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0 UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Programa de Pós-Graduação em Filosofia PAULO SERGIO SANTORO Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática São Paulo 2013

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

PAULO SERGIO SANTORO

Similaridades e diferenças entre

a paideía sofista e a socrática

São Paulo

2013

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PAULO SERGIO SANTORO

Similaridades e diferenças entre

a paideía sofista e a socrática

Dissertação apresentada à Faculdade de

Ciências Humanas e Sociais da Universidade

São Judas Tadeu como parte das exigências

para a obtenção do título de Mestre em

Filosofia

Área de Concentração: Filosofia Antiga

Orientador: Prof. Dr. Paulo Henrique

Fernandes Silveira

São Paulo

2013

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer

meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que

citada a fonte.

Catalogação da Publicação

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade São Judas Tadeu

Santoro, Paulo Sergio.

Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática / Paulo Sergio Santoro;

orientador Paulo Henrique Fernandes Silveira. – São Paulo, 2013.

___ f.

Dissertação (Mestrado)–Universidade São Judas Tadeu, 2013.

1. ______________. 2. ___________________. 3. ___________________. I. Paulo

Henrique Fernandes Silveira. II. Título. III. Título: __________.

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Nome: SANTORO, Paulo Sergio

Título: Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática

Dissertação apresentada à Faculdade de

Ciências Humanas e Sociais da Universidade

São Judas Tadeu como parte das exigências

para a obtenção do título de Mestre em

Filosofia

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. __________________________ Instituição: ______________________________

Julgamento: _______________________ Assinatura: ______________________________

Prof. Dr. __________________________ Instituição: ______________________________

Julgamento: _______________________ Assinatura: ______________________________

Prof. Dr. __________________________ Instituição: ______________________________

Julgamento: _______________________ Assinatura: ______________________________

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AGRADECIMENTOS

Este projeto de formação em Filosofia foi concebido há aproximadamente cinco anos, e teve

por meta apenas fazer o curso de mestrado. Mas, após conversar com o professor Plínio

Junqueira Smith (ex-coordenador da Pós-Graduação), recebi a recomendação de fazer o curso

de graduação completo, com o objetivo de sedimentar meus conhecimentos em Filosofia, já

que minha formação era exclusivamente na área de exatas. E, só posteriormente, tendo um

domínio mais sólido dos conceitos filosóficos, partir para fazer o curso de mestrado. Naquele

momento confesso que fiquei meio desapontado, porém hoje reconheço que foi a melhor

coisa que poderia ter-me acontecido.

Assim, agradeço a ele e a todo o grupo de docentes da USJT, constituído essencialmente por

professores doutores, que, com sua competência, responsabilidade e dedicação, contribuíram

para que este projeto fosse concluído com êxito. Aproveito também para agradecer ao

professor Floriano Jonas Cesar (atual coordenador da Pós-Graduação), pela confiança em

mim depositada, fornecendo-me sugestões e subsídios que sempre visaram a melhoria do

projeto. Da mesma forma, fico extremamente grato à Capes pelo imenso apoio dela recebido

ao conceder-me uma bolsa de estudos: sem ela teria sido impossível concretizar este meu

sonho.

Agradeço, em especial, ao professor Paulo Henrique Fernandes Silveira, pela orientação ao

longo do mestrado, sempre precisa e oportuna, permitindo a evolução do projeto de uma

forma bastante natural, principalmente com suas recomendações e correções de rota para que

o projeto não se dispersasse em assuntos de menor interesse e em elucubrações, e a

manutenção de seu principal foco. Ele foi muito mais que um orientador, foi um mestre e

amigo, aplicando a todo momento o que Sócrates denominava philía, ou seja, a amizade

virtuosa.

Também agradeço profundamente aos membros da Banca de Qualificação e de Defesa pelas

sugestões e pelo tempo que despenderam na análise deste texto, e, em consequência, por suas

considerações, de grande utilidade, que foram fundamentais para aumentar a qualidade deste

projeto.

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Outro grupo de pessoas que foram fundamentais para a realização deste trabalho foram meus

pais, fornecendo a força necessária em momentos de crise, minhas filhas Mariana e Isabella,

as quais me auxiliaram efetivamente em diversas oportunidades ao longo deste trajeto, e, por

fim, a Thelma, que, muito mais do que companheira, ajudou-me na leitura de alguns livros, na

digitalização de outros, na formatação dos textos, na correção ortográfica e no apoio espiritual

e material, sem os quais certamente não conseguiria chegar aonde cheguei. Enfim, agradeço a

todos os que de forma direta ou indireta colaboraram para que esse sonho se tornasse

realidade.

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RESUMO

SANTORO, P. S. Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática. 2013. 100 f.

Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade São Judas

Tadeu, São Paulo, 2013.

A paideía é um fenômeno educacional concebido no final do período clássico grego, e seus

principais representantes foram os Sofistas e Sócrates, os quais participaram ativamente de

sua evolução como um processo efetivo de formação consciente do espírito do homem; eles,

todavia, divergiam sobre diversos conceitos e princípios pedagógicos, que resultaram em sua

ramificação em dois programas educacionais distintos: a paideía sofista e a socrática. E é

sobre essas paideîai que vou centralizar todo o foco deste estudo, tentando identificar suas

principais características educacionais, suas particularidades pedagógicas e fundamentalmente

suas diferenças e semelhanças.

Palavras-chave: paideía, Sofistas, Sócrates.

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ABSTRACT

SANTORO, P. S. Similaridades e diferenças entre a paideía sofista e a socrática. 2013. 100 f.

Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade São Judas

Tadeu, São Paulo, 2013.

The paideia is an educational phenomenon conceived in the end of the classical Greek period,

and its main representatives were the sophists and Socrates, who were actively involved in its

evolution as an effective, conscious establishment process; however, they disagree on various

pedagogical concepts and principles, which resulted in two distinct educational programs, that

is, the sophist paideia and the Socratic one. And this ramification will be the subject of this

study; I will try to identify their leading educational features, their pedagogical particularities

and fundamentally their distinction and similarities.

Keywords: paideía, Sophists, Socrates.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................10

CAPÍTULO 1: Os sofistas e seus métodos educacionais..................................................14

1.1 Origens do movimento sofista....................................................................................14

1.1.1 Mudanças nos rumos do pensamento grego.............................................................14

1.1.2 A areté e a educação.................................................................................................16

1.1.3 Surgimento da paideía..............................................................................................18

1.2 Propostas e objetivos pedagógicos..............................................................................19

1.2.1 Os primeiros educadores profissionais.....................................................................20

1.2.2 Influência da nómos e da phýsis na pedagogia sofista..............................................22

1.3 A paideía de Protágoras..............................................................................................23

1.3.1 Suas influências educacionais....................................................................................23

1.3.2 A flexibilidade pedagógica da paideía protagoriana...................................................28

1.3.3 O diálogo Protágoras ...............................................................................................30

1.4 A paideía de Górgias...................................................................................................34

1.4.1 Principais características.........................................................................................34

1.4.2 Objetivos pedagógicos da paideía gorgiana..............................................................39

1.4.3 O diálogo Górgias.....................................................................................................40

1.5 Semelhanças entre a paideía de Protágoras e de Górgias..............................................43

CAPÍTULO 2: Sócrates e seu ideal pedagógico................................................................46

2.1 O Sócrates histórico....................................................................................................46

2.1.1 A moral socrática ....................................................................................................46

2.1.2 A influência do oráculo de Delfos no pensamento de Sócrates.................................51

2.2 Principais ideias..........................................................................................................55

2.2.1 O intelectualismo socrático......................................................................................55

2.2.2 A metodologia socrática...........................................................................................57

2.3 A paideía socrática......................................................................................................60

CAPÍTULO 3: Divergências e semelhanças entre a paideía sofista e a socrática.............66

3.1 Conflitos entre suas paideîai.......................................................................................66

3.1.1 Abrangência dos programas educacionais...............................................................66

3.1.2 Em relação ao público-alvo......................................................................................69

3.1.3 Comprometimento com os educandos.....................................................................73

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3.1.4 Fundamentos essenciais de suas paideîai.................................................................75

3.2 Similaridades entre suas paideîai................................................................................79

3.2.1 O uso da razão.........................................................................................................79

3.2.2 A preocupação com a hybris e a phronesis...............................................................81

3.2.3 A observância às leis................................................................................................84

3.2.4 Sobre os ideais humanistas......................................................................................87

CONCLUSÃO.........................................................................................................................91

REFERÊNCIAS......................................................................................................................95

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INTRODUÇÃO

A Grécia no período clássico foi marcada por diversas transformações de cunho

político, comercial e sociocultural. Esse conjunto de mudanças, além de proporcionar um

desenvolvimento significativo nas suas cidades, mais especificamente em Atenas, também

favoreceu a concepção de vários movimentos intelectuais que revolucionaram a forma de

encarar os problemas relativos ao homem e seu real papel na sociedade.

Embora esse movimento renovador tenha sido observado em vários segmentos da

sociedade grega, a grande revolução ocorreu no seu sistema educacional, principalmente na

concepção de novos modelos pedagógicos1 e na alteração do significado da palavra paideía,

que deixa de representar apenas o velho conceito de criação dos meninos e passa a ser

composta por um conjunto de procedimentos educacionais que visavam uma formação

completa do ser2.

Esse fato exigiu uma mudança radical nos processos educacionais vigentes, ou seja, o

centro dos estudos deslocou-se das coisas exteriores ao homem para o seu interior, e

proporcionou o desenvolvimento de uma perspectiva educacional mais antropocêntrica,

resultando em uma maior humanização na forma de aquisição do saber.

Consequentemente, os métodos para a obtenção do conhecimento passaram por uma

reformulação em seus princípios pedagógicos, e o seu fruto foi a concepção de dois

movimentos de grande importância para a cultura europeia ocidental. O primeiro grupo,

composto pelos sofistas3, tinha uma proposta pedagógica imediatista e utilitária, visando

atingir o sucesso e a excelência política. O segundo grupo, formado pelos filósofos, aqui

representados por Sócrates4, priorizava uma formação completa do homem em si, valorizando

os aspectos que conduziam à obtenção da virtude, até chegar ao seu maior grau de

interiorização, ou seja, a alma.

1 Os termos, modelo ou método pedagógico e programas ou processos educacionais, amplamente utilizados ao

longo do estudo, apesar de indicarem certo anacronismo, referem-se a uma estrutura educativa mesmo que

incipiente existente no século V a.C. e servem como um elemento conceitual para comparar as propostas

educacionais dos sofistas e de Sócrates. 2 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 3. ed. Tradução de A. M. Parreira. São Paulo: Martins

Fontes, 1995, p. 26. 3 GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 29. 4 JAEGER, op. cit., p. 192.

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Apesar dessas escolas procurarem obter por meio da virtude, ou da areté5, seus

objetivos educacionais, elas divergiam em vários de seus conceitos pedagógicos, notadamente

na forma de aplicar e de compreender os elementos que compunham suas paideîai e na

definição de qual é a real essência da virtude. As diferenças existentes entre essas duas

tradições pedagógicas e suas possíveis semelhanças determinaram os rumos da educação

grega e influenciaram fortemente as futuras gerações no que se refere à aquisição do saber.

Estes aspectos e outros, tais como a divergência observada na forma de interpretar a essência

da virtude, a possibilidade ou não de ensiná-la, a existência de uma paideía mais adequada

para cumprir tal objetivo e se, apesar de todos os indícios contrários, existe alguma

semelhança entre essas paideîai, são o principal objeto desse estudo.

O ponto de partida para tentar atingir essa meta é a Atenas do século V a.C., local em

que se deu a confluência das principais ideias dos representantes dessas duas correntes

filosóficas. Segundo Werner Jaeger, os questionamentos e as alterações sociais e políticas que

ocorreram em Atenas abalaram as bases cientificistas da escola pré-socrática e transformaram

o homem no principal objeto de estudo de seus pensadores. Isto teve como consequência a

concepção de um movimento educacional que veio como uma reação natural às necessidades

e aos anseios dessa nova sociedade.

Esse grupo de pensadores, denominados “sofistas”, deslocava-se entre as cidades

gregas com a proposta de ensinar técnicas de retórica e de oratória para os jovens que

desejavam assumir funções de destaque na vida pública. Seu principal objetivo era formá-los

na arte de convencer e de persuadir os cidadãos nas assembleias. Eles também foram

considerados os primeiros professores remunerados da Grécia; bem como os responsáveis

pela adoção de ideais laicos nos métodos pedagógicos que visavam a obtenção do saber. Os

sofistas surgiram como um movimento contrário à abordagem teórica e cientificista dos pré-

socráticos, pois trouxeram uma visão mais cosmopolita e uma proposta pedagógica focada nas

coisas da vida prática.

Outro aspecto relevante foi que eles concentraram todos os seus esforços no sentido de

criar um movimento essencialmente educativo. Jaeger6 afirma que é nessa fase da cultura

grega que surge efetivamente a paideiía, concebida como um processo de formação

5 “O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de areté, que remonta aos tempos mais

antigos. Não temos na língua portuguesa um equivalente exato para este termo; mas a palavra ‘virtude’, na sua

acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma

conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega” (id., ibid.,

p. 21). 6 JAEGER, 1995, p. 312.

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consciente do homem. No entanto, a paideía sofista assentou suas bases no subjetivismo e no

relativismo, característica que propiciou a adoção de uma multiplicidade de fontes para a

obtenção do conhecimento, favorecendo significativamente uma educação orientada para a

aquisição de uma grande diversidade de saberes, ou seja, um conhecimento enciclopédico

baseado na erudição, isto é, a polymátheia. Outro tema que acompanhou a proposta dos

sofistas é o ensino da virtude, pois, segundo eles, a formação de um bom governante não

depende da natureza humana nem dos deuses, mas sim da aplicação de um conjunto de

técnicas pedagógicas para atingir a areté política, já que a virtude seria um tipo de arte, ou

tékhne.

Embora os ideais pedagógicos dos sofistas tenham provocado controvérsias na

sociedade ateniense, é inegável sua contribuição para o amadurecimento dos programas

educacionais gregos. E é sob essa perspectiva, de grandes e influentes educadores da Grécia,

que irei abordar dois dos maiores representantes do movimento sofista, isto é, Protágoras e

Górgias. Ressalto que, apesar de existirem muitos fragmentos de seus escritos e uma sólida

doxografia de suas obras, muito utilizadas como fonte para minhas pesquisas, optei por definir

como pilares deste estudo as obras da juventude de Platão, também conhecidas como

“diálogos socráticos”. Assim, destacarei as particularidades desses dois sofistas,

fundamentalmente no que se refere às diferenças observadas em seus conteúdos pedagógicos,

em seu modo de transferir o conhecimento, na sua aceitação da multiplicidade (respeito a

diversidade), e, principalmente, na paideía de ambos. Mesmo porque cada um deles concebeu

um tipo de paideía que cabe ser analisada com um maior nível de profundidade, pois foi

objeto de estudo em diversos diálogos socráticos.

Paralelamente, nesse mesmo momento histórico, a escola filosófica, aqui representada

por Sócrates, deslocou o foco de seu estudo para as coisas e causas humanas, ou seja, para o

seu interior. Essa preocupação com o processo de formação consciente do homem propiciou a

concepção de uma paideía que valorizasse o autoconhecimento, o que é visível na frase

“conhece-te a ti mesmo”, e utiliza a exortação e a refutação como elementos de seu modelo

pedagógico, para adquirir a sabedoria ou obter o conhecimento da virtude em si. Da mesma

forma que o movimento sofista, Sócrates criticou algumas das linhas de pensamento dos pré-

socráticos, especialmente a cosmológica, pois acreditava que eles queriam conhecer coisas da

natureza que pertenciam somente à sabedoria divina.

Outro aspecto interessante a ser observado é que Sócrates não deixou nada escrito,

portanto, tudo o que se sabe sobre suas ideias nos foi transmitido por outros pensadores,

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principalmente Platão, seu amigo e discípulo, e autor de muitas obras. Assim, considero

factível a possibilidade de haver certa interferência de Platão nas ideias socráticas, pois existe

inegavelmente uma interpretação pessoal no processo de recepção e de transmissão de

conceitos, em especial quando recebidos de terceiros. Mas acredito que os diálogos socráticos

são o que temos de mais próximo das ideias de Sócrates. E é nesse Sócrates histórico que vou

basear-me e tentarei esclarecer alguns pontos sobre seus ideais educacionais, tais como em

que consiste a paideía socrática? Qual é o papel do preceito “conhece-te a ti mesmo” em sua

filosofia? Qual é a importância da busca da unidade (conceito universal) no processo de

aprendizado do educando?

Por fim, na última fase deste estudo será feita uma análise comparativa entre a paideía

de Sócrates e a paideía dos sofistas, com ênfase em suas possíveis similaridades e em suas

divergências de maior relevância, com destaque ao que se refere aos processos pedagógicos

de ambas as paideîai e seus reflexos educacionais para o período clássico grego e para a

posteridade.

Em suma, o estudo está dividido em três grandes momentos lógicos, começando pelo

Capítulo 1, em que são abordadas as principais ideias do movimento sofista, representadas

pelos ideais pedagógicos de Protágoras e de Górgias, determinando as características de sua

paideía e a forma de ensinar a virtude política. No Capítulo 2, o foco está na filosofia

socrática, baseada em diversos preceitos de moralidade e no autoconhecimento como forma

de ter acesso ao que ele considerava como sendo o verdadeiro saber; bem como em questões

relativas à obtenção da virtude política e também aos elementos e conceitos observados em

sua paideía. Finalmente, no capítulo 3 é feita uma análise das possíveis semelhanças e

diferenças entre a paideía socrática e a sofista. Além disso, aborda a contribuição e a

influência que essas duas paideîai tiveram para o rumo dos futuros programas educativos

ocidentais.

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14

CAPÍTULO 1

Os sofistas e seus métodos educacionais

O capítulo pretende abordar os aspectos de maior relevância que propiciaram o

surgimento do movimento sofista e ressaltar as bases mais importantes de seu modelo

pedagógico; bem como visa destacar as principais características da paideía sofista, que

recebeu grande influência das ideias de Protágoras e de Górgias.

1.1 Origens do movimento sofista

1.1.1 Mudanças nos rumos do pensamento grego

O advento da sofística é fruto de um conjunto de fatores econômicos, políticos e

socioculturais que ocorreram na Grécia, mais especificamente em Atenas, após a bem-

sucedida guerra contra os persas, no final do século V a.C. Neste período, marcado por

grandes transformações, os horizontes citadinos foram ampliados de forma significativa,

devido à evolução nas relações sociais e comerciais com outros povos. Tal intercâmbio

cultural influenciou fortemente os hábitos e os costumes do cidadão ateniense, que, entre

outras coisas, passou a reivindicar maior participação nas decisões do Estado.

Esses novos ideais democráticos suscitavam uma revisão nos modelos educacionais

tradicionais, objetivando atender as exigências dessa sociedade mais rigorosa e participativa.

Assim, o movimento sofista, com suas bases sedimentadas no racionalismo e no humanismo7,

surgiu como uma resposta natural para as necessidades educacionais da época, já que Atenas

vivia um momento de modificações profundas em suas tradições, e impunham-se mudanças

urgentes na maneira de encarar os processos de formação de seu cidadão.

O modelo aristocrático até então vigente, com sua educação voltada para os nobres, e a

insistência dos filósofos pré-socráticos em focar suas pesquisas nos fenômenos naturais, tão

distantes das coisas humanas, não atendiam mais os anseios dessa sociedade em plena

transformação. Logo, a humanização e a democratização do saber, por meio de uma formação

7 GUTHRIE, 1995, p. 30.

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consciente, passaram a ser a grande meta a ser atingida pelos filósofos atenienses. Com base

neste fato, um grupo de pensadores originários das mais diversas regiões da Grécia migrou

para Atenas tendo o objetivo de suprir essas carências. Eles eram os sofistas e surgiram com

uma proposta político-pedagógica para atender as necessidades oriundas dessa recente fase

evolutiva que o Estado ateniense atravessava.

Embora os sofistas representassem uma renovação nos modelos pedagógicos

tradicionais gregos, eles foram influenciados pelas duas maiores forças educativas existentes

até então, ou seja, as dos poetas8 e as dos filósofos pré-socráticos

9. Neste mesmo sentido,

William Guthrie10

afirma o seguinte: W. Jaeger definiu corretamente o movimento sofista

como uma herança da tradição educacional dos poetas; bem como Nestlé também estava

correto ao destacar a grande influência que os filósofos jônios tiveram nos ideais sofistas,

principalmente no que se refere a seu racionalismo e a seu ceticismo. Portanto, nota-se que os

sofistas são homens de seu tempo e foram marcados pelas duas maiores forças educacionais

de sua época. Cabe também lembrar que nesse período os métodos didáticos estavam

baseados na prosa11

, e, como tal, eles a utilizaram como um instrumento pedagógico.

Assim, os sofistas lançaram mão de todos os recursos educacionais disponíveis no

sentido de facilitar o aprendizado de seus discípulos, bem como direcionavam todos os seus

esforços para a educação política dos homens e a formação dos futuros governantes das

cidades.

Esse modelo pedagógico mais racional e focado no indivíduo acabou se transformando

na marca do movimento sofista e veio ao encontro das necessidades dessa nova sociedade. E,

até mesmo, esse é um dos motivos pelos quais eles se intitularam “mestres da sabedoria”, pois

tinham como principal objetivo ensinar uma grande diversidade de saberes, ou polymátheia,

visando a aquisição da areté política.

8 “Os sofistas reconheciam sua descendência da primitiva tradição educacional dos poetas” (GUTHRIE, 1995, p.

38). 9 “A influência dos eleatas sobre Protágoras e Górgias é inegável, também a de Heráclito sobre Protágoras, e

Górgias se diz discípulo e seguidor de Empédocles” (id., ibid., p. 19). 10 Id., ibid., p. 33. 11 LOH, M. On Socrates Criticisms of the Education of the Sophists, p. 2. Taiwan Philosophical Association.

Disponível em: <http://www.google.com.br/url?q=http://tpa.hss.nthu.edu.tw/files/annual/2011/TPA%

25202011%2520paper %2520-%252024.pdf&sa=U&ei=Xrm-Ts3zM4HVgQeB29S9Bw&ved=0CBAQFjAA

&usg=AFQjCNEnWVauHiJwT4W7uu8mG_WBeG2crg>. Acesso em: 12 out. 2011.

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16

1.1.2 A areté e a educação

O conceito de areté sempre esteve fortemente associado aos processos de formação do

homem grego, tanto que suas origens confundem-se com a própria história da educação grega.

Basta observar que já no período homérico havia indícios da presença dos modelos de virtude

a serem seguidos dentro de sua cultura. Outra particularidade dessa época é que a educação

era de responsabilidade dos poetas, que estabeleciam as diretivas de conduta e os preceitos de

moralidade dos indivíduos.

Jaeger12

afirma que a areté serve como um fio condutor que dá unidade à história da

educação grega. Logo, a areté deve ser tratada como um elemento central no processo

educacional da Grécia, que em sua mais alta concepção de formação nos conduz ao conceito

de paideía13

. Os seus conceitos e características serão, contudo, analisados posteriormente

com maior profundidade.

Portanto, cabe ressaltar que a areté, enquanto associada a um processo educacional,

procura obter como resultado um aperfeiçoamento do indivíduo nas questões éticas e morais.

Logo, ela está diretamente vinculada às ações virtuosas. Segundo o mesmo Jaeger14

, o

conceito de areté pode ser relacionado ao conceito de virtude, mas não esgota todo o seu

sentido para os gregos. A título de homogeneização e de padronização, porém, vou adotar as

palavras “virtude” e areté como sinônimos.

Retomando a questão dos primórdios da areté, vale lembrar que suas origens

remetem-nos ao período homérico (séculos XII a VIII a.C.), em que a tarefa de educar cabia

aos poetas, principalmente Homero, cujas obras, em especial, a Ilíada15

e a Odisseia16

,

exerceram um papel fundamental nos processos pedagógicos da sociedade grega. Seu

princípio educacional baseava-se essencialmente no exemplo vivo dos heróis míticos17

, que

representavam o modelo de virtude a ser seguido por todos os homens. Nesse período, a

virtude estava diretamente ligada à nobreza de caráter, ou seja, o homem virtuoso é aquele

que reúne em si várias qualidades espirituais, físicas e morais. Esse conjunto de atributos

12 JAEGER, 1995, p. 19. 13 “Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, tradição, literatura ou educação; nenhuma

delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por paideía. Cada um daqueles termos se limita a exprimir

um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só

vez” (id., ibid., p. 2). 14 Id., ibid., p. 20. 15 A Ilíada é o poema épico atribuído a Homero que trata a guerra de Troia (em grego, Illion). 16 A Odisseia é o poema épico atribuído a Homero que relata o retorno de Ulisses (Odisseus, em grego) para

Ítaca, após a guerra de Troia. 17 MARROU, H. I. História da educação na antiguidade. São Paulo: EPU, 1990, p. 2.

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proporcionava a obtenção da coragem, da força física, da honra e, por fim, do heroísmo

guerreiro.

Posteriormente, no período arcaico (séculos VIII a V a.C.), surge uma nova visão do

conceito de areté, isto é, para o homem ser considerado virtuoso, já não bastava possuir os

atributos heroicos de honra e glória, que até então eram suficientes. A virtude agora estava

associada a um novo conceito, denominado kalokagathía18

, que priorizava a beleza e a

bondade do homem. Para atingir tal objetivo foi necessário criar, visando a formação de suas

crianças, um programa educacional, composto por dois elementos fundamentais, a ginástica

para o fortalecimento do corpo e a música para o desenvolvimento do espírito, obtido por

meio da leitura e do canto das obras dos grandes poetas. Nessa época, o ideal educacional

grego passa a ter seu foco no indivíduo como um todo, ou seja, na formação de um homem

que tem total domínio sobre seus instintos e começa a valorizar os atos regidos pela razão.

Já no período clássico (séculos V a IV a.C.), o ideal grego de pensar a educação como

algo que faz parte de um processo contínuo e em permanente evolução foi amadurecendo, e o

homem passou a valorizar a razão, que se fundamenta em uma análise crítica do mundo e na

liberdade de pensamento. Outro aspecto relevante a ser considerado é a contribuição trazida

para o futuro da sociedade grega pelos ideais democráticos, como, por exemplo, a igualdade

de todos os homens adultos perante a lei e o direito de todos participarem diretamente do

governo das cidades, bem como a garantia a todos de tomarem parte nas decisões políticas e

na manifestação pública de suas opiniões. Consequentemente, o indivíduo torna-se um

cidadão a partir do momento em que compartilha as decisões, as discussões e as votações nas

assembleias públicas. Portanto, mais uma vez é alterado o conceito de areté, e o ideal

educacional passa a ter como principal objetivo a possibilidade de o homem grego assumir

seus direitos políticos e tornar-se um cidadão atuante na pólis.

Embora o movimento sofista tenha atribuído uma perspectiva mais utilitária ao novo

conceito de areté, essa não foi a única forma de encará-la, pois os filósofos, representados por

Sócrates, consideravam que a areté era algo mais amplo e complexo do que a virtude política

preconizada pelos sofistas.

1.1.3 Surgimento da paideía

18 A palavra kalokagathía significa bem agir, cf. JAEGER, 1995, p. 688.

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18

O conceito de paideía surge no momento em que se considerou estar a civilização

grega em seu apogeu e desejava atender os ideais de uma educação completa para suprir todas

as necessidades dessa nova sociedade. Conforme já abordado, até então os programas

educacionais eram voltados essencialmente para a formação das crianças19

, e eram compostos

por um modelo bastante simples e elementar, baseado no ensino da música, da ginástica e de

alguns fundamentos primários de gramática e cálculo.

No entanto, a nova fase carecia de um processo que contemplasse o homem como um

todo, desde a infância até a maturidade, abrangendo tanto o corpo quanto a alma. Neste

sentido, a paideía foi concebida com vistas a suprir a necessidade de uma formação que

incluísse aspectos culturais e políticos. Mesmo porque o momento suscitava um programa

educacional que preparasse os cidadãos para exercer seus direitos e deveres na vida pública,

dentro do Estado democrático ateniense.

Dessa maneira, a paideía pode ser vista como um método de formação completa do

ser, pois em seu programa educacional contempla fatores individuais e coletivos. Isto

significa que o indivíduo e a comunidade são mutuamente responsáveis por seu sucesso, ou

seja, por um lado, constitui-se um ideal de cultura e, por outro, gera-se um ser racional e

político, que tenha como finalidade praticar ações que visam o bem da coletividade.

Logo, a paideía está fundamentada na busca de uma formação integral, que, por meio

da educação, objetive proporcionar uma mudança interior, espiritual, que nos transforme e

molde nosso caráter, reformulando nossa visão de mundo, e permitindo adquirir um

conhecimento efetivo e duradouro; bem como promover o desenvolvimento do espírito, em

conjunto com a capacidade de aprender, o talento para compartilhar o aprendizado, o desejo

de saber e de dividir esse saber com os outros.

Portanto, podemos interpretar o significado da palavra paideía por duas perspectivas

distintas e complementares. A primeira, como cultura, sob uma visão mais abrangente, que

represente as características de uma determinada comunidade, com o total des suas

manifestações sociais, principalmente em um conjunto de procedimentos que resultem em um

ideal de construção consciente do saber, ou seja, um sistema educativo formal. A segunda,

como formação, sob uma ótica mais particular, por meio da concepção da ideia de uma

19 “A Paideia pela primeira vez foi referida à mais alta areté humana e, a partir da criação dos meninos, ‘em cujo

simples sentido a vemos em Ésquilo, pela primeira vez’ acaba por englobar o conjunto de todas as exigências

ideais, físicas e espirituais, que formam kalokagathía, no sentido duma formação espiritual consciente”

(JAEGER, 1995, p. 312).

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educação contínua ao longo da história que represente todo o esforço no sentido de conquistar

a formação de um tipo elevado de ser, isto é, um homem que possa atingir conscientemente

sua autonomia e sua liberdade20

.

Segundo Jaeger21

, a paideía como um fenômeno educativo surge por volta do século V

a.C. e foi nessa fase da história educacional grega que foram concebidos os dois principais

objetos deste estudo, isto é, a paideía dos sofistas, baseada nos preceitos dos educadores

profissionais que surgiram em Atenas, e a paideía socrática, fundamentada nas ideias

propostas por Sócrates.

1.2 Propostas e objetivos pedagógicos

Antes de entrar efetivamente no tema das propostas pedagógicas dos sofistas, cabe

destacar que uma das maiores fontes sobre suas ideias tem como origem as obras de Platão,

notoriamente um crítico contundente de seus métodos educacionais. No entanto, analisar todo

este quadro sob um único ponto de vista levaria a uma leitura muito reducionista da questão.

Logo, considero fundamental avaliar os diálogos platônicos, especialmente os que abordam as

diferenças entre os ideais dos sofistas e os dos filósofos, sob uma perspectiva mais ampla e

menos parcial. Em sua obra Guthrie22

fornece exemplos que corroboram essas diferentes

interpretações, como o caso de Grote, que afirmou haver exagero nas críticas de seus

contemporâneos ao movimento sofista; Sidgwick e Jowett alegam, entretanto, que Grote, na

ânsia de contrapor-se às críticas de Platão aos sofistas, deixou de considerar outros aspectos

relevantes presentes na época, tais como a aversão dos atenienses aos estrangeiros, a fortuna

que os sofistas obtinham com a remuneração de suas aulas, a confusão provocada por suas

ideias inovadoras nas mentes dos jovens, além do conhecido conflito entre seus ideais

educacionais e os dos filósofos. Dado esse quadro, tornam-se um pouco menos particulares as

críticas de Platão aos sofistas. Por outro lado, Popper não poupou elogios ao movimento

20 Autonomia e liberdade, termos utilizados no sentido de demonstrar a grande importância que tinha nessa

época o ato de o indivíduo libertar-se da influência das divindades e dos mitos em sua vida. 21 JAEGER, 1995, p. 125. 22 GUTHRIE, 1995, p. 16.

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sofista, considerando-os como a grande geração da Grécia, representando o pioneirismo do

pensamento liberal e democrático.

Assim, a diversidade de opiniões entre os estudiosos e os próprios filósofos posteriores a

esse período é bastante significativa. Parece haver, contudo, um consenso entre eles, pois

havia um respeito mútuo entre as duas escolas, no sentido de reconhecer a grande influência

que ambas tinham na sociedade ateniense. Isto justifica o fato de Platão ter dedicado várias de

suas obras a contrapor seus ideais filosóficos às práticas utilitaristas dos sofistas. Por esse

motivo, considero fundamental obter essas informações de diversas fontes, desde que sérias,

para que possam ser confrontadas com as existentes nos diálogos platônicos.

1.2.1 Os primeiros educadores profissionais

O Estado democrático ateniense exigiu uma série de mudanças individuais, sociais e

políticas que favoreceram a concepção de um novo modelo de cidadão, ou seja, a partir desse

momento todos os indivíduos deveriam participar da vida citadina, pelo comparecimento às

assembleias e audiências públicas. Para tal, os indivíduos que desejassem exercer seus

deveres e direitos cívicos deveriam ser dotados de boa oratória e do poder de convencimento

nas assembleias, utilizando seus argumentos de forma persuasiva durante seu discurso. Assim,

o ateniense que tivesse a pretensão de ocupar algum cargo público nesse novo Estado,

obrigatoriamente deveria adquirir esse conjunto de atributos.

Nesse contexto surge o movimento sofista, composto por professores que cobravam

por seus ensinamentos e utilizavam métodos pedagógicos baseados na oratória, na eloquência

da fala e nos exercícios públicos de retórica. Sua principal proposta era ensinar a areté23

política, que era nesse período o grande objetivo a ser alcançado pelos jovens atenienses.

Vale lembrar, todavia, que se verificou nessa época um processo de humanização na

sociedade grega, e, consequentemente, o acesso à educação nunca esteve tão democratizado.

Jaeger afirma, porém, que essa popularização somente foi aplicada ao ensino básico, e os

23 “Esta falsa modernização do conceito grego de areté peca essencialmente por fazer surgir aos olhos do homem

atual, como arrogância ingênua e sem sentido, a pretensão dos sofistas ou mestres da sabedoria, como os

contemporâneos os chamavam e a si próprios eles se intitulavam. Este absurdo mal-entendido desfaz-se logo que

interpretamos a palavra areté no seu sentido evidente para a época clássica, isto é, no sentido de areté política,

olhada sobretudo como aptidão intelectual e oratória, o que nas novas condições do séc. V era o decisivo”

(JAEGER, 1995, p. 232).

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sofistas foram um exemplo vivo dessa tendência, pois direcionavam todos os seus esforços no

sentido de formar adultos, mais especificamente os futuros chefes. Portanto, seu ensino não

contemplava indivíduos em geral, e sim os que se tornariam líderes, ou seja, tratava-se de uma

nova versão da antiga educação, moldada para atender os nobres.

Guthrie24

também fornece uma visão mais favorável aos sofistas, atenuada pelo

momento que Atenas atravessava. Para ele:

Se os sofistas foram produto de seu tempo, por sua vez também ajudaram a

cristalizar suas ideias. Mas seu ensino pelo menos caiu em terreno bem preparado.

Ao ver de Platão, não eram eles que deviam ser declarados culpados por infeccionar

os jovens com pensamentos perniciosos, pois nada mais faziam do que refletir os prazeres e as paixões da democracia existente [...].

Assim, apesar de Platão divergir em vários aspectos dos pontos de vista do movimento

sofista, nesse caso em particular isenta-os dessa culpa, pois responsabiliza a perda de valores

sociais e morais de então ao regime democrático instaurado no Estado ateniense. Cabe

lembrar que Platão, como simpatizante da aristocracia, era contrário aos moldes do regime

político vigente em Atenas.

Já o programa educacional dos sofistas era composto por duas modalidades que

visavam atender dois grupos com características e objetivos distintos. A primeira buscava

formar os futuros chefes de Estado e a outra preparava os jovens para exercer a profissão da

sofística. O primeiro grupo era composto por jovens de origem nobre e aristocrática que

utilizavam os conhecimentos fornecidos pelos sofistas de modo pragmático e utilitário. Esses

jovens não tinham a menor intenção de seguir os passos de seus mestres. Enquanto o segundo,

motivado pela fama e pela glória adquirida pelos sofistas na sociedade grega desejava

alcançar o mesmo tipo de prestígio que seus professores25

.

Assim, no que se refere ao profissionalismo dos sofistas, Sócrates26

afirma que

Protágoras foi o primeiro a exigir pagamento em troca de seus ensinamentos. Mas este, em

contrapartida, defende-se dizendo que, se o aluno não estivesse satisfeito com suas lições não

precisaria pagá-lo, bastando fazer uma doação ao templo no valor que considerasse justo pelo

conhecimento adquirido. Apesar dessa particularidade de Protágoras, todos os sofistas

cobravam por seus préstimos, aspecto que os caracterizou como os primeiros profissionais

remunerados da educação do mundo ocidental.

24 GUTHRIE, 1995, p. 25. 25 JAEGER, op. cit., p. 623. 26 “[...] tu te fazes proclamar abertamente diante de todos os helenos sob a denominação de sofista e te apresentas

como mestre de educação e de virtude, sendo que foste o primeiro que exigiu pagamento por suas lições”

(PLATÃO, Protágoras, 349a. In: PLATÃO, Protágoras, Górgias. Tradução de C. A. Nunes. Belém:

Universidade Federal do Pará, 1973, Col. Amazônica/Série Farias Brito, v. III).

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22

1.2.2 Influência da nómos e da phýsis na pedagogia sofista

A perspectiva aqui tratada não é a da típica relação existente entre os diferentes modos

de interpretar a vida em sociedade dos naturalistas ou dos humanistas, ou seja, o problema do

nómos em confronto com a phýsis, analisada por meio de um conjunto de normas e leis

concebidas de forma artificial, por meio de ações humanas, versus as de ordem natural,

visando obter uma sociedade mais justa e igualitária. O aspecto da contraposição entre nómos

e phýsis, à qual desejo ater-me, é aquele que tenta esclarecer a dicotomia existente entre esses

conceitos sob uma perspectiva educativo-pedagógica. Conforme dito anteriormente, o advento

da sofística provocou uma revolução nos modelos educacionais atenienses. Assim, temas

historicamente aceitos pela sociedade grega passaram a ser questionados pelos membros do

movimento sofista. E entre eles, e o mais relevante, está o de areté, que até então era

considerado um conjunto de atributos herdados dos pais, essencialmente associados às

famílias nobres. Dessa forma, para os gregos, a areté não podia ser transmitida, a não ser por

vínculos sanguíneos.

Os sofistas, entretanto, surgem desafiando esses ideais, ao tentar destruir toda a

tradição preestabelecida, e intitulam-se professores de areté política. Logo, a questão da

phýsis, vista como elemento de transferência de dons pessoais, é fortemente atacada. E eles,

movidos por seu humanismo exacerbado, creem na possibilidade de ensinar a virtude. Isto

significa, que nessa nova visão educacional proposta pelos sofistas, os atributos herdados

naturalmente dos pais perdem sua força, e passa a valer um conjunto de técnicas pedagógicas

com o objetivo de transmiti-los.

No caso da nómos, vista como o conjunto de leis e costumes, Protágoras27

, sendo um

grande representante do movimento sofista, afirma o seguinte: “Quando saem da escola, a

cidade, por sua vez, os obriga a aprender leis e a tomá-las como paradigma de conduta, para

que não se deixem levar pela fantasia a praticar qualquer malfeitoria”. Portanto, ele considera

que as leis auxiliam a moldar o espírito do homem, pois elas representam um instrumento

normativo dos princípios sociais e agem como um elemento coercitivo que tem a função de

corrigir qualquer falha comportamental dos indivíduos em sua sociedade.

27 PLATÃO. Protágoras, 325a. In: PLATÃO, 1973, v. III.

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23

Logo, com base nos ideais sofistas, a phýsis deixou de representar um papel limitador

e restritivo de acesso ao conhecimento, pois eles acreditavam que tudo poderia ser aprendido,

desde que bem ensinado. Quanto à nómos, aquele aspecto negativo de norma artificial, vista

por alguns sofistas como fruto de acordos humanos, sob a perspectiva de Protágoras passa a

ter um caráter positivo de controle social, que permite a correção dos indivíduos com o

objetivo de obter um bem viver em sociedade.

1.3 A paideía de Protágoras

1.3.1 Suas influências educacionais

Protágoras de Abdera é conhecido como o principal representante do movimento

sofista. Suas propostas educacionais foram extremamente inovadoras, pois deixaram de tratar

o homem de maneira abstrata28

e passaram a encará-lo como membro ativo da sociedade.

Assim, a educação deixou de ser vista de modo formal, intelectual e focada somente em

conteúdos, para ser interpretada sob uma perspectiva mais sociocultural. Segundo ele, a

educação está diretamente ligada ao mundo dos valores, em particular, os políticos.

A Protágoras também é atribuída a racionalização dos procedimentos educacionais nos

métodos pedagógicos, ao utilizar a poesia e a música como forças modeladoras da alma, em

conjunto com a gramática, a dialética e a retórica. Para ele, esses elementos propiciam a

formação do espírito e, a fim de atingir tal objetivo, fundamentou sua paideía em um

programa educacional composto pelo ensino da cultura geral e da força do lógos29

. Embora

existam divergências em relação às suas posições sobre determinados temas, algumas de suas

tendências pedagógicas ficaram bastante claras, especialmente as que se referem aos

conceitos de como obter o conhecimento. No sentido de corroborar esta ideia, cito um

fragmento que fez parte da introdução do livro Sobre a verdade, obra que abrange o

fundamento teórico de seus juízos de valor, e nela observamos a seguinte passagem: “O

homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o

28 JAEGER, 1995, p. 315. 29 Segundo Diógenes Laércio, Protágoras ministrava as seguintes disciplinas: Arte da Erística, Da Luta, Da

Matemática, Do Estado, Da Ambição, Das Virtudes, Da Situação Originária, Dos Erros Humanos, do Discurso

Imperativo, entre outras (SOFISTAS. Testemunhos e fragmentos. Tradução de A. A. Alves de Sousa e M. J. Vaz

Pinto. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005, p. 58).

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24

que não são”30

. Este fragmento, deveras polêmico, foi muito discutido pelos pensadores e

comentadores ao longo da história; entretanto, aqui serão abordadas somente as interpretações

pertinentes ao estudo em questão.

Platão e posteriormente Sexto Empírico atribuíram à palavra “medida” desse

fragmento o caráter de “critério”, ou seja, o termo passa a ter, em sua visão, um significado

associado a um padrão de julgamento individual. Segundo palavras de Guthrie, a

interpretação a ser considerada é a seguinte: “São nossos próprios sentimentos e convicções

que medem e determinam os limites e a natureza da realidade, que só existem em relação a

elas e são diferentes para cada um de nós”31

. Essa forma de pensar evidencia o caráter

polêmico das afirmações de Protágoras e remete-nos a uma divergência que precede o século

V a.C., isto é, às diferenças históricas entre as ideias de Parmênides e as de Heráclito. Julgo

relevante fazer uma análise deste fato, para melhor entendimento das ideias de Protágoras.

Então, vamos retomar alguns dos conceitos desses pré-socráticos: enquanto Parmênides

acreditava existir total independência do objeto no processo de percepção do sujeito, Heráclito

defendia a ideia de que tudo o que é percebido pelo sujeito já existe previamente no objeto32

.

Assim, Protágoras, com sua visão mais pragmática e utilitária, afirmava que devemos

acreditar nos sentidos, e que nossa percepção é o resultado da mistura dos opostos existentes

em todas as coisas, pensamento que segue a mesma linha de raciocínio dos jônios e de

Heráclito, contrariando a visão dos eleatas, que negavam a realidade dos opostos e o valor dos

sentidos como fonte do conhecimento. Para Protágoras, cada um de nós é o juiz de nossas

impressões, e não existe nenhuma diferença entre o perceber e o efetivo ser das coisas. Logo,

a verdade torna-se relativa, pois tudo o que é opinião ou aparência passa a ter o estatuto de

verdade e é algo impossível de ser questionado pelos outros33

.

Na obra Grande tratado34

, Protágoras começa a indicar de forma mais explícita seu

programa educacional, composto por um conjunto de conceitos pedagógicos, construídos ao

longo de sua experiência como profissional itinerante do ramo do saber. Nesses fragmentos

30 Fr. 1 obtido do livro Sobre a verdade em Guthrie (1995, p. 173) e no livro Verdade ou discursos demolidores

(SOFISTAS, op. cit., p. 78). A obra de Protágoras aparece com títulos diferentes devido a divergências

doxográficas. 31 GUTHRIE, op. cit., p. 174. 32 Platão aborda essa mesma questão na obra Teeteto, (151e-152b). Nela ele observa que pessoas diferentes são afetadas pelos seus sentidos de forma diferente, ou seja, o mesmo vento pode ser percebido por uma determinada

pessoa como quente e por outra como frio. Logo, a questão é a seguinte: o vento é ao mesmo tempo quente e

frio? ou ele não é nem quente nem frio? Cf. Platão, Theaetetus, 2006. Tradução de B. Jowett. Disponível em:

<http://www.4 shared.com/file/JcniatmW/Plato_-_Theaetetus.html>. Acesso em: 08 abr. 2010. 33 SOFISTAS, 2005, p. 79. 34

“Para Untersteiner, o Grande tratado é um subtítulo atribuído, numa época tardia, à obra Sobre a verdade, de

Protágoras” (id., ibid., p. 81).

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observam-se indícios de preocupação com a formação de uma paideía sofista, a saber: “O

ensino requer disposição natural e exercício” e “É preciso aprender começando desde

jovem”35

. Com base nessas diretivas, os ideais pedagógicos de Protágoras mostram-se

fundamentados em um ensino aplicado desde a infância e levam em consideração as

disposições naturais e a dedicação individual, fatores subjetivos que, em conjunto com a boa

orientação de um mestre, conduzem à eficácia do aprendizado.

Outro fragmento de grande importância pode ser encontrado no livro Sobre a

existência dos deuses, o qual reforça a visão protagoriana de que o homem é a medida de

todas as coisas, ou seja, os deuses existem para alguns, mas não para outros, sedimentando

seu relativismo; bem como, conforme se vê nesse fragmento, declara explicitamente seu

agnosticismo e ceticismo, pois afirma que, nessa questão em particular, prefere suspender o

juízo. Em suma, o fragmento diz o seguinte:

Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a

brevidade da vida humana36

.

Também existem alguns textos atribuídos a Protágoras, cuja autenticidade não é

comprovada, e enquadram-se em um grupo de fragmentos denominados “escritos incertos”,

dos quais considero fundamental destacar os mais relevantes, como segue: Protágoras dizia

que não existia prática sem arte, nem arte sem prática37

. Para ele a educação é composta por

vários elementos interligados que se complementam. Entre eles, a arte ou tékhne,

caracterizada pela presença de aspectos teoréticos, que, associados aos procedimentos

práticos, contribuem de maneira mais específica na formação profissional do indivíduo38

. O

outro diz o seguinte: “A educação não germina na alma, se não se aprofunda muito”39

. Para

alguns especialistas, o uso metafórico do processo de germinação associado ao processo da

educação demonstra sua complexidade, tanto nos aspectos internos do ser como em seus

aspectos externos, ou seja, deve ser uma atividade desenvolvida desde a infância até a sua

maturidade, demandando um cuidado prolongado e rigoroso para a obtenção do sucesso40

.

35 Fr. 173 obtido da obra Grande tratado de Protágoras (id., ibid.). 36 Fr. 4 obtido na obra Sobre os deuses, de Protágoras (GUTHRIE, 1995, p. 218; SOFISTAS, 2005, p. 82). 37 Extraído de Escobeu, Plorilégio, 3, 29, 80 (cf. id., ibid., p. 85). 38 Id., ibid. 39

Extraído de Plutarco, Do exercício, 178, 25 169 (id., ibid., p. 86). 40 Id., ibid.

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Como um típico sofista, Protágoras também incluiu técnicas de oratória e de retórica

em seu modelo pedagógico. Conforme já abordado, o uso da linguagem como meio de

persuasão foi uma característica marcante do movimento sofista. No entanto, ele tem alguns

conceitos que o particularizam, tais como a crença de que há dois argumentos opostos sobre o

mesmo assunto, de tal modo que não existe a possibilidade da contradição, ou seja, em um

discurso é impossível falar falsamente. Essa máxima tem seu significado ratificado pelo

fragmento “Os gregos afirmam, seguindo Protágoras, que se pode contrapor um argumento a

qualquer argumento”41

e também pela frase “Pode-se argumentar a respeito de todas as coisas

com o mesmo sucesso, tomando qualquer um dos dois lados”42

. O que para Guthrie43

resultou

na afirmação de Aristóteles de que a doutrina de Protágoras é caracterizada pelo subjetivismo

e pelo relativismo, pois, entre outras coisas, ao propor a possibilidade de fazer discursos

antitéticos sobre qualquer realidade44

, ele nega o princípio da não contradição.

Quanto aos fragmentos que abordam mais explicitamente seus conceitos pedagógicos,

vale destacar o seguinte:

Estou longe de negar a existência quer da sabedoria quer do homem sábio; mas

chamo “sábio” precisamente àquele homem que, produzindo uma modificação em

nós, faz o que aparece e é mau apareça e seja bom. Mas eu penso que, se a

disposição da alma é má, ter-se-ão opiniões conformes com ela; uma boa disposição,

pelo contrário, faz ter opiniões diferentes e adequadas a essa disposição; alguns, por

ignorância, chamam-nas “verdadeiras”, enquanto eu as chamo de “melhores do que

as outras, mas nunca de mais verdadeiras”45

.

Frase que deixa muito clara a sua visão sobre o programa educacional a ser adotado pelos

sofistas, tanto no aspecto relativista, observado em seus juízos de valor, como na maneira de

enaltecer o papel do mestre no processo de formação do indivíduo. Isto significa que

Protágoras acredita exercer a natureza do homem um papel importante no processo de

aquisição do saber, mas não o fundamental, pois desde que sejam aplicadas técnicas

pedagógicas adequadas, essas disposições negativas e intrínsecas ao ser podem ser

transformadas em disposições positivas. E, até mesmo, ele vai mais longe, pois questiona o

critério de verdade e seu real valor, afirmando que seu peso é somente uma questão de

41

Extraído de Clemente de Alexandria, Miscelânia, 6, 65 (id., ibid., p. 95). 42

Extraído de Sêneca, Cartas, 88, 43 (id., ibid., p. 94). 43 GUTHRIE, op. cit., p. 173-5. 44 Diógenes Laércio afirma que Protágoras foi o primeiro a sustentar que em todos os assuntos existem dois

argumentos antitéticos entre si (SOFISTAS, op. cit., p. 108). 45

Extraído de Platão, Teeteto, 166d (PLATÃO, 2006; SOFISTAS, 2005, p. 98).

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referência. Logo, Protágoras defende a ideia de que a verdade é relativa46

, isto é, ela é

individual e temporária, e não universal e permanente. De tal modo, que por meio da retórica

e da oratória a verdade passa a ser aquela na qual o homem é persuadido a crer.

No entanto, seria leviano acreditar que Protágoras sedimentou todos os seus

ensinamentos nesses princípios, mesmo porque, em dado momento, ele recusou o uso

indiscriminado da retórica, pois considerou-a inadequada quando utilizada por pessoas

inescrupulosas. Em determinada fase de sua vida deslocou o foco de seu ensino para o que ele

acreditava ser de fundamental importância para o homem, ou seja, cuidar dos próprios

negócios e das coisas do Estado47

.

Ele também é considerado o precursor do relativismo epistemológico e do

subjetivismo filosófico, devido às ideias existentes nas suas propostas educacionais que

valorizam os critérios individuais, de acordo com o qual cada um de nós é o juiz de suas

próprias crenças. Portanto, segundo ele, o que parece a cada um de nós é a única realidade

possível.

Com base na diversidade e na abrangência dos princípios pedagógicos propostos por

Protágoras surge um programa educacional de formação de indivíduos denominado paideía

protagoriana. Vale lembrar que o outro grande representante da sofística é Górgias48

, o qual

em seu modelo pedagógico priorizou outros aspectos educacionais, que serão posteriormente

abordados. Logo, neste momento da presente exposição, é possível dizer que o conjunto de

saberes que foram alvo do programa educacional de Protágoras continha a essência do ensino

sofista, fundamentalmente representado pela aquisição da areté política. Por fim, com base

nos testemunhos e fragmentos sobre os ideais pedagógicos de Protágoras, julgo interessante

destacar as repercussões e as reações que suas ideias provocaram em alguns filósofos. No que

se refere a Platão, o questionamento está relacionado à ideia do homem como medida de todas

as coisas, pois entra em conflito com sua teoria epistemológica do conhecimento verdadeiro.

Já para Aristóteles, o problema está associado à negação do princípio da não contradição, que

fere as bases da ciência e da ontologia. No caso de Sexto Empírico, a defesa por parte de

Protágoras da existência da verdade em todas as opiniões viola metodologicamente o critério

de distinção entre o falso e o verdadeiro49

.

46 GUTHRIE, 1995, p. 52. 47 PLATÃO. Protágoras, 318e. In: PLATÃO, 1973, v. III. 48 JAEGER, 1995, p. 234. 49 Além de todos os aspectos da pedagogia multidisciplinar de Protágoras, os pontos de vista que lhe são

simultaneamente atribuídos, dos quais destacamos os seguintes: a preocupação com a correção dos nomes, a tese

de que não é possível contradizer, a defesa da enunciação de juízos antitéticos sobre todas as coisas, a doutrina

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Em suma, é inegável sua contribuição na reformulação e no amadurecimento dos

processos educacionais do mundo ocidental, principalmente no que se refere à utilização da

educação como um elemento que favorece a aceitação das diferenças entre os indivíduos, ou

seja, a educação como um agente facilitador da convivência social, ao favorecer o respeito à

individualidade e à opinião particular de cada um. Isto pode ser observado em suas propostas

educacionais, as quais estão fundamentadas no agnosticismo, ao aceitar a pluralidade

religiosa; no relativismo, fruto de seu conceito do homem como medida, respeitando as

diferenças culturais existentes em uma determinada comunidade; e no valor atribuído às

instituições, pois não foi somente professor, tendo sido também legislador, além de

especializar-se na formação política dos jovens, futuros cidadãos.

1.3.2 A flexibilidade pedagógica da paideía protagoriana

A paideía sofista, associada ao programa educacional proposto por Protágoras tinha

algumas características marcantes, notadamente o empirismo, o ceticismo, o intelectualismo,

o agnosticismo e o humanismo. Ora, dada essa diversidade de linhas de pensamento, torna-se

claro o ecletismo do movimento sofista, a ponto de seus comentadores em alguns momentos

destacarem mais fortemente alguns aspectos em detrimento de outros. Como, por exemplo,

quanto a seu empirismo, analisado sob a ótica de um conjunto de práticas baseadas na

experiência, ou seja, uma empeiria, Guthrie50

afirma que “os sofistas eram empiristas que

negavam a possibilidade de uma definição geral de ‘bem’ pelo motivo de ela diferir

relativamente aos indivíduos e às sociedades e suas circunstâncias”. Já Havelock51

, destaca

seu intelectualismo:

Tanto os socráticos quanto os sofistas, portanto, por volta do fim do século V a.C. –

se a Apologia realmente reproduz a linguagem daquele período –, eram aceitos pela

opinião pública como representantes do movimento intelectualista. Se eram chamados de “filosofadores”, não era por causa da sua doutrina como tal, mas pelo

tipo de vocabulário e de sintaxe que empregavam e das energias psíquicas não

familiares que representavam.

do homem como “medida” das coisas, a arte de tornar mais forte o argumento mais fraco (id., ibid., p. 58). 50 GUTHRIE, 1995, p. 177. 51 HAVELOCK, E. Prefácio a Platão. Tradução de E. A. Dobránzsky. Campinas: Papirus, 1996, p. 205.

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Por outro lado, Jaeger52

defende a ideia de que os sofistas e sua paideía promoveram uma

revolução nos processos educacionais, proporcionando uma forma de ensino laico, racional e

humanista.

Ora, considero todos esses aspectos relevantes para entender a amplitude e a

diversidade do modelo pedagógico proposto pelos sofistas; bem como acredito que seus

comentadores identificaram corretamente essas diversas linhas de pensamento que

influenciaram sua paideía, pois como os sofistas caracterizaram-se por serem professores

itinerantes, certamente sofreram enormes influências das mais variadas correntes filosóficas e

educacionais das diversas regiões da Grécia. Eles favoreceram essa diversidade pedagógica,

ao desvincular-se dos procedimentos educacionais de qualquer outra escola da época. A esse

respeito, Guthrie53

cita um fator relevante:

Em geral, os sofistas não eram estudiosos escrevendo tratados filosóficos e

científicos para o futuro. Eram antes mestres, conferencistas e oradores públicos,

cujo propósito era influenciar sua era mais do que ser lidos pela posteridade.

Ademais, uma vez que muito de suas obras era educacional, do tipo do manual,

ficaria naturalmente incorporado nos manuais de mestres posteriores.

Portanto, a amplitude de seus programas educacionais e o descomprometimento com qualquer

tipo de modelo pedagógico preestabelecido foram uma característica típica do movimento

sofista.

Quanto à questão do subjetivismo e do relativismo, vale ressaltar que ambos estão

presentes na paideía protagoriana. No caso do relativismo, ele afirma que nossos juízos de

valor dependem de circunstâncias particulares que relativizam um determinado fato, baseado

em seu aspecto individual. Já o subjetivismo, conforme Guthrie54

, Protágoras o radicalizou de

forma premeditada, ao afirmar que o que uma determinada pessoa sente é uma verdade para

ela, e não pode ser questionado por mais ninguém.

Por fim, Guthrie55

faz uma afirmação que reflete basicamente a essência do

pensamento sofista, que é a seguinte: “Se há algo que se possa chamar de visão sofística geral,

é a ideia de que não há nenhum ‘critério’”. Tu e eu não podemos, comparando e discutindo

nossas experiências, corrigi-las e alcançar o conhecimento de uma realidade ulterior à de

ambos, pois não existe essa realidade estável que possa ser conhecida. De modo semelhante,

52 Para melhor contextualização desses conceitos, ver JAEGER, 1995, p. 231-5. 53 GUTHRIE, 1995, p. 053. 54 “Podemos concluir que Protágoras adotou extremo subjetivismo segundo o qual não havia nenhuma realidade

atrás e independente das aparências, nenhuma diferença entre aparecer e ser, e cada um de nós é o juiz de nossas

próprias impressões” (id., ibid., p. 178). 55 Id., ibid., p. 184.

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na moral nenhum apelo a padrões gerais ou princípios gerais é possível, e a única norma só

pode ser agir como em qualquer momento pareça mais adequado.

1.3.3 O diálogo Protágoras

O Protágoras de Platão é uma excelente referência sobre os princípios pedagógicos de

Protágoras. Nela, é possível identificar com certo nível de clareza alguns aspectos de sua

proposta educacional e as divergências observadas nos conceitos entre suas ideias e as de

Sócrates, bem como constatar o respeito mútuo visível após o término do diálogo.

Com o objetivo de traçar uma linha cronológica coerente de suas ideias e contribuições

para a paideía sofista, vou seguir a sequência dos fatos conforme narrados por Platão.

Ressalto que esse diálogo é repleto de conceitos, porém, neste momento, somente serão

tratados os que forem pertinentes à paideía sofista.

O primeiro aspecto relevante é a conversa que Sócrates tem com Hipócrates, antes

mesmo do encontro com Protágoras. Sócrates pergunta qual motivo o leva a procurar o sofista

e se Hipócrates sabe o que ele ensina. Sócrates argumenta que, quando o desejo é tornar-se

médico, deve-se procurar aprender medicina. E o mesmo processo ocorre com as demais

profissões; contudo, qual é o tipo de aprendizado que ele visa obter com Protágoras?

Hipócrates responde que é o de ser um sofista, no sentido de atingir a sabedoria para utilizá-la

na vida profissional56

. Mas Sócrates questiona a decisão dele, pois Hipócrates estaria

delegando algo tão importante como a aquisição do saber, que, segundo ele, é o alimento de

nossa alma57

, para uma pessoa como Protágoras, cuja real intenção ele não sabe qual é e que

faz isso em troca de dinheiro. Dessa maneira, Sócrates tenta esclarecer a importância que a

educação tem para a formação do homem e torna clara sua preocupação com os impactos que

ela pode provocar em seu espírito, principalmente por não estar ciente da essência da paideía

sofista. E é isso que Protágoras tentará elucidar ao longo desse diálogo socrático.

Sob esse aspecto, o diálogo começa com Sócrates perguntando a Protágoras qual é o

grande objetivo de seu programa educacional, ao que ele responde:

56 PLATÃO. Protágoras, 312a. In: PLATÃO, 1973, v. III. 57 JAEGER, 1995, p. 624.

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Essa disciplina é a prudência nas suas relações familiares, que o porá em condições

de administrar do melhor modo sua própria casa e, nos negócios da cidade, o deixará

mais do que apto para dirigi-los e para discorrer sobre eles58.

Com base nessa resposta, Sócrates conclui que o conjunto de saberes ao qual Protágoras se

refere, com a possibilidade de ser ensinada, não deve ser considerada uma virtude, e sim uma

arte, fundamentalmente, uma arte política59

.

Assim, nesse momento começa a delinear-se a principal perspectiva da atividade

sofística, que, para Protágoras, está fundamentada essencialmente nas questões da vida

prática, sem preocupar-se com a natureza das coisas, ou seja, seu real objetivo é atingir o

sucesso por meio do poder do convencimento. Para tal, Protágoras propõe-se a ensinar a

virtude política, vista por Sócrates como arte ou tékhne, já que pode ser ensinada. Sócrates

questiona, contudo, esse estatuto da virtude política, também considerada pelos sofistas como

a excelência do viver bem em sociedade, que concebe a virtude como uma arte. Mas essa

questão e outras similares, relativas à visão de Sócrates sobre este tema, serão mais bem

analisadas no Capítulo 2.

O que cabe destacar, todavia, é que Sócrates não crê na possibilidade de ensinar-se a

arte política (virtude política, para Protágoras) e alega que nessas questões todo ateniense tem

o direito de opinar, pois cada um deles considera desnecessário ter um ensino prévio para que

alguém possa delegar sobre as atividades pertinentes à administração das cidades. Por outro

lado, em tudo o que consideram passível de ser ensinado, como a construção de navios e de

imóveis, sempre procuram obter a opinião de um profissional, porque nas questões que

exigem uma técnica especial, ou tékhne, para seu bom desempenho, ou seja, necessitam do

conhecimento de uma arte específica, fruto de um aprendizado, não importa que o que se

apresenta para enfrentá-las seja belo, rico ou influente, se não detiver a tékhne relativa ao

campo daquelas questões, suas opiniões serão desprezadas nas assembleias60

. Sócrates

também afirma que, mesmo na vida privada, as pessoas, por mais sábias que sejam, não são

capazes de transferir suas virtudes para os outros e cita como exemplo o caso de Péricles, o

dirigente mais virtuoso, que não conseguiu passar nenhuma de suas qualidades para seus

filhos61

. Em suma, Sócrates, contrariamente a Protágoras, acredita que a virtude não pode ser

ensinada.

58 PLATÃO. Protágoras, 318e. In: PLATÃO, 1973, v. III. 59 “Ensinar a arte da política e fazer dos homens bons cidadãos” (id., ibid., 319a). 60 Id., ibid., 319b. 61 Id., ibid., 320b.

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Em resposta aos argumentos de Sócrates, Protágoras lança mão de um discurso

bastante convincente, baseado na narrativa de um mito e em suas reflexões ético-pedagógicas.

No mito62

ele relata que, na criação do mundo, os deuses delegaram a Prometeu e Epimeteu a

responsabilidade de atribuir aos homens e aos animais as características específicas de cada

um, para que pudessem viver de forma adequada sobre a face da Terra. Epimeteu solicitou,

contudo, a seu irmão executar essa tarefa sozinho. Quando recebeu o consentimento de

Prometeu, dotou todas as espécies animais de atributos que as fizessem sobreviver em

harmonia; ao concluir sua tarefa, porém, e ter esgotado todos os atributos disponíveis para

conceder às criaturas, Epimeteu percebeu que havia se esquecido dos homens. Assim,

Prometeu para tentar reparar essa falha, rouba de Hefesto a arte de trabalhar com o fogo e de

Atena a da inteligência, de tal modo que dotou os homens do poder derivado do saber técnico.

Esse saber propiciou diversas vantagens à espécie humana, mas, no que se refere à

convivência social, não houve nenhuma contribuição, condenando os homens a uma vida

solitária que os tornava alvo fácil de predadores. Zeus, ao perceber o grande risco que a

espécie humana corria por ser desprovida dos dons políticos e por não conseguir viver em

sociedade, pediu a Hermes que, contrariamente à distribuição do saber técnico, atribuído

apenas a uma parte específica dos homens, compartilhasse igualmente com todos o pudor e a

justiça. Segundo Protágoras, é devido a esse fato que todos os homens julgam possuir a

virtude política; entretanto, nas questões que exigem o saber de uma técnica específica, os

atenienses, como qualquer outro povo sábio, somente ouvem os profissionais especializados

nessa arte.

Com base nesses argumentos de Protágoras, entram em cena os conceitos pedagógicos

propostos pela paideía sofista, especialmente porque, se os atributos do viver bem em

sociedade fossem comuns a todos os membros da espécie humana, onde entraria a

possibilidade de sua contribuição? Ou melhor, qual seria a necessidade de alguém ensinar

algo que já nos é dado por natureza?

Conforme Jaeger63

, Protágoras é o membro do movimento sofista mais indicado para

esclarecer essas questões, pois ele foi o primeiro a preocupar-se com a temática ético-política

muito presente no período que Atenas atravessava e focou todo o seu estudo nas ciências

sociais, principalmente ao perceber que o antigo modelo da educação voltada para a nobreza,

62 PLATÃO. Protágoras, 320c-322d. In: PLATÃO, 1973, v. III. 63 JAEGER, 1995, p. 631.

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com base nos preceitos técnicos, já não atendia os anseios dessa nova sociedade. Embora a

justiça, a piedade e a temperança sejam atributos dados por natureza, para que nos conduzam

à virtude política, eles devem ser desenvolvidos por meio do estudo e de nosso próprio

esforço.

No entanto, para Protágoras o ensino da virtude política não segue os mesmos moldes

do ensino técnico, que depende apenas do entendimento, e sim está muito mais voltado para o

desenvolvimento pessoal e do conviver bem em sociedade, ou seja, é mais uma questão de

hábito do que de entendimento. Em síntese, Protágoras diz que a educação das crianças tem

seu início no nascimento, com seus pais e preceptores, depois continua na escola por meio da

ginástica e da música, e, posteriormente, pela própria cidade por meio de suas leis64

.

Então, a paideía sofista é composta por um conjunto de elementos didáticos baseados

em disciplinas como a gramática, a música, a poesia, a dialética e a retórica. Em suma, ela é

essencialmente formada por três fases, a saber:

A) Da família – Os pais e as amas ensinam às crianças, por meio da linguagem,

noções sobre valores como o bom, o justo e os preceitos de moralidade;

B) Da escola – Os professores ensinam conceitos básicos de leitura e de escrita, com

os quais, ao ler as obras dos grandes poetas, aprendem o bem agir, por meio do exemplo dos

heróis. Também aprendem a música e a ginástica, visando o equilíbrio da alma e o

fortalecimento do corpo;

C) Da cidade – Aprendem a ser cidadãos dignos, por meio das leis e do poder

coercitivo do Estado.

Consequentemente, o modelo pedagógico proposto por Protágoras contém uma série

de etapas que visam a obtenção do desenvolvimento pessoal e intelectual de seus discípulos,

ou seja, em cada uma dessas fases é possível adquirir uma ou mais virtudes, e o jovem, ao

atingir a maturidade, está pronto para receber seus ensinamentos, resultando no total de

atributos educacionais necessários para obter a virtude política. Assim, na fase familiar,

receberá a hosion, ou a piedade; na fase escolar, adquirirá a sophrosyne, ou a temperança, e a

andréia, ou a coragem; na fase citadina, terá acesso à dikaiosyne, ou a justiça, e, por fim, por

meio da paideía sofista obterá a politike areté.

Dessa forma, a virtude para Protágoras é um mero condicionamento social, e pode-se

comprovar este fato ao observar seus pressupostos práticos e utilitários. Guthrie reforça essa

ideia com a seguinte fala de Protágoras:

64 Resume as principais ideias desse trecho; para mais detalhes, ver PLATÃO. Protágoras, 325c. In: PLATÃO,

1973, v. III.

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Entre os interesses humanos a educação é primária, pois em qualquer

empreendimento, quando o começo é certo, é provável que o resultado também seja

certo. Assim como se lança a semente fundo no chão e dela se pode esperar a

colheita, assim também, quando se lança a boa educação nos jovens, seu efeito vive

e brota pela vida inteira, e nem a chuva nem a seca podem destruí-la65.

Ele continua dizendo:

Sócrates concordava com Protágoras que era justo (no sentido de moralmente obrigatório) obedecer às leis ou então fazê-las mudar por persuasão pacífica, e que a

omissão de fazê-lo destruiria a sociedade66.

Bem como, segundo Jaeger67

, a educação sofista deixa para trás uma formação abstrata do

espírito e passa a olhar o homem como um membro participativo da sociedade, em sólida

relação com os valores do mundo. Portanto, a educação passa a estar associada a uma

formação espiritual consciente do ser. Enquanto Havelock68

ainda julga que a forma de pensar

da educação sofista estava fundamentada em conceitos puramente abstratos. Considero,

todavia, a posição de Jaeger mais próxima da real proposta da paideía sofista e discordo de

Havelock, pois creio que ele fez suas afirmações baseadas em um primeiro estágio da

revolução do pensamento promovida pelos sofistas e por Sócrates.

1.4 A paideía de Górgias

1.4.1 Principais características

Outro representante do movimento sofista é Górgias de Leontinos, reconhecido por ter

um estilo didático mais utilitário e pragmático, caracterizado pela valorização do discurso

retórico e pela força do lógos69

, fundamentalmente utilizado como um meio para persuadir

65 GUTHRIE, 1995, p. 159. 66 Id., ibid., p. 137. 67 JAEGER, 1995, p. 233. 68 “Os sofistas, os pré-socráticos e Sócrates tinham uma característica fatal em comum: estavam tentando

descobrir e praticar um pensamento abstrato.” (HAVELOCK, 1996, p. 204). 69 SOFISTAS, 2005, p. 97-8.

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seus interlocutores. Neste sentido, tanto Jaeger70

como Guthrie71

são unânimes no que se

refere ao uso indiscriminado e abusivo que ele faz da retórica, o que a torna o principal

elemento de seu modelo pedagógico. De tal forma que seus discípulos eram essencialmente

treinados na arte da persuasão e do convencimento.

No que se refere as suas obras o Tratado sobre o não existente, ou Sobre a natureza72

,

faz uma análise extremamente crítica da teoria ontológica de Parmênides, e o Elogio a

Helena73

valoriza incondicionalmente o poder do discurso persuasivo. Essas obras, entre

outras, são exemplos típicos do enorme valor que ele atribuía à arte da retórica.

Em seu discurso Elogio a Helena, Górgias faz um verdadeiro tributo ao uso do lógos e

do peithó74

, afirmando o seguinte: “o discurso é um grande soberano, que com o mais

diminuto e inaparente corpo as mais divinas obras executa; pois ele pode cessar o medo,

arrancar a tristeza, suscitar a alegria e aumentar a compaixão”75

. Logo, para Górgias o que

deve ser avaliado na retórica não é o que ela pode oferecer no plano epistemológico, mas sim

na eficácia dos efeitos produzidos pela transmissão das palavras e das emoções nas almas dos

indivíduos76

. Em outra parte do discurso, ele declara que, no caso de Helena, não importa se

seus atos foram motivados pela paixão, pela violência, pela persuasão ou pela influência dos

deuses. O que importa é que por meio da utilização de um discurso convincente é possível

inocentá-la, ou seja, por meio da retórica o orador consegue convencer que o certo é errado e

que o culpado é inocente77

.

70 “Em todo o caso, é uma afirmação superficial dizer que aquilo que de novo e de único liga todos os sofistas é o

ideal educativo da retórica. Isso é comum a todos os representantes da sofística, ao passo que diferem na

apreciação do resto das coisas, até ao ponto de ter havido sofistas, como Górgias, que não foram senão retóricos,

nem ensinaram mais nenhuma coisa” (JAEGER, op. cit., p. 234). 71 “Górgias era primariamente mestre de retórica, associado a seu conterrâneo Tísias no uso do argumento de

probabilidade. Ele escreveu manuais da arte, que podem ter consistido em larga medida de modelos de

declamações a serem decoradas, uma vez que Aristóteles diz que era este o seu método de instrução”

(GUTHRIE, 1995, p. 181). 72 Fragmentos que têm sua paráfrase em duas obras, uma, Contra os matemáticos de Sexto Empírico, e outra,

uma pseudo-obra de Aristóteles sobre Melisso, Xenófanes e Górgia (id., ibid., p. 112). 73 Para maiores detalhes sobre a veracidade desse discurso, ver GUTHRIE, 1995, p. 180. 74 Segundo Guthrie, Górgias não estava preocupado com o destino de Helena, mas sim em elogiar e valorizar o

poder do lógos e do peithó (id., ibid., p. 181). 75 GÓRGIAS. Elogio de Helena. Tradução de M. C. de M. N. Coelho. Cadernos de Tradução, São Paulo, DF-

USP, 4, p. 15-9, 1999, parágrafo 8. 76 “A mesma palavra tem o poder do discurso perante a disposição da alma e a disposição dos remédios para a

natureza dos corpos. Com efeito, como os diferentes remédios expulsam diferentes humores do corpo, e uns

cessam a doença, outros a vida, assim os discursos, uns afligem, outros deleitam, outros atemorizam, outros

dispõem os ouvintes à confiança, e outros por meio de uma persuasão maligna envenenam e enfeitiçam a alma”

(GÓRGIAS, 1999, Parágrafo 14). 77 Id., Ibid., Parágrafo 20.

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Ao analisar de forma mais criteriosa essa obra, podemos detectar um exercício de

retórica muito poderoso e convincente de seus argumentos. Inicialmente, Górgias deixa muito

claro que seu principal objetivo será fazer uma defesa incondicional de Helena, propondo

esclarecer e livrar seus acusadores da cegueira e da ignorância que os domina. Com base

nisto, ressalta a relevância dos diversos aspectos a serem considerados no que tange à decisão

de Helena, os quais foram determinantes para deflagrar a guerra entre gregos e troianos. Para

tanto, ele defende a possibilidade da existência de quatro hipóteses que poderiam ser

responsáveis por suas ações.

Na primeira hipótese, se Helena agiu influenciada pela vontade dos deuses, seria

humanamente impossível resistir a este desígnio, já que nenhuma pessoa é capaz de impedir

sua concretização, devido à força e à sabedoria divinas serem infinitamente superiores às dos

humanos;

Na segunda hipótese, se Helena foi raptada e por meio da força violentada e ultrajada,

nada mais justo do que penalizar o infrator e considerar a vítima digna de piedade, pois ela

sofreu a dor da violência, da vergonha e da distância dos entes queridos;

Na terceira hipótese, se helena foi enganada pelo discurso, deve ser considerada uma

desafortunada, pois por meio das palavras um bom orador pode convencer e persuadir

qualquer pessoa, principalmente se atingir as opiniões da alma, sendo capaz de seduzir,

encantar e transformar suas crenças pelo enfeitiçamento, alterando de forma significativa seus

juízos de valor, conduzindo-a ao erro e à ilusão.

Por fim, na quarta hipótese, se Helena foi movida pelo amor, suas ações também

possuem atenuantes, pois, se esse amor teve como agente motivador a influência dos deuses,

não haveria a possibilidade de ela lutar contra esse poder divino; se esse, contudo, não for o

caso, seu amor é fruto da doença tanto do corpo quanto da alma e deve ser considerado como

uma desventura inerente ao ser.

Dessa forma, por meio do poder da palavra e da força do convencimento, Górgias

utiliza esses quatro argumentos no sentido de provar que um bom orador consegue persuadir

qualquer pessoa ou plateia, mesmo que o objeto de sua defesa seja algo indefensável. Ele

ressalta que, por meio do engano e do convencimento da alma, é possível persuadir qualquer

um, de qualquer coisa. Mesmo porque na maioria das pessoas a opinião é sua maior

conselheira, e, como a opinião tem suas bases sobre um solo instável, torna-se muito fácil

conduzi-la para o lado de maior interesse do orador. O que possibilita ao retor ser detentor de

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um imenso poder sobre os outros, principalmente quando a retórica é utilizada como um

instrumento que visa a obtenção de destaque no cenário político.

Portanto, torna-se fundamental ressaltar nesse discurso a relevância que Górgias

atribui ao papel do lógos, e, com isso, à forma pela qual ele estruturou todo o seu arcabouço

teórico educacional, ou seja, sua estratégia pedagógica está sedimentada na forma de o ser

humano captar as informações e as perceber, transformando-as em juízo de valor. Em suma,

Górgias acredita que as almas dos homens vivem sob a influência das opiniões78

, de tal modo

que é possível influenciá-las e transformá-las por meio das palavras. Assim, podemos

identificar esse conceito gorgiano de forma explícita em frases como a que segue:

Os encantamentos inspirados divinamente, por meio das palavras, movem o prazer,

removem a dor; conformando-se com a opinião da alma, o poder do encantamento a

seduz, persuade e transforma essa alma pelo enfeitiçamento. De enfeitiçamento e

magia duas técnicas se encontraram, que são erros da alma e ilusões da opinião79.

Consequentemente, por meio da retórica, na obra Elogio a Helena, Górgias utiliza o

poder do convencimento e da persuasão, com o objetivo de defender alguém que, para os

gregos, era totalmente responsável pelos males decorrentes de suas ações. Dessa maneira, ele

demonstra a força do lógos, e que, por meio dele, o orador pode mudar a opinião de qualquer

um, seja quem for, conduzindo seu interlocutor ao engano. Este ponto de seu ideal pedagógico

futuramente provará ser um aspecto muito importante de sua paideía, pois ele não

considerava o engano como algo negativo.

Essa maneira de pensar é observada em seu conceito do que é ser justo e sábio, já que

o contrário da verdade não é o erro, e sim o engano, desde que traga satisfação e esteja sob o

aval de quem está sendo enganado. Isto fica muito claro quando se observam ideias existentes

em obras atribuídas a ele, mas sem confirmação de autenticidade, também conhecidas como

“escritos incertos”, a saber: “Aquele que enganou mostra ser mais justo do que aquele que não

enganou, e quem se deixou enganar é mais sábio do que quem não se deixou”. O que enganou

é mais justo porque, tendo prometido algo, cumpre; e o enganado é mais sábio, pois só quem

não é insensível se deixa vencer pelo prazer das palavras”80

. Outra frase de origem incerta,

atribuída a Górgias, é que o orador deve “destruir a seriedade de um oponente pela risada, e

78 “[...] de maneira que, sobre o maior número de casos, a maioria tem a opinião como conselheira presente da

alma. Mas a opinião, escorregadia e instável, em escorregadios e instáveis desencontros, arremessa os que dela

se servem” (GÓRGIAS, 1999, Parágrafo 11). 79 Id., ibid., Parágrafo 10. 80 GUTHRIE, 1995, p. 171.

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sua risada pela seriedade”81

. Assim, por esse fragmento, ele ratifica sua forma irônica de tratar

os conflitos relativos às diferenças de opinião com seus interlocutores.

No Tratado da não existência, sua obra mais polêmica, Górgias rejeita a possibilidade

de existir uma ontologia, pois, contrariamente a Parmênides, que associava a aquisição do

conhecimento a um lógos puramente racional, e duvidava do valor do saber obtido por

intermédio das sensações, Górgias acreditava no conhecimento adquirido por meio das

percepções sensíveis e das concebidas pela imaginação, questionando o estatuto rigoroso do

eleatismo no que se refere à oposição entre o conhecimento verdadeiro e a mera opinião82

.

Assim, nessa obra ele faz uma forte crítica ao poema de Parmênides, texto em que se dá a

concepção da ontologia, por meio de uma espécie de inversão dos argumentos parmenídicos,

de tal forma que ele radicaliza a proposta ontológica de que dizer é dizer o ser, desvinculando,

por meio do absurdo, o discurso de seu comprometimento com as questões ontológicas. Logo,

para Górgias não existe nenhuma ligação entre o discurso e o ser, com isso rejeitando a

afirmação ontológica de Parmênides segundo a qual basta dizer algo sobre alguma coisa para

que sua existência seja confirmada. Para tanto, ele baseou seu tratado em três teses ou

argumentos, a saber: o primeiro diz que nada existe; o segundo afirma que, mesmo que

existisse, é incompreensível ao homem; e, por fim, que, mesmo que fosse compreensível a

alguém, não é comunicável a qualquer outro83

.

Assim, sobre o Tratado do não existente, muito se escreveu, tanto no sentido de

interpretá-lo como no sentido de refutá-lo; contudo, apesar de sua repercussão ter sido imensa

no que se refere aos conceitos gorgianos, uma análise mais profunda agregará muito pouco ao

estudo em questão.

Logo, com o objetivo de destacar mais um aspecto relevante de sua paideía, considero

importante ressaltar que Górgias também atribuía à educação um papel importantíssimo no

que diz respeito à convivência social, pois acreditava que ela é um instrumento eficiente para

despertar nos indivíduos o entendimento e a tolerância recíproca, ou seja, a educação por

meio do esclarecimento permite que uma pessoa, antes de julgar qualquer ação de outro

indivíduo, ouça, pondere e escolha a decisão mais coerente, e, sempre que possível, opte pela

81 Extraído de Aristóteles, Retórica, 3, 18, 1419 b (cf. SOFISTAS, 2005, p. 144; GUTHRIE, op. cit., p. 183). 82 Dessa forma, Górgias amplia as perspectivas do princípio da identidade, como segue: “assim como se aplica a

um campo muito mais vasto o princípio da identidade entre pensar, dizer e ser, cujo uso legítimo se reduzia, para

Parménides, ao ser uno e imutável, correlato do pensamento puro” (SOFISTAS, op. cit, p. 116). 83 Para maiores esclarecimentos sobre o Tratado do não existente, ver id., ibid., p. 112-22, ou GUTHRIE, op.

cit., p. 181-5.

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aceitação e compreensão dos atos alheios, principalmente por acreditar que existam diferenças

significativas no grau de entendimento e de juízos de valor entre as pessoas.

Isso fica muito claro em sua obra Elogio a Helena, na qual ele defende

incondicionalmente todas as atitudes de Helena, elaborando diversas hipóteses que venham

justificar suas escolhas equivocadas. Em uma análise mais acurada desse ideal gorgiano,

observa-se o direito da plena defesa e a valorização do estado de direito dos indivíduos.

1.4.2 Objetivos pedagógicos da paideía gorgiana

Do mesmo modo que a paideía protagoriana, a paideía gorgiana tinha como principal

objetivo ensinar o seu discípulo a oratória, o poder da persuasão e a eloquência no discurso,

só que fundamentada nos ideais pedagógicos de Górgias, essencialmente baseados na retórica

como único elemento necessário para atingir sua meta educacional.

Outro aspecto interessante é que por meio de sua paideía não é possível ensinar as

pessoas a agir de maneira justa e virtuosa, já que para ele é impossível comunicar a realidade

aos outros. Em seu Tratado do não existente, ele resumidamente diz o seguinte: nada existe ao

mesmo tempo como realidade imutável e como objeto do conhecimento humano, e, mesmo

que houvesse esta realidade, não seria possível compreendê-la. Por fim, caso se pudesse, esse

conhecimento nunca poderia ser comunicado a outros84

. Então, fica muito clara a falta de

perspectiva defendida por Górgias na questão da transmissão do conhecimento. Assim, graças

a seu niilismo, Górgias não acredita ser possível fazer um discurso verdadeiro nem atingir a

verdade por meio do lógos, porque para ele tudo é fruto de uma convenção social.

Ele também afirma que com base em um bom argumento é possível convencer as

pessoas, mesmo que seja por meio da opinião, que algo considerado errado é certo e que o

certo é errado. Já a paideía proposta por Protágoras, apesar de seu relativismo, fornece

subsídios para ensinar as pessoas a agir da melhor maneira possível, pela via da virtude e da

justiça. Logo, a paideía proposta por Protágoras defende a possibilidade do ensino da virtude,

mas o mesmo não ocorre com a paideía de Górgias; Guthrie85

, entre outros comentadores,

discorda, todavia, dessa ideia e afirma o seguinte:

84 GUTHRIE, 1995, p. 181. 85 Id., ibid., p. 47.

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Pode-se suspeitar que a recusa de Górgias era pouco sincera, pois seu ensino da

retórica visava a assegurar para os alunos a mesma espécie de sucesso na vida que

Protágoras prometia como mestre da areté política.

Portanto, com base nos conceitos de sua paideía e em sua negação de aceitar os valores

sociais preestabelecidos, Górgias formalmente não se propunha a ensinar a areté, mas seu

programa educacional conduzia seus alunos a atingir um objetivo muito semelhante aos da

paideía protagoriana.

Em suma, o caráter desafiador de Górgias, observado em todos os seus escritos, deixa

fragrante sua oposição aos costumes e tradições preestabelecidas. Outra particularidade é que

sua pedagogia está fundamentada na aplicação de diversas técnicas de retórica. Segundo ele, a

arte da persuasão supera qualquer outra, pois por meio do discurso é possível provocar no

ouvinte uma submissão espontânea, sem o uso da força86

. Cabe ressaltar que essa

característica da pedagogia de Górgias é de grande relevância para a nova sociedade

democrática ateniense, principalmente para as pessoas que desejavam exercer funções de

liderança na pólis.

1.4.3 O diálogo Górgias

Da mesma forma que a leitura do diálogo Protágoras é a melhor forma de analisar a

proposta da paideía protagoriana, o diálogo Górgias é a fonte mais rica para a obtenção dos

conceitos da paideía gorgiana. Assim, vou tentar obter nas idéias de Górgias e dos seus

discípulos Pólo e Cálicles, as principais propostas pedagógicas contidas nesta obra platônica.

Cabe destacar que, como no diálogo anterior, somente serão abordados os preceitos

pertinentes ao estudo em questão.

Inicialmente, vou ressaltar alguns conceitos extraídos da conversa entre Sócrates e

Górgias, que antecedem a narrativa do diálogo propriamente dito. Górgias acredita que a

retórica é uma arte ou tékhne, adquirida por meio do empirismo, e não do conhecimento. Essa

arte retórica, para Sócrates, não é verdadeiramente uma arte, pois, para que algo seja

considerado uma arte, tem de conter algum tipo de conhecimento intrínseco ou

especialização, fruto de um aprendizado. Ele cita como exemplo, a astronomia, que depende

86 Id., ibid., p. 254.

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integralmente do conhecimento dos cursos dos astros e de suas inter-relações87

. E, em sua

opinião, a retórica não atende esses pré-requisitos.

Posteriormente, Sócrates pergunta a Górgias qual é o tipo de discurso proposto pela

retórica, a que ele responde que o grande objetivo da retórica é a persuasão, e sua maior

aplicabilidade é nas assembleias e nos júris populares; bem como na política e em qualquer

tema pertinente à vida humana. Já que o objeto de que se ocupa a retórica são os assuntos

humanos, Sócrates afirma que sob essa perspectiva a retórica deveria preocupar-se com as

questões morais, ou seja, com os conceitos de justiça e de injustiça. Górgias, contudo,

responde que as questões morais são indiferentes para a retórica. Jaeger88

reforça esta ideia de

Górgias, ao afirmar que, para a retórica, a moralidade é uma questão exclusivamente

convencional. Górgias diz, até mesmo, que o bom ou o mau uso da retórica é de única

responsabilidade de quem a utiliza. E ele ainda conclui dizendo que a retórica por meio da

arte de persuasão é o maior bem que alguém pode ter, porque concede a quem a possui um

grande poder, ou dynasthai89

.

Por considerar seu modelo pedagógico como a arte da persuasão, Górgias acreditava

que os sofistas, ao utilizá-la, poderiam, por meio do convencimento, conquistar as multidões,

ou seja, por meio da retórica eles exerceriam seu poder e chegariam pela sedução das palavras

ao que os tiranos só conseguem com o uso da força90

. Apesar do aspecto dual observado no

processo de convencimento das pessoas, Sócrates não considera o uso da persuasão como

algo negativo, mas sim a aplicação que a retórica gorgiana faz dela, isto é, ela usa a persuasão

de forma indevida, pois não utiliza o conhecimento como instrumento para convencer os

outros nem procura obter a verdade, somente visa atingir o interesse do orador. Além disso, a

má persuasão não está apoiada no conhecimento, e sim na crença.

Embora toda essa controvérsia ponha em questão sua paideía, Górgias91

ainda alega

que ela tem uma grande versatilidade, principalmente por permitir ao orador convencer sua

plateia, sem possuir um conhecimento pleno do tema a ser abordado. O que,

consequentemente, promove uma falsa noção de sabedoria, em detrimento da ignorância dos

outros. Górgias também reforça a ideia de que o mestre, ao ensinar a retórica, não tem

nenhuma responsabilidade sob as atitudes de seus discípulos, e afirma que, se algum deles

87 PLATÃO. Górgias, 448a. In: PLATÃO, 1973, v. III. 88 JAEGER, 1995, p. 652. 89 PLATÃO. Górgias, 452d. 90 PLATÃO. Górgias, 466b. In: PLATÃO, 1973, v. III. 91 Id., ibid., 455d-e.

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fizer mau uso de suas técnicas deve ser punido de forma exemplar. Guthrie92

diz que “o

retórico, pelo que parece, interessa-se inteiramente pelos meios, e não pelos fins, e seu ensino

tem diferentes efeitos nos alunos, de acordo com o seu caráter”.

Assim, termina a participação de Górgias no diálogo, e o foco passa a ser seu discípulo

Pólo, que retoma o tema sobre se a retórica é uma empeiria ou experiência, em vez de ser uma

arte, ou tékhne. Sócrates defende a ideia de que a retórica não pode ser considerada uma arte,

pois falta um objeto do conhecimento associado a ela. Sócrates também traça um paralelo

entre o que ele chama de imagens enganosas que são fruto da experiência e que apenas visam

a agradar o corpo do homem, e o que ele considera como a verdadeira arte, que está baseada

no conhecimento e é boa para a alma. Desse modo a retórica é para alma humana o que é a

culinária para o corpo, isto é, como ambas fazem parte das imagens enganosas que somente

servem para agradar o corpo, deduz-se que a retórica não é uma verdadeira tékhne. Segundo

Jaeger93

,

as características essenciais do conceito de tékhne são: primeira, é um saber baseado no conhecimento da verdadeira natureza do seu objeto; segunda, é capaz de dar conta das

suas atividades sempre que tem consciência das razões, segundo as quais procede;

finalmente, tem por missão servir a parte melhor do objeto de que se ocupa. Nenhuma

dessas notas distintivas existe na retórica política.

Já na última parte do diálogo, que se desenvolve com Cálicles, outro de seus

discípulos, o principal foco incide sobre a diferença observada entre a nómos, percebida como

lei artificial para proteger os mais fracos, e a phýsis, caracterizada como lei natural que

privilegia os mais fortes94

, concluindo sua fala com uma teoria hedonista que busca justificar

qualquer tipo de ação, seja ela boa ou má, quando seu objetivo é suprir os apetites e os

prazeres humanos95

. Os conceitos abordados nesta parte da obra, porém, pouco contribuem no

sentido de fornecer informações que acrescentem algum conteúdo significativo para a paideía

gorgiana.

Assim, sua paideía tem bases pedagógicas fundamentadas na polymátheia, ou seja,

num conhecimento enciclopédico utilizado como meio de convencimento nos discursos

argumentativos; bem como na oratória e na retórica como um poderoso instrumento de

persuasão96

. Este processo educacional, por ele adotado, não se preocupa com os métodos

92 GUTHRIE, 1995, p. 171-2. 93 JAEGER, 1995, p. 655. 94 PLATÃO. Górgias, 486c-d. In: PLATÃO, 1973, v. III. 95 Id., ibid., 491e-492c. 96 “Dize-me, Górgias: é verdade o que afirmou o nosso amigo Cálicles, que te comprometes a responder seja o

que for que te perguntarem? Górgias. É verdade, Querefonte; foi isso mesmo que declarei há pouco, e posso

assegurar-te que há muitos anos ninguém me apresentou uma questão nova” (id., ibid., 477c).

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pedagógicos até então empregados para a formação do indivíduo, focando todos os seus

esforços em propiciar aos jovens e adultos a possibilidade de exercerem cargos de destaque

no Estado ateniense. Em suma, para Górgias a paideía sofista, por meio do domínio dos

recursos da linguagem, torna possível ao homem a obtenção de um saber universal. Mesmo

porque, devido a seu relativismo e a seu ceticismo, os sofistas não acreditavam na

possibilidade de o sujeito ter acesso ao real, e, para eles, a única forma de atingir-se a

universalidade e a objetividade seria por meio do lógos.

Portanto, a paideía gorgiana está sedimentada no discurso, ou no lógos, em busca do

poder da persuasão, mas, quando utilizada de maneira inadequada, transforma-se em algo

potencialmente perigoso. Até mesmo, compartilho o pensamento de Jaeger97

quando diz o

seguinte:

Este esboço de uma doutrina da sociedade baseada na teoria da luta pela sobrevivência

deixa à educação um papel inferior. Sócrates opunha a filosofia da educação à filosofia

da força. Era a paideía que era para ele o critério da felicidade humana, contida na

kalokagathía (bem agir) do justo.

Logo, a proposta pedagógica de Górgias, com o uso da retórica como um instrumento de

persuasão, sob a perspectiva de um embate, como uma espécie de jogo de poder, em que haverá

vencedores e perdedores, não corresponde ao papel que a educação deve exercer na sociedade,

pois os programas educacionais, quando aplicados de forma adequada, só visam atingir um único

objetivo, ou seja, a formação consciente do espírito, em que todos os envolvidos saiam vitoriosos.

1.5 Semelhanças entre a paideía de Protágoras e de Górgias

A análise dos ideais de ambos os sofistas auxiliou-nos a entender com maior grau de

profundidade as características particulares de seus métodos pedagógicos; bem como

possibilitou-nos identificar as similaridades entre suas propostas educacionais e os aspectos

determinantes de seus conceitos de sabedoria. Esses fatores constituíram as bases do

programa educacional dos sofistas e estão diretamente associados aos efeitos exercidos por

eles nos indivíduos, tais como o poder de mudar as opiniões das pessoas por meio do estímulo

97 JAEGER, 1995, p. 668.

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de suas paixões e de seus desejos, provocando transformações significativas em seus juízos de

valor.

Embora seja inquestionável a existência de várias diferenças em seus modelos

pedagógicos, alguns aspectos demonstram certa semelhança entre ambos; enquanto o método

protagoriano acredita que nossa alma, ao receber influências do meio, exteriores a ela, pode

seguir tanto o caminho do bem quanto o caminho do mal, e que o papel do verdadeiro mestre

é empregar técnicas que resultem em mudanças relevantes nessa alma, o método gorgiano

nem se importa com esta característica, pois crê que a alma vive sob o jugo da opinião, e a

função do verdadeiro mestre é alterar essa tendência, por meio do discurso persuasivo. Logo,

nota-se que o elo entre seus modelos pedagógicos está relacionado à perspectiva, que ambos

têm, de transformar o homem pela manipulação de suas opiniões e paixões.

Portanto, a paideía desses dois grandes representantes da sofística está fundamentada

na possibilidade de prover a seus discípulos uma grande diversidade de informações, para que

eles, de posse desses conhecimentos, possam utilizá-los como instrumento de persuasão, ou

seja, quanto maior a quantidade de conhecimento geral, maior é a probabilidade de fornecer

subsídios para fortalecer e diversificar seus argumentos, e, consequentemente, ampliar seu

poder de convencimento.

Outro ponto em comum na paideía de ambos é a questão da tolerância entre os

indivíduos, fortalecendo diversos aspectos da convivência social. Os dois priorizavam a

aceitação das diferenças individuais, por meio do esclarecimento e da empatia, ou seja, tanto

Protágoras como Górgias valorizavam a prudência, que, na visão protagoriana, está associada

ao respeito pela diversidade religiosa e cultural, e, na gorgiana, é observada no direito à plena

defesa, não permitindo o julgamento e a punição sem que se analisem todos os aspectos de

uma determinada situação.

Por fim, também cabe ressaltar que, segundo Sexto Empírico98

, havia outro ponto em

comum entre seus programas educacionais: a impossibilidade da existência de um critério

absoluto para atingir a verdade. Na perspectiva do pensamento protagoriano, este fato é

devido a seu relativismo, ou seja, o homem como medida de todas as coisas. Já segundo o

ponto de vista gorgiano, uma vez que não é possível a obtenção da identidade entre o dizer, o

pensar e o ser, o ato de pensar algo não garante sua verdade, e isto não permite mais que seja

utilizado como um critério para assegurar se esse algo é falso ou verdadeiro.

98 SOFISTAS, 2005, p. 78-80 e p. 112-8.

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O capítulo apresentou as principais propostas da paideía dos sofistas, abordando suas

características e particularidades. O próximo capítulo trará uma noção das ideias mais

importantes de Sócrates e descreverá as bases que fundamentam sua paideía.

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CAPÍTULO 2

Sócrates e seu ideal pedagógico

O capítulo visa apresentar as principais características da paideía socrática, com base

na análise dos elementos mais significativos de seus ideais pedagógicos. Nele serão abordados

os princípios fundamentais de sua filosofia, em particular, os temas concernentes à busca da

virtude, por meio de seus conceitos educacionais e de moralidade. Por fim, serão descritos os

aspectos de maior relevância que compõem sua paideía.

2.1 O Sócrates histórico

2.1.1 A moral socrática

Os filósofos, tanto quanto os sofistas, foram fortemente influenciados pelo movimento

humanista que floresceu na Grécia no início do século V a.C. Essa valorização das coisas

humanas, em detrimento das cosmológicas, provocou mudanças significativas no objeto de

estudo de grande parte dos pensadores atenienses. Entre os filósofos, Sócrates99

foi

reconhecidamente seu pioneiro e maior representante, pois empregou todo o seu esforço

filosófico no sentido de tentar compreender os principais agentes motivadores das ações

humanas. Consequentemente, seus estudos estavam focados nas questões éticas e morais,

priorizando os atos regidos pela razão.

Para atingir tal objetivo, Sócrates mergulhou no aspecto mais íntimo do ser e procurou

decifrar o que ele julga ser o maior bem do homem, que é sua própria alma. Tanto que nos

99 “Viram-no ou ouviram-no alguma vez fazer ou dizer algo contrário à moral, ou à religião? Abstendo-se, ao

revés da maioria dos outros filósofos, de dissertar sobre a natureza do universo, de indagar a origem espontânea

do que os sofistas chamam ‘cosmos’ e a que leis fatais obedecem os fenômenos celestes, ia a ponto de

demonstrar a loucura dos que trilham semelhantes especulações. Antes de tudo examinava se eles presumiam ter

aprofundado suficientemente os conhecimentos humanos para se ocuparem de tais assuntos, ou se achavam

razoável pôr de parte o que está ao alcance do homem para intrometer-se no que aos deuses pertence”

(XENOFONTE, Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, I, 1, 11. Tradução, introdução e notas de A. E. Pinheiro.

Coimbra: Universidade de Coimbra, Col. Autores Gregos e Latinos, Série Textos. Disponível em:

<https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/bitstream/123456789/16/3/ memoraveis.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2012.).

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diálogos socráticos ele faz inúmeras referências ao cuidado que o homem deve ter com ela100

,

de tal modo que, quando sua alma é direcionada para o conhecimento do bem, leva-o à

aquisição da virtude, e, quando se dá o contrário, conduz-nos ao vício. Esse modo de pensar

concebeu o que hoje conhecemos como o paradoxo moral socrático, ou seja, o conhecimento

é a causa da virtude. Portanto, basta o homem conhecer a justiça para ser justo, e o mesmo

ocorre com as demais virtudes.

Dessa forma, Sócrates acredita que ninguém erra de forma deliberada, mas sim pela

falta de conhecimento, condição que o leva a ignorar a melhor maneira de distinguir o bem do

mal. Tal modo de pensar teve como consequência o vínculo de suas ideias com o

intelectualismo, tema que será posteriormente abordado.

Assim, para Sócrates, o grande objetivo a ser alcançado é a busca do conhecimento

interior, e o caminho para tal está no processo de reconhecer e de descobrir a melhor forma de

fazê-lo. Logo, sua teoria moral está fundamentada na possibilidade de a alma maximizar suas

virtudes e de minimizar os vícios; bem como, na dicotomia observada entre as características

que particularizam o corpo, ou seja, tendência do homem procurar satisfazer os prazeres

materiais, dos da alma, que tem como principal atribuição controlar e nortear nossas ações

sem render-se aos desejos do corpo101

.

Essa dualidade observada entre a pureza da alma e sua possível corrupção, fruto das

tentações advindas do corpo, influenciou diversos segmentos das futuras sociedades,

especialmente em seus aspectos religiosos, e foi responsável pelo florescer de várias linhas

doutrinárias que perduram até a nossa contemporaneidade. Outro aspecto importante da moral

socrática é a capacidade de atingir a essência das coisas, partindo da análise de suas

características particulares. Este nível de abstração atribuiu a ela um caráter universalista e a

desvinculou totalmente da influência das afecções humanas.

Embora no diálogo Protágoras ele defenda veementemente esse tipo de raciocínio, no

diálogo Górgias há uma alteração em seus conceitos, os quais passam a considerar a

possibilidade de o homem submeter-se ao jugo das opiniões, fato que certamente o conduziria

ao vício102

. No entanto, cabe destacar que essa mudança não ocorreu na essência do paradoxo

100Ver PLATÃO, Apologia de Sócrates (29c-30b), Protágoras (310b-314c), entre outras obras de juventude (PLATÃO. Apologia, Critão, Laquete, Cármides, Líside. Tradução de C. A. Nunes. Belém: Universidade

Federal do Pará, 1973, Col. Amazônica/Série Farias Brito, v. I; idem, v. III). 101 “Outra coisa não faço, senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do

corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que das riquezas não vem a virtude

para os homens, mas da virtude vêm as riquezas e todos os outros bens, privados e públicos” (PLATÃO, Apologia

de Sócrates, 30b. In: PLATÃO, 1973, v. I). 102 Para maiores detalhes sobre este aspecto da moral socrática, ver na obra platônica Górgias o diálogo entre

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moral socrático, e sim em sua aceitação de que o conhecimento, sob esse ponto de vista, não

pode ser vinculado a uma característica comum a todos os seres. Logo, essas duas

perspectivas são fundamentais para entender a visão socrática de que a alma passa a ser dual,

na qual existe uma parte racional, que procura o bem, e outra irracional, fortemente

influenciada pelas afecções e pelos prazeres do corpo. Então vamos tentar entender como essa

transformação do paradoxo ocorre ao longo dos diálogos socráticos.

No Protágoras103

, o paradoxo moral socrático está fundamentado na negação da

akrasia, ou seja, não é admissível alguém conhecer o bem e, de forma deliberada, cometer

uma ação má. Isto significa que a alma por meio do contato com o bem não está mais sujeita

ao jugo das vontades e dos desejos do corpo. Esse controle sobre as influências das afecções e

dos apetites é uma característica encontrada em todos os indivíduos, resultando na crença de

que existe bondade em todas as almas e que elas só desejam o bem. Portanto, segundo

Sócrates, se erram, é devido as suas concepções equivocadas sobre o que é o verdadeiro bem.

Outro conceito capital para compreender a moral socrática é sua teoria hedonista, a

qual se propõe a analisar o efeito das ações agradáveis e das desagradáveis na vida do ser. Ela

associa o prazer às coisas agradáveis, ao afirmar que elas são boas por gerarem consequências

boas, e que as desagradáveis são más por gerarem consequências más104

; essa questão não é,

contudo, tão trivial quanto se apresenta, isto é, ao fazer uma análise mais criteriosa dos

aspectos da moral socrática, podemos observar a grande importância que ele atribui ao

conhecimento ou epistéme, que essencialmente descarta a possibilidade de alguém, após

conhecer o bem, ser capaz de cometer uma ação insensata, unicamente com o objetivo de

obter o prazer.

Dessa forma, Sócrates desvincula totalmente o conhecimento do bem, da busca

incondicional do prazer, já que ela não está preocupada com as consequências boas ou más

dessa ação. Segundo ele, quem afirma ter se deixado levar pelo prazer, para justificar uma

ação inadequada, está completamente equivocado, pois só a ignorância do bem pode levar

alguém a cometer uma ação má. Logo, quem se deixa levar pelas afecções ou pelos apetites o

faz movido por uma falsa opinião, e nunca pelo conhecimento105

, ratificando sua posição de

negar a possibilidade da akrasia, veementemente defendida no Protágoras.

Sócrates e Cálicles. 103 Conceitos presentes em PLATÃO. Protágoras, 351a-358c. In: PLATÃO, 1973, v. III. 104 Id., ibid., 351a-b. 105 Id., ibid., 352a-353e.

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Também vale lembrar que para Sócrates a meta da alma do homem é atingir o

conhecimento do bem, o que consequentemente a conduzirá à obtenção da felicidade. Ora, se

o prazer traz felicidade, é de se esperar que sua busca não esteja relacionada a algo ruim;

Sócrates, contudo, faz uma ressalva a esses argumentos favoráveis à procura do prazer, ao

afirmar que ela perde seu caráter positivo no momento em que ultrapassa um limite razoável,

isto é, a medida106

.

Desse modo, Sócrates em sua teoria hedonista defende a ideia de que o prazer não é

um mal em si, pois sua procura somente pode ser considerada algo ruim no momento em que

visa a obtenção de uma satisfação imediata, ou quando ela provoca algum efeito negativo em

sua vida. Já nos casos em que essa busca do prazer está associada a um bem-estar permanente,

pode e deve ser considerada um bem. Isto significa que para Sócrates é impossível alguém

cometer ações más apenas na busca do prazer, já que o prazer pode ser um bem. Logo, as

pessoas só são influenciadas pelos desejos do corpo ou pelas afecções nas situações em que

querem atingir o prazer sem ter o real conhecimento da medida ou do verdadeiro bem107

.

Em suma, no diálogo Protágoras, o pensamento socrático está fundamentado na

efetiva busca da essência das coisas, e esse nível de abstração conduziu Sócrates a crer que a

alma estava livre do vício e que todos os males dos seres tinham como origem as influências

negativas advindas do corpo. Já no diálogo Górgias, essa visão da moral socrática baseada na

diferença entre o corpo, associado às coisas ruins, e a alma, associada às coisas boas, é

analisada sob uma nova perspectiva, a qual entende que a alma poderia ser influenciada por

fatores externos e que seria suscetível a viver tanto na virtude quanto no vício. Dessa forma,

Sócrates passa a admitir que nossa alma, além de ser composta por um lado racional, que

sempre procura a aquisição do bem, também tem um lado irracional movido pelas afecções,

que busca satisfazer nossos desejos e apetites. Neste sentido, a abordagem deste tema no

diálogo é feita por meio de uma análise da retórica, entendida como um instrumento poderoso

de convencimento e de persuasão das almas humanas, baseada em argumentos fundamentados

em suas crenças e opiniões, isto é, uma atividade essencialmente sofísta108

.

106 PLATÃO. Protágoras, 358b. In: PLATÃO, 1973, v. III. 107 “[...] quem erra na escolha dos prazeres e dos sofrimentos, isto é, dos bens e dos males, erra por falta de

conhecimento, não de conhecimento em geral, mas daquele que admitistes como sendo o conhecimento da

medida. Toda ação errada por falta de conhecimento, como bem o sabeis, decorre da ignorância, de forma que

ser vencido pelo prazer é a maior ignorância” (id., ibid., 354c-355e). 108 A retórica sofística, sedimentada na empeiria, ou seja, vista de forma negativa como prática ou rotina,

futuramente é recuperada por Platão, em suas obras de maturidade, em especial, o Fedro, transformando-se na

retórica filosófica, fundamentada na epistéme.

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Para tanto, Górgias define a retórica como uma arte, ou tékhne, cujo objeto é o corpo e

a alma dos homens, e seu fim é a obtenção da saúde e da beleza. Sócrates discorda, contudo,

da visão gorgiana e afirma que a retórica sob a ótica dos sofistas não passa de uma empeiria,

ou seja, uma adulação, que tem como único objetivo proporcionar prazer ao corpo e a alma,

sem levar em consideração seus possíveis efeitos negativos. Assim, Sócrates divide a tékhne,

ou arte, em medicina e ginástica, quando visa o bem do corpo, e em justiça e legislação,

quando associada ao bem da alma. Já a arte em sua versão corrompida, empregada para

proporcionar apenas o prazer, independentemente dos efeitos bons ou ruins, é denominada

empeiria, ou adulação, que é a culinária e a cosmética, quando vinculada ao corpo, e retórica

e sofística, quando direcionada a cativar o lado irracional da alma109

.

E esse é o ponto relevante a ser tratado, pois agora para Sócrates a alma possui um

lado racional que procura atingir o bem e um lado irracional que deseja obter o prazer, sem

questionar se o agente motivador dessa ação é algo justo ou injusto, ou seja, enquanto no

Protágoras ele associa o prazer ao bem, no Górgias ele admite a possibilidade de os prazeres

não serem bons nem ruins, dependendo apenas dos fatores que motivaram suas ações para a

obtenção desses prazeres110

. Isto significa, que este novo conceito moral socrático, mais

complexo, admite a possibilidade da existência de prazeres ruins, radicalmente antagônicos às

almas que desejam adquirir a sabedoria. Portanto, para que nossas atitudes possam ser

consideradas virtuosas, devem ser norteadas pela justiça, que somente é obtida pela arte,

mediada pela parte racional de nossa alma, e não pela adulação, movida simplesmente pelos

nossos apetites.

Essa nova característica do pensamento socrático nos é revelada no diálogo com Pólo,

sobre o hedonismo e sua relação com a justiça, e, especialmente, na conversa com Cálicles e

seu hedonismo exacerbado. Em ambos os casos, Sócrates reitera que a verdadeira felicidade

somente pode ser atingida ao obter-se o real conhecimento do bem e na procura dos prazeres

saudáveis, que consequentemente nos conduzirão à virtude.

Dessa maneira, o processo do autoconhecimento exerce um papel fundamental na

teoria moral socrática, que, por meio da medida, isto é, da prática do saber racional existente

no interior de toda alma humana, nos fornecerá subsídios suficientes para decidir se as ações

109 Para maiores detalhes sobre este tema, ver o diálogo entre Sócrates e Pólo (cf. PLATÃO. Górgias, 463a-

465e. In: PLATÃO, 1973, v. III) e o diálogo entre Sócrates e Cálicles (cf. id., ibid., 501a-502e). 110 Sócrates afirma que o desejo enquanto falta nos provoca dor e o mesmo desejo, após satisfeito, nos traz

prazer, de tal modo que podemos concluir que dor e prazer podem ocorrer ao mesmo tempo. Logo, nem toda dor

produz infelicidade nem todo prazer proporciona felicidade (cf. id., ibid., 496c a 497a).

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que tomamos são justas ou injustas. Neste sentido, para Sócrates torna-se fragrante a grande

importância do ensinamento contido na célebre frase: “conhece-te a ti mesmo”.

2.1.2 A influência do oráculo de Delfos no pensamento de Sócrates

O oráculo do Apolo de Delfos exerceu um papel fundamental no pensamento socrático

e foi um verdadeiro divisor de águas no rumo dos seus ideais filosóficos. Este fato, analisado

em conjunto com algumas de suas especulações filosóficas, que ocorreram em sua juventude,

pode explicar algumas controvérsias sobre suas ideias e também justifica algumas

interpretações equivocadas sobre o caráter de seus ensinamentos. Logo, para entender essa

influência e as reais repercussões em sua vida, já que ele não deixou nada escrito, coube-nos

obter essas informações com base nas declarações111

de Platão, Xenofonte, Aristófanes e

Aristóteles; porém, neste estudo abordarei apenas os testemunhos dos três primeiros

pensadores, que viveram e conviveram com ele, fazendo uma compilação de seus principais

escritos e ideias.

Para tanto, iniciaremos essa análise sob a ótica da imagem pejorativa que Aristófanes

fez de Sócrates em suas obras, que corresponde ao período anterior a ele receber do oráculo

de Delfos o que ele mesmo denominou como sua “tarefa divina”112

.

Assim, como todo grande pensador de sua época, Sócrates sofreu influências dos

filósofos da natureza e de alguns segmentos do movimento sofista. Ao longo de seu

amadurecimento filosófico, ele percorreu diversas vertentes dessas doutrinas, e após algum

tempo nessa jornada percebeu que sua grande vocação estava no despertar do conhecimento

de si mesmo; se considerarmos, contudo, alguns aspectos dos ideais do jovem Sócrates, é

111 GUTHRIE, 1995, p. 8. 112 “Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver

alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda

ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais

importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas,

fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua

alma?’ E, se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixando-o, mas o hei de interrogar,

examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por

estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou

velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos no sangue. Tais são

as ordens que o deus me deu, ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu à cidade maior bem que minha

obediência ao deus” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29c-e. In: PLATÃO, 1973, v. I).

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possível observar algumas semelhanças com a linha de pensamento dos filósofos da natureza

e dos sofistas. Só assim, sob esta perspectiva, conseguimos entender algumas das acusações

que Aristófanes fez a ele em suas comédias. Guthrie113

afirma que Aristófanes em suas obras

visou minar as bases desse movimento humanista por meio de ironias e de sátiras, focando

principalmente a desmoralização da imagem de Sócrates, que era um personagem muito

conhecido em Atenas.

Por outro lado, Jaeger afirma que Aristófanes foi radicalmente contra as propostas

renovadoras desses novos intelectuais que surgiram em Atenas, especialmente as de cunho

educacional. Em Os comilões, ele destaca a dicotomia existente entre os valores apregoados

pela pedagogia tradicional e a pedagogia iluminista114

. Já na obra Os aduladores, critica

diretamente os sofistas, os quais ele qualifica como parasitas que permaneciam ao redor das

residências dos nobres, visando obter vantagens financeiras. Dessa forma, suas comédias

continham essencialmente uma forte crítica cultural e repudiavam essa nova categoria de

educadores, que, em sua opinião, eram excêntricos e mal-educados. Mas o aspecto relevante

nessa questão é que Sócrates, sendo ateniense e simpatizante dessas novas tendências, em

dado momento passou a ser um dos personagens de seus poemas satíricos115

. Em sua obra As

nuvens, ele descreve Sócrates como um iluminista afastado do povo e um cientificista ateu,

com foco apenas nos mistérios cosmológicos, enquanto seus discípulos ficavam perscrutando

as coisas do mundo subterrâneo. Assim, Aristófanes torna claro seu apego às tradições e

demonstra seu caráter conservador, totalmente avesso às mudanças preconizadas pelos

filósofos da natureza e pelos sofistas. Ele também considerava o fruto dos seus ensinamentos

como um agente deformador dos valores e dos costumes. Por fim, em sua obra As rãs, ele

pela comédia defende o valor da tragédia em detrimento dos novos modelos educacionais,

fortemente caracterizados pelo iluminismo racionalista. Conforme o próprio Jaeger:

Sócrates é também, para o poeta, o protótipo de um novo espírito, que matava o

tempo com sofísticas sutilezas, abstrusas e minuciosas, desprezando os valores

insubstituíveis da música e da tragédia. Com a segura intuição do homem que vê em

perigo os valores aos quais deve toda a substância da sua vida e a sua formação mais

elevada, ataca vigorosamente uma educação cuja maior força é o intelecto116.

113 GUTHRIE, W. K. C. A History of Greek Philosophy, v. IV (Socrates). Cambridge: Cambridge University

Press, 1978, p. 13. 114 Aristófanes narra a história do filho de um camponês que foi enviado para a cidade para receber uma

formação sob os novos moldes, enquanto seu irmão ficou junto a seu pai com o objetivo de ser educado pelo

método tradicional. No entanto, quando o jovem retornou da cidade, grande foi a decepção de seu pai, pois ele

voltou moralmente corrompido, e não servia para fazer nenhuma das tarefas necessárias no campo, só se

preocupando com as questões políticas. Ver JAEGER, 1995, p. 418. 115 Para maiores detalhes, ver GUTHRIE, 1978, p. 39-47. 116 JAEGER, 1995, p. 431.

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Portanto, com base nessas informações torna-se razoável inferir que Sócrates foi uma

vítima circunstancial da fase que atravessava a sociedade ateniense, fruto de um momento de

renovação dos valores sociais e culturais. Logo, o grande agente motivador dos ataques de

Aristófanes foi esse novo movimento intelectual, que feria profundamente as bases da cultura

tradicional grega. De tal modo, que utilizou sua criatividade com o objetivo de denegrir a

imagem de Sócrates perante a sociedade ateniense. Mas o que nos cabe compreender é por

que Aristófanes o escolheu para tal ataque? Jaeger117

atribui tal fato a três razões. A primeira

estava associada às características físicas de Sócrates, que, segundo ele, tinha os olhos

saltados, o nariz achatado e os lábios grossos, o que facilitaria a máscara cômica concebida

por Aristófanes. A segunda, por ser uma pessoa muito conhecida na pólis, o que favorecia a

associação do personagem da comédia com alguém da vida real, já que a maioria dos

filósofos da natureza e dos sofistas não residia em Atenas. E, por fim, a terceira, por ser um

intelectual que, segundo a opinião de Aristófanes, representava as novas tendências violadoras

das tradições e dos bons costumes.

O solo, contudo, em que Aristófanes sedimentou as bases de suas críticas não era

sólido, pois estas foram fundamentadas em uma fase muito imatura da vida filosófica de

Sócrates, a qual foi influenciada pelas ideias dos filósofos da natureza e dos sofistas. Mesmo

porque, se não todos, a grande maioria dos intelectuais daquela época também o fora. Até

mesmo, em um dos diálogos socráticos118

, ele confessa que, apesar de na sua juventude ter

tentado aprofundar-se nos estudos dos fenômenos naturais e cosmológicos, descobriu que não

possuía a menor aptidão para fazer considerações sobre esses temas. Por outro lado, após

algum tempo de estudo dos fatores externos ao homem, trilhou um caminho inverso e passou

a investigar as questões humanas, em especial, os aspectos internos do ser.

Nesse sentido, o oráculo de Delfos foi um grande marco no pensamento socrático e

exerceu um papel fundamental no novo rumo que tomou sua filosofia. O evento que originou

117 Para maiores detalhes, ver id., ibid., p. 433. 118 “Em minha mocidade senti-me apaixonado por esse gênero de estudos a que dão o nome de ‘exame da

natureza’: parecia-me admirável, com efeito, conhecer as causas de tudo, saber por que tudo vem à existência,

por que perece e por que existe. Muitas vezes detive-me seriamente a examinar questões como esta: se, como

alguns pretendem, os seres vivos se originam de uma putrefação em que tomam parte o frio e o calor; se é o

sangue que nos faz pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim o próprio cérebro, que nos dá

as sensações de ouvir, ver e cheirar, das quais resultariam, por sua vez, a memória e a opinião, ao passo que

destas, quando adquirem estabilidade, nasceria o conhecimento. Examinei, inversamente, a maneira pela qual

tudo isso se corrompe, e, também, os fenômenos que se passam na abóbada celeste e na terra. E acabei por me

convencer de que em face dessas pesquisas eu era duma inaptidão notável!” (PLATÃO. Fédon, 19a-c. In:

PLATÃO. Fedon, 2007. Disponível em: <http://www.4shared.com/file/JcniatmW/Plato_-_Fedon.html>. Acesso

em: 08 abr. 2010.).

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essa grande mudança foi a pergunta que Querefonte fez ao oráculo de Delfos sobre se havia

alguém em Atenas mais sábio do que Sócrates. E quando o oráculo respondeu que não,

Sócrates ficou extremamente intrigado e não conseguiu descansar enquanto não descobriu o

real significado da afirmação oracular. Mesmo porque ele estava ciente de que não havia a

menor possibilidade de a divindade estar enganada e tinha plena consciência de suas

limitações pessoais. Assim, após muito meditar, Sócrates concluiu que essa afirmação

somente estaria fundamentada na máxima de que sua sabedoria era a de reconhecer que nada

sabia, ou seja, assumir sua própria ignorância119

.

Esse ponto foi imprescindível para a construção das bases da sua paideía, pois, a partir

desse momento, Sócrates passou a interrogar os cidadãos atenienses, procurando identificar

alguma sabedoria entre aqueles que diziam possuir algum tipo de autoridade sobre um

determinado ramo de atividade, seja ela política, literária ou artesanal. Grande foi sua surpresa

ao perceber que, com exceção dos artesãos, que tinham apenas um conhecimento técnico

limitado a sua arte, os demais eram mais ignorantes do que ele, pois, contrariamente a sua

postura, não assumiam desconhecer a verdade das coisas que intitulavam saber. Graças a essa

missão divina120

, ele concebeu um modelo pedagógico caracterizado por uma série de

questionamentos que conduziam o interlocutor a rever seus conceitos, normalmente

fundamentados em pseudoverdades, levando-o a tomar consciência da própria ignorância.

Portanto, a experiência adquirida após o evento ocorrido com o oráculo do Apolo de

Delfos determinou uma nova tendência para a filosofia socrática, que passou a priorizar as

coisas interiores do ser, especialmente sua alma, estimulando por meio de sua paideía o

autoconhecimento e a autoconsciência. Dessa forma, seu principal objetivo é despertar no

interlocutor o conhecimento de si mesmo, ou seja, incentivar a alma dos homens a atingir a

virtude por meio da consciência plena de seus atos e do domínio de seus impulsos.

119 Para maiores detalhes sobre essas afirmações, ver PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: PLATÃO, 1973, v. I; XENOFONTE. Apologia de Sócrates. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, 1972 (Coleção Os

Pensadores, v. II, “Sócrates”). 120 “Enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar

ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um

ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de

adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de

melhorar quanto mais a tua alma?’” E, se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixando-

o, mas o hei de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a

adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a

quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais

próximos no sangue. Tais são as ordens que o deus me deu, ficai certos” (PLATÃO. Apologia de Sócrates, 29e-

30a. In: PLATÃO, 1973, v. I).

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2.2 Principais ideias

2.2.1 O intelectualismo socrático

Esse movimento que revolucionou a forma de pensar a cultura, a religião e a educação

grega veio ao longo dos anos descrevendo uma trajetória lenta, mas contínua, até atingir seu

ápice no período clássico (século V a.C.). Estas mudanças foram de tamanha abrangência, que

afetaram diversas áreas do conhecimento; a transformação de maior relevância ocorreu no

processo de formação política de seu povo, que alterou profundamente vários conceitos

preestabelecidos na sociedade grega. Entre eles, e o de maior repercussão, foi a possibilidade

de transformar qualquer membro da comunidade em um cidadão, com efetiva participação nas

decisões da pólis. Esse novo modelo pedagógico surgiu como consequência natural de uma

tendência humanista, que floresceu no espírito dos intelectuais desse período. E Sócrates não

foi uma exceção a essa regra, pois concentrou todos os seus esforços no sentido de

compreender as questões de caráter espiritual dos seres, especialmente as que tratavam dos

fatores éticos e morais. Logo, seu objetivo era tentar entender os principais agentes

motivadores das ações humanas.

Nesse aspecto, Sócrates priorizou o uso da razão como um instrumento pedagógico em

detrimento dos velhos modelos educacionais121

, tradicionalmente utilizados pelos educadores

atenienses. Esse método estava fundamentado em um conjunto de modelos teóricos, baseados

em uma forma de pensar sistemática caracterizada essencialmente pela valorização do

intelecto122

. Assim, com base nesses ideais pedagógicos, Aristóteles123

declarou que devemos

creditar a Sócrates uma mudança na forma do pensamento dos gregos, por meio de uma

metodologia fundamentada nos argumentos indutivos e nas definições gerais124

.

No entanto, apesar de os argumentos indutivos serem um instrumento muito eficiente

para a evolução dos processos científicos, o uso desses argumentos pelo método socrático a

princípio causa-nos certa estranheza. Mesmo porque o objeto de estudo de Sócrates estava

121

Conforme já abordado no item 1.1.2, “A areté e a educação”, do Capítulo 1. 122 JAEGER, 1995, p. 513. 123 “There are two things which may justly be credited to Socrates, inductive arguments and general definition”

(GUTHRIE, 1978, p. 106, e também JAEGER, op. cit., p. 505). 124 Guthrie afirma que Aristóteles tende a particularizar alguns fatos, ao adequá-los a sua forma de pensar. Neste

caso em especial identificou traços puramente lógicos no pensamento socrático, o que Zeller discorda, pois

segundo ele, Sócrates procurava as definições gerais, através de um processo de depuração dialética,

fundamentalmente baseada em preceitos morais e éticos (GUTHRIE, 1978, p. 107).

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muito distante das ciências naturais, e o foco de suas especulações era a alma do homem, mais

especificamente, suas questões morais. Então, por que Aristóteles afirmou que Sócrates

utilizou os argumentos indutivos em sua metodologia? Segundo Guthrie125

, a afirmação

aristotélica foi baseada no fato de que os argumentos indutivos são como uma ponte que serve

para passar das características particulares, de um determinado objeto de pesquisa, para suas

características universais, um dos grandes objetivos do programa educacional socrático.

Dessa forma, Sócrates concentrou-se na busca da essência das coisas, o que Jaeger

considerou como os conceitos universais e Guthrie, como as definições gerais. Se pusermos,

contudo, à parte essa questão da nomenclatura, ele efetivamente pretendia, com base nos

argumentos associativos ou indutivos126

, sair dos conceitos particulares e atingir os conceitos

universais, ou seja, obter de dentro da multiplicidade a unidade. Esta característica é

observada com relativa frequência nos diálogos socráticos, como, por exemplo, no Laques,

em que, no momento em que ele pergunta sobre o que é a coragem, uma virtude particular e

individual, ele não está tentando distinguir esta virtude das demais, mas sim chegar a uma

unidade superior e abstrata, aquilo que é comum a todas as virtudes, a virtude em si.

Portanto, os diálogos socráticos abordam as virtudes sob uma perspectiva particular, as

quais, após passarem por um processo de síntese de suas características essenciais, fornecem

subsídios suficientes para determinar o que há de comum entre elas, isto é, sua unidade; bem

como conceber uma virtude geral, ou seja, seu conceito universal. Para atingir tal propósito,

Sócrates adotou o caminho de abordar nos diálogos socráticos as virtudes que ele considerou

fundamentais para o aperfeiçoamento da alma. No Laques, o tema principal é a coragem, no

Cármides é a temperança, no Eutífrom é a piedade, e as demais virtudes, a justiça e a

sabedoria, não são tratadas em nenhuma obra específica, porém permeiam todos os diálogos

socráticos. Em suma, o que ele deseja obter ao tratar essas questões de forma isolada são os

fatores que definem a natureza essencial das virtudes.

Assim, o tema da unidade das virtudes é um assunto de grande relevância na filosofia

socrática, e, entre elas, a sabedoria exerce um papel de destaque, pois, segundo Sócrates, é o

elo entre as demais virtudes. Conforme o Laques127

, basta o indivíduo ter o conhecimento do

bem e do mal para que ele possa agir de forma virtuosa, e assim ser um indivíduo virtuoso.

Devido a essa postura, contudo, Sócrates foi acusado de ser intelectualista, já que para ele o

125 Id., ibid., p. 100. 126 Segundo Guthrie, não devemos atribuir a Sócrates o uso pela primeira vez dos argumentos indutivos, mas ele

seguramente foi o primeiro que deu importância a eles, com o objetivo de chegar as definições gerais (cf. id.,

ibid., p. 108). 127 PLATÃO. Laques, 198a-199d. In: PLATÃO, 1973, v. I.

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saber é condição necessária e suficiente para que a alma do homem passe a ter atitudes

virtuosas. Mas, posteriormente, no diálogo Protágoras128

, entre outras obras, Sócrates foi

obrigado a rever alguns de seus conceitos e concluiu que o conhecimento do bem e do mal é

uma condição necessária, mas não suficiente para atingir-se a virtude, aspecto de sua

pedagogia que posteriormente será mais bem abordado.

Outro motivo pelo qual Sócrates foi acusado de pertencer ao movimento intelectualista

é explicado com base nos argumentos de Havelock129

, que, sob sua perspectiva, não só

Sócrates, como também os sofistas e os filósofos da natureza representavam um grupo de

intelectuais caracterizados por uma forma de pensamento abstrata, que surgiram no final do

século V a.C. Embora Sócrates utilize, todavia, a abstração como um instrumento coadjuvante

em seu modelo pedagógico, ele difere dos demais representantes desse movimento

intelectualista, pois acreditava na existência de um deus moral, defendia o extremo cuidado

que o homem tem de ter com sua alma e fazia uso da razão como um limite moral, e não

como um fim. Portanto, na questão do intelecto, Sócrates segue o caminho das coisas divinas,

que estão além do entendimento humano.

2.2.2 A metodologia socrática

Conforme já abordado, Sócrates procura por meio de seu modelo pedagógico obter a

essência das coisas, ou seja, aquilo que de forma inequívoca distingue e define a principal

característica do objeto de seu estudo. Essa busca rigorosa das essências por meio da

sublimação das opiniões equivocadas e da constante procura da verdade proporciona ao

indivíduo um melhor conhecimento de sua alma130

. E, como o grande objetivo de sua

investigação eram as questões éticas e sua efetiva aplicação prática, o método socrático

resulta no aperfeiçoamento do espírito do homem, especialmente em seus aspectos morais. De

tal modo que estabelece um conjunto de parâmetros, em tal nível de abstração que, além de

permitir o acesso aos conceitos universais, também conduz o interlocutor a rever muitas de

suas crenças.

128 PLATÃO. Protágoras, 329a-c. In: PLATÃO, 1973, v. III. 129 HAVELOCK, 1996, p. 205. 130 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 29c. In: PLATÃO, 1973, v. I. XENOFONTE, 2009, I, 1, 11.

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Essa determinação da natureza abstrata dos conceitos universais demonstra com

clareza que a investigação dialética, característica típica de sua pedagogia, nada mais é do que

um processo de obtenção do conhecimento como uma sinopse, isto é, a síntese do múltiplo,

gerando uma unidade do conceito universal131

. Então, quando no Eutífron, Sócrates pergunta

o que é piedade, ou, no Laques, o que é coragem, ele não está querendo saber o significado

formal das palavras “piedade” ou “coragem”, e, nem mesmo, obter uma lista de atitudes pias

ou corajosas. Na verdade, ele quer saber o que caracteriza um homem pio ou corajoso, isto é,

quer conhecer melhor a alma humana e compreender os fatores que a levam a tomar certas

atitudes.

Portanto, quando Sócrates pergunta a seu interlocutor “o que é X”, ele não quer saber

sobre as qualidades contingentes de “X”, mas sim de todas as características necessárias que

definam o que é “X”. Da mesma forma, quando Sócrates pergunta sobre o que é a coragem, a

temperança, a piedade ou a justiça, ele não quer exemplos dessas virtudes, o que ele quer é

uma definição que exprima a real essência por trás desses termos e que o interlocutor

efetivamente conheça o que é “X”. Assim, no ponto em que Sócrates fala no Laques a

respeito da arte da guerra, ele parte do pressuposto de que o indivíduo possuidor da coragem,

ao ter o conhecimento do bem e do mal, sabe quais são os motivos e qual é o melhor

momento para iniciar, ou não, uma guerra. Da mesma forma, no Cármides, em relação ao que

se refere a prudência, e, no Eutífron, na procura incansável do conceito universal do que é

piedade. Assim, seja na busca do conceito universal ou na procura do conhecimento do bem e

do mal, os diálogos socráticos visam abordar temas associados aos valores morais, ou seja, às

virtudes humanas.

Dessa forma, a estratégia pedagógica concebida por Sócrates está baseada no diálogo,

ou lógos132

, e é constituída por um processo dialético composto por duas fases distintas e

complementares, denominadas protréptico e élenkhos, as quais conduzem o homem a

alcançar sua liberdade interior, por meio do aprimoramento de sua alma, propiciando a

primazia da razão sobre os instintos.

Na primeira fase, denominada protréptico, ou exortação, ele utiliza seu método com o

objetivo de conduzir seu interlocutor ao caminho da filosofia, isto é, especula o real

comprometimento dele com o valor e a verdade das coisas; bem como faz uma autoavaliação,

131 JAEGER, 1995, p. 524. 132 O lógos foi o grande instrumento que Sócrates utilizou para atingir a alma do homem, seu grande objetivo

pedagógico. Conforme Jaeger: “a forma de Sócrates abordar o problema ético não era uma mera profecia, uma

pregação destinada a sacudir a moral do Homem, mas que a sua exortação ao ‘cuidado da alma’ traduzia-se no

esforço de penetrar na essência da moral por meio da força do lógos” (id., ibid., p. 585).

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questionando seus próprios juízos de valor133

. Neste sentido, o processo de exortação pretende

despertar a consciência e o discernimento do que realmente é importante para a vida do ser,

ou seja, se são os seus bens materiais ou sua alma134

. Essa visão socrática no que se refere à

hierarquia dos bens difere radicalmente do senso comum vigente até então na Grécia, que

priorizava a saúde, a beleza, a juventude e a riqueza, enquanto Sócrates valorizava os bens da

alma, do corpo e, por fim, as coisas materiais135

. Logo, sob esta perspectiva socrática, a alma

ganha um papel de grande destaque em seu modelo pedagógico, e o processo de exortação é o

primeiro passo no sentido de atingir uma formação completa do ser.

Já a segunda fase, denominada élenkhos, ou refutação, é um complemento

indispensável para o método socrático, pois, após a etapa de exortação, o interlocutor passa a

tomar consciência de si mesmo e perceber que não sabe nada do que julga saber, e, assim,

dispõe-se a começar uma nova etapa de seu aprendizado, reformulando suas antigas crenças.

Dessa maneira, o élenkhos visa o crescimento ético e moral, mediante o despertar do

indivíduo para o desejo de adquirir o conhecimento. No entanto, para que o método seja

aplicado em sua plenitude, parte-se do pressuposto de que, entre os participantes, haja um

comprometimento com a obtenção da verdade, isto é, que ao longo do diálogo eles estejam

totalmente livres das opiniões.

Assim, o processo inicia-se com um conjunto de perguntas e respostas, nas quais

Sócrates conduz seu interlocutor a concluir que suas crenças estão fundamentadas em falsas

“verdades”, normalmente fruto de percepções equivocadas, de opiniões subjetivas e de

preconceitos injustificados. Esta etapa dentro do élenkhos é chamada de eiróneía, ou seja,

questionamento, na qual Sócrates faz seu interlocutor perceber a falsidade de seus argumentos

e, consequentemente, sua ignorância, até então interpretada como sabedoria. E por meio desse

choque, provocando inicialmente raiva, e posteriormente vergonha136

, que o interlocutor sente

a necessidade de encontrar a verdade. A partir desse momento, ele está apto a entrar na

segunda etapa do élenkhos, denominada maieutiké, ou seja, arte de ajudar a partejar. Dessa

133 “[...] quando um deus, como eu acreditava e admitia, me mandava levar vida de filósofo, submetendo a

provas a mim mesmo e aos outros [...]” (PLATÃO. Apologia de Sócrates, 28b. In: PLATÃO, 1973, v. I). 134 “Sócrates fala como um médico cujo paciente fosse não o homem físico, mas o homem interior. Abundam

extraordinariamente nos diálogos socráticos as passagens em que se fala do cuidado da alma ou da preocupação

com a alma, como a missão suprema do Homem” (JAEGER, 1995, p. 536). 135 Id., ibid., p. 538. 136 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 20c-d. In: PLATÃO, 1973, v. I.

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maneira, Sócrates nesta última fase de seu método continua a reafirmar nada saber e não

fornece respostas para os temas analisados, pois acredita que sua função é atuar como um

agente facilitador, para que o interlocutor acesse algo que ele já conhece. Portanto, Sócrates

acredita que o conhecimento é algo natural, e basta estimular os indivíduos a recuperar esse

saber. E ele o fazia por meio do auxílio de uma espécie de parto do espírito, da mesma forma

que sua mãe auxiliava os partos do corpo137

.

Em suma, mediante a exortação e a refutação, a metodologia socrática pretende

despertar nos indivíduos um conhecimento existente dentro de sua própria alma.

Consequentemente, seu princípio básico é nada ensinar. Ela está essencialmente

fundamentada nos exemplos de Sócrates, visto como homem medida138

, que serve como

referência de moralidade e de respeito aos limites humanos; bem como na concepção de um

ensino baseado em um modelo ético, desvinculado de qualquer linha doutrinária, prática que

era muito comum nos processos educacionais gregos desse período.

2.3 A paideía socrática

O método e os fundamentos da pedagogia socrática foram um marco nos processos

educacionais do mundo ocidental. Nela é possível observar profundos traços de cisão com os

modelos até então utilizados na sociedade grega. Dessa forma, o movimento renovador

constituído pelos ideais educacionais dos filósofos da natureza, dos sofistas e de Sócrates

eram um avanço tanto no método quanto no foco desses modelos pedagógicos.

Apesar de existirem semelhanças nos fundamentos dessas escolas, também havia

diversas diferenças entre elas. Enquanto os filósofos da natureza tinham uma tendência mais

cientificista e dedicavam-se a compreender os fenômenos físicos, os sofistas e Sócrates

tinham interesses mais humanistas, preocupando-se com os aspectos humanos e o papel do

homem na sociedade.

Essa diferença de perspectiva educacional foi cada vez mais relevante, principalmente

nos temas cosmológicos, pois Sócrates considerava-os uma tremenda perda de tempo139

, isto

137 “[...] O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas

belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira [...]” (id., ibid., 150c). 138 “Sócrates era para seus discípulos um modelo vivo de virtuosidade [...]” (XENOFONTE, 2009, I, 2, 4). 139 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 18c. In: PLATÃO, 1973, v. I.

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é, eram especulações que não passavam de meras hipóteses140

. Não era, todavia, todo objeto

de estudo dos filósofos da natureza que desagradava Sócrates, pois para ele os que se referiam

aos métodos empíricos, relativos às experiências da vida prática, eram dotados de grande

interesse filosófico.

Assim, Sócrates considerava a medicina como um excelente exemplo do uso do

conhecimento com o objetivo de trazer algum tipo de benefício para a vida dos homens. Isto

pode ser observado em sua preocupação com o cuidado que o indivíduo deve ter com a saúde,

seja ela do corpo ou da alma141

. No entanto, sua grande prioridade sempre foi a saúde do

espírito, o que direcionou todo o seu esforço educacional para o interior do próprio ser, ou

seja, a obtenção do conhecimento de si mesmo.

Nesse sentido, Sócrates concebeu uma paideía que visava a atingir a formação integral

do homem, a qual considerava o autoconhecimento e o cuidado com a alma como sua

principal missão142

. Esta visão antropocêntrica, fruto de uma crise nos valores morais no

Estado e na sociedade grega143

, foi o fator que influenciou fortemente seus ideais

pedagógicos, e o fez perceber a importância do cuidado e da manutenção da saúde da alma.

Até mesmo, para Sócrates, a alma ou a psyche é a parte divina existente dentro dos seres

humanos144

. E é justamente na alma que ele irá concentrar todos os seus esforços

educacionais, porque lá reside o nosso intelecto, a nossa racionalidade e o nosso poder de

discernimento no que tange às questões éticas e morais.

Segundo Burnet145

, Sócrates foi o primeiro a encarar a alma sob essa perspectiva, pois

até então ela possuía um caráter essencialmente místico-religioso. Jaeger exprimiu assim as

idéias de Brunet:

O novo sentido que Sócrates dá a esta palavra não se pode explicar nem a partir do

eidolon épico de Homero, nem a sombra do Hades, nem da alma-sopro da filosofia

jónica, nem do dáimon-alma dos órficos, nem da psykhé da tragédia antiga146.

140 JAEGER, 1995, p. 519; XENOFONTE, 2009, I, 1, 11. 141 Id., ibid., I, 2, 5. 142 Tema bastante abordado nos diálogos socráticos, como em PLATÃO. Protágoras, 310b-314c. In: PLATÃO,

1973, v. III; em PLATÃO. Górgias, 465a-d (id., ibid.); e também em JAEGER, op. cit., p. 521. 143 “A Atenas de Péricles, que como cabeça de um grande império vê-se inundada por influências de todo o tipo e

proveniência, está em perigo de perder o terreno firme sob os seus pés, apesar do seu brilhante domínio em todos

os campos da arte e da vida. Todos os valores herdados se esfumam num abrir e fechar de olhos, ao sopro de

uma buliçosa loquacidade. É então que aparece Sócrates, qual Sólon do mundo moral, pois é no campo da moral

que nesta altura o Estado e a sociedade são minados” (id., ibid., p. 523). 144 GUTHRIE, 1978, p. 149, e JAEGER, op. cit., p. 531. 145 GUTHRIE, 1978, p. 12, e JAEGER, 1995, p. 534. 146 Id., ibid., p. 525.

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Portanto, a alma à qual Sócrates se refere tem como característica principal o intelecto e a

essência dos seres. E na paideía socrática a alma exerce um papel de destaque, pois ela tem a

possibilidade, sob o ponto de vista de Sócrates, de atingir o conhecimento, e,

consequentemente, a virtude. Isto fica muito claro na primeira fase de sua metodologia

pedagógica, denominada protréptico147

, que em conjunto com o élenkhos promove um

verdadeiro exame dialético no homem.

Outro conceito que é extremamente caro para a paideía socrática é a dualidade corpo e

alma, a qual vê o homem como um ser composto por duas partes distintas e simultaneamente

inter-relacionadas. Uma delas é a material, denominada corpo, e a outra é a espiritual,

denominada alma. A relevância de cada uma dessas partes em detrimento da outra, no modelo

pedagógico socrático, acabou gerando algumas controvérsias entre seus estudiosos. Guthrie

considera que Sócrates trata a alma com muita devoção, e por este motivo ela possui um

grande privilégio dentro de sua paideía. Segundo ele, para Sócrates até mesmo a essência

humana reside na alma, o que justificaria dedicar toda a sua força educacional ao objetivo de

nela despertar a sabedoria, ou seja, a virtude. Logo, o corpo é apenas um instrumento de

manifestação das vontades e dos desejos da alma, e, assim, ela seria o elemento mais

importante da existência humana, e o corpo seria apenas um elemento coadjuvante148

.

Em contrapartida, Jaeger defende que corpo e alma são dois aspectos distintos da

mesma natureza, isto é, não existe uma oposição do psíquico em relação ao físico. Assim,

para Sócrates a alma espiritualiza a natureza física, da mesma forma que o corpo influencia a

natureza psíquica, e, consequentemente, ambos pertencem ao mesmo cosmo. Portanto, o

princípio que se manifesta em um deles manifesta-se em ambos. Assim, tanto a virtude física

(saúde, força e beleza) como a espiritual (coragem, temperança, piedade e justiça) compõe o

conjunto de atributos, que, quando em harmonia, conduzem o homem ao conhecimento do

bem. Conforme Jaeger, essa simetria entre corpo e alma é um dos grandes objetivos a serem

atingidos na paideía socrática149

.

Em suma, a divergência de interpretações entre ambos no que se refere a esse conceito

fica muito clara quando Guthrie afirma não compreender o ponto de vista de Jaeger na

questão do corpo e da alma, principalmente quando ele diz que no homem não existe oposição

entre o psíquico e o físico, pois, para Guthrie, o corpo é algo externo a sua própria essência.

Ele faz uma analogia em sua obra dizendo que o corpo é para a alma do homem o que a serra

147 Etapa de sua pedagogia denominada protréptico, ou exortação, já abordada no item 2.2.2. 148 GUTHRIE, op. cit., p. 152. 149 JAEGER, 1995, p. 531.

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é para o carpinteiro150

. Particularmente, julgo a posição de Jaeger mais próxima do

pensamento socrático, mesmo porque Sócrates via o homem como um todo, e, assim,

orientava suas práticas educacionais para atingir uma formação completa do ser, privilegiando

um equilíbrio harmônico entre corpo e alma, tanto nas virtudes físicas, quanto nas virtudes

psíquicas.

Outro aspecto de sua paideía é a questão do autoconhecimento151

, só que agora visto

sob outra perspectiva, ou seja, como um instrumento para a obtenção do controle de si mesmo

e do equilíbrio de nossas próprias atitudes. Atributos fundamentais para qualquer cidadão que

se proponha a ser um futuro governante. Neste sentido, vale lembrar que para Sócrates uma

das metas fundamentais de sua paideía era alcançar a virtude em especial a política. Para tal

objetivo, ele lançou mão de um novo conceito, que foi o do domínio de si próprio,

caracterizado pelo predomínio das atitudes racionais em detrimento das instintivas.

Esse conceito do autodomínio resultou na priorização das coisas do espírito sobre a

dos instintos humanos. E, como o espiritual é o verdadeiro eu do homem, consequentemente

dentro de si começa a surgir a semente da justiça interior, concebida sob a égide das leis que

habitam nossa própria alma152

. Esse aspecto da paideía socrática possibilitou a valorização da

ética e da liberdade, que foram outros dois elementos importantíssimos para sua estrutura

pedagógica.

No caso da ética, Jaeger traduz sua relevância ao afirmar o seguinte:

Foi graças a Sócrates que o conceito de autodomínio se converteu numa idéia central

da nossa cultura ética. Esta idéia concebe a conduta moral como algo que brota do

interior do próprio indivíduo e não como a mera submissão exterior à lei, tal qual a

exigia o conceito tradicional da justiça153

.

Assim, a paideía socrática pretende produzir no interior da alma humana uma

consciência moral, a qual será o elemento norteador que conduzirá o homem a tomar decisões

éticas. Já na questão da liberdade, cabe destacar que nesse período o conceito de liberdade era

apenas o de algo oposto a escravidão, muito aquém do conceito que possuímos atualmente;

150 “It is difficult to understand what was in Jaeger’s mind when he wrote [paideía] that ‘in his [Socrates’s]

thought, there is no opposition between psychical and physical man’. The body is as extraneous to the man

himself, his psyche, as the saw is to the carpenter” (GUTHRIE, 1978, p. 153). 151 Além do tradicional conhecimento de si, fruto da célebre frase do oráculo de Delfos, Xenofonte destaca no

diálogo de Sócrates com Eutidemo o grande valor do autoconhecimento, ao declarar que, apesar da cultura geral

e da erudição, o fundamental para um governante é conhecer a si mesmo, a fim de trabalhar com suas limitações.

Ver XENOFONTE, 2009, IV, 2, 8-13. 152 Id., ibid., I, 4, 4-8. 153 JAEGER, 1995, p. 548.

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Sócrates propõe, contudo, uma liberdade ética, fundamentada na autonomia moral, que,

segundo ele, é obtida por meio da conquista da liberdade interior. E esta liberdade é fruto da

eficiência do domínio sobre nós mesmos, proporcionando uma independência da parte animal

existente em todos os seres. Então, para Sócrates, o homem livre é aquele que não se deixa

subjugar por seus apetites e paixões154

.

Outro conceito similar é o de autarquia, que também está associado à liberdade, mas

refere-se a uma independência das coisas, ou seja, uma ausência de necessidades155

. Assim,

essa liberdade seria adquirida por meio da força interior, capaz de limitar suas vontades e

desejos, para tentar possuir apenas aquilo que lhe é possível. Logo, o homem sob esta

perspectiva pode ser considerado autárquico, pois soube vencer seus instintos pelo

autodomínio156

. E este fator em sua paideía é extremamente relevante, porque só por meio

dessa liberdade interior é que o homem consegue ser realmente livre.

Por fim, o último aspecto de seu modelo pedagógico que considero relevante abordar é

o que se refere à relação de amizade entre o mestre e o discípulo, o que Sócrates denominava

philía, ou amizade virtuosa. Ele até mesmo discordava dos termos “mestre” e “discípulo”,

muito utilizado pelos pedagogos da época, preferindo empregar o termo “amigo”157

, e de pôr-

se a seu serviço para qualquer necessidade, seja ela nas questões educacionais ou privadas158

.

Dessa forma, Sócrates, ao tratar seus pares como amigos utilizava durante seu processo

educacional o respeito mútuo e abria caminho para a confiança recíproca, fator que ele

considerava fundamental para que houvesse uma troca natural de ideias e de conceitos, sem

permitir que houvesse julgamentos precipitados e rejeições prévias, facilitando, assim, o

crescimento de todos os envolvidos no processo educacional.

Em suma, a paideía socrática está fundamentada na consciência da própria ignorância,

no conhecimento de si mesmo e no cuidado com a alma, elementos que nos levam a concluir

que o fundamental de sua ação pedagógica é despertar a força existente dentro de nós

mesmos, visando o aperfeiçoamento de nosso próprio interior, ou seja, de nossa alma.

154 PLATÃO. Protágoras, 355b-d. In: PLATÃO, 1973, v. III. 155 XENOFONTE, 2009, I, 3, 12 e I, 6, 10. 156 JAEGER, op. cit., p. 552. 157 “Admirava-se de que um homem que fizesse profissão de ensinar a virtude exigisse remuneração e que, em

vez de ver na aquisição de um amigo virtuoso a maior das recompensas, temesse que um coração converso à

virtude não pagasse o maior dos benefícios com o maior reconhecimento. Aliás, Sócrates nunca prometeu nada

de semelhante a ninguém. Porém, abrigava a certeza de ganhar, naqueles que lhe seguiam os princípios, bons

amigos que o amariam e se estimariam reciprocamente para o resto da vida” (XENOFONTE, op. cit., I, 2, 3). 158 “Sócrates põe o seu gênio para a amizade a serviço dos amigos, quando estes precisam dele para fazer novas

amizades. Não é só como o aglutinante indispensável à cooperação política que ele conhece a amizade; esta é

para ele a verdadeira forma de toda a associação profícua entre os homens. Por isso, ao contrário dos sofistas,

nunca fala dos seus discípulos, mas sempre dos seus amigos” (JAEGER, op. cit., p. 568).

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O capítulo apresentou as principais características e os aspectos mais relevantes da

paideía socrática. O próximo capítulo irá destacar as divergências e as similaridades entre

ambas as paideîai.

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CAPÍTULO 3

Divergências e semelhanças entre a paideía sofista e a socrática

O presente capítulo tem como objetivo apresentar as principais divergências entre as

paideîai dos sofistas e de Sócrates, bem como demonstrar que, apesar de suas diferenças,

essas duas perspectivas pedagógicas possuem mais pontos em comum do que em uma análise

menos minuciosa poderíamos supor.

3.1 Conflitos entre suas paideîai

Os capítulos precedentes foram fundamentais para identificar as principais

características pedagógicas de cada uma dessas paideîai. Até mesmo, com base em suas

virtudes e limitações foi possível obter subsídios suficientes para fazer uma comparação mais

criteriosa dos seus modelos pedagógicos, visando destacar os pontos de maior relevância que

determinaram as diferenças entre a paideía sofista e a socrática.

3.1.1 Abrangência dos programas educacionais

O significado do termo “abrangência”, ao qual desejo ater-me neste item, refere-se à

amplitude dos conceitos fornecidos por cada uma dessas linhas educacionais, tanto no que diz

respeito a seu conteúdo pedagógico, quanto ao tempo necessário para atingir essa meta. Para

tal objetivo, irei destacar alguns aspectos relevantes que particularizam essas duas escolas,

focando as divergências na completude e na solidez dos conhecimentos transmitidos e na

expectativa de alcançá-los dentro de um prazo pré-determinado. Assim, no que se refere à

necessidade de despender maior ou menor tempo da vida do educando para atingir sua

formação completa, Jaeger159

afirma que o ensinamento dos sofistas fundamentalmente visava

a formação dos futuros chefes de Estado, e, consequentemente, seu programa educacional

159

JAEGER, 1995, p. 316.

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deveria ser extremamente objetivo, pois necessitavam obter resultados efetivos em prazos

relativamente curtos. Essa característica de sua paideía acabou justificando o alto

investimento financeiro dos jovens candidatos a líderes e fortaleceu a fama dos sofistas como

grandes mestres da pólis ateniense. Guthrie160

compartilha do mesmo ponto de vista que

Jaeger ao declarar que a principal matéria-prima da paideía sofista é a palavra, ou lógos,

normalmente utilizada como meio para persuadir e conquistar as pessoas nas assembleias

públicas. No entanto, apesar de possuir alguns aspectos favoráveis, ela é considerada como

sendo uma habilidade adquirida e tem um caráter essencialmente prático. De acordo com sua

visão, o discurso sob a perspectiva da paideía sofista, ou seja, marcada pelo ensino da arte ou

tékhne política, é algo que pode ser dominado com relativa rapidez.

Já no que diz respeito à paideía de Sócrates, nos diálogos socráticos não há nenhuma

referência direta ao tempo dispensado para o aprendizado de seus discípulos; o que,

entretanto, nos parece claro é que, por meio de seus ensinamentos, ele não procurava obter

resultados imediatos. Logo, podemos concluir que Sócrates provavelmente nunca se

preocupou com essa questão161

, já que o principal objetivo da sua paideía era a aquisição do

conhecimento de si mesmo, ou seja, um processo evolutivo que conduz o educando à

obtenção da areté, que é algo bastante incompatível com a imposição de limites temporais.

Segundo Guthrie, o processo de aquisição da areté demanda muito tempo no ato de

educar, no cuidado com as ações, no uso do discurso para evitar o mal que sua utilização

equivocada pode causar e na obtenção do bem, que só é alcançado à custa de um esforço

prolongado. Ele ratifica suas palavras ao dizer o seguinte:

O que está no poder de um homem é mostrar que realmente deseja o bem, e dedicar

tempo e trabalho necessários para adquiri-lo, pois em contraste com “a arte de falar”,

que pode ser rapidamente dominada, a areté exige longo tempo e esforço162.

160 GUTHRIE, 1995, p. 71. 161 A fala de Nícias fornece-nos uma ideia dos princípios socráticos quanto ao tema: “Pois pareces ignorar que

quem se aproxima de Sócrates para conversar com ele, à maneira de mulheres que confabulam, muito embora se

trate no começo de assunto diferente, de tal modo ele o arrasta na conversa, que o obriga a prestar-lhe contas de

si próprio, de que modo vive e que vida levou no passado. Uma vez chegados a esse ponto, não o solta sem o ter

examinado a fundo. Eu já estou acostumado com a maneira dele e sei que todos temos de passar por isso. Sendo

assim, Lisímaco, de muito bom grado conversarei com ele; não vejo nenhum mal em sermos lembrados de

algum torto que tivéssemos feito ou que estejamos a fazer; quem não se furta a esse exame passará

necessariamente a tomar mais cuidado consigo mesmo, de acordo, nesse particular, com Sólon, quando disse que

devemos aprender durante toda a vida, por ser de opinião que a sabedoria vem com a velhice” (PLATÃO.

Láques, 187e-188b. In: PLATÃO, 1973, v. I). 162 GUTHRIE, op. cit., p. 72.

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Cabe ressaltar que esse aspecto da paideía sofista não foi unanimidade entre seus membros. E

o caso mais relevante foi o de Protágoras, que em dado momento reconsiderou algumas de

suas posições pedagógicas e passou a defender uma educação continuada e duradoura, a qual

se propunha a acompanhar o processo evolutivo ao longo da vida do educando163

; sua opção

pedagógica, contudo, pode ser considerada um caso pontual e não representa a totalidade dos

ideais dos membros do movimento sofista.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, a abrangência nos conteúdos pedagógicos

de ambas as paideîai também diverge radicalmente. Enquanto a dos sofistas procurava a

obtenção de um conjunto de conhecimentos enciclopédicos, baseados em uma grande

diversidade de saberes, a paideía de Sócrates objetivava a obtenção de uma formação voltada

para o esclarecimento da alma humana, através da busca da unidade, ou seja, dos conceitos

universais, visando a concepção de um ser virtuoso. Assim, é possível em uma análise mais

acurada da paideía sofista entender por que seus membros adotaram essa estratégia

pedagógica, pois, conforme já abordado, a principal meta dos sofistas era formar seus

discípulos para a obtenção do sucesso na pólis. Para tanto, eles priorizavam a erudição, que no

fundo visava proporcionar uma maior flexibilidade argumentativa e uma grande diversidade

temática em seus discursos. Essa variedade de saberes favorecia sua capacidade de articulação

e transformava-os em excelentes oradores, com imenso poder de convencimento e de

persuasão. Neste sentido, Jaeger corrobora esta ideia ao afirmar o seguinte:

Os sofistas estão tão profundamente influenciados, nos problemas morais e políticos,

pelo pensamento racional do seu tempo e pelas doutrinas dos fisiólogos, que criam

uma atmosfera de educação multifacetada, a qual, na sua consciência clara, ativa

vivacidade e sensibilidade comunicativa, nem sequer nos tempos de Pisístrato foi

conhecida164

.

Contrariamente à visão mais pragmática do movimento sofista, a paideía socrática

fundamentou seu programa educacional no autoconhecimento, processo que requer um

trabalho contínuo de esclarecimento e de formação consciente do ser. Esse modelo

pedagógico provê a cada um de seus educandos a possibilidade do conhecimento de si

mesmos e o aprimoramento de sua alma, proporcionando a construção de um ser virtuoso.

Como a metodologia socrática está sedimentada em um processo dialético, composto por dois

elementos, denominados protréptico e élenkhos165

, podemos concluir que o conteúdo

163 Conforme visto no item 1.3.1 deste estudo. 164 JAEGER, 1995, p. 341. 165 Conforme visto no item 2.2.2 deste estudo.

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educacional proposto por Sócrates valorizava os aspectos morais, fundamentando as bases de

sua paideía na formação completa do educando, e permitindo uma tal abrangência nos

saberes, que os acompanharia para o resto de suas vidas. Conforme ele próprio afirmou na

Apologia:

[...] jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos

em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: “Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e

poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e

honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar

quanto mais a tua alma?” E, se algum de vós redarguir que se importa, não me irei

embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que

afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar

menos o que vale mais e mais o que vale menos166.

Outro aspecto que cabe ser ressaltado na questão da abrangência de ambas as paideîai

é o conteúdo das disciplinas a serem ministradas a seus educandos. Embora Sócrates tratasse a

educação política como um elemento fundamental para a vida do indivíduo e da comunidade,

não a encarava como um fim, pois a política era um entre outros elementos de seu programa

educacional, que, quando aplicado em sua íntegra, visava a formação completa do espírito do

homem. Por outro lado, os sofistas consideravam a educação política como um fim,

priorizando o ensino de uma diversidade de saberes, em conjunto com a oratória e a retórica,

como meio para atingir este fim.

3.1.2 Em relação ao público-alvo

O público ao qual se destinavam suas paideîai é outro ponto de divergência entre seus

programas educacionais. Os sofistas dedicavam grande parte de seus esforços a educar os

jovens que gozavam de uma situação financeira e familiar de destaque na sociedade ateniense,

já que sua principal meta era formar os futuros governantes. Jaeger ratifica essa tendência ao

afirmar o seguinte:

Já desde o começo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas

não era a educação do povo, mas a dos chefes. No fundo não era senão uma nova forma da educação dos nobres167.

166 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 29d. In: PLATÃO, 1973, v. I. 167 JAEGER, 1995, p. 339.

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Dessa forma, a paideía sofista privilegiava a formação de um pequeno grupo de escol,

composto pelos candidatos a futuros líderes na pólis ateniense. Com o objetivo de reforçar

essa ideia, transcrevo as palavras de um de seus membros, pois considero que nenhum outro

argumento traduza com maior clareza as reais intenções do movimento sofista, a saber:

[...] um professor nessas condições, Sócrates, que os levasse mais longe, não se me

afigura muito fácil de encontrar. Por isso, devemos alegrar-nos quando aparece

alguém de capacidade para fazer-nos avançar, por pouco que seja, no caminho da

virtude. Tenho-me na conta de um desses, superior aos demais homens no conhecimento daquilo que os pode deixar melhores e mais honestos, e me julgo, sem

dúvida, merecedor de receber o pagamento estipulado, se não maior ainda, conforme

os próprios alunos o declaram168.

Protágoras nesta passagem deixa muito claro que ministra seus ensinamentos somente para

quem possa pagar por seus préstimos. Sócrates também contribui para reforçar essa ideia, ao

declarar no Láques o seguinte:

sou o primeiro a confessar que nunca frequentei professor dessa matéria, muito

embora desde moço tivesse muita vontade de aprendê-la. Porém, sempre careci de

recursos para pagar honorários aos sofistas, os únicos que se apresentavam como

capazes de fazer de mim um homem de bem e de valor, não me tendo sido possível

até agora descobrir por mim mesmo essa arte169.

Portanto, os sofistas estavam interessados em atender as necessidades de um público seleto e

diferenciado, tornando o acesso a sua paideía algo bastante restrito e limitado.

Em contrapartida, a proposta da paideía socrática era formar qualquer pessoa que

estivesse disposta a submeter-se a sua metodologia de ensino170

, a qual se caracterizava

fundamentalmente por um diálogo entre Sócrates e seu interlocutor, normalmente efetuada em

locais públicos. Esse processo racional utilizava a comunicação direta entre os participantes

como uma forma de aquisição do conhecimento, o que inegavelmente foi um aspecto

marcante em seu modelo pedagógico. Outro fator de grande relevância em seu processo

educacional é a possibilidade de aplicá-lo a todos os cidadãos, desde que o interlocutor aceite

as condições preestabelecidas pelo seu método educacional. Logo, sua paideía contemplava

qualquer pessoa que concordasse de forma voluntária e consciente a trilhar o caminho do

autoconhecimento, atribuindo à paideía socrática um caráter de ensino público e

168 PLATÃO. Protágoras, 326c-d. In: PLATÃO, 1973, v. III. 169 PLATÃO. Láques, 164a. In: PLATÃO, 1973, v. I. 170 “É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos

cidadãos, porque me estais mais próximos no sangue” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29e. In: id. ibid.).

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possibilitando a seus educandos o acesso ao conhecimento das virtudes, ou seja, do bem.

Esses argumentos são confirmados por Xenofonte, como segue:

Sócrates mostrava-se abertamente amigo do povo e filantropo. De feito, cercado de

numerosos discípulos, atenienses e estrangeiros, jamais auferiu proveito algum desse

comércio, transmitindo a todos e sem reserva o que sabia171.

Por outro lado, a paideía socrática sofreu críticas relativas a sua efetiva aplicação em

algumas situações específicas, principalmente, quando seu método educacional é aplicado

para um grande número de pessoas. Segundo Hoerl, as bases que sustentam essas críticas

estão fundamentadas no fato de a paideía socrática defender a ideia de que deve haver uma

grande afinidade entre o educador e o educando, tornando o método socrático bastante

adequado quando aplicado individualmente, mas falho quando empregado para ensinar

simultaneamente diversas pessoas172

. Assim, a philía, ou amizade virtuosa173

, que é

reconhecidamente um elemento de destaque em sua paideía, acabou sendo alvo de algumas

críticas, pois foi considerada um fator de limitação em relação a sua aplicabilidade em grupos

maiores. É óbvio que os atos de compreensão e de empatia quando utilizados no processo

educativo favorecem o aprendizado e potencializam o grau de respeito mútuo, gerando um

clima de harmonia, de intimidade e de confiança recíproca.

No entanto, a partir do momento que a paideía socrática é utilizada para educar um

número maior de indivíduos, segundo os argumentos de Hoerl, ela não poderá ser aplicada,

pois não existe a menor hipótese de proceder-se conforme o modelo pedagógico proposto por

Sócrates, já que seria impossível haver um sentimento sincero de amizade virtuosa em um

grupo heterogêneo, composto por diversos indivíduos com características, origens e valores

culturais tão diferentes. Para Hoerl, sob essas condições, o modelo da paideía sofista tende a

ser mais bem-sucedido174

.

Assim, a paideía socrática oferece a possibilidade de prover a todos os indivíduos,

desde que eles estejam interessados, um ensino gratuito que os conduzirá ao processo do

171 XENOFONTE, 2009, I, 2, 8. 172 “Socratic paideia is limited and can only serve as one part of an educational program in a mass democratic

government. Its major limitation is its explicit basis – recognized by both Jaeger and Plato, but not always by all

political theorists – in the friendship that people have for one another. Because we can only friend a limited

number of people, there is an inherent audience limitation to Socratic paideia that makes it a poor fit for modern

politics” (HOERL, A. E. The Limitations of Socratic Paideia, 2007, p. 4. Disponível em:

<http://citation.allacademic.com//meta/p_mla_apa_research_citation/1/4/2/3/5/ pages142350/p142350-1.php>). 173 “A sabedoria era algo que devia ser gratuitamente partilhado entre pessoas amigas e amadas” (XENOFONTE,

op. cit., I, 6, 13). 174 HOERL, 2007, p. 15.

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autoconhecimento e do autodomínio, proporcionando a prática do saber racional e consciente,

ou seja, um conjunto de atributos que possibilitam ao ser tornar-se virtuoso, pela obtenção do

conhecimento e da noção da medida. No entanto, ela também possui algumas limitações,

principalmente nos casos em que é necessário aplicá-la a um grande número de pessoas,

atribuindo à paideía socrática um caráter pedagógico de abrangência individual, e não

coletiva.

Já a paideía sofista tinha uma característica educacional fortemente seletiva e elitista,

composta por um conjunto de técnicas pedagógicas formais que utilizava seus próprios

escritos como material didático. Mas, por outro lado, era mais adequada nas situações em que

havia a necessidade de educar um número maior de pessoas, pois não focava seu modelo

pedagógico na afinidade e na amizade, e sim em uma relação distante e objetiva, marcada pela

definição do papel de cada um dos envolvidos no processo educacional, ou seja, o do mestre,

caracterizado por ser o responsável pela transmissão dos conhecimentos, e o do discípulo,

simplesmente como receptor desses conhecimentos.

Em suma, esses aspectos de ambas as paideîai são relevantes para que possamos

compreender as diferenças entre esses dois programas educacionais; na questão da philía,

contudo, vale fazer uma análise mais cuidadosa e criteriosa para tentar entender de forma

inequívoca seu significado na Grécia do século V a.C., pois, conforme já abordado, foi devido

a diferentes interpretações de seu real significado que se atribuíram algumas limitações à

paideía socrática. Para tanto, lanço mão de um trecho da obra de Jaeger, o qual afirma que o

conceito de amizade virtuosa do período referido por Sócrates está associado a algo muito

mais amplo do que em nossa contemporaneidade podemos conceber. Assim, segundo ele, o

significado do termo philía, ou amizade virtuosa, era o seguinte:

É a forma fundamental de toda comunidade humana que não seja puramente natural,

mas sim uma comunidade espiritual e ética. É, portanto, um problema que ultrapassa

em muito o âmbito do que nas modernas sociedades, extremamente individualizadas

chamamos amizade. Para compreendermos claramente o verdadeiro alcance do

conceito grego da philía, precisamos apenas seguir o desenvolvimento posterior

deste conceito até chegarmos à teoria da amizade, sutilmente matizada, da Ética a

Nicômaco, de Aristóteles, teoria que deriva em linha reta da platônica. Essa teoria

contém uma sistemática completa de todas as formas concebíveis de comunidade

humana, desde as formas fundamentais e mais simples da vida familiar até os diversos tipos de Estado175.

Logo, sob essa ótica, o conceito de philía na paideía socrática tem uma abrangência

muito maior do que puderam supor alguns de seus críticos; mesmo assim, entretanto,

175 JAEGER, 1995, p. 719.

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considero que os argumentos de Hoerl têm algum fundamento e que a paideía concebida por

Sócrates tem vantagens inegáveis, mas também possui suas limitações.

3.1.3 Comprometimento com os educandos

O comprometimento do educador no processo de formação de seus educandos é uma

característica que pode muitas vezes determinar o sucesso ou o fracasso de um programa

educacional; no entanto, é óbvio que esse aspecto tem um peso relativo ao ser comparado com

todos os demais elementos que o compõem, mas, devido a sua influência no desempenho do

educando em relação a seu aprendizado, esta característica pode e deve ser considerada como

um item relevante no momento de analisar as diferenças entre as linhas educacionais dos

sofistas e de Sócrates.

Embora a paideía socrática represente um movimento renovador na forma de pensar a

educação dos jovens, ainda se caracterizava por envolver um comportamento relativamente

conservador, pois seguia um método educacional mais tradicional do que o proposto pelo

movimento sofista. Isto pode ser observado a partir do momento em que se defende a

manutenção dos valores relativos ao cuidado e ao respeito que os cidadãos deveriam ter com

sua comunidade176

. Vale destacar que para os gregos o modelo de virtuosidade e de cidadania

manifestava-se no homem que visava obter de forma incondicional o bem-estar da

comunidade, em detrimento de seu próprio bem.

O fato de Sócrates ser um cidadão ateniense e estar intimamente ligado aos anseios e

as expectativas de seus conterrâneos facilitou a incorporação em sua paideía do respeito às

tradições e aos costumes existentes na sociedade ateniense. Assim, é possível identificar em

sua paideía a presença de uma preocupação e de um maior comprometimento educacional

com os cidadãos atenienses177

, característica muito diferente da observada na dos sofistas.

176 Segundo Jaeger, a educação tinha como principal objetivo o seguinte: “Realizar a nova areté, encarando

como descendentes da estirpe ática todos os cidadãos livres do Estado ateniense e tornando-os membros

conscientes da sociedade estatal e obrigados a se colocarem a serviço do bem da comunidade” (id., ibid., p. 340). 177 “[...] em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um ateniense,

da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o

máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar

quanto mais a tua alma?’ E se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora deixando-o, mas o hei

de interrogar, examinar e refutar e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de

repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu

encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos

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Sua paideía priorizava o extremo cuidado no relacionamento entre o educador e o educando,

característica que deu origem ao conceito de philía, ou amizade virtuosa, que defendia uma

mudança na relação entre docente e discente, fundamentalmente baseada no respeito mútuo e

no querer bem recíproco, algo muito mais inovador e revolucionário do que aquilo que existia

nos processos educacionais vigentes na Atenas do período clássico178

. Logo, a paideía

socrática, além de proporcionar a seus educandos a obtenção do autoconhecimento e do

autodomínio, também os conduzia a um tal nível de conscientização social, que lhes

proporcionava uma enorme satisfação em servir a sua comunidade sem importar-se em abrir

mão de seus próprios interesses. Por outro lado, os sofistas eram professores itinerantes e não

possuíam nenhum vínculo com a comunidade local, nem com seus valores culturais179

. Assim,

seu comprometimento estava atrelado a sua satisfação pessoal e à de seus discípulos.

Cabe lembrar que tanto a paideía socrática quanto a sofista representavam uma grande

inovação nos processos educacionais gregos, e sua racionalidade juntamente com a

valorização do intelecto foi extremamente importante para fortalecer a nova tendência

humanista que imperava na sociedade ateniense. Seu caráter individualista, entretanto, foi

destaque em várias passagens nas obras de Jaeger e de Guthrie, pois ambos concordam que,

sob este ponto de vista, os sofistas não valorizavam nem a cultura nem as tradições

preestabelecidas, demonstrando claramente o desejo de impor seu modo de pensar, sem a

menor preocupação com a forma de obtê-lo180

. Portanto, essa característica da paideía sofista

em conjunto com as transformações políticas e sociais que reinavam na cidade de Atenas

encontraram um solo fértil para o desenvolvimento de uma educação utilitária, que acabou se

tornando uma marca no modelo pedagógico do movimento sofista.

A questão do profissionalismo é outro ponto de divergência entre essas duas paideîai.

Enquanto Sócrates propunha uma relação de amizade virtuosa sem nenhum tipo de vínculo

financeiro, os sofistas objetivavam uma relação essencialmente profissional, fundamentada

no sangue. [...]” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29d-e. In: PLATÃO, 1973, v. I). 178 XENOFONTE, 2009, I, 6. 179 “Os sofistas são muito bons fazedores de discursos em geral, mas que ‘seu hábito de andar de cidade em

cidade e de não ter nenhuma casa fixa própria’ é uma desvantagem quando se chega a assuntos de cidadania na

guerra ou na negociação” (GUTHRIE, 1995, p. 49). 180 “A sua existência fundamentava-se exclusivamente no seu significado intelectual. Não tinham cidadania fixa,

devido à sua vida constantemente andarilha. Que na Grécia tenha sido possível este modo de vida tão

independente é o mais evidente sintoma do aparecimento de um tipo de educação completamente novo,

individualista na sua raiz mais íntima, por mais que se falasse de educação para a comunidade e das virtudes dos

melhores cidadãos. Os sofistas são, com efeito, as individualidades mais representativas de uma época que na

sua totalidade tende para o individualismo. Os seus contemporâneos tinham razão, quando os consideravam os

autênticos representantes do espírito do tempo. É também sinal dos tempos viverem da educação” (JAEGER,

1995, p. 367); bem como, na seguinte afirmação: “Os sofistas eram, com efeito, individualistas, e até rivais,

competindo entre si por favor público” (GUTHRIE, op. cit., p. 49).

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em bases estritamente comerciais que visavam uma remuneração financeira em troca de seus

préstimos. Eles defendiam essa prática, pois consideravam sua atividade extremamente nobre,

já que, segundo eles, poucos homens atingiam esse nível de competência e de sabedoria. Por

outro lado, Sócrates não cobrava por sua atividade educacional, devido a diversas razões de

foro íntimo, mas um dos motivos que considero dignos de destaque e que me parecem

bastante pertinentes para o tema em questão é sua opinião sobre a postura de não cobrar por

seus ensinamentos com o objetivo de manter sua liberdade. Conforme Guthrie, Sócrates

acreditava no seguinte:

Os sofistas se privavam de sua liberdade: estavam obrigados a conversar com todos os que podiam pagar suas taxas, ao passo que ele era livre para gozar da companhia

de qualquer que escolhesse181.

Assim, seu comprometimento com a educação era de ordem moral, sedimentada na liberdade

total de todos os envolvidos em seu modelo pedagógico, ou seja, baseada no princípio

fundamental da liberdade individual, fortalecendo as relações humanas por meio da

valorização da autonomia e da autarquia. Já os sofistas tinham um comprometimento formal,

com base em uma relação profissional de cunho educativo, firmada entre eles e seus

discípulos.

3.1.4 Fundamentos essenciais de suas paideîai

Este último item pode ser analisado sob dois pontos de vista que a princípio parecem

divergentes, porém em sua essência são complementares, principalmente no que diz respeito

aos aspectos fundamentais de suas paideîai. O primeiro refere-se a uma leitura conceitual de

seus programas educacionais, ou seja, no momento em que eles aplicam suas técnicas

didáticas visam atingir os mesmos fins? Já o segundo se atém ao detalhamento de como são

aplicadas essas técnicas pedagógicas com o objetivo de identificar as diferenças entre suas

paideîai.

A primeira etapa irá abordar a questão da finalidade de ambas as paideîai, as quais

buscam fundamentalmente a formação consciente do homem, visando a obtenção da areté.

181 GUTHRIE, 1995, p. 42.

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Neste sentido surge uma polêmica, pois Sócrates considerava o ensinamento proposto pela

paideía sofista como sendo uma arte182

, mas não uma arte verdadeira, como a proposta por

sua paideía, que é baseada na epistéme ou conhecimento, e sim uma arte corrompida, baseada

na empeiria ou adulação183

.

Por outro lado, o movimento sofista não se importava com essas acusações,

principalmente porque sua preocupação estava direcionada para as coisas da vida prática,

especialmente no que eles consideravam como o cerne da virtude política, que era a

excelência do viver bem em sociedade. Conforme palavras do próprio Protágoras, sua paideía

procurava alcançar a seguinte meta: “Ensinar a arte da política e fazer dos homens bons

cidadãos”184

. E Górgias, alinhado com esse mesmo ideal, afirmava que sua grande meta

pedagógica era ensinar a arte de governar os homens por meio da persuasão185

. Isso deixa

muito claro o objetivo de sua paideía. Asssim, a proposta educacional do movimento sofista

estava efetivamente fundamentada na busca da obtenção da virtude, porém tratava-se de um

tipo muito particular de virtude, ou seja, a virtude política. Jaeger esclarece com muita

eloquência esse tema tão controverso, ao dizer o seguinte:

Esta falsa modernização do conceito grego de areté peca essencialmente por fazer

surgir aos olhos do homem atual, como arrogância ingênua e sem sentido, a

pretensão dos sofistas ou mestres da sabedoria, como os contemporâneos os

chamavam e a si próprios eles se intitulavam. Este absurdo mal-entendido desfaz-se

logo que interpretamos a palavra areté no seu sentido evidente para a época clássica,

isto é, no sentido de areté política, vista sobretudo como aptidão intelectual e

oratória, o que nas novas condições do século V era decisivo”186.

Isso significa que a paideía sofista não tinha o objetivo de ensinar o mesmo tipo de areté

proposta pela paideía socrática, ou seja, a areté política dos sofistas era apenas um dos

elementos que faziam parte de um todo da areté da paideía socrática. Por outro lado, Guthrie

alega que nem todos os membros da sofística encaravam o ensino da areté sob a perspectiva

defendida por Jaeger. Segundo ele, Protágoras entendia a areté como algo muito mais

complexo do que a visão simplista de alguns de seus companheiros do movimento sofista,

como segue:

182 Conforme visto no item 2.1.1 deste estudo. 183 No diálogo Górgias, Sócrates aponta o filósofo como o político ideal, pois somente ele possui a verdadeira

arte política (PLATÃO. Górgias, 421d-422a. In: PLATÃO, 1973, v. III). 184 PLATÃO. Protágoras, 319a. In: id., ibid. 185 PLATÃO. Górgias, 425d. In: id., ibid. 186 JAEGER, 1995, p. 232.

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As referências de Protágoras, em Platão, à “tékhne do artesão” e à “areté do

artesão” evidenciam que para ele significavam a mesma coisa. Ele mesmo considera

a instrução nas tekhnai específicas, que alguns sofistas ofereciam, como inferior a

ele, e a “arte política” ou a “virtude política”, que é sua especialidade pessoal,

aproxima-se mais da virtude moral, pois tem raízes nas qualidades éticas da justiça e

do respeito por si mesmo e pelos outros. Sem estes, considera ele, a vida numa

sociedade organizada é impossível187.

Apesar dessa visão mais abrangente da paideía sofista, particularmente acredito que

existam perspectivas diferentes entre elas, pois a paideía socrática trabalha com a ideia de

uma depuração do espírito do homem, por meio do autoconhecimento, enquanto a sofista visa

algo mais pragmático e imediato.

O segundo aspecto está associado à questão da forma pela qual são aplicadas essas

técnicas. A paideía sofista sedimentava seu modelo pedagógico em um conjunto de saberes,

essencialmente transferido para seus educandos por meio de aulas ministradas com base em

manuais concebidos por eles mesmos, os quais configuravam um tipo de educação

fundamentada na transferência de conhecimentos. Além disso, depositavam todo o seu

esforço pedagógico no sentido de seus educandos obterem uma grande quantidade de saberes,

isto é, um conhecimento enciclopédico. Portanto, eles acreditavam que a única possibilidade

de formação consciente do espírito do homem seria por meio da aplicação de técnicas de

ensino que fornecessem a seus educandos diversos ensinamentos com base nos méritos e nos

atributos pessoais do próprio educador.

De tal modo que, com base em seus preceitos pedagógicos, a paideía sofista acabou

rompendo com vários dogmas educacionais até então aceitos pela sociedade ateniense,

principalmente no que se refere à aquisição da areté, pois tradicionalmente os gregos

acreditavam que ela somente poderia ser conquistada por meio da transferência direta desses

atributos de modo natural, ou seja, de forma consanguínea, herdada dos pais188

; apesar de

Protágoras não contradizer totalmente essa crença, em seus discursos afirmava o seguinte: “O

ensino com êxito, diz ele, requer que o aluno contribua com habilidade natural e assiduidade

na prática, e acrescentou que para aprender é preciso começar desde pequeno”189

. Dessa

forma, os sofistas acreditavam que poderiam com a efetiva implantação de suas técnicas

pedagógicas e de suas habilidades pessoais tornar possível a vitória sobre as tendências

naturais dos seres, as quais impossibilitavam a qualquer indivíduo ter acesso à aquisição da

areté, neste caso, em especial, a areté política.

187 GUTHRIE, 1995, p. 237. 188 Conforme visto no item 1.2.2 deste estudo. 189 Id., ibid., p. 239.

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Por sua vez, a paideía socrática acreditava que o conhecimento já existia previamente

dentro dos seres e que a única contribuição de seu método pedagógico seria abrir as portas

para o educando atingir esses saberes. Isto significa que para Sócrates sua tarefa como

educador seria apenas a de um agente facilitador do acesso a um conhecimento preexistente

em todos os homens, independentemente de sua classe social. Assim, seu método é composto

por duas partes, a primeira das quais é denominada protréptico, ou exortação, e procura

despertar no homem o discernimento do que é realmente importante para sua vida, isto é,

decidir entre os bens materiais ou a depuração de sua alma. E a segunda, chamada élenkhos,

ou refutação, visa o crescimento ético e moral pelo desejo do educando de adquirir o

conhecimento190

. Esse processo dialético tinha como objetivo a obtenção do conhecimento de

si mesmo, desenvolvendo intimamente o desejo espontâneo de tomar ações baseadas na

racionalidade moral191

. No diálogo Cármides existe um exemplo típico desse seu método,

especialmente na passagem em que Sócrates refuta os argumentos de Cármides sobre sua

definição de temperança, e em vez de ele procurar outros argumentos com o objetivo de

chegar mais próximo da verdadeira definição, Cármides assume uma proposição de

temperança que não era sua, demonstrando uma falha não só no aspecto intelectual, como no

moral192

. Logo, é sob esses pontos relacionados às falhas comportamentais e de caráter que a

paideía socrática pretende atuar. E ao chegar ao final do processo, quando bem-sucedido,

espera-se ter depurado o espírito do educando, propiciando a evolução de sua alma, que,

consequentemente, o conduz à obtenção da areté.

Em suma, a paideía sofista aposta na eficiência e no poder da transmissão de

conhecimento de seus membros, valorizando de forma exacerbada a ação do educador.

Enquanto a paideía socrática acredita que o educador somente atua como um agente

facilitador para o educando acessar o que ele já sabe.

190 Conforme visto no item 2.2.2 deste estudo. 191 “The Socratic dialectic challenges the interlocutor not only to acquire the correct moral opinions, but to

question himself and think for himself and develop his own moral rationality” (SCHMID, W. T. Socratic

Paideia: How It Works and Why It So Often Fails, p. 5. Trabalho apresentado no 20th World Congress of

Philosophy, Boston, Mass, 10-15 ago. 1998. Disponível em: <www.bu.edu/wcp/Papers/Teac/TeacSchm.htm>). 192 PLATÃO. Cármides, 160c-161b. In: PLATÃO, 1973, v. I.

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3.2 Similaridades entre suas paideîai

Quando pensamos na paideía dos sofistas e a de Sócrates, a primeira ideia que nos

ocorre são seus pontos conflitantes, especialmente os relacionados a suas diferentes

interpretações nos fatores educacionais e nas questões éticas e morais; no entanto, ao

analisarmos de forma isenta suas paideîai é possível identificar alguns aspectos que nos levam

a crer que existe uma grande quantidade de pontos em comum em seus programas

educacionais, fornecendo de forma inequívoca elementos que identificam a existência de

vários laços que unem suas perspectivas pedagógicas.

Assim, o principal objetivo deste item será abordar as semelhanças observadas nas

suas paideîai e contextualizar esses argumentos com base nas principais ideias dos seus

membros.

3.2.1 O uso da razão

Tanto os sofistas quanto Sócrates foram pioneiros no uso da razão nos processos

educacionais e representaram um movimento renovador para a sociedade ateniense, pois

romperam com alguns valores tradicionalmente aceitos e profundamente arraigados nos

costumes do seu povo. Mas uma das características que reputo serem de grande importância, à

qual desejo me ater, é o rompimento que ambas as paideîai propunham nas questões relativas

aos aspectos míticos, que até então influenciavam diretamente as relações sociais, culturais e

educacionais da maioria das cidades gregas.

Cabe notar que para o Estado o culto aos deuses sempre foi utilizado como uma forma

de poder coercitivo, atuando como um agente inibidor das atitudes consideradas inadequadas

de seus cidadãos. Esse tipo de ação, desrespeitosa aos olhos dos deuses, denominada

impiedade foi usada diversas vezes pelos governantes em benefício de seus próprios

interesses. Portanto, a princípio houve uma reação contrária no sentido de coibir este processo

de renovação, mesmo que velada, pois eles não tinham o menor interesse no fortalecimento

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desse movimento revolucionário, já que um dos seus objetivos era desmotivar os cultos às

divindades e desmistificar algumas crenças tradicionalmente incorporadas a sua cultura193

.

Por outro lado, a onda de puro racionalismo que florescia nas cidades gregas do século

V a.C. tinha a finalidade de explicar cientificamente os fenômenos da natureza e de combater

definitivamente o antropomorfismo e o culto aos deuses. Seus principais representantes foram

os sofistas e Sócrates, que receberam essa herança dos poetas e dos filósofos pré-socráticos,

os quais já vinham defendendo este processo de desmistificação194

.

A paideía sofista e a socrática sofreram inúmeras resistências por parte de alguns

segmentos da sociedade ateniense, seja por meio das instituições representadas pelo Estado,

seja pelo conservadorismo presente em alguns de seus intelectuais ou nos simples cidadãos,

totalmente arraigados às velhas tradições e costumes. Assim, ambas as paideîai passaram por

diversas restrições e trouxeram uma nova perspectiva para os processos educacionais gregos e

contaram com uma grande dose de racionalidade em seu modelo pedagógico. Segundo Jaeger,

o papel deles no período clássico grego foi o seguinte: “É com eles que a paideía, no sentido

de uma ideia e de uma teoria consciente da educação, entra no mundo e recebe um

fundamento racional”195

.

Isso posto, considero irrefutáveis os argumentos utilizados por Guthrie e por Jaeger,

que compartilham da mesma linha de pensamento, também observados em outras obras que

abordam este mesmo tema, pois, segundo eles, o momento histórico foi extremamente

favorável para o uso da razão em todos os segmentos de sua sociedade, especialmente ao ser

utilizado como um elemento efetivo para facilitar e fortalecer os processos educacionais.

Portanto, com o advento da sofística e o deslocamento do foco dos filósofos do estudo

das coisas da natureza para os problemas do homem, o século V a.C. ganhou um grande

aliado para sua evolução intelectual, que foi uma nova forma de pensar, mais ordenada e

racional, a qual teve como fruto o surgimento da paideía sofista e da socrática.

193 GUTHRIE, 1995, p. 212-3. 194 MARROU, 1990, p. 32. 195 JAEGER, 1995, p. 364.

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3.2.2 A preocupação com a hybris e a phronesis

Neste item pretendo abordar as semelhanças observadas entre suas paideîai, mais

especificamente no ponto em que seus programas educacionais passam a determinar os

limites e as fronteiras de atuação das divindades nas vidas dos seres, ou seja, identificar

claramente quais são as prerrogativas dos deuses e quais são as dos homens no processo de

obtenção do conhecimento, e, consequentemente, atingir o bem viver.

Esse aspecto dos homens respeitarem, ou não, os desígnios divinos, em sua essência

tem um caráter mítico-religioso, e nos impele a penetrarmos mais profundamente nas

tradições culturais do povo grego, que, apesar das grandes transformações que estavam

ocorrendo no século V a.C., ainda sofriam muitas influências dos processos religiosos

vigentes nesse período, fundamentalmente baseados no culto dos deuses. Assim, os conceitos

de hybris e de phronesis exerceram um papel fundamental no rumo de suas paideîai.

Então, vamos tentar entender como por meio da observância desses dois conceitos,

muito caros para sua sociedade, foi possível aos gregos alimentar o desejo de obter algo tão

almejado quanto a areté. Para tal objetivo, inicialmente devemos compreender a mudança que

ocorreu em alguns desses conceitos ao longo desse século, e assim, conscientes dessas

transformações e de suas repercussões nos hábitos e nos costumes de seus indivíduos, tornar

possível entender sua influência nos processos educacionais, culturais e morais.

O conceito de hybris foi um dos que recebeu uma nova interpretação, apesar de estar

solidamente estabelecido na sociedade da época, com base em um significado puramente

pragmático, concentrado apenas na esfera do direito, em que era visto simplesmente como

uma oposição à dike. A hybris, sob essa nova perspectiva, ganhou todavia, uma roupagem

mais transcendental e recebeu um viés religioso, o qual passou a tratar a hybris como um

desejo incontrolável de possuir algo que pertence a outro, ou seja, a pretensão do homem de

desejar possuir alguns atributos de exclusividade dos deuses. Nesta mesma linha de

raciocínio, Jaeger afirma que a hybris representa “a pleonexia do homem em face da

divindade” e, complementa, que ela também seria um tipo de “inveja dos deuses”196

. Portanto,

com base no conceito de hybris que reinava na sociedade grega da época, ela deveria ser um

tipo de sentimento reprovado e um modo de pensar descartado, especialmente para os homens

que buscavam por suas ações e pensamentos atingir a virtude.

196 JAEGER, 1995, p. 197.

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Contrariamente ao conceito de hybris, o conceito de phronesis tinha uma característica

fundamentalmente positiva, composta por um conjunto de atributos baseados no real

conhecimento dos valores éticos e morais, sedimentados na razão; bem como no autodomínio

que conduzia o homem a um processo de compreensão de si mesmo e o levava a enxergar

seus próprios limites. Segundo o mesmo Jaeger197

, o melhor caminho para a obtenção da

phronesis é por meio da sophrosyne, também conhecida como temperança e prudência, que

significava para o pensamento deste período o seguinte: “A medida apolínea não é a

excrescência da tranquilidade e do conformismo burguês. A autolimitação individualista é um

dique para a atividade humana”. Do mesmo modo, Guthrie198

considera a sophrosyne um

elemento de fundamental importância para atingir-se a phronesis, principalmente por

recomendar o uso da ponderação e por defender em seus princípios a arte da medida.

Desse modo, podemos identificar claramente o grande peso desses dois conceitos

dentro do modelo pedagógico de ambas as paideîai; os fatores, contudo, que os levaram a

adotar esses princípios foram totalmente diferentes. Enquanto os sofistas defendiam um

agnosticismo e relativismo fundamentados na doutrina do homem como medida199

e na

questão de não se importarem com a existência, ou não, dos deuses200

, Sócrates ainda

respeitava os aspectos religiosos de sua comunidade e seguia os preceitos apolíneos do

conhecimento de si mesmo e a preocupação com os limites do homem201

.

Os sofistas valorizavam em seu modelo pedagógico as questões da vida prática e

defendiam o uso da sophrosyne, ou prudência, com o objetivo de alcançar a phronesis.

Embora eles seguissem certo padrão em seus programas educacionais, cada um deles tinha

algo que os particularizava; enquanto Protágoras focava seu ensinamento no respeito às

diversidades religiosas e culturais, Górgias visava o direito à plena defesa202

. Logo, era uma

paideía voltada para os negócios humanos, sem levar em consideração os aspectos e as

influências das divindades, ou seja, uma phronesis fundamentada unicamente na razão,

instrumentalizada pela arte da medida com base nos limites humanos, desprezando suas

características religiosas.

197 JAEGER, 1995, p. 196. 198 GUTHRIE, 1995, p. 241. 199 SOFISTAS, 2005, p. 58. 200 “Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos

empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana” (Fr. 4, obtido na obra

Sobre os deuses, de Protágoras, apud GUTHRIE, op. cit., p. 218, e SOFISTAS, op. cit., p. 82). 201 JAEGER, op. cit., p. 201. 202 Conforme visto no item 1.5 deste estudo.

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Já Sócrates seguia as tradições religiosas existentes em Atenas, sob uma perspectiva

mais moderna e contemporânea, a qual estava desvinculada do misticismo bastante arraigado

na sociedade ateniense. Dessa forma, em seu modelo pedagógico respeitava as opções

religiosas de sua comunidade, defendendo o ato de prestar culto aos deuses e acreditando nos

atributos divinos da onipresença e da onisciência. Segundo Xenofonte, Sócrates em seus

discursos ensinava o seguinte:

Tenho para mim que, assim falando, Sócrates ensinava seus discípulos a se absterem

de toda a ação ímpia, injusta e reprovável, não somente em presença dos homens

como também na soledade, visto convencê-los de que nada do que fizessem

escaparia aos deuses203.

Portanto, ele definitivamente respeitava as divindades, e a presença do conceito de hybris e de

phronesis como dois elementos ativos em sua paideía é algo inquestionável204

.

Assim, o processo do autoconhecimento e do autodomínio, exaustivamente abordado

em sua paideía, permite ao homem a obtenção do discernimento necessário para distinguir o

que é do escopo dos deuses e do escopo dos homens. Ele pretende ensinar a arte da medida205

,

que estabelece limites às ações e às pretenções humanas, que é o caminho para se obter a

phronesis. Jaeger afirma o seguinte:

A virtude filosófica da phronesis é aquela única e vasta virtude que Sócrates

investigou ao longo da vida toda. Está adstrita à parte mais divina do Homem, que

sempre está presente nele, mas cujo desenvolvimento depende da atuação correta da

alma e da sua essencial conversão para o Bem206.

Em suma, as duas paideîai visavam ensinar a arte da medida, por meio da proposta de

obter certo equilíbrio entre a hybris e a phronesis; no entanto, a paideía sofista baseava-se no

agnosticismo e no relativismo, e a socrática estava fundamentada no reconhecimento dos

limites humanos.

203 XENOFONTE, 2009, I, 5, 11. 204 “Senhores, é que, na realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que pouco valor ou nenhum

tem a sabedoria humana; evidentemente se terá servido deste nome de Sócrates para me dar como exemplo,

como se dissesse: ‘O mais sábio dentre vós, homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria é

verdadeiramente desprovida do mínimo valor’” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 20e. In: PLATÃO 1973, v. I). 205 “Por isso, pensa antes de dares rédeas a tuas paixões. Há aí pelo menos o germe do ‘cálculo hedônico’ que

Sócrates advoga no Protágoras e que obviamente desempenhou papel importante na formação de seu

pensamento. Tudo depende de fazer a decisão correta, isto é, o cálculo e a ponderação corretos dos próprios

interesses. Isso nos aproxima do intelectualismo socrático. O que se requer para uma escolha correta de prazeres

é, na frase de Sócrates, uma ‘arte da medida’” (GUTHRIE, 1995, p. 241). 206 JAEGER, 1995, p. 891.

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3.2.3 A observância às leis

O respeito que os membros dessas duas paideîai dedicavam às leis é mais um tema

que considero de extrema relevância para este estudo. Apesar de o movimento sofista ter

surgido com uma proposta revolucionária que constantemente entrava em conflito com os

valores tradicionalmente aceitos pela sociedade grega, eles eram bastante conservadores no

que se refere ao cumprimento das leis. Do mesmo modo, Sócrates também as respeitava de

forma incondicional. Até mesmo, devido a sua extrema obediência as leis, mesmo sendo

inocente das acusações que sofreu, resolveu acatar sua condenação imposta pelos juízes

atenienses. Outra prova de seu respeito às leis foi o fato de ter recusado a oportunidade que

foi oferecida por seus amigos de fugir da prisão, pois, segundo ele, com essa atitude iria ferir

seus princípios morais e desprezaria algo que respeitou por toda sua vida, decisão que resultou

em sua morte por envenenamento207

.

Embora houvesse diversas divergências entre a paideía sofista e a socrática, neste

aspecto em particular havia um sincronismo e uma harmonia no modo de pensar a educação

que seria oferecida para os futuros cidadãos de Atenas. Como o principal objetivo de seus

programas educacionais era formar cidadãos que pudessem exercer seus direitos e deveres na

pólis, somente um conjunto de normas e preceitos que procurassem preservar o mínimo de

igualdade e de justiça social poderiam propiciar a manutenção da convivência pacifica entre

indivíduos com tamanha diferença cultural, educacional, ética e moral. Esse elemento, graças

ao poder coercitivo, foi capaz de unir as pessoas em uma única comunidade, mantendo os

princípios básicos de respeito e de interesse mútuo208

.

Assim, as leis, com suas regras, premissas e conceitos, sempre acompanharam o

programa educacional de ambas as paideîai. Jaeger corrobora esta ideia quando afirma que a

educação é responsável pelo desenvolvimento sólido de uma sociedade, ou seja, a estabilidade

das leis garante uma estrutura adequada para a obtenção dos fundamentos de uma educação

de qualidade, que venha formar o espírito de seus indivíduos209

. Neste sentido, é possível

207 “Finally, both mention his refusal of the offer of his friends to arrange his escape after condemnation, the

subject of Plato’s Crito” (GUTHRIE, 1978, p. 58). 208 “Não sabes que dentre os magistrados de uma cidade, em todos os termos melhores são aqueles que mais

inspiram aos cidadãos a obediência às leis? Que o Estado onde os cidadãos são mais submissos às leis é também

o mais venturoso na paz e invencível na guerra? A concórdia é para as cidades o maior dos bens”

(XENOFONTE, 2009, IV, 4, 19). 209 “A estrutura de toda a sociedade assenta nas leis e normas escritas e não escritas que a unem e unem os seus

membros. Toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que rege uma comunidade

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entender o apoio incondicional que as paideîai dos sofistas e de Sócrates concederam às leis

em seu programa educacional.

A paideía socrática, por intermédio de Sócrates, seu principal personagem, foi

reconhecidamente marcada por ensinar a prática da virtude, bem como, sendo ele um modelo

de virtuosidade, acabou associando seu comportamento ao do homem medida210

. Logo, seu

modelo pedagógico não poderia ter outra linha de pensamento que não fosse a busca da

virtude, principalmente no que se refere à obediência às leis, pois para Sócrates o indivíduo

que procura alcançar a essência da virtude jamais deve desrespeitar as leis, sejam elas escritas

ou não. Segundo Guthrie, Sócrates demonstrou fidelidade e respeito às leis ao longo de toda

sua vida, manifesta em seus atos e pensamentos. Basta observar diversos exemplos contidos

nos diálogos socráticos, principalmente, na Apologia e no Críton211

.

Portanto, Sócrates em sua paideía procurava formar os homens com o objetivo de

adquirir a areté, processo no qual, entre outras coisas, preparava seu educando para servir sua

comunidade, ou seja, formar um homem político. E um dos atributos desse homem político é

a observância às leis.

Da mesma forma que a paideía socrática, a paideía sofista defendia o respeito as leis,

pois, com base na valorização das instituições e da solidez de suas normas, seria possível

estabelecer critérios que atendessem suas perspectivas educacionais, e o regime democrático

existente em Atenas, favorecia plenamente a implantação de programas que visassem a

formação do homem político. Sua observância às leis era tal, que defendiam em sua paideía o

total respeito a elas, e ao menos um de seus membros acreditava que o poder coercitivo do

Estado era um elemento constitutivo do processo de formação do espírito do homem212

.

Assim, a experiência de seus representantes foi muito significativa no processo de valorização

das instituições. Para fundamentar essa afirmação, cito o caso de Protágoras, que foi

humana, quer se trate da família, de uma classe ou de uma profissão, quer se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico ou um Estado. [...] A estabilidade das normas válidas corresponde a solidez dos

fundamentos da educação. Da dissolução e destruição das normas advém a debilidade, a falta de segurança e até

a impossibilidade absoluta de qualquer ação educativa” (JAEGER, 1995, p. 5). 210 “Quando os Trinta lhe davam ordens avessas às leis, não as acatava. Assim, quando lhe proibiram o palestrar

com os jovens e o encarregaram, juntamente com outros cidadãos, de conduzir um homem que intentavam

assassinar, só ele se recusou de obedecer, porque tais ordens eram ilegais. Chamado por Meleto perante os

tribunais, longe de seguir o costume dos acusados, que, malgrado o proibirem as leis, tomam da palavra para

ganhar o favor dos juízes, adulá-los e dirigir-lhes súplicas, e assim muitas vezes se fazem absolver, não quis de

tal guisa infringir as leis: posto facílimo lhe fora lograr a absolvição, preferiu morrer dentro da lei a transgredi-la

para viver” (XENOFONTE, 2009, IV, 4, 17). 211 GUTHRIE, 1978, p. 82. 212 PLATÃO. Protágoras, 325a. In: PLATÃO, 1973, v. III.

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legislador e redigiu as leis de Thurii213

e de Górgias, que foi embaixador de sua cidade em

Atenas214

.

Conforme dito anteriormente, o ensino da arte política foi a principal meta do

programa educacional dos sofistas, e, tanto quanto Sócrates, estavam preocupados com o

processo de formação consciente dos futuros cidadãos para atender as necessidades da

comunidade e do Estado; no entanto, diferentemente do que ocorria com a paideía socrática,

eles desejavam alcançar objetivos mais imediatos e focavam as questões da vida prática,

como, por exemplo, o sucesso na pólis. Para tal, eles necessitavam fundamentar suas bases

educacionais nas normas escritas e não escritas da localidade em que iriam ministrar seus

ensinamentos, já que eram professores itinerantes. E o regime democrático encaixava-se

perfeitamente em suas pretensões, pois a democracia, graças a sua proposta de liberdade e de

igualdade, permitia a qualquer cidadão postular um cargo público na pólis.

Portanto, o fortalecimento e a manutenção do Estado democrático era algo de seu

máximo interesse, bem como um terreno fértil para o movimento sofista plantar a semente de

uma formação utilitária e pragmática215

. Segundo Protágoras, são as leis, em conjunto com a

justiça, que trazem ordem às nossas cidades e fortalecem os laços de amizade e de coesão

entre os indivíduos de uma determinada comunidade216

. Conforme suas próprias palavras: “O

Estado estabelece as leis, que são invenção dos bons legisladores de tempos antigos, e

compele os cidadãos a governar e serem governados em conformidade com elas”217

. Logo,

para eles as leis promovem a criação de uma sociedade organizada e justa, pois por meio delas

é possível corrigir os desvios de caráter de seus cidadãos.

Consequentemente, ambas as paideîai tinham um grande respeito pelas leis, as quais

utilizavam em seus modelos pedagógicos conceitos que valorizavam e destacavam a

importância da manutenção e da obediência às normas e preceitos estabelecidos pelo

Estado218

. Os sofistas empregavam em seus programas educacionais um método mais

213 BRÉHIER, É. História da filosofia, v. 1, t. 1. Tradução de E. Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977, p. 128. 214 GUTHRIE, 1995, p. 22. 215 “No séc. V, a democracia, como instituição política estabelecida e como ideal, atingiu seu clímax em Atenas e

algumas outras cidades gregas. Ela constituía parte de um movimento geral rumo à igualdade, e a necessidade de

defender a democracia era estímulo a ulteriores argumentos em seu favor” (id., ibid., p. 138). 216 “É a justiça que acarreta ordem em nossas cidades e cria laços de amizade e união” (PLATÃO. Protágoras,

322c. In: PLATÃO, 1973, v. III.). 217 Id., ibid., 326d. 218 “O Estado pode ser persuadido de que errou e a emendar suas leis, pelo que o conteúdo da ação justa neste

Estado será alterado. Mas a observância daquelas leis defeituosas, até serem alteradas por processos

constitucionais adequados, era moralmente correta como alternativa ao caos que seguiria se todo cidadão se

sentisse livre para desconsiderá-las” (GUTHRIE, 1995, p. 137).

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dogmático para ensinar seus discípulos o quanto é importante o respeito às leis, enquanto

Sócrates acreditava que a obediência e o respeito as leis deveriam fazer parte de um processo

natural de conscientização de seus educandos.

3.2.4 Sobre os ideais humanistas

A tendência humanista que surgiu no período clássico grego foi fruto de um conjunto

de circunstâncias históricas e sociais. Até mesmo, se forem analisadas de uma forma mais

rigorosa, levam-nos a crer que não passaram de um processo evolutivo e natural de seu povo e

de suas cidades. Portanto, aspectos ligados à religião, como o rompimento do culto às

divindades, e fatores sociais, como a diversidade cultural, fruto do cosmopolitismo das suas

principais cidades, podem ser considerados os maiores agentes motivadores dessas

transformações.

De qualquer modo, esses fatores propiciaram o amadurecimento e o despertar de seu

povo para um progresso intelectual que conduziu seus indivíduos ao uso da razão, provocando

uma verdadeira cisão com os valores culturais e religiosos tão profundamente entranhados em

sua sociedade. Este processo renovador atingiu todos os segmentos da sociedade grega, e a

educação não foi uma exceção à regra, pois houve uma reformulação no modo e no foco dos

seus programas educacionais. Segundo Jaeger, as paideîai passaram a preocupar-se com a

formação dos adultos e visavam a atingir a educação consciente do homem, como segue:

“Esta educação ética e política é um traço fundamental da essência da verdadeira paideía. Nos

tempos clássicos é essencial a ligação entre a alta educação e a ideia do Estado e da

sociedade”219

.

Logo, a crise nos valores educativos que atingiu a sociedade grega não foi fruto do

acaso, e sim parte de um processo que teve seu início na época dos poetas e chegou a seu

ápice no período clássico. Essa evolução histórica teve como consequência um deslocamento

dos interesses de seus intelectuais para a existência humana, e essas mudanças, por meio de

um processo plenamente amadurecido, repercutiram em todos os ramos de atividade, em

especial na educação, o que propiciou a concepção de uma nova forma consciente de educar.

219 JAEGER, 1995, p. 348.

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Esse ideal de formação humana foi um marco nos processos educacionais gregos, e

tanto a paideía sofista quanto a socrática foram influenciadas por essa tendência humanista de

considerar a educação como algo universal, deslocando-a de um simples saber técnico para

tratá-la de um modo mais abrangente e global, isto é, como cultura220

. Assim, devido às

circunstâncias sociais e políticas, os sofistas e Sócrates, como homens de seu tempo foram os

principais responsáveis por transformar e renovar os métodos educativos vigentes nessa

época, pois passaram a encarar sua atividade formadora como um processo consciente de

educação do espírito do homem221

.

Para cumprir tal objetivo, a paideía socrática, ainda influenciada pela religião222

,

sedimentou suas bases educacionais na existência humana, isto é, dirigiu todo o seu esforço

educativo para o interior do ser, priorizando o conhecimento de si mesmo. Deste modo, o

modelo pedagógico socrático visava atingir a formação consciente do espírito, utilizando para

tal o caminho do extremo cuidado com a alma humana223

.

Segundo Sócrates, é na alma que encontramos o aspecto mais íntimo do ser e este é o

local em que reside nossa realidade interior, manifesta em palavras e ações e que tem a

possibilidade de conhecer e distinguir o bem do mal224

. Logo, a alma é a sede de nossa

consciência e é a ela que Sócrates dedica todo o seu empenho educativo.

Outro aspecto desse humanismo dentro da paideía socrática é que, além de concentrar

suas preocupações no próprio ser, também buscava a obtenção de uma cultura geral baseada

na virtude pessoal e na virtude política; isto, contudo, só foi possível, ao implementar em seu

modelo pedagógico o uso da razão, simultaneamente com o conceito de philía, o qual tratava

220 “A posição central que Protágoras atribui à educação do Homem caracteriza o propósito espiritual da sua

educação como ‘humanismo’, no sentido mais explícito. Este consiste na ordenação da educação humana por

sobre todo o reino da técnica, no sentido moderno da palavra, isto é, da civilização. Esta separação clara e

fundamental entre o poder e o saber técnico e a cultura propriamente dita converte-se no fundamento do

humanismo” (JAEGER, 1995, p. 350). 221 “Socrates says that education does not mean handing over knowledge ready made, nor conferring on the mind

a capacity that it did not have before, as sight might be given to a blind eye. The eye of the mind is not blind, but

in most people it is looking the wrong way. To educate is to convert or turn it round so that it looks in the right

direction” (GUTHRIE, 1995, p. 104). 222 A influência religiosa na paideía socrática estava fundamentada na distinção do que pertencia ao escopo dos

deuses e ao que pertencia ao escopo dos homens. Portanto Xenofonte em sua obra nos dá uma luz sob essa

questão com a seguinte máxima socrática: “Há mister ajudar-se da adivinhação, dizia, para bem gerir as casas e

os Estados. A arquitetura, a metalurgia, a agricultura, a política e a teoria das ciências que tais, o cálculo, a

economia, e todos os conhecimentos congêneres estão, opinava, ao alcance da inteligência humana, porém,

agregava, o que de mais eminente encerram estas ciências, encofram-no os deuses para si, sequer

entremostrando-o aos olhos dos homens.” E conclui dizendo: “aprendamos o que nos conferiram os deuses a

faculdade de aprender, dizia, e deles procuremos saber o que nos é velado. Porque eles o revelam aos que

distinguem com seus favores” (XENOFONTE, 2009, I, 1, 2). 223 Conforme visto no item 2.3. 224 “Tampouco vês tua alma, senhora de teu corpo: de sorte que poderias dizer nada fazeres com inteligência,

mas tudo fazeres ao acaso” (id., ibid., I, 4, 3).

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seus educandos de um modo diferenciado, ou seja, de uma forma denominada amizade

virtuosa, em que todos os envolvidos no processo educativo eram considerados como iguais.

Dessa maneira, por esse método Sócrates aplicava os preceitos do autoconhecimento, da

autoconsciência e do autodomínio, fatores que permitem ao homem atingir um conjunto de

virtudes, que o conduzem a exercer com sabedoria as atividades do seu dia a dia e as

atividades políticas, caso lhe sejam atribuídas.

Já a paideía sofista, totalmente distante das influências religiosas, aplicava em seu

modelo pedagógico, de forma integral, o que os comentadores denominam um processo de

educação consciente225

, ou seja, trouxe para si a responsabilidade de educar e de formar os

indivíduos, rompendo definitivamente com os fatores limitantes dos processos educacionais

existentes neste período226

. Assim, desvinculavam as questões religiosas, hereditárias e sociais

de seu modelo pedagógico, tornando o homem o centro de suas preocupações educacionais.

Essa paideía fundamentada em princípios laicos e humanistas facilitou a inclusão de

conceitos abstratos em seu modelo pedagógico, característica típica do racionalismo. Dessa

forma, os sofistas deixam para trás os métodos aplicados pela educação aristocrática e

propõem uma educação completa, abarcando desde a infância até a vida adulta. Essa proposta

educacional inicia-se na família e termina no Estado, por meio do poder coercitivo das leis.

Logo, a paideía sofista, baseada em seu humanismo exacerbado227

, prioriza formar o homem

político mediante o uso da razão, tornando-o um ser consciente e preparando-o para exercer

um papel importante na sociedade, isto é, tem o objetivo de obter a formação consciente do

espírito, atingindo sua grande meta, que era formar o homem para alcançar a areté política.

Para tal, os sofistas conceberam um programa educacional composto por um conjunto

de disciplinas formais que atuavam como forças formativas da alma. Sobre esse tema, Jaeger

afirma:

225 “A velha educação helénica, anterior aos sofistas, ignora a distinção entre religião e cultura. Está profundamente enraizada no religioso. A cisão tem lugar no tempo dos sofistas, que é ao mesmo tempo a época

da criação da idéia consciente da educação.” (JAEGER, 1995, p. 349).

“É no mesmo período que o impulso total em direção ao abstrato começa a ser reconhecido como tal. Os

atenienses tornam-se conscientes de si próprios historicamente; reconhecem que algo novo se introduziu em sua

linguagem e em sua experiência e começam a chamá-lo de "filosofia". Até mesmo os escassos vestígios que

subsistiram dos escritos sofísticos revelam imediatamente o tamanho do seu esforço para atingir um novo nível

de discurso e um virtuosismo no vocabulário que visam a classificar tanto os processos psíquicos (por exemplo,

emoção, razão, opinião etc.) quanto a motivação humana (por exemplo, esperança, medo) assim como o

princípio ético (por exemplo, utilidade ou justiça).” (HAVELOCK, 1996, p. 212). 226 Conforme visto no item 1.2.2 deste estudo. 227 “que a humanidade, o ‘ser do Homem’ se encontrava essencialmente vinculado às características do Homem

como ser político” (JAEGER, op. cit., P. 15).

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A nova técnica é evidentemente a expressão metódica do princípio de formação

espiritual que se desprende da forma da linguagem, do discurso e do pensamento.

Esta ação pedagógica é uma das grandes descobertas do espírito humano. É nestes

três domínios da sua atividade que ele, pela primeira vez, adquire consciência das

leis inatas da sua própria estrutura228.

Portanto, o humanismo proposto pela paideía sofista construiu um programa educacional

voltado para formar o espírito do homem, composto por técnicas pedagógicas que visavam

atingir a arte política, por meio do uso do lógos, ou seja, o processo de comunicação oratória e

racional utilizada como meio de persuasão. E, neste sentido, deixou-nos um legado

indiscutível.

O capítulo apresentou os pontos de divergência e de semelhança entre a paideía sofista

e a socrática. E, até mesmo, conforme nossa proposta inicial, foram abordados os aspectos

considerados mais relevantes em relação às diferenças entre suas paideîai; bem como nos

itens que destacaram suas semelhanças foi possível observar que algumas delas estão muito

mais associadas ao momento histórico que ambos compartilharam, do que uma semelhança

efetiva nos seus ideais pedagógicos.

228 JAEGER, 1995, p. 363.

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CONCLUSÃO

O estudo apresentou as principais características pedagógicas dos representantes mais

significativos de cada uma dessas paideîai, bem como analisou as diferenças e semelhanças

entre as perspectivas educacionais da paideía sofista e da socrática. Agora nos cabe fazer uma

reflexão sobre o que foi abordado e avaliar se as metas propostas foram atingidas de forma

satisfatória e se forneceram elementos suficientes para esclarecer a enorme contribuição que a

paideía dos sofistas e a de Sócrates trouxeram para os processos educacionais do mundo

ocidental.

Essa nova forma de educar, denominada Paideia, provocou grandes impactos na

sociedade da época e influenciou de forma significativa seus programas educacionais. Nesse

sentido, a descrição dos principais conceitos da paideía sofista e da socrática feitas ao longo

do estudo foram fundamentais para avaliar a importância desse movimento educativo nos

processos de formação dos indivíduos e destacar sua participação efetiva na concepção de um

modelo pedagógico mais racional e humanista, que desempenhou um papel relevante nos

rumos educacionais das futuras gerações. Quanto a essa característica, Guthrie faz a seguinte

afirmação: “nenhum movimento intelectual pode-se comparar com ele na permanência de

seus resultados, e que as questões propostas pelos sofistas nunca se permitiram repousar na

história do pensamento ocidental até os nossos dias”229

; enquanto Jaeger diz o seguinte:

O Estado do século V é assim o ponto de partida histórico necessário do grande

movimento educativo que imprime o caráter a este século e ao seguinte, e no qual

tem origem a ideia ocidental da cultura. Como os gregos a viram, é integralmente político-pedagógica

230.

Dessa forma, tanto a paideía sofista quanto a socrática marcaram profundamente os modelos

pedagógicos da Antiguidade e foram uma semente lançada ao solo de um movimento

renovador, que germinou e influenciou efetivamente os processos educacionais

contemporâneos.

Outro aspecto observado ao longo do estudo foi a divergência na forma de interpretar

a essência da virtude. Neste sentido, as passagens abordadas no diálogo Protágoras e sua

subsequente evolução apontaram para algumas diferenças entre essas duas paideîai,

principalmente no que diz respeito a seu conceito de areté. Segundo Sócrates, o grande

229 GUTHRIE, K. 1995, p. 12. 230 JAEGER, W. 1995, p. 30.

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objetivo da paideía sofista era a aquisição da areté política, algo que em sua concepção não

passava de uma simples tékhne ou arte. Por sua vez, Protágoras defendia sua paideía ao

afirmar que ela buscava alcançar algo muito maior do que a arte política, pois seu modelo

pedagógico fundamentava-se em um conjunto de saberes que conduziam o educando à

obtenção do que ele considerava como a excelência do viver bem em sociedade, ou seja, a

areté política. Logo, com base nas passagens que tratam esse tema, foi possível concluir que

as paideîai dos sofistas e de Sócrates concebiam o conceito de virtude sob perspectivas muito

diferentes.

Esse fato explica a pretensão de os sofistas ensinarem a areté, mais especificamente, a

areté política, e demonstra que eles a encaravam sob um ponto de vista mais pragmático, ou

seja, como um conjunto de conhecimentos que visava prover seus educandos do poder da

oratória e da persuasão, e, consequentemente, o sucesso na pólis. Já Sócrates adotou um

modelo pedagógico fundamentado no aperfeiçoamento da alma humana, obtido pelo processo

do autoconhecimento e do autodomínio, não restrito apenas às questões políticas, mas sim a

todos os âmbitos da vida humana, mesmo porque ele não concebeu sua paideía para atingir

apenas um aspecto da areté, e sim o seu todo. Outro ponto de divergência entre a paideía

sofista e a socrática foi a possibilidade de ensinar a virtude. Enquanto Sócrates acreditava que

a única função do educador é servir como um agente facilitador para o educando descobrir o

que ele já possui em sua alma, os sofistas intitulavam-se “mestres da sabedoria” e diziam ser

capazes de ensinar qualquer coisa a qualquer pessoa.

Essas particularidades de seus programas educacionais trouxeram à tona uma das

questões mais importantes do estudo, ou seja, se existe uma paideía mais adequada para

ensinar a virtude. Esta problemática acabou apresentando um resultado bastante

surpreendente, pois, se ambas as paideîai tratassem a areté sob o mesmo ponto de vista

conceitual, até seria possível determinar qual delas é a mais adequada para cumprir tal

objetivo; no entanto, conforme observado ao longo de todo o estudo, a areté que os sofistas

buscavam alcançar por meio de sua paideía era diferente da que Sócrates visava atingir por

meio de seus métodos pedagógicos. Assim, dadas as particularidades e especificidades de

seus objetivos educacionais, tanto a paideía sofista quanto a socrática foram eficientes no

sentido de alcançar o ensino do que cada uma delas considerava como sendo a virtude.

Algo que também pôde ser esclarecido foi a possibilidade de haver alguma

semelhança entre suas paideîai. Com base no exposto durante o estudo foi possível identificar

que elas estavam muito mais associadas às tendências educacionais que elas compartilharam

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no século V a.C. do que por uma real afinidade em seus ideais pedagógicos. Desse modo,

como Sócrates e os sofistas foram contemporâneos, eles sofreram as mesmas influências das

forças renovadoras existentes na época, propiciando alguns pontos em comum em suas

paideîai; cabe, contudo, destacar que cada uma delas foi extremamente fiel a seus princípios

pedagógicos.

Assim sendo, o estudo abordou as características pedagógicas e as perspectivas

educacionais da paideía sofista e da socrática, além de ter analisado suas principais diferenças

e semelhanças. E, com base no conjunto das suas ações, é inquestionável a contribuição que

elas deixaram para a civilização europeia ocidental, e, mais do que isso, os seus representantes

foram os precursores de um tipo de educação voltada para a formação consciente do espírito

do homem, isto é, os responsáveis pelas mudanças que influenciaram os métodos pedagógicos

até nossos dias.

Outra contribuição de extrema relevância que essas paideîai deixaram como legado

para as futuras gerações foi a valorização da convivência social e a tolerância entre os

indivíduos. Isto pode ser observado na paideía sofista, pelos ideais protagorianos do respeito

às diferenças religiosas e culturais, e na gorgiana, no direito de plena defesa e no respeito ao

estado de direito. Enquanto na socrática, após passar pelo processo do autoconhecimento e do

autodomínio, o indivíduo obterá de forma consciente sua liberdade interior e sua autonomia

moral, ou seja, um ser que não admite deixar-se dominar por seus apetites nem por suas

paixões. Logo, a educação proposta por ambas paideîai, por meio do esclarecimento, permite

que a pessoa, antes de julgar a ação do outro, pondere e passe a aceitar as diferenças,

especialmente por compreender que cada um de nós tem seus próprios juízos de valor. Isso

ficou claro quando Górgias defendeu o ideal de conceder a todos o direito de plena defesa,

Protágoras ao apoiar o respeito à diversidade cultural, e Sócrates na busca incansável da

liberdade plena do ser, por meio da autonomia e da autarquia.

Desse modo, podemos concluir que tanto a paideía sofista quanto a socrática

apresentam diversas perspectivas originais e importantes, e caso fizéssemos um exercício de

abstração e concebêssemos uma paideía socrática com características gorgianas, teríamos um

programa educacional com todas as qualidades encontradas na paideía socrática,

incrementada pelos aspectos marcantes da gorgiana, em especial, na defesa incondicional dos

direitos individuais, ou seja, poderíamos ter um Sócrates mais engajado em sua defesa, agindo

perante o júri de uma maneira muito mais efetiva e persuasiva, com base em seus direitos e na

convicção de sua inocência, e, quem sabe, não aceitasse tão passivamente sua condenação, já

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que estava sendo acusado de forma indevida. De outro modo, se pensarmos na hipótese de

uma paideía sofista, mais especificamente, a gorgiana, com traços da socrática, teríamos uma

retórica menos focada no uso da persuasão como um instrumento de convencimento dos

indivíduos e mais preocupada com o valor de verdade de seus argumentos, passando a

respeitar os aspectos morais e individuais das pessoas, o que aproximaria a retórica sofista de

um tipo de retórica que seria defendida futuramente por Aristóteles, ou seja, a retórica

filosófica.

Portanto, a paideía sofista, com objetivos mais pragmáticos e fundamentada na

aceitação da multiplicidade, isto é, no respeito a diversidade, e a paideía socrática, baseada

em uma formação mais abrangente, mas limitada em alguns aspectos pelo caráter individual

do seu aprendizado e pela busca incansável da unidade, inegavelmente contribuíram para a

formação dos processos educativos existentes na atualidade; bem como, auxiliaram na

construção de diversas tendências educacionais, as quais serviram como modelo para o

desenvolvimento de novas técnicas pedagógicas. O método sofista é útil para um tipo de

formação mais célere, enquanto o método socrático para uma formação mais perene; no

entanto, o que à primeira vista parece constituir uma desvantagem do método sofista, em

algumas situações pode ser um ponto favorável, pois em um processo de formação mais

imediata, ou mesmo de reciclagem de conhecimentos, ele pode ser bastante eficiente. Em

suma, não existe nem a melhor nem a pior paideía, mas sim, a mais adequada para atingir um

determinado objetivo educacional.

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