentia náuseas o tempotodo; suor porejava dela e ela não tinha certeza se estava doente oucompletamente exausta. Dormia em pé; os guardas a encontravamdormindo no lavatório e, mesmo lá, a acordavam. E o que era pior, seusmedos a envolviam, crescendo como fungo: e se Vânia tivesse sidosempre um Inimigo? As crianças estavam perdidas, chorando por ela, ouestavam mortas.

Horas e dias se arrastavam. Sem exercício. Sem se lavar. Ela eraalimentada três vezes ao dia, por intermédio de uma bandeja passadapela portinhola, mas estava sempre com fome, sempre com sede.Sozinha na cela, acordada a cada poucos minutos, ouvia as vozes deBranquinha e Carlo. Não podia quebrar. Por seus filhos. Mas seus rostos echeiros a deixavam prostrada. Eles já estavam perdidos, disse a si mesma.O plano de Satinov jamais funcionaria: eles estavam em algum daquelesorfanatos, sendo estuprados, torturados, espancados, corrompidos; e,quando fossem mais velhos, seriam fuzilados. Ela deveria confessar quementira, qualquer coisa era melhor do que aquilo. Só para poder dormirem uma cela fria. As crianças já estavam mortas. Mortas para ela, mortasrealmente. Não mais lhe pertenciam. Estavam perdidas para sempre.

Ela já não fazia parte do mundo dos vivos.

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38

Bem ao sul de Moscou, usando um vestido simples de verão e um lençono pescoço, com estampa floral, a alemã do Volga bateu de novo naporta do escritório do chefe da estação de Rostov-no-Don. Comosempre, carregava suas três malas e suas duas crianças, uma garotinhaloura e um menino de cabelos castanhos, que se agarravam a seusbraços, com olhos tristes e encovados. O escritório do chefe da estação— um oásis de tranquilidade e civilização, com suas poltronas e retratosde Lenin e Stalin — era próximo à bilheteria, onde centenas de pessoasfaziam fila durante todo o dia, em meio a um tremendo caos, e outrastantas ficavam desapontadas. Embora a alemã do Volga fosse lá todos osdias, sem encontrar nenhum telegrama, nenhum sinal, nenhum amigo,não deixava de ir, parecendo apreciar cada minuto que passava naquelecalmo e limpo olho do furacão. O chefe da estação e seu assistente seentreolhavam e reviravam os olhos. A babá, com suas três malas e duascrianças, era apenas mais um desses desesperados rostos na multidão,que vinha todos os dias, esperando um sinal, um telegrama de parentesinexistentes, uma bagagem perdida, que jamais seria encontrada, bilhetespara um trem que nunca partiria.

— Camarada Stepanian — disse ela no quarto dia, cumprimentando ochefe da estação —, bom dia. Gostaria de saber se há alguma notícia. Umtelegrama, talvez?

Com ar cansado, Stepanian pegou a bandeja de entrada de papéis eestalou a língua, produzindo um ruído como o bater de cascos de cavalo.Então começou a examinar os grossos papéis amarelos da burocraciasoviética, mexendo os lábios enquanto lia os telegramas.

No primeiro dia, verificara os papéis da alemã do Volga e daquelascrianças bem-vestidas, que estavam sendo transportadas para umorfanato perto de Tbilisi. Todos os dias elas retornavam, parecendo cadavez mais famintas, mais sujas, mais desamparadas. A pálida e ossuda babáestava prostrada de exaustão.

— Eu gostaria de ajudar. As crianças estão bem? — Stepanian sorriupara as crianças. Vocês estão bem, vocês dois? O que é isso na sua mão?

— Uma almofada — disse a garotinha, desconsoladamente.

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— Você dorme nela?— Nós não dormimos direito aqui. Nós estamos ao lado da cantina,

mas nós queremos ir embora. A almofada é minha amiga.— Nós queremos nossa mamãe — disse o garotinho, que já tinha os

olhos ansiosos das crianças que perambulavam pela estação.As palavras pareceram perturbar a alemã do Volga. Stepanian olhou

para ela e abanou a cabeça. Imediatamente, ela começou a pegar asmalas para regressar à plataforma, onde uma família azerbaidjana estavaguardando seu lugar, sob um abrigo perto da cantina. Tentava escondera ansiedade, mas o chefe da estação era um conhecedor da miséria e dainsegurança.

— Obrigada, camarada — disse a mulher polidamente. — Eu voltoamanhã.

Stepanian se levantou e abriu a porta para eles.— Desculpe não poder ajudar — disse ele. — Volte amanhã.— Ela é maluca? Talvez não haja nenhum telegrama — disse o

assistente quando eles saíram.— Quem sabe! — Stepanian deu de ombros, tirando-os de seu

pensamento e retornando à sua escrivaninha, estalando a língua. E voltouao seu importante trabalho.

Saindo do escritório, o encardido trio caminhou lentamente de volta paraa plataforma. A estação de Rostov-no-Don ecoava com o barulho devagões fazendo manobras, enquanto as locomotivas apitavam e bufavam.Embora os tumultos provocados pela coletivização e pelo Terror tivessemterminado, as estações regionais ainda acolhiam uma multidão suja econfusa. Famílias acampavam em volta de suas malas, algumas bem-vestidas, outras andrajosas, algumas em roupas citadinas, outras usandobotas e batas camponesas. Os trens andavam superlotados e nuncapartiam no horário; era difícil comprar passagens; a milícia conferia ereconferia os passes e os carimbos dos passaportes, removendo aspessoas que não tinham os papéis em ordem ou energia para fugir.

Por sorte, era um verão calorento, pois a plataforma parecia umacampamento, lotada de soldados, trabalhadores, camponeses e crianças— crianças famintas e maltrapilhas, crianças bem-alimentadas, mas

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perdidas, crianças sentadas em elegantes malas de couro, crianças de ruacom rostos de velhos, menininhas com lábios pintados e saias curtas,fumando cigarros e procurando clientes.

A cantina da estação oferecia lanches para quem tinha rublos. Umvelho tártaro dirigia um quiosque que vendia jornais e doces. Atrás daplataforma do trem de Moscou, havia uma torneira enferrujada, diante daqual os habitantes da estação formavam filas durante todo o dia, paraobter água. Os lavatórios, no subsolo da estação, estavam inundados poruma lama fétida e espumante; ainda assim, havia filas para entrar lá.Crianças choravam e urinavam na roupa, enquanto os adultos lutavampara passar à frente uns dos outros.

Carolina estava mais do que preocupada. Não sabia o que aconteceracom Sashenka e esperava o pior. Era uma mulher extremamente prática,mas a tensão de cuidar de duas crianças na estação a estava consumindo.Orgulhava-se de sua limpeza, mas, naquele momento, os três estavamsujos — as roupas das crianças manchadas de comida, gordura e urina. Eladispunha de um farto suprimento de rublos para comprar comida, masBranquinha e Carlo tinham o paladar delicado, estavam acostumados auma culinária refinada e detestavam a aguada sopa de vegetais, pãopreto e bolinhos de massa servidos em um ralo molho de tomate, queeram as únicas refeições disponíveis na cantina. Já estavam perdendopeso. Durante o dia, brincavam com outras crianças, mas Carolina nuncarelaxava, pois algumas delas haviam se tornado ferozes marginais, capazesde qualquer coisa. Também tinha que vigiar as malas. À noite, dormiamjuntos, abraçando-se no colchonete dobrável, sob um cobertor e algunscasacos. Branquinha e Carlo choravam em seus braços, perguntavam pelamamãe e pelo papai. Quando os veriam novamente? Para onde estavamindo?

Sair de Moscou fora fácil: os pais de Vânia haviam reservado assentospara Carolina e as crianças. O trem saíra no horário. Embora a viagemtivesse demorado um dia a mais do que o programado, um gentil soldadodo Exército Vermelho, a caminho de um novo posto na fronteira com aTurquia, acompanhado por sua jovem esposa, teve pena delas e lhestrazia sorvetes e lanches das estações onde o trem parava. Mas ascrianças sabiam que havia alguma coisa terrivelmente errada. Queriam sua

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mãe. Carolina gostaria de confortá-las, mas não queria mentir, nemencorajá-las a dizer coisas mentirosas, que poderiam chamar a atenção.Era uma agonia. Enquanto se afastavam de sua vida anterior, de seuspais, de Moscou, Branquinha e Carlo se agarravam a ela.

— Você vai ficar com a gente, Carolina? Você vai ficar com a gente,não vai? Estou com saudade da mamãe!

Depois da visita ao camarada Stepanian, Carolina e as crianças foramalmoçar na cantina. Sentaram-se a uma das ensebadas mesas de fórmica.Carolina percebeu que estava tremendo. Cansada e desanimada, tentoulutar contra um ataque de puro pânico. Os Palitsins haviam desaparecido.O camarada Satinov teria se esquecido do plano? Ele mesmo teria sidoliquidado? Ela contou seu dinheiro mentalmente: tinha 25 rublos no bolsoe a bela soma de quatrocentos rublos no sutiã, para emergências. Se nãohouvesse nenhuma mensagem, brevemente, teria que tomar umadecisão difícil. Ela já tinha decidido que não deixaria Branquinha e Carlo emnenhum orfanato, sobretudo nenhum do NKVD, mas tinha poucasconexões na burocracia, nenhuma delas independente dos Palitsins. Teriaque levar as crianças para casa com ela, para seu vilarejo alemão, nãomuito longe de Rostov. Isso a encheu de alegria, pois amava Branquinhae Carlo. Eles a amavam também. Ela sabia que, com o tempo, poderiacurar as feridas da perda com seus cuidados amorosos. Mas era velhademais para ser mãe deles. Além disso, quanto tempo levaria até que osagentes do NKVD viessem prender a babá dos Palitsins? E onde mais iriamprocurar, senão em seu próprio vilarejo?

Naquela noite, Carolina não conseguiu dormir. Ficou escutando oronco das locomotivas, o silvo do vapor, o incessante burburinho depessoas e máquinas na estação. Olhou para os rostos pálidos das crianças,para Branquinha que apertava a almofada rosa contra os lábios, em buscade consolo. Pela primeira vez desde que deixara Moscou, começou achorar.

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— Prisioneira 778, sente-se. Você dormiu bem?Desgrenhada, pálida, desidratada, mal podendo falar, Sashenka

abanou a cabeça.— Sua cela é confortável? Como está a circulação do ar neste verão

quente?Sashenka não disse nada.O investigador Mogiltchuk alisou o volumoso topete e os papéis à sua

frente. Era a mesma coisa que no dia anterior e no dia anterior a este.Sashenka passara três dias no chamado “transportador”. A falta de sono euma cela superaquecida haviam quebrado prisioneiros mais fortes do queela. Depois do café da manhã e da limpeza, eles a levaram de volta à salade interrogatórios.

— Apareceu um machucado horrível no seu rosto. Está preto e roxo.Sashenka tocou o machucado cuidadosamente. Estava muito

dolorido. Talvez o osso do malar estivesse fraturado, pensou ela.— Vamos começar de novo. Lembre-se do seu tio Mendel. Não

espere até que a gente force você! Comece a confessar. Depois, vamosdeixar você dormir e vamos resolver esse problema de aquecimento nasua cela. Você não gostaria de uma boa noite de sono?

— Eu não tenho nada a confessar. Sou inocente.— Como explica a sua prisão se você é inocente? Você acha que eu

sou um palhaço e que o camarada Beria só está matando tempo?— Eu também não entendo. Só posso achar que é um erro, ou o

resultado de algum mal-entendido causado por coincidências.— O partido não acredita em coincidências — disse Mogiltchuk. —

Você viu o camarada investigador Rodos, no gabinete do camarada Beria?Ele é um sujeito incrível, uma lenda nos órgãos, uma fera perigosa: otempo todo nós temos que ficar impedindo que ele mate os prisioneiros.Na verdade, esta semana mesmo, ele arrebentou umas pessoas próximasa você. Ele diz que aparece uma névoa vermelha diante dos olhos dele eele perde o controle. Ele nos detesta, Sashenka. Ele detesta intelectuais!Você vai ter que se encontrar com ele brevemente, se não ceder. Masvocê tem sorte. Vou lhe dar mais uma chance: vou lhe mostrar alguémque pode reavivar sua memória.

Ele pegou o telefone em sua mesa.

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— Entregue o pacote! — disse alegremente.Sorriu para Sashenka, retirou e recolocou os óculos, verificou o

topete. Esperaram em silêncio. O telefone tocou.— Sim, sim, camarada, vamos esperar por você.Mogiltchuk deixou a sala por alguns instantes e logo retornou.— Só conferindo se está tudo como deve ser.— Posso tomar um copo de água? — Sashenka repetiu para si

mesma as instruções de Vânia e então, inaudivelmente, quase sem mexeros lábios, recitou: — Branquinha, Carlo, Almofada, Coelhinho.

Mogiltchuk estava enchendo um copo com água quando a porta seescancarou. Kobilov se esgueirou para dentro e, fingindo humildade,ergueu as mãos, fazendo cintilar os anéis.

— Finja que eu não estou aqui, camarada investigador. Vou meesconder ali no canto!

Como se fosse um diretor de escola observando a aula de umprofessor, o gigante perfumado foi para o fundo da sala, encostou-se emuma parede e cruzou as botas.

Ouviu-se uma batida na porta.— O show é seu! — murmurou Kobilov, franzindo o nariz para

Sashenka. Ela olhou para o outro lado. — Cansada? — sibilou ele.— Entrem! — guinchou Mogiltchuk. — A acareação começa agora. —

A porta se abriu. O torturador do gabinete de Beria entrou. — Bem-vindo, camarada Rodos — disse Mogiltchuk.

Uma pontada de medo fez o estômago de Sashenka se contrair.Rodos se moveu lentamente, como se fosse feito de aço enferrujado.Acenou para seus camaradas e, então, olhou Sashenka diretamente nosolhos. Sentou-se na cadeira ao lado de Mogiltchuk e começou a brincarcom os longos cabelos ruivos do sinal que tinha no queixo. Esse era otime designado para Sashenka: Kobilov no comando, com Mogiltchuk eRodos nos papéis de tira bonzinho e tira malvado. Tudo aquilo apenaspara quebrar a determinação dela? Não, deviam estar trabalhando em umcaso maior, pensou ela; um caso que envolvia o pobre Mendel. Ootimismo natural que ainda restava nela lhe dizia que ela sobreviveriaàquilo. Ninguém ainda havia cedido, isso era óbvio.

Então, quem eles estariam trazendo para surpreendê-la? Ela já vira

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Mendel — uma visão comovente e amedrontadora.Se fosse Vânia, e ele tivesse contado mentiras a respeito dela, ela

entenderia. Sob os cuidados de Rodos, ele já estaria em outro mundo.Ela não deixaria de amá-lo. Não iria confessar: ainda poderia sobreviver.

Se fosse Bênia, o querido Bênia das oito estrelas, dos sete mil rubis,ele estava além de qualquer censura. Ela tinha lhe telefonado aquele diapara dizer “eu te amo”. Agora o amava, novamente, convencida de queele era tão inocente quanto ela. Se nunca conseguisse sair da Lubianka,sempre seria grata por ter conhecido um amor como aquele.

Mas não confessaria, dissessem o que dissessem, porque erainocente. Se não confessasse, um dia seria libertada. E recuperariaBranquinha e Carlo. Agora, era tudo por eles.

A porta se abriu.Sashenka olhou para os próprios dedos, com um terrível

pressentimento. O momento chegara.Com a visão periférica, percebeu uma figura macilenta, que hesitava

no limiar da porta.— Sente-se, prisioneiro — disse Rodos, apontando para a cadeira em

frente a Sashenka, na mesa em forma de T. — Ali!Um velho muito magro, com o uniforme da prisão, hesitou

novamente, apontando para si mesmo.— Sim, você! Sente-se ali, prisioneiro. Rápido!Ela foi tomada pela expectativa. Era seu pai? Engoliu em seco. Ele

estava vivo? Testemunhara contra ela? Não tinha importância: se eleestivesse vivo, ela ficaria exultante.

Sentiu-se cheia de amor por seu pai, sua mãe, seus avós, todos eles.Papai! Qualquer coisa que tivessem feito a ele, qualquer coisa que ele

tivesse feito a ela, ela só queria abraçá-lo. Será que permitiriam que ela obeijasse?

— Acusada Zeitlin-Palitsin! — berrou Rodos. — Olhe para o prisioneiro.

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Estimado Josef Vissarionovitch, querido Koba.Escrevo a você como velho camarada seu, há mais de 25

anos, durante os quais servi ao partido e a você, suapersonificação ideal, sem me desviar nem uma vez da linhapartidária. Acredito que devo minha carreira bem-sucedida detrabalhador responsável, em nosso partido de operários ecamponeses, à sua confiança e à sua benevolência. Serei sempreobediente às ordens do Comitê Central, como sempre fui, masdesejo protestar contra os métodos de investigação usados emmim pelos trabalhadores dos órgãos. Eu tenho saúde precária(uma sombra no pulmão direito; angina e arritmia cardíaca;deficiência física decorrente de poliomielite na infância; e artriteem alto grau, decorrente de trabalho pesado e exíliosprolongados durante a época tsarista) e estou agora com 61anos. Como membro do Comitê Central, eu desejo reportar avocê, Secretário-Geral e membro do Politburo, que, ao chegaraqui, na Prisão Interna da Lubianka, pediram-me que confessasseque servia a potências estrangeiras. Quando me recusei, fuijogado em um carpete e espancado nos pés e nas pernas, comcassetetes de borracha, por três homens muito fortes. Nãopude mais caminhar e minhas pernas ficaram cobertas de marcasazuis e roxas, devido a hemorragias internas. Todos os dias, fuiespancado nos mesmos lugares, com uma correia de couro ecassetetes de borracha.

A dor foi como se tivessem despejado água fervente emcima de mim, ou me queimado com ácido. Desmaiei por diversasvezes, chorei, gritei, implorei para que falassem com você,camarada Stalin, sobre o que eu estava passando. Quandomencionei o seu nome, eles me golpearam no rosto, quebrandomeu nariz, meu osso malar e meus óculos, sem os quais nãoposso fazer quase nada, e começaram a bater em minha colunatambém. Meu autorrespeito, como bolchevique, quase meimpede de lhe contar mais coisas, Ilustre Camarada Stalin, e medói dizer isso: quando, tremendo e estirado no chão como umamontoado de roupas, eu me recusei novamente a dizer

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mentiras ao partido, os interrogadores se aliviaram sobre meurosto e meus olhos (e, fazendo isso, poluíram o nome de nossosagrado partido de Lenin e Stalin). Mesmo nos duros campos dekatorga, sob o tsar, eu nunca passei por um milionésimo dessemedo e sofrimento. Agora estou na minha cela, com todos osmúsculos tremendo, e mal consigo segurar a caneta. Sinto ummedo avassalador, eu que, em trinta anos como revolucionário,jamais conheci o medo, e uma vontade enorme de mentir paravocê, Josef Vissarionovitch, e de incriminar a mim mesmo e aoutros, inclusive trabalhadores honestos e responsáveis, emboraisso seja um crime contra o partido.

Eu compreendo que o nosso grande Estado necessita dasarmas do terror para sobreviver e triunfar. Eu apoio nossosheroicos órgãos em sua busca por Inimigos do Povo e espiões.Eu não sou importante. Somente o partido e nossa nobre causaimportam. Mas estou certo de que você não conhece essaspráticas e imploro a você, estimado velho camarada, GrandeLíder da Classe Trabalhadora, nosso Lenin de hoje, queinvestigue isso e alivie o sofrimento de um sincero e devotadoservo do partido e seu servo, Camarada Stalin.

Mendel Barmakid, membro do partido desde 1904.

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Um velho cadavérico, de pele translúcida e tufos de cabelo branco emum crânio pruriginoso, estava sentado à frente dela, vestido com ouniforme azul dos prisioneiros. Chupando as gengivas, olhava em torno ese coçava, espasmodicamente, revirando os olhos, para depois recair emuma imobilidade comatosa.

Sashenka nunca vira um zek, mas tudo naquela ruína humana gritavazek — um veterano dos gulagui. Ela sentia que ele passara anos emVorkuta ou Kolima, quebrando pedras e cortando árvores. Ele não tinhamais o cheiro das prisões, nem aquela astuciosa ânsia de sobrevivência,

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que a dominava agora. Aquele pobre invólucro existia sem esperança oualma. Agora ela entendia o verdadeiro significado de uma expressãofavorita de Beria e mesmo do seu Vânia: “moído até virar poeira docampo”. Ela nunca a entendera antes.

Finalmente, com as lágrimas escorrendo, ela conseguiu encararaquele rosto: seria o barão Samuil Zeitlin, preso em 1937? Não, nãopoderia ser o pai dela. Aquele homem não se parecia nem um pouco comseu pai.

Kobilov estalou os lábios com alegria de desportista. Sashenkapercebeu que os investigadores reparavam em sua impaciência.

— Vocês estão se reconhecendo? — perguntou Mogiltchuk.— Fale, prisioneiro — disse Rodos, com surpreendente cordialidade.

— Você a reconhece?Sashenka vasculhou a memória. Quem seria ele? Devia estar com

seus 80 anos, ou mais.Ele engoliu em seco, ruidosamente, e abriu a boca. Não tinha

dentes, suas gengivas eram pálidas e ulceradas. Ela notou uma marca emseu pescoço e percebeu que era uma contusão preto-arroxeada.

— É ela! É ela! — disse a criatura, com uma voz assombrosamenteeducada e bem modulada. — Claro que a reconheço.

— Qual é o nome dela? — perguntou Rodos, bruscamente.— Parece exatamente a mesma. Mas melhor.— Fale! Quem é ela?O invólucro sorriu maliciosamente para Rodos.— Pensou que eu tinha esquecido?— Quer que eu ajude você a se lembrar? — disse Rodos, ainda

brincando com os grossos cabelos que cresciam em seu sinal.— O que você pode fazer comigo agora? Acabar com meu

sofrimento?Rodos alisou o crânio rugoso.— Se você quiser um pouco mais de luta-livre... — Então levantou-se

e berrou com voz estridente, que sugeria uma violência maníaca: — Qualé o nome dela?

O prisioneiro ficou rígido. Sashenka teve um sobressalto e começou asuar.

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— Você vai me bater de novo? Não precisa fazer isso. Esta é abaronesa Aleksandra Zeitlin. Sash-sh-sh-shenka, que eu amava.

Rodos andou até a porta.— Tenho outro compromisso — disse a Kobilov.— Divirta-se — disse Kobilov. — Prossiga, investigador Mogiltchuk.— Acusada Zeitlin-Palitsin — disse Mogiltchuk —, você reconhece o

prisioneiro?Sashenka abanou a cabeça, fascinada e horrorizada.— Prisioneiro, qual é o seu nome?— Peter Ivanovitch Pavlov. — Era a voz de outro homem, em outra

cidade, em uma época já desaparecida.— Esse não é o seu verdadeiro nome, é? — disse Mogiltchuk,

encorajando-o gentilmente. — Esse é o nome falso, sob o qual você seescondeu como professor em Irkutsk por dez anos, quando, na realidade,você era um espião dos Guardas Brancos. Agora olhe para a acusada ediga a ela o seu nome verdadeiro.

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Em outra sala de interrogatórios, Bênia Golden estava sentado em umacadeira, em frente ao investigador Bóris Rodos.

— Você foi preso por traição e atividades antissoviéticas — disseRodos. — Reconhece sua culpa?

— Não.— Por que você acha que foi preso?— Por uma série de coincidências e pela minha incapacidade de

escrever.Rodos grunhiu e olhou para seus papéis, com um riso de escárnio

que achatou ainda mais seu largo nariz de boxeador.— Então você é um escritor, não é? Não admira que Mogiltchuk

quisesse interrogar você. Eu pensei que você fosse apenas um traidorimundo e um bosta. Escritor, é?

Bênia não conseguiu esconder sua surpresa.

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— Eu escrevi um livro chamado Histórias Espanholas que foi umsucesso, dois anos atrás, e depois...

— Que porra tenho eu a ver com isso, seu merdinha posudo? —cuspiu Rodos. — Só estou vendo um judeu convencido que eu possoquebrar ao meio, como um graveto. Posso moer você até você virarpoeira.

Bênia não duvidava disso. Rodos, com sua cabeça calva e amolgada,ombros superdesenvolvidos e pernas curtas, lembrava-lhe uma hiena.Bênia temia perder as pessoas que amava: sua filha e, acima de tudo, suaamada Sashenka. Elas eram tudo o que importava, agora.

— De novo: por que nós prendemos você?— Honestamente, não sei. Eu vivi em Paris e me relacionei com

escritores franceses e americanos. Conheci alguns dos generais que forampresos por serem trotskistas.

— E daí? Não me faça abrir a gaveta onde eu guardo meus porretespara transformar em pasta esse seu narigão judeu. Eu gosto de luta-livre— é como a gente chama aqui. Confesse suas atividades criminosas eimorais e eu não vou precisar suar. Conte toda a história da suadepravação sexual no Hotel Metrópole, quarto 403.

— Isso? — exclamou Bênia. Então ele fora preso por causa de seucaso com Sashenka? Gideon o avisara para não se meter com a esposa deum agente secreto. Mas mesmo nesses tempos tão puritanos, aquilo nãopodia ser tão sério, podia? Talvez fosse mandado para o exílio, em algumaprovíncia, bem longe de Moscou. Mas pelo menos ficaria vivo. Tinha queproteger Sashenka.

— Sim, isso — respondeu Rodos, segurando uma grossa pasta. —Conhecemos cada detalhe nojento.

— Entendo. O marido dela está por trás disso. Mas ela é inocente, eujuro. Não fez nada de errado. Ela é uma comunista leal. — Bêniaesquadrinhou o rosto de Rodos, mas era como tentar ler uma posta decarne.

— Quem disse que ela não é?— Então ela não está encrencada?— Essa informação é secreta, acusado Golden. Apenas confesse

como tudo começou.

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Bênia rezou para que Sashenka não soubesse de nada daquilo. Talvezela pudesse voltar a ser a boa esposa que sempre fora. Iria presumir queBênia fora preso como espião trotskista, iria desprezá-lo e se esqueceriadele completamente, continuando a levar sua vida de luxo e fidelidade aopartido. Ele a amava tanto que queria sofrer por ela e evitar que elasofresse.

Quando eles vieram prendê-lo, ele não ficara surpreso. Tinha sido tãofeliz, naquelas duas semanas de amor com Sashenka, que não conseguiaacreditar que aquilo fosse durar — embora soubesse que ela era overdadeiro amor de sua vida. Era um desses amores que só aparecemuma vez na vida, quando aparecem.

Sentado no carro, a caminho da prisão, ele observou as ruas dacidade, suas luzes liquefeitas através de suas lágrimas. Era de madrugada,antes do raiar do dia, quando as cidades se renovam: caminhõescoletavam lixo, porteiros molhavam degraus, velhas senhoras catavampapéis, um homem de macacão carregava um balde de leite. Mas asestrelas vermelhas do Kremlin, que haviam iluminado o quarto deles noMetrópole, pertenciam a ambos. Agora, ele iria sofrer: eles o fariam empedaços. Sentiu o sangue congelar.

No lado de fora, Sashenka continuaria a viver, aquela mulheradorável que ele amava. Ninguém nunca saberia o que havia em seuscorações, mesmo que o espancassem. A existência dela fora da prisão,como a de sua única filha, significava que ele viveria tanto quanto ela. Elanunca lhe dissera que o amava, mas ele gostaria que ela o tivesse feito...Por que ela não pôde lhe dizer aquilo, quando tanto sofrimento oaguardava? Ela queria fazê-lo esperar e, agora, provavelmente, ele teriaque esperar para ouvir aquilo em outro mundo.

Perguntou a si mesmo: qual seria a coisa certa para dizer? Comoproteger Sashenka? Ou ela não precisava de proteção? Sua curiosidadede escritor era tanta que, mesmo diante da morte, ele especulava sobreos últimos desdobramentos. O que recomendaria o seu Guia ProletárioSoviético para a Etiqueta do Adultério? — conjeturou ele, recordando-sede como ele e Sashenka tinham rido daquilo.

— Pare de resistir e confesse! — berrou Rodos.De repente, ele abriu uma gaveta de sua mesa, sacou um cassetete

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preto e golpeou Bênia no rosto — uma vez, outra vez e mais outra.Bênia caiu, com o rosto virado para o chão de concreto. Rodos foi

até ele e lhe aplicou chutes no nariz, fazendo o sangue esguichar. Então,bateu com o cassetete em seu rosto, rins, virilha e rosto novamente. Emagonia, Bênia vomitou bile, sangue e dentes.

— Sashenka! — gemeu, sentindo a cada golpe que ela não estavaem liberdade, sentindo que ela estava em algum lugar perto dali,sofrendo — e isso o deixou arrasado. — Eu a amo! Onde está você?

43

— Peter Sagan, capitão dos gendarmes — disse o velho zek, na maispolida e aristocrática das entonações. — Pronto, ela levou um choque!

Sashenka sentiu o ar lhe faltar. Ele não tinha morrido nas ruas dePetrogrado? Seu coração disparou, garras se cravaram em suasentranhas.

— Como você a conhece? — perguntou Mogiltchuk.— Eu já fui apaixonado por ela — disse o invólucro, com sua

pronúncia de membro do Corpo de Pajens e sócio do Iate Clube.— Você teve relações sexuais com ela?— Sim.— Isso é mentira! — gritou Sashenka, pensando no romântico, mas

casto, passeio de trenó; e, depois, naquela noite desgraçada, quandoSagan tentara estuprá-la.

— Silêncio, ou você vai ser retirada — disse Mogiltchuk. — Você vaiter sua oportunidade em um minuto. — Ela era virgem?

— Sim. Ela se tornou minha amante e eu a corrompi com perversõesincríveis. Também lhe dei cocaína, que eu fingia tomar como remédio.

— Nunca! — berrou Sashenka. — Esse não é Peter Sagan. Eu nãoreconheço esse homem. Ele é um impostor!

— Ignore-a, prisioneiro. Vamos continuar. Vocês tinham umrelacionamento profissional?

— Eu a usei... Eu odiava os revolucionários, eram gentalha... mas

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acabei me apaixonando por ela.— Nós não estamos interessados em suas reminiscências românticas,

prisioneiro. Qual era o seu relacionamento profissional?— Ela era minha agente dupla.— Quando você a recrutou para a Okhrana?— No verão de 1916. Nós a prendemos como bolchevique. Eu a

recrutei na Prisão de Kresti. Depois, passamos a nos encontrar emesconderijos e quartos de hotel, onde ela traiu seus camaradas.

— Isso não é verdade. Você sabe que não é verdade! Seja lá quemvocê for, você está contando mentiras! — Sashenka ficou de pé. Aspesadas mãos de Kobilov, cobertas de joias, caíram com força sobre seusombros, empurrando-a de volta para o assento. Um calafrio percorreu seucorpo, e ela começou a tremer.

— Ela recrutou outros agentes para você, em posição mais elevadana hierarquia de comando bolchevique?

— Sim.— Diga-nos quem.— Em primeiro lugar, Mendel Barmakid.Sashenka abanou a cabeça. Estava se afogando, águas se fechavam

acima de sua cabeça.— Mendel era um agente valioso, prisioneiro Sagan?— Ah, sim. Os outros líderes estavam na prisão, na Sibéria ou no

exterior. Ele era membro do Comitê Central e tinha contato com Lenin.— Durante quanto tempo ele foi agente duplo?— Mendel ainda é um agente duplo.— Mentiras! Seu miserável! — gritou ela de novo, com a energia se

esvaindo de seu corpo. — Você vai queimar no inferno por causa disso!Se você soubesse o que está fazendo! Se pelo menos você soubesse...— Ela começou a chorar.

— Controle-se, acusada — disse Mogiltchuk —, ou o Rodos vaiquebrar você ao meio. — Houve um momento de silêncio. — Depois daRevolução, Sagan, o que aconteceu com seus agentes da Okhrana?

— Passaram para a resistência clandestina, como eu mesmo fiz.— Sob o controle de quem?— Inicialmente, dos Guardas Brancos, mas depois nos tornamos

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servos de... uma desgraçada aliança de serpentes com cães vadios. —Nesse ponto, Sagan deu um risinho malicioso. Sashenka sentiu nele umamistura de vergonha e zombaria. Atrás de suas inquietas íris azuis, eleparecia estar chorando, implorando para que ela o perdoasse. Teria sidodrogado?

— Sob o comando de quem, Sagan?— Em última instância, sob o comando da inteligência japonesa e

britânica, mas recebíamos ordens da Oposição Unida, de Trotski eBukharin.

— Então, durante todos esses anos, você esteve em contato com aacusada?

— Eu era a ligação entre ela e os inimigos dos trabalhadoressoviéticos.

— Vocês se encontravam regularmente?— Sim, nós nos encontrávamos.— Isso é ridículo — berrou Sashenka. — Eu nunca ouvi falar desse

homem. O policial Sagan foi morto na Nevski Prospect em 1917. Essehomem é um ator!

— Quais foram os outros agentes que ela recrutou?— O marido dela, Vânia Palitsin. E, mais recentemente, o escritor

Bênia Golden, usando as mesmas técnicas sexuais degeneradas que eulhe ensinei quando ela ainda era uma garota.

— Então as inteligências japonesa e britânica, juntamente comTrotski e Bukharin, controlaram durante anos o traidor Mendel, no ComitêCentral, o traidor Palitsin, no NKVD, e o traidor Golden?

— Sim!— Seu miserável! — Sashenka se atirou sobre seu acusador, por cima

da mesa, mas quando seus dedos entraram em contato com ele, foicomo se estivesse agarrando areia. Não havia nada para segurar. O velhoestava tão fraco que caiu da cadeira, roçando a cabeça na beira da mesae se estirando no chão, como um amontoado informe.

Kobilov a levantou por trás, como se ela fosse uma boneca detrapos, e a jogou com força na cadeira.

— Cuidado, garota, nós temos que cuidar bem dele, não temos,rapazes? — disse Mogiltchuk, enquanto ajudava Sagan a se levantar. O

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velho ainda estava mole e mal conseguiu se sentar, suas pernas e mãostomadas por espasmos.

Sashenka sentiu o desespero dos condenados. Aquele espantalhoestava tocando o dobre fúnebre dela. Pensou em seus filhos. Oinimaginável acontecera. Nada era como ela havia imaginado.

Ela não era irrelevante para o caso, percebeu. Era o pivô — o centroda teia — e jamais seria solta, nunca mais voltaria a ver Branquinha eCarlo. “Preciso de tempo para acomodar as crianças”, dissera Satinov. Elarezava para que ele tivesse conseguido.

Estaria na hora de colocar em ação o plano de Vânia? “Só confessequando perceber que não tem escolha”, instruíra ele. Teria eleaguentado até agora?

— Bom trabalho, rapazes! — Kobilov bateu palmas e saiu, fechando aporta atrás de si com um chute de sua bota lustrosa.

Mogiltchuk pegou uma pasta intitulada Protocolo de Interrogatório ea abriu.

— Aqui está sua confissão. Você assinou todas as páginas, nãoassinou?

Sagan assentiu, sacudindo os joelhos e se coçando.O tchekista atirou a pasta na direção de Sashenka.— Aí está, acusada Zeitlin-Palitsin! Leia isso! Você não consegue se

lembrar disso? Como pode ter se esquecido?

44

— Camarada Stepanian, algum telegrama?Carolina entrou cambaleante no escritório do chefe da estação. Era a

manhã seguinte, um ventilador zumbia no teto e o calorento escritórioestava lotado naquele dia. Um velho camponês, de blusa e tamancos,dois olhinhos perscrutadores sobre uma longa barba branca, estavasentado em frente à escrivaninha; um jovem com uma barba ao estilo deKalinin, usando a túnica do partido, esperava sua vez, segurandopassaporte e passagens; um oficial do NKVD lia uma revista esportiva, com

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os pés sobre o radiador.O camarada Stepanian deu umas batidinhas sobre a pilha de

telegramas.— Não, não chegou nenhum telegrama...Carolina estava tomada pelo desespero. Satinov falhara com eles,

tudo tinha sido em vão.— Vou partir hoje — disse ela à beira das lágrimas. — Não posso

esperar mais.Puxando as crianças, arrastou-se até a porta e estava tentando abri-

la quando Stepanian, subitamente, deu um estalido com a língua, comose fosse um pica-pau.

— Espere! Não chegou nenhum telegrama — mas uma mulher estáesperando por você, perto do samovar, na cantina. Ela já está esperandohá algum tempo.

— Obrigada, camarada Stepanian. Muito obrigada! Eu poderia abraçarvocê... — e ela se apressou em sair.

— É a mamãe? — perguntou Carlo, enquanto andavam rapidamenteem direção ao café.

— Mamãe foi embora — disse Branquinha seriamente. — Carolina jádisse isso a você. Nós estamos em uma aventura.

— Vamos — disse Carolina. — Corram! Depressa! Oh, meu Deus,tomara que ela não tenha partido!

Dentro da cantina, ao lado do samovar fumegante, perto da fila para ochá e água quente, e distante das bandejas de salgadinhos gordurosos,pirojki e pelmeni, estava sentada uma senhora de aspecto digno, commechas cinzentas ao redor das orelhas e rosto em forma de coração.Usando uma cloche fora de moda e um terninho, Lala bebia uma xícarade chá, examinando ansiosamente a multidão. Quando viu a babá e asduas crianças de roupas encardidas, levantou-se e as chamou com umsinal.

— Olá, eu vim para me encontrar com vocês. — Ela sorriu para todose estendeu a mão para Carolina, que parecia além dessas cortesias. Asduas mulheres se entreolharam por um momento e, então, abraçaram-secomo velhas amigas.

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— Peço desculpas por ter demorado tanto. O trem atrasou e eu nãotenho prática com essas coisas. Venham, vamos sentar nesta mesa —disse ela, falando devagar e fixando os olhos nas crianças, os filhos de suaquerida Sashenka. — Eu tenho um quarto no Hotel Revolução, emRostov. Podemos ir até lá para nos lavarmos e dormir um pouco.Podemos comer lá, também. Eu tenho papéis carimbados para as criançase trouxe algum dinheiro.

Carolina cambaleou e então sentou-se, enterrando o rosto nas mãos— e Lala percebeu que aquele momento era penoso para a babá. Carlocorreu até Carolina e beijou seu cabelo.

— Você é a melhor amiga que eu tenho no mundo! — disse ele,afagando o rosto dela.

Lala pousou a mão no ombro de Carolina.— Estamos vivendo tempos difíceis e você foi maravilhosa em vir até

aqui. Por favor, Carolina, pare de chorar! Eu não pedi esse trabalho. Comovocê, eu estou me arriscando muito ao fazer isso. Eu também estou forado meu ambiente.

— Mas você tem um plano? Sabe o que fazer?— Sim, Carolina, eu tenho instruções. Vou fazer tudo para seguir

essas instruções.Mais uma vez, olhou para as crianças, que também a olharam,

fixamente.— Quem é ela? — perguntou Branquinha.— Seja educada, Branquinha! — Lala observou Carolina retornar aos

seus modos bruscos. — Essa senhora vai ajudar vocês.— Onde está a mamãe? — perguntou Carlo, o rosto se contraindo.— Você deve ser o Carlo — disse Lala. — Eu trouxe uma coisa para

você.Ela remexeu na sacola de lona e tirou uma lata de biscoitos, ilustrada

com uma imagem do Kremlin.Carlo não conseguia tirar os olhos da lata. Lala a abriu e Carlo prendeu

a respiração, ao contemplar o amarelo mágico dos biscoitos, com seusdeliciosos recheios de creme e geleia. Mas não se moveu.

— Eu soube que você gosta desses biscoitos — disse ela, sentindoque Carolina lhe sorria.

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— Escute, Carlo — disse Branquinha —, ela sabe que são os seusfavoritos. — Branquinha pegou um e o entregou a Carlo, que o comeu.Depois, segurou a mão da irmã.

— Olá, Branquinha. Essa é sua amiga Almofada? — perguntou Lala.— Você já ouviu falar da Almofada?— Claro, a Almofada é famosa. Olá, senhorita Almofada! Você é mais

loura do que sua mamãe, Branquinha, e seus olhos são azuis. Mas suaboca é como a dela — e você, Carlo, é parecido com seu pai.

— Você conhece a mamãe? — perguntou Branquinha.— Você conhece o papai? — perguntou Carlo.— Ah, sim — disse Lala, lembrando-se do dia em que se encontrara

pela primeira vez com Sashenka, que lhe despertara um amorinstantâneo, como se fosse sua própria filha. Lembrou-se das noites quepassara com Sashenka em sua cama e da mansão na avenida Marítima,dos passeios de trenó pelos bulevares de São Petersburgo, dasgargalhadas enquanto patinavam no gelo, da excitação de montar nospôneis do sítio. Ela fora a verdadeira mãe de Sashenka e, embora não avisse há quase dez anos, no mundo enlouquecido e homicida em queSashenka ingressara, pensava nela todos os dias e conversava com oretrato da menina com o uniforme do Smolni, como se ainda estivessemjuntas. Sabia que estava ali, naquela estação, não apenas por si mesma,ou por Sashenka — mas também por Samuil Zeitlin, estivesse ele vivo oumorto.

Agora Sashenka fora engolida pelo partido ao qual servira tãofielmente — e o único modo de Lala expressar seu imenso amor eraempreender esta inquietante missão para a família Zeitlin.

— Eu conheço a mãe de vocês melhor do que qualquer pessoa viva— disse ela a Carlo e Branquinha. — Mas não vamos pensar na mamãeagora. Temos que fazer planos para o futuro, para a próxima aventura.Ah, e vocês podem me chamar de Lala.

— Então você é a Lala? — disse Branquinha. — Mamãe me disse quevocê dava banho nela todos os dias. Eu gosto de você. Você é muitoalmofadosa.

As duas babás sorriram uma para a outra, partilhando a admiraçãoque sentiam por Branquinha — então olharam para outro lado,

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abruptamente. Aquilo era muito doloroso.Virando as costas para a estação, saíram andando por Rostov-no-Don,

cada uma segurando a mão de uma criança.— Me balancem! — guinchou Carlo, chutando o ar, feliz pela primeira

vez, em dias.Enquanto segurava um dos braços do menino e Carolina, o outro,

Lala não pôde deixar de pensar que um estágio na vida de Branquinha eCarlo chegara ao final — e uma nova fase estava prestes a se iniciar.

45

Sashenka arrastou-se até a porta da cela.— Quero falar com Kobilov!A portinhola se abriu; olhos turvos e entediados piscaram; a

portinhola se fechou novamente. Sashenka permaneceu deitada,transpirando no beliche. Há quantos dias já não dormia mais do que dezminutos? Perdera a conta. Perdera a noção de dia e noite. Não haviajanela na cela, apenas uma luz brilhante, que penetrava nela e queimavaaté os recantos mais profundos, escuros e frios de sua alma.

A acareação com o capitão Sagan mudara tudo. Ela pensava nisso diae noite, entrando e saindo de delírios. Acordada, sonhava com ascrianças, com Vânia, com Bênia Golden, e se debatia com questõesabsurdas: poderia uma mulher amar dois homens ao mesmo tempo, umcomo amante, outro como marido? Ah, sim, era possível. Acabava caindoem uma inconsciência sem sonhos, afundando em insondáveis águasnegras, onde não via nada. Então era acordada bruscamente:

— Nada de dormir!Nem mesmo sabia se Vânia estava vivo. Sabia que eles seriam

implacáveis. Ele era um deles, sabia onde os corpos estavam enterrados.Agora eles o esmagavam. Ela sentiu vontade de vê-lo.

Pensou em pedir para se encontrar com ele. Queria confirmar sepoderia dar o próximo passo, mas temia que qualquer suspeita de quetinham coordenado um plano pudesse atrair para os filhos a atenção dos

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investigadores. Coelhinho e Almofada, aqueles amores, tinham iniciado háuma semana sua perigosa aventura.

Qual era mesmo o cheiro deles? Feno e baunilha. Como Branquinhadizia “vamos fazer a Almofada dançar”? Incansavelmente, Sashenka seesforçava para evocar a pronúncia exata das crianças, para desenhar seusrostos. Mas, às vezes, a forma de um nariz ou a curvatura de uma testa(aquelas testas deliciosas, seus lugares favoritos para beijar, bem onde oscabelos se encontram com as têmporas, oh, ela poderia aconchegá-lospara sempre) a confundia, e os rostos afundavam na impiedosa águanegra. Talvez fosse a natureza tornando as coisas mais fáceis para ela,permitindo que esquecesse.

Sua mente mal funcionava, ela quase não se dava conta da vida emtorno dela: no transportador, ela apenas existia. Mas, se enlouquecesse,não poderia ajudar Carlo e Branquinha. Sentiu que chegara a hora de daro próximo passo.

Era tarde da noite quando vieram buscá-la. O governo soviético, acomeçar por Stalin, funcionava durante a noite. Ela fora ingênua em nãoperguntar nada a Vânia, quando este chegava em casa de madrugada,cheirando como um lobo velho, ou como se tivesse estado em uma brigade bar. Mas a discrição dele era conveniente, pois, assim, não precisavalhe perguntar o que fizera durante a noite. Agora entendia que, entreambos, houvera sempre um acordo tácito.

Quando chegaram à sala de interrogatórios — que existia no limbo,em sua mente, a meio caminho entre os gabinetes apainelados, na frentedo complexo, e as masmorras da Prisão Interior —, ela sentiu-se aliviada,como se sentira estranhamente aliviada quando tinham vindo buscá-la.

Entrou na sala e foi golpeada nas costas com um cassetete deborracha, tão violentamente que caiu no chão. Então foi chutadaferozmente, o que a fez se encurvar e gemer. Os cassetetes — haviadois homens lá — atingiam suas costas, seus seios, seu estômago,qualquer lugar exposto, mas principalmente suas pernas e seus pés. Elagritou de dor e o sangue escorreu por seu rosto, entrando nos olhos.Tentou fingir que aquilo era um procedimento médico desagradável,necessário e até terapêutico, que terminaria logo, mas isso não funcionoupor muito tempo.

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Em meio aos odores combinados de vodca, colônia e linguiça deporco, que emanavam de seus algozes, na agonia dos golpes queatingiam seus seios, nos grunhidos viris e nos arquejos daqueles homensfora de forma, Sashenka descobriu que, para eles, espancá-la era umesporte frenético. Talvez o pedido dela tivesse interrompido algumbanquete no Clube do NKVD — ou mesmo uma orgia em algumagarçonnière.

Os homens pararam por um momento, respirando pesadamente.Limpando os olhos inchados, tremendo e ofegando com a dor intensa,ela olhou para Kobilov e Rodos, ambos de botas, camisas brancas e calçasde montaria atadas com presilhas. Estavam de pé, lado a lado, homensmuito diferentes, mas com os mesmos olhos: injetados de sangue,amarelados e selvagens, como lobos iluminados por holofotes.

— Eu quero confessar — disse ela como pôde. — Tudo. Parem comisso. Eu imploro!

46

— Oba! Oba! — berrou Kobilov, pulando para cima e para baixo, como ummenino de escola em um jogo de futebol. — Deus existe!

Lembrou-se de sua mãe, a georgiana alegre, de seios fartos, quetanto o amava. A última vez que estivera com ela, em seu novoapartamento de Tbilisi, ela o tinha avisado:

— Cuidado com a infelicidade que você causa, Bogdan! Lembre-se deDeus e de Jesus Cristo!

Ele vestiu a túnica e limpou a testa com um lenço de seda.— Agora chega! Faça com que ela se limpe, camarada Rodos, deixe

que ela durma, esfrie a cela dela e dê um café para ela quando elaacordar. Depois, ponha caneta e papel na mão dela e chame oMogiltchuk para ser bonzinho com ela. Vou voltar para a festa, aquelaséguas todas estão me esperando! Graças a Deus, podemos parar antesde acabar completamente com a beleza dela. Isso é trabalho duro,Sashenka, para um homem que ama as mulheres. A tortura pura não é

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fácil, não é fácil mesmo.E foi-se embora, com um aceno dos dedos gordos e enfeitados,

fechando a porta com um chute de sua bota reluzente.Sashenka dormiu por todo o dia seguinte. A cela estava

deliciosamente fria e escura, mas seu peito doía muito — teriam quebradoalguma costela? Em certo momento durante a noite, um doutor, umespecialista de barba grisalha e bata branca, deixou sua elegante clientelana cidade e veio examiná-la naquele mundo de mortos vivos. Ela estavasemiacordada, mas sonhou que ele era o desaparecido professor IsraelPaltrovitch, que fizera o parto de Sashenka, no hospital do Kremlin.Alguma coisa em seu silêncio surpreso, quando percebeu que era ela,alguma coisa em seu jeito manso de falar e modos aristocráticos, emboraele mesmo parecesse tão alquebrado, alguma coisa no conforto quegentilmente trazia no meio da noite, fez com que se lembrasse dele. Elaqueria falar com ele sobre Branquinha.

— Professor, é você?...Ele pousou os dedos tranquilos em sua mão e a apertou.— Apenas descanse — disse ele, e em voz mais baixa: — durma,

querida.Ele lhe deu injeções e esfregou uma pomada curativa sobre seus

músculos.Quando ela acordou, não conseguia se mover. Seu corpo estava

negro e roxo, sua urina estava vermelha. Então comeu e dormiu umpouco mais. Eles permitiram que se lavasse e caminhasse no pátio deexercícios, onde, claudicando, olhou para a maravilhosa tenda azul-turquesa que se estendia sobre ela. O ar estava agradável, limpo etépido. Era como se ela tivesse nascido de novo.

Tivera sorte, de certa forma, disse a si mesma. Tivera sorte em tersido amada e criada por Lala; em ter se casado com Vânia e gerado seusfilhos; em ter sido acariciada por Bênia Golden, um deleite de sete milrubis, um amor selvagem e despreocupado em uma vida de bom senso etrabalho duro. Conhecera pessoalmente Lenin e Stalin, os titãs da históriahumana. Considerando que sua vida estava prestes a terminar, agradeciaa Deus por ter sido agraciada com tudo isso. Que tempos felizes tivera!

Eles lhe tirariam tudo, ela sabia, e entregaria tudo o que quisessem

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— e mais. As palavras que iria pronunciar e as confissões que iria fazereram uma forma de suicídio a longo prazo, mas indispensáveis para seuúnico leitor: a Instantzia, o camarada Stalin, que encontraria, em suasofegantes reminiscências, tudo o que sempre quisera acreditar a respeitodo mundo e das pessoas que odiava. Vânia contara a ela sobre assombrias visões de Stalin e ela iria satisfazer cada uma delas. Vânia, seainda estivesse vivo, faria o mesmo, de forma menos vistosa. Ela nemmesmo sabia, provavelmente jamais saberia, por que ela, Mendel, Bênia eVânia tinham sido presos. A rede de intrigas estava fora de seu alcance.Tudo o que importava é que ela era o centro de tudo, ela destruíratodos eles. Ela e Peter Sagan.

Eles poderiam mantê-la na geladeira por meses, mas, quando asentenciassem (e essa parte, essa extinção, esse indescritível final, aviolenta conclusão dessa coisa misteriosa, infinita e vibrante chamadaVida, ela ainda não conseguia imaginar), as crianças estariam instaladas emalgum lugar, com novos nomes e destinos, sãos e salvos no mundo dosvivos — não no mundo dos mortos, o mundo dela. Em pensamento,transmitiu seu amor a elas, seus agradecimentos a Satinov, seu amor atodas as pessoas preciosas para ela. Teria que deixá-los. Era comunistadesde os 16 anos. Fora sua religião, o êxtase do absolutismo, a ciência dahistória. Mas agora percebia, tarde na vida, que aquilo, seu suicídioespecial, fantástico e confessional, seria sua última missão. Ela haviaesquecido que era mãe. Mas se tornaria mãe novamente. Agora estavagrávida de um propósito.

No pátio de exercícios, Sashenka olhou para o céu e para as nuvensdançantes, que assumiram a forma de um trem, de um leão e do perfilbarbudo de um rabino. Seria o rabino de Turbin, seu avô? E aquilo ali?Poderia ser um coelho e uma almofada rosa, iluminados pelos raios do solque acabara de se pôr... Talvez, afinal de contas, os místicos tivessemrazão, a vida era apenas uma quimera, um fogo no deserto, um transefebril. Mas a dor era real.

Quando chegar o momento da Punição Maior, prometeu a si mesma,darei boas-vindas aos sete gramas de chumbo e deixarei uma expressãode amor por Branquinha e Carlo nos portões da eternidade. Era a hora doato final.

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47

— Aqui está seu prêmio — disse Kobilov, acolhendo-a de forma cordial nasala de interrogatórios. O agente secreto ficou observando a belaprisioneira, enquanto esta sentia um leve odor e, depois, um forte aromade café torrado, ligeiramente amargo.

— Você tem que confessar suas atividades criminosas e traiçoeiras —disse Mogiltchuk, servindo-lhe café com um bule de metal.

Ela sentou-se em uma cadeira. Sua pele era muito branca, entre osvergões e machucados; e ela estava magra. Mas aqueles lábios que nuncase fechavam, aquelas ilhas de sardas de cada lado do nariz e aqueles seiosperturbavam Kobilov, que estava sentado no peitoril da janela,balançando um novo par de botas de pelica cor de café. Ele gostavaquando um caso chegava a esse estágio. Havia certa camaradagem no are ele não precisaria mais bater nela, embora um round de luta-livre comum pilantra de verdade fosse um esporte estimulante. Então sentiu queos olhos cinzentos dela pousavam sobre ele, novamente grandes,luminosos e vigilantes.

Piscou para ela e franziu o nariz. Tirou do bolso um maço de cigarroscom o desenho de um crocodilo.

— Seus egípcios favoritos — disse, tirando um e jogando o maço paraela.

— Eu nunca poderia imaginar, quando me tornei bolchevique, que iriaacabar aqui — disse ela.

— Quando você escolheu a vida revolucionária e colocou a buscapelo santo graal acima de tudo, mesmo com 16 anos, você embarcou emum jogo de vida e morte — disse Kobilov, acendendo o cigarro dela e,depois, o dele. — Foi o próprio camarada Stalin quem me disse isso.

— Mas eu mudei — disse Sashenka, expelindo rendilhados anéis defumaça.

Kobilov ergueu os olhos para o céu.— É irreversível — disse ele.— Como um trenó em disparada, de onde você não consegue mais

saltar...— Hora de trabalhar — disse Kobilov.

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Mogiltchuk ergueu sua caneta e alisou a imaculada folha de papel.— Comece a confissão.Sashenka tirou o cabelo da testa. Tinha um corte na bochecha e

todo um lado de seu rosto ainda estava inchado, cercado por um arco-írisde roxo profundo, amarelo-mostarda e vermelho-papoula.

Kobilov sentia-se como um caçador que encurrala um nobre animal e,no momento em que faz pontaria no coração, não consegue deixar deadmirá-lo. Estava maravilhado com a coragem e o autocontrole dela.

Sashenka passou os dedos pelos lábios e enfrentou o olhar deKobilov.

— Gostaria de começar pelo dia em que fui presa pela Okhrana, nafrente do Instituto Smolni, em São Petersburgo, no inverno de 1916. Foiquando eu fui recrutada pela polícia secreta tsarista e,consequentemente, pela inteligência britânica, alemã e japonesa — e porTrotski, empregado delas. Posso começar pelo dia em que tudocomeçou?

48

Carolina ouviu a porta de seu quarto de hotel se fechar mansamente. Oquarto fervilhava de insetos: o teto e até mesmo as colchas dos leitosestavam cobertos de corpos lustrosos, que pareciam caviar vivo. Ascrianças tinham ficado fascinadas com eles. Em uma das camas gêmeas,Carolina dormira com Carlo, que se enrolara nela de tal forma quepareciam uma só escultura. Depois da estação de trens, aquele quartoparecia a coisa mais luxuosa da Terra. Mas agora, enquanto despertava deum sono extremamente profundo, ela sabia que aquele clique nafechadura só poderia significar uma coisa.

Pulou da cama, correu até a janela e, colocando as mãos contra ovidro, olhou de olhos arregalados para a rua abaixo. Em meio às carroçaspuxadas por cavalos, caminhões e carros, viu mulheres de vestidos florais,com lenços vermelhos na cabeça, e os uniformes verdes característicosde uma cidade provincial soviética. Então, avistou as crianças, que já

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haviam atravessado a praça e caminhavam em direção à estação.Seguravam a mão da sra. Lewis, duas minúsculas figuras ao longe.

Mas Carolina conhecia cada maneirismo de suas posturas, o modo comoCarlo batia com os pés quando andava, e a graça saltitante das pernascompridas de Branquinha, que tanto lembrava a mãe. Por um momento,teve vontade de correr atrás das crianças, alcançá-las e abraçá-las, eabraçá-las novamente... Mas sabia que aquela partida abrupta fora amelhor coisa a ser feita.

O trem logo partiria, ganhando velocidade. Branquinha e Carlodeixariam para trás mais uma pessoa amada e entrariam em uma novaexistência.

Sozinha no quarto, chorou ruidosa e abertamente.Imprecou contra aquela babá gentil que estava agora com as crianças

— e talvez ficasse com elas. Entretanto, embora Lala jamais pudessecuidar delas de forma tão amorosa quanto ela (ninguém conseguiria fazerisso!), as crianças estariam melhor sob os cuidados de Lala do que comestranhos. Mas Carolina sabia que Lala não poderia ficar com elas parasempre; tinha ligações perigosas e ligações tinham que ser evitadas,conforme explicara o camarada Satinov. Lala estava levando as criançaspara algum outro lugar. Ela mencionara um orfanato em Tbilisi, mas issoera para a papelada. Lá, as identidades das crianças seriam lavadas e suasadoções, oficializadas.

Fora difícil fazê-las dormir na noite anterior, embora estivessemexaustas e gratas pelas camas. Gritavam pela mamãe e pelo papai. Asduas babás as afagaram, abraçaram e lhes deram seus biscoitos favoritos,até que, por fim, as crianças as abraçaram e se renderam ao sono.

As duas babás sentaram-se então no banheiro e Carolina, franzindo atesta para se concentrar, repassou tudo que sabia sobre as crianças: oque amavam, o que detestavam, os alimentos, os passatempos e os livrosfavoritos. No final, em uma espécie de agonia, sussurrou:

— Fale aos novos pais sobre a Almofada, fale do Coelho. É tudo oque sobrou das vidas deles!

E Lala entendeu.— Eu sei como essas crianças são sensíveis, Carolina. Cuidei de

Sashenka por tanto tempo...

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— Como era ela? — perguntou Carolina. — Era como...? — e olhouem direção ao quarto, mas não conseguiu falar mais nada. Nada mais dedetalhes. Seria um peso muito grande para qualquer uma das duas.

As duas mulheres, a inglesa e a alemã do Volga, abraçaram-se emlágrimas. No final, cada uma se deitou com uma das crianças econseguiram dormir também, no cálido quarto de hotel com vista para oDon, onde Pedro, o Grande, um dia navegara.

Enquanto arrumava a mala e tomava o ônibus para retornar ao seuvilarejo, Carolina se lembrou das três figuras a caminho da estação. Ascrianças puxando a titubeante Lala em direções diferentes, rindo, pensouela, pelo jeito que Carlo jogava a cabeça para trás e Branquinha saltitava.Compreendeu então que vira Branquinha e Carlo pela última vez. Logoseriam crianças diferentes, com novos nomes, pertencendo a novasfamílias.

— Adeus, meus queridos mais amados! — disse em voz alta. — Deusabençoe vocês. Que meu amor acompanhe vocês para onde forem epermaneça com vocês, quem quer que vocês venham a ser.

Nem pensou no que poderia estar esperando por ela.Havia mulheres bondosas como Carolina, na agonia da Rússia, quando

as pessoas mais decentes se tornaram cruéis, ou olharam para o outrolado. Tais pessoas eram raras. Mas existiram. Sozinhas, mantiveram acesasas chamas do amor.

49

Era o alto verão, a época do ano em que Tbilisi se transforma em umacidade agradável, com cafés ao ar livre e calçadas cheias. No CaféBiblioteka, Lala Lewis estava servindo vinho para um de seus clienteshabituais quando as portas se abriram.

Um velho de pele pálida e lustrosa entrou no salão. Vestia um ternosépia surrado, carregava uma pequena mala de couro e usava um bigodegrisalho bem aparado. Com dificuldade, em passinhos curtos, andou até obalcão do caixa. Tengiz, o gerente, não tinha certeza se estava

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reconhecendo aquela aparição fantasmagórica: seria um milagre? Um dos“cadáveres sortudos” que retornava do mundo dos mortos?

Por alguns momentos, a inglesa observou em silêncio aquelacaminhada cambaleante, com os olhos se arregalando cada vez mais e aboca se abrindo para gritar, antes mesmo que se ouvisse qualquer som.

Então, soltou um gritinho de adolescente, como se tivesse 16 anos,e transpôs o assoalho quase aos pulos para receber o marido.Reconhecera a “não-pessoa” Samuil Zeitlin, preso em 1937 e sentenciadoà morte, mas perdoado por um centímetro de tinta da caneta docamarada Stalin. Fora, afinal, despachado para os gulagui de Kolima, nonordeste da Sibéria. Poucos meses antes, contra todas a probabilidadesdo Destino, Zeitlin, o maior inimigo da classe trabalhadora, tinha sidoperdoado.

— Meu Deus! — disse Lala em inglês. — Samuil! Você está VIVO! — Ese jogou nos braços dele, para receber seu frágil abraço, quase oderrubando no chão.

Nunca lhe passara pela cabeça que ele ainda pudesse estar vivo.Rapidamente, serviu-lhe uma dose de aguardente, que ele engoliususpirando.

— Graças a Deus você ainda está aqui, querida Lala — disse ele,caindo sobre os joelhos, bem ali no café, beijando as mãos e até os pésdela.

— Vamos levantar — disse ela, ajudando-o a se pôr de pé,preocupada em não fazer uma cena. — Você é mesmo um milagre.Desde que o Terror terminou, poucos voltaram — “cadáveres sortudos” écomo são chamados.

— Se você soubesse, nunca acreditaria nas coisas que eu vi acaminho de Kolima, nas coisas que eu vi homens fazerem a outroshomens...

Lala o fez sentar a uma mesa e lhe trouxe outro copo deaguardente, um prato de feijões lobio e uma fatia quente dekhatchapuri. Ele lhe contou a coisa estranha que ocorrera. Um guarda doNKVD viera até o escritório, onde ele trabalhava como contador docampo de trabalhos forçados, no distante inferno de Kolima, e o intimaraa ir até o apparat do comandante, onde lhe pediram que fizesse um

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recibo de seus pertences. Devolveram-lhe seu velho terno e os sapatos eo convidaram para um almoço com o comandante, em que foram servidascosteletas de vitela, quase o mesmo prato, por coincidência, queDelphine preparava diariamente na mansão da avenida Marítima. Então, foilevado a uma barbearia (o barbeiro era um antigo nobre) e libertado. Comuma pequena quantia que lhe deram, iniciou sua longa e vagarosa jornadade volta a Tbilisi.

Depois que se restaurou um pouco, Lala e Tengiz o ajudaram a subiras escadas até o quarto dela. Tengiz lhes trouxe água quente e saiu. Eladespiu Zeitlin e, com uma esponja, lavou seu corpo debilitado.

Sentado à beira da cama, Samuil olhou para ela, fazendo perguntascom os olhos. Ela sabia que ele queria notícias de Sashenka — mas nãotinha coragem de perguntar.

Com um suspiro, ele se deitou, fechou os olhos e dormiuimediatamente.

Lala deitou-se ao lado dele, com a cabeça em seus ombros. Naquelemomento, seu amor por ele era tanto que não lamentava nada. Pensouque seu nascimento e sua infância, passados na Inglaterra, deveriam serobra de sua imaginação. Parecia-lhe que toda a sua vida transcorrera naRússia, com os Zeitlins. Sua família em Hertfordshire já não recebia umacarta dela há muitos anos. Provavelmente, achavam que estava morta. Eestava. Audrey Lewis, a garota inglesa, estava morta.

Ela amava Samuil há quase trinta anos, e tinham vivido juntos pormais de vinte: a família dele era sua família. Ela chorara pela morte dele esofrera em estoico silêncio, como a prudência recomendava.

Nunca culpara Samuil por tê-la mantido na Rússia — haviam sidofelizes juntos. Era uma bênção que não a tivessem prendido e que elaainda trabalhasse no café, saudável e preparada, esperando que eleretornasse. E ali estava ele, o seu Samuil, vivo, de volta do exílio, egressodo mundo dos mortos.

Ela beijou seu rosto e suas mãos, inalando seu aroma masculino debiscoitos enfumaçados. Samuil estava quase como ela se lembrava.

Ele abriu os olhos, como se não estivesse realmente acreditando queestava ali, sorriu e voltou a dormir.

Lala acariciou sua pele, o pergaminho que resultara dos gulagui,

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conjeturando sobre como e quando iria lhe falar sobre o heroísmo de suafilha, sobre o que acontecera na estação ferroviária há poucas semanas, esobre como ela e Sashenka, juntas, haviam salvado Branquinha e Carlo.

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Parte TrêsCáucaso, Londres, Moscou, 1994

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1

— Faltam três horas, doze minutos e dezoito segundos para a saída dotrem para Londres — gritou Katinka, correndo até a janela de seu quartoem sua camisola rosada, quase escorregando no rugoso tapete amarelo,e escancarando as cortinas marrons, marcadas pela umidade. Depois,olhou para o espelho. Viu a si mesma, sorrindo. Atrás, um quarto caótico,com roupas espalhadas por todos os lados e uma mala arrumada pelametade. A luz da alvorada começava a iluminar o casebre da rua principalde Beznadejnaia, um vilarejo nas fronteiras setentrionais do Cáucasorusso, tão remoto que os habitantes da região diziam que era “surdo parao mundo”.

— Mamotchka! Papotchka! Onde vocês estão? — gritou ela, abrindoa porta do quarto.

Na cozinha, que também fazia as vezes de sala de estar, viu o médicoe sua esposa — já vestidos. Ela sabia que seu pai devia estartranquilizando sua mãe, dizendo que a viagem da filha transcorreriacalmamente, que eles chegariam à estação com tempo de sobra, que oassento já estava reservado (voltado para o lado correto, pois a queridafilha deles enjoaria, se viajasse de costas), e que o trem chegaria a tempopara ela tomar o ônibus até o aeroporto de Cheremetievo, em Moscou,onde faria o check-in na Aeroflot, para o voo até o aeroporto deHeathrow. Sua mãe deveria estar tranquilizando seu pai, dizendo queKatinka levaria comida suficiente para a viagem e que tinha roupasadequadas para Londres, onde, diziam, a chuva nunca parava e onevoeiro jamais se dissipava. Estavam muito mais nervosos do que ela,pensou Katinka.

Katinka sabia que os pais estavam divididos quanto àquele misteriosotrabalho em Londres. Tinham ficado muito orgulhosos quando elarecebera as notas mais altas em história, na Universidade de Moscou. Masquando o acadêmico Beliakov, professor dela, mostrara a ela o anúncio noBoletim do Departamento de Ciências Humanas, seu pai lhe implorara paraque não fosse.

Quem era esse tipo de gente que vivia em Londres, com dinheiropara contratar uma historiadora?, perguntara ele. Mas Katinka não

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conseguira resistir. Pesquisar a história de uma família, investigar o passadodistante... Ela imaginou um jovem e culto conde Vorontsov, ou umpríncipe Golitsin, vivendo em uma casa dilapidada no centro de Londres,repleta de samovares antigos, ícones e retratos de família, ansioso paradescobrir o que ocorrera com sua família, seus palácios e suas obras dearte do século XVIII — o período de sua especialidade. Ela gostaria de ternascido nessa época elegante...

Nunca estivera no exterior, embora tivesse passado três anos comouniversitária residente, na distante Moscou. Não, a oferta era muito boapara ser ignorada: jovens historiadores especializados no século XVIII nemsempre têm a oportunidade de receber dólares americanos, tão úteis, ede viajar para Londres.

O pai de Katinka, o dr. Valentin Vinski, fumava um cigarro e andavade um lado para outro, enquanto sua mãe, Tatiana, uma criatura leve egentil, com cabelos tingidos de vermelho brilhante, atarefava-se nacozinha, juntamente com a sogra, a babuchka — Baba, para encurtar. Emmeio à fumaça de alimentos cozinhando, Baba, uma camponesaatarracada, de ombros largos, usando um vestido floral, lenço escarlate evelhas meias medicinais, presas com elásticos, movia-se como umdinossauro na neblina.

Das panelas em que borbulhavam caldos de vegetais, erguia-se umvapor tão denso que era difícil enxergar as duas mulheres. Era como seaquela umidade nutritiva tivesse impregnado toda a casa. Como ummilhão de lares soviéticos, tudo o que havia dentro de casa — tapetes,cortinas e roupas — estava amarelado por vapor, umidade e gordura.

— Aí está você! — disse Katinka, saltando para dentro da sala. —Você se levantou há quanto tempo?

— Eu não dormi nem um pouco! — respondeu o pai. Era um homemalto, de pele morena e olhos castanhos. Embora estivesse sempreexausto e seu cabelo grisalho já rareasse, Katinka achava que elelembrava um daqueles atores de filmes da década de 1940. — Já colocoutudo na mala?

— Vamos com calma, papotchka!— Bem, você tem que se apressar...— Ah, papotchka! Pai e filha se abraçaram, ambos com lágrimas nos

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olhos. Todos ali choravam com facilidade e Katinka, a mais jovem de trêsfilhos, uma adorada temporã, mimada e de coração mole, era o centro degravidade da família. Seu pai era um homem atencioso. Não ria muito; naverdade, não falava muito e, quando o fazia, era tortuosamente lacônico— sim, era idolatrado nas vizinhanças, onde fizera o parto de muitosbebês, dos bebês destes bebês e até dos bebês dos bebês dos bebês.— Eu não sei como trouxe ao mundo uma criança autoconfiante etagarela como você, Katinka — dissera ele uma vez. — Mas você é a luzda minha vida. Ao contrário de mim, você pode fazer qualquer coisa!

Ele estava certo — ela sabia que tinha a segurança de uma meninamuito amada, na mais feliz das famílias.

— Sua comida já vai ficar pronta, menina, não se preocupe — disseBaba, cujas gengivas já quase não tinham dentes. — Vá chamar oPercevejo, ou ele vai perder a sua partida! — “Klop”, ou Percevejo, eraSerguei Vinski, o avô de Katinka.

Katinka trotou pelo corredor em direção ao banheiro, passando porseu pequeno quarto, com uma cama, luminária, mesa de cabeceira(artigo soviético padrão) e seus pôsteres de Michael Jackson.

Em frente à porta do banheiro, ouviu o som de torneiras abertas.Então chamou o avô. Quando a porta se abriu, ela sentiu o cheirumedoce e profundo exalado pelos intestinos do Percevejo, juntamente como familiar odor de mofo e umidade exalado por velhas toalhas,componente característico dos lares provinciais. Percevejo, um camponêspequeno e curtido, vestindo uma camiseta de malha e cuecas cinzentas,emergiu de um banheiro tão entulhado de roupas penduradas em cordas,para secar, que mais parecia uma tenda cigana. Colocando as mãos nosquadris e mastigando as gengivas, deixou escapar um afrontoso peido, deproporções monumentais.

— Ouviu? Bom dia e boa sorte, minha querida! — disse ele, soltandouma gargalhada rouca, que parecia um cacarejo. Era sempre a mesmacoisa, em casa. Katinka já estava habituada. Mas, desde que retornara dauniversidade, passara a observar os costumes com mais imparcialidade.

— Que coisa nojenta! Pior que um chiqueiro! — disse alegremente.— No chiqueiro, pelo menos, os porcos não são tão mal-educados.Vamos, Percevejo, depressa! O café da manhã já está pronto. Vou partir

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daqui a pouco!— E daí? Por que tenho que me apressar? Tenho minhas rotinas! —

Ele apontou com a cabeça a privada soviética, com seu característicoformato de bacia (projetado para conservar sua carga fétida tanto quantopossível), e sorriu.

— Pois é, Percevejo, e ninguém gosta mais das suas rotinas que vocêmesmo. Mas você vai à estação?

— Para quê? Já vai tarde! — outro cacarejo. — Espere, Katinka! Euouvi no rádio sobre um novo assassinato! Tem um assassino serial em Kievque come as vítimas, cérebros, fígados e tudo, acredita nisso?

Katinka retornou ao aposento principal, abanando a cabeça.Percevejo, um velho agricultor de fazendas coletivas, vivia em um mundopróprio. Agora que a velha ordem desaparecera e a URSS fora abolida, elesentia saudades do Partido Comunista. Com seus parceiros de jogo, noVegaz-Kalifornia Klub, vociferava contra os novos-ricos russos, aquelesdesonestos jidi i tchernii i tchinovniki — judeus, chechenos e burocratas!Não havia nada que se comparasse à amargura cruel destilada pelosvelhos dos pequenos vilarejos, pensou Katinka.

No entanto, para o Percevejo, a recente desintegração do Paraísodos Trabalhadores tivera uma vantagem. Naqueles tempos estranhos einseguros, a Rússia fora agraciada com uma lúgubre safra de assassinosseriais, um festim de canibais. Com isso, o Percevejo encontrara um novopassatempo para sua velhice, além de seus próprios intestinos: as vidasdos assassinos.

Katinka suspirou e voltou à cozinha, para fazer o desjejum, antes departir para Londres.

2

Quando os avós e os pais de Katinka saíram de casa para acompanhá-laaté a estação, estavam com suas melhores roupas, aquelas reservadaspara o Dia da Revolução.

Era um dia estimulante, radiosamente luminoso, naquele vilarejo de

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população mista — russa e caucasiana —, um dia adequado para um novocomeço. Uma dura camada de gelo encardido ainda cobria os campos, ospastos e as calçadas da única rua asfaltada da cidade, a rua Suvorov(conhecida como rua Lenin até o ano anterior), com seus tristes casebresbaixos, alegrados apenas pelas persianas azuis, ou vermelhas. Não háperíodo do ano mais emocionante na Rússia. Sob a capa de gelo sujo,Katinka já conseguia ouvir o barulho de águas correndo. O gelo sederretia e, longe dos olhos, riachos espumantes se agitavam, fundiam-see se separavam, libertando os galantos, que já abriam caminho através daneve endurecida. As árvores ressumavam seiva, enquanto cotovias etentilhões gorjeavam de alegria, celebrando a primavera.

Katinka usava um casaco de pele de coelho, botas de plástico, umaminissaia de jeans (fabricada na Turquia) e um suéter púrpura, do qual seorgulhava muito, com padrões romboides e incrustado de contas. Seupai, com um sobretudo de feltro cobrindo o jaleco de médico, carregou aúnica mala até o Volga branco da família. O carro era velho e enferrujado,mas sua solidez ampla e confiável resumia o que havia de melhor na velhaURSS. No vilarejo, o carro do médico sinalizava mudança: se estavaestacionado em frente a alguma casa, significava que a família esperava acegonha — ou a morte. O Percevejo, usando um terno marrom lustrosoe ensebado, camisa vermelha abotoada até o alto, sem gravata, e suasmedalhas de guerra (Stalingrado, Kursk, Berlim), sentou-se na traseira docarro, junto com Baba e Tatiana. Katinka, a mascote da família, a heroínado vilarejo, sentou-se na frente.

Os moradores locais apareceram para lhe dar adeus, enquanto ocarro partia pela velha rua Lenin, passando pelos prédios de concreto pré-fabricados, com seus painéis dos anos 1970, combinando preto e laranja.Katinka acenou para as mulheres de pele aveludada, vestidas de branco,da leiteria e do açougue; para as digitadoras do escritório do prefeito,com seus terninhos e permanentes; para o próprio prefeito, que pareciaum cantor latino, com seu enorme topete e terno branco. Beso e asinguchetianas da loja de hortaliças jogaram um saco de tomatesgeorgianos pela janela do carro; e Stenka, o cossaco tatuado, fisicultor eleão de chácara do café e casa noturna Vegaz-Kalifornia, com seu coletede couro e jeans desbotados, ofereceu-lhe uma lata de cerveja mexicana

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e um pequeno frasco de perfume. Gaidar, dono de um quiosque, pai dosescuros azerbaidjanos vestidos com peles de carneiro, jogou umchocolate dentro do carro; Katinka o entregou a seu pai, que costumavadevorar barras de chocolate durante o dia, quando sofria quedas na taxade açúcar... Mas onde estaria Andrei?

Lá estava ele, sorrindo à sua maneira suave e devotada, com seusolhos atraentes, que pareciam sob medida para trens que partiam egrandes despedidas. Vestindo seus jeans azul-escuros, ele esperava porela nos degraus da pequena estação. Como seu pai, Andrei não queriaque ela fosse para Londres e, na noite anterior, implorara que elaesperasse pelo final da primavera, quando poderiam viajar de férias paratomar banho de sol na Crimeia. Seus beijos e arrazoados, de formaalternada, quase a persuadiram — até que ela interrompeu a cena comum jovial “Não tão depressa, Andriuchka. Vamos ver”. Ele ficou amuado;ela o consolou, pensando em quanto gostava de seus olhos verdes —mas o que era ele, comparado a Londres, Moscou, o doutorado que elaestava começando a escrever e sua vocação de historiadora? Ela queriaser escritora, uma historiadora da Rússia dos tempos de Catarina;imaginava a si mesma vivendo em Moscou, publicando livros respeitáveis etalvez, algum dia, conquistando uma cadeira na Academia...

Andrei quis carregar sua pequena mala até o trem, assim como o paidela. No final, após um rápido cabo de guerra, ambos concordaram emsegurar uma das alças, cada um. Todos entraram no trem e a ajudaram ase instalar em seu compartimento. O dr. Vinski abraçou Katinka e beijousua testa, saindo do trem com lágrimas nos olhos. Andrei sussurrou:

— Eu te amo.Katinka permaneceu de pé, em frente à janela aberta, atirando

beijos para a família e para o namorado. A locomotiva manchada de óleorangeu, chacoalhou e, com um apito sibilante, partiu roncando para onorte, rumo ao coração da Rússia.

Trens que saem de estações provinciais vazias parecem tristes até nasépocas mais felizes — e as separações nunca são felizes. A família ficou emsilêncio por alguns instantes; então Tatiana enxugou os olhos com umlenço, preocupada com o trabalho de Katinka: que tipo de pesquisa ela

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faria? Como iria sobreviver? Por que tinha de ir? Então abraçou Andrei.Baba, um exemplo vivo da compatibilidade dos dogmas comunistas

com as superstições camponesas, fez o sinal da cruz. Percevejo só saírade Beznadejnaia uma vez — em junho de 1941, para se juntar aoExército Vermelho — e só retornara uma vez — em maio de 1945. Maspartira em uma locomotiva que deixara uma esteira de fumaça branca, eque o levara até Berlim... Os melhores e, também, os mais pavorosos diasde sua vida, disse ele à esposa: amigos que perdera, amigos que fizera.“Por Stalin e pela Pátria!” — Stalin: aquilo, sim, é que era homem!

O dr. Vinski permaneceu em pé na estação, sozinho na plataforma,enquanto os outros saíam. Eram apenas dez da manhã, mas seuconsultório, no centro médico da rua Suvorov, entre o escritório local dosecretário do partido e a leiteria, já deveria estar cheio de aposentados —com resfriados de primavera e dinheiro curto.

Ele acendeu um cigarro e olhou para o trem que desaparecia.Orgulhava-se da coragem de Katinka: teria ele feito o mesmo? Cresceracom seus pais, Percevejo e Baba, bem ali em Beznadejnaia — e com 18anos também tomara esse trem, para estudar medicina na distanteLeningrado. Baba lhe comprara um novo casaco, novas botas e uma malade chintz vermelho: eles eram pobres, mas estavam muito orgulhosos porseu filho ter sido aceito na Escola de Medicina de Leningrado. Era oprimeiro membro da família Vinski e, certamente, o primeiro morador dovilarejo a ingressar em uma universidade.

O dr. Vinski perguntou a si mesmo (não pela primeira vez) por que,como jovem doutor, retornara àquele lugar esquecido de Deus, nasfronteiras do império. Ele poderia ter estudado mais; sonhara em setornar um ginecologista, um consultor médico, um professor em Moscou.Mas voltara para casa — para a casinha de persianas azuis onde nascera eonde ainda vivia — para ficar com seus velhos pais camponeses e dirigir oconsultório médico local. Era possível que, em Leningrado, não obtivessesucesso; ou talvez fosse um covarde, pensou. Mas estava em sua casa, oque lhe fazia muita falta.

O dr. Vinski detestava despedidas: detestava que alguém fosseembora; seus filhos estavam casados e moravam longe; agora sua únicafilha partira. Tinha quase 60 anos, coração fraco, e sabia que jamais sairia

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dali.Atirou o cigarro nos trilhos. Como seria essa “pesquisa de família” que

Katinka iria fazer?, perguntou a si mesmo novamente. Na Rússia, erasempre melhor esquecer o passado; o passado sempre encontrava ummeio de envenenar o presente. Sem a insistência do acadêmico Beliakov,garantindo que Katinka estaria segura, ele jamais a teria deixado ir paraLondres.

Katinka, pensou ele, era uma belíssima ave-do-paraíso aprisionada emuma gaiola ordinária: ele a soltara. Ao contrário de seu velho pai, o dr.Vinski não era comunista, mas naqueles tempos de turbulência — ondeimperavam o caos, a corrupção e a democracia — ele ansiava porestabilidade.

Talvez fosse isso que o deixava inquieto, no tocante à viagem deKatinka. Ela estava indo para um mundo onde ele não poderia protegê-la.

3

A viagem — o trajeto de trem até Moscou e o voo que partira doaeroporto de Cheremetievo — foi tão vertiginosamente excitante queKatinka registrou cada momento em um diário que trouxeraexpressamente para isso. Nele, ela descreveu as pessoas que encontrouno trem, o check-in no aeroporto, os passageiros que estavam sentadosao lado dela no voo (nunca antes andara de avião); o percurso atéLondres no metrô (ou no Tubo, como era graciosamente chamado pelosingleses), bastante encardido, escuro e sórdido, comparado às estaçõessubterrâneas de Moscou, que eram como catedrais abobadadas. Depois acaminhada a partir da estação de Sloane Square, carregando a malatropegamente. E lá estava ela, olhando com olhos arregalados deespanto para o hotel discretamente luxuoso, reservado para ela nosCadogan Gardens, em Chelsea.

O recepcionista, um burocrata pálido, com tranças nos cabelos, nãopareceu muito satisfeito ao vê-la. Quando percebeu que ela era russa,pareceu desconfiado e examinou seu passaporte como se este pudesse

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conter traços de armamento biológico desenvolvido pela KGB. Quandoolhou para sua reserva e descobriu que fora paga com antecedência, emdinheiro, ela pôde notar que ele a reavaliava, reduzindo seu status deagente da KGB para amante de gângster.

— O que você está fazendo em Londres? Turismo ou... —perguntou ele, sem levantar os olhos do balcão.

— Sou historiadora — respondeu ela, em inglês hesitante, tentandonão rir da perturbação dele. Pensou tê-lo visto abanar levemente acabeça: prostituta, espiã... ou historiadora, ele não conseguia entenderaquilo.

Em seu quarto no segundo andar, ela se maravilhou com a cama decasal, coberta por um dossel, e com o banheiro de mármore, queabrigava duas — sim, duas — pias, dois — sim, dois — macios roupões debanho, sabonetes e banhos de espuma (artigos que imediatamenteescondeu em sua mala). Havia também televisão a cabo. Tudo muitodiferente de sua casa no Cáucaso, ou de seu quarto no alojamento dosestudantes, em Moscou, onde vivera durante três anos.

A escrivaninha estava equipada com envelopes ornamentados epapel de carta (direto para a mala também!). Havia travesseiros de penasde ganso, colchas e cortinas com sanefas, como em um palácio. A sala deestar, no andar térreo, era silenciosa, exceto pelo tique-taque de umrelógio de pêndulo; dispunha de confortáveis sofás e pilhas de revistasnovas, como Vogue e uma chamada Illustrated London News. Oh, tudoaquilo era tão inglês! Foi uma sorte, pensou ela, que seu inglês tivessesido tão bom na escola, e que ela ainda se lembrasse de alguma coisa.Quando olhou em volta, o recepcionista lhe deu um envelopedatilografado. Dentro, havia um bilhete:

Um carro virá buscá-la amanhã de manhã, às 9 horas. O nomedo motorista é Artiom.

Ela achou o bilhete tão representativo que o colocou dentro dodiário, para a posteridade. Antes de dar uma volta pela Sloane Square epela King’s Road, telefonou aos pais, do quarto, para lhes dizer queestava sã e salva. Foi atendida pelo pai, enervantemente tímido ao

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telefone.— Katinka, não confie em ninguém aí — alertou ele, entre longos

silêncios.— Eles morrem de medo de nós aqui, papai. No hotel, pensam que

sou gângster ou espiã!— Prometa que não vai correr riscos, querida — disse ele.— Oh, papai. Está bem, eu prometo: nada de riscos. Um beijo, papai.

Beijos para a mamãe, vovó e o Percevejo!Ela riu sozinha — como ele poderia entender? Adorava o pai, mas o

via ao telefone, perto da estante, fumando um cigarro tarde da noite,naquele remoto casebre em um vilarejo “surdo para o mundo” —enquanto ela agora estava em Londres. Entretanto, quando se deitou nacama suntuosamente macia, com sua inacreditável profusão detravesseiros, fechou os olhos e perguntou a si mesma o que estariafazendo ali. Uma afiada farpa de ansiedade se alojou profundamente emseu coração palpitante.

4

Na manhã seguinte, depois de um breakfast à inglesa, com torradas,marmelada, bacon e tomates (ela pediu quase todo o menu), Katinka viuum russo de cabeça raspada e porte militar, de pé no saguão, olhandofixo para ela, com mal disfarçado desprezo. Então esse é o Artiom,pensou ela, enquanto ele indicava a porta, com um gesto de cabeça, e aconduzia até um grande Mercedes preto, que cheirava deliciosamente acouro novo.

Empertigado, Artiom acomodou-se no assento em frente a ela; elaouviu o clique das quatro portas sendo trancadas. Enquanto ele fazia umamanobra agressiva para entrar no trânsito, empurrando-a contra umaporta, Katinka examinou com apreensão seus ombros enormes e opescoço musculoso. Sentindo-se pequena e indefesa, conjeturou se opai, de cuja cautela zombara tão recentemente, teria razão, afinal decontas.

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E se toda aquela viagem fosse um truque malévolo, concebido poralgum gênio russo do crime? Será que seria vendida como escravabranca? Mas por que um Ladrão-no-Poder, como os chefões do crimeeram conhecidos na Rússia, iria se dar o trabalho de pedir ao acadêmicoBeliakov, autor do clássico Legislação e Formação do Estado Sob CatarinaII: A Comissão Legislativa, para colocar um anúncio no Boletim doDepartamento de Ciências Humanas? Beliakov fora instado a apresentarseu melhor aluno que se formara em história. E por que um gângster iriaquerer uma historiadora, quando, com certeza, os vilarejos provinciais e asruas de Moscou fervilhavam de garotas de minissaias e botas, ansiosaspara serem escravas brancas em Londres ou Nova York?

— Para onde estamos indo? — perguntou a Artiom, ansiosamente.— Para casa — resmungou Artiom, como se a resposta estivesse lhe

provocando uma extrema fadiga.— Com quem vou me encontrar?— Com o patrão. — Estas três palavras o cansaram ainda mais.— O sr. Getman? — perguntou ela.Artiom não respondeu.— Ele é muito rico, Artiom?Artiom bufou, com ar de superioridade, e alterou a graduação do ar-

condicionado, no reluzente painel, como se estivesse pilotando um MIGsupersônico.

— Como você começou a trabalhar para o sr. Getman?— Eu servi nas Spetsnaz, no Afeganistão — respondeu ele.Katinka achou aquilo divertido. Todos os bandidos e leões de chácara

russos afirmavam que tinham lutado nas Forças Especiais, no Afeganistão.Se fosse verdade, a Rússia teria vencido a guerra.

— O sr. Getman é um oligarca?Fez-se outra longa pausa sarcástica, enquanto o Mercedes saía do

círculo interno do Regent’s Park e entrava em uma discreta aleia. Altosportões estremeceram e, depois, abriram-se lentamente. Katinka ouviu ospneus do Mercedes passarem sobre cascalho. A beleza e o tamanho dapropriedade tiraram-lhe o fôlego. Era uma mansão em estilo Queen Anne,de proporções perfeitas, um lugar secreto escondido nos bosques deRegent’s Park, bem no meio de Londres. Tinha pertencido, ela soube

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mais tarde, a diversos e famosos milionários do passado.Artiom deu a volta ao carro para abrir a porta de Katinka.— Por aqui, menina — disse ele, sem olhar para ela. Então virou-se e

trotou escada acima.Katinka o seguiu nervosamente até um salão de piso preto e branco,

onde retratos de nobres ingleses, vestindo pantalonas bojudas esobrecasacas de veludo, olhavam-na de cima. Sua atenção foi atraída parauma imensa tela de moldura dourada, próxima a uma escadaria combalaústres de carvalho, onde um cavalariano de casaco vermelho,estendendo o sabre durante um ataque, olhava para ela com ar malicioso.Mas onde estaria Artiom? Katinka olhou em volta, freneticamente, mas acasa permanecia silenciosa e intimidante. Então percebeu o movimentode uma porta, antes disfarçada pelo opulento papel de parede commotivos chineses. Ela abriu a porta e vislumbrou as largas costas deArtiom, que desapareciam em um canto. Aliviada, seguiu-o por umlúgubre corredor, ladeado com cartuns ingleses, emoldurados. Abriu umaporta escura. Uma luz brilhante, que entrava por uma fileira de janelas,cegou-a momentaneamente. Protegendo os olhos com a mão, ela piscoue tentou se orientar.

Estava na maior cozinha que já vira. Mármore negro cobria assuperfícies. Um refrigerador cromado estendia-se do chão até o tetoelevado. Os equipamentos — forno, lavadora automática, lavadora depratos — pareciam tão grandes quanto carros, com painéis de controleque ficariam melhor em um satélite, não em uma cozinha.

Era ali que ela deveria estar? Ou deveria ter aguardado no salão?Estava prestes a voltar sobre seus passos quando uma mulher esbelta, decabelos grisalhos, que estava sentada a uma mesa de madeira, levantou-se com um sorriso generoso e desinibido. Katinka ficou imóvel, enquantoArtiom passava por ela, em direção a uma cadeira escarlate, de espaldaralto — quase o trono de um papa, pensou ela —, ocupada por umhomem corpulento, malvestido, de cabelos crespos e escuros, queobservava uma parede tomada por monitores, cujas imagens mostravamos aposentos e as cercanias da casa.

— Patrão — disse Artiom, parando diante do trono papal. — Aí está agarota. Onde o senhor quer que ela sente?

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Aquilo era um terrível mal-entendido, Katinka concluiu, ansiosa parasair dali, ir para casa, pensando se conseguiria uma carona para oaeroporto. Mas o homem corpulento, que usava uma jaqueta leve esurrada, em padrão xadrez, ergueu-se rapidamente e a cumprimentouexuberantemente, com as mãos estendidas.

— Você deve ser Ekaterina Vinski. Bem-vinda! Estávamos ansiosospara conhecer você! — Ele falava russo com forte sotaque judeu, umsotaque de Odessa que ela só ouvira em filmes antigos. — Muito obrigadopor vir nos ver.

Nós? Quem seria nós?O homem olhou para o motorista.— Tudo bem, Artiom, vejo você às onze horas.Artiom pareceu desapontado e saiu pisando duro e batendo a porta

da cozinha. Mas Katinka sentiu-se aliviada com sua saída.— Agora — disse o homem de jaqueta surrada — venha cá e sente-

se. Sou Pacha Getman.Então, pensou Katinka, essa é a aparência de um oligarca, um

bilionário com livre trânsito pelos corredores do próprio Kremlin — mas elejá estava lhe indicando uma cadeira.

— Vamos, mamãe — disse ele para a senhora esbelta. — Traga ospãezinhos de mel. Já estão prontos? — E, dirigindo-se a Katinka: — Deque tipo de chá você gosta? Que tipo de leite? Vamos começar.

Pacha parecia incapaz de permanecer sentado ou mesmo quieto.Irradiava uma energia trepidante. Mas, antes que pudesse continuar, umaparelho telefônico, que não parecia ter fios, começou a tocar. Eleatendeu em russo, depois passou para o inglês. Parecia estar discutindopreços de petróleo. Então, cobrindo o telefone com a mão grande ecarnuda, disse:

— Katinka, essa é minha mãe, Roza Getman.E recomeçou a dar ordens pelo telefone.Então aquelas pessoas eram seus empregadores, pensou Katinka.

Olhou com mais atenção para a mulher, que se aproximava delacarregando uma bandeja. Vapor se evolava de uma chaleira de porcelanachinesa; doces e strudel de maçã estavam arrumados em pratos; xícarasde chá combinavam graciosamente com os respectivos pires. Colocando a

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bandeja na mesa, Roza Getman começou a servir o chá.— Pacha está sempre com pressa — disse ela a Katinka, sorrindo para

o filho.— Não se pode perder tempo. A vida é curta e meus inimigos

gostariam de encurtá-la mais ainda. Se entender isso, entendeu tudo —explicou Pacha, que parecia capaz de conduzir diversos diálogos aomesmo tempo.

Katinka não sabia o que pensar daqueles odessenses, que pareciamtão altivos, tão sofisticados, tão pouco russos (ela sabia, por intermédiodo avô, que a maioria dos oligarcas era judia), e que faziam com que sesentisse desajeitada e provinciana. Quando começou a desanimar, maisuma vez, Roza lhe entregou um prato.

— Experimente um de meus pãezinhos de mel. Você é tão magrinha,precisamos alimentar você. Agora me conte, querida, como foi o seu voo,você gostou do hotel?

— Ah, meu Deus, é lindo — respondeu Katinka. — Eu nunca tinhaviajado de avião antes, e o hotel é suntuoso. Achei incrível aquelebreakfast, as toalhas macias... — Ela parou e ficou ruborizada, sentindo-seprovinciana novamente, mas Roza se inclinou para ela e tocou sua mão.

— Fico muito satisfeita com isso — disse ela, com a mesma pronúnciaodessense de Pacha. Estava vestida com discreta elegância, pensouKatinka, admirando o lenço de seda que ela trazia em torno do pescoço.Seu cabelo estava ficando grisalho, mas devia ter sido louro, e eracacheado como o de uma estrela de cinema dos anos 50. Usava umablusa de seda bege e uma saia de lã, pregueada. Não usava joias, excetopor uma aliança de casamento e um broche de borboleta no cardigã decaxemira. Mas nada impressionou Katinka tanto quanto seu rosto, quedevia ter sido lindo — não, que ainda era lindo —, com uma pele muitobranca e olhos cálidos, que tinham a mais extraordinária tonalidade de azulque ela jamais vira.

Pacha desligou o telefone, mas outro telefone, o grande que estavasobre a mesa, imediatamente começou a tocar. Ele apertou um botão,que piscava no painel de controle, e começou a falar em russo, sobre umleilão de obras de arte.

— Mamãe, pode começar, não espere por mim — disse ele, cobrindo

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o bocal.Katinka pôde então concentrar a atenção naquela mulher, que tinha

algo de fascinante e que parecia ter tudo — percebeu ela subitamente—, exceto felicidade. O que estou fazendo aqui?, perguntou a si mesmaoutra vez, mordendo um pão de mel, tão doce que a fez estremecer.

— Estou muito feliz porque você pôde vir — disse Roza. — Queríamosum pesquisador de história, então eu consultei o acadêmico Beliakov.

— A senhora é especialista no século XVIII? — perguntou Katinkaseriamente, tirando um bloco de anotações de sua mochila.

— Claro que não! — interrompeu Pacha, desligando o telefone. — Eucomecei vendendo ingressos para concertos em Odessa, as coisas seexpandiram a partir daí, primeiro metais, depois carros, agora petróleo eníquel. Então, não. Não sei nada sobre o século XVIII e mamãe tambémnão sabe.

Katinka se sentiu esmagada.— Pacha, não seja tão bombástico — disse Roza. — Katinka, nós

precisamos do melhor historiador e o professor recomendou você. Vocêjá fez pesquisas, não fez? Nos arquivos?

— Sim, nos Arquivos do Estado, sobre a Comissão Legislativa deCatarina II. Mais recentemente, para o meu doutorado, fiz pesquisassobre o impacto das priskaz de Catarina, em 1775, sobre o governolocal...

— Isso é perfeito — disse Roza —, porque estamos querendo quevocê faça pesquisas genealógicas.

— Queremos que você descubra a história de nossa família —acrescentou Pacha, andando de um lado para outro e acendendo ummonstruoso charuto.

— No século XVIII? As origens de sua família?— Não, querida — disse Roza —, somente no século XX. — Uma gota

de inquietação desceu pela coluna de Katinka. — Você será bem paga.Mil dólares por mês, mais despesas, está bom para você?

Katinka ficou bem ereta na cadeira.— Não, não — disse ela. — Isso não é necessário. — O dinheiro

parecia excessivo, muito mesmo, e isso significava que havia alguma coisaerrada. O que diria seu pai? Quanto ao Percevejo, ele considerava os

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oligarcas como anticristos. — Acho que não posso fazer esse trabalho. Eusó conheço o século XVIII.

Pacha olhou para a mãe, soprando uma nociva nuvem de fumaça.— Você está dizendo que não quer o trabalho?— Pacha — disse Roza —, vá devagar com ela. Ela tem direito de

fazer perguntas. — Virou-se para Katinka. — Este é o seu primeirotrabalho, não é?

Primeiro trabalho, primeira viagem ao exterior, primeiro oligarca,primeiro palácio, primeiro tudo, pensou Katinka, assentindo com a cabeça.

— Olhe — disse Pacha —, se você trabalhou em um conjunto dearquivos, por que não pode trabalhar em outro? Qual é a diferença?Arquivos de Catarina, arquivos de Stalin.

Katinka ficou hirta. A era de Stalin! Outro alarme soou. Não sepesquisava esse período. “Nunca pergunte às pessoas o que seus avósfizeram”, dissera-lhe o pai certa vez. “Por quê? Porque um avôdenunciava o outro!” Mas o acadêmico Beliakov, seu estimado protetor, ajogara naquele ninho de cobras. Ela viera de tão longe e agora tinha queescapar — mas como? Então respirou fundo.

— Não posso fazer o trabalho. Não conheço esse período e nãoquero me envolver com assuntos relacionados ao partido e aos órgãos desegurança — disse ela, com o rosto pegando fogo. — Não conheço bemMoscou e não posso aceitar esse salário excessivo. Vocês escolheram apessoa errada. Estou me sentindo culpada, vocês pagaram minha viagemde avião, eu nunca vou me esquecer do hotel e prometo que voudevolver o dinheiro de...

— Chega! — Pacha bateu com a xícara e o pires sobre a mesa,derramando chá, murmurou alguma coisa sobre “garotas provincianas commentalidade soviética” e apertou o charuto entre os dentes.

Katinka ficou chocada com essa explosão e estava para se levantar edizer adeus quando três telefones começaram a tocar ao mesmo tempo,em aguda dissonância.

— Pacha, atenda a esses telefonemas no seu escritório — disse Rozabruscamente —, ou vou jogar todos os telefones pela janela. E essecharuto repulsivo!

Quando ele saiu, Roza segurou as mãos de Katinka entre as suas.

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— Peço mil desculpas. Agora nós podemos conversar direito. — Elafez uma pausa e olhou perscrutadoramente para Katinka. — Por favor,entenda que isso não tem nada a ver com vaidade, nem mesmocuriosidade. Não tem nada a ver com o dinheiro de Pacha. É sobre mim.

— Mas o sr. Getman tem razão — disse Katinka. — Eu não possofazer isso. Não sei nada sobre o século XX.

— Me escute um pouco e, se você ainda não quiser nos ajudar, euvou entender. De qualquer forma, quero que você passe bonsmomentos e conheça Londres, antes de colocarmos você em um aviãode volta para casa. Mas se puder nos ajudar... — Por alguns instantes,uma sombra enevoou seus profundos olhos azuis. — Katinka, eu crescicom um buraco no coração, um lugar vazio bem aqui, como uma câmarafrigorífica. Durante toda a minha vida, nunca fui capaz de falar sobre isso enem mesmo me permitia pensar sobre isso. Mas sei que não estousozinha. Em toda a Rússia existem pessoas como eu, homens e mulheresda minha idade que nunca souberam quem são seus pais. Nós nosparecemos com qualquer pessoa, casamos, tivemos filhos, ficamos velhos,mas eu nunca consegui ficar despreocupada. Durante todo o tempo,carreguei um sentimento de perda dentro de mim, e ainda carrego.Talvez seja por isso que criei Pacha para ser tão autoconfiante eextrovertido; não quero que ele viva como eu vivi. — Ela franziu a testa eriu baixinho; era o mais suave dos sons, pensou Katinka. — Eu nunca faleisobre esse assunto com meu falecido marido, ou mesmo com Pacha; masrecentemente Pacha quis me comprar um presente. Eu lhe disse quetudo o que queria era minha família, e ele respondeu: “Mamãe, oscomunistas se foram, a KGB se foi e eu vou pagar o que for preciso paraajudar você.” É por isso que você está aqui.

— Você é... uma órfã? — perguntou Katinka. Ela não conseguiaimaginar a sensação de ser órfã.

— Nem isso eu sei — respondeu Roza. — Onde estão meus pais?Quem eram eles? Eu não sei quem eu sou. Nunca soube. Olhe para essetrabalho do jeito que quiser — um desafio, um projeto para um livro dehistória, um emprego de verão para ganhar algum dinheiro, ou apenascomo um ato de bondade. Mas esta é a minha última chance. Por favor,diga que vai me ajudar a descobrir o que aconteceu com minha família.

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5

Era primavera na nova e esquizofrênica Moscou, uma cidade em meio àmaior crise de personalidade de sua história. Sombria e, ao mesmotempo, repleta de luz neon, tornara-se uma metrópole asiáticaamericanizada, com BMWs e Ladas, comunistas e oligarcas, apparatchiks eprostitutas.

Estalactites de gelo sujo ainda pendiam dos beirais rosados eornamentados do prédio da Granovski. Katinka apertou a campainha doApartamento 4, Escadaria 1. Naquela pequena rua privada, o acúmulo degelo pairava tão ameaçadoramente sobre a calçada que os zeladoreshaviam cercado algumas áreas para proteger os pedestres. Música rapecoava na rua e cerejeiras começavam a florir. Alguns Mercedes e RangeRovers estavam estacionados em frente ao prédio.

Katinka andou lentamente ao longo da parede, lendo as placas decor laranja que lembravam os comunistas famosos que tinham vivido noprédio: marechais, comissários, capangas de Stalin — nomes de umaépoca sombria e desaparecida. Mais uma vez, sentiu vontade de desistir.Não podia fazer aquilo, não devia fazer aquilo — mas ali estava ela.

Três dias haviam se passado, três dias durante os quais Katinka eRoza Getman beberam chá, andaram pelos jardins de rosas do Regent’sPark e conversaram sobre a infância de Roza, sobre seus pais adotivos esobre suas nebulosas lembranças de outra vida. Katinka acabaraconcordando. Contra todos os seus instintos e os conselhos de seu pai,ela estava em Moscou — por Roza.

Aproximou-se da porta com portinholas de vidro, e apertou comforça a antiquada campainha de metal. Esperou bastante tempo e estavaprestes a desistir quando ouviu o som de uma velha gargantapigarreando.

— Estou ouvindo! — disse uma voz rouca.Katinka achava engraçado o modo como os velhos tchinovniki —

burocratas — atendiam a seus telefones e interfones. Era como sedissessem: “Ajoelhe-se, escravo!”

— É Katinka Vinski. A estudante de história. Eu telefonei e você medisse para vir.

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Uma longa pausa. Uma respiração ruidosa. Então a fechadura clicou.Katinka empurrou a castigada porta de madeira e entrou em umvestíbulo, de onde partia uma escadaria decrépita, outrora gloriosa, queconduzia a outra porta, esta com fechaduras reforçadas. Estava sepreparando para bater quando a porta se abriu, revelando um salão bemiluminado, onde botas e sapatos se alinhavam contra a parede.

— Olá! — gritou ela.— Quem é você? — perguntou uma mulher de meia-idade, morena,

com um longo nariz e surradas roupas pretas. Sua pronúncia era boa,notou Katinka, como se ela tivesse estudado nas melhores escolas.

— Sou a historiadora que veio ver o marechal.— Ele está esperando por você — disse a mulher, apontando para

um corredor de assoalho lustroso e se retirando para a cozinha.— Tire os sapatos! — disse uma voz de velho. — Venha até aqui!

Onde está você?Katinka retirou os sapatos, calçou uns velhos chinelos de espuma e

passou por uma arcada, seguindo a voz. Era assim que os chefes viviam?Ela nunca vira um apartamento como aquele. Os tetos eram altos; umlustre resplandecia; os lambris eram de pinho careliano, bem claro, assimcomo a mobília art déco, dos anos 30. O corredor em forma de Lconduzia a diversos quartos, mas ela virou à direita, entrando em uma salade estar. Uma forte luz de primavera entrava por quatro janelas. Quandosua visão se ajustou, ela viu um piano coberto por fotos de famíla. Emuma das paredes, havia um quadro com cerca de três metros de altura,representando Lenin na estação Finlândia. Em outra parede, estavapendurado um legítimo Gerasimov: o retrato de um belo marechal derosto afilado, vestindo uniforme completo, com ombreiras douradas e umpeito tão cheio de medalhas que parecia uma árvore de Natal.

À sua direita, havia uma mesa, repleta de jornais soviéticos eestrangeiros; um telefone móvel, de último modelo, estava sendorecarregado no peitoril de uma janela. Um toca-CDs da Sony executava aSinfonia Concertante, de Mozart, que quatro pequenas caixas de som,distribuídas simetricamente nos quatro cantos do aposento, próximas aoteto, faziam ecoar no aposento. Katinka estava atônita. Era verdade oque diziam — os líderes soviéticos realmente viviam como príncipes.

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Em uma confortável cadeira de couro, com as costas voltadas para aluz, sentava-se um digno representante do antigo Homo sovieticus.

— Olá, menina, entre!Katinka esperava encontrar um homem muito velho, com o oleoso

topete soviético, uma palidez cérea (o “bronzeado do Kremlin”) e pançaenorme, mas aquele velho, vestindo um terno azul que tinha como únicoadereço, na lapela, a estrela da Ordem da Bandeira Vermelha — porbravura na Grande Guerra Patriótica —, sentava-se em posição ereta, eraesguio e tinha um físico bem modelado. Seus cabelos eram cor de aço,grossos e espetados, e seu nariz aquilino lembrava um xá da Pérsia. Elareconheceu nele uma versão reduzida do marechal no retrato.

O modelo original ficou em pé, fez uma mesura e indicou a ela umacadeira de pinho careliano, em frente à que ele ocupava. Então, sentou-se novamente.

— Sente-se, por favor. Isso. Agora, menina...— Ekaterina — disse ela, ocupando a cadeira indicada.— Katinka, se me permite. Em que lhe posso ser útil?Com as mãos tremendo um pouco, Katinka sacou seu caderno de

anotações e um lápis.— Hércules Aleksandrovitch...Ela virou páginas demais ao mesmo tempo, deixou cair o lápis, pegou-

o novamente, perdeu o lugar marcado no caderno — sem deixar desentir o intenso escrutínio dos olhos dele, de um espantoso azul-violeta.

Ela nunca se encontrara com pessoa tão importante. O marechalconhecera todos os líderes soviéticos, desde Lenin até Andropov. Amodéstia provinciana da filha do doutor de Beznadejnaia, o instinto deconservação inerente a todos os cidadãos soviéticos, que os leva a evitaroficiais, moscovitas e, sobretudo, agentes secretos, além do perigorepresentado pelo próprio poder — todos esses sentimentos duelavamdentro dela. Lembrando-se da história que Roza Getman lhe contara, emLondres, preparou-se para fazer suas perguntas. Mas foi o marechal quemprimeiro perguntou:

— Que idade você acha que eu tenho?— Eu sei qual é a sua idade — respondeu ela, decidindo aparentar

uma autoconfiança que não sentia. — A mesma idade do século.

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— Pravilno! Certo! — O marechal riu. — Nada mal para 94 anos, hein?— Katinka notou que seu sotaque georgiano ainda era forte, apesar dasmuitas décadas em Moscou. — Você sabia que eu ainda danço? Mariko!— A mulher de meia-idade apareceu na porta com uma bandeja de chá.— Essa é minha filha, Mariko; ela cuida de mim. — Katinka pensou que ovelho marechal tinha muito mais vida dentro dele que sua filha. — Ponhapara tocar a lezginka, querida!

Mariko pousou a bandeja na mesa perto da janela e trocou o CD.— Não exagere, pai — disse ela. — Seu fôlego já está ruim. Não

fume! E não se queime, o chá está quente. — Olhou para Katinka, e saiubatendo os pés.

Quando se ouviram as frenéticas cordas e metais da lezginka, omarechal Satinov se levantou, inclinou-se e assumiu a pose flexível —mãos nos quadris, um pé para o lado, o outro na ponta dos dedos — dodançarino caucasiano. Dançou alguns passos e sentou-se novamente,sorrindo para ela.

— Agora... Katinka... Vinski... Entendi seu nome direito? Você éhistoriadora?

— Estou escrevendo, para o acadêmico Beliakov, uma tese dedoutorado sobre o programa legal de Catarina II.

— Você é uma linda doutoranda! Uma flor das províncias! — Katinkaenrubesceu, contente por ter vestido sua melhor saia, um exemplo daalta costura soviética, com lantejoulas em forma de pirâmides e umagrande abertura lateral. — Bem, eu mesmo sou uma relíquia da históriasoviética. Eu deveria estar em um museu. Pergunte o que quiser,enquanto eu recobro o fôlego.

— Estou trabalhando em um projeto específico — começou ela. — Onome Getman significa alguma coisa para o senhor?

Os olhos azuis se fixaram nela, com expressão neutra.— O rico banqueiro... Como se diz hoje? Um oligarca.— Sim, Pacha Getman. Ele me contratou para fazer umas pesquisas

sobre sua família.— Genealogia de família para os novos-ricos? Tenho certeza de que

os príncipes Dolgoruki ou Iusupov fizeram a mesma coisa, na épocatsarista. Getman não é um nome incomum; judeu, é claro. De Odessa, eu

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diria, mas originalmente da Galícia austríaca, Lvov provavelmente,intelligentsia...

— O senhor tem razão. Eles são de Odessa. Mas o senhor conhecepessoalmente a família Getman?

Fez-se um silêncio cortante, gelado.— Minha memória já não é como antes... mas não, acho que não —

disse Satinov por fim.Katinka fez uma anotação em seu bloco.— A mãe de Pacha Getman foi quem inspirou esse projeto de história

familiar.— Usando o dinheiro do filho?— Sim, claro.— Bem, com dinheiro, você pode encontrar alguma coisa. Mas o

nome não significa nada para mim. Quem ela está tentando encontrar?— Ela mesma — disse Katinka, olhando para ele com atenção. — O

nome de solteira dela era Liberhart. Esse nome faz o senhor se lembrarde alguma coisa, marechal?

Uma sombra passou pelo rosto de Satinov.— Eu simplesmente não consigo situar o nome... Encontrei tantas

pessoas na minha vida, como você deve compreender... — Ele suspirou ese ajeitou na cadeira. — Me diga mais coisas.

Katinka respirou fundo.— A mãe de Pacha Getman se chama Roza. Tudo o que ela se

lembra sobre suas origens é isso: um professor de musicologia doConservatório de Odessa e sua esposa, também professora, adotaramRoza no final dos anos 30. O sobrenome deles era Liberhart, Enoch ePerla Liberhart. Eles não conseguiam ter filhos, então adotaram aquelamenina de 5 anos. Ela era loura, então eles a chamavam de Silberkind —criança de prata.

— Mas e antes? — perguntou Satinov.— Roza se lembra de fragmentos de sua vida antes da adoção —

disse Katinka, pensando nas recentes conversas de ambas no estimulantear primaveril de Londres. — Os risos de uma linda mulher usando umvestido bege e uma blusa de colarinho branco, homens bonitos comtúnicas stalinka, brincadeiras com outras crianças, viagens, estações de

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trem, e então a adoção...— Uma história comum naqueles dias — interrompeu Satinov. —

Crianças eram sempre perdidas e recolocadas. Na construção de um novomundo, ocorreram muitos erros e tragédias. Mas seria possível que elatenha imaginado essa história? Isso acontece muito também,principalmente hoje, quando os jornais estão desenterrando toda essamiséria, novamente, e imprimindo tantas mentiras.

Os olhos azuis a olharam zombeteira, cinicamente.— Bem, é meu trabalho acreditar nela, mas, sim... eu realmente

acredito nela. Os Liberharts desencorajaram Roza de sondar seu passado,porque eles a amavam como se fosse filha deles. Não queriam perderRoza, e tinham medo de atrair atenção. A adoção foi arranjada com aproteção de um oficial muito graduado e tudo era secreto naquelaépoca.

— Mas depois da morte de Stalin, certamente...— Sim — disse Katinka —, depois da morte de Stalin, Roza insistiu

para que os Liberharts fizessem uma investigação oficial. Eles disseram aRoza que seus pais tinham morrido durante a Grande Guerra Patriótica, oque fazia sentido, porque a adoção dela foi mais ou menos naquelaépoca.

Satinov abriu as mãos.— E ela aceitou isso?— Aceitou isso durante décadas. Ela amava os pais adotivos. Enoch

morreu em 1979, mas Perla viveu até recentemente. Antes que elamorresse, o comunismo caiu. Só então Perla confessou a Roza que tinhamentido para ela. Os Liberharts não tinham feito nenhuma investigaçãooficial, porque nunca souberam o nome dos verdadeiros pais.

— Me diga uma coisa, Katinka, esses Liberharts eram... boas pessoas,bons pais? — perguntou Satinov, inclinando-se na direção dela.

Katinka sentiu um turbilhonar repentino de águas mais profundas etraiçoeiras. Pensou nostalgicamente em seus estudos: em Catarina, aGrande, no Arquivo do Estado, em tempos melhores e mais nobres. Masela era uma historiadora, e que historiadora não ficaria fascinada emconhecer uma relíquia como Satinov, um verdadeiro sopro do passadorecente — e um passado tão envolto em mistério?

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— Roza disse que eles eram intelectuais pouco práticos, não erampessoas indicadas para criar filhos. O professor Liberhart não conseguiacozinhar um ovo, ou dirigir um carro. Roza me contou que um dia ele foipara o trabalho com os sapatos trocados. Perla era uma literata obesa,que não sabia cozinhar, nem costurar, nem arrumar uma cama; nuncausou maquiagem, nem fez um penteado (apesar de precisar muito dasduas coisas!). Devotou sua vida a traduzir os sonetos de Shakespearepara o russo. Perla cresceu como uma miniadulta, cuidando de paisexcêntricos. Ela se lembra das coisas terríveis que aconteceram na guerra:o cerco de Odessa; o massacre de judeus odessenses pelos nazistas epelos romenos; o Holocausto. Mas, durante tudo isso, Enoch e Perlaamaram Roza com o amor de pais que foram abençoados com umacriança que nunca esperaram.

Satinov misturou um pouco de geleia de ameixa em seu chá elambeu a colher. Então, verificando que não havia ninguém na porta,puxou um maço de cigarros Lux e acendeu um deles com um isqueiro deprata, segurando-o na mão como se fosse um jovem.

— Eu não tenho permissão para fumar, mas... arreda, Satã... —Tragou profundamente, de olhos fechados. — Mas por que você veio mever?

— Quando Roza precisou de uma operação, na adolescência, os paisficaram preocupados com a saúde dela. Então telefonaram para alguémem Moscou, que arranjou tudo.

— Talvez fosse um tio.— Certa vez, em Odessa, houve um grande congresso do Partido.

Roza acha que foi nos anos 50. Muitos chefes vieram à cidade. Umatarde, ela viu uma limusine ZiL, preta, em frente à escola, com umhomem de uniforme dentro, um chefão. Ela teve o pressentimento, não,foi mais do que um pressentimento, ela teve certeza de que ele estavaesperando por ela. Durante toda a semana, ele estava lá, olhando paraela todos os dias, de manhã. Eu não sei quem era esse homem, marechalSatinov. — Katinka olhou diretamente para Satinov, que se ajeitou umpouco na cadeira. — Roza perdoou os Liberharts pela mentira, massuplicou que sua mãe lhe dissesse um nome. Antes de morrer, Perla dissea Roza que o moscovita para quem eles telefonaram foi você. Você

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ajudou Roza a conseguir o tratamento. Quem sabe você não era ohomem na limusine?

Satinov deu outra tragada em seu cigarro. Katinka percebeu que eleestava escutando atentamente.

— Histórias, apenas histórias — disse ele.Katinka sentiu uma aguda impaciência. Então inclinou-se para a

frente, em sua desconfortável cadeira.— Roza e eu queremos saber por que o senhor ajudou os Liberharts,

marechal. Ela está convencida de que o senhor sabe quem são os paisdela.

Satinov franziu a testa e abanou a cabeça.— Você sabe, menina, quantos sujeitos que se dizem “historiadores”

me telefonam para fazer perguntas impertinentes? Só porque sou velho,eles acham que eu vou denegrir as maiores conquistas do século XX — acriação do socialismo e a vitória na Grande Guerra Patriótica, o trabalho daminha vida. — Ele ficou de pé. — Obrigado por ter vindo me visitar,Katinka. Antes de você sair, quero lhe dar de presente a minhaautobiografia.

Ele entregou a ela um livro com seu retrato na capa, em uniformecompleto. Era intitulado A Serviço da Gloriosa Revolução de Outubro, aGrande Guerra Patriótica e a Construção da Pátria Socialista: Recordações,Anotações e Discursos, de autoria do marechal Hércules Satinov.

Que título sexy, pensou Katinka, aposto que os discursos sãoengraçadíssimos. Ela percebeu que estava sendo mandada embora, mastinha certeza de que ele estava escondendo alguma coisa.

— O senhor pode autografar? — pediu ela, ofegante, determinada amanter o terreno conquistado.

— Com prazer.Ela se moveu em direção à cadeira dele. Sabia que ele gostava de

olhar para ela, então chegou mais perto dele, sacudindo os cabelos paratrás, enquanto o fazia.

Dando umas batidinhas na mão dela, alegremente, ele escreveu: Paraa bela cientista da verdade. Hércules.

— Foi publicado em muitas línguas: polonês, tcheco... — disse elecom orgulho, estendendo-lhe o livro. — Até em mongol.

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— Obrigada, marechal. O senhor é o primeiro herói de guerra famosoque eu conheço, e eu sei que o senhor me ajudaria se pudesse. Seriapossível que os pais de Roza tivessem morrido durante a guerra? Ou quetivessem sofrido repressão durante o Grande Terror? Se for isso, osregistros deles devem estar nos arquivos da KGB. Atualmente, as famíliaspodem requerer as fichas relacionadas a elas. Mas, sem um nome, comopodemos requerer alguma coisa? O senhor pode nos ajudar a fazer arequisição?

Ele sorriu para ela, observando-a atrevidamente.— Eu sempre amei as mulheres — disse ele em voz baixa —, embora

hoje eu seja uma ruína antiga.— O senhor deve ter dançado com muitas delas — disse Katinka.Fez-se silêncio.— Bem, eu ainda tenho alguns contatos — disse Satinov, finalmente

—, embora a maioria dos meus amigos tenha ido para Lenin.— Para onde?— Para o Politburo, no céu. Você não é comunista, acho eu.— Não, mas meus avós são comunistas de verdade.— Eu me tornei marxista com 16 anos e nunca tive dúvidas.Ele não iria dizer nada, Katinka compreendeu, sentindo-se

subitamente deprimida. Em seu encontro com o único elo dos Getmanscom o passado, ela já decepcionara Roza. Seu rosto deve ter reveladoseus sentimentos, porque Satinov segurou a mão dela entre as suas e aapertou.

— Katinka, o passado em nosso país é uma cela escura. Você podenunca encontrar os velhos, mas concentre-se nos jovens. Localize osjovens! Eles merecem sua atenção. Você conhece a corte de Catarina,mas não sabe nada a meu respeito, ou sobre o meu trabalho. Vocêprecisa mergulhar na época da construção do socialismo, se quiserencontrar alguma coisa. Fale com os pesquisadores que estão revirandoos arquivos. Procure mais profundamente, investigue os elos da corrente.Era um mundo subterrâneo, mas nem tudo estava enterrado. Haviaamizades, mesmo naqueles tempos, os mais difíceis, e se encontrar umnome, o fio da meada, então volte e converse comigo.

Katinka sentiu que ele não queria realmente que ela desistisse, então

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criou coragem para uma última investida.— Marechal, posso fazer ao senhor uma pergunta embaraçosa, mas

que pode me poupar um bocado de trabalho? Depois, posso voltar aosmeus estudos de Catarina II.

— Você vai ter que trabalhar mais se quiser fazer progressos — disseSatinov bruscamente, indicando-lhe a porta —, ou então não vaiencontrar nada. Qual é a pergunta?

A pulsação de Katinka estava latejando com tanta força em seusouvidos que ela percebeu que estava quase gritando.

— O senhor é o verdadeiro pai de Roza?

6

Katinka gostava dos mistérios velados que imperam em todas asbibliotecas. Alguns de seus amigos as achavam enfadonhas, com seu odorembolorado e rígido silêncio, quebrado apenas por uma tosse ocasional,cochichos proibidos e o ruído de páginas viradas. Mas, para ela, asbibliotecas eram como hotéis: locais secretos, habitados por estranhos depassagem, vindos de milhares de mundos diferentes e reunidos porapenas algumas horas.

Como não sabia por onde iniciar as pesquisas, começou onde todoscomeçavam — no salão de leituras da Biblioteca Lenin, na Vozdvijenka. Jáfizera trabalhos lá e tinha um cartão da biblioteca. Mas nunca haviareparado que a fachada gótico-stalinista do prédio estava coberta comefígies de bronze de heróis soviéticos, escritores e cientistas. Enquantocaminhava em meio às estantes de livros, contornando as mesas emdesordem — com seus bandos de estudantes, que bocejavam e seespreguiçavam, e velhos de pele acinzentada —, olhos a observavam deforma sub-reptícia. Mais uma vez, sentiu a empolgação da descoberta ese lembrou dos extraordinários olhos de Roza, de como ela suplicara aKatinka que a ajudasse. Katinka concordara em fazer a busca, mas nãotinha ideia de onde iria parar.

Sentou-se a uma mesa vazia, sob altas janelas, e tentou pensar. Por

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onde começaria? Geralmente, em uma biblioteca, ela só reparava nosestudantes; mas agora observava os velhos, que usavam ternos marronse gravatas e se refugiavam ali, garatujando anotações em blocosamarelados, numa caligrafia intricada: por que estariam tão famintos porinformações, quando suas vidas estavam quase terminando? Algum delesteria uma pista para ela? Se tivesse acesso às suas recordações desegredos bolcheviques, um deles, com certeza, seria capaz de ter asrespostas que ela buscava. O que sabiam? O que tinham visto? Enquantoolhava um velho que lambia os dedos, enquanto franzia os olhos e viravapáginas, uma frase de Satinov lhe voltou à mente: “Era um mundosubterrâneo, mas nem tudo estava enterrado.” Tudo era secretonaquele tempo — exceto o quê? Exceto os jornais, é claro.

Ela andou, quase correu, até a recepção, de onde a bibliotecária aconduziu até um lugar com grandes livros, que reuniam coleções dejornais dos anos 30. Sabia que Satinov começara sua ascensão em 1939,quando ingressara no Comitê Central. Em algum lugar naqueles velhosjornais, em algum lugar, disse a si mesma, poderia haver uma pista que oligasse à família de Roza. Aqueles jornais amarelados pertenciam a outromundo, eram escritos em linguagem bolchevique, pouco natural, que afez sorrir com seus absurdos, com suas notícias sobre planos quinquenais,conquistas das fazendas coletivas, estações de máquinas e tratores efundições de ferro em Magnitogorsk; sobre pilotos heroicos, camaradasproletários e mineiros stakhanovistas. Enquanto a luz, no exterior, mudavade azul brilhante para um lusco-fusco poeirento, ela permaneceu sentadaali, lendo o Izvestia e o Pravda, começando a entender que Satinov eRoza tinham vindo de um planeta diferente, próximo no tempo, mas tãoestranho à sua vida quanto Marte ou Júpiter. Encontrou menções ao“camarada Satinov” fazendo uma palestra sobre a produção de chá naAbcásia, sendo reconduzido a Moscou pelo camarada Stalin, promovido noapparat do partido — mas não havia nenhuma alusão à sua vida pessoal,amizades ou conexões.

Algumas vezes, para se manter acordada e ativar a circulaçãosanguínea, ela caminhou pela colossal biblioteca; algumas vezes, sentiu-setentada a interromper o trabalho e ler as revistas ocidentais, ou a revistasat írica Ogoniuk. Mas sempre acabava retornando a seus jornais e suas

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histórias do passado.Já estava para desistir, quando virou a página cinco do Pravda, de

março de 1939, e encontrou uma foto do jovem Satinov, cabeloescovado para trás, botas e túnica stalinka, ao lado de um homemcorpulento, com o uniforme do NKVD. Abaixo da fotografia, havia umartigo sobre a Primeira Sessão Plenária do Comitê Central, após o DécimoOitavo Congresso.

O camarada Stalin elogiou as novas gerações de quadrospromovidos a membros candidatos ao Comitê Central, refletindosobre como “alguns camaradas atingiram a maturidade na própriaescola do Partido, eram o novo aço temperado pelaRevolução...” Depois, em comentários informais feitos aosdelegados, o camarada Stalin rememorou, com afeto paternal,que se encontrara pela primeira vez com os camaradas H.A.Satinov e I.N. Palitsin quando ambos militavam juntos no partido,em Petrogrado, no ano de 1917. “Eles eram jovens, eles eramcompanheiros de armas, eles eram bolcheviques devotados. Opartido deu a eles muitas tarefas difíceis”, disse o camaradaStalin, “mas agora esses camaradas de armas estão novamentereunidos no topo do grande Estado dos trabalhadores...”

Ela leu aquilo cuidadosamente, por duas vezes, anotou os detalhes eo novo nome: I.N. Palitsin. Então olhou em volta: o salão de leituraestava mais vazio do que já estivera. Metade das lâmpadas nas mesasestava apagada. Todos os jovens haviam ido embora, apenas os velhospermaneciam; aqueles velhos que tinham tão pouco tempo, assim comoRoza, com sua terrível sensação de perda. Seria aquele o nome queestava procurando? “Havia amizades, mesmo naqueles tempos...”

Katinka fechou o livro com um barulho abafado, que fez um dosvelhos leitores dar um pulo e piscar os olhos, como se estivesseacordando de um longo sono. Era hora de partir. Ela tinha um encontro.

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7

O motociclista de calças de couro, jaqueta marrom-clara e um capacetecom chifres, ao estilo viking, parou em frente à boate Cão Negro. O lugarera às margens do Moskva, a algumas centenas de metros da embaixadainglesa, e bem em frente ao Kremlin, na outra margem do rio. Algunsesporádicos pedaços de gelo ainda flutuavam no rio e a neve orlava aterra escura, como babados de renda. O ar tinha o odor penetrante deterra molhada. Já escurecera, mas a noite era quente e enevoada.

Katinka ouviu uma banda de heavy metal tocando “Winds ofChange”, dos Scorpions, no interior da casa noturna. Conjeturou se nãoteria vindo ao lugar errado: não era moscovita e conhecia mal o centro dacidade. Parecia um lugar estranho para um encontro de historiadores.

O motociclista desmontou e caminhou na direção dela, tirando ocapacete de chifres e estendendo uma pata forrada de couro.

— Katinka? É você? Sou Maxi Chubin.— Ah, oi... — Katinka sentiu um rubor aflorando no rosto, para seu

grande embaraço, porque ele era muito mais jovem do que ela esperava.O cabelo escuro de Maxi era uma juba desgrenhada, seus olhos cor decaramelo eram grandes e sua barba rala parecia ter crescido mais poracaso do que por vontade dele. Quando percebeu que ele usavaapertadas calças de couro, repletas de zíperes prateados, ela tentou nãosorrir. — Você não parece um pesquisador — disse ela.

Maxi sorriu.— E você não parece uma acadêmica. Quer tomar uma bebida?O porteiro do clube, um roqueiro punk, com uma exagerada

quantidade de piercings nos lábios e no nariz, fez sinal para queentrassem. O andar de cima era uma área em que se podia sentar, comfumaça pairando no ar, copos usados, copos de poliestireno e restos desanduíches em todas as superfícies. A banda, que tocava no andar debaixo, fazia o chão estremecer. Mas, pelo menos, podiam conversar.

Maxi sentou-se em um sofá, acenou para uma garçonete com botasde PVC, meias compridas e shorts de couro — que parecia uma prostitutamirim — e pediu duas cervejas Ochakov para ambos.

— Você é nova em Moscou, não é?

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— Eu estudei aqui e faço pesquisas aqui, mas...— Deixe-me adivinhar pelo seu sotaque: você é de algum lugar do

norte do Cáucaso? Mineralnie Vodi ou Vladikavkaz?— Nada mal — disse Katinka, com a autoconfiança retornando,

enquanto bebia a cerveja gelada, sem perceber que tinha espuma nonariz — e que suas roupas tornavam óbvio que ela vinha de longe. —Você é moscovita?

— Originalmente de Piter.— A janela para a Europa. Que romântico!— Você acha mesmo? — disse Maxi. — Eu sou alguém que ainda

acredita em romantismo. Na verdade, Piter é uma roça, uma roçaelegante e poética, uma cidade de palácios vazios. Mas tem tradição deliberdade. Talvez isso tenha influenciado meu trabalho na FundaçãoResgate. — Ele tirou a jaqueta de couro. — Como você me encontrou? Equal é o seu projeto?

— Eu li o seu artigo sobre o NKVD durante o Terror, na VoprosiIstorii, e, claro, li sobre as pesquisas que a Resgate fez sobre as vítimas doTerror. Então telefonei para você. Foi muito gentil de sua parte ter vindome ver tão depressa.

Maxi pareceu um tanto embaraçado — e ocorreu a Katinka que eletinha concordado em vê-la apenas porque ela era uma garota. Masdescartou a ideia de que aquele cruzado da verdade pudesse alimentarmotivos tão primários.

— Eu estou estudando Catarina, a Grande, para o meu doutorado...Maxi se inclinou em sua direção, seus olhos castanhos cravados nos

dela.— Então, por que você deixou a graciosa, nobre e romântica corte

da imperatriz para se concentrar nos sórdidos assassinos psicopatas deStalin? — perguntou ele.

— Eu não sei — confessou ela. — Eu não queria esse trabalho. E atéo recusei, no início.

— Mas acabou aceitando?— Você já encontrou alguma pessoa tão linda e intrigante que você

não consegue resistir a ela?Maxi inclinou a cabeça e olhou para ela sugestivamente.

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— Só muito de vez em quando — disse.— Quero dizer, em suas pesquisas — acrescentou ela friamente,

recostando-se na cadeira.O rosto de Maxi revelou decepção.— Sim, no meu trabalho sempre encontro pessoas tão destroçadas

pelos crimes do passado que tento fazer tudo o que posso para ajudá-lasa se recuperar — esta é a minha vocação.

Ele parecia jovem e sincero, agora, e ela gostou mais dele.— Bem, eu conheci alguém assim. O nome dela é Roza Getman e ela

está tão ferida pelo passado que eu tive que ajudá-la...Maxi ouviu atentamente enquanto Katinka lhe contava a história de

sua viagem a Londres, o oligarca e seu palácio, os passeios no Regent’sPark — e de como ela tinha telefonado ao único elo de Roza com opassado, um velho comunista poderoso, e fora vê-lo, em umainvestigação que fizera sua...

— Isso se parece com um milhão de histórias, mil casos em que estoutrabalhando bem agora — disse Maxi finalmente. — Eu não posso ajudarvocê nos detalhes — estou atolado de trabalho —, mas posso lhe darumas diretrizes gerais. Olhe, me telefone de novo na semana que vem eeu vou colocar você em contato com um colega que pode ser mais útil.

Tomou um gole de cerveja e Katinka entendeu que ele estavaterminando a conversa. Ela tinha cortado o flerte dele e, como seu casoera comum, não havia razão real para que ele a ajudasse. Quanto antesela retornasse ao século XVIII, melhor.

— A propósito, quem é o velho comunista? — perguntou eleenquanto se levantava.

— Ah, ele se chama Satinov — disse Katinka, conjeturando como iriadizer a Roza que ninguém queria ajudá-las.

Maxi sentou-se de novo abruptamente.— Hércules Satinov?— Sim.— Ele recebeu você?Ela assentiu.Maxi acendeu um cigarro e lhe ofereceu um, que acendeu para ela.— Ele nunca recebe ninguém, Katinka — disse ele, falando rápido,

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com o rosto animado. — Eu estou tentando me encontrar com Satinovhá quinze anos, e nenhum dos meus colegas da fundação, nenhumhistoriador liberal jamais conseguiu ser recebido por ele. Todos os outrosvelhos dinossauros estão mortos e Satinov é o último deles, o guardiãodos segredos, o grande sobrevivente do século XX. Ele sabe onde oselefantes estão enterrados. Se ele recebeu você, é porque estáinteressado em você. Isso significa que ele pode ajudar você.

Katinka olhou para ele ironicamente. Maxi levantou as mãos.— Se você compartilhar os resultados de sua pesquisa comigo, vou

ajudar você no que puder. Não me olhe assim, Katinka; pode acreditar,você vai precisar de mim para se orientar nesse mundo desaparecido. Émais fácil fazer uma tabela dos hieróglifos do antigo Egito do que acharseu caminho no labirinto do Kremlin de Stalin. O que você me diz? Temosum trato?

Katinka pensou em Roza, mais uma vez, e suspirou.— Sim — disse ela —, mas lembre-se: eu sou uma historiadora séria,

não uma garota para ficar levando cantadas.Ele riu e pediu mais duas cervejas Ochakov. Então ergueram as

garrafas.— À nossa parceria improvável.Eles brindaram e beberam.— Agora — disse Maxi —, conte-me tudo sobre o seu encontro com

Satinov. Eu quero tudo. Nenhum detalhe é insignificante. Tudo temimportância, até as meias que ele estava usando.

Maxi a interrogou minuciosamente, ouviu as respostas com atenção elevantou outras dúvidas. A intensidade da conversa era tal que, emboraestivessem em um bar fumacento e um tanto ordinário, poderiam estarsentados no santuário silencioso dos arquivos.

— Sem dúvida, ele sabe de alguma coisa a respeito da família quevocê está procurando. E é uma coisa importante — disse Maxi.

— Eu não consigo entender por que ele simplesmente não me contatudo — disse ela. — Então, eu poderia voltar para os meus estudos.

— Não, não é o estilo dessas pessoas — explicou Maxi. — Você nãopode pensar nesses bolcheviques em termos de polít icos modernos. Eleseram fanáticos religiosos. O marxismo era uma coisa fanática; o fervor

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deles era quase islâmico. Eles viam a si mesmos como cruzados medievaisou cavaleiros templários. Eram implacáveis, amorais e paranoicos.Acreditavam que milhões teriam que morrer para que criassem seumundo perfeito. Família, amor e amizade não eram nada comparados aosanto graal. Pessoas morriam por tagarelice, na corte de Stalin. Para umhomem como Satinov, o segredo era tudo.

— Mas Stalin morreu quarenta anos atrás e o comunismo acabou hátrês anos — replicou Katinka. — O que impede Satinov de contar seussegredos agora?

— Você tem que entender que o silêncio e o segredo estavamprofundamente enraizados em pessoas como Satinov. Quando Stalinestava vivo, seus apparatchiks guardavam silêncio porque, em parte,acreditavam no que estavam fazendo; em parte, porque eramconspiradores natos — a conspiração era seu habitat. E, em parte,porque tinham medo. E era o tipo de medo que não acaba nunca: vivepara sempre dentro dos ossos. Depois que Stalin morreu, elesmantiveram silêncio porque queriam proteger a Ideia, a União Soviética, osanto graal. Para alguém como Satinov, o segredo não era apenas umhábito, era a essência do código revolucionário.

Permaneceram ambos em silêncio, enquanto pensavam no assunto.— Você encontrou alguma coisa para levar para ele? — perguntou

Maxi finalmente.Katinka deu de ombros e soprou a fumaça do cigarro.— Eu esperava que você pudesse ter alguma ideia. Eu examinei anos

de edições de jornais e não achei nenhuma ligação pessoal, com exceçãodisto aqui.

Ela lhe entregou uma fotocópia do artigo que encontrara naBiblioteca Lenin.

— Não acho que isso possa nos ajudar muito...Maxi pegou a fotocópia, estudou-a cuidadosamente e assobiou.— Vânia Palitsin. Sei exatamente quem ele era. Um agente secreto

veterano, da velha escola, que desapareceu pouco depois que esta fotofoi tirada. Ele era importante nos anos 30, mas não aparece em nenhumlivro de memórias, nenhum livro de história. Sua prisão nunca foianunciada e nós não sabemos o que aconteceu com ele.

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— Mas em que isso nos ajuda?— Bem, eu nunca soube que Satinov e Palitsin eram amigos — e

teriam que ser amigos muito íntimos, bem conhecidos por sua amizade,para que Stalin se referisse a uma coisa dessas em seus “comentáriosinformais”. Pode ser um beco sem saída, mas você encontrou um possívelelo com o passado de Satinov. Não foi o que ele lhe disse para fazer?

A emoção da revelação histórica, reencontrar e ressuscitar sereshumanos do passado, inflamava Katinka. A música reverberante, atagarelice dos outros frequentadores do clube, tudo o mais pareciairrelevante. Ela só conseguia pensar em Roza, e na esquiva família deRoza.

— Mas isso será o bastante para que ele fale comigo? — perguntouela.

— Acho que você deveria fazer mais pesquisas antes, só para tercerteza — disse Maxi lentamente. — Você tem o nome Palitsin. Faça umrequerimento para a ficha dele nos arquivos da KGB — eu posso fazer issopara você — e descubra o que aconteceu com ele, se ele tinha família,filhos. Essa é a parte fácil. Depois, você pode voltar a falar com Satinov.Você já pesquisou em arquivos?

— Eu adoro arquivos — disse ela, abraçando a si mesma.— Por quê?— Posso sentir o cheiro da vida, no papel. Já me sentei nos Arquivos

do Estado e segurei as cartas de amor de Catarina e Potemkin, comfrases apaixonadíssimas, ainda com o perfume dela e molhadas com aslágrimas dele, enquanto ele estava morrendo nas estepes.

Maxi assentiu.— Bem, esses arquivos são diferentes. Onde há sofrimento, há uma

espécie de santidade. Os nazistas sabiam que estavam agindo errado,então esconderam tudo. Mas os bolcheviques estavam convencidos deque estavam agindo certo, então conservaram tudo. Goste você ou não,você é uma historiadora russa, uma pesquisadora de almas perdidas; e, naRússia, a verdade nem sempre é escrita com tinta, como em outroslugares, mas com sangue inocente. Esses arquivos são tão sagradosquanto o Gólgota. No farfalhar seco dos papéis, você pode ouvir chorode crianças, manobras de trens, ecos de passos nas celas e o tiro da

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pistola Nagan, distribuindo os sete gramas de chumbo. Os papéis cheirama sangue.

8

Dois dias depois, Katinka saiu do Hotel Moskva, uma monstruosidadestalinista decadente, onde estava hospedada, e subiu a colina do Kremlin,do Bolshoi e do Hotel Metrópole, indo até a praça Lubianka. Multidões defuncionários de escritórios saíam do metrô e passavam pelas bancas dejornais, com seus murais de revistas sensacionalistas; o trânsito eraintenso em volta da praça, onde o pedestal vazio da estátua deDzherjinski assinalava a queda do comunismo. Diante deste, estava oquartel-general da KGB, uma inexpugnável fortaleza de granito vermelhoe cinzento, que abrigava escritórios, arquivos, túneis e calabouços. Antigasede da Companhia de Seguros Rússia, o prédio era, desde 1917, a casados destemidos, implacáveis e incorruptíveis cavaleiros do PartidoComunista, que tinham operado sob diversos nomes: Tcheka, OGPU,NKVD e KGB. Agora atuavam sob outras letras assustadoras, mas seupoder desaparecera. Katinka tinha certeza de que a KGB nunca maisdominaria a Rússia.

Ela não queria ter ido até lá. Nenhum russo gostava de visitar aLubianka — era o sepulcro nacional. Mas bastou se lembrar do telefonemaque dera a Roza para andar mais rapidamente em direção ao prédiobrutal, que ainda irradiava poder, o poder de esmagar a felicidadehumana. Ao telefonar de Londres, Roza não fizera comentários sobre asdescobertas de Katinka, mas a estimulara a prosseguir... Se o pai deKatinka tivesse sabido que a pesquisa dela a traria à Lubianka, jamais teriapermitido que ela aceitasse o trabalho. “Deixe isso para lá! Não remexaem cemitérios. É perigoso demais”, ele teria dito. “Você tem ideia dequanto eu te amo? Mais do que qualquer pessoa em toda a históriahumana, desde o início dos tempos! É isso!”

Era maravilhoso ter um pai e uma mãe que gostassem tanto de você.Katinka pensou de novo em Roza, e em como deveria ser a sensação

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de viver sem saber quem eram os pais.Empurrou a porta dupla da Lubianka e entrou em um saguão de

mármore, abobadado. Dois cabos, de uniforme azul, examinaram seupassaporte, telefonaram para algum andar acima e a encaminharam parauma escadaria de mármore, tão larga que um tanque poderia subir porela. A meio caminho, erguia-se um busto de Andropov, chefe da KGB elíder soviético, com seus óculos característicos.

Ela desembocou em um longo corredor, com um tapete vermelho,velhas bandeiras e retratos de antigos tchekistas. Maxi lhe dissera que, nointerior da fortaleza, estava a Prisão Interna, onde os pais de suaempregadora podiam ter morrido, embora também pudessem terrecebido os sete gramas de chumbo nas prisões de Butirki ou deLefortovo — ou, ainda, na Sukhanovka, o centro especial de torturasutilizado por Beria, um belo monastério antigo que ficava nos subúrbios.Maxi explicara a ela que o momento era bom para se requerer o examede arquivos. E lhe telefonara na noite anterior.

— A Lubianka ligou para mim. Seu arquivo está pronto.— Mas você tem certeza de que eu devo procurar por Palitsin? O

marechal Satinov me aconselhou a esquecer os adultos e começar com ascrianças.

Maxi riu.— Você se lembra do que eu lhe disse sobre Satinov e os

bolchevistas veteranos? Mentir era o dever deles para com a Revolução.Isso apenas confirma que você deve começar com os adultos. Depois,nós pensaremos nas crianças.

— Estou começando a pegar o jeito da coisa — disse ela.— Espere até ver os arquivos. Lembre-se, Katinka, de que ninguém

nunca desenterrou uma joia já lapidada.Ela seguiu as instruções que tinha. Virou à direita, depois à esquerda,

e viu a porta com o letreiro Coronel Lentin, Diretor, Departamento deRegistros e Arquivos. Bateu na porta, uma voz respondeu e ela entrouem um escritório apertado, cujas persianas brancas e ornamentadasestavam cerradas. O ar abafado, a vidraça coberta de vapor e o divãdesarrumado levaram-na a concluir que o coronel tinha dormido noescritório. Mas onde estaria ele?

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— Bom dia — disse a voz, e ela se virou. Um homem gordo decabelos sedosos, em trajes civis, estava terminando de abotoar a camisa earrumar a gravata, em frente a um espelho que estava atrás da porta. —Desculpe, estou apenas me embelezando para os visitantes. Sente-se!

Ela sentou-se à mesa de conferências, em forma de T, colocandosobre esta o bloco de anotações. Seu instinto, ali dentro, era obedeceràs ordens, mas, naquele momento, sua curiosidade era mais poderosaque o medo. O que acontecera a Palitsin, amigo de Satinov por tantosanos, talvez naquele mesmo prédio? Percebeu que estava começando acompartilhar do entusiasmo de Maxi, a emoção da caçada.

— Pronto. — O coronel Lentin sentou-se diante de sua mesa e,molhando um dedo com uma língua rosada, abriu uma pasta naescrivaninha. Falava um russo bonito e educado. — Você é umahistoriadora, que estuda as leis do século XVIII, sob a supervisão doacadêmico Beliakov. Então, tchã-tchã-tchã-tchã, de repente você faz umrequerimento para examinar arquivos da época do Culto à Personalidade.

“Tchã-tchã-tchã-tchã”? O coronel Lentin devia ser fã das novelasmexicanas idiotas que agora poluíam a televisão russa, pensou Katinka. Eletinha pestanas oleosas, ainda incrustadas de remelas, e sua pele pareciajamais ter visto um barbeador. O rosto dele, com queixo proeminente enariz esborrachado, lembrava a ela um animal. Sim, Lentin era um saguipresunçoso e intrometido.

— Eu não sabia que Catarina, a Grande, tinha reformado as leis dosanos 1930 — continuou ele —, ou estou enganado?

— Eu nunca me interessei pelo Culto à Personalidade. Só estoufazendo uma pesquisa familiar, é um projeto pequeno — disse Katinkacasualmente. — Para ganhar um pouco de dinheiro e pagar meus estudosde Catarina.

— Entendo — disse o Sagui. — Bem, o seu amigo Maxi Chubin e opessoal dele também estão fazendo pesquisas, mas acho melhor quevocê mantenha o seu pequeno projeto separado dos projetos deles. Nósnão temos nenhum problema com você, mas aqueles liberais sãocapachos dos americanos, que hoje se comprazem com a humilhação daRússia. Eles estão solapando as fundações do Estado, achando, tchã-tchã-tchã-tchã, que nós vamos desaparecer sem mais nem menos. Mas

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se não fosse por nós, senhorita Katinka, a Rússia estaria entregue aosespeculadores corruptos e à hegemonia americana — entregue,totalmente entregue. E nós, tchekistas, levamos nossos votos a sério.Nós sempre estaremos aqui.

Katinka suspirou. Essa conversa fiada da KGB estava fora de moda nanova Rússia, onde ela e Maxi viviam.

— Entendo o que o senhor está dizendo, coronel — disse ela.Naquele momento, uma porta se abriu e um velho de casaco brancoentrou, com um carrinho de metal, entulhado com pastas de papelmarrom, manchadas, com os cantos presos por elásticos, com etiquetas enúmeros nas capas.

— Aqui está, coronel. — O velho expeliu uma volumosa bola decuspe em uma escarradeira de metal que estava sobre o carrinho. Aolado da escarradeira, um gordo gato avermelhado dormia profundamente.— Ouro no cascalho!

— Bom dia para você, camarada... sr. Arquivista — disse Katinka,levantando-se e fazendo uma ligeira mesura. Ela reconhecia umverdadeiro rato de arquivos, um Quasímodo das estantes secretas. Todosos arquivos tinham um homem assim, verdadeiro descendente dasespécies de trogloditas que prosperavam nos túneis obscuros e nosdepósitos que existiam abaixo dos calçamentos de Moscou. Eles tambémtinham poder, e Katinka sabia que os historiadores tinham que lhesdemonstrar respeito e conquistar sua boa vontade.

— Duas pastas dos arquivos, camarada Coronel! Bom dia! — Ele asentregou ao Sagui e empurrou o carrinho em direção à porta. Umgatinho muito magro, que estava embaixo do gato, colocou a cabeçapara fora.

— Posso perguntar seu nome, camarada Arquivista? — perguntouKatinka rapidamente.

— Kuzma — disse o espectro. Cuspiu novamente e Katinka notouque a escarradeira tinha o emblema da KGB. Seria um prêmio por longosanos de serviço?

— Agradeço muito a sua ajuda, camarada Kuzma — disse Katinka. —Você deve saber tanta coisa que você mesmo poderia escrever ashistórias. Qual o nome dela? — ela fez um gesto em direção à gata.

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— Utesov — disse Kuzma.— Você é fã do jazz odessense?Kuzma assentiu.— Então qual é o nome do gatinho? Tseferman?Kuzma não a olhou nos olhos, ou sorriu, mas apenas ficou parado lá,

por alguns momentos, afagando os gatos, cantarolando de um modosatisfeito, como um pai cujos filhos acabam de ser elogiados. O palpite deKatinka estava certo.

— O pequeno Tseferman, hein? Meu pai adora a música deles e eufui criada com ela. Acho que vou trazer um pouco de leite para Utesov eTseferman na próxima visita.

Kuzma respondeu com uma porção especialmente densa de cuspe,que executou duas cambalhotas antes de aterrissar na escarradeira,quase cheia. Katinka conseguiu fingir que tinha gostado da graciosademonstração.

— Obrigada, camarada Kuzma — e adeus, Utesov e Tseferman.O arquivista fechou a porta.— Aqui estão suas pastas. Um pouco de poeira para você respirar —

disse o Sagui. — Vamos ver — e leu em voz alta:

Relatório de Investigação Maio/Junho 1939Caso 16373 Administração Central da Segurança EstatalIvan Nikolaievitch Palitsin...

Então, jogou a pasta sobre a mesa, em frente a ela, fazendo-a darum pulo e levantando poeira, minúsculas partículas que, como satélitesprateados, vibraram e cintilaram sob a luz.

— Posso tomar notas?— Sim, mas nos reservamos o direito de verificá-las. Em 1991,

deixamos muitos arquivos serem copiados por influências alienígenas.Andaram relaxando nos procedimentos. O que você está esperandoencontrar?

— Quero ver se esse Palitsin tem alguma ligação com os meusclientes...

— Você pode encontrar algumas respostas, mas não tem direito de

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saber tudo, nem mesmo agora.— Você sabe se ele tinha mulher e filhos?O Sagui assentiu e colocou uma papka mais fina sobre a outra.— A mulher de Palitsin tem sua própria ficha, bem aqui. Você quer

ver?Katinka pegou-a e leu:

Relatório de Investigação Maio/Junho 1939Caso 16374Aleksandra Samuilovna Zeitlin-Palitsin, Prisioneira 778

— Samuilovna Zeitlin. Não é um nome russo. Havia muitos deles nopartido, naqueles dias, e se descobriu que muitos eram traidores — disseo Sagui, debruçando-se sobre o ombro dela. Ele abriu o arquivo. Haviauma foto presa com um clipe aos poucos papéis dentro da pasta.

— Aí está, essa é a foto que eles tiraram no dia da prisão.Katinka olhou-a com o coração batendo forte. A foto mostrava uma

mulher com uma boca rasgada, ligeiramente aberta, e olhos cinzentosque ardiam diante das lentes.

— Ela é linda, quem quer que seja. — Katinka sentiu-se subitamentefascinada e um pouco comovida.

— Sim, essa Dalila era muito conhecida. Então, tchã-tchã-tchã-tchã,ela desapareceu!

— Posso examinar o arquivo agora? — Katinka estava ansiosa para selibertar do olhar do Sagüi.

— Você tem trinta minutos. — Ele empurrou o arquivo na direçãodela e retornou à sua cadeira, onde ficou olhando para ela.

— Para este arquivo?— Para os dois. Essas são as regras.— Fique à vontade para fazer seus outros trabalhos, coronel — disse

Katinka constrangidamente.— Observar você — respondeu ele — é o meu trabalho.

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9

Katinka colocou a foto sobre a pasta, que puxou mais para perto, e olhoupara o rosto da mulher: os olhos refletiam o flash de uma velha câmera,mas, longe de manifestar uma autocomiseração vazia, o olhar irradiavacalor e uma vivacidade zombeteira, em que Katinka percebeu, no arranjodos músculos, um esforço para mostrar, à beira do abismo, a melhoraparência que podia.

— Olá — sussurrou Katinka, imaginando que a foto poderiaresponder, que aqueles olhos suplicantes poderiam piscar. — Quem évocê?

Grampeado na capa da pasta, havia um pedaço de papel manchado eamarfanhado, onde todos os que examinassem o arquivo deveriam assinar— mas estava em branco. Ninguém, fora da KGB, jamais o examinara. Elasegurou a primeira folha de papel, uma curta biografia:

Nascida em 1900, em São Petersburgo, Aleksandra SamuilovnaZeitlin-Palitsin, conhecida como Sashenka, camarada Raposa.Nacionalidade: judia. Integrante do Partido desde 1916. Últimolugar de trabalho: editora da Esposa Soviética e Administração doLar Proletário, Editora do Estado. Educada no Instituto Smolni...

— Sa-shen-ka... — disse Katinka a si mesma. — Você vai ajudar Rozae me ajudar?

Família: pai, barão Samuil Zeitlin, banqueiro capitalista, mais tardeespecialista externo do partido no Comissariado Popular deFinanças, depois Comissariado de Comércio Exterior, depoisBanco do Estado, dispensado em 1928, exilado em 1929, presoem 1937, sentenciado a dez anos — Kolima. Mãe: Ariadna Zeitlin,nascida Barmakid, morta em 1917.Irmão da mãe: Mendel Barmakid, judeu, membro do partidodesde 1904, membro do Comitê Central 1911-1939, preso em1939. Irmão do pai: Gideon Zeitlin, escritor. Não integrante dopartido. Judeu.

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Marido: Ivan Palitsin, nascido em São Petersburgo em 1895.Russo, membro do partido desde 1911, casado em 1922, presoem 1939, último cargo: Comissário Popular Assistente, NKVD.Filhos: Volia e Karlmarx.

— Prazer em conhecer vocês todos — disse Katinka baixinho.Sashenka e seu marido estariam bem velhos agora, mas ainda poderiamestar vivos — não havia nada na ficha que dissesse o contrário. E seusfilhos nem mesmo seriam velhos. Ela não sabia que aquela mulher erarelevante para sua pesquisa, mas seu pulso se acelerou. — Eu gostaria desaber o que aconteceu com você.

— Você está falando sozinha — disse o Sagui. — Por favor, silêncio.— Desculpe.Katinka virou a página e encontrou um formulário, preenchido em 16

de maio de 1939, com a descrição de Sashenka. Cor dos olhos: cinza.Cabelo: castanho-escuro com mechas avermelhadas. Seguiam-se suasborradas impressões digitais. Então, um pedaço de papel vincado emanchado, intitulado Administração Central da Segurança Estatal,Departamento de Casos Muito Importantes. No meio, datilografada emum tipo grande, curvilíneo, que dava a impressão de honestidade, comose nada tivesse a esconder, estava a seguinte determinação: Zeitlin-Palitsin, juntamente com seu marido, Palitsin, foi desmascarada comoespiã, com longos serviços prestados à Okhrana e aos Guardas Brancos,uma sabotadora trotskista e agente do Japão. É fundamental prendê-la eproceder a uma busca.

O texto estava cercado de selos, rabiscos e assinaturas. O primeironome era Capitão Melski, Chefe da 9ª Seção do 4º Departamento,Administração Central da Segurança Estatal. Mas seu nome fora riscadopor uma grossa pena de feltro e, abaixo, no que parecia ser a caligrafia eortografia de uma criança, alguém escrevera: Eu mesmo vou conduzir esaoperassão. B. Kobilov, Comissário-Geral, Segurança Estatal, segundo grau.E mais tarde: Operassão ezecutada. Prizioneira Aleksandra Zeitlin-Palitsindeixada na Prisão Interna. B. Kobilov, Comissário-Geral, Segurança Estatal,segundo grau.

O Sagui ainda estava sentado no mesmo lugar, olhando de soslaio,

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mas Katinka não se importava. Estava fascinada. Então Sashenka e omarido tinham caído em 1939. Por quê? Quando virou a página,encontrou o testemunho de um homem chamado Peter Sagan, ex-capitão dos Gendarmes, oficial da Okhrana e, mais tarde (sob nomefalso), professor em Irkutsk. Sagan revelou que Sashenka e Vânia tinhamestado em São Petersburgo em 1917 — assim como Satinov. Logo, ojorro de acusações ensandecidas contra os Palitsins tornou-se fortedemais para ser absorvido. Parecia que um fantasma emergira das brumasdo tempo, trazendo uma praga de mentiras e acusações. Mas então elaviu a data da confissão de Sagan: 5 de julho — depois da prisão deSashenka. Sagan não chegara à Lubianka até 1º de julho. Portanto,Sashenka fora presa por outro motivo. Mas qual?

Katinka folheou avidamente a confissão de quinze páginas, maldatilografada, assinada em cada canto de página com as frágeis eanêmicas marcas de Sagan — como era estranho, pensou ela, que asvidas daquelas pessoas estivessem reduzidas a riscos de caneta. Elatentou imaginar a personalidade por trás das evanescentes marcas detinta, e estremeceu.

Em seguida, encontrou uma única folha de papel, com um parágrafointitulado Resumo da confissão de Beniamim Lazarovitch “Bênia” Golden:anexar à ficha de Aleksandra Zeitlin-Palitsin. O escritor Bênia Golden. Elaouvira falar dele e de sua única obra-prima, as histórias da Guerra CivilEspanhola. Então leu:

B. Golden: Usando as depravadas técnicas de sedução das espiãsdo tipo de Mata Hari, Sashenka — a acusada Aleksandra Zeitlin-Palitsin — primeiro me seduziu sexualmente, sob o pretexto deme convidar a escrever para a revista dela; depois me persuadiua me encontrar com ela para práticas de corrupção sexual noQuarto 403 do Hotel Metrópole, reservado pela União dosEscritores/Litfond para o uso de redatores, não-residentes emMoscou, da revista Esposa Soviética e Administração do LarProletário, que ela editava. Ainda usando a máscara de uma novamulher soviética, Zeitlin-Palitsin confessou para mim que eraagente da Okhrana e trotskista, e me pediu que a apresentasse

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ao serviço secreto francês, que tinha me recrutado em Paris, em1935, quando eu estive lá com a delegação soviética para oCongresso Internacional dos Escritores. Ela já tinha recrutado seutio Mendel Barmakid, membro do Comitê Central, e eu recrutei ooutro parente dela, meu amigo, o famoso escritor Gideon Zeitlin,para ajudar nos assassinatos dos camaradas Stalin, Molotov,Kaganovitch e marechal Vorochilov, em uma festa na casa deSashenka, onde borrifaríamos veneno no gramofone que ocamarada Stalin ira usar. A primeira tentativa na casa dela —quando o camarada Stalin esteve lá, no Dia do Trabalho de 1939— falhou porque eu não consegui borrifar o veneno nogramofone.

Testemunha: Investigador Rodos, Departamento de CasosMuito Importantes, Administração Central da Segurança Estatal.

Katinka teve um sobressalto. Então Bênia Golden, aquele escritortalentoso e compassivo, virara a casaca e incriminara Sashenka. Adenúncia dele devia ter causado a prisão dela. Como ele pudera ter feitoaquilo? As acusações contra Sashenka pareciam absurdas.

Mas aquilo estava datado de 6 de agosto, ainda depois da confissãode Peter Sagan. Apressadamente, Katinka virou mais páginas. Estavalendo há quinze minutos. Depois de uma pitoresca colagem de selos,triangulares, quadrados e redondos, ela leu uma anotação, datada de seismeses mais tarde:

Gabinete do Procurador Militar, 19 de janeiro de 1940O caso contra o grupo de espiões terroristas Zeitlin-Palitsin-Barmakid já está completo e deve ser entregue à corte... Enviaro caso para o Tribunal Militar, 21 de janeiro de 1940.

Katinka sentiu uma pontada, como se ela, ou alguém próximo a ela,estivesse para ser julgado em 21 de janeiro de 1940. Na foto, os olhosde Sashenka a olhavam ansiosamente. Maxi tinha razão: havia intimidadenaqueles velhos papéis misteriosos, e uma insuportável sensação detragédia. O que acontecera àquelas pessoas no julgamento? Sashenka

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ficara viva ou morrera? Katinka virou a página com impaciência. Não haviamais nada.

— Cinco minutos! — disse o Sagui, tamborilando com os dedos namesa. Katinka reparou que ele estava lendo Manchester United Fanzine ,uma revista de futebol. Anotou então os fatos básicos, em seu bloco deanotações, assim como os novos nomes: Bênia Golden — escritor famoso.Mendel Barmakid — apparatchik esquecido. Gideon Zeitlin — figura domundo literário.

Rapidamente, alcançou a pasta de Palitsin. A primeira coisa que viu foia foto: Ivan Palitsin, marido de Sashenka e amigo de Satinov, visto defrente e de perfil, um homem corpulento e atlético, com espessoscabelos grisalhos e maçãs do rosto salientes, como as de um tártaro. Beloe peludo exemplar do proletário russo, realmente trabalhara na FábricaPutilov. Na foto, tinha um olho roxo e o lábio sangrando. Deve teroferecido resistência, concluiu Katinka. Ele usava uma túnica do NKVDrasgada. Olhando dentro de seus olhos, ela viu... cansaço, desdém, fúria— não o medo e o sarcasmo comovente dos olhos da esposa.

— Quatro minutos — disse o Sagui.Ela leu a biografia. Vânia era um tchekista graduado, que fora guarda-

costas do próprio Lenin em Petrogrado, entre 1917 e 1919, nosprimeiros anos da Revolução. Passando por cima de seus chefes, duranteo Terror, devia ter tido sua cota de crimes, até... Ela encontrou umaordem de prisão, pouco antes da que fora emitida para a esposa. Talvezfosse por isso que ele parecia mais cansado e furioso que temeroso: sabiao que estava para acontecer e se mostrava entediado com osprocedimentos que tão bem conhecia. O que acontecera com ele? Elaleu e releu o arquivo, tomando nota das datas, tentando entender asequência. Estava tudo lá, mas nada era o que se dizia que era: estavatudo em uma algaravia soviética, o código do bolchevismo. Ela virou maisfolhas. Palitsin começara a confessar no dia 7 de junho e continuara emjulho, agosto e setembro. Também fora enviado para julgamento.

— O tempo acabou — disse o Sagui.— Por favor, um segundo!Saltando algumas páginas, foi até o final da ficha. Tinha que descobrir

o que acontecera com Palitsin. Encontrou uma confissão assinada.

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Acusado Palitsin: eu me declaro culpado de espionar para asinteligências japonesa e britânica, de servir a Trotski e de planejar umataque terrorista contra a liderança da União Soviética. Mas não havia finalpara aquela história — e nenhuma menção a Satinov, nenhum elo comum passado comum.

Ela tomou nota das datas em seu bloco e suspirou, com vontade dechorar. Por quê? Por duas pessoas que jamais conhecera?

— Não há registro de sentença — disse em voz alta. — Eles poderiamter sobrevivido? Poderiam estar vivos?

— Diz aí na ficha que eles morreram? — perguntou o coronel.Ela abanou a cabeça.— Bem, então... — ele ficou de pé e se espreguiçou.— Mas falta muita coisa nesses arquivos, coronel. Não há detalhes das

sentenças. Talvez os Palitsins tenham sido enviados para os gulagui, eanistiados depois da morte de Stalin. Eu gostaria de requerer maisarquivos. Quero saber o que aconteceu com essas pessoas.

— Isso é um jogo, menina? Tchã-tchã-tchã-tchã! Talvez você tenhasorte. Talvez não. Vou encaminhar sua solicitação ao meu superior, ogeneral Fursenko. Eu sou apenas uma peça na engrenagem.

Katinka sentiu-se abatida. Ainda não descobrira por que Sashenka eseu marido tinham sido presos. A confissão do capitão Sagan estava comdata posterior à prisão deles. Ela não acreditava na história de BêniaGolden, sobre sua aventura amorosa com Sashenka, muito menos naconspiração para assassinar os líderes do partido. Teria sido tudoinventado? E ela ainda não sabia se aquilo estava, de alguma forma, ligadoa Satinov.

Quando fez a pasta deslizar sobre a escrivaninha, na direção docoronel, a folha com a relação das pessoas que tinham examinado oarquivo, que estava em branco, dobrou-se acidentalmente. No outro ladohavia alguns nomes, rabiscados em 1956. Seu coração deu um pulo. Láestava: Hércules Satinov.

O Sagui começou a verificar se todos os documentos estavampresentes, molhando os dedos com a língua, enquanto virava as páginas.

Katinka percebeu que ainda tinha um ou dois minutos. Rapidamente,reabriu a pasta de Ivan Palitsin — e algo lhe despertou a atenção.

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Em um papel encimado com a divisa da Segurança Estatal havia umaordem manuscrita, datada de 4 de maio de 1939:

Sovechno sekretno. Máximo segredo.Capitão Zubenko, Grupo Técnico Especial, Segurança Estatal.Iniciar imediatamente uma vigilância, apenas dentro dos limitesda cidade, sobre a camarada Sashenka Zeitlin-Palitsin, editora daEsposa Soviética e Administração do Lar Proletário, Petrovka, 23,e instalar equipamento de escuta no Quarto 403, HotelMetrópole, com a máxima urgência. Reportar-se apenas a mim,sem cópias.

De olhos arregalados, Katinka observou a assinatura: Vânia Palitsin,Comissário-Geral da Segurança Estatal, terceiro grau.

O marido de Sashenka.

De novo andando nas ruas de Moscou, Katinka passou pelo Bolshoi eseguiu em direção ao Kremlin. Apertou com força o caderno deanotações, que trazia nas mãos, e olhou para as bancas de camelôs, queofereciam CDs piratas, panfletos com histórias sensacionalistas, pornografiaamericana, revistas de artistas italianos e, até mesmo, o Livro das BoasManeiras, de Pedro, o Grande. Mas não prestou atenção em nada.Chegou a esbarrar em um homem, que gritou com ela, e depois em umLada, estacionado na calçada. Tentava extrair um sentido dasinformações que encontrara nos arquivos. Finalmente, subindo a colinacalçada com pedras, que se elevava a partir do rio, passou pelas muralhasdo Kremlin e começou a dar voltas na Praça Vermelha.

Talvez a confissão de Bênia Golden fosse verdadeira, afinal de contas.Poderia Sashenka ter tido um caso, com o famoso escritor, no quarto403 do Hotel Metrópole? Mas seduzir a esposa de um tchekista, quedispunha de todos os recursos da polícia secreta — vigilância, grampos,prisão —, era perigoso demais. Vânia soubera do caso, de algum modo, ecolocara a bola em movimento, desencadeando a tempestade: umainvestigação pessoal, sem autorização oficial. Reportar-se apenas a mim,sem cópias. Palitsin.

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Ciúmes, pensou Katinka. Teriam sido todos aniquilados por causa deum homem que tinha medo de ser corneado? Morreram todos por causados ciúmes dele?

10

— Então Vânia Palitsin gravou sua mulher na cama com um escritor? —disse Maxi naquela noite, sentado na motocicleta, com suas roupas decouro, em frente à boate próxima à embaixada britânica. — Ele recebe osrelatórios: todos os uuhs e aahs das trepadas...

— ... Vânia se sentiu ultrajado — continuou Katinka — e ordenou aprisão de Bênia Golden...

— Não, não — disse Maxi. — Bênia Golden é um escritor famoso eSashenka era muito conhecida, a sobrinha de Mendel Barmakid, a“Consciência do Partido”. Se fosse só adultério, por que o próprio Vâniafoi preso?

— Bênia foi preso e denunciou sua amante, Sashenka, quedenunciou o marido?

— Não, Katinka, você não está entendendo. Eles não poderiam tersido presos sem a aprovação de Stalin. — Maxi acendeu um cigarro. —Além disso, as datas não batem. Você precisa entender que os arquivossão cheios de mentiras e distorções. Têm que ser lidos como hieróglifos.

Katinka suspirou. Estava ficando frio e a minissaia dela não impedia aentrada do vento.

— O que devo fazer agora?— Não fique chateada. Você trabalhou muito bem, melhor do que

eu achava que era possível. — Maxi olhou para o seu relógio do ExércitoVermelho. — Espere, ainda são nove da noite: por que você não telefonapara sua excelência, o marechal? Você precisa da ajuda dele paraconseguir o restante dos arquivos da KGB, as coisas que eles não lhemostraram. E agora que você sabe mais, pode perguntar mais.Precisamos dele para confirmar que a família Palitsin é a que deve serinvestigada.

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Resolvidos os assuntos de trabalho, ele ofereceu um cigarro a ela eacendeu um fósforo. Ambos protegeram a chama com as mãos. Quandosuas peles se tocaram, os olhos dele se estreitaram e ela sentiu que ele aolhava atentamente.

— Me diga uma coisa; você está gastando todo o dinheiro daqueleoligarca? Em roupas? Ou maquiagem? Não, você é muito sensata, muitoséria. Não está gastando nada. Você deveria aproveitar mais a vida! — Eleriu. — Você é bonita demais para uma historiadora, Katinka.

Ele se inclinou e afastou os cabelos que cobriam o rosto dela.— Não tão rápido — disse ela friamente, permitindo que ele a

beijasse no rosto. A barba por fazer de Maxi lhe queimou a pele.Dando um peteleco no cigarro, que foi cair no calçamento à beira do

Moskva, ele colocou o capacete, deu partida na moto e foi embora, emdireção à Ponte de Pedra.

Katinka o observou partir e, então, tocou o rosto onde ele a tinhabeijado, repetindo, em tom zombeteiro, o que ele dissera: Você é bonitademais para uma historiadora. Que tática ridícula, pensou ela. Você podeser meu professor, mas é meio posudo. Eu decido quem pode me beijare quem não pode.

Então, lenta, pensativamente, com as oito estrelas do Kremlinfaiscando acima dela, foi até um telefone público e discou um número.

— Estou ouvindo — respondeu um velho com sotaque georgiano.

— Eu não vou dançar desta vez — disse Hércules Satinov, com um sorrisogelado. Ele estava em sua cadeira na Granovski, cercado pelas fotos dafamília e embaixo do próprio retrato, de marechal condecorado. — Estoucada vez mais doente.

— Nada de fumar, pai! Ele estava se mostrando para uma garotabonita — disse Mariko, trazendo o chá. — Fique sabendo que ele teveque ir para a cama logo depois. — Ela parecia zangada, como se a culpafosse de Katinka. — Você não deveria ter vindo agora. É muito tarde. Émelhor você ir embora.

Mariko bateu com a bandeja na mesa e saiu da sala, lançando umolhar azedo para a visitante.

— Tudo bem, Mariko... — Mariko bateu a porta, embora rangidos no

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assoalho indicassem que ela nunca estava muito longe. — Bem — disseSatinov —, eu estou muito velho. — Quando Katinka sentou-se namesma cadeira que da vez anterior, e cruzou as pernas, Satinov lançou-lhe um olhar aprovador. — Parece que você estava dançando nas boates.Bem, por que não? Por que uma flor jovem e viçosa como vocêdesperdiça a juventude em velhos arquivos empoeirados e em desgraçasantigas? — Ele puxou seus cigarros novamente, acendendo um deles efechando os olhos.

— É o que eu faço melhor, marechal.— Você pode não ter tanto tempo quanto pensa para suas

pesquisas — disse ele —, ou está começando a gostar de mim? — Olhoudiretamente para ela. — Bem, menina, o que você encontrou?

Katinka respirou fundo.— Em 1956, o senhor visitou a Lubianka e examinou as pastas de

Sashenka e Vânia Palitsin. Eram velhos amigos seus, de antes daRevolução. Eles são o elo com o passado que o senhor queria que euencontrasse.

— Parece que você está mais apaixonada pelo assunto do que antes— observou ele.

— Estou. Essas pessoas — de alguma forma, elas me parecem tãoreais...

— Ah! Então a historiadora de Catarina, a Grande, está começando ase envolver com sua própria época. Conseguiu farejar as flores felizes e ascinzas tristes? Isso mostra que você é uma historiadora de verdade.

— Obrigada, marechal.— Me conte novamente — disse ele, inclinando-se para a frente. —

Seu sobrenome é Vinski. Por que você aceitou esse trabalho?— Fui recomendada pelo acadêmico Beliakov. Eu era a melhor aluna

dele.— Claro — disse Satinov, dando uma tragada no cigarro,

semicerrando os olhos. — Posso ver que você é uma garota inteligente,uma pessoa especial. Entre todas as centenas de alunos que ele tevedurante décadas de ensino, o acadêmico Beliakov escolheu justamentevocê... Pense nisso.

— Acho que ele queria me ajudar.

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Katinka sentiu-se perturbada. Tinha percebido que ele fazia dela umjoguete, como fizera com tantos outros seres inferiores, durante suavida. Aquele era outro Satinov, astuto e traiçoeiro. A frieza dele achocou, envenenando a afeição que ela tinha por ele.

— Marechal, o senhor poderia responder à minha pergunta: Sashenkae Vânia Palitsin são as pessoas que eu deveria encontrar, não são? O queaconteceu com elas?

Satinov abanou a cabeça, e Katinka notou que um músculo palpitavaem seu rosto.

— Não há nenhum registro do julgamento deles ou das penas quereceberam. Será que eles podem ter sobrevivido?

— Pouco provável, mas possível. No ano passado, uma mulherencontrou seu marido, que tinha sido preso em 1938... ele estavavivendo em Norilsk. — Ele deu um sorriso rápido e amargo. — Você estáem busca da pedra filosofal, que tantos têm procurado e que ninguémainda encontrou.

Katinka rilhou os dentes, mas recomeçou.— Eu realmente preciso da sua ajuda. Preciso examinar as pastas

deles — as que a KGB ainda não mostrou.Ele inalou a fumaça, ganhando tempo como sempre.— Está bem — disse ele —, vou telefonar para alguns velhos amigos

dos órgãos. São todos anciãos como eu, que estão em suas dachasesperando pela morte, pescando, jogando xadrez e xingando os novos-ricos. Mas vou fazer o que puder.

— Obrigada. — Ela se inclinou na cadeira. — As fichas diziam que osPalitsins tinham dois filhos. Volia e Karlmarx. O que aconteceu com eles?

— Não tenho a menor ideia. Talvez tenham desaparecido, comomuitas crianças daquele tempo.

— Mas como?— É seu trabalho descobrir — disse ele com frieza, ajeitando-se na

cadeira. — De onde você diz que veio? Do norte do Cáucaso, não foi?Katinka sentiu uma ponta de excitação. Ele mudara de assunto com

uma tática barata. Ela farejou a presa.— Só queria perguntar... você conheceu os Palitsins. Como eles

eram?

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Ele suspirou.— Eles eram bolcheviques dedicados.— Eu vi a fotografia dela na ficha. Era muito bonita e exótica...— Se você a visse uma vez, nunca se esqueceria dela — disse ele

baixinho.— Mas que olhos tristes ela tinha — disse Katinka.O rosto de Satinov endureceu, os ângulos de seu rosto persa ficaram

mais agudos, mais triangulares. Seus olhos se fecharam.— Ela não estava sozinha. Há milhões de fotos como essa. Milhões de

pessoas reprimidas como ela.Katinka percebeu que Satinov estava se fechando, então pressionou

novamente.— Marechal, sei que o senhor está cansado e eu já estou indo

embora... mas Roza Getman era filha deles?— Chega, menina! — Mariko, embrulhada em um xale negro, uma

espécie de mantilha espanhola, entrou na sala, colocando-se entreKatinka e Satinov. — Em primeiro lugar, você nem deveria ter vindo aqui.Que tipo de perguntas você está fazendo? Meu pai já está cansado.Você tem de ir embora.

Satinov recostou-se na cadeira, respirando com alguma dificuldade.— Vamos voltar a conversar — disse ele com voz arrastada. — Se

Deus quiser.— Desculpe, eu fiz muitas perguntas, fiquei muito tempo aqui...Ele não sorriu para ela novamente, mas estendeu a mão, olhando

para outro lado.— Agora estou cansado. — Havia um pedaço de papel em sua mão.

— Uma pessoa com quem você precisa falar. Não espere. Pode ser que jáseja tarde. Diga que eu mandei lembranças.

11

Dois dias mais tarde, Katinka foi acordada pelo telefone de plástico verde,em seu quarto minúsculo e bolorento, situado nas entranhas do cubo

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colossal do Hotel Moskva. Sua cama, a mesa de cabeceira, a luminária e aescrivaninha faziam parte de uma mesma peça de madeira. A colcha, ocarpete e as cortinas tinham uma tonalidade amarelo-enxofre. Ela estavasonhando com Sashenka: a mulher da foto estava falando com ela.

— Não desista! Persista com Satinov... — Mas por que Satinovcolocava tantos obstáculos? Será que se recusaria a recebê-lanovamente? Ainda estava meio adormecida quando segurou o telefone.

— Alô — disse ela. Esperava que fossem seus pais, ou talvez RozaGetman, que telefonava regularmente para se atualizar acerca de seusprogressos. “Alô, Katinka, achou alguma joia na poeira?” — era como Rozasempre iniciava seus telefonemas.

— Aqui é o coronel Lentin. — Katinka ficou surpresa: era o Sagui, dosarquivos da KGB. — Você quer examinar mais documentos?

— Sim — disse ela, com o coração disparando. — Isso seriamaravilhoso.

— Maravilhoso? Maravilhoso mesmo. Você é uma grande entusiasta.Venha se encontrar conosco às duas da tarde no Café-Bar Piano, que ficanas Lagoas do Patriarcado.

Katinka calçou as botas e vestiu a minissaia de brim, enfeitada comlantejoulas. Estava ganhando dinheiro pela primeira vez na vida, mas aindanão o sentia como seu. Usava-o para pagar o quarto, a alimentação e otransporte, nada mais. Estava fazendo aquilo apenas por Roza, dizia a simesma, para que, assim como Katinka, Roza tivesse uma família.

Ela desceu no elevador até o saguão de mármore cinza, dirigindo-se aum salão, onde subiu alguns degraus, dobrou à esquerda em um corredore, finalmente, abriu uma cortina, que revelou um pequeno cubículo comtrês mesas e uma cozinha minúscula, onde estava uma velha de aventalazul. Um cheiro tentador de banha e a música de ovos fritando lhe deramas boas-vindas. Um jovem jornalista inglês e um velho armênio estavamem suas mesas habituais, bebericando cafés expressos.

— ‘Dia, senorita — disse a velha em mau russo. Seu rosto moreno,dotado de um grande maxilar, era profundamente enrugado. — Omeleteespanhola?

— O de sempre — disse Katinka. A cozinheira era uma velhaespanhola que, segundo ela, cozinhava naquele cubículo desde a Guerra

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Civil Espanhola.— A melhor cozinheira de Moscou! — murmurou o armênio, beijando

as próprias mãos e soprando os beijos na direção da velha.Uma hora mais tarde, Katinka caminhava lentamente pela Tverskaia

— o novo nome da rua Gorki —, onde dobrou à esquerda, passando sobuma arcada que conduzia às Lagoas do Patriarcado, um parque quadrado,com dois lagos cercados por árvores. Bulgakov, sabia ela, vivera ali perto,enquanto escrevia O Mestre e Margarida. Ela comprou um sorvete nocafé ao ar livre e sentou-se, olhando os casais, as crianças que passeavame os velhos que a observavam observá-los. Por que o Sagui quiseraencontrá-la ali e não na Lubianka? Estaria trazendo documentos? Não,isso era impossível. Então por quê? Ela não confiava naquelas pessoas.

Às duas horas, saiu da praça e olhou para o final da rua. Lá estava,um cartaz em preto e branco: BAR-CAFÉ PIANO. Entrou noestabelecimento. Rod Stewart estava cantando “Do Ya Think I’m Sexy”em um aparelho de som. O pequeno café estava quase vazio. Atrás dobalcão, um homem de cabelos grisalhos, magro como um esqueleto,fumava um cigarro enquanto servia três doses de vodca. Dois homensestavam sentados a uma mesa de metal cromado. Um deles era o Sagui,o coronel Lentin, usando paletó esporte e uma gravata estampada.Quando a viu, levantou-se e estendeu-lhe a mão.

— Venha sentar aqui, menina. — Conduziu-a até uma cadeira. —Deixe que lhe apresente o meu camarada aqui, Oleg SergeievitchTrofimski.

— Encantado, Katinka, encantado. Sim, sente-se! — A cabeça deTrofimski, larga e mal conformada, uma bala disparada por um canhãomedieval; sua barba bifurcada lhe dava ares de um velho mágico. Obarman trouxe as vodcas, batendo com os copos na mesa.

— Não, não — protestou o Mágico rudemente. — Dima, traga o seuuísque escocês mais velho. Essa jovem é muito culta para beber umasimples vodca russa.

O barman deu de ombros e retornou ao bar.— Dima é um camarada nosso, aposentado — explicou o Mágico —,

então nós — como diremos — patrocinamos o estabelecimento dele. Eleconhece as minhas preferências, não é, Dima?

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O barman revirou os olhos e trouxe o líquido ambarino.O Mágico voltou-se de novo para Katinka.— Agora beba com cuidado. Isso tem cinquenta anos, foi

envelhecido em tonéis de carvalho nas ilhas escocesas. O nome?Laphroaig. Prove: está vendo? Você pode sentir o gosto da turfa; é osolo de lá. Quando eu estava na embaixada em Londres — meu trabalhoera, digamos, clandestino — fiz uma excursão pelas ilhas escocesas. Osmembros da família real britânica só tomam isso quando estão caçando naEscócia. Vá, beba!

Katinka bebeu, mas só um golinho.— Você é historiadora, não é? — perguntou o Mágico, alisando sua

barba bifurcada.— Sim, minha especialidade é o século XVIII.— Eu também estudei história e conheço intimamente o Livro de

Veludo, os Romanovs, os Saxe-Coburgos, e até as linhas colaterais —disse ele. — É um passatempo, digamos assim. Mas agora que lhe ensineialguma coisa sobre a vida civilizada, deixe-me ir direto ao ponto. Vocêestá pesquisando alguma coisa muito diferente? O período do Culto àPersonalidade?

— Sim, uma família — respondeu Katinka, cautelosamente.— Eu sei, eu sei, o coronel Lentin me contou. E você não ficou

satisfeita com os documentos que lhe mostraram?— Eu gostaria de ver outros — disse ela.— Bem, você pode, isso é totalmente possível. Você vai vê-los.— Obrigada — disse Katinka, surpresa. — Quando?O Mágico sacudiu um dedo na direção dela.— Nós estamos nos adaptando à nova era, não estamos, coronel

Lentin? Nós estamos participando dela! Mas ainda somos patriotas. Nãoqueremos ser americanos. Não cometa nenhum erro, menina, os ÓrgãosCompetentes são a consciência deste país. Nós vamos fazer com que elefique forte de novo!

— Mas e os documentos? Quando eu poderei ver os documentos?— Você é jovem, tem pressa. Amanhã mesmo?— Sim, por favor — disse ela, sentindo-se tão ansiosa quanto

desconfortável.

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— Podemos arranjar isso para amanhã, coronel? — perguntou oMágico.

— Três dias, talvez — disse o Sagui, evidentemente o sóciominoritário naquela firma. — Talvez uma semana.

— Então é isso — disse o Mágico. — E não vai ficar muito caro.— Caro? — perguntou Katinka. — Mas...— Aaah, olhe para ela! — bradou o Mágico, de forma teatral. — Olhe

esse lindo rosto preocupado! Ah, ah. Posso ver que você é nova emMoscou, só uma gatinha na cidade grande. Sim, tudo tem seu preço. Ocoronel e eu estamos adotando a nova mentalidade! Mais uísque, Dima.Vamos beber a isso!

12

No dia seguinte, pouco após o meio-dia, Katinka atravessou os grandessalões e os vestíbulos das novas lojas instaladas nas arcadas da Gum, naPraça Vermelha. Tinha um encontro marcado no Restaurante Bosko,onde garotas esguias e bronzeadas, exibindo longas pernas enfiadas embotas e brilhantes correntes Versace, estavam sentadas ao lado dehomens gordos, vestidos com ternos italianos. Os aromas de café moídoe pele perfumada dominavam o ar. O lugar era tão chique que Katinkasentiu-se como se estivesse em Veneza ou Nova York, embora só tivessevisitado Londres.

Que lugar!, pensou ela, sem perceber que o maître, um tártaroitalianizado, com o perfil de um pombo, olhava de testa franzida para suasbotas brancas e saia bordada com lantejoulas.

— Olha só! — exclamou ela de repente. — Que vista!Então suspirou, com o prazer sensual de uma garota provinciana ante

o panorama que o Bosko oferecia da Praça Vermelha e sua vastidão depedras reluzentes. Dali de cima, os vistosos cones de sorvete da Catedralde São Basílio pareciam mais tártaros que russos. Bem abaixo das muralhasdo Kremlin, erguia-se o mausoléu de granito avermelhado —estranhamente não-eslávico — onde descansava o mumificado Lenin. Um

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pouco adiante, quase oculto pelo muro do Kremlin, estava o pequenobusto de Stalin, em mármore verde, rudemente removido do lugar queantes ocupava no mausoléu. O russianismo do Kremlin, com suas igrejasortodoxas, seus palácios tsaristas em verde e ocre, e até suas estrelasvermelhas, encheu Katinka de orgulho eslavo.

Ela conseguia avistar o domo do prédio do Conselho de Ministros,onde Lenin e Stalin haviam trabalhado. Lá também ficava o gabinete deIeltsin, o atual presidente. Sashenka conhecera Lenin e Stalin, nosprimeiros anos do poder soviético, pensou Katinka — e sua obsessão adeixou abalada: ela estava se relacionando com uma mulher que conheciaapenas por uma foto e um arquivo.

— Posso ajudá-la, mademoiselle? — disse o maître tártaro. — Umamesa com vista?

— Ela está comigo — disse uma voz atrás dela. Era Pacha Getman,que parecia pouco à vontade com seu enorme tamanho. Movia-sedesajeitadamente e nenhuma de suas roupas se ajustava a ele, emboraparecessem caras. As calças eram largas demais e a camisa, aberta nocolarinho, estava abotoada de forma errada. Mesmo assim, ele exalavaautoconfiança cosmopolita, orgulho odessense e a penetrante fumaça deseu charuto descomunal.

Katinka falara com Roza, após seu encontro com o Mágico e com oSagui, e Roza lhe pedira que falasse com Pacha, que concordara em seencontrar com ela imediatamente.

Ela não tinha certeza se ele iria abraçá-la. Ambos se inclinaram umpara o outro, mas, no último momento, ele recuou e lhe estendeu amão. Katinka ficou ruborizada, mas foi socorrida pelo maître.

— Bem-vindo, Gospodin Getman! Sua mesa habitual, na saleta?Senhor e mademoiselle, por favor, me sigam!

Três corpulentos guarda-costas de Getman, com tatuagensaparecendo por baixo dos colarinhos, estavam sentados a uma mesapróxima. Katinka seguiu Pacha, percebendo que ele caminhava como umurso malabarista — com suas mãos, enormes como patas, prontas paraagarrar as bolas.

— Eu não tenho muito tempo — disse Pacha, depois que sesentaram.

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— Eu não sabia que o senhor estava aqui. Pensei que estivesse emLondres.

— Água? — Pacha estendeu a mão para pegar a garrafa e derramouo líquido. Os garçons correram para fazer a limpeza, mas ele não pareceuse importar. — Voltei para cá. Vai haver uma eleição brevemente. Opresidente precisa da nossa ajuda — temos que manter fora oscomunistas. Mamãe está vindo de Londres. Você sabe que esta é aúltima chance de descobrir quem realmente ela é. Imagine não saberisso, Katinka! Eu conheci os meus pais muito bem, intimamente, mas elasempre teve essa sensação de perda queimando dentro dela. Você sabequem são seus pais?

— Claro.— Teve uma infância feliz?Ela assentiu, incapaz de esconder sua satisfação com o pensamento.— Meu pai é médico. Eles realmente me amam, nós vivemos com

meus avós, na velha casa deles.— Nós temos muita sorte, você e eu. Bem, sei que você esteve

conversando com mamãe — Katinka achou divertido o fato de queaquele bilionário do tamanho de um urso ainda chamasse a mãe de“mamãe” —, mas eu gostaria que você me contasse o que descobriu atéagora.

Enquanto Katinka explicava, o telefone celular de Pacha não paroude tocar. Em uma das vezes, os guarda-costas atenderam à ligação e lhepassaram um recado. Uma garota ruiva, com uma minissaia de couro,cinturão e botas Chanel, acenou para ele. Diversos homens de negóciosvieram apertar as mãos dele. Em meio às interrupções, ela conseguiu lhecontar a história. Enquanto falava, Pacha se inclinava para a frente e aescutava, mascando o charuto, com seus olhos negros e penetrantesfixados nos dela.

— Então Satinov sabe de alguma coisa, mas é muito velho emisterioso. Isso é típico daquela geração, o segredo é mania para eles.Você está indo bem.

Katinka corou de satisfação.— Mas os documentos estavam incompletos. Eu me encontrei com

os homens da KGB para conversar sobre os que estavam faltando, fiquei

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até sem jeito — claro que disse a eles que isso não era possível —, maseles pediram...

— Pediram o quê?— Dinheiro! É uma vergonha!— Quanto? — perguntou Pacha.— Eu disse a eles que era ridículo.— Olhe — disse Pacha —, eu não quero parecer... Eu sou mais velho

do que você, então... Peço desculpas por ter perdido o controle emLondres. Mamãe me deu uma bronca. Mas você é muito ingênua. Euconheço um monte de garotas interesseiras. Eu entendo que você nãoseja assim. Mamãe me disse também que você não está fazendo isso pordinheiro — que você, realmente, quer nos ajudar. Então, espero quevocê continue trabalhando nisso, dia e noite. Quanto eles pediram?

— Mas nós não devemos pagar nada para eles — retrucou Katinka. —Não para os órgãos! Eles não são pessoas decentes.

— Só me diga quanto eles pediram.— Eles mencionaram... foi tanto que é um crime, e eles são

mafiosos... — ela suspirou. — Quinze mil dólares. Um pecado! O que estáacontecendo com os russos hoje em dia?

Pacha deu de ombros, abrindo e fechando as manoplas.— Bem, esse é o meu presente para mamãe. A verdade é cara, mas

acho que a família não tem preço. Se entender isso, entendeu tudo. Euvou pagar.

— Não.— Pare de me dizer o que devo fazer! — rugiu ele, e agarrou a

toalha de mesa, quase derrubando todos os copos no chão. — É o meudinheiro e precisamos dessas informações.

— Está bem... — disse Katinka, por fim. — E há mais uma coisa.Satinov me deu isso e disse para eu me encontrar com essa pessoa. Semdemora.

Ela lhe entregou um pedaço de papel.— Mas é um número de Tbilisi. Na Geórgia.— Sim.— Bem, o que você está esperando? Deve ir imediatamente,

Katinka.

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— Agora?— Claro, pegue o seu passaporte e a mala, no hotel. Quando voltar,

vou lhe dar o dinheiro para você se encontrar com seus escroques daKGB. — Ele discou um número em seu celular. — Sou eu. Reserve umvôo para Tbilisi esta tarde. Quatro horas? Ótimo. Ekaterina Vinski.Coloque-a no Metechi Palace Hotel. Tchau. — Então gritou para a mesavizinha. — Ei, Tigre! — Um dos guarda-costas veio até a mesa,caminhando pesadamente. — Leve Katinka ao hotel dela e depois aoCheremetievo. Agora.

13

Já estava escuro em Tbilisi — antigamente conhecida como Tíflis —quando Katinka desceu no aeroporto, um bazar de taxistas, pistoleiros,negociantes, soldados e assaltantes. Mas havia um motorista esperandopor ela, com um cartaz onde estava escrito Vinski — e um Volga que,aparentemente, só poderia ser ligado com dois fios e uma prece.Enquanto se dirigiam ao centro, tiros ricocheteavam por aquela cidademal iluminada, capital de um país pequeno e selvagem em meio a umaguerra civil. O Metechi Palace Hotel, prédio moderno e feio, comelevadores de vidro e um grande saguão com galerias metálicas, que seelevavam até uma gigantesca claraboia, era patrulhado por pistoleiros decoldres reluzentes, que empunhavam sovados kalachnikovs.

Depois de deixar a bagagem no hotel, Katinka tomou um táxi para ocentro; durante o trajeto, teve que passar por várias barreiras, operadaspor milicianos em uniformes heterogêneos, que defendiam algum dosdiversos exércitos privados. Os policiais pareciam maltrapilhos edesorientados em sua própria cidade. Os prédios eram bastantedecrépitos e as ruas refletiam o sonho levantino de uma Paris que nuncase concretizou.

Katinka jamais estivera na Geórgia — sua família passava as férias emSochi, no mar Negro —, mas, é claro, ouvira muitas coisas a respeito dopaís: a cesta de frutas, o barril de vinho, a capital dos playboys, a joia da

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coroa, o jardim de delícias do Império Soviético, que produzia saborosasuvas e hortaliças, a água mineral Borjomi, em suas famosas garrafasverdes, os rústicos vinhos tintos, os privilegiados e corruptos chefescomunistas, que viviam como sultões, os intelectuais altercadores e osespalhafatosos casanovas. Mas a Geórgia possuía também seu ladoescuro. Produzira Stalin e Beria — além de outros comunistas famososcom nomes impronunciáveis e levemente ridículos: Sergo Ordjonikidze,Abel Ienukidze e o marechal Hércules Satinov.

O táxi a levou direto ao centro, passando pela praça da Liberdade(praça Ierevan, nos tempos do tsar, depois praça Beria, depois praçaLenin), até a larga e vistosa avenida Rustaveli (Golovinski, durante aépoca do tsar), com seus teatros e palácios. O motorista não conhecia ocaminho para a casa que ela procurava: aos berros, fazia perguntas aospassantes. Indiferente ao tráfego barulhento, virou o carro na direçãocontrária, mostrando a ela as ruínas incendiadas do Hotel Tbilisi, que jáfora o maior e mais luxuoso ao sul de Moscou. Finalmente, pararam emuma colina íngreme, calçada por pedras, defronte a uma igreja de torreredonda, em estilo georgiano ortodoxo. O motorista apontou para umaruela escura.

— Lá!Katinka pagou a corrida em dólares e penetrou cuidadosamente na

escuridão. Atrás de muros altos, mansões com sacadas cobertas de flores,iluminadas por trêmulos lampiões, eram abraçadas por longas vinhas.Ouviam-se risos. Um homem barbudo, com aqueles cabelos brancos egrossos que os georgianos parecem nunca perder, ergueu um lampião àsua frente.

— Para onde você vai? Está perdida?Ela percebeu que ele carregava uma espingarda, mas não sentiu

medo.— Café Biblioteka — disse ela.— Venha! — Ele falava um péssimo russo, mas, segurando o braço

dela, levou-a por uma rua de pedras até uma casa quase totalmentecoberta por vinhas. Abriu então uma porta dupla de madeira, que davaacesso a um decrépito salão de mármore, onde uma vela acesa recendiaa festas georgianas. À direita, havia uma grande porta desconjuntada,

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que ele abriu, tagarelando em georgiano. A espingarda que estava emseus ombros deslizou para um ângulo alarmante.

— Venha! Aqui é o Café Biblioteka!Com um suspiro de deslumbramento, Katinka entrou no café,

iluminado por velas oscilantes, ornadas com asas de cera. Ela achou ocheiro delicioso: tkemali, gengibre, maçãs e amêndoas. Era uma velhabiblioteca. As estantes antigas erguiam-se em meio às mesas e atrás dobar. Mapas, bandeiras dos Guardas Tsaristas, das brigadas georgianas edos trabalhadores bolcheviques, desenhos, nobres e obscenos, pinturas,ícones, peças de uniformes georgianos, espadas e adagas, bustos deMozart, da rainha Tamara, de Stalin e de senadores romanos cobriam asparedes. Algumas das prateleiras haviam apodrecido e desabado,espalhando pelo chão seus inestimáveis volumes, que lá permaneciam,com suas páginas de pergaminho amarelado abertas como leques.

Nas mesas pequenas, um velho solitário, de chapéu preto, lia à meia-luz; um grupo de mochileiros americanos, com botinas amarelas e grandesbermudas, carteiras guardadas em grandes cintos (apregoando suasriquezas ocidentais para qualquer bandido por perto), brindavam entre sicom vinho georgiano; e dois georgianos de cabelos grisalhos discutiam emvoz alta a polít ica doméstica.

— Chevarnadze é um traidor, um espião, KGB! — gritou um deles.— Zviad é um lunático, um espião, KGB! — retrucou o outro.— Você quer uma mesa? Vinho? Jantar? — perguntou um georgiano

alto e magro, com uma boina azul na cabeça e um casaco chokka bemjusto, com bolsos para balas, e uma adaga incrustada de joias na cintura.Ele fez uma mesura. — Meu nome é Nugzar. Quem é você? Você pareceestar perdida.

— Você conhece Audrey Zeitlin? Eu quero falar com ela.— A velha senhora inglesa? Ela é o nosso ícone, nosso talismã! Nós a

alimentamos todos os dias. Ela trabalhou aqui por muito tempo, ensinouinglês para nós e para nossos filhos! É lá em cima, venha!

Katinka seguiu Nugzar até o primeiro andar, passando por umcorredor onde as vinhas haviam aberto caminho através da parede e seunido a outras ramagens que entravam pela janela — que já não poderiaser fechada. Ele bateu em uma porta no final do corredor.

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— Anuko! — gritou ele.Esses georgianos, pensou Katinka, com seus diminutivos engraçados!— Uma visita, Anuko!Nenhuma resposta.Esforçando-se para enxergar na obscuridade, Nugzar abriu a porta.

14

— Eu sempre esperei que você viesse — disse Lala, na voz abafada dosvelhos.

Usava um casaco caseiro sobre uma camisola e tinha cabelos brancose longos. Pouco restava dela, apenas um saco de ossos, unidos por umapele branca, tão delicada que se podia enxergar através dela. Mas foramseus olhos, que pareciam enormes em sua brilhante opalescência, queatraíram Katinka, pois mantinham acesa a chama de uma vontadeaudaciosa e exuberante, que desafiava a energia dos jovens.

— Estou esperando há cinquenta anos. Por que você demoroutanto?

— Olá — disse Katinka hesitante, temerosa de que estivesse no lugarerrado, mas surpresa com o fato de que a anciã parecia saber quem elaera. — O marechal Satinov me enviou para falar com a senhora.

— Ah, Satinov. Ele foi nosso herói, nosso anjo da guarda. Está velhoagora, é claro. Mas não tão velho quanto eu. Sente-se, sente-se.

Katinka sentou-se na cadeira confortável que estava a um canto doquartinho. Uma única vela, ao lado do leito, iluminava o aposento, ondehavia muitos livros velhos e um modelo em prata de uma torre depetróleo. Nas paredes, estavam penduradas fotos em tom sépia — denobres, com colarinhos engomados e chapéus-coco; e de uma altivacolegial usando avental branco.

— Aqui, menina, ajeite meu travesseiro atrás de mim e me traga umcopo de vinho. Peça para o Nugzar, lá embaixo. Então poderemosconversar. A noite toda. Gente velha, como eu, não dorme muito. Quemquer estar vivo com a minha idade? É uma desgraça. Todos os meus

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amigos estão mortos e isso não é divertido! Meu marido já morreu háquarenta anos. Mas acho que eu estava esperando. Esperando por você,querida criança. E agora você está aqui, enviada pelo marechal Satinov.Ele quer que você encontre meus filhos perdidos, não é? Você estátomando notas, querida?

Sentindo-se como se tivesse entrado em um sonho, Katinkaremexeu na bolsa, procurando o caderno de anotações e a caneta.

— Vou lhe falar sobre Sashenka, Branquinha e Carlo.— Espere, eu conheço Sashenka, mas quem é Branquinha e...— Você não sabe nada, menina? Branquinha e Carlo eram os filhos de

Sashenka. Seus verdadeiros nomes eram Volia e Karlmarx. Vou lhe contara história deles, mas primeiro abra a janela, pode ser?

Katinka ficou feliz em deixar entrar o ar aromático. O jardim desonhos, no lado de fora, estava radiante. O perfume de violetas, rosas ed o tkemali — com sua sugestão de maçãs e amêndoas — penetroulentamente no quarto abafado, em ondas que atravessavam as ripas dasantiquadas persianas. Dos caldeirões da cozinha abaixo, onde fervia ochakapuli, evolavam-se poderosos aromas de gengibre e noz-moscada.

E foi assim, enquanto bebia vinho e comia fatias de khachapuri,trazidas pelo guerreiro georgiano que atendia no café, que Katinka viajoude volta no tempo, até uma época inimaginável na avenida Marítima, emSão Petersburgo, onde um rico banqueiro judeu e sua frívola esposacriaram uma filha chamada Sashenka, com o auxílio de uma jovem babáinglesa, cujos pais dirigiam o pub Viva e Deixe Viver, em um vilarejochamado Pegsdon, não muito longe da cidade-mercado de Hitchin,Hertfordshire. “Lala” Lewis, como Sashenka a chamava, “e você tambémpode me chamar assim, Katinka”, parecia saber tudo sobre a famíliaZeitlin. Ela descreveu a menina séria e desajeitada, maltratada edesprezada pela mãe, amada de forma distante pelo pai, acalentada peladevoção da babá.

Que quadro Lala Lewis pintou daqueles tempos! Carros com para-brisas divididos, faróis cromados e estofamentos em couro e teca;carruagens e trenós conduzidos por homens de cartola e casacos de pelede carneiro; milionários, condes, revolucionários, tios, choferes, colapsosnervosos e suicídios.

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— Eu me apaixonei pelo barão Zeitlin bem aqui em Tbilisi, nestamesma casa — que pertenceu a ele há muito, muito tempo — disse Lala,acrescentando que, depois, ele a pedira em casamento num kabinet doDonan, um requintado restaurante de São Petersburgo.

“Samuil perdeu tudo em 1917, mas reconstruiu sua carreira a serviçodos soviéticos. Então perdeu tudo de novo, em 1929, e voltamos paracá. Pensamos que aqui seria mais seguro. Sentimos que não tínhamosmuito tempo, então não desperdiçamos nem um momento. Nós nosamávamos tanto. Todos os dias eram como uma lua de mel, cada beijoera um prêmio, um presente. Sashenka e Vânia — como todo mundochamava o marido dela — eram chefes em Moscou. Eles conheciam todomundo, até Stalin — Sashenka era editora de uma revista e Vânia eraagente secreto. Provavelmente era um tremendo açougueiro, emboraparecesse um sujeito alegre. Nós tínhamos vontade de vê-los — o meuamor por Sashenka era tão grande quanto o de Samuil. Foi nosso amorpor Sashenka que nos juntou pela primeira vez. Quando o NKVD levouSamuil, eu sabia que ele caíra em desgraça; fiquei esperando que melevassem também. Continuei trabalhando no café; ensinava inglês;cuidava de crianças. Eu me tornei a melhor professora de inglês dacidade. Ensinei aos filhos dos chefes e ainda ensino um pouco, até hoje!Mas estou me adiantando. Quando eles levaram Samuil, eu chorei por ele.As cartas e o dinheiro que mandei para ele foram devolvidos: isso queriadizer que ele estava morto. Então eles levaram Sashenka e Vâniatambém. Eu me desesperei. Imagine o meu assombro quando ele voltou.Ah, como a morte era imprevisível naqueles tempos!”

— Como Samuil enfrentou o desaparecimento de Sashenka?— Quando Samuil estava entrando e saindo do coma, em seu leito

de morte, ele disse: “Sashenka, querida, minha lisitchka, minha raposinha,você pode me dar um beijo antes de eu morrer?” Ele tinha certeza deque Sashenka voltaria. Então, eu prometi a ele que iria esperar por ela.

— Você está cansada, Lala? — perguntou Katinka, preocupada como vigor de Lala, mas ansiosa para ouvir suas histórias. — Você quer dormirum pouco?

Ela notou que lágrimas corriam pelo rosto da velha senhora.— Estou cansada, mas esperei muito tempo para contar isso. Veja

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bem, quando Samuil estava nos campos de trabalhos forçados, ocamarada Satinov me chamou ao Palácio do Vice-Rei e me fez umaproposta que não pude recusar. Me escute, Katinka, eu só tenho forçaspara contar isso uma vez.

— Vou escutar, prometo!

— Hércules Satinov era um herói. Ele tinha uma esposa jovem, um bebêe todos os privilégios da posição dele. Ele poderia ter sido fuzilado porajudar os filhos de Sashenka, mas arranjou tudo. Quando todos os outroseram lacaios, covardes e assassinos, só ele teve a coragem de serdecente. Se você escrever essa história, escreva isso!

— Vou escrever — disse Katinka, lembrando-se do velho e astutomarechal, e de sua expressão de dor quando ela lhe perguntara sobreSashenka e seus filhos.

— No Palácio do Vice-Rei — que na época era o quartel-general doscomunistas — Satinov me contou que uma coisa terrível tinha acontecidocom Sashenka e Vânia, e que eu precisava cuidar dos filhos deles. Ele medisse para ir até a estação de Rostov, onde eu encontrei as crianças eCarolina, a babá delas, na cantina. Elas estavam exaustas, imundas e comfome, mas eu me apaixonei por elas na mesma hora. Era como se elastivessem sido criadas por mim, porque Sashenka tinha cuidado delas comoeu tinha cuidado de Sashenka. Branquinha me lembrava tanto Sashenkaque eu dei um beijo nela assim que a vi, e ela se derreteu em meusbraços! Carlo era adorável, arrojado e brincalhão, era parecido com o paidele, mas tinha os olhos e o sorriso de Samuil, e até a covinha dele. Elasconfiaram em mim na mesma hora, quem sabe por quê — talvez tivessemsentido que eu tinha uma ligação com a mamãe delas. Ah, foi muitocomovente! Primeiro, elas foram separadas do pai, depois da mãe, depoisde Carolina: ela também era como uma mãe para elas. Eu saí do hotel emRostov quando ela ainda estava dormindo — ainda me sinto culpada porisso —, mas espero que ela entenda o que eu fiz, porque ela tambémarriscou a vida por aquelas crianças.

— O que aconteceu com ela? — perguntou Katinka, mas a velhasenhora não interrompeu a narrativa, com medo de perder um grama deenergia em qualquer coisa que não fosse estritamente necessária.

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Katinka compreendeu, de repente, que Lala Lewis estava lhecontando a história que Satinov, talvez, não tivesse coragem para contar.

Lala bebericou o vinho tinto, derramando um pouco na camisola.Com a mão trêmula, tentou limpá-la, mas não alcançou a mancha edesistiu.

— Eu implorei a Satinov que me deixasse ficar com as crianças, masele me disse que eu poderia ser presa, e daí? Eu sabia que só ficaria comelas por pouquíssimo tempo, que precisava aproveitar o máximo possível.Os cinco dias e noites que passamos juntos foram muito curtos para mim.Eu tinha perdido Samuil, mas estava com as crianças. Satinov tinha medado dinheiro suficiente para alimentar bem as crianças e nós tínhamospapéis, então podíamos andar livremente. Eu estava com a família. Ascrianças me perguntavam: “Onde está a mamãe? Quando a mamãe vaivoltar?” Satinov tinha me dito para eu responder que os pais delas tinhammorrido em um acidente. Foi um momento terrível. Elas se agarraramcomigo mais do que nunca, comigo e com aquela almofada absurda, quevirou mãe e pai da querida Branquinha, e com aquele coelhinho rosa queCarlo beijava de noite. Eu queria beijar, abraçar, mimar, consolar e trataraquelas crianças. Eu queria cobri-las de amor. Mas não podia deixar queelas se apegassem muito a mim, porque eu sabia que também teria quedesaparecer, brevemente. Elas dormiram na minha cama, sim, nestamesma cama, e eu adorei aquelas noites com elas, cada segundo.Enquanto eu me deitava entre elas, sentindo aquele hálito doce e osbracinhos macios em cima de mim, eu chorava por elas e por Sashenka.Mas eu não podia me mexer, nem fazer nenhum som, então as lágrimasescorriam em silêncio. Como se fosse um rio subterrâneo. De manhã, otravesseiro estava ensopado. Um dia, de manhã, Branquinha me deu umbeijo.

“— Nós podemos ir para casa, Lala? Onde está a mamãe agora? —perguntou ela.

“— Acho que está olhando para você.“— Como as estrelas no céu?“— Isso mesmo. Ela sempre vai olhar para você, querida!“— Por que ela foi embora e deixou a gente?“— Ela não queria ir, querida. Eu sei que ela amava você e Carlo mais

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do que qualquer coisa no mundo. De noite, onde você estiver, acho queela vai beijar sua testa, assim, e você não vai acordar. Mas, de manhã,você vai sentir um ventinho leve em cima de você e você vai saber queela esteve ali.

“— E o papai?“— O papai vai beijar você também, no outro lado da sua testa.“— Você vai ser que nem nossa mamãe para a gente?”— Ah, Katinka, querida criança, você pode imaginar uma conversa

dessas? Eu tive que levar os dois para o Orfanato Lavrenti Beria, fora dacidade. Um lugar infernal. Até uma visita foi uma experiência ruim. Mas láos papéis delas receberam selos, que autorizavam que elas fossemadotadas. Satinov tinha arranjado tudo minuciosamente, assim elas nãoforam registradas como filhos de Inimigos do Povo, mas como órfãoscomuns. Como ele fez isso, não sei. Eu estava com medo da hora em queteria que me separar das crianças. Eu amava Branquinha e Carlo. Eu aindaconsigo sentir o cheiro da pele delas, querida criança, ainda olho nosolhos e ouço as vozes delas. Eu tive que me separar delas, mas o pior detudo é que tive que separar irmão e irmã. Eles nunca mais se veriam. Eraum golpe depois do outro!

Lágrimas escorreram por seu rosto vincado. Katinka estava tãocomovida que também se desfez em lágrimas. Sem uma palavra, sentou-se no leito. Ficaram ambas abraçadas. Finalmente, Lala bebeu um poucode vinho, comeu um pedaço de khatchapuri e pigarreou.

— Você se sente forte para continuar? — perguntou Katinka.— Sim. E você? — disse a velha senhora, limpando os olhos. — Não

estou mal para minha idade, estou?— Quem eram as famílias que ficaram com as crianças? Você se

lembra?— Eu nunca soube os nomes das famílias. Satinov tomou cuidado

para isso não acontecer. Só ele sabia. Mas eu me lembro do dia em queme encontrei com eles como se fosse hoje. Ah, foi uma agonia! Carloestava brincando com trens em um quarto do orfanato. Branquinhaestava inventando um jantar de travesseiros e almofadas. Então asfamílias chegaram. Acho que eram boas pessoas, mas não eram comoSashenka ou eu — não eram carinhosos. O casal judeu — eles não

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disseram, mas eram de Odessa ou de Nikolaev, de algum lugar no marNegro, eram muito gentis, eu acho, mas muito inadequados para cuidarde crianças —, ele já era um homem de meia-idade, com uma cabeleiradespenteada, uma espécie de intelectual, e ela era uma literata. Eu dissea eles que a mãe de Branquinha também era judia, então eles tinhamalguma afinidade, de certo modo. Expliquei tudo sobre os brinquedos ejogos favoritos de Branquinha e, naquele jeito formal deles, elescomeçaram a se entender com ela. Isso me deixou tranquila. Então deixeiBranquinha com eles, esperando que fossem se conhecendo uns aosoutros. Mas não. Branquinha corria de volta para mim. “Onde está Lala?”,gritava ela. “Lala, você não vai deixar a gente, vai, Lala? Onde está Carlo,eu quero ficar com Carlo! Carlo!”

“Quando eles levaram ela embora, Branquinha soltou um uivo: ‘Lala,você prometeu, Lala, me ajude, Lala!’ Ela queria ficar comigo, queria ficarcom o irmão. As enfermeiras e os guardas tiveram que forçá-la a entrarno carro. Ela estava chutando e gritando ‘Lala, você prometeu!’. No final,os novos pais dela entraram no carro e foram embora. Eu caí no chão euivei também, como um animal, na frente de todo mundo, naqueleorfanato...”

Katinka sentia-se exausta e, no entanto, a despeito da tragédia,também empolgada.

— O casal de Odessa deve ter sido os Liberharts — disse ela. — Rozaé Branquinha.

Mas Lala continuou a falar, como se não tivesse escutado.— Foi a mesma coisa com Carlo e os camponeses.— Camponeses? — perguntou Katinka, tomando notas.— O casal que levou Carlo. Depois que Branquinha se foi, ele

começou a chorar. “Onde está Branquinha? Eu quero fazer carinho naBranquinha! Lala, você não vai me deixar, não é, Lala?” Eu não sei comoconsegui ficar viva naquele dia. Ele também lutou, quando foi levado poreles. Até hoje, posso ouvir a voz dele... De certa forma, foi mais fácil paraele, ele tinha apenas 3 anos. Eu rezei para que ele nunca mais selembrasse de Sashenka e de Vânia, e talvez isso tenha acontecido. Elesiam dar um novo nome para ele. Dizem que 3 anos é a fronteira entre oque você se lembra e o que você esquece.

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Katinka segurou as mãos de Lala nas suas.— Tenho notícias maravilhosas para você.— O quê? É Sashenka? — Ela perscrutou a escuridão além da porta.

— Sashenka está aqui? Eu sabia que ela viria.— Não, Lala. Nós não sabemos onde Sashenka está.— Eu sonho tanto com ela, sabia? Tenho certeza de que ela está

viva, porque nós todos pensávamos que Samuil estava morto e ele voltoudo mundo dos mortos. Encontre ela, Katinka. Traga ela para mim.

— Vou fazer o melhor que puder, mas o que eu quero lhe dizer éoutra coisa. Eu encontrei a sua Branquinha. A família adotiva dela sechama Liberhart e eles deram a ela o nome de Roza. Vou telefonar paraela hoje à noite e vou trazê-la até você. Então você mesma vai poder lhecontar essas coisas.

Lala olhou para Katinka e virou o rosto para o outro lado, cobrindo osolhos com as mãos.

— Eu sabia que não tinha esperado em vão. Esse Satinov é um anjo,um anjo — sussurrou ela. Então, sentando-se ereta, encarou Katinka. —Eu quero ver Branquinha. Mas não demore muito. Eu não sou imortal.

Quando Katinka se levantou, estava tonta. Parecia que ela própriasofrera a dor das separações.

— Tenho que voltar para o hotel e telefonar para Roza.Mas a velha senhora estendeu a mão para ela.— Não, não... fique comigo. Eu esperei tanto tempo. Estou com

medo de que você não volte e de que isso seja apenas uma alucinação.Eu sempre tenho um sonho. Samuil está segurando um copo de vinhogeorgiano e me leva até uma biblioteca cheia de livros velhos ecuriosidades estranhas, em uma mansão em ruínas, coberta de vinhas elilases. E Sashenka está em um trenó com sinos, correndo pelas ruas deSão Petersburgo, rindo e dizendo: “Mais depressa, Lala, mais depressa...”E então eu acordo, sozinha aqui neste quarto.

— Claro que vou ficar — disse Katinka, sentando-se novamente naconfortável cadeira. Estava feliz de não ter que voltar para o hotel poucoacolhedor, nos arredores da cidade.

Durante a noite quente, ela foi acordada por Lala, que estavasentada na cama.

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— Ela foi presa na porta da escola, barão. Sim, os gendarmesprenderam ela... O que nós vamos fazer hoje, Sashenka? Vamos patinar,querida? Não, se você for uma menina boazinha, nós vamos comprar umalata de biscoitos Huntley & Palmers na Loja Inglesa, na Nevski.Pantameilion, traga o trenó...

Katinka se aproximou do leito. Os olhos de Lala estavam abertos e elasegurava uma foto, que apertava no peito: era Sashenka, no aventalbranco do Instituto Smolni, com os mesmos olhos risonhos.

— Durma de novo, Lala, durma de novo — acalmou-a Katinka,afagando sua testa.

— É você, Sashenka? Ah, minha querida, eu sabia que você iriavoltar. Estou tão feliz em ver você... — A cabeça de Lala afundou denovo no travesseiro. Katinka refletiu que o rosto dela não tinha idade, orosto em forma de coração daquela menina que viera da Inglaterra,tantos anos atrás.

Então, retornou à sua cadeira e chorou — sem saber ao certo porquê —, até dormir novamente.

15

Era uma refrescante manhã de primavera georgiana. Quando Katinkaacordou, as cortinas estavam abertas. Lala, vestida com um roupãosurrado, segurava uma pequena xícara de café turco e uma fatia de pãolavachi, trazidas por Nugzar, o guerreiro do andar térreo.

No lado de fora, alguns georgianos a caminho do trabalho estavamcantando Suliko. Havia muita música em Tbilisi. O aroma do tkemaligeorgiano se evolava do jardim, com sua sugestão de amêndoas e maçãs,misturando-se à fragrância de café recém-preparado e ao burburinho docafé no térreo.

— Bom dia, criança querida — disse Lala. — Corra até lá embaixo etome um café.

Katinka endireitou-se na cadeira. Esfregou os olhos. Tinha queregressar ao hotel e telefonar para Roza. Seu trabalho estava quase

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completo, mas ainda havia tanta coisa a se descobrir. Carlo ainda estavavivo? E estava ansiosa para saber o que acontecera com Sashenka eVânia. Como se estivesse lendo sua mente, Lala disse:

— Eu sei, no fundo de meu coração, que Sashenka está viva. Econheço alguém que pode nos ajudar a encontrá-la.

Por volta das dez da manhã do dia seguinte, Katinka estava de volta aMoscou, caminhando pela rua Tverskaia, onde, na loja Mundo dos Livros,folheara alguns livros. Então, tocou a campainha da terceira porta doprédio. A porta se abriu, revelando um despojado salão revestido depedras, com o habitual fedor de repolho. Ela subiu até a cobertura emum pequeno e triste elevador, que lhe lembrava uma lata de sardinhaspendurada em um cabo. Mas, quando as portas se abriram, rangendo, asurpresa lhe tirou o fôlego. Em vez de um patamar com três ou quatroportas, o elevador dava acesso a um apartamento de teto elevado,revestido com graciosos lambris de pinho, mobiliado com o tipo de móveisde madeira escura e aspecto nobre que se vê nos museus. Altas estantesestavam repletas de livros e grossos volumes com jornais da era soviética.Nas paredes, havia quadros em molduras douradas e velhos pôsteres defilmes. Não era um lugar esmagadoramente grandioso, como oapartamento do marechal Satinov, mas era aconchegante e aristocrático,o apartamento de uma próspera esteta dos tempos tsaristas.

— Seja bem-vinda, Katinka — disse uma extraordinária senhora idosa,em pé no meio do aposento.

Bem-vestida, usando um daqueles terninhos de tweed usados porMarlene Dietrich nos anos 40 — que se ajustava à perfeição sobre seusseios volumosos — e um penteado de acordo com a roupa, elacombinava tão bem com a sala que poderia posar lá para um fotógrafo demoda. Katinka presumiu que ela já tivesse bem mais de 80 anos. Mas,com suas espessas sobrancelhas e volumosos cabelos pintados de preto,tinha a postura de uma atriz em sua última excursão.

— Sou Mouche Zeitlin — disse a mulher, estendendo a mão. —Entre, vou lhe mostrar o apartamento. Esse era o estúdio de meu pai...— Ela conduziu Katinka até um pequeno cômodo, ainda lotado de livros epapéis, e apontou para uma estante cheia de volumes, que ocupava uma

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parede. — Aqui estão todas as obras dele. Você deve se lembrar dealgumas delas — ou talvez você seja muito jovem...

— Não, eu conheço o nome dele — respondeu Katinka. — Naestante do meu pai, nós temos todos os livros de Gideon Zeitlin,juntamente com os de Gorki, Ehrenburg e Cholokhov...

— Um gigante da era soviética — disse Mouche, que falava o russocastiço de uma atriz treinada. — Aqui! — Ela apontou para grandes fotosem preto e branco, em uma parede, que mostravam um sorridentehomem de barba negra, já ficando grisalha, e os mesmos olhos negros eo sorriso de sua filha. — Aquele é meu pai, com Picasso e Ehrenburg emParis, e aquele é ele, com o marechal Jukov, na Chancelaria de Hitler, em1945. Ah, aquele é ele com uma das muitas namoradas dele. Eucostumava chamá-lo de papa momzer — isso é “papai pilantra”, emiídiche. Minha irmã e minha mãe morreram no sítio de Leningrado, masmeu pai e eu, com nosso senso de humor, sobrevivemos a guerras,revoluções e terror. Na verdade, ele prosperou... tenho até vergonha dedizer. Está vendo os pôsteres? Sou eu em meus filmes. Você deve tervisto alguns. Vamos tomar um chá. — Elas cruzaram o admirável salão eforam até a cozinha, onde Katinka sentou-se a uma mesa grande. —Você está escrevendo sobre meu pai ou sobre mim?

— Não, na verdade não foi por isso que eu vim ver você... — Katinkacorou, mas Mouche Zeitlin fez um sinal com a mão, demonstrando queaquilo não tinha importância.

— Claro que não, querida, por que deveria ser? Você é da novageração. Mas você disse que era historiadora. — Ela acendeu umGauloise, colocado em uma piteira de prata, e ofereceu um cigarro aKatinka.

— Não, obrigada — disse Katinka. Então contou a Mouche sobre seuencontro com Roza e Pacha, bem como o restante da história, atéchegar em Lala. — Lala me disse para falar com você. Ela tinha o seuendereço. Deve ter guardado o papel depois que Samuil morreu. E agoranós sabemos que minha cliente, Roza Getman, é Branquinha, a filha deSashenka.

— Meu Deus! Branquinha! — Mouche perdeu a autoconfiança e,subitamente, esvaiu-se em lágrimas. — Nem posso acreditar! Como

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queríamos encontrar essa criança! E Carlo?— Espero que nós possamos encontrá-lo, de alguma forma.— Mas Branquinha está viva e bem? Nem posso acreditar! — Mouche

estendeu os braços para Katinka, como se ela fosse sua família, há muitotempo perdida. — Você é uma mensageira de boas-novas! Possotelefonar para ela? Quando posso me encontrar com ela?

— Eu espero que dentro em breve — respondeu Katinka. — Masainda há muita coisa para se descobrir. Eu vim lhe dar essas boas notícias,mas também para lhe perguntar: você alguma vez procurou por Sashenkae Vânia?

— Até sua morte, meu pai tentou descobrir o que aconteceu comeles e às crianças. Muitas vezes, durante o reinado de Stalin, meu paiesteve à beira da aniquilação, embora fosse um dos escritores favoritosdo ditador. No final da guerra, ele viajou para Tbilisi para se encontrarcom Samuil, seu irmão mais velho, e Lala Lewis, é claro — eles eram muitofelizes juntos. Foi uma reunião muito alegre, os dois irmãos não se viam hámuitos e muitos anos. De qualquer forma, Samuil fez meu pai prometerque, assim que pudesse, iria descobrir o paradeiro de Sashenka e suafamília.

— Você descobriram alguma coisa? — perguntou Katinka, sacandoseu bloco de anotações.

— Ah, sim. Ainda durante a vida de Stalin, papai fez umas perguntasna Tcheka e disseram a ele que Sashenka e Vânia haviam sidocondenados a dez anos nos campos de trabalhos forçados, em 1939.Pesquisamos novamente em 1949, quando era para Sashenka serlibertada, mas nos disseram que ela tinha recebido mais dez anos, semdireito a correspondência. Durante o Degelo, depois da morte de Stalin,disseram para nós que ambos tinham morrido de ataque cardíaco, noscampos, durante a guerra.

— Então, realmente, não existem esperanças para ela.— Nós achávamos que não — disse Mouche. — Mas, em 1956, uma

ex-prisioneira, uma zek recém-libertada, telefonou para nós e disse quetinha estado com Sashenka nos campos de Kolima e que tinha vistoSashenka recentemente; e que ela estava viva quando Stalin morreu, emmarço de 1953.

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O coração de Katinka deu um pulo.Mais tarde, naquele mesmo dia, um Mercedes preto, blindado, veio

buscar Katinka no Hotel Moskva, e a levou até o quartel-general de PachaGetman, uma antiga mansão que pertencera a um príncipe, na ruaOstajenka. Katinka estava curiosa para ver “O Palácio”, como a mansãoera conhecida na imprensa. Dizia-se que o local era um centro de intrigaspolít icas e financeiras. Assim, ficou quase desapontada quando passarampelos portões, vigiados por guardas, e pararam em frente a uma graciosa,mas pequena, residência de dois andares, em mármore branco, compilastras ornamentadas com arabescos orientais. No interior, o salãoestava decorado como o harém de um sultão turco, pensou Katinka, comdiversas fontes e divãs. Foi recebida por uma linda secretária de cabelosnegros, uma garota russa não muito mais velha que ela, vestindo umconjunto preto, com uma minúscula saia e saltos imensamente altos,tudo realçado por um tilintante cinto dourado. Katinka percebeu logo,pelo ar de proprietária, que aquela “garota Versace” não era somentedatilógrafa de Pacha.

Com os saltos martelando os pisos de mármore, a assistente conduziuKatinka — que se sentia malvestida em sua saia de jeans — através de umaposento cheio de equipamentos eletrônicos e monitores de televisão,vigiados por guardas de uniforme azul; depois, passaram por uma sala dejantar, onde um jovem conferia a arrumação das flores e dos talheressobre a mesa; chegaram então a um escritório moderno e arejado, todoem vidro e aço cromado, onde Pacha Getman acenou para ela.

Ele estava ao telefone, mas Roza estava sentada em um sofá,embaixo de algumas dispendiosas (e horrorosas, na opinião de Katinka)peças de arte moderna.

— Minha querida menina, você trabalhou tão bem — disse Roza,beijando Katinka três vezes e segurando seus ombros calorosamente. —Eu nem consigo acreditar que você já conseguiu tudo isso. Vou telefonarpara Mouche imediatamente... Assim que você mencionou os nomesPalitsin, Sashenka e Vânia, era como se eu já os conhecesse.

— Você não mencionou que tinha um irmão.— Eu queria começar com meus pais e, até hoje, ainda acho difícil

dizer o nome dele, falar sobre ele... — Roza parou e fechou os olhos por

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alguns instantes. — De qualquer modo, eu não tinha certeza do quevocê iria encontrar. Mas, oh, Katinka, eu não tenho como lhe agradecer.Você me devolveu um pedaço de mim mesma, minha identidade. — Osolhos violeta se abriram novamente e Katinka percebeu que Roza estavalutando para não chorar.

— Você quer que eu continue?Katinka percebeu que queria muito descobrir o que acontecera com

o restante da família de Roza, principalmente com Carlo, mas ao mesmotempo sentia-se culpada. Estaria se tornando viciada no drama de outraspessoas?

— Sim, e aqui está o dinheiro para a KGB — disse Pacha Getman,contornando a escrivaninha para abraçá-la. Então, entregou-lhe umenvelope. — Eu sabia que tinha contratado a pessoa certa. — Katinkapercebeu o olhar de Roza, quando ele disse isso, e ambas trocaram umolhar conspirador. — Mas agora vá e encontre os outros Palitsins. Sealgum deles ainda estiver vivo...

O dinheiro na bolsa deixava Katinka nervosa. Ela nunca estivera de possede um valor tão alto e tinha certeza de que seria roubada, ou que iriaperder o dinheiro. Sentiu-se aliviada quando entrou no Café-Bar Piano,nas Lagoas do Patriarcado, para se encontrar com os dois KGBsti, o Saguie o Mágico.

Ela brincou com o volumoso envelope por alguns instantes, depoisabriu-o na frente deles, para mostrar as cédulas.

— Por esse dinheiro todo, queremos os arquivos sem demora. Vocêdisse amanhã, não foi?

— Está tudo aí? — perguntou o Sagui, com o rosto brilhante, olhosfixos no envelope.

— Sim, contra o meu conselho — disse Katinka. — O sr. Getmaninsistiu em pagar.

— Tudo em verdinhas? — perguntou o Mágico.— Não faço a menor ideia — disse ela, sentindo desdém por aquela

linguagem.— Um anjo do norte do Cáucaso! Como é que são as coisas! — O

Mágico riu e alisou seus grossos cabelos avermelhados. Quando ela

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empurrou o envelope através da mesa, ele colocou a mão sobre a dela.— Que coisa linda, menina. Linda, como você.

Katinka retirou a mão rapidamente e estremeceu.— Amanhã, no meu gabinete, você vai ter as fichas de Sashenka e

Vânia, e também as de Mendel e Golden — prometeu o Sagui. — Tudo oque nós temos.

Katinka se levantou, mas o Mágico segurou-lhe a mão novamente,com suas mãos frias e viscosas.

— Ei, garota, por que a pressa? Por favor, diga ao sr. Getman quenós esperamos que isso seja o início de um relacionamento. E o seu início,como historiadora. Nós temos um material de espionagem sobre operíodo da Guerra Fria que poderia ser do interesse da imprensa e doseditores ocidentais. Agora você conhece Londresgrado, você já foi lá.Nós podemos dividir a comissão com você, se você conseguir interessaros jornais ou os editores de Londres...

— Vou falar com o sr. Getman.— Quer um golinho do uísque maltado preferido das famílias reais da

Europa? É o Glenfiddich, um nome famoso — sugeriu o Mágico. — Umbrinde à nossa histórica parceria?

— Estou atrasada — respondeu Katinka, ansiosa para se livrardaqueles mercenários repulsivos, os sucessores dos tchekistas que tinhamprendido Sashenka e Vânia.

E saiu rapidamente. A primavera em Moscou fervilhava de vida nova.Os lagos estavam cercados de cerejeiras em flor e novas plantas cresciam.Ela comprou um sorvete e sentou-se, admirando os narcisos que cresciamsob as árvores e os cisnes que nadavam majestosamente, com seusfilhotes de penas cinzentas.

De um telefone público, ela ligou para Satinov. Mariko atendeu.— Meu pai está doente. Ele caiu. E também está com problemas

respiratórios.— Mas eu tenho muitas coisas para contar a ele. Descobri Branquinha

e falei com Lala Lewis, que me disse que ele foi um grande herói por terajudado aquelas crianças...

— Você já falou bastante com ele. Chega de telefonar — disseMariko.

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E bateu com o telefone.

16

Sessão do Tribunal Militar, gabinete do Narkom L.P. Beria, noObjeto Especial 110 [Prisão de Sukhanovka, o cárcere especialde Beria no antigo Convento de Sta. Catarina, em Vidnoe,subúrbios de Moscou], 3h, 21 de janeiro de 1940Presidente do Tribunal Militar V.S. Ulrikh: Acusado Palitsin, vocêleu a acusação? Você sabe do que está sendo acusado?Palitsin: Sim, eu, Vânia Palitsin, sei do que estou sendo acusado.Ulrikh: Você faz objeções a algum dos juízes?Palitsin: Não.Ulrikh: Você admite sua culpa?Palitsin: Sim.Ulrikh: Você não se encontrou com sua esposa, Sashenka Zeitlin,e com Mendel Barmakid para planejar o assassinato do camaradaStalin e de membros do Politburo?Palitsin: Minha esposa nunca esteve envolvida nessa conspiração.Ulrikh: Ora, vamos, acusado Palitsin, temos diante de nós suaconfissão completa e assinada, declarando como você e areferida acusada Sashenka Zeitlin...Palitsin: Se o partido quiser...Ulrikh: O partido exige a verdade. Agora, pare de brincarconosco. Fale.Palitsin: Viva o partido. Tenho sido um bolchevista dedicado edevotado desde a idade de 16 anos. Eu nunca traí o partido. Euservi ao camarada Stalin e ao partido com absoluto fervordurante toda a minha vida de adulto. Foi o que fez tambémminha esposa, Sashenka. Entretanto, se o partido exigir...Ulrikh: O partido exige: você confessa sua culpa em todas asacusações?Palitsin: Confesso.

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Ulrikh: Você deseja acrescentar mais alguma coisa, acusadoPalitsin?Palitsin: Eu continuo, de coração, devotado ao PartidoComunista e ao camarada Stalin, pessoalmente. Eu cometipecados graves e crimes. Se tiver que enfrentar a PuniçãoSuprema, morrerei feliz, como bolchevique, com o nome deStalin reverentemente em meus lábios. Viva o partido! VivaStalin!Ulrikh: Os juízes se retiram. 3h22. Os juízes retornam.Ulrikh: Em nome da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, oTribunal Militar da Suprema Corte examinou o caso e constatouque Ivan Palitsin era membro de um grupo trotskistaantissoviético, ligado a agentes duplos da Okhrana e aos GuardasBrancos, controlados pelos serviços secretos japoneses efranceses, e ligado à sua esposa, Aleksandra “Sashenka” Zeitlin-Palitsin (conhecida nos círculos do partido como camaradaRaposa), a Mendel Barmakid (conhecido nos círculos do partidocomo camarada Fornalha) e ao escritor Beniamin Golden. Tendodeclarado o acusado Palitsin culpado de todas as referidastransgressões, que estão sob o Artigo 58, o Tribunal o condenaà Punição Suprema, o fuzilamento. O veredicto é final e deve sercumprido sem mais tardar.

Katinka estava sentada à mesa em forma de T, no gabinete doSagui, lendo a transcrição do julgamento de Vânia e os originais de suasconfissões. O Sagui roía as unhas e lia o fanzine do Manchester United —enquanto Katinka, arrepiada, só conseguia pensar no brutal veredicto dojuiz. Vânia Palitsin, para ela, já não era apenas um personagem histórico.Era o pai de Roza — a quem teria que dizer, de alguma forma, que seupai morrera de forma horrível. Estava começando a vasculhar os papéis,em busca de um certificado de execução, quando a porta se abriu eKuzma, o rato de arquivos, coxeou para dentro da sala empurrando ocarrinho, onde os gatos brincavam na parte inferior.

— Recolhendo pastas, coronel — murmurou Kuzma, vestido com seucasaco branco, colocando algumas papki no carrinho e as distribuindo em

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pilhas.Katinka retornou aos interrogatórios de Palitsin, que confessava

todos os crimes especificados pelo capitão Sagan, cujas confissõestambém estavam naquela pasta. Mas havia alguma coisa estranha: asconfissões, assinadas por “Vânia Palitsin”, no canto superior direito decada página estavam sujas, como se tivessem sido lambuzadas com lamade inverno. Teria o interrogador derramado café? Somente quandoestava virando as páginas ela percebeu que os borrifos lamacentos eram,com certeza, respingos de sangue. Levantou o papel até o nariz e julgouter sentido o revelador cheiro acobreado... Sentiu repulsa pelo Sagui epor aquele lugar malévolo.

— Com licença, coronel — disse Katinka, com a cabeça cheia depensamentos sobre a família de Roza e seus sofrimentos. — Não hánenhuma certidão de óbito na pasta de Palitsin. O que aconteceu?

— Isso é tudo o que há — disse o coronel.— Vânia Palitsin foi executado?— Se estiver na ficha, sim; se não, não.— Eu estive com Mouche Zeitlin ontem. Ela disse que a KGB

condenou Sashenka a “dez anos sem direito a correspondência”. O quesignifica isso?

— Significa que ela não poderia receber nem enviar correspondênciaou encomendas.

— Então ela pode estar viva?— Com certeza.— Mas estas pastas estão vazias. Há muita coisa faltando!O Sagui deu de ombros e a indiferença dele a enfureceu.— Eu pensei que nós tivéssemos um acordo.Katinka percebeu que estava quase gritando. Ambos olharam para

Kuzma, que estava se esgueirando lentamente em direção à porta, emseu passo duro e arrastado.

— Eu não sou alquimista — disse o Sagui, irritado.Agora ela entendia o que lhe dissera Maxi: arquivos começam como

folhas feitas de polpa de madeira, mas então se transformam e adquiremvida, essência, cantam a vida e a morte. Por vezes, são tudo o que restade algumas famílias. Os selos, as assinaturas e instruções em pedaços de

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papel amarelado, enrugado, desgastado, manchado conseguem transmitiralguma coisa que se aproxima da vida, até mesmo o amor.

O Sagui contornou a mesa e puxou um memorando que estava atrásda pasta: Enviar as fichas do caso Palitsin ao Comitê Central.

— O que isso quer dizer? — perguntou ela.— Quer dizer que não está nesse arquivo. Está em outro lugar, não

está aqui. E isso não é problema meu.Nesse momento, Kuzma arremessou um jato de saliva em sua

escarradeira da KGB.— Camarada Kuzma, que bom ver você — disse ela, pondo-se de pé

em um pulo. A gorda gata avermelhada, no carrinho, estava lambendo ofilhote magricela. — Como estão Utesov e Tseferman, nossos gatosjazzistas?

Daquela vez, Kuzma abriu uma boca desdentada e emitiu um agudoganido de prazer.

— Ah!— Eu trouxe uma coisa para eles. Espero que gostem — disse

Katinka, tirando de sua sacola uma garrafa de leite e uma lata de comidapara gatos.

Kuzma agarrou ambos os objetos como se estivesse com pressa,bufando ruidosamente e resmungando consigo mesmo. Então, tirou umpires marrom do carrinho, onde despejou leite para os gatos, que logocomeçaram a lambê-lo com suas línguas rosadas. Soltou então umacusparada entusiástica, que traçou no ar um arco esverdeado. Katinkacompreendeu que o cuspe era uma indicação de seu estado de espírito.

O Sagui sorriu desdenhosamente para ela e abanou a cabeça, masKatinka o ignorou e sorriu para Kuzma. Depois, voltou ao trabalho, com osgatos ronronando ao fundo.

Relatório de Investigação, Junho 1939Caso 161375Mendel Barmakid (Camarada Fornalha)

O tio de Sashenka; tio-avô de Roza; camarada de Lenin e Stalin,chamado “Consciência do Partido”. Mas a pasta continha apenas umpedaço de papel.

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Ao Narkom L.P. Beria, Comissário-Geral, Segurança Estatal,primeiro grau.De: Delegado Narkom B. Kobilov, Comissário-Geral, SegurançaEstatal, segundo grau.

12 de outubro de 1939Acusado Mendel Barmakid morreu hoje, 3h. Dr. Medvedev,

do NKVD, examinou prisioneiro e certificou morte por paradacardíaca. Relatório médico anexado.

Então Mendel morrera de causas naturais. Ao menos ela descobrira odestino de mais um membro da família.

— Largue os papéis — ordenou o Sagui.— Mas eu ainda nem cheguei à ficha de Sashenka!— Mais dois minutos.— Nós pagamos por esses arquivos — sussurrou-lhe ela, com

veemência.— Eu não sei o que você está querendo dizer — replicou ele. — Dois

minutos.— Você me fez perder tempo. Você quebrou sua promessa!— Um minuto e cinquenta segundos.Katinka mal conseguia suportar aquele lugar, onde os entes queridos

de sua empregadora haviam passado por sofrimentos horríveis. Queriachorar, mas não na frente do Sagui. Abriu então a pasta de Sashenka,que continha uma única folha de papel, que dizia: Favor consultar aconfissão da acusada Zeitlin-Palitsin (167 páginas), que está anexada. Masnão havia nada lá. Apenas um bilhete: Enviar arquivos do caso Zeitlin-Palitsin para o Comitê Central.

Xingou a si mesma por ter sido rude com o Sagui.— Está faltando a confissão de Sashenka: posso examiná-la?— Você me insulta e, através de mim, insulta a União Soviética e os

Órgãos Competentes! — Ele apontou para o busto branco de FélixDzerjinski. — Você insulta o Félix Ferro!

— Por favor, eu peço desculpas!— Eu vou relatar tudo isso ao meu superior, o general Fursenko, mas

acho pouco provável que ele lhe dê permissão.

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— Nesse caso — disse Katinka, encorajada pela bravura dos quetinham estado em situações bem mais perigosas que ela —, eu duvidomuito que o sr. Getman se interesse em ajudar vocês a vender seussegredos de espionagem para os jornais do exterior.

O Sagui olhou fixamente para ela, de rosto contraído, e, então,levantou-se e abriu a porta.

— Foda-se, sua vagabundazinha! A sua turma já fez a festa! Vocêsnos culpam por tudo, mas a América já prejudicou mais a Rússia empoucos anos do que Stalin em décadas! E o seu oligarca pode ir treparcom a mãe dele. Você não vai conseguir mais nada aqui. Saia!

Katinka se levantou, recolheu o caderno de anotações, sua bolsa e,tentando manter um pouco de dignidade, saiu da sala lentamente,passando por Kuzma, que estava no corredor, conferindo as pastas nocarrinho. Estava chorando: tinha estragado tudo com seu temperamentoestouvado.

Agora, jamais descobriria o que acontecera a Sashenka, nuncaencontraria Carlo. Sentiu-se tonta. Não havia mais esperanças.

17

— Você de novo? — disse Mariko acidamente. — O que foi que eu lhedisse? Não telefone.

— Mas, Mariko, por favor! Só escute, por um segundo — implorouKatinka, com o desespero estampado na voz. — Estou ligando de umtelefone público, em frente à Lubianka! Fui ver Lala em Tbilisi. Só escute,por um segundo. Eu quero agradecer ao marechal Satinov. Eu fiqueisabendo como seu pai salvou aquelas crianças, Branquinha e Carlo, comoele arriscou a vida dele. Eles querem agradecer a ele.

Silêncio. Ela podia escutar a respiração de Mariko.— Meu pai está muito doente. Eu digo a ele. Não telefone de novo!— Mas por favor...A linha ficou muda. Gemendo de frustração, ela telefonou para Maxi,

no escritório da Resgate.

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— Está vendo só? — disse ele amavelmente. — Nosso tipo depesquisa não é fácil, isso acontece comigo o tempo todo. Tenho umaideia. Encontre-se comigo aos pés do poeta — praça Puchkin.

Katinka fez sinal para um Lada e estendeu dois dólares ao motorista.Chegou à praça antes de Maxi. Era um deslumbrante dia de primavera,com um céu azul-metálico, uma brisa refrescante, uma luminosidade pura.Em meio à fumaça dos carros e ao perfume de lilases, garotas esperavampelos namorados sob a estátua do poeta, estudantes de óculos liamanotações sentados nos bancos, guias em ternos de poliéster faziampreleções para turistas americanos, limusines de banqueiros alemães e deoportunistas russos paravam em frente ao Restaurante Puchkin. Meusversos serão cantados por toda a vastidão da Rússia, Katinka leu nomonumento, Minhas cinzas sobreviverão e não conhecerão a palidez dadissolução. Puchkin a consolou e a acalmou.

Uma motocicleta subiu na calçada. Maxi retirou o capacete viking,segurando-o pelos chifres, e a beijou com seu jeito de exageradafamiliaridade.

— Você parece perturbada — disse ele, segurando a mão dela. —Vamos sentar ao sol e você me conta tudo.

Sentaram-se e Katinka lhe contou tudo sobre sua visita a Tbilisi, anoite que passara com Lala, a descoberta de que Roza Getman era a filhade Sashenka — e seu mais recente entrevero com a KGB.

— Você trabalhou muito bem — disse-lhe Maxi. — Estouimpressionado! Mas deixe que eu interprete algumas coisas para você.Mouche Zeitlin diz que a KGB disse a ela que Sashenka foi condenada a“dez anos sem direito a correspondência”. Isso geralmente era umeufemismo para execução.

Katinka prendeu a respiração.— Mas e aquela ex-prisioneira que viu Sashenka nos campos, nos

anos 50?— A KGB gostava de enganar as pessoas. Os arquivos da KGB dizem

que Mendel morreu de “parada cardíaca”. Isso era outro eufemismo.Significa que ele morreu sob interrogatório: foi espancado até a morte.

— Então eles têm sua própria linguagem? — disse ela.— Infelizmente, sim — disse ele. — O Terror era muito imprevisível,

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mas, ao mesmo tempo, não havia coincidências naquele mundo: tudoestava ligado por fios invisíveis. Só precisamos encontrá-los. Enviararquivos do caso Zeitlin-Palitsin para o Comitê Central — repetiu ele. — Eusei o que isso significa. Venha comigo. Suba.

Katinka subiu na traseira da moto, puxando a saia de brim sobre ascoxas. Com o motor roncando, Maxi ziguezagueou pelo trânsito deMoscou, seguindo pela Tverskaia. Então, fez uma curva fechada àesquerda, em frente à estátua do príncipe Dolgoruki, fundador deMoscou, e começou a descer uma colina íngreme. O vento agitava oscabelos de Katinka, que fechou os olhos, refrescada pelo rico arprimaveril.

Pararam em frente a um prédio brejneviano, uma caixa de concretocom uma fachada de vidro arranhado e, sobre a cornija da porta rotativa,os rostos esculpidos de Marx, Engels e Lenin.

Maxi pulou fora da moto e tirou o capacete, jogando os cabelos paratrás. Ele mais parecia, pensou ela, um metaleiro dos anos 70 do que umhistoriador. Com passos largos e rápidos, entrou no prédio. Katinka oseguiu, quase correndo. Em um salão de mármore cinzento, mulheresatrás de mesas vendiam CDs de Bon Jovi, chapéus e luvas, como em umbazar. Mas nos fundos, onde o acesso aos elevadores era controlado pordois ridículos soldados adolescentes, erguia-se um busto de Lenin. Maxiexibiu seu cartão aos soldados. Estes verificaram o passaporte de Katinka,que guardaram, entregando um recibo a ela.

Maxi a conduziu até uma pequena escada, passando por umacantina, que cheirava a sopa de repolho mofada. Entraram então em umelevador, que chacoalhou até o último andar do prédio. Antes queKatinka pudesse observar as cercanias, ele a conduziu a um salão deleitura com paredes de vidro e uma vista panorâmica dos telhados deMoscou.

— Não há tempo para admirar o panorama — sussurrou ele,enquanto um velho comunista levantava os olhos de sua leitura e osolhava com ar irritado e desaprovador. Os couros de Maxi rangiamruidosamente na sala silenciosa. — Tenho um lugarzinho para nós aqui. —Sentaram-se em um canto formado por altas estantes. — Espere aqui —disse ele.

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Ela escutou com um sorriso o rangido de suas roupas de motociclista.Momentos depois, ele retornou com uma pilha de pastas marrons esentou-se bem junto a ela. Exalava uma mistura de couro, café, óleo demoto e colônia de limão.

— Aqui — cochichou ele — é o arquivo do partido. Você está vendoest as papki com o número 558? É o arquivo de Stalin. Ainda estáoficialmente fechado e duvido que algum dia seja aberto. — Ele puxou asprimeiras pastas. — Eu estava examinando isso aqui, mais cedo, e repareino nome de Satinov. Quando as anotações que você encontrou diziamque os arquivos tinham sido enviados para o Comitê Central, issosignificava o próprio Stalin. Esta aqui é a correspondência variada deStalin. Vá em frente, Katinka, olhe na letra “S” de Satinov.

Ela abriu o arquivo e encontrou um bilhete anexado à capa,carimbado por Poskrebitchev às 21h de 6 de maio de 1939:

Para J.V. StalinExtremamente Confidencial. Chegou ao meu conhecimento queIvan “Vânia” Palitsin ordenou a vigilância de sua esposa,Aleksandra “Sashenka” Zeitlin-Palitsin, integrante do partido, semo conhecimento do Narkom NKVD ou do Politburo.Assinado: L.P. Beria, Comissário-Geral, Segurança Estatal, primeirograu, Narkom NKVD

— Veja bem — explicou Maxi —, Beria descobriu que Palitsin estavavigiando os movimentos da esposa.

— Como ele ficou sabendo?— Provavelmente por algum pequeno engano burocrático. Cópias

das gravações eram sempre enviadas para Beria, que decidia quais iriaencaminhar a Stalin. Palitsin, que estava louco de ciúmes, tinha ordenadoque as transcriçoes das gravações fossem mostradas apenas a ele.Lembra que ele esceveu sem cópias? O secretário dele deve ter seesquecido disso — como acontece com os secretários — e enviou umacópia para Beria, que, pelos regulamentos da época, tinha que relatar aopróprio Stalin essa utilização abusiva de recursos do governo. Beria nãotinha nada contra os Palitsins, e sabia que, depois da festa do Dia do

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Trabalho, Stalin desenvolvera um interesse paternal por Sashenka. É porisso que este bilhete — Maxi bateu com o dedo no bilhete da capa — éneutro. Stalin costumava ser tolerante e até se divertia com as fofocaseróticas do pessoal — a menos que achasse que estava sendo enganado.

— Mas quando leu as transcrições...

Ao: Camarada Ivan Palitsin, Comissário-Geral, Segurança Estatal,terceiro grauComo solicitado, vigilância e transcrição de Aleksandra “Sashenka”Zeitlin-Palitsin, Quarto 403, Hotel Metrópole, 6 de maio de 1939,Meio-Dia: Zeitlin-Palitsin deixou o escritório na Petrovka ecaminhou até o Metrópole, tomou elevador para Quarto 403.Escritor Bênia Golden entrou no quarto quinze minutos depoisdo meio-dia, saíram separadamente às 3h03. Petiscos e vinhosforam entregues no quarto.

Katinka virou as páginas e encontrou um trecho marcado com tintavermelha:

Golden: Meu Deus, eu te amo. Você é tão adorável, Sashenka.Zeitlin-Palitsin: Não consigo acreditar que estou aqui.Golden: O quê, querida? Eu não te dei prazer da última vez? Atévocê gritar meu nome?Zeitlin-Palitsin: Como eu poderia esquecer? Acho que imagineitudo. Acho que você me faz ter ilusões.Golden: Venha cá. Desabotoe minha calça. Isso é o paraíso.Fique de quatro na cama e me deixe desembrulhar o presente.Ah, meu Deus, que visão deliciosa. Que [palavra suprimida] linda.Como você é [palavra suprimida]. Se aquelas comunistas chataspudessem ver você agora...

Katinka espreitava uma intimidade perdida em uma dobra do tempo,uma paixão que desaparecera em um passado cruel. Seus olhos foramatraídos para algumas palavras sublinhadas por três grossas marcas decrayon.

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Zeitlin-Palitsin: Ah, meu Deus, Bênia, eu adoro o seu [palavraindecifrável], nem posso acreditar que você me fez fazer isso,pensei que ia morrer de prazer...

— Esse crayon vermelho aí, sublinhando, é do próprio Stalin — disseMaxi, puxando um livro de anotações engordurado, em formato A4, desua pilha de arquivos. — Esta é a lista de visitantes do gabinete de Stalin,na praça da Trindade, no Kremlin — chamado de Cantinho, pelosespecialistas. — Ele abriu o livro. A minúscula e imaculada caligrafia dePoskrebitchev relacionava nomes, datas, horários. — Veja no dia 7 demaio, à noite.

Katinka leu a página:

22h L.P. Beria.Sai 22h30.22h30 H.A. Satinov.Sai 22h45.22h40 L.P. Beria.Sai 22h52.

— Então Satinov esteve lá pouco depois de Beria mostrar astranscrições a Stalin. Por quê?

— Beria vem ver o Mestre e lhe entrega as transcrições. Stalin lê essematerial apimentado e marca alguns trechos com crayon vermelho. MandaPoskrebitchev convocar Satinov, que está na Praça Velha, o quartel-general do partido, no alto da colina. O telefone vertuchka toca naescrivaninha de Satinov. Poskrebitchev diz: “Camarada Satinov, ocamarada Stalin está esperando por você, agora. Um Buick está indobuscar você aí.” Stalin está horrorizado com o que Sashenka e Bêniaestão fazendo.

Maxi leu o bilhete de Stalin para Beria:

Eu julguei mal essa mulher moralmente corrupta. Pensei que elaera uma mulher soviética decente. Ela ensina as mulheressoviéticas a serem donas de casa. Ela é a mulher de um altotchekista. Quem sabe os segredos que ela divulga, tagarelando

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por aí? Ela se comporta como uma prostituta. Camarada Beria,acho que nós devemos investigá-la. J. St.

— Você sabe o que significa “investigar”? — perguntou Maxi. —Significa prenda eles. Está vendo como isso chegou a Stalin em poucospassos acidentais?

Com o coração batendo forte, em solidariedade, Katinka assentiu. Senão fosse a visita de Stalin, se não fosse pelo caso amoroso de Sashenka,se não fosse pelo ciúme de Vânia...

— Há mais alguma coisa no arquivo? — perguntou ela.Maxi suspirou.— Não, não neste arquivo. Mas o Arquivo Estatal Russo para

Documentos Polít ico-Administrativos Secretos Especiais, próximo à praçaMaiakovski, está cheio de papéis de Stalin. Um dia, em algum lugar lá, asfuturas gerações vão descobrir o que aconteceu, se ainda se importarem.Mas está fechado. Estes aqui são todos os registros que podemos ler. Ah,com exceção de uma coisinha...

Ele pegou novamente o bilhete de Stalin e apontou para o cantosuperior direito, onde, em letras pequenas, seu crayon vermelhoescrevera as seguintes palavras: Bicho para tratar.

— O que quer dizer isso? — perguntou Katinka.— Eu achava que sabia tudo sobre a época de Stalin — disse Maxi —,

mas desta vez não consigo encontrar uma explicação.Katinka cambaleava de exaustão e tristeza.— Acho que nunca vou encontrar Sashenka, nem o pequeno Carlo

— sussurrou ela. — Pobre Roza, como vou dizer isso a ela?

18

As ruas já estavam escuras. Ainda chocados pelo que haviam descoberto,Maxi e Katinka separaram-se constrangidos, como dois adolescentes apósum primeiro encontro insatisfatório. Maxi foi embora na moto e Katinkacomeçou a caminhar lentamente, subindo a colina mal iluminada em

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direção às brilhantes luzes de neon da Tverskaia, nas proximidades daestátua de Dolgoruki. Diminuindo o passo, para ajustar a bolsa no ombro,percebeu alguém andando bem próximo a ela.

Apressou o passo, mas seu perseguidor fez o mesmo. Voltou acaminhar lentamente, para permitir que ele a ultrapassasse, mas eletambém andou mais devagar. De repente, sentiu-se assustada: seria aKGB? Ou um assaltante checheno? Então o vulto juntou uma bola decatarro na boca e a arremessou em um arco fosforescente em direção àsarjeta.

— Kuzma! — arquejou ela. — O que você...Sem uma palavra, ele a pegou pelo braço e a conduziu para trás da

estátua, onde não havia ninguém. Carregava um grande saco de lona,que abriu, revelando a gata cor de marmelada e seu filhote.

— Confortável — disse ele em sua voz estranha e não lapidada.— Bem confortável — disse Katinka, ainda preocupada. Quais seriam

as intenções dele?Kuzma remexeu dentro do saco de gatos e extraiu um envelope

amarelo, antiquado, fechado com barbante vermelho, que enfiou nasmãos dela, olhando em torno, numa atitude cômica — embora elasoubesse que aquilo não era brincadeira. Ele estava arriscando a vida.

— Para você — murmurou ele.— Mas o que é isso?— Você lê, você vê! — Perscrutando os arredores novamente, ele

começou a se afastar dela, em direção à Tverskaia.— Kuzma! Espere! Eu quero lhe agradecer direito! — Kuzma afastou-

se dela, encolhendo-se, como um vampiro diante de água benta, mas elaagarrou seu pulso. — Uma pergunta. Quando é dito que “o ComitêCentral pediu os arquivos”, onde eles estão? Eu posso examiná-los?

Kuzma voltou e ficou tão próximo a ela que seu queixo não barbeadoespetou-lhe a orelha. Apontou para o chão — a direção dos porões, dasmasmorras, dos túmulos — e apenas emitiu um silvo.

— Então como vou saber o que aconteceu?Kuzma deu de ombros, mas apontou para a colina.— É melhor cantar bem como pintassilgo do que mal como rouxinol.Então se afastou, retesado, desaparecendo na multidão sem rosto

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que apinhava a Tverskaia na hora do rush.

O envelope queimava as mãos de Katinka. Ela mal conseguia se controlarpara não abri-lo, mas tentava manter-se calma. Olhou em volta paraverificar se estava sendo seguida mas concluiu que, se a KGB quisessesegui-la, jamais perceberia.

Ela não aguentava esperar para chegar ao hotel. Então atravessou arua e entrou no decrépito saguão do Hotel Intourist — uma horrendaconstrução dos anos 70, em vidro e concreto, com teto baixo, revestidode quadrados brancos de poliestireno, e chão forrado por um tecidoesgarçado, cor de vinho. A equipe de segurança, que se mantinhapróxima ao balcão marrom, forrado de plástico, era formada por agressivoslatagões soviéticos, de queixo quadrado.

Mas o lugar fervilhava como um mercado persa. Máquinas caça-níqueisestalavam e zumbiam. Prostitutas em roupas espalhafatosas estavamsentadas em sofás alaranjados. Quando um dos escroques da segurançase aproximou, Katinka apontou para as prostitutas e ele deu de ombros:recolheria sua parte mais tarde. Sentando-se em um sofá de espuma,entre duas garotas de meias e botas, coxas nuas e brancas marcadas porcontusões, ela ofereceu um cigarro a cada uma. Ambas aceitaram aoferta: uma delas colocou o cigarro na bolsa, a outra o enfiou no alto dameia.

Katinka acendeu um cigarro, inalou a fumaça e, então, abriu oenvelope. Dentro, havia algumas bijuterias e um maço de documentosfotocopiados. O primeiro estava datado de maio de 1953, dois mesesapós a morte de Stalin:

Aos oficiais responsáveis: Caso Palitsin/ZeitlinPor razões de segurança, parentes que estejam investigando assentenças dos criminosos acima referidos devem ser informadosde que os prisioneiros receberam uma nova sentença após umperíodo de dez anos no gulag. Assinado: I.V. Serov, Diretor,Comitê de Segurança Estatal (KGB)

Cólera e perplexidade percorreram o espírito de Katinka, seguidas poruma tristeza acabrunhante. Tudo o que soubera através de Mouche,

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sobre os arquivos da KGB, era uma deliberada mentira. Ela devia terempalidecido, pois uma das prostitutas se inclinou para ela e perguntougentilmente:

— O resultado dos seus testes, amor? Más notícias?— Alguma coisa assim — disse Katinka, com a testa porejando suor.— É duro, é duro, mas a gente sobrevive — disse a prostituta,

acendendo um cigarro e se virando para a amiga. Katinka olhounovamente as páginas datilografadas.

Sessão do Tribunal Militar, gabinete do Narkom L.P. Beria,Assunto Especial 110, 22 de janeiro de 1940.Julgamento da acusada Aleksandra “Sashenka” Zeitlin-Palitsin(Camarada Raposa).Presidente do Tribunal Militar da Suprema Corte Vassili Ulrikhpresidindo pessoalmente.

Katinka folheou o maço até o final, procurando pela sentença — masse deparou novamente com a enlouquecedora anotação: Enviardocumentos do caso Palitsin para o Comitê Central.

Então começou a ler as transcrições do julgamento de Sashenka — eo que viu a chocou tão profundamente que ela enfiou os papéis de novono envelope e saiu correndo do hotel, virando à direita na rua edescendo a colina em direção ao Kremlin, cujas oito estrelas vermelhasbrilhavam acima dela, na nebulosa rapsódia de uma noite de primavera.

— Você foi longe demais desta vez! — disse Mariko, quase sem elevar avoz, o que reforçava ainda mais a ameaça implícita.

O marechal Satinov estava sentado em sua cadeira de espaldar alto,na elegante e arejada sala de estar, com uma máscara de oxigênio presaao rosto por um elástico e, ao lado, um grande cilindro de oxigênio sobrerodas. Ele parecia ter encolhido em poucos dias, e seus olhos seguiamcada movimento de Katinka.

— Por favor, deixe-me falar com seu pai por um minuto — disseKatinka, ofegante e vermelha por ter corrido. — Tenho muita coisa adizer a ele, e ele mesmo me pediu para lhe contar o que eudescobrisse...

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Ela fixou os olhos nas órbitas encovadas de Satinov e em suaspálpebras semicerradas. A princípio, os olhos do velho nadademonstraram. Mas então pareceram cintilar e ele arrancou a máscara deoxigênio.

— Ah, Mariko, pare de criar caso. — Ele falava com dificuldade. —Faça um chá para nós. — Mariko suspirou ruidosamente e saiu batendo ospés. — Como você conseguiu entrar, menina?

— Alguém abriu a porta da rua para mim e, depois, eu encontrei suaporta aberta.

Satinov digeriu a informação.— Destino, é isso. Não se esqueça de que é por isso que você está

aqui — disse ele, com um sorriso cavernoso.Katinka sentou-se no divã, ao lado dele, enquanto ele abria as mãos

murchas, como se dissesse: vá em frente, menina, conte tudo para mim.— Eu encontrei Branquinha. — Ele assentiu aprovadoramente. — Lala

Lewis me contou tudo. O senhor foi um herói. O senhor salvou ascrianças. Branquinha quer se encontrar com o senhor para lhe agradecer.

Ele abanou a cabeça e uma das mãos.— Tarde demais — disse em voz rouca. — Encontrou o irmão dela

também?— Ainda não. Ainda estou tentando entender o que aconteceu com

Sashenka.— Deixe eles. Concentre-se em Carlo! As crianças, o futuro...— Sashenka e Vânia eram seus melhores amigos, não eram?— Sashenka era... Não havia ninguém como ela... E as crianças...Seus olhos azuis se enterneceram e, por um momento, Katinka

julgou ter visto lágrimas. Mas obrigou-se a continuar.— Foi por isso que Stalin convocou o senhor para ir ao Cantinho, e

leu para o senhor as transcrições dos encontros de Bênia e Sashenka. Elesabia que o senhor era amigo deles desde São Petersburgo e que era opadrinho de Branquinha. Ele viu vocês todos juntos na festa do Dia doTrabalho. Ele queria descobrir o que o senhor sabia sobre eles?

Satinov piscou e não disse nada.— Beria saiu e o senhor chegou às dez da noite — eu vi a agenda de

Stalin. Mas, então, o que aconteceu? Sashenka tinha tido um caso. Vânia

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ficou com ciúmes e grampeou o quarto do hotel. Como isso setransformou em uma conspiração do capitão Sagan e na destruição detoda uma família?

— Não sei — sussurrou Satinov.— Por que Stalin exigiu todos os arquivos do caso? — Ela encarou

seus olhos frios e raiados de sangue. — Você também não vai respondera isso? Como pode fingir que não sabe o que aconteceu?

— Só encontre Carlo — resfolegou Satinov. — Você deve estarmuito perto.

— E o que Stalin queria dizer quando escreveu Bicho para tratar?Fez-se uma pausa, durante a qual Satinov respirou penosamente.— Leia minhas memórias com atenção — disse ele por fim.— Acredite ou não, eu li cada palavra dos seus intermináveis discursos

sobre coexistência pacífica e sobre o papel heroico que vocêdesempenhou na formação da pátria socialista — e não encontreinenhuma palavra de humanidade em nada daquilo. — Os olhos deleestavam fixos nela, mas ela não parou. — Você mentiu para mim semparar. A KGB tentou esconder seus crimes, mas hoje eu consegui astranscrições do julgamento de Sashenka. Você estava no julgamento dasua melhor amiga!

A respiração dele emitiu um chiado.— Dê uma olhada — disse ela, puxando a primeira página do

julgamento.— Estou sem os óculos.— Bem, então deixe que eu o ajudo. Aqui, olhe isso. É você,

marechal Satinov! Você fez mais do que comparecer ao julgamento — elaestava quase berrando —, você foi um dos juízes.

— Leia o meu julgamento — ofegou ele.— Você se sentou lá, no julgamento de sua melhor amiga, da mãe

de sua afilhada. Sashenka encontrou você no julgamento dela. O queserá que ela pensou quando viu você? O que se passou na mente dela?Eu pensei que você era um herói. Você salvou Branquinha e Carlo, maspresidiu a destruição de Sashenka. Ela foi sentenciada à morte? Oumorreu nos gulagui? Me diga, me diga! Você deve isso às crianças!

O rosto de Satinov se contraiu, enquanto sua respiração se tornava

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mais penosa e sua boca se escancarava.Para sua própria vergonha, Katinka teve que lutar contra as lágrimas.— Como você pôde fazer uma coisa dessas? Como pôde?— O que está acontecendo aqui? — Mariko apareceu à porta,

carregando uma bandeja de chá. — O que houve, papai?Enquanto saía da sala, Katinka olhou para o velho. Tinha a máscara

de oxigênio sobre o rosto e seus lábios estavam arroxeados. Ele levantouo braço fino e, com um dedo retorcido, apontou na direção da porta.

19

Juiz Ulrikh: Sashenka Zeitlin-Palitsin, você confessou que esteveenvolvida em uma impressionante conspiração para matar nossosheroicos líderes, o camarada Stalin e membros do Politburo, nasua própria casa. Nós lemos sua confissão. Você tem mais algumacoisa a dizer?Acusada Zeitlin-Palitsin: Eu conspirei para matar o grande Stalinem minha casa. Eu esfreguei arsênico e cianeto em pó nascortinas da sala onde o camarada Stalin ficaria.Juiz Ulrikh: E o gramofone?Acusada Zeitlin-Palitsin: Sim, no gramofone também. Eu fiqueisabendo, por diversos camaradas, inclusive meu marido Vânia,que o camarada Stalin gostava de ouvir música depois do jantar,então eu polvilhei o gramofone com pó de cianeto.Juiz Satinov: Acusada Zeitlin-Palitsin, nós precisamos de maisdetalhes...

Foi a primeira vez que Satinov falou no julgamento. Katinka quasepodia ouvir as vozes daqueles homens insensíveis, no meio da noite, noescritório da prisão de Sukhanovka, apainelado com pinho e iluminado poruma forte lâmpada elétrica. Guardas do NKVD em uniforme azul, armados,vigiavam as portas. Ulrikh, com sua calva em forma de bala, sentava-se àmesa com Satinov e o outro juiz, todos usando túnicas stalinka e botas

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reluzentes.Assim que saiu de seu desastroso encontro com Satinov, Katinka

telefonou a Maxi, repetindo o que fora dito, palavra por palavra, tentandodisfarçar as lágrimas. Mas Maxi foi encorajador: Satinov lhe dissera para lera transcrição do julgamento, então ela deveria fazer isso imediatamente;pedira que ela lesse suas memórias — o que também deveria significaralguma coisa. Maxi propôs que se encontrassem ao meio-dia do diaseguinte, no ainda fechado Arquivo Estatal Russo para DocumentosPolít ico-Administrativos Secretos Especiais, próximo às arcadas da praçaMaiakovski.

Agora, no meio da noite, Katinka estava lendo as transcrições dojulgamento em seu quarto decrépito do Hotel Moskva. Serviu-se de umadose de vodca — para tomar coragem e superar a exaustão. As estrelasvermelhas do Kremlin brilhavam através da janela.

Juiz Satinov: Como você obteve esse cianeto? Diga ao Tribunal!

Katinka imaginou Sashenka, de pé na extremidade da mesa em formade T, pálida, magra, exaurida, mas ainda bela. O que teria pensado —quando enfrentava um julgamento que poderia levá-la à morte — ao sedeparar com Hércules Satinov no Tribunal, bem à sua frente? Deve terlutado para não demonstrar nenhuma emoção e para não revelar que oreconhecera — todos estariam observando sua reação, e a dele. Mas erafácil imaginar a surpresa que tivera e o choque que sentira — além de suaesmagadora preocupação: as crianças estariam a salvo? Ou a presença deSatinov significaria que as crianças...

Acusada Zeitlin-Palitsin: Pois não, camarada Juiz. Vânia obteve oveneno no laboratório do NKVD.Juiz Satinov: Como você sabia quais discos deveriam serenvenenados?Acusada Zeitlin-Palitsin: Eu sabia que o camarada Stalin gosta demúsica folclórica georgiana, as canções dos filmes Volga, Volga eOs Alegres Companheiros, e as árias de Glinka e Tchaikovski.Então envenenei esses discos.

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Juiz Satinov: Você estava servindo ao imperador japonês, aosproprietários de terra poloneses e aos lordes britânicos, emconluio com Trotski?

Katinka sentiu a pele formigar, enquanto imaginava o que estaria namente de Sashenka: Branquinha e Carlo — onde estão vocês?

Acusada Zeitlin-Palitsin: Sim, Trotski ordenou o assassinato emum conluio diabólico com o imperador japonês e com os lordesbritânicos.Juiz Satinov: E o capitão Sagan, o Guarda Branco — quecontrolava você a mando de Trotski e sua rede —, ele forçouvocê a usar os métodos que lhe ensinou quando você ainda erauma garota?Acusada Zeitlin-Palitsin: Você quer dizer a depravação sexual?Sim, eu usei isso para recrutar outros agentes, como o escritorBênia Golden.Juiz Satinov: O escritor Golden se tornou um agente?Acusada Zeitlin-Palitsin: Eu tentei recrutar Golden usando os ardisque o capitão Sagan me ensinou, mas tenho que dizer averdade para o partido: Golden era um filisteu diletante, nãofiliado ao partido. Ele não tinha zelo pelo partido, mas nunca sejuntou à conspiração. Ele dizia que aquilo era “uma comédia”.Juiz Ulrikh: Você está retificando a sua confissão?Acusada Zeitlin-Palitsin: Eu tenho que dizer a verdade para ocamarada Stalin e para o partido. Eu sou culpada; meu marido eo capitão Sagan são culpados; mas Golden era uma criança,incapaz de conspirar.

Katinka não conseguiu deixar de sorrir. Agora sabia que Sashenkarealmente amara Bênia Golden. Não seria esse insulto mais romântico quequalquer canção de amor?

Juiz Satinov: Camaradas Juízes, eu estou quase prostrado dedesgosto com a maldade e a depravação dessa serpente, essaviúva-negra. Estamos prontos para julgar o caso?

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Katinka teve que lutar contra as lágrimas, enquanto lia aquele diálogotragicômico. Satinov acreditaria no que estava dizendo? Sashenkaacreditaria que ele acreditava naquilo? Sashenka deve ter olhado para oamigo, enviando-lhe mensagem após mensagem: as crianças já estãoinstaladas? Estão a salvo? Ou você nos traiu? As perguntas de uma mãe.Katinka acendeu um cigarro e continuou a ler.

Acusada Zeitlin-Palitsin: Devo manifestar, diante desta corte, omeu mais profundo arrependimento e vergonha pelos crimesque cometi contra o partido. O futuro... a posteridade... vai selembrar de mim como uma canalha.

Posteridade? Seria uma mensagem para Satinov?

Juiz Ulrikh (presidindo): Muito bem, os camaradas juízes já estãoprontos? Algum comentário?Juiz Lanski (segundo juiz): Quanta maldade. Mais nenhumcomentário.Juiz Ulrikh: Camarada Satinov?Juiz Satinov (terceiro juiz): A acusada Zeitlin-Palitsin confessacrimes chocantes, cometidos em uma vida de dissimulação ehipocrisia. Devo pedir à corte que me perdoe por dizer isso, masgraças às diligentes investigações realizadas pelo NKVD, nós, opovo soviético, ficamos agradecidos pelo fato de que o nossobrilhante Líder dos Povos, o camarada Stalin, esteja a salvo, queseus leais camaradas Molotov, Vorochilov, Mikoian, Andreiev eoutros membros do Politburo agora estejam a salvo dos espiões,traidores e trotskistas, a salvo em seus gabinetes e lares. Elesagora estão a salvo, completamente a salvo dessa víbora quevivia entre eles. Só há uma punição possível, o modo comotratamos os cães raivosos, a justiça do povo... Obrigado,camarada Ulrikh.

Katinka mal conseguia respirar. Leu aquilo outra vez, e mais uma vez,e aquilo era inequívoco: o sinal. Satinov dissera “a salvo” — e então

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repetira aquilo quatro vezes. Dois “a salvo” para Branquinha, dois “a salvo”para Carlo. Então Satinov não traíra Sashenka. Em vez disso, ele estavarealmente dizendo: “Querida amiga, morra em paz, se puder. As criançasestão a salvo! Repito, as crianças estão a salvo!”

Que alívio para Sashenka. Mas ainda estava faltando a sentença:teriam eles sobrevivido? Lá estava aquela anotação, sempre a mesmacoisa — papéis enviados para o Comitê Central.

O dia raiava em Moscou, quando a cabeça de Katinka tombou sobreas transcrições que ainda descansavam em seus joelhos.

Juiz Ulrikh: Obrigado, camarada Satinov, vamos nos retirar paraefetuar nosso julgamento. Os juízes se retiram.

20

Um sol repentino em um céu muito azul lançou raios dourados sobre aestátua de Maiakovski. Katinka caminhava pela Tverskaia em direção aonovo arquivo, e passou pela estátua do príncipe Dolgoruki; depois pela dePuchkin, do outro lado da rua. Acordara muito cedo, com o telefonemade Maxi, e com o pescoço duro; depois voltara a dormir. Mas seu corpoainda doía, como se tivesse levado uma surra, e somente um estimulanteexpresso no Coffee Bean, um café na Tverskaia — um bom café era umdos benefícios da democracia, pensara ela —, restituíra-lhe um pouco deânimo.

Carregando um volumoso embrulho embaixo do braço, ela passoupelo metrô da Maiakovski e virou à esquerda, atravessando uma dasarcadas de granito vermelho que contribuem para conferir a Moscou suagrandeza sombria e hostil. Chegou então a uma pequena rua, que pareciaum beco. Mas, justamente quando achava que não poderia ir mais longe,a rua fez uma curva fechada, depois outra, tornando-se cada vez maisestreita. Katinka gostou daquela travessa improvável e sinuosa, em meio àmetrópole impiedosa, era como se estivesse descobrindo uma cidadedesordenada atrás dos muros de granito e paredões dos ruidosos

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bulevares. Depois da segunda curva, deparou-se com uma parede ocre,pintada de branco na parte de cima. Logo depois, avistou um portão deaço pintado de preto, aberto, que dava acesso a alguns degraus. A motode Maxi estava estacionada ao lado de uma placa gravada com o perfil deLenin — e sua calva característica.

— Você parece cansada. Você dormiu? Você trouxe o que eu pedi?— perguntou ele.

Katinka mostrou-lhe o embrulho.— Foi a coisa mais cara que já comprei, e tive que pedir permissão a

Pacha Getman.— Trezentos dólares não é nada para ele. Você disse a ele o que

era?— Achei melhor não dizer.— Bem, é nossa única esperança. Essa mulher faz qualquer coisa por

isso. — disse Maxi, segurando a mão dela. — Estou com medo de quevocê esteja ficando ainda mais obsessiva que eu com as vidas secretas decinquenta anos atrás. Você está pronta?

— Sim, mas como você vai nos fazer entrar? Pensei que você tinhadito...

— Não se preocupe, já preparei tudo. Agora lembre-se — prosseguiuele, com o rosto sério —, eu marquei um horário para você fazer umrequerimento solicitando uma petição para o exame de documentosguardados nesse arquivo. E já posso lhe dizer que nosso requerimentopara fazer uma petição será, obviamente, negado. Vá em frente, Katinka,boa sorte.

— Eu não estou me sentindo à vontade. Isso vai funcionar ou eu vouser presa?

— Uma coisa ou outra. — Ele riu. — Mas pense, duas semanas atrás,você jamais teria tentado uma proeza dessas. Mas fique confiante. Finjaque sabe o que quer e que tem direito ao que está querendo. Vejo vocêmais tarde.

Ele ligou a moto e partiu; ela ficou observando o capacete comchifres desaparecer nas ruelas ocultas. Depois, virou-se e entrou em umsalão gótico de tetos altos, cujos pilares e balcões eram embelezados porheróis esculpidos em pedra e bronze.

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No balcão de madeira, dois soldados do Ministério do Interior,adolescentes, dormitavam em cadeiras desmanteladas, mas aprumaram-sequando viram Katinka. O que tinha o rosto mais espinhento empurrou oregistro de visitantes na direção dela e examinou seu passaporte — comum risinho de escárnio, para demonstrar o poder de que fora investidopelo Estado russo. Verificou uma série de etiquetas amarelas no balcão,encontrou uma com o nome dela e escreveu alguma coisa em outraetiqueta mal impressa, que entregou a ela, conservando o passaporte.Então, com um gesto imponente, apontou para o salão de mármore atrásdele, onde estavam os elevadores, esboçando um sorriso que pretendiaser maliciosamente viril.

— Requerimentos de arquivos, quarto andar.Ela sentiu um olhar pesando sobre ela. Um jovem magricela e calvo,

com sapatos de plástico amarelos e um anoraque cinzento, olhava paraela fixamente, enquanto pendurava o agasalho em um closet. Quepessoal estranho, esses ratos de arquivo, pensou Katinka, apressando-sea entrar no elevador. Quando as portas estavam para se fechar, alguémas segurou; o rato de arquivo entrou, acenando com a cabeça para ela,nervosamente, sem dizer nada. Então vestiu uma bata amarela dearquivista, manchada como a de um assistente de laboratório. Seus olhosde pálpebras avermelhadas, ansiosos, eram aumentados pelas lentesengorduradas dos óculos.

O elevador era pequeno e eles ficaram tão próximos que o rato,constrangido, tentou esboçar uma desculpa, sem conseguir concretizá-la,pois, sempre que tentava entabular uma conversa, acabava cantarolandode lábios fechados. Katinka se espremeu contra a parede do elevador,terrivelmente perto de seu crânio empastado, coberto por raros fios decabelo incolores, manchas arroxeadas e gotas de suor. Ela pressionou obotão para o quinto andar; ele apertou o botão para o quarto andar. Ochacoalhante elevador deu um solavanco e parou. As portas se abriram eele saiu, segurando-as para ela.

— Seu andar. — Ele não estava perguntando, estava afirmando. —Requerimentos.

Mas Katinka abanou a cabeça. O rato pareceu surpreso e ficouparado ali, comicamente, enquanto as portas se fechavam. Katinka

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encolheu-se, sabendo que fora apanhada, porque, como Maxi explicara,“requerentes externos não têm permissão para visitar o quinto andar”.

O elevador se abriu em um corredor com portas de vidro fumê,algumas sovadas palmeiras de plástico e uma grande moldura — semnenhum quadro dentro. Diretoria de Estudos do Materialismo Dialético edas Questões Histórico-Polít ico-Econômicas da União Soviética, informavauma placa, na qual alguém colara um aviso com fita adesiva: ArquivoEstatal Russo para Documentos Polít ico-Administrativos SecretosEspeciais.

— O melhor seria você não encontrar ninguém lá em cima — disseraMaxi.

Assim, ela estava esperando que, a qualquer momento, o rato dearquivo pulasse em cima dela, escoltado pelos espinhentos guardasadolescentes.

Os longos corredores assoalhados, com fileiras de portas de madeira,eram quentes e silenciosos — a calefação de inverno ainda estava ligada.Katinka verificou as placas gravadas, afixadas nas portas, que informavamnomes e títulos. Dobrou à direita, depois à direita novamente, até ouvirum clangor de ópera — a famosa ária de Uma Vida para o Tsar, de Glinka.Dobrou mais uma esquina e a música foi se tornando cada vez mais alta, àmedida que ela se aproximava da última porta.

Agrippina Constantinovna Begbulatov, Diretora de Manuscritos,informava a placa. Um nome e tanto. Katinka ficou escutando diante daporta: a música atingia um clímax. Deveria ter marcado uma visita? Não,Maxi dissera que isso seria perigoso.

Ela bateu na porta. Nenhuma resposta. Bateu de novo. Nada.Amaldiçoando os dinossauros empatadores, como Satinov, os burocratasinsanamente rígidos, as frustrações do projeto — apenas abriu a porta.

Uma mulher enorme e bastante idosa, de pele muito branca, estavadeitada em um divã, usando apenas as roupas de baixo. Seus olhosestavam cobertos por uma máscara com os dizeres: American Airways.

O quarto estava quente, a música saía de um moderno toca-CDs ehavia um perfume pesado no ar. Katinka mal teve tempo de observar doisventiladores zumbindo, pilhas de manuscritos amarelados e duas coxasmontanhosas transbordando sobre meias rendadas, antes que a mulher

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tirasse a máscara e fosse em sua direção.— Como ousa se intrometer aqui? Quem é você? Você não tem

educação? É algum tipo de filistéia sem cultura? A mastodôntica mulherolhou para Katinka de cima a baixo, como se nunca tivesse visto umagarota de jeans e botas em seu sacrossanto arquivo. — Quem lhe deupermissão para me interromper?

— Humm, ninguém. — Katinka sentiu-se momentaneamentedesorientada.

— Então, por favor, saia e não volte mais! — gritou a mulher, cujosfartos seios leitosos punham à prova até mesmo seu reforçado sutiã.

— Não, não. — Katinka agora lutava, enrubescendo e gaguejando. —Só me pediram para entregar uma coisa para você. Aqui está... paravocê.

Ela ergueu o embrulho.Furiosamente, a mulher arrancou a rede que envolvia seus cabelos.— Eu não estou esperando nada — disse ela, olhando para o

embrulho com olhinhos astutos.Katinka tinha pouco a perder. Tentou não olhar para a cinta-liga, para

as calcinhas cor de carne ou para qualquer outro dos vistosos paramentosque estavam diante dela.

— É um presente da... — ela olhou para um lado e outro docorredor, sugerindo que a dama poderia não gostar que seus colegastestemunhassem a entrega do embrulho — bem, eu preferia falar comvocê em particular.

A mulher franziu a testa, aparentemente se lembrando de ondeestava e do que estava usando.

— Um minuto! — Empurrou Katinka para fora e fechou a porta. Amúsica parou. A porta se reabriu.

— Sou Agrippina Begbulatov — declarou a mulher, estendendo amão firme e suada. — Gosto de dar um cochilo no meio do dia. Por favor,sente-se!

Katinka sentou-se no divã vermelho, que ainda irradiava o calor doopulento corpo da diretora de manuscritos. Agrippina usava ruge e batomescarlate, um vestido azul, estilo soviético, com renda sobre o decote, euma pirâmide de lantejoulas em cada quadril. Katinka reconheceu os

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cabelos tingidos de acaju e o proeminente penteado das grandes damasda era Brejnev.

— Você sabia que estou encarregada de recolher, catalogar eguardar as memórias dos membros do partido neste arquivo especial? —disse Agrippina, sentando-se em um confortável sofá.

— Agrippina Constantinova, obrigada por ter me recebido — disseKatinka.

— Foi um prazer — disse Agrippina, com fria amabilidade e altivapaciência.

Katinka percebeu que teria um segundo para se explicar — ou paraacabar tendo que enfrentar os órgãos. Quando começou a falar, aindanão tinha decidido que mentira contar (na verdade, nunca tinha contadouma mentira, nenhuma séria, jamais) e sabia que qualquer mentira corriao risco de ser desmentida, pois todos os comunistas de alto escalão seconheciam, haviam frequentado a escola juntos, depois o Instituto deLínguas Estrangeiras, casavam-se uns com os outros, viviam próximos emsuas dachas e criavam a próxima Geração Dourada. Mas, quandopercebeu, estava ouvindo a própria voz, que soava diferente, uma vozmentirosa.

— Camarada Agrippina Constantinova — começou ela —, estoutrazendo esse presente de... Mariko Satinov. Você a conhece, é claro!

Katinka apertou os dentes, tentando esconder seus tormentosinternos.

— Mariko? — perguntou Agrippina, inclinando a cabeça.— Sim.— Eu conheço o camarada Hércules Satinov — disse Agrippina com

reverência. — Não muito bem, é claro, mas me encontrei com ele em umconcerto no Conservatório. E em decorrência do meu trabalho aqui,naturalmente.

— Naturalmente — concordou Katinka. — Mas você não conheceMariko?

Agrippina abanou a cabeça.— Mas ela me mandou um presente?— Sim, sim, como um meio de me apresentar a você. Ela conhece

você de nome, camarada, por causa do seu trabalho importante e

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dedicado com o pai dela, o camarada marechal Satinov.As narinas de Agrippina se dilataram generosamente enquanto seu

peito parecia inflar de orgulho.— O camarada Satinov mencionou meu nome?— Ah, sim. Eu sou amiga da família e ele, com certeza, mencionou

você quando estava me contando como você o ajudou a escrever suasmemórias. Ele disse que não poderia ter feito o trabalho sem você.

— Bem, os lendários camaradas Gromiko e Mikoian, com quem eu tivea felicidade de trabalhar em seus livros, disseram que as memórias delenão teriam sido escritas se não fossem as minhas habilidades editoriais.

— Isso não me surpreende nem um pouco — disse Katinka,descobrindo que uma mentira, quando funciona, é uma coisaestimulante, que logo leva a outras mentiras. — Na verdade, o camaradaSatinov me disse: “Jovem camarada, visite Agrippina Constantinova,mestre dos editores, guardiã da chama sagrada, e ela vai lhe mostrarcomo trabalhamos nas memórias, vai lhe mostrar os rascunhos.”

— Você é comunista, camarada...?— Katinka Vinski. Sim, eu fui uma Jovem Pioneira, depois me filiei à

Komsomol, e agora sou uma historiadora escrevendo um artigo para ocamarada Satinov, sobre seu papel no ataque a Berlim.

— Ah! Restam tão poucos camaradas jovens, como é animadorencontrar um deles — disse Agrippina. Ela fez uma pausa e parou desorrir. — Mas por que o camarada Satinov não me telefonou? Ele sabeque deveria marcar uma visita...

— Ele está muito doente — disse Katinka. — Câncer de pulmão.— Eu soube. Mas é melhor eu telefonar para a filha dele, essa Mariko,

e verificar... — ela se moveu em direção aos telefones, na mesa emforma de T.

— Espere, Agrippina Constantinova — disse Katinka, um tantofreneticamente. — Mariko está tomando conta dele hoje... no hospitalKremlevka. É por isso que vim sem marcar visita. O camarada Satinov, emum momento de lucidez, disse a Mariko para dar um certo presente avocê — e você saberia que o presente tinha vindo dele. — E deu unstapinhas no embrulho.

— É para mim?

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— Ah, sim.— De Mariko Satinov e do marechal? — Seus olhinhos de besouro

estavam fixos no presente.Sacudindo o traseiro, Agrippina escorregou para a borda do sofá,

para ficar mais perto do embrulho, que Katinka protegia com as duasmãos.

— Você tem as memórias completas do marechal Satinov aqui, omanuscrito? — Katinka estava seguindo as instruções de Maxi.

— Sim, menina, eu tenho, naquela pilha. — Com a mão em quebrilhava um anel de pedra azul, apontou para as pilhas de manuscritosamarelados que cobriam cada centímetro do aposento. — Você deveentender que os nossos famosos camaradas ditaram as memórias paraseus assistentes, ou para mim em pessoa. Depois, minha tarefa foi editaro livro para o partido, de acordo com a orientação do Comitê Central,deixando de fora qualquer material que pudesse confundir o público. Nemtodos os episódios das memórias do marechal Satinov foram incluídos naversão final. Isso também ocorreu com as memórias dos nossos outroslíderes.

— O marechal Satinov faz muita questão de que eu examine essasseções... para que eu possa apreciar o seu trabalho editorial. Antes deficar doente demais, nos últimos dias, ele disse a Mariko para lhe dar estepresente como mais um sinal da sua gratidão. — Katinka segurou oembrulho. — Você tem o manuscrito?

— Eu realmente devo telefonar para a casa do marechal, ou falarsobre isso com o diretor do arquivo...

— Se você quiser — disse Katinka. — Mas então vou ter que dar opresente a outra pessoa.

Isso resolveu o assunto. Pousando sobre o tapete os joelhosinchados e com covinhas, e se inclinando sobre as pilhas de papel —exibindo novamente as presilhas de sua cinta-liga —, Agrippina começou afalar consigo mesma, baixinho, dizendo o nome de cada manuscrito.Finalmente, em triunfo, ergueu as memórias de Satinov. Respirandopesadamente e afogueada, sentou-se novamente no sofá e fixou osolhos no embrulho.

Katinka aguardou, esperando que Agrippina lhe entregasse o

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documento, agora pousado confortavelmente em seu colo, mas nadaaconteceu. Agrippina olhou para ela, erguendo as sobrancelhasavermelhadas e depiladas. Katinka devolveu-lhe o olhar. A atmosfera noaposento se modificou, assim como o ar se modifica quando está prestesa chover.

— Ah, sim, Agrippina Constantinova, quase me esqueci — disseKatinka finalmente. — Um presente dos Satinov — disse ela, entregandoà mulher o pesado embrulho.

Com um largo sorriso, Agrippina abriu o embrulho e dele retirou umaenorme garrafa de Chanel Nº 5, que custara trezentos dólares.

— Meu favorito! — exclamou Agrippina, abraçando a garrafa. — Comoo marechal se lembrou?

— Posso ver o manuscrito? — perguntou Katinka.— Somente neste aposento — respondeu Agrippina. — Há alguns

fragmentos que não foram publicados. Ninguém nunca leu isso, a não sereu.

Enquanto pegava o maço de folhas, Katinka sentiu uma espécie depremonição.

— Ponha seus pés sobre o divã — disse Agrippina. — Aproveite o arfresco dos ventiladores e a música de Glinka. Pode tomar notas.

Katinka relanceou os olhos pelas páginas, rapidamente. Muita coisalhe era familiar, estava no volumoso livro de Satinov: “Como conquistamosas Terras Virgens”, “Construindo casas para os trabalhadores soviéticos”,“Criando as Estações de Máquinas e Tratores”, “Uma conversainteressante com o camarada Gagarin sobre nossa conquista do espaço” ecoisas assim... Outra perda de tempo, pensou Katinka. Mas então,enquanto Agrippina friccionava os pulsos, o pescoço e até as orelhas como precioso néctar de Madame Chanel, encontrou uma coisa que fez seucoração bater forte.

21

Uma conversa com J.V. Stalin, janeiro de 1940

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por Hércules Satinov

Certa noite, cerca das duas horas da manhã, eu estava emminha mesa de trabalho, na Praça Velha, quando o telefonetocou.

— Aqui é Poskrebitchev. O camarada Stalin quer ver você nadacha. Tem um carro esperando por você aí em frente.

Stalin me protegia. Nós havíamos feito uma aliança com aAlemanha nazista, mas sabíamos que a guerra logo viria. Opartido tinha me dado ordens para supervisionar a criação denovos tanques e artilharia para o Exército Vermelho. Eu já foraconvidado a ir à dacha por duas vezes, para discutir meutrabalho. Então, não senti medo, embora, quando alguém ia seencontrar com Stalin, nunca soubesse ao certo como aquilo iriaacabar.

O carro tinha correntes nas rodas, para não escorregar nogelo — fazia menos vinte graus, era um inverno realmentegelado. Nós seguimos pela autoestrada Mojaisk e dobramos emuma pista que atravessava um bosque de carvalhos, pinheiros,abetos, bordos e bétulas. Podíamos avistar alguns guardas sedestacando na neve.

Passamos por dois portões de segurança. Finalmente, umaporta de aço pintada de verde se abriu, e lá estava a verdadeiracasa de Stalin, a dacha de Kuntsevo, uma modesta casa de doisandares, recentemente pintada de cáqui, para o caso de umaguerra.

Um guarda com o uniforme azul do NKVD nos recebeu àporta e me levou para dentro. Deixei meu casaco no cabide. Oescritório de Stalin era à esquerda, repleto de livros e jornais.Mas Stalin surgiu pela direita, saindo da biblioteca cheia deestantes, de túnica cinzenta e botas.

— Boa noite, bicho — disse ele baixinho, sorrindo. Elesempre me chamava de bicho, que significa “garoto” emgeorgiano. — Entre, tome um drinque e coma alguma coisa.Você já comeu?

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É claro que eu já tinha comido, mas, naquele tempo, todosnós trabalhávamos de acordo com os hábitos noturnos de Stalin.

— O camarada Beria está aqui e os outros estão a caminho.Ele me conduziu a uma grande sala, com uma enorme mesa

de jantar, pesadas cadeiras e divãs. O teto e as paredes eramforrados de pinho careliano e exibiam pôsteres de artistas russos.Na extremidade da mesa, havia um bufê, um banquetegeorgiano, com pratos, para que nos servíssemos.

Lavrenti Beria estava próximo à mesa, em pé, segurando umcopo de vinho. Cumprimentou-me em georgiano. Juntamentecom Stalin, éramos três georgianos na gelada Rússia!

Servindo um pouco de vinho para mim e um pouco para simesmo, Stalin sentou-se à mesa. Sentei-me entre ele e Beria.

— Então — disse Stalin, acendendo um cigarro HerzegovinaFlor —, o que aconteceu com o caso Sashenka?

A menção do nome dela tinha sempre um forte efeito sobremim — eu esperava que fosse invisível.

— Ela parecia uma mulher soviética tão decente — disseStalin. — Eu me lembro de vê-la no gabinete de Lenin, emPetrogrado... — Sacudiu a cabeça tristemente. — Em nossomundo, as pessoas conseguem usar máscaras durante décadas.

Eu olhei para Beria.— Ela confessou tudo — disse Beria.— O julgamento correu bem — acrescentei.— Você a conhecia bem, não, garoto? — disse-me Stalin.Eu assenti com a cabeça.— Todos eles cederam e mostraram arrependimento? —

perguntou Stalin, colocando o resto do cigarro no fornilho docachimbo e tirando baforadas. Como foi o final?

— Vânia Palitsin cedeu — disse Beria, rindo asperamente. —Ele enfrentou tudo muito bem, e gritou “Viva o camaradaStalin!” nos seus últimos momentos.

Stalin deu umas baforadas no cachimbo, semicerrando osolhos dourados.

— Mas Mendel, que velho maluco! — prosseguiu Beria. — Ele

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se recusou a ceder.— Ele sempre foi obcecado por regras — disse Stalin,

afetuosamente.— Eu fiz com Mendel o que você me pediu — disse Beria.Stalin e Beria trocaram um olhar de cumplicidade — eu sabia

que eles adoravam suas intrigas. Uma vez ouvi Beria falandosobre arranjar um acidente de carro, fatal, para um camaradacélebre demais para ser preso e executado.

— Garoto, você está interessado em ouvir sobre Mendel? —perguntou-me Stalin.

— Sim — disse eu, embora, na verdade, receasse isso.— Diga a ele, Lavrenti — ordenou Stalin.— Eu disse a Mendel: “Confesse seus crimes e o camarada

Stalin garantirá sua vida.” E você sabe o que Mendel fez? Elegritou: “Nunca! Sou inocente e serei um bolchevique honestoaté morrer!” Ele cuspiu em mim e, depois, no rosto de Kobilov...

— Isso foi um erro — refletiu Stalin.— Kobilov enlouqueceu e lhe deu uma surra de verdade. E

foi isso.— Quanto orgulho! Quanto orgulho tolo! — Stalin olhou

para mim. — Mas você tratou do caso, garoto?— Sim, camarada Stalin. Tratei como você me pediu.Mas não pude deixar de lançar um olhar carrancudo para

Beria. Stalin era tão sensível que adivinhou na mesma hora.— O que houve? — perguntou ele.— Nada de mais — disse Beria, e chutou minha canela por

baixo da mesa.Por mais perigoso que Beria fosse, porém, nunca era uma

boa ideia esconder qualquer coisa de Stalin.— Houve uma irregularidade, camarada Stalin, em uma das

execuções — disse eu, finalmente, sentindo-me enjoado.— Uma irregularidade? — repetiu Stalin friamente.Beria me deu outro chute na perna, mas já era tarde.— O NKVD tem em seus quadros profissionais devotados,

mas esse foi um raro exemplo de infantilismo filisteu — disse eu,

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começando a suar.— Você soube disso, camarada Beria?— Eu ouvi falar disso, camarada Stalin, e estou investigando.— Eu pensei que você tinha limpado os órgãos dessas

cagadas! O culpado tem que ser punido. — Ele nos perscrutouatentamente. — Está bem. Camaradas Beria e Satinov, formemuma comissão com os camaradas Chkiriatov, Malenkov, Merkulov.Quero um relatório rápido.

Nesse momento, ouvimos o ronco de carros chegando eportas batendo. Stalin ficou de pé e foi receber os membros doPolitburo, que vinham jantar.

Beria e eu ficamos sozinhos.— Seu filho da puta — disse Beria, dando-me um empurrão

—, por que você tinha que mencionar isso para ele, porra?Mas, então, Molotov, Vorochilov e outros líderes se juntaram

a nós no salão de jantar.Quando estávamos nos servindo, Stalin surgiu ao meu lado,

bem perto de mim.— Aquela linda menina, Sashenka — murmurou ele. —

Quantas decisões terríveis a gente tem que tomar...

22

— Já terminou, querida? — perguntou Agrippina.Enquanto o perfume parisiense tomava conta do ar, Katinka digeria a

revelação de Satinov. Maxi tinha razão; ela estava ficando obcecada comaqueles estranhos — pessoas que nada tinham a ver com ela, mas cujashistórias a consumiam. Ansiava para descobrir o que acontecera a elas,mas as páginas suprimidas das memórias de Satinov haviam suscitadoainda mais perguntas. O mais triste de tudo é que, agora, ela tinhacerteza de que Sashenka estava morta. Teria que telefonar a Roza paralhe dizer que seus pais tinham sido assassinados pelos facínoras de Stalin.O marido de Sashenka fora fuzilado gritando “Viva o camarada Stalin”, e o

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tio dela, Mendel, não morrera de ataque cardíaco, mas fora morto acacetadas.

Mas como Sashenka morrera? Qual fora a “irregularidade”? Teria sidoestuprada pelos guardas, torturada até a morte, morrera de fome?Somente uma pessoa poderia lhe dizer: ela tinha que correr até Satinov.Por mais furioso que ele estivesse com ela, por causa da noite anterior,ela tinha que vê-lo antes que ele morresse.

— Obrigada — conseguiu dizer a Agrippina.— Por favor, leve meus cumprimentos ao camarada marechal e sua

filha, e agradeça a eles por terem se lembrado de mim, com estepresente.

— Sim, claro. — Katinka já estava a caminho do elevador.Lutando contra as lágrimas, ela esperou alguns minutos, mas o

elevador não vinha. De repente, percebeu que não estava sozinha. Orato de arquivo, que tinha subido com ela até o quarto andar, estava depé a seu lado, apoiado em um carrinho de arquivos e cantarolando.Finalmente, ele pigarreou.

— Esse elevador está quebrado. Você vai ter que usar o outro.Katinka notou que ele dissera “vai ter” — mas estava tão desolada

que não deu importância. Ele continuou a cantarolar, enquanto elesdavam a volta no prédio retangular, os sapatos amarelos rangendo.Chegaram então a um elevador sujo e enferrujado, com serragem nopiso, que resfolegou e começou a descer.

O que deveria dizer a Roza? Katinka sentiu-se tomada por uma ondade desespero. Satinov não a receberia mais. Mariko a colocaria para fora.E ela nunca encontraria Carlo.

Finalmente o elevador sacolejou e parou. Mas eles não estavam nosaguão; estavam em algum lugar no subterrâneo. O rato de arquivosegurou a porta.

— Por favor — disse ele.— Mas esse é o andar errado — replicou ela.O rato de arquivo olhou para um lado e para outro de um corredor

subterrâneo.— Eu tenho alguns documentos para lhe mostrar.— Desculpe — disse Katinka, subitamente amedrontada e alerta. —

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Eu não conheço você. Tenho que... — Ela apertou o botão para oprimeiro andar, mas o homem segurou a porta.

— Eu sou Apostollon Chcheglov — disse ele, como se esperasse queela conhecesse o nome, que significava “pintassilgo”.

— Estou atrasada. Tenho que correr — insistiu ela, apertando obotão sem parar.

— É melhor cantar bem como pintassilgo do que mal como rouxinol— disse ele, citando a fábula de Krilov.

Katinka parou e olhou para ele.O sorriso de Chcheglov era adornado por dois dentes de ouro.— Você se lembra de quem disse isso para você? — perguntou ele.

— Vou lhe dar uma pista: Utesov e Tseferman.Claro, a estranha despedida de Kuzma.— Nós, arquivistas, nos conhecemos uns aos outros. Somos uma

sociedade secreta. Venha — disse ele, mostrando-lhe um corredor bemiluminado, de concreto sólido. — Aqui é um dos lugares mais seguros domundo, Katinka, se posso chamar você assim. Aqui é onde a história denossa nação é guardada em segurança.

Ainda nervosa, Katinka deixou-se levar. Chegaram a uma porta deaço pintada de branco, como a entrada de um submarino ou de umabrigo nuclear. Chcheglov girou um grande disco cromado, abriu trêsdiferentes fechaduras e digitou um código em um painel eletrônico. Aporta se moveu para o lado e abriu-se totalmente: tinha cerca desessenta centímetros de espessura.

— Isso pode aguentar um ataque nuclear. Se os americanos nosatacarem com suas bombas H, você, eu, o presidente no Kremlin e osgenerais no quartel-general seríamos os únicos sobreviventes em Moscou.

Chcheglov abriu outra porta reforçada, tão reforçada quanto aprimeira. Katinka olhou para trás. Sentia-se terrivelmente vulnerável — ese a KGB tivesse visto Kuzma lhe entregando os documentos e o tivesseobrigado a atraí-la até ali?

Sempre cantarolando em surdina, Chcheglov entrou em um pequenoescritório. Pilhas de pastas estavam bem-arrumadas em sua escrivaninha.Uma grande mesa em frente estava coberta por um mapa em relevo,mostrando vales, rios e casas, povoados por soldados de lata, canhões,

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bandeiras e cavalos — todos caprichosamente pintados.— Eu mesmo fabriquei e decorei todos eles. Você quer que eu lhe

mostre? Está com pressa?Katinka nunca estivera com tanta pressa. Satinov estava morrendo,

levando com ele o segredo de Sashenka, e ela tinha que chegar até eleo mais rápido possível. Mas e se o rato de arquivo tivesse os documentosde que ela precisava? Ela sabia que os arquivos fechados e osdocumentos mais secretos estavam guardados ali. Deveria haver ummotivo para que ele lhe tivesse pedido que o seguisse. Ela decidiu seragradável.

— Eu adoraria conhecer melhor os seus soldados de brinquedo —disse.

— Não são brinquedos. Isso é uma reconstituição histórica — explicouele —, precisa em todos os detalhes, até a munição dos canhões e asbarretinas dos Dragões. Você é historiadora, pode adivinhar qual é abatalha?

Katinka circundou a mesa, enquanto Chcheglov, com seus sapatosde plástico amarelos, saltitava de prazer.

Ela reparou na Grande Armée napoleônica, de um lado, e nosregimentos de Guardas Russos, de outro.

— É 1812, claro — disse ela, lentamente. — Este deve ser o Redutode Raevski, aqui estão as forças de Barclay de Tolly, aqui, o príncipeBragation, diante dos generais franceses Murat e Ney. O próprioNapoleão, com a Guarda Imperial, aqui. É a batalha de Borodino! — disseela, triunfante.

— Viva! — gritou ele. — Agora deixe eu lhe mostrar onde guardamosnossos documentos. — Ele abriu mais uma porta de aço, que dava acessoa um salão subterrâneo repleto de armários de metal, com milhares emilhares de arquivos numerados. — Muitos desses arquivos aindapermanecerão fechados muito depois da nossa morte. Esse é o trabalhoda minha vida e eu não lhe mostraria nada que achasse que poderiacolocar em risco a segurança da Pátria. Mas a sua pesquisa é apenas umanota de rodapé, embora seja uma nota de rodapé muito interessante.Por favor, sente-se à minha mesa e eu vou lhe mostrar seu material.

— Por que você está me ajudando? — perguntou ela.

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— É apenas um favor para um respeitado camarada arquivista — etio. Sim, Kuzma é meu tio. Nós, arquivistas, somos todos parentes: meupai trabalha no Arquivo Estatal e meu avô trabalhava lá antes dele.

— Uma dinastia imperial de arquivistas — disse Katinka.— Aqui entre nós, é exatamente como eu vejo as coisas! —

Chcheglov sorriu, os dentes de ouro faiscando na luz elétrica. — Vocênão vai poder copiar nada, nem mesmo em um caderno de anotações.Lembre-se, menina, nada disso jamais poderá ser publicado. Concorda?

Katinka assentiu e sentou-se à mesa. De uma prateleira, ele retirouuma pilha, não muito volumosa, de pastas de capa bege. Abriu umadelas, lambeu os dedos e virou algumas páginas.

— Cena um. Uma lista com 123 nomes — cada um com um número— assinada por Stalin e por membros do Politburo, em 9 de janeiro de1940.

O coração de Katinka disparou. Uma lista de execuções. Chcheglovcantarolava, enquanto corria o dedo pela lista.

82. Palitsin, I.N.83. Zeitlin-Palitsin, A.S. (Camarada Raposa)84. Barmakid, Mendel

Ela reparou que a lista era dirigida a Stalin e ao Politburo, assinadacom tinta verde e letra minúscula por L.P. Beria, Narkom NKVD.

O dedo de Chcheglov viajou pelos rabiscos em volta dos nomesdatilografados:

De acordo. MolotovEsmaguem como cobras esses traidores. Voto pela Vichka!KaganovitchFuzilem como cães esses canalhas e essas prostitutas. Vorochilov

E mais decisivamente:

Fuzilem todos.J. St.

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— Então eles foram sentenciados — disse ela —, mas será quetodos...?

— Cena dois.Chcheglov empurrou o documento pela mesa, com um gesto

floreado, virou-se de novo para a prateleira, procurou durante algunsmomentos e, então, apresentou-lhe um memorando deteriorado, que —nos descuidados rabiscos e borrões — evocava o tédio opressivo, asmesas manchadas, os dedos engordurados e a dura rotina das prisões.

Ao Camarada Comandante do Objeto Especial 110, Goletchev21 de janeiro de 1940Transferência para o major V.S. Blokhin, Chefe de Operações deComando, dos abaixo relacionados prisioneiros, condenados aofuzilamento...

Os 123 nomes da lista estavam datilografados abaixo. Sashenka eVânia estavam perto do topo. Um maço com cerca de cem folhas,borradas e amarrotadas — fichas pro forma, com nomes e datas — estavaanexado à lista, preso por um grosso barbante que passava por umburaco feito no maço.

Com as mãos trêmulas, Katinka encontrou a ficha de Vânia Palitsin.Conforme as ordens do Camarada Kobilov, Narkom Assistente NKVD,

o abaixo-assinado, em 21 de janeiro de 1940, às 4h41, executou asentença de fuzilamento em... nesse ponto, os garranchos de umcarrasco semialfabetizado, meio bêbado, acrescentaram o nome: Palitsin,Ivan. O homem que executara a sentença era V.S. Blokhin. Maxi falara aKatinka sobre ele: geralmente usava um avental de açougueiro e umcapuz nas execuções, para proteger dos jatos de sangue seu adoradouniforme do NKVD.

Katinka sentiu-se na presença do mal e da insignificância da vida. Nãochorou, estava prostrada demais para isso. Mas ficou tonta e quasedesfaleceu.

As outras fichas eram iguais. Ela só conseguia pensar que aquelesgarranchos tão descuidados significavam o fim de uma vida e de umafamília. Mal conseguia pensar em Sashenka. Começou então a virar as

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páginas, rápido demais, quase rasgando as folhas.— Não consigo encontrá-la — disse, com voz trêmula.Chcheglov olhou para o relógio.— Não temos muito tempo, antes que meu colega retorne. Agora

vamos retornar uns seis meses, para quando o caso começou. Dê umaolhada nisso. Cena três.

Ele colocou diante dela um pedaço de papel amarelado, com umtimbre em letras negras: GABINETE DE J.V. STALIN. Toda a superfícieestava coberta de rabiscos e sombreados em grossos crayons verdes evermelhos, esboços de lobos e palavras aparentemente escritas poracaso. Mas o secretário de Stalin registrara a data e a hora exatas: 7 demaio de 1939. Enviado para os arquivos, 23h42. Era a noite em que Beriamostrara a Stalin a transcrição de Sashenka e Bênia, juntos no Metrópole.

Katinka olhou para as lentes grossas e engorduradas dos óculos deChcheglov, que refletiam seus próprios olhos ansiosos; depois olhou paraos papéis que tinha diante de si. Lentamente, começou a compor odrama daquela noite, que desgraçara Sashenka e toda a sua família. Elasabia que Stalin tinha lido as transcrições das gravações e que detestaraaquilo, chamando Sashenka de moralmente corrupta... como umaprostituta. Tirou o caderno de anotações de sua bolsa e verificounovamente a ordem cronológica das visitas daquela noite.

22h L.P. Beria.Sai 22h3022h30 H.A. Satinov.Sai 22h4522h40 L.P. Beria.Sai 22h52

Quando Beria deixou o gabinete de Stalin, às 22h30, Satinov estavaesperando na antessala. Stalin mandou que Satinov entrasse e lheperguntou pelo caso amoroso de Sashenka.

Katinka perscrutou a página com os rabiscos de Stalin e, com horrorcrescente, começou a entender.

As palavras Perguntas para o Camarada Satinov: Sashenka em São

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Petersburgo estavam no meio da página, rodeadas por círculos equadrados; nas proximidades, havia uma cabeça de raposa habilmentedesenhada, sombreada em vermelho e intitulada Camarada Raposa.Satinov deve ter respondido às perguntas calmamente, pois Stalin haviagaratujado suas respostas: Velhos amigos, devotados bolcheviques.

Stalin chamou Beria novamente e ambos intensificaram ointerrogatório de Satinov. As palavras seguintes mal eram legíveis.

— Eu não consigo ler isso — disse ela.Seguindo as palavras com o dedo, o arquivista leu em voz alta:

Raposa em São Petersburgo confiável / não-confiável?L.P. Beria: Molotov e Mendel em São Petersburgo?

Katinka percebeu que eram perguntas a Satinov. Começou aimaginar sua luta pela sobrevivência naqueles cinco minutos. O que elepoderia dizer? Deve ter ficado pálido, coberto de suor, com a menterodopiando. Tinha uma esposa amorosa e um bebê recém-nascido. Eracomunista devotado e homem ambicioso. Suas respostas durante aquelescinco minutos poderiam salvar sua vida e construir sua carreira, ou destruirsua vida e as vidas de sua mulher e do bebê.

Quando Stalin perguntou sobre a “confiabilidade” de Sashenka emSão Petersburgo, um nome deve ter vindo à mente de Satinov: capitãoSagan, a quem conhecia apenas pelas informações transmitidas porMendel, no final de 1916.

Conheceria Stalin a missão de Sashenka — de transformar Sagan emagente duplo —, e saberia que a missão fora ordenada pelo Comitê deSão Petersburgo? Se falasse sobre aquilo e ninguém soubesse de nada,Sashenka poderia ficar marcada. Mas isso era improvável, já que Saganmorrera havia 22 anos.

Mas e se Molotov ou Mendel — as únicas pessoas, além de Sashenka,que conheciam a operação com Sagan — já tivessem discutido o assuntocom Stalin? Satinov seria acusado de esconder o assunto do partido, dopróprio Stalin. Isso era impensável. Significaria a morte.

Katinka olhou para os hieróglifos em crayon, que revelavam a febrilroleta-russa que, cinquenta anos mais tarde, ainda estaria determinando

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os destinos de algumas pessoas.Então, o que fez Satinov? Entrou em pânico e falou mais do que

pretendia? Ou agiu fria e calculadamente?— Provavelmente nunca saberemos. — Ela percebeu que estava

falando em voz alta.— Mas sabemos que ele disse isso... — retrucou Chcheglov, com o

dedo indicando as palavras que Stalin escrevera a seguir, em suaentulhada folha de papel: Hércules S: Cpt. Sagan. Petersburgo. SAGAN.

Katinka ficou gelada. Então Satinov tinha falado a Stalin e Beria sobreSashenka e o capitão Sagan, da Okhrana. Sentiu piedade de Satinov,depois raiva, depois piedade novamente. Ele poderia ter respondido deforma diferente se soubesse que o capitão Sagan estava vivo — e em umdos campos de Beria, com o nome registrado meticulosamente na lista deprisioneiros do NKVD. Em questão de horas, Sagan estava a caminho deMoscou, onde Kobilov o espancaria para que testemunhasse contraSashenka.

— Se Satinov tivesse sido corajoso — murmurou ela —, eles poderiamter sobrevivido.

— Ou ele também poderia ter enfrentado a Vichka — lembrouChcheglov. — Já viu o suficiente?

Ele começou a juntar os papéis, guardando-os em seus organizadosarquivos, onde repousariam, talvez para sempre.

— Então Satinov desgraçou seus amigos — refletiu Katinka —, masarriscou tudo para salvar os filhos deles. Isso o redime?

Chcheglov fez um gesto em direção ao elevador, no afã de tirá-la deseu escritório, mas ela segurou seus braços.

— Espere, está faltando uma coisa. Stalin criou uma comissão parainvestigar a execução de Sashenka. Onde está o relatório?

— Havia um número para esse arquivo — disse Chcheglov,conduzindo-a para os elevadores. — Mas o arquivo não está aqui.Desculpe, mas somente Deus sabe de tudo.

Ele pressionou o botão para chamar o elevador.— Obrigada por me mostrar isso — disse ela, beijando-o antes de

partir. — Você foi muito gentil. Nem consigo explicar o que isso significapara mim.

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— Você se preocupa demais — disse ele, apertando as mãos dela.Enquanto entrava no elevador, ela reexaminou mentalmente a

combinação da parte suprimida das memórias de Satinov com aenigmática anotação de Stalin, Bicho para tratar, que estava nos papéisque Maxi lhe mostrara nos arquivos do Partido.

Bicho — garoto em georgiano — era o apelido que Stalin dava aSatinov. “Tratar” era a palavra utilizada por Stalin para o que desejava queele fizesse: supervisionar a destruição de uma família que Satinov amava.

— Meu Deus — disse ela ofegante, finalmente entendendo tudo. —Satinov presenciou a morte dela. O que fizeram com ela?

23

Saindo às pressas do Arquivo, Katinka caminhou até a praça Maiakovski,onde fez sinal para um Lada, que a levou à rua Granovski. Fervendo deimpaciência, apertou cinco campainhas de uma vez. A porta da rua seabriu e ela subiu correndo as escadas até o apartamento de Satinov, cujaporta estava aberta, como na visita anterior. Quando ela entrou, viuMariko em pé na sala, sob o candelabro de cristal.

— Mariko, eu sei o que você está pensando, mas por favor... eutenho que contar a ele o que descobri. Ele me ajudou a cada passo docaminho, sem que eu percebesse. Eu sei que ele vai querer falar comigoagora.

Katinka parou para respirar. Mariko não a colocou para fora. Não disseabsolutamente nada e Katinka, que nunca olhara realmente para ela,notou que Mariko não parecia zangada. Seu rosto escuro e afilado estavadesesperadamente cansado.

— Entre — disse ela baixinho. — Você pode vê-lo. — Ela saiu da salade estar e entrou em um corredor. Katinka a seguiu, olhando ansiosapara a frente. — Pode entrar.

Satinov estava na cama, apoiado em travesseiros, com os olhosfechados. Seu rosto, seus cabelos, seus lábios tinham a cor de cinzas.Uma enfermeira estava ao lado do leito, ajustando o cilindro de oxigênio e

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a máscara de plástico. Mas, quando as viu, cumprimentou-as rapidamentee saiu do quarto.

Katinka, que tinha tantas coisas para perguntar, sentiu-se insegura arespeito do que deveria fazer. A respiração de Satinov era entrecortada.Seu peito às vezes se contraía espasmodicamente; em outras ocasiões,ele parava de respirar por alguns segundos. Suava com o esforço — e demedo. Katinka sabia que deveria sentir pena daquele homem moribundo,mas, em vez disso, sentia apenas fúria e frustração. Como ele podiaescapar dela assim? Como podia ser tão cruel, a ponto de deixar Roza,sem lhe contar o que acontecera com a mãe dela?

Katinka olhou para Mariko, que apontou uma cadeira baixa ao lado dacama.

— Você pode falar com ele — disse Mariko. — Por um ou doisminutos. Ele perguntou onde você estava. Estava pensando em você ena sua pesquisa. Foi por isso que deixei você entrar.

— Ele pode me escutar?— Acho que sim. Ele fala, às vezes, seus lábios se mexem. Ele falou

um pouco sobre minha mãe, mas é difícil entender. Os médicos dizem...Nós não temos certeza.

Mariko se encostou na ombreira da porta, alongou as costas eesfregou o rosto.

Katinka inclinou-se sobre o leito e olhou para Mariko.— Vá em frente — disse ela.Katinka segurou a mão de Satinov.— É Katinka. A sua pesquisadora. Eu disse “sua” pesquisadora porque

você estava com todas as cartas o tempo todo e me mandou para lá epara cá... Se você estiver escutando, me deixe saber, de alguma forma.Você pode apertar minha mão, ou apenas piscar. — Ela esperou. Ele fezmais uma desesperada tentativa para respirar, estremeceu, e ficou imóvelnovamente. — Eu sei que você amava Sashenka e Vânia, sei que vocêfez uma coisa terrível e sei como você salvou os filhos deles. Mas o queaconteceu com Sashenka? O que você viu? Por favor, me diga como elamorreu.

Não houve reação. Katinka pensou que a personalidade daquelevelho se caracterizava pela ambiguidade. Ele a ajudara e encorajara, mas

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também a iludira e obstruíra. Assim como tinha desgraçado Sashenka esalvado seus filhos. Ela se afligia por ele, mas, ao mesmo tempo, jamaissentira tanta raiva.

Ele permaneceu imóvel por alguns minutos. Então começou a lutarpara respirar, agarrando as cobertas da cama, contorcendo o corpo paraobter oxigênio. A enfermeira retornou, colocou a máscara de oxigêniosobre seu rosto e lhe aplicou uma injeção; ele se acalmou de novo.

— Daqui a pouco, vou chamar meus irmãos — disse Mariko. — Elesestão dormindo. Ficamos acordados a noite toda.

Katinka se levantou e foi até a porta.— Lamento muito — disse ela. — Obrigada por ter me deixado

entrar. Eu queria ter trazido Roza, para que ela pudesse vê-lo... Eu tinhatanta coisa para perguntar a ele. — Olhou para o leito, esperando que elea chamasse de volta. — Estou indo.

Foi quando elas ouviram a voz dele. Katinka virou-se e as duasvoltaram para a beira do leito. Os lábios de Satinov estavam se movendoum pouco.

— O que ele está dizendo? — perguntou Katinka.Mariko segurou as mãos dele e beijou sua testa.— Papai, é Mariko, bem aqui com você, papai querido.Ele moveu os lábios novamente, mas elas não conseguiram ouvir

nada. Depois de alguns instantes, os lábios pararam de se mexer.Parentes começaram a entrar no quarto e Katinka se esgueirou para fora.

* * *

Na calçada do prédio, Maxi esperava por ela, fumando, apoiado na moto.Katinka aninhou-se em seus braços, cheirando sua jaqueta de couro,inalando a fumaça de seu cigarro. Sentiu-se feliz por ele estar lá.

— Ele está morrendo? É uma coisa horrível de se ver. Mas você feztudo o que podia...

— Acabou — disse ela — e eu estou exausta. Vou telefonar paraRoza, examinar minhas anotações e colocá-la em contato com quem elaquiser encontrar.

— O que vai fazer agora?

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— Vou para casa. Quero ver meus amigos e um rapaz que quer melevar em um passeio de férias. Talvez seja melhor que a gente nuncasaiba como Sashenka morreu. Meu papai tinha razão. Eu nunca deveriater aceitado esse trabalho. Vou voltar para Catarina, a Grande.

— Mas você é tão boa nisso — disse Maxi. — Katinka, por favor,venha trabalhar comigo na fundação. Podemos fazer muita coisa juntos.

Ela abanou a cabeça e se aprumou.— Não, obrigada. Não há frutos nem colheitas nesse tipo de história;

todos os campos foram semeados com sal. Pode ser história antiga, mas oveneno ainda é potente e a infelicidade continua. Não, revirar velhostúmulos não é comigo. É doloroso demais. Adeus, Maxi, e obrigada portudo.

Ela enxugou os olhos e começou a se afastar.— Katinka! — gritou Maxi atrás dela.Ela se virou um pouco.— Katinka, posso telefonar para você?

24

Mas Katinka não contava com a força persuasiva de Pacha Getman.— Você não pode simplesmente desistir e nos deixar na mão — rugiu

ele, quando ela telefonou para dizer que já fizera tudo o que podia.Então, ele disse em uma voz mais baixa: — E minha mãe? Ela gosta tantode você. Nós queremos que você faça uma última coisa por nós. Pensenisso como um favor para Roza.

E foi assim que, três dias mais tarde, no avião particular de Pacha,Katinka e Roza voaram para Tbilisi (que era, como Pacha lembrara aKatinka, quase no caminho de sua casa). Alguns dos guarda-costas dePacha as conduziram de carro até o pitoresco café, na velha mansãocoberta de vinhas.

— Lala — disse Katinka para a velha senhora, no quartinho dosegundo andar. — Trouxe alguém para ver você.

Lala Lewis, segurando o habitual copo de vinho georgiano, estava

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sentada na cama, olhando atentamente para a porta.— É ela? É Sashenka? — perguntou.— Não, Lala, mas é quase Sashenka. Esta é Roza Getman, a filha de

Sashenka, que você conheceu como Branquinha.— Ohh — suspirou Lala e estendeu as mãos. — Venha mais para

perto. Eu sou muito velha. Sente-se na minha cama. Deixe eu olhar paravocê. Deixe eu olhar em seus olhos.

— Olá, Lala — disse Roza com voz trêmula —, já faz mais decinquenta anos que você cuidou da gente.

Katinka ficou observando, enquanto Roza, vestida elegantementecom uma blusa branca, cardigã azul e saia creme, os cabelos grisalhosainda penteados no estilo de sua juventude, adiantou-se lentamente,olhando em volta, examinando as quinquilharias de uma épocadesaparecida. Roza pareceu hesitar por um momento, ao ver as mãosestendidas da velha babá; então, sorrindo como se Lala lhe fosse familiar,sentou-se na cama.

Lala segurou as mãos de Roza. Não se limitou a apertá-las com força,mas também as sacudiu. Nenhuma das duas disse uma palavra, mas, deonde estava, Katinka podia ver os ombros de Roza tremendo e aslágrimas que escorriam pelo rosto de Lala. Sentindo-se como uma intrusa,andou até a janela e olhou para fora. Os sons e cheiros de Tbilisi —alguém cantando na rua e os aromas de tkemali, pão lavachi, café moídoe flor de maçã — erguiam-se em torno dela.

Esta é a última cena do drama, disse a si mesma. Tinha feito o quePacha pedira. Juntara as duas mulheres, expondo-se, no processo, a maisdor do que julgara possível. Agora iria para casa, de volta para o papai e amamãe — e Andrei.

Lala alisou o rosto de Roza.— Criança querida, eu sonhava em rever sua mãe. Eu tenho que lhe

falar sobre ela, porque não havia ninguém como ela. Olhe, lá está oretrato dela quando estudava no Smolni. Viu? Eu costumava buscá-la nocarro a motor do barão, ou automóvel, como se diz hoje em dia. Samuil,o barão, era o seu avô. Você nunca se encontrou com ele, mas ele sabiatudo sobre você. E nunca se passou um dia sem que eu pensasse emvocê e em seu irmão, Carlo. Quando você era criança, era muito parecida

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com sua mãe — ela era loura como um anjo, quando era jovem —, evocê tem os olhos violeta de sua avó, Ariadna. Ah, criança querida, penseem mim, uma garota da Inglaterra. Eu vivo há tempo suficiente para tervisto a queda do tsar, os bárbaros chegarem ao poder e caírem também.E agora vejo você aqui... nem consigo acreditar.

— Já não sou uma criança — riu Roza —, tenho 60 anos.— Matusalém é jovem para mim! — respondeu Lala. — Você se

lembra dos dias que passamos juntas, antes...Roza assentiu.— Acho que sim... Sim, eu me lembro de você numa cantina de uma

estação. Você tinha trazido os biscoitos favoritos de Carlo. Eu me lembrode andar de mãos dadas com você e então...

— Naquela época eu estava lutando para manter a cabeça fora daágua — prosseguiu Lala. — Eu tinha perdido a minha querida pupila,Sashenka, e o seu avô. Então, fui abençoada com alguns dias de muitafelicidade, com você e Carlo. Depois que entreguei vocês a seus novospais, pensei em me matar. Somente o pensamento de que alguémquerido retornaria me manteve viva. E, veja você, a pessoa maisimprovável de todas retornou.

— Lala — interrompeu Katinka, que não queria interferir, mas estavamorta de curiosidade —, só Stalin poderia ter salvado a vida de Samuil.Você alguma vez soube por quê?

Lala assentiu.— Depois que o monstro morreu, todo mundo aqui chorou e se

enlutou. Houve até demonstrações em homenagem a ele. Mas eu estavaextasiada. Samuil estava muito doente, então eu disse: “Agora pode medizer por que soltaram você.” Ele disse que não sabia exatamente, mas,em 1907, ele dera abrigo — e cem rublos — a um revolucionáriogeorgiano marcado de varíola. Ele deixou o homem ficar na cabana doporteiro em sua casa, aqui em Tbilisi, quando a polícia estava procurandopor ele. Mais tarde, ele percebeu que era Stalin, e Stalin nunca esqueciauma afronta ou um favor. — Lala olhou de volta para Roza, cujas mãosainda segurava, levando-as aos lábios, por vezes, e as beijando. — Possomorrer feliz agora — disse ela.

— Você é minha única ligação com minha mãe — disse Roza. — Veja

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só, eu quase odiei meus pais durante toda a minha infância. Eles tinhamme abandonado e eu nunca soube por quê. Eu não conseguia imaginar oque havia feito de errado para que eles me rejeitassem. Mas pensavaneles o tempo todo. Às vezes, eu sonhava que eles estavam mortos;frequentemente, eu olhava para a Ursa Maior porque papai tinha me ditoque sempre estaria lá. Só quando fiquei mais velha percebi que talvezalguma coisa ruim tivesse acontecido a eles e eles não tinham tido outraescolha a não ser me abandonar. Mas, durante toda a minha vida, nuncaconsegui chorar por eles.

Roza se virou para Katinka.— Você trabalhou tão bem, minha querida. Muito obrigada, do fundo

do meu coração — obrigada. Você mudou minha vida. Mas eu sei quevocê está ansiosa para voltar para casa e o avião de Pacha estáesperando por você no aeroporto, para levar você até Vladikavkaz. Vocêpode ir quando quiser.

Katinka beijou Roza e Lala, e caminhou até a porta — então parou.— Eu não posso ir ainda — disse ela, virando-se. — Posso ficar e

escutar? Acho que me envolvi mais do que deveria.Roza pulou e a abraçou.— Claro, estou muito contente por você se sentir assim. Eu comecei

a gostar muito de você. — Ela sentou-se novamente. — Lala, graças aKatinka, eu soube de você e dos meus pais. Mas, por favor, me fale sobreCarlo.

Lala tomou um gole de vinho e fechou os olhos— Ele era uma criança muito doce, parecia um ursinho, tinha olhos

castanhos lindos, era um menino tão amoroso, tão afetuoso. Ele afagavao meu rosto e beijava meu nariz. O dia em que eu tive que deixá-lo foi omais cruel da minha vida. Nós estávamos no Orfanato Beria — você podeimaginar um lar para crianças com o nome daquela criatura? No diaanterior, Branquinha, eu tinha visto você ir embora com os Lieberharts, esabia que eles pertenciam à intelligentsia, eram professores judeus. Vocêlutou, chutou e berrou, eu chorei durante horas. Eu teria ficado comvocê, se tivesse tido oportunidade. Mas Satinov disse: “O seu marido nãovai voltar; os órgãos virão buscá-la qualquer dia desses — e o que será dascrianças? Não, temos que arranjar famílias estáveis e amorosas para elas.”

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No dia seguinte, dois camponeses do norte do Cáucaso apareceram.Eram trabalhadores de fazendas coletivas, russos com algum sanguecossaco, tão primitivos que entraram em Tbilisi em um trator, puxandouma carroça. Tinham vendido hortaliças no mercado. Eu podia ver queeles eram rudes e incultos — tinham feno nos cabelos. Mas eu não podiaquestionar nada. Já tínhamos tido a sorte de Satinov arranjar tudo. MasCarlo era tão sensível. Ele precisava de seus Biscoitos Kremlin, porquetinha quedas no nível de açúcar do sangue e desfalecia. Tinha que seracariciado para dormir à noite, nada menos que onze carinhos — comoCarolina, a babá, me tinha ensinado. Quando eles levaram Carlo, eu meafundei no chão, tão perturbada que acho que desmaiei. Eu não melembro muito do que aconteceu depois, mas apareceu um médico. Euestava inconsolável...

Katinka sentiu um súbito tremor de excitação. Satinov tinhaarranjado tudo. Então tudo retornou à mente dela. O que ele dissera nosegundo encontro? Seu sobrenome é Vinski. Por que você aceitou essetrabalho? Sim, entre todas as centenas de alunos que ele teve durantedécadas de ensino, o acadêmico Beliakov escolheu justamente você. Elase lembrou de como ficara aborrecida, achando que ele estava brincandocom ela. Mas não estava. Estava dizendo alguma coisa a ela. Como tinhasido ingênua, pensou. A chama da revelação faiscou, depois explodiudentro dela. O anúncio dos Getmans fora publicado no boletim dafaculdade, mas ela tinha sido escolhida, embora nem tivesse secandidatado. O acadêmico Beliakov se aproximara dela na biblioteca e lhedissera: “Esse trabalho é seu. Não é preciso avaliar os outros candidatos.”

— Como você me escolheu para ser sua pesquisadora? — perguntoupara Roza. — Você entrevistou outros candidatos?

— Não — disse ela. — Nós primeiro enviamos uma carta ao marechalSatinov. Era o único nome que eu possuía. O único elo. Ele se recusou anos ajudar; disse que não tinha nenhuma ligação com o caso. Mas insistiuque nós precisaríamos de um historiador, e nos pôs em contato com oacadêmico Beliakov, que publicou o anúncio.

— O que Beliakov disse a vocês?— Disse que tinham aparecido muitos candidatos, mas que você era

a melhor deles; não precisaríamos procurar mais ninguém.

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Katinka se levantou, consciente de que Roza e Lala estavam olhandopara ela de forma estranha. Seu coração batia forte. Somente Satinovconhecia os sobrenomes das famílias adotivas, pensou ela. Saberia algumacoisa sobre ela também? Assim sendo, ao receber a carta de Roza, tudoo que ele tinha a fazer era telefonar para o seu amigo, o acadêmicoBeliakov: “Quando uns milionários aparecerem por aí, querendo contratarum estudante para fazer uma pesquisa de família, recomende a meninaVinski para eles.” Ela procurara por Carlo nos arquivos, quando, durantetodo o tempo, ele estivera muito, muito mais perto.

— Tenho que ir — disse ela a Roza, já saindo pela porta e correndopelas escadas. — Tenho que conversar com meu pai.

25

— Nós queríamos ter um filho — disse Baba para a família, reunida nadecrépita sala de estar do casebre de persianas azuis.

Katinka olhou em torno da sala tão conhecida, na casa ondecrescera. Todos os rostos exprimiam angústia, e ela se sentia culpada.Sua robusta avó, com o vestido floral e um lenço na cabeça, estavasentada no meio do aposento, em uma cadeira sovada e afundada. Seurosto largo era o retrato da ansiedade. Katinka nunca a vira tãoperturbada. Seu avô exaltado e rabugento, o Percevejo, andava de umlado para outro, cuspindo maldições para ela. Mas foi seu adorado paiquem lhe causou a dor maior.

O dr. Vinski fora buscá-la no aeroporto saindo direto do consultório.Ainda estava de jaleco branco. Quando viu sua preciosa filha, abraçou-a ebeijou-a.

— Estou tão contente por você estar em casa — disse ele. — A luzda minha vida. Está tudo bem? Você está bem, querida?

Katinka olhou para seu rosto sério e pensativo, tão bonito, com acovinha no queixo e aquele ar de ídolo das matinês. E pensou que ela erauma bomba-relógio, prestes a explodir sua família.

— O que foi? — disse ele.

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Naquele momento e naquele lugar, ela lhe contou toda a história.Ele não disse nada por um momento; então acendeu um cigarro.

Katinka esperou nervosamente, mas ele não discutiu com ela. Apenascontinuou a fumar e a refletir.

— Papotchka, me diga, eu deveria ter ficado calada? Devemosesquecer tudo?

— Não — disse ele. — Se isso for verdade, eu quero encontrar minhairmã. Quero saber quem eram meus verdadeiros pais. Mas, apesar disso,acho que pouca coisa vai mudar para mim. Meus pais me amaram durantetoda a minha vida, e serão sempre meus pais — e eu serei sempre omenino que eles amaram. Mas isso pode partir o coração deles — e vaipartir o meu também. Deixe que eu falo com eles...

O restante do trajeto para casa foi feito em silêncio. Quandoentraram no vilarejo de Beznadejnaia, Katinka deveria sentir-se alegre, porestar voltando para casa. Mas o vilarejo parecia diferente; o casebremudara; era como se tudo tivesse sido sacudido e arrumado de formadiferente — de mil maneiras.

Se não fosse pela mãe de Katinka, a família poderia ter sedespedaçado, com o silêncio angustiado de seu pai e a obstinada reservade seus avós. Mas tão logo Katinka lhe explicou tudo, Tatiana — muitasvezes distraída e frívola — iniciou seus esforços para tranquilizar o marido,o Percevejo e Baba.

A princípio, seus avós alegaram não saber de nada. Disseram que eratudo um engano. Katinka perguntou a si mesma se não teria imaginadotudo. Teria se envolvido demais com a história de Sashenka? Estaria tãoobcecada que perdera o juízo?

— Isso é uma faca no meu coração — disse Baba a seu filho. — Umamentira, uma calúnia! — Então, sentou-se em postura desafiadora. —Que coisa para se dizer!

O Percevejo estava furioso.— Nós não amamos você durante toda a sua vida? Não fomos bons

pais? E é assim que você nos agradece... dizendo que não somos nadapara você! — Virou-se para Katinka. — Por que atirar essas mentiras nasnossas caras? Que vergonha, Katinka! Isso é algum truque, alguma piadadaqueles judeus ricos de Moscou?

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Katinka estava torturada pela dor e pela dúvida. Olhou para o pai.Nunca vira seu rosto tão atormentado.

Então a mãe de Katinka interveio.— Queridos pais — disse ela —, vocês têm sido como pais para mim e

eu sei que Valentim ama vocês mais do que vocês imaginam. — Virou-separa o marido. — Querido, diga a eles como você se sente. Diga a elesagora.

— Papai, mamãe — disse ele, ajoelhando-se aos pés da velhacamponesa e segurando suas mãos. — Vocês são meus pais. Vocêssempre foram meus amados mamotchka e papotchka. Se eu fui adotado,isso não vai mudar nada para mim. Vocês me amaram durante toda aminha vida. Eu só conheço a ternura amorosa de vocês. Eu sei quem eusou, e serei sempre o menininho que vocês amaram durante toda aminha vida. Se vocês não quiseram me dizer antes, eu compreendo.Naquela época, as pessoas não falavam sobre essas coisas. Mas, se houveralguma coisa que vocês queiram me dizer agora, nós todos vamos escutare, depois, vamos continuar a amar vocês do mesmo jeito.

Essas palavras deixaram Katinka profundamente emocionada. Elaolhou para o rosto de Baba, que se suavizava aos poucos. Os velhoscamponeses trocaram olhares e, então, a avó deu de ombros.

— Quero contar a história — disse ela ao marido.— Tudo mentira — disse o Percevejo, mas depois ficou em silêncio.Alguns segredos são negados por tanto tempo, pensou Katinka, que

já não parecem reais.O Percevejo sacudiu os dedos retorcidos para sua esposa.— Conte, se você quiser — disse ele, sentando-se no sofá e

acendendo um cigarro.— Vá em frente, mamãe — disse o dr. Vinski, acendendo um cigarro

também. Levantou-se e despejou um pouco de cha-cha em um pequenocopo, que entregou a ela. — Quero ouvir sua história, seja lá qual for.

Baba respirou fundo, engoliu o cha-cha e, olhando em torno da sala,abriu as mãos.

— Eu e o Percevejo estávamos casados há oito anos... e nãotínhamos filhos. Nada. Não ter filhos era uma desgraça. Embora eu fosseuma verdadeira comunista, procurei padres para receber uma bênção;

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procurei um curandeiro. Nada também. O Percevejo não queria discutir oassunto... Um dia, eu ouvi no escritório da fazenda coletiva que um oficialgraduado de Moscou vinha inspecionar as novas estações de tratores. Eleconversou com todo mundo e pediu para falar conosco. Era o camaradaSatinov.

— Vocês já conheciam ele? — perguntou Katinka.— Sim — disse Baba. — Em 1931, a campanha para coletivizar os

vilarejos e destruir os camponeses ricos, os kulaks, chegou à nossa região.Todos os kulaks estavam sendo deportados; muitos foram fuzilados aqui,nos vilarejos; houve fome e procura por grãos. Foi uma época de medo.O Percevejo foi denunciado como kulak. Nós estávamos na lista deprisões. Todos os outros da lista foram fuzilados. O camarada Satinovestava no comando e, não sei por quê, mas por alguma razão eleinterferiu e mandou tirar nossos nomes da lista. Nós devemos nossas vidasa ele. Oito anos mais tarde, em 1939, ele nos abençoou novamente. Epediu que nós ficássemos com um menino de 3 anos. — “Amem essemenino como se fosse um tesouro”, ele disse. “Levem esse segredo parao túmulo. Cuidem dele como se fosse filho de vocês.” Um dia, nósrecebemos um chamado do Orfanato Beria, fomos até Tbilisi etrouxemos... um menininho de olhos castanhos e covinha no queixo. Omenino mais bonito do mundo.

— Você era nosso filho, nosso próprio filho — disse o Percevejo.— Nós começamos a amar você assim que vimos você — acrescentou

Baba.— Vocês, alguma vez, entraram em contato com Satinov? —

perguntou Katinka.— Só uma vez. — O Percevejo se virou para falar com o filho. —

Você queria ser médico. Era difícil entrar nas melhores escolas demedicina e nunca ninguém da minha família passou do primeiro grau.Então eu telefonei para o camarada Satinov — e ele colocou você naUniversidade de Leningrado.

— Quando você era pequeno — continuou Baba —, você selembrava de alguma coisa. Você chorava e falava da sua mãe, do seu pai,da sua babá, de uma dacha e de uma viagem. Você tinha um coelho debrinquedo que amava tanto que nós começamos a criar coelhos numa

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coelheira no jardim, e você alimentava eles, dava nome a eles, amava elescomo nós amávamos você. Eu abraçava você à noite e, aos poucos, vocêse esqueceu do passado e começou a nos amar. E nós adorávamos tantovocê que nunca conseguimos lhe contar... E essa é a verdade de Deus.Se fizemos alguma coisa errada, diga para a gente.

Quando seu pai beijou os pais dele, Katinka não conseguiu ficarolhando. Foi para a varanda admirar a profusão de plantas florescendo naprimavera, as madressilvas viçosas, as andorinhas que trinavam e voavam,a carreira dos riachos borbulhantes e, muito longe, as montanhas compicos nevados. Mas ela não via nem ouvia nada — somente o rostoamoroso de seu pai e o pranto estridente de sua avó, que chorava domodo desinibido que os camponeses sempre choram.

26

O corpo de Hércules Satinov jazia em um ataúde de carvalho envernizadoe cetim escarlate, na sala de estar do apartamento da Granovski. Pousadoem um cavalete atrás do caixão, estava um retrato de Satinov queKatinka ainda não vira: representava-o como um intrépido comissário naGuerra Civil, com seus vinte e poucos anos. Estava a cavalo. Envergavaum casaco de couro, empunhava uma pistola Mauser, tinha um riflependurado às costas e liderava uma fileira de Cossacos Vermelhos em umainvestida na vastidão nevada. Katinka pensou que aquele comandante daCavalaria Vermelha não devia ser mais velho do que ela era agora.

Dois dias antes, Mariko telefonara a Katinka, em sua casa, para lhedizer que o pai tinha morrido na noite anterior; queria convidar os filhosde Sashenka para o funeral.

Roza já estava em Moscou, então Pacha enviou seu avião para buscarKatinka e o pai. A empolgação de Roza era quase infantil. “Vou meencontrar com Carlo novamente”, dissera a Katinka, ao telefone. “Nemconsigo acreditar. Não sei o que vou dizer a ele, não sei o que vou vestir.Seu pai está tão emocionado quanto eu?”

Deitada na cama aquela noite, Katinka imaginou a reunião de irmão e

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irmã, de como Sashenka e Vânia teriam ficado felizes com isso; quemcairia nos braços de quem? Quem choraria e quem riria? Seu tímido pai iriahesitar um pouco, enquanto Roza o abraçaria calorosamente... Katinkafizera aquilo acontecer; ela era a responsável pela reunião e queria quetudo corresse como planejado.

Naquele momento, quando a escuridão da noite se transforma noazul da alvorada, Katinka sentou-se na cama, colocou o vestido e correupara a sala. Sabia que encontraria seu pai, fumando à meia-luz. Eleestendeu a mão para segurar a mão dela.

— Você não fez a mala — disse ela.— Eu não vou — respondeu ele. — Aqui é minha casa. Eu tenho

toda a família de que preciso...Ela sentou-se ao lado dele.— Mas você não quer se encontrar com sua irmã? Satinov queria

tanto que vocês se encontrassem. Nós não podemos consertar tudo,mas, se você não vier, estará deixando que as pessoas que mataram suamãe e seu pai vençam. — O pai dela não disse nada, por algunsmomentos. — Por favor, papotchka!

Ele abanou a cabeça lentamente.— Acho que eles já brincaram conosco o suficiente.O voo até Moscou foi desolado. Em meio ao luxo resplandecente do

Boeing convertido de Pacha, Katinka sentia-se desamparada edesapontada. Não conseguia conter a raiva contra o pai, por tê-ladecepcionado, mas respeitava sua calma determinação. Continuava apensar na tragédia que fora a vida de seus avós. Cada vez que fazia isso,via as coisas de forma diferente: era o resultado do trabalho sinistro dehomens que acreditavam ter o direito de jogar com a vida dos outros —e ainda estavam jogando com a vida dela.

Roza esperava na pista do aeroporto privado de Vnukovo. Pachaestava ao lado dela, com dois guarda-costas, enquanto, atrás dele,formando um leque de aço reluzente, estava seu costumeiro Bentleypreto, juntamente com dois Land Cruisers repletos de guardas, todoscom os motores ligados, prontos a transportá-los até Moscou.

Quando viu o rosto abatido de Katinka, Roza estendeu as mãos paraela.

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— Não se preocupe, Katinka. Eu também estou desapontada, masacho que compreendo. Eu deixei tudo para muito tarde. — Entãoapertou a mão de Katinka. — O mais importante é que eu descobri quemsou — e encontrei uma sobrinha que não sabia que tinha. Encontreivocê, querida Katinka.

Elas ficaram paradas lá, por alguns momentos, como se estivessemsozinhas no mundo — até que Pacha veio beijar sua mãe gentilmente, noalto da cabeça.

— Vamos para casa — disse, conduzindo-a até o carro. — Vai levartempo, mamãe.

Enquanto fechava a porta para Roza, ele sussurrou para Katinka:— É compreensível. Não é culpa sua. Você não vê? Eles são

estranhos. Seu pai não queria encontrar o passado dele. O passado oencontrou.

Katinka e Roza, sua tia recém-descoberta, que estava começando a amar,estavam de braços dados, esperando pela vez, na pequena fila queatravessava a sala de estar da casa de Satinov. Mesmo sem o irmão, Rozainsistira em ver o homem que mudara sua vida tão decisivamente: umavez de forma desastrosa; outra vez de forma abnegada. E agora, já tarde,em uma tentativa de se redimir.

Por uma estranha anomalia temporal, pensou Katinka, os outrosvisitantes pareciam ter vindo dos anos 70. Mulheres balofas, comterninhos justos demais, exibiam gigantescos penteados cor de acaju,enquanto desfilavam com seus maridos — magros apparatchiks detopetes empastados, ou calvos, vestindo ternos marrons cobertos demedalhas. Também havia oficiais do Exército, mais jovens, e algumascrianças, provavelmente netos de Satinov — cujos risinhos e brincadeiras,naquele ritual tão solene, os pais tentavam reprimir.

Quando chegou a vez delas, Katinka segurou a mão de Roza.Entraram então em um quarto, onde havia uma plataforma ligeiramenteelevada. Olharam para o caixão. Katinka não conseguia deixar de olhar orosto de Satinov com afeição, apesar das peças que ele lhe pregara. Amorte — e as atenções de meticulosos embalsamadores e cabeleireiros —tinha devolvido a ele a serena grandeza de um herói soviético da velha

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geração. Quatro fileiras de medalhas cintilavam em seu peito; as ombreirasdouradas e estreladas, de um marechal da União Soviética, reluziam; ocabelo grisalho, recém-cortado, estava espetado para cima.

— Eu me lembro de brincar com ele, há muito tempo — disse Roza,olhando para ele. — E ele era o homem na limusine, que me observava irpara a escola. — Inclinou-se para o caixão e beijou a testa de Satinov. Aodescer da plataforma, cambaleou, mas foi amparada por Katinka. — Estoubem — disse. — É muita coisa para se assimilar.

Katinka a ajudou a sentar-se em uma cadeira, de onde Roza olhou ascrianças que corriam e deslizavam sobre os joelhos no lustroso assoalho dolongo corredor. Katinka foi até a cozinha, para lhe buscar um copo deágua. Mariko e alguns parentes, obviamente georgianos, talvez seusirmãos, estavam bebendo chá e mordiscando petiscos georgianos.

— Ah, Katinka — disse Mariko —, estou satisfeita por você ter vindo.Gostaria de um pouco de chai, ou um copo de vinho? — Ela pareciacansada, em seu vestido negro, mas Katinka estava certa de que ficaramais jovem e bonita nos últimos dias. — Amanhã ele vai ser exposto noSalão do Exército Vermelho — disse ela, orgulhosamente.

— Graças ao seu pai, eu encontrei os filhos de Sashenka — explicouKatinka. — E você não vai adivinhar — graças a ele, eu fiquei sabendoque Sashenka era minha avó. Imagine só!

Mariko trouxe Roza até a cozinha. Seus parentes já haviam saído.Serviu chai a Roza e Katinka, e lhes ofereceu comida.

— Você sabia — disse Roza, enquanto tomava o chá —, que eu melembro de deslizar no chão deste apartamento?

— O seu apartamento era neste prédio também, não era? —perguntou Katinka.

— Não apenas neste prédio — disse Roza rapidamente. — Aqui era onosso lar, este mesmo apartamento, e eu me lembro de quando oshomens de botas brilhantes chegaram aqui: uma pilha de fotografias,papéis espalhados no chão, ali, e uma mulher bonita nos abraçando echorando.

Katinka olhou para Mariko, que não disse nada, por algunsmomentos: ela e Roza tinham mais ou menos a mesma idade, mas tinhamlevado vidas muito diferentes, quase opostas.

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— Eu nasci em 1939 — disse Mariko, tomando um gole de vinho. —Acho que recebemos esse apartamento nessa época, também. Eraimpossível recusar um presente do partido — era um teste de lealdade...— Ela fez força para engolir e olhou para outro lado. — Mas eu nuncapensei que tinha chegado a nós dessa maneira. Não sei o que dizer.

Roza estendeu a mão, que pousou sobre a mão de Mariko.— É maravilhoso conhecer você. Se as coisas não tivessem

acontecido como aconteceram, nós poderíamos ter crescido juntas.— Eu gostaria que isso tivesse ocorrido. Deve ter sido muito difícil

para você vir aqui... É difícil saber de algumas coisas, e foi difícil para omeu pai.

— Ele me ajudou — disse-lhe Katinka —, mas havia algumas coisasque ele não queria que eu descobrisse.

— Ele queria muito que você encontrasse os filhos de Sashenka —disse Mariko —, mas ele devotou a vida à URSS e ao partido. Ele precisavaajudar você sem abalar as crenças dele. Ele nunca quis que ninguémsoubesse da coisa horrível que ele tinha feito. Meu pai viu muitastragédias na vida dele, mas acho que Sashenka sempre esteve no fundode sua mente, em seus sonhos. Ela e toda a família dela. Ele devia vertodos eles neste apartamento, todos os dias.

— Mas ainda não sabemos o que aconteceu a ela — disse Katinka,com uma ponta de amargura. — O arquivo estava faltando. Só o seu paisabia, e ele levou esse segredo para o túmulo.

Não havia mais nada a dizer. Mariko se levantou, recolheu os pratos eos copos, e os empilhou na pia.

— Sinto muito pela sua perda — disse Roza.Mariko secou as mãos em uma toalha.— E eu s... — mas se calou bruscamente. — Obrigada por terem

vindo, disse por fim.

Poucos minutos mais tarde, Katinka e Roza desceram as escadas até arua, onde o Bentley de Pacha as aguardava. Um chofer abriu a porta. Ahistória é uma coisa tão confusa, tão insatisfatória, pensou Katinka,lembrando-se das tristes palavras de seu pai, naquela manhã. Detestava omodo como a história jogava com a vida das pessoas.

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— Katinka! — Ela olhou para cima. — Katinka! — gritou Mariko, queestava no piso do primeiro andar.

A porta da frente ainda estava aberta. Katinka se virou e subiucorrendo os degraus.

— Tome isso. — Mariko enfiou um envelope amarelo em suas mãos.— Meu pai me fez prometer que eu destruiria este envelope. Mas queroque você fique com ele. Vá em frente, Katinka, é a sua história tantoquanto a nossa. Sua e de Roza.

27

— Preciso da sua ajuda, Maxi, pela última vez — disse Katinka ao telefone,tão logo ela e Roza retornaram à mansão de Getman.

— É ótimo ouvir sua voz — respondeu Maxi. — Senti sua falta. Etenho uma coisa para lhe mostrar, na área rural. Não existe lugar melhorpara conversar e pensar. Posso apanhar você?

Meia hora depois, Katinka ouviu o bem-vindo ronco da motocicleta.Sentindo-se exultante e contente por vê-lo, correu para fora. Logoestavam percorrendo estradas recém-pavimentadas com um reluzenteasfalto negro, pago pelos oligarcas e ministros, que possuíam dachas naregião — agora não mais desmanteladas villas de madeira, masgigantescos chalés e palácios em estilo pseudo-Tudor, guardados pormuros altos e torres de vigilância. Depois de algum tempo, Maxi saiu daestrada e entrou em uma alameda rústica, que atravessava um bosque.

O sol brilhava através das folhas das bétulas, pinheiros e tílias. Depoisdas horas que passara recentemente em aviões e arquivos poeirentos,Katinka se deliciava com os solavancos da moto e com a pureza do ar. Porfim, pararam em uma clareira, onde se erguia uma villa de madeira, emestilo antiquado.

— Que lugar lindo — disse ela, jogando o cabelo para trás.— Eu trouxe pão Borodinski e queijo para a gente comer, enquanto

conversa; e um pouco de suco.— Eu nunca pensei que você fosse tão doméstico — disse ela. —

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Estou impressionada.Maxi pareceu embaraçado, mas satisfeito. Colocou os alimentos sobre

a grama e sentou-se.— Bem, quem vai ser o primeiro?— Você! — disseram ambos ao mesmo tempo. E então riram.— Não — disse Maxi. — Quero ouvir suas notícias, primeiro, e saber

como posso ajudar você. Mas eu estava pensando... como foi estarnovamente em casa?

— Ótimo — respondeu ela.Sentada na grama, apreciou o modo como os raios solares

desenhavam labirintos no rosto de Maxi. O sol aquecia a resina dospinheiros, que adoçava o ar. Ele arrancou um pedaço do pão, cortou umafatia de queijo e lhe ofereceu ambos.

— Como vai aquele seu namorado?— Ah, agora entendi o que você queria dizer. Sobre estar em casa.— Não, não, eu não quis dizer isso. Eu só estava...— Curioso? Ele está do mesmo jeito que antes. Eu é que não tenho

certeza de quanto tempo vou ficar por lá. Encontrar Roza e Pacha,pesquisar Sashenka... — o nervosismo com que ele parecia estar ouvindosuas palavras a surpreendeu — mudou um pouco as coisas; me mudou,na verdade. Então, estou pensando em ficar em Moscou durante esteverão. Posso continuar com minhas pesquisas ou, se você for gentilcomigo, posso até ajudar você um pouco na fundação...

— Isso é ótimo!Maxi deu um sorriso tão radiante que Katinka sentiu vontade de rir.

Mas descobriu que a alegria dele a deleitava, embora decidisse nãodemonstrar isso. Ele já estava satisfeito demais consigo mesmo.

— Bem — disse ele, voltando aos negócios —, o que a filha deSatinov lhe deu?

Katinka retirou o envelope de sua jaqueta, desamarrou o barbanteda parte de cima e retirou uma velha pasta de arquivo.

— Eu só dei uma olhada. É o arquivo perdido.

Extremamente ConfidencialPara: J.V. Stalin; L.P. Beria

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Relatório da Comissão de Inquérito a serviço do Comitê Central— Camaradas Merkulov, Malenkov, Chkiriatov — sobre a condutaimprópria referente à Punição Maior do Objeto 83, no ObjetoEspecial 110, em 21 de janeiro de 1940. Relatório arquivado em12 de março de 1940.

Katinka notou os rabiscos — círculos, paralelogramos e crescenteslunares, desenhados com crayon verde — em torno do timbre e prendeua respiração:

— É a cópia de Stalin.— Certo — disse Maxi.— Como Satinov conseguiu isso?— Essa é fácil. Depois da morte de Stalin, em 53, todos os líderes

quiseram salvar a própria pele, então foram remexer nos arquivos dele,para remover documentos particularmente incriminadores. Quase todosforam queimados. Mas Satinov guardou esse.

Estudando o documento com atenção, ele colocou um cigarro naboca e, distraidamente, riscou um fósforo — mas se esqueceu deacender o cigarro.

— Agora vamos interpretar isso. A Punição Maior é a execução comuma única bala na nuca. O Objeto Especial 110 é a prisão especial deBeria, a Sukhanovka, antigo Convento de Santa Catarina, em Vidnoe,onde Sashenka e Vânia foram julgados e executados. Era um lugar tãosecreto que os prisioneiros eram conhecidos por números, não pelosnomes, então o Objeto 83 é...

— Sashenka — interrompeu Katinka. — Era o número dela na lista deexecuções. Ela se inclinou e começou a ler. — Primeiro, elesentrevistaram Goletchev, o comandante da prisão...

Comissão: Camarada comandante Goletchev, você foiresponsável pela efetivação da Punição Maior de prisioneirossentenciados, no dia 21 de janeiro de 1940. A Punição Maiorteria que ser testemunhada, em nome do Comitê Central, pelocamarada Hércules Satinov. Por que você começou cedo e demaneira tão tumultuada e não-bolchevique?

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Goletchev: As Punições Maiores foram efetivadas da maneiraprofissional esperada de um oficial do NKVD.Comissão: Estou avisando você, camarada Goletchev, isso é umatransgressão séria. Sua conduta ajudou nossos inimigos. Vocêestava trabalhando para o inimigo? Você mesmo pode acabarenfrentando a Punição Maior.Goletchev: Eu confesso, diante do Comitê Central, que cometierros sérios e imprudentes. Era o meu aniversário. Começamos abeber cedo, na hora do almoço, e beber ajuda, quando se temque dirigir uma Vichka. Conhaque, champanhe, vodca. À meia-noite, tínhamos que trazer os prisioneiros, mas o camaradaSatinov estava atrasado e não podíamos começar sem ele.Comissão: Camarada Satinov, por que você, a testemunha,estava tão atrasado?Satinov: Eu estava doente, seriamente doente, mas relateiminha doença ao comandante e cheguei à Sukhanovka assimque pude.Comissão: Camarada Satinov, você conhecia alguns dosprisioneiros, principalmente Sashenka Zeitlin-Palitsin. Você estavasofrendo de uma crise nervosa causada por sentimentalismoburguês?Satinov: Não, palavra de comunista. Eu simplesmente fui vítimade intoxicação alimentar. Em nossos tempos de lutas e guerra,os Inimigos do Povo têm que ser liquidados.

— Entendeu a situação? — perguntou Maxi. — Os guardas do NKVDestão totalmente bêbados; Sashenka, Vânia e mais de cem prisioneirosestão aguardando a execução; e Satinov está tão deprimido que ficaenjoado demais para ir. Então, o que acontece?

Goletchev: Enquanto nós bebíamos, a conversa desviou para adepravação de nossas Inimigas do sexo feminino, muitoparticularmente a prisioneira Zeitlin-Palitsin — a famosa Sashenka.Nós tínhamos ouvido falar da depravação repelente e venenosadessa traidora, de como ela usava suas tortuosas artimanhas de

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fêmea para seduzir e conquistar outros traidores. Como ocamarada Satinov ainda não estava presente, nós, sob ainfluência do álcool e de nossa repugnância pela traição dela,decidimos começar por ela. Nós a trouxemos até a minha sala dejantar e...

Ao lado desse depoimento, com tinta verde, Stalin escrevera umapalavra: Rufiões.

— Agora vamos ouvir Blokhin — disse Maxi.

Comissão: Camarada major Blokhin, você foi designado paraefetivar a Punição Maior nos 123 prisioneiros desta lista, masvocê reclamou sobre a conduta do comandante.

— Blokhin era o principal verdugo de Stalin — explicou Maxi. — Nocaso dos prisioneiros poloneses de Katin, ele executou, pessoalmente,cerca de 11 mil homens em algumas noites.

Blokhin: À meia-noite, eu cheguei, pronto para dar início àsminhas obrigações como Chefe da Seção de Operações deComando, no Nível Maior, com essa lista de 123 sentenciados.Quero relatar ao Comitê Central que encontrei bêbados ocomandante e seus oficiais, na presença da prisioneira Zeitlin-Palitsin, que estava sendo tratada de modo extremamentecontrário à ética profissional e à nobre moralidade tchekista. Elajá estava parcialmente sem roupas. Protestei com veemência.Imediatamente, eu me ofereci para executar a sentença, masme mandaram embora. Tentei telefonar ao camarada Satinov.Quando ele chegou, relatei tudo a ele. Esses amadores bêbadose ineptos fizeram escárnio do meu profissionalismo e períciatchekista nesse trabalho especial e sensível. Eles estavamapostando e gritando. À meia-noite e meia, aproximadamente,eles forçaram a prisioneira Zeitlin-Palitsin a ir para o pátio, pertoda garagem dos oficiais, que estava bem iluminada por holofotes.A temperatura era de aproximadamente -40 graus.

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Goletchev: Nós executamos a Punição Maior, a sentença doColegiado Militar, contra a prisioneira Zeitlin-Palitsin, mas em nossaembriaguez, e por causa do atraso pouco profissional docamarada Satinov... fizemos isso de maneira inaceitável, frívola edepravada. Sim, eu admito que nós estávamos curiosos arespeito dela, como agente sedutora a serviço do imperadorjaponês e dos lordes ingleses, e como mulher.

Katinka ficou gelada.— Ah, meu Deus — murmurou ela. — Eles a estupraram?— Não. Se tivessem feito isso, estaria aqui — disse Maxi. — Mas, com

certeza, estavam excitados com a beleza dela, com sua reputação desedutora. Eles tinham ouvido falar das transcrições de Sashenka e Bênia.

Satinov: Eu cheguei às 3h e notei alguma coisa estranha nopátio, perto de onde meu motorista tinha estacionado o carro.Eu admito diante do Comitê Central que meu atraso foi, emparte, a causa dessa má conduta. O comandante Goletchevestava bêbado e tentou esconder o que tinha feito. Euconvoquei o major Blokhin e reexaminei a Lista de Prisioneirospara Sofrer a Punição Maior. Notei a ausência da prisioneiraZeitlin-Palitsin. Ordenei que o comandante Goletchev meconduzisse até ela. Depois, ordenei ao comandante Goletchev eao major Blokhin que começassem imediatamente. Osprisioneitos foram levados à cela designada para esse propósito eeu presenciei a Vichka de 122 prisioneiros, na condição detestemunha do Comitê Central. O major Blokhin colocou umavental de açougueiro e se conduziu com muita competência.Como comunista devotado, eu me rejubilei com a liquidaçãodesses Inimigos, traidores, canalhas e degenerados.Goletchev: Nós cometemos um crime contra os mais elevadospadrões morais do partido comunista, mas eu sou devotado decoração e alma ao partido e ao camarada Stalin. Eu espero umapunição impiedosa por isso, mas me coloco à mercê do ComitêCentral. Em torno das 3h, o camarada Satinov finalmente

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chegou e se comportou de maneira não-profissional, revelandoseu sentimentalismo burguês...

O crayon vermelho circundara essa acusação e rabiscara as palavras:Solidariedade de Satinov???

— Então, o que aconteceu? O que Satinov viu? — perguntouKatinka, totalmente concentrada; nenhuma pergunta jamais tinha lheparecido tão vital.

Satinov: Ela estava completamente... exposta. O comandanteGoletchev demonstrou um infantilismo depravado e umfilistinismo corrupto, como eu relatei pessoalmente e por escritoà Instantzia. Confesso que, enquanto interrogava Goletchev, eubati nele duas vezes e ele caiu no chão. Isso se deveu à minhaindignação como bom comunista, não a qualquersentimentalismo burguês a favor do Inimigo.

Maxi assoviou.— O que quer que tenha acontecido com Sashenka fez Satinov, um

homem de ferro daquela geração impiedosa, perder o controle. Queextraordinário — se descontrolar assim, na frente daqueles agentessecretos, poderia ter significado sua própria sentença de morte, naquelahora e naquele lugar.

— Mas o que ele viu? — Katinka percebeu que estava realmentegritando.

— Espere... — Maxi continuou a ler. — Aqui. Apontou para o final dodocumento. Em meio a um labirinto de sombreados verdes e rabiscos,Stalin escrevera uma palavra.

Mangueira.— Mangueira? Será que eu li errado?Maxi abanou a cabeça.— Acho que não... — Ele hesitou.— Mas o que isso significa?— Eu ouvi falar de um caso semelhante na Prisão de Vladimir, em

1937. Acho que eles amarraram Sashenka em um poste e abriram umamangueira em cima dela. Ela estava nua. Era uma noite inusitadamente

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fria. Eles ficaram apostando sobre quanto tempo iria demorar... para aágua congelar. O gelo foi cobrindo Sashenka. Ela virou uma estátua degelo.

28

Nenhum deles falou nada durante um longo tempo. Os tentilhões faziamserenatas para eles nas árvores, abelhas dançavam em torno das flores decerejeira, lilases púrpuras espreitavam em meio às bétulas prateadas.

Enquanto chorava pela avó que jamais conhecera, Katinka pensou noque Sashenka suportara, durante aquela noite longa e aterrorizante, nogelado inverno de 1940. Depois de algum tempo, Maxi colocou o braçoem torno dela.

— O que estamos fazendo aqui? — perguntou ela, finalmente,afastando-se dele.

— Fiz mais algumas pesquisas e descobri os arquivos do sepultamentode Sashenka, Vânia e até do tio Mendel. Depois da execução, eles foramcremados e suas cinzas foram enterradas nas terras de uma dacha doNKVD, nos bosques de bétulas nas cercanias de Moscou. Depois,seguindo as instruções do NKVD no caso de túmulos coletivos, arbustosde amoras e framboesas foram plantados no lugar. Olhe, há uma placanaquela árvore. — Ele apontou.

Aqui estão enterrados os restosdas vítimas inocentes e torturadas

da repressão polít ica.Que jamais sejam esquecidas!

— Ela está aqui, não está? — disse Katinka, aproximando-se maisdele. Ele a abraçou novamente e, desta vez, ela não se afastou.

— Não apenas ela — disse ele. — Estão todos aqui, juntos.

A noite estava caindo — aquele lusco-fusco rosado e enevoado, que faz

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Moscou parecer iluminada a partir de baixo, não de cima — quando Maxideixou Katinka na mansão Getman. Ela permaneceu nos degraus,acenando-lhe, enquanto ele se afastava.

Passando pelos guardas, entrou na casa, que estava inusitadamentesilenciosa. Encontrou Roza na cozinha.

— Você está precisando de um pouco de chai e pãezinhos de mel —disse Roza, olhando-a de relance. Katinka percebeu que sua pele deviaestar pálida e seus olhos, vermelhos. — Sente-se.

Roza preparou o chá, acrescentando mel e duas colheres deconhaque em cada xícara. Sua tia não deixava de perceber muita coisa,pensou ela.

— Aqui — disse Roza —, beba isso. Nós duas estamos precisando.Não se preocupe com seu pai. Eu estava apressando muito as coisas.Você sabia que ainda posso ver aquele garotinho robusto, em nossadacha, com o adorado coelhinho dele? Pensei nele assim durante toda aminha vida e estava ansiosa para encontrá-lo novamente — mas, é claro,eu já não o conheço mais. Você vai me dizer o que fazer?

— Sim, sim, é claro — disse Katinka, ainda abalada pelo que soubera,juntamente com Maxi, e assombrada com visões da morte de Sashenka.Sentiu uma súbita vontade de compartilhar o que sabia, de contar tudo aRoza, como a morte chegara a Sashenka, como aquilo acontecera, comoela estava — o que Satinov tinha visto. — Tenho uma coisa para lhemostrar — disse ela, tirando da mochila um maço de fotocópias.

— Espere — respondeu Roza. — Antes de olhar isso, quero lheperguntar uma coisa: sei que meu pai foi fuzilado, mas você disse quehavia uma coisa incomum... Como foi que minha mãe morreu?

— Eu estava para chegar lá — disse Katinka, mas alguma coisa a fezmanter os papéis apertados contra o peito.

Respirou fundo, ansiosa para continuar, mas, ao fazer isso, viuSashenka na neve, a pele branca no clarão dos holofotes e Satinov,horrorizado, um pouco mais tarde. Se ele tivesse realmente sedescontrolado, se não tivesse supervisionado as outras 122 execuçõeslogo em seguida, com firmeza stalinista, ele também teria sido torturado,até revelar como tinha salvado os filhos de Sashenka...

Katinka sentiu o olhar fixo de Roza, gentil mas penetrante, e abanou

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a cabeça — havia alguns segredos que ela deveria manter.Olhou para os olhos violeta e inteligentes de Roza e viu que ela

estava tensa, pronta para absorver mais um golpe. Então segurou-lhe asmãos.

— Como os outros. Ela morreu exatamente como os outros.Roza sustentou o olhar dela e, então, sorriu.— Eu achava isso. É bom saber. Mas o que você ia me mostrar?Habilmente, Katinka colocou a investigação da morte de Sashenka no

fundo da pilha de papéis. Outro documento ficou por cima.— Eu tenho algumas coisas que me foram dadas por Kuzma, o rato

de arquivo, inclusive isso, a confissão de sua mãe. Eu não li tudo, porqueela deu a eles duzentas páginas de confissões loucas, encontros secretoscom agentes inimigos e sua conspiração para matar Stalin, espalhandocianeto no gramofone da dacha — tudo para que Satinov tivesse tempode acomodar você e Carlo com suas novas famílias. Mas há uma coisaestranha. Posso ler para você?

Acusada Zeitlin-Palitsin: Em 1933, como recompensa oferecidapelo partido ao nosso trabalho, Vânia e eu obtivemos permissãopara ir a Londres, procurar tratamento para a minha neurastenia.Nós visitamos uma clínica muito conhecida, na Harley Street,chamada Cushion House, onde, a pretexto de um tratamentomédico, nós nos encontramos com agentes do serviço secretobritânico e com o próprio Trotski, que nos pediu paraprovidenciar o assassinato do camarada Stalin.Interrogador Mogiltchuk: Na Cushion House?Acusada Zeitlin-Palitsin: Sim.

— “Cushion House”3 é um nome estranho, mesmo em inglês —explicou Katinka. — Eu verifiquei. Nunca existiu nenhuma Cushion Houseem Londres, jamais. Isso faz sentido para você?

Roza começou a rir.— Venha comigo. — Ela segurou a mão de Katinka e a conduziu

escada acima até seu quarto, limpo e bem-arrumado. — Está vendo? —perguntou ela.

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— O quê? — perguntou Katinka.— Olhe! — Roza apontou para sua cama. — Aqui! — E pegou uma

velha e esfarrapada almofada, tão desgastada e comida por traças queera quase transparente, e tão desbotada pelo tempo que ficara quasebranca. — Essa era a Almofada, moya Podouchka, a companheira daminha infância e a única coisa que eu pude levar comigo para a minhanova existência.

Ela abraçou a almofada como se fosse uma criança.— Está vendo como ela se lembrou de mim? — disse Roza. — Minha

mãe estava me dizendo que me amava, não estava? Estava me enviandouma mensagem. Para que, se algum dia eu descobrisse quem eu era, eusoubesse que ela sempre me amou.

Subitamente, a atmosfera do quarto ficou tensa. Virando as costaspara Katinka, Roza olhou pela janela.

— Ainda há alguma coisa que lhe pareça estranha? — perguntou ela,esperançosamente. Katinka entendeu que ela desejava que surgissealguma coisa que pudesse ser relacionada ao irmão.

— Sim, agora que entendi o que ela estava fazendo, há uma coisa.Você disse que meu pai amava coelhos. Bem, na confissão, Sashenka dizque ela e Vânia esconderam um pouco de cianeto na coelheira da dacha— com tantos lugares mais plausíveis. Acho que ela deixou alguma coisapara ele também...

— Eu mesma gostaria de dizer isso a ele — disse Roza —, mas nãoquero fazer nada que o deixe deprimido. Pensei em esperar um pouco e,depois, telefonar para ele, quem sabe lhe fazer uma visita. O que vocêacha?

— Claro, mas não demore muito — Katinka sorriu —, está bem?

29

Fora um dia extraordinário, pensou Katinka enquanto descia as escadas.Mas o dia ainda não terminara.

Enquanto atravessava a espaçosa sala em direção à cozinha, ela ouviu

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um comboio de automóveis entrando na propriedade. Pacha estava devolta. Ouviu sua voz alta, seus passos desajeitados e uma voz rouca,desconhecida, que estava tagarelando — mas que se calouabruptamente.

— Ah, meu Deus, é ela! — disse a voz.Katinka virou-se e se viu frente a frente com um velho magro, de

rosto longo e sensível, usando um surrado boné de operário. Deveria teruns 80 anos, pelo menos, mas havia nele uma enorme energia. Conseguiaparecer garboso em um amarrotado terno marrom, largo demais para seucorpo esguio. Ela gostou dele imediatamente.

— É você, Sashenka? — disse o homem, olhando para elaintensamente. — É você? Meu Deus, estou sonhando? Você é tãoparecida com ela — os olhos cinzentos, a boca, até o jeito de ficar empé. Isso é algum truque?

— Não, não é — disse Pacha, logo atrás dele. — Katinka, você nãofoi a única a fazer pesquisas. Eu também achei alguém.

Katinka deixou cair a mochila e deu um passo para trás.— Quem é você? — perguntou, com voz trêmula. — Quem diabos é

você?O velho limpou o rosto com um grande lenço branco.— Quem faz as perguntas aqui? Eu ou essa magricela? — Katinka

percebeu que os olhos dele eram de um azul ofuscante. — Meu nome éBênia Golden. Quem é você? — Ele segurou e beijou a mão dela. — Mediga, pelo amor de Deus.

— Bênia Golden? — exclamou Katinka. — Mas eu pensei que vocêestivesse...

— Bem... — Bênia deu de ombros — todo mundo pensou isso. Possome sentar? Gostaria de tomar um conhaque, pode ser? — Ele olhou emvolta, para a mansão primorosamente restaurada, para as pinturas dosVelhos Mestres, para os sofás bem estofados. — Este lugar me diz que obar de vocês tem de tudo. Me tragam um Courvoisier, antes que eu caia.Foi uma viagem longa. Olhem, minhas mãos estão tremendo.

Foram então para a sala de estar, onde Pacha acendeu um charuto eserviu conhaque a todos.

— Então você ouviu falar de mim? — disse Bênia depois de algum

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tempo.— Claro, eu até li suas Histórias Espanholas — respondeu Katinka.— Eu não sabia que tinha fãs tão jovens. Não sabia que tinha

nenhum fã. — Ele ficou em silêncio. — Você é realmente o retrato deuma mulher chamada Sashenka, que, há muito tempo, eu amei de todoo coração. Ninguém nunca lhe disse isso?

Katinka abanou a cabeça, mas se lembrou do rosto de Sashenka nafotografia tirada na prisão e de como se sentira.

— Ela era minha avó — disse ela. — Eu tenho tentado descobrir oque aconteceu com ela.

— Você esteve naqueles abomináveis arquivos?— Ah, sim.— E descobriu como eles nos torturaram e nos arrebentaram?Katinka assentiu.— Tudo.— E você pode me dizer por que tudo isso aconteceu, a nós, quero

dizer, a mim e a Sashenka?— Não há uma razão — disse Katinka, lentamente. — Apenas uma

cadeia de acontecimentos. Eu descobri tanta coisa... Mas me diga, comovocê sobreviveu?

— Hum, não há muita coisa a dizer. Os facínoras de Stalin mebateram até eu dizer tudo o que eles queriam. Mas, no julgamento, eudisse que tinha mentido porque tinha sido torturado. Eu sabia que elesiriam me fuzilar e não podia enfrentar uma bala, sabendo que tinha traídoSashenka. Mas eles me deram dez anos em Kolima, em vez dofuzilamento. Eu fui solto durante a guerra — lutei muito nessa guerra —,mas tornei a ser preso depois, e novamente solto na década de 1950. Euera uma casca de homem, mas encontrei uma mulher nos campos, umaenfermeira, um anjo, e ela me reconstruiu. Depois, me arranjou umemprego como editor em um jornal de Birobijan, na região judia, perto dafronteira chinesa, e é nesse lugar esquecido de Deus que eu tenho vividodesde então.

— Você ainda escreve?— Eles tiraram a literatura de dentro de mim, a pancadas. — Com um

gesto, descartou o assunto. — Estou feliz apenas por respirar. Vocês têm

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comida neste palácio? Estou sempre com fome.— Claro — disse Pacha. — Podemos fazer qualquer coisa que você

quiser. É só dizer.— Vou querer bife, meu caro príncipe, com todos os

acompanhamentos e uma garrafa de vinho tinto — disse Bênia. — Vocêtem algum vinho francês? Ou isso é abusar do sonho? Houve uma épocaem que eu gostava de clarete francês... Bebi isso em Paris, veja você —você tem? Que bom, vocês me acompanham?

Ficou em silêncio, novamente, e Katinka pôde ver que seus olhosestavam marejados de lágrimas.

Finalmente, ele segurou a mão dela e a beijou pela segunda vez.— Encontrar você foi como um último verão para mim. Não se passa

um dia sem que eu me lembre da sua avó. Nós fomos os maioresamantes do mundo, mas só estivemos juntos durante onze dias. — Elesuspirou profundamente. — Eu dei a ela uma flor para cada...

Katinka sentiu o coração dar um pulo. Remexeu na mochila e tirouum pequeno envelope de pertences de Sashenka, que estava no arquivoque Kuzma lhe dera.

— Isso significa alguma coisa para você?Ela entregou a ele um envelope vincado, dirigido, em uma caligrafia

feminina, a “B. Golden”, na União dos Escritores Soviéticos.Ele pegou o envelope, abriu-o e, com os dedos tremendo, retirou

uma mimosa seca, tão frágil que quase se desfez em suas mãos.— Ela enviou isso para você — disse Katinka —, mas chegou muito

tarde, você já tinha sido preso. A União dos Escritores entregou oenvelope ao NKVD, e eles o arquivaram.

Bênia murmurou alguma coisa, abanando a cabeça sem acreditar.Então, ergueu a flor até o rosto, cheirou as velhas pétalas e as beijou.Quando finalmente conseguiu falar, sentou-se aprumado e orgulhoso,sorrindo para Katinka com olhos marejados.

Subitamente, com um sorriso jovial e triunfante, atirou o quepe aochão e rodopiou pela sala.

— Mesmo depois de cinquenta anos — disse ele —, sei o que issosignifica.

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30

Era um preguiçoso sommerki em Moscou, uma semana mais tarde. Um solsonolento e alaranjado perdera a imponência que tivera durante o dia elutava para permanecer no céu. A luz cobria as águas frias com um véudiáfano e alaranjado, enquanto as sombras sob as árvores se tingiam deazul-escuro. Havia tantas pétalas flutuando na brisa cálida que pareciamflocos de neve. Katinka caminhava com Maxi em torno das Lagoas doPatriarcado. Ainda estava um pouco aturdida. Mas sentia-se feliz por estarlonge da família e do passado. Enquanto contornava aquele santuário, emmeio à cidade barulhenta, apenas o presente tinha importância.

Ela não via Maxi desde o passeio nos bosques, e tinha coisas para lhecontar, coisas que somente ele entenderia e que somente eles poderiamcompartilhar. Embora sem se tocar, ela sentia que se moviam de formasincronizada, como se seus membros estivessem ligados por fios invisíveis.

— Estou feliz por viver nos dias de hoje — disse ela —, porque achoque não teria sido tão corajosa quanto Sashenka ou Vânia, se tivessevivido naquela época.

— Eu acho que você seria ainda mais corajosa — respondeu Maxi,enquanto, como uma só pessoa, caminhavam em direção ao café ao arlivre, à beira da água.

— Bem, graças a Deus nós não precisamos ser tão corajosos, emnossos dias — disse ela. — Somos livres, na Rússia. Pela primeira vez nahistória. Podemos fazer o que quisermos, dizer o que quisermos. Ninguémestá nos vigiando mais — isso acabou.

— Mas por quanto tempo? — perguntou Maxi, tão sério que Katinkapensou que ele estava sendo absurdamente pessimista. Subitamente, aalegria de estar viva e ser jovem tomou conta dela. Então virou-se e obeijou, sem nenhuma inibição.

FIM

3 Cushion, em inglês, significa “almofada”.

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Agradecimentos

Esta é a história de mulheres e crianças de uma família fictícia, ao longode várias gerações, e espero que seja apreciada assim: um romance sobrea intimidade de uma família. Mas foi inspirado por muitas histórias, cartas ecasos que encontrei em arquivos e ouvi em entrevistas, durante dez anosde pesquisas sobre a história russa.

Há muitos personagens históricos no livro — Rasputin e Stalin estãoentre os mais óbvios — e suas caracterizações são tão acuradas quantopossível. Mas, enquanto eu escrevia este livro, Sashenka e sua famíliacomeçaram a me parecer mais reais do que seus contemporâneosautênticos.

Os historiadores, geralmente, escrevem sobre pessoasextraordinárias, que moldaram os acontecimentos mundiais. Mas, nesteromance, eu quis escrever sobre como uma família comum enfrentou ostriunfos e as tragédias da história russa do século XX. Fiquei fascinado coma coragem e a tenacidade de milhares de mulheres que perderam seusmaridos e filhos, e perguntei a mim mesmo: como elas sobreviveram? Ecomo nós teríamos nos comportado em um período tão terrível?

Acima de tudo, este é um livro sobre o amor e a família. Mas eutambém quis tornar interessante — para os leitores que talvez nãogostem de ler livros de história — essa época estranha e trágica dahistória russa. Os detalhes da alta sociedade de São Petersburgo, suaslojas, restaurantes, clubes, prisões e espeluncas, seus magnatas eagentes secretos, o Instituto Smolni e os escritórios da Okhrana, emuitos de seus personagens escandalosos, como o príncipe Andronnikov,são absolutamente verídicos. No período soviético, Stalin, Beria, Rodos eKobilov são históricos, assim como os pormenores das prisões, seusguardas e os costumes da labiríntica burocracia soviética. A linguagem eos detalhes dos documentos da Parte III também são reais, emboraalguns dos arquivos tenham sido inventados. O vilarejo de Beznadejnaia éimaginário, embora pudesse ser qualquer um dos muitos lugares queconheci no norte do Cáucaso.

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A história de Sashenka e de sua família é inspirada em muitas históriasverdadeiras, inclusive as das esposas judias de alguns capangas de Stalin,as prisões de escritores, como Isaac Babel, e o caso de Nikolai Iejov, ochefe do NKVD, que destruiu todos os entes queridos de Jênya, suaesposa. Isto também é contado em Stálin: A Corte do Czar Vermelho ,meu livro de história.

Tenho uma grande dívida para com minhas fontes, cujo trabalho useicom liberalidade: para a Parte I (São Petersburgo, 1916), utilizei Fala,Memória, as famosas e primorosas memórias de Vladimir Nabokov; TheSilver Samovar (O Samovar de Prata), de Aleksandr Poliakoff, a quemconheci quando garoto, as brilhantes memórias de uma rica família judia,publicadas em edição particular; The Five (Os Cinco), de VladimirJabotinski; os numerosos volumes das memórias de Ilia Ehrenburg; eromances como A Família Moskat e O Solar, de Isaac Bashevis Singer.

Sobre história, polít ica, arte e sociedade, utilizei um livro soberbo:Passage Through Armageddon (Passagem pelo Armagedom), de W.Bruce Lincoln. Sobre os detalhes da polícia secreta tsarista, consulteiRussian Hide-and-Seek: The Tsarist Secret Police in St. Petersburg, 1906-14 (Esconde-Esconde Russo: A Polícia Secreta Tsarista em SãoPetersburgo, 1906-14), de Iain Lauchlan, e The Foe Within (O InimigoInterno), de William C. Fuller Jr. Mas encontrei a maior parte destematerial durante as pesquisas para meu último livro de história, O JovemStálin.

Para o período de Stalin, na Parte II, a maior parte do materialprovém de minhas próprias pesquisas a respeito da elite soviética, queembasaram meu livro de história Stálin: A Corte do Czar Vermelho , masdevo muito ao brilhante material que encontrei em The KGB’s LiteraryArchive (O Arquivo Literário da KGB), de Vitali Chantalinski. Tambémutilizei a narrativa The House on the Embankment (A Casa à Beira doRio), de Iuri Trifonov, e as histórias de Os Filhos da Rua Arbat, de AnatoliRibakov.

Livros de história recente, como Stalinism as a Way of Life (Stalinismocomo Modo de Vida), de Lewis Siegelbaum e Andrei Sokolov, Thank YouComrade Stalin (Obrigado, Camarada Stalin), de Jeffrey Brooks, e Rulersand Victims (Governantes e Vítimas), de Geoffrey Hoskins, foram fontes

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inestimáveis. O notável e inesquecível The Whisperers (OsSussurradores), de Orlando Figes, é particularmente esclarecedor, porquerevela como a história de Sashenka era, de muitas formas, um lugar-comum. Recomendo esse livro a qualquer um que fique intrigado commeu romance e queira saber o que realmente aconteceu com pessoas efamílias na Rússia. Mesmo nos anos 1990 — mesmo agora — famílias russasestão descobrindo seus extraordinários passados e reencontrandoparentes e amigos desaparecidos.

Peritos reconhecerão que a carta de Mendel, reclamando do modocomo foi tratado na prisão, é estreitamente relacionada com a trágicacarta escrita pelo diretor teatral V. Meyerhold.

Quanto às minhas fontes para a Parte III, a era dos oligarcas — e, éclaro, dos mistérios e delícias da pesquisa de arquivos na Rússia —, tudo oque posso dizer é que passei um bocado de tempo, como jornalista edepois como historiador, tanto em Moscou quanto no Cáucaso, duranteos anos 1990. A maior parte do material, nesta parte, foi obtida a partirde minhas próprias experiências.

Agradeço a Galina Babkova por ter investigado como era a experiência deestudar no Smolni; a Galina Olesiuk, que me ensinou russo, além deverificar e corrigir o original no que se refere ao contexto russo; a NestanCharkviani, por fornecer a cor local georgiana; a Marc e Rachel Polonski,por me hospedarem em seu apartamento no prédio da Granovski; e aDominic Lieven por seu encorajamento.

Obrigado a todos em minha editora, a Transworld, em particular a BillScott-Kerr, a Deborah Adams, por sua habilidosa revisão, e a Claire Warde Anne Kragelund. Fui também abençoado pelo trabalho brilhante,profícuo e meticuloso de minha editora, Selina Walker.

Meus pais, Stephen e April Sebag-Montefiore, revisaram eaprimoraram o livro. Minha esposa, Santa, consumada novelista, além demelhor e amorosa amiga, ofereceu-me preciosos conselhos sobre aconstrução dos personagens e do enredo. E fui constantementeencorajado e inspirado pelo charme exuberante de meus amados filhos —filha Lily e filho Sacha.

Simon Montefiore

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Dezembro de 2007

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Nota sobre Nomes e Linguagem

Os lugares na Rússia tendem a mudar de nome conforme as marés dahistória. São Petersburgo foi fundada por Pedro, o Grande, em 1703, efoi assim chamada até 1914, quando Nicolau II mudou seu nome, desonoridade germânica, para Petrogrado, “a cidade de Pedro”. Em 1924,os bolcheviques a renomearam como Leningrado. Em 1991, voltou a serSão Petersburgo. Tíflis, capital da Geórgia independente, é conhecidahoje como Tbilisi.

Os governantes da Rússia eram chamados de tsares, embora Pedro,o Grande, em 1721, tenha se declarado imperador. Desde então, osRomanovs foram chamados por ambos os títulos.

Em um contexto formal, os russos utilizam três nomes: o primeironome, um patronímico (que significa filho/filha de) e um sobrenome.Assim, o nome formal de Sashenka é Aleksandra Samuilovna Zeitlin: eVânia é Ivan Nikolaievitch Palitsin. Mas os russos (e os georgianos),geralmente, também utilizam diminutivos como apelidos: Sashenka é odiminutivo de Aleksandra, Vânia é o diminutivo de Ivan etc.

Na Área de Assentamento, os judeus falavam iídiche, comovernáculo, oravam em hebraico e faziam petições em russo. A línguageorgiana é totalmente diferente do russo, tendo seu próprio alfabeto eliteratura.

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Elenco de Personagens

Os nomes de figuras históricas estão marcados com asterisco.

A Família: os Zeitlins

Sashenka (Aleksandra Samuilovna) Zeitlin, colegial do Instituto Smolni

Barão Samuil Moiseievitch Zeitlin, banqueiro de São Petersburgo e pai deSashenka

Baronesa Ariadna (Finkel Abramovna) Zeitlin, nascida Barmakid, mãe deSashenka

Gideon Moiseievitch Zeitlin, irmão de Samuil, jornalista/romancista

Vera Zeitlin, sua esposa, e suas duas filhas,

Vika (Viktoria) Zeitlin e

Mouche (Sophia) Zeitlin, atriz

A Família: os Barmakids

Abram Barmakid, rabino de Turbin, pai de Ariadna e Mendel

Miriam Barmakid, mãe de Ariadna e Mendel

Avigdor Abramovitch “Arthur” Barmakid, irmão de Ariadna e Mendel, quepartiu para a Inglaterra

Mendel Abramovitch Barmakid, irmão de Ariadna e Avigdor, líderbolchevista

Natacha, uma iacuta, esposa de Mendel e camarada bolchevique

Lena (Vladlena), filha única de Mendel e Natacha

A Criadagem dos Zeitlins

Lala, Audrey Lewis, governanta inglesa de Sashenka

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Pantameilion, chofer

Leonid, mordomo

Delphine, cozinheira francesa

Luda e Niuna, criadas

Shifra, velha governanta de Samuil

São Petersburgo, 1916

Peter de Sagan, capitão dos gendarmes, oficial da Okhrana, nobre bálticosem dinheiro

Rasputin,* Grigori, o “Conselheiro”, curandeiro camponês e “amigo” daimperatriz

Anna Virubova,* amiga íntima da imperatriz e defensora de Rasputin

Júlia “Lili” von Dehn,* amiga íntima da imperatriz e defensora de Rasputin

Príncipe Mikhail Andronnikov,* traficante de influências, bem relacionado

Condessa Missy Loris, amiga americana de Ariadna, casada com o condeLoris, aristocrata de Petrogrado

Bóris Stürmer,* primeiro-ministro da Rússia tsarista, 1916

D.F. Trepov,* penúltimo primeiro-ministro da Rússia tsarista, 1916

Príncipe Dmitri Golitsin,* último primeiro-ministro da Rússia tsarista, 1916-17

Aleksandr Protopopov,* polít ico sifilít ico eúltimo ministro do Interior tsarista

Ivan Manuilov-Manesevitch,* espião, trapaceiro, jornalista e quebra-galhosdo primeiro-ministro Stürmer

Max Flek, advogado do barão Zeitlin

Dr. Mathias Gemp, médico da alta sociedade

Os Bolcheviques e Outros

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Vladimir Illitch Lenin,* líder bolchevique

Grigori Zinoviev,* líder bolchevique

Josef Vissarionovitch Stalin,* nascido Djugachvili, apelidado de “Koba”,bolchevique georgiano, mais tarde secretário-geral do Partido Comunista,

primeiro-ministro e ditador soviético

Viatcheslav Molotov,* nascido Scriabin, apelidado de “Vetcha”,bolchevique, mais tarde ministro das Relações Exteriores soviético

Aleksandr Chliapnikov,* operário e bolchevique de médio escalão, nocomando do partido durante a revolução de fevereiro de 1917

Hércules (Erakle Aleksandrovitch) Satinov, jovem bolchevique georgiano

Tamara, jovem esposa de Satinov

Mariko, filha de Satinov

Ivan “Vânia” Palitsin, operário, ativista bolchevique

Nikolai e Marfa Palitsin, pais de Vânia

Razum, motorista de Vânia

Nikolai Iejov,* o “Anão Sanguinário”, chefe da polícia secreta (ComissárioPopular de Assuntos Internos — NKVD), 1936-8

Lavrenti Pavlovitch Beria,* georgiano, chefe da polícia secreta de Stalin(Comissário Popular de Assuntos Internos — NKVD), 1938 em diante

Bogdan Kobilov,* agente secreto georgiano, principal capanga de Beria,apelidado de “O Touro”

Pavel Mogiltchuk, investigador do NKVD, Seção de Ocorrências Graves,Segurança Estatal, autor de histórias policiais

Bóris Rodos,* investigador do NKVD, Seção de Ocorrências Graves,Segurança Estatal

Vassili Blokhin,* carrasco do NKVD, major, Segurança Estatal

Conde Alexei Tolstoi,* escritor

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Ilia Ehrenburg,* escritor

Isaac Babel,* escritor

Klavdia Klimov, editora-assistente da Esposa Soviética e Administração doLar Proletário

Micha Kalman, editor de reportagens especiais, Esposa Soviética eAdministração do Lar Proletário

Leonid Goletchev, oficial do NKVD, comandante do Objeto Especial 110,Prisão de Sukhanovka

Beniamin “Bênia” Golden, escritor

A Família Vinski, do norte do Cáucaso

Dr. Valentin Vinski, médico russo no vilarejo de Beznadejnaia

Tatiana Vinski, sua esposa

Katinka (Ekaterina Valentinovna), filha deles

Percevejo, Sergei Vinski, pai de Valentin, camponês

Baba, Irina Vinski, mãe de Valentin, camponesa

A Família Getman, de Odessa

Roza Getman, nascida Liberhart, viúva em Odessa

Pacha (Pavel) Getman, filho de Roza, oligarca bilionário

Professor Enoch Liberhart, pai de Roza Getman, professor de musicologiano Conservatório de Odessa

Dra. Perla Liberhart, mãe de Roza Getman, professora de literatura naUniversidade de Odessa

Moscou, anos 1990

Maxi Chubin, historiador da época do Terror stalinista

Coronel Lentin, agente secreto russo, KGB/FSB, o Sagui

Coronel Trofimski, agente secreto russo, KGB/FSB, o Mágico

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Kuzma, arquivista da KGB/FSB

Agrippina Begbulatov, oficial de arquivo

Apostollon Chcheglov, arquivista

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SumárioFolha de rosto 2Créditos 3Dedicatória 4Epígrafe 5Procura-se 5Parte Um - São Petersburgo, 1916 7Parte Dois - Moscou, 1939 190Parte Três - Cáucaso, Londres, Moscou, 1994 385Agradecimentos 538Nota sobre Nomes e Linguagem 542Elenco de Personagens 543