silvia orthof

Upload: niseamaral132264

Post on 17-Jul-2015

668 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS (MESTRADO)

FLOR DE MARIA SILVA DUARTE

O TEATRO INFANTIL DE SYLVIA ORTHOF Z VAGO DA RODA FINA E SUA ME LEOPOLDINA (1975) A GEMA DO OVO DA EMA (1979)

MARING PARAN 2007

FLOR DE MARIA SILVA DUARTE

O TEATRO INFANTIL DE SYLVIA ORTHOF Z VAGO DA RODA FINA E SUA ME LEOPOLDINA (1975) A GEMA DO OVO DA EMA (1979)

Dissertao apresentada Universidade Estadual de Maring, com requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Letras, rea de concentrao: Estudos Literrios.

Orientadora: Prof. Dr. Alice urea Penteado Martha Co-orientadora: Prof. Dr. Marta Morais da Costa

MARING PARAN 2007

2

Para Yoya, minha irm,

que compartilhou comigo as alegrias das primeiras leituras.

3

AGRADECIMENTOS

Anna Sophia, minha filha, pela felicidade maior e pelo afeto incondicional.

urea Duarte, minha me, pela formao, pelo exemplo e pela f.

Alice urea Penteado Martha, pela sabedoria, apoio e amizade.

Marta Morais da Costa, pela segurana e bom humor.

Aos professores do Mestrado em Letras da UEM, pelo conhecimento e afeto.

Aos membros da banca Examinadora, Rosa Maria Graciotto Silva e Renata Junqueira de Souza, pelas valiosas sugestes para este trabalho.

Aos colegas da turma do Mestrado 2004, pelo companheirismo e incentivo.

Andria, pela dedicao ao Mestrado em Letras e pela compreenso.

Ao Heine, pelo amor. 4

RESUMO

O TEATRO INFANTIL DE SYLVIA ORTHOF Z VAGO DA RODA FINA E SUA ME LEOPOLDINA (1975) A GEMA DO OVO DA EMA (1979)

Este trabalho se prope a fazer um estudo sobre a literatura infantil brasileira, mediante a leitura de textos literrios da dramaturgia infantil de Sylvia Orthof, autora reconhecida no meio literrio acadmico, mas pouco pesquisada em sua produo dramtica. No estudo empreendido, propomos uma reflexo sobre a leitura do texto dramtico como elemento de formao do leitor, a partir da anlise de dois textos de Sylvia Orthof: Z Vago da Roda Fina e Sua Me Leopoldina (1975) e A Gema do Ovo da Ema (1979). As razes da opo pelo texto dramtico esto ligadas nossa vivncia pessoal como atriz profissional no Rio de Janeiro, onde trabalhamos sob a direo da autora. Este trabalho justifica-se, pois embora o cenrio atual da literatura infantil tenha um elenco formidvel de autores e obras, em alguns meios ainda persiste a concepo de que esta literatura seja um gnero literrio menor. Sylvia Orthof um dos nomes mais respeitados da literatura brasileira e suas obras contriburam, de forma decisiva, para a credibilidade na qualidade dos textos literrios destinados criana. A autora tambm um dos nomes significativos do teatro infantil brasileiro, embora hoje este seu lado teatral seja menos conhecido. O presente estudo, de cunho bibliogrfico, fundamenta-se na Esttica da Recepo de Hans Robert Jauss e na Teoria do Efeito de Wolfgang Iser, teorias que elevam o leitor condio de co-autor do texto. Aps a leitura dos textos constitutivos de nosso corpus, consideramos como os mesmos propiciam a participao do leitor na produo de significados e refletimos sobre a utilizao do texto dramtico na escola como elemento de formao do leitor.

Palavras-chave: Orthof; leitura; teatro.

5

SUMRIO

1 CONSIDERAES INICIAIS .......................................................... 07

2 LITERATURA, LEITURA E LEITOR ............................................... 16 2.1 NATUREZA E FUNO DA LITERATURA .................................. 16 2.2 LEITURA E LEITOR ...................................................................... 22 2.3 TEORIAS RECEPCIONAIS ........................................................... 28 2.3.1 ESTTICA DA RECEPO ....................................................... 28 2.3.2 A TEORIA DO EFEITO ............................................................... 34

3 A LITERATURA INFANTIL .............................................................. 41 3.1 A GNESE BURGUESA .............................................................. 41 3.2 PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA ............ 44 3.3 O GNERO DRAMTICO ............................................................ 47 3.3.1 O TEATRO INFANTIL ................................................................ 51

4 SYLVIA ORTHOF E O TEATRO PARA CRIANAS ....................... 57 4.1 O TEATRO DE SYLVIA ORTHOF ................................................ 57 4.2 Z VAGO DA RODA FINA E SUA ME LEOPOLDINA ............. 60 4.3 A GEMA DO OVO DA EMA .......................................................... 73

CONSIDERAES FINAIS .................................................................. 83

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................... 87

ANEXOS ................................................................................................ 91

6

1 CONSIDERAES INICIAIS

Entendendo que a leitura do texto literrio seja fundamental para nossa leitura e conseqente compreenso do mundo, propomo-nos, neste trabalho, a realizar uma reflexo voltada para a formao do leitor, notadamente, a partir das consideraes de Antonio Candido:Quer percebamos claramente ou no, o carter de coisa organizada da obra literria torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa prpria mente e sentimentos; e em conseqncia, mais capazes de organizar a viso que temos do mundo. (CANDIDO, 1995, p. 245)1

A iniciao leitura se d, na grande maioria dos casos, durante a infncia, mais precisamente, na escola aps a alfabetizao; por isso, a literatura infantil vem sendo tradicionalmente associada escola. Como conseqncia dessa associao, este gnero vem sofrendo um forte preconceito, sendo, inclusive, confundida com cultura de massas. O cenrio brasileiro atual da literatura infantil tem um elenco formidvel de autores e obras, entre eles o nome consagrado de Sylvia Orthof (1932-1997), que, durante alguns anos, dedicou sua arte ao teatro para crianas, escrevendo, dirigindo e produzindo espetculos. No presente trabalho, pretendemos fazer um estudo sobre a literatura infantil e juvenil, atravs da leitura de textos da dramaturgia de Sylvia Orthof. Esta no uma tarefa simples. Esta autora, to conhecida por sua produo literria dirigida infncia, , no momento atual, menos conhecida por sua obra dramtica. Como objetivo geral, propomos uma reflexo sobre a leitura do texto dramtico como elemento mediador para a formao do leitor, a partir da leitura de dois textos de Sylvia Orthof: Z Vago da Roda Fina e Sua Me Leopoldina (1975) e A Gema do Ovo da Ema (1979), sob a tica da Esttica da Recepo e da Teoria do Efeito. Pretendemos verificar de que modo se d a mediao entre os1

1. edio: 1989.

7

textos e o leitor, as funes dos espaos vazios, como se configuram os elementos estticos e como estes textos atuam na formao do leitor crtico. No pretendemos tomar o texto teatral com vistas encenao, mas trat-lo enquanto texto escrito, enquanto gnero literrio, observando suas caractersticas especficas. As razes da opo pelo texto dramtico esto ligadas nossa vivncia pessoal como atriz profissional no Rio de Janeiro durante doze anos. O permanente contato com o texto de teatro e o estudo de suas possibilidades de interpretao e de montagem levaram ao desejo de um estudo mais aprofundado sobre a questo da leitura do texto dramtico como elemento de formao do leitor. Dentre as experincias profissionais mais significativas de nosso trabalho como atriz, esto as participaes em duas montagens cnicas de textos de Sylvia Orthof, dirigidas pela autora. Durante dois anos (1980-1981), fomos contratada da Casa de Ensaios empresa de produo teatral de propriedade de Sylvia Orthof e participamos como atriz e coregrafa das montagens das peas Z Vago da Roda Fina e Sua Me Leopoldina e A Gema do Ovo da Ema. A convivncia diria com a autora durante esses dois anos foi altamente enriquecedora. Alm de grande escritora, era tambm uma encenadora fabulosa, com raro poder de criatividade e coerncia. Suas montagens eram ousadas, construdas passo a passo, sem pressa e sem solues fceis ou convencionais. No era um teatro-show, mas um teatro infantil voltado para a reflexo, a partir de situaes inesperadas e questionamentos sobre situaes e atitudes. Por outro lado, um texto dramtico, antes de ser encenado, literatura e pode e deve ser lido. Por esta razo, no presente trabalho, pretendemos abordar a leitura do texto dramtico como gnero literrio e no como possibilidade de encenao. Podemos perceber que raramente o texto dramtico visto como leitura de lazer ou leitura escolar. Entretanto, o teatro enquanto atividade escolar est presente em quase todas as escolas, em quase todas as turmas. Professores e alunos preparam e apresentam montagens teatrais, mas, na maioria dos casos, a pea a adaptao para o palco de textos narrativos. Por este motivo,

8

leitores escolarizados (alunos e professores) muitas vezes desconhecem as possibilidades do gnero dramtico. Em vista disso, nossa inteno colaborar no sentido de que a produo dramtica de Sylvia Orthof merea lugar de destaque ao lado de sua reconhecida e festejada produo literria narrativa. Entendemos que a leitura literria seja de suma importncia para todos e, sobremaneira, para as crianas e os jovens, uma vez que, a partir do contato com os textos, podem fazer a sua leitura pessoal do mundo. Neste sentido, fizemos a opo por duas perspectivas tericas que privilegiam o leitor: a Esttica da Recepo, que confere ao leitor o status de co-autor do texto, e a Teoria do Efeito, que, partindo de uma abordagem diversa, tambm v o leitor como o protagonista do ato da leitura, visto que ele quem preenche os espaos vazios presentes na estrutura do texto. A escolha do corpus se deve, em primeiro lugar, sua visvel qualidade literria. Z Vago da Roda Fina e Sua Me Leopoldina (1975) expe, com metforas e versos, algumas verdades autoritrias impostas pelos adultos s crianas. Sylvia Orthof debocha de instituies consagradas e verdades estabelecidas, com muita alegria e ironia. O livro, em sua forma dramtica, foi publicado pela Editora Nova Fronteira em 1997. A segunda escolha, A Gema do Ovo da Ema (1979), destina-se ao pblico infanto-juvenil. A obra fala dos costumes brasileiros, da situao da mulher, da relao famlia e casamento, de autoritarismo e poder, e utiliza o folclore para provocar a imaginao dos jovens leitores/espectadores. O texto, em sua forma dramtica, no foi publicado, mas pode ser encontrado no acervo da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais). A ausncia de publicaes deste texto foi decisiva em nossa escolha, pois o presente trabalho pode dar visibilidade obra. J em sua forma narrativa, h uma edio de 1993 da Editora FTD. No que se refere metodologia, o presente estudo, de natureza bibliogrfica, encontra-se embasado em textos de tericos da literatura, particularmente nas teorias supracitadas: Esttica da Recepo e Teoria do Efeito. Desta forma, dispomo-nos a realizar uma leitura dos textos escolhidos com o

9

objetivo de provocar uma reflexo sobre os elementos estticos e os lugares vazios utilizados por Sylvia Orthof, assim como perceber de que forma estes mesmos elementos estticos e lugares vazios esto presentes no texto dramtico. Neste sentido, nosso intuito consiste em estudar como a leitura de textos teatrais e, em particular, Z Vago da Roda Fina e Sua Me Leopoldina e A Gema do Ovo da Ema podem contribuir para a formao do leitor. Em relao ao estado da questo, encontramos, aps precrio

levantamento da produo acadmica de textos mais conhecidos, as seguintes dissertaes de mestrado sobre a produo literria de Sylvia Orthof:

1) Maria Heloisa Melo de Moraes. As formas do humor em Sylvia Orthof. Dissertao de Mestrado. Universidade Federal de Alagoas Letras e Lingstica 1993. O trabalho parte das implicaes ideolgicas pressentidas na relao escola e literatura infantil e humor, a partir da obra humorstica de Sylvia Orthof. A autora relata como aspectos histrico-sociais da evoluo da escola como instituio formal mostram uma relao de antagonismo entre ela e o riso. Antagonismo este explicado por conceitos universalizados de seriedade e pelo carter de formalismo, incorporados pela escola. Moraes faz uma anlise do verdadeiro sentido do riso e do humor, sob diferentes pontos de vista epistemolgicos, expondo a contradio da postura escolar. Para a autora, a aceitao do humor na literatura carece da comprovao de seu valor como recurso lingstico e literrio, que se coadune com o papel renovador e transgressor que a literatura assume socialmente. A autora defende a unio entre escola, literatura infantil e humor para o rompimento com conceitos cristalizados e a crena no riso como meio eficaz e srio de percepo da realidade.

2) Ana Lucia de Oliveira Brando: Uma abordagem da obra infantil humorstica de Sylvia Orthof e Tato Gost. Dissertao de Mestrado. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo Comunicao e Semitica 1994. A dissertao aborda a presena do humor na obra infanto-juvenil de Sylvia Orthof, analisando-a com base nas reflexes de Sigmund Freud e Mikahail Bakhtin, e A. Koestler para o

10

texto, e com base em Fayga Ostrower para as ilustraes de Tato Gost. Brando conclui que o trabalho de Sylvia Orthof e Tato Gost cria um paradigma para o humor.

3) Regina Souza Gomes. Toda bruxa pode ser fada: contribuio da Teoria Semitica para o ensino da leitura. Dissertao de Mestrado. Universidade Federal Fluminense Letras 1996. A autora conceitua primeiramente leitura e texto. Em seguida, discute questes, como os sujeitos envolvidos, a

plurissignificao, e distingue entre os modos de ler o texto, a interpretao e a compreenso. Gomes utiliza o livro infantil Uxa, ora fada, ora bruxa, de Sylvia Orthof, para uma anlise exemplar de aplicao do modelo terico da semitica. Aps a anlise do livro infantil, utilizando-a como base para ilustraes e exemplificaes, sugere caminhos para aplicao dessa fundamentao terica na prtica do ensino da leitura, tomando como conceitos bsicos a coerncia e, includa nesta, a isotopia, apresentando tambm uma reflexo sobre o ato de produo de sentido da leitura, especialmente no que diz respeito construo de competncias necessrias para que esta se realize.

4) Deise da Silva Gutierres. Sobre literatura infantil: um dilogo com o trabalho de Sylvia Orthof. Dissertao de Mestrado. Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho Araraquara, SP Letras 2001. O trabalho aborda as preocupaes com o ensino e com a leitura na escola, entendendo que a reflexo leva literatura infantil e leitura do texto literrio. A autora enfatiza o papel do professor na formao do leitor e ressalta a importncia da escolha dos textos literrios que sero levados aos alunos. Com base no pensamento de M. Bakhtin e em estudos sobre o discurso, e por compartilhar com o pensamento dialgico de que o leitor contribui com o texto, Gutierres elegeu a obra de Sylvia Orthof como corpus de seu trabalho. A autora reconhece nesses textos o respeito pelas crianas, considerando-as inteligentes, questionadoras e participativas.

11

5) Maria Aparecida Barbosa. Ciranda de estripulias e palavras. Apresentao de Recreio. A revista brinquedo, uma publicao da Ed. Abril. 1969 a 1982. Dissertao de Mestrado. Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho Assis, SP Letras 2003. Barbosa levanta a importncia da Revista Recreio entre os anos de 1969 e 1982, quando publicou histrias infantis, revelando autores como Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Sylvia Orthof e Joel Rufino dos Santos. Estes escritores confirmaram o sucesso da revista e se definiram enquanto autores inaugurais do gnero.

6) rica dos Reis Segovia da Silva Rampazzo. Sylvia Orthof e a recuperao dos contos de fadas: o cmico vai escola? Dissertao de Mestrado. Universidade Estadual de Maring, PR Letras 2003. A partir do olhar da Esttica da Recepo de Hans Robert Jauss e da Teoria do Efeito de Wolfgang Iser, Rampazzo investiga a presena de elementos do cmico nas obras de Sylvia Orthof. O trabalho se prope a ampliar as discusses sobre a importncia e funo da comicidade, buscando reverter o preconceito que marca o cmico e dificulta sua presena tanto nos estudos acadmicos como no trabalho com textos literrios em sala de aula. Rampazzo realizou pesquisa de campo com questionrios respondidos por professores, indagando sobre a relao com a obra de Sylvia Orthof. Rampazzo recorreu tambm literatura sobre o cmico em Vladimir Propp, Henri Brgson, Mikhail Bakhtin e Sigmund Freud.

7) Maria Cristina Conduru Villaa. Novos Finais Felizes: a mulher e o casamento em Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Sylvia Orthof. Dissertao de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro Letras 2004. O trabalho aborda o conto de fada e como a natureza dinmica dessas narrativas permite adaptaes e releituras adequadas ao contexto histrico a que esto vinculadas. Villaa expe como a representao da mulher e a dimenso do casamento, ligadas ao mito da felicidade, obedecem ao dinamismo do gnero, sendo modificadas ao longo dos tempos, e como autores contemporneos buscam novos finais felizes, finais estes compatveis com os valores da atualidade. Na dissertao, a autora confirma a

12

relevncia de Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Sylvia Orthof para a literatura infanto-juvenil brasileira.

Como artigos, encontramos trs textos: O universo ldico de Sylvia Orthof, de Vera Maria Tietzmann Silva, publicado em Literatura Infanto-juvenil: Prosa & Poesia (org.) Ana Maria Lisboa de Mello, Maria Zaira Turchi e Vera Maria Tietzmann Silva. Goinia: UFG, 1995. No artigo, a autora aborda a qualidade do humor de Sylvia Orthof, a postura de seus narradores e faz uma leitura cuidadosa do livro Ponto de tecer poesia, que revela a Sylvia Orthof poeta.

Silvia Orthof: o bom humor na literatura infantil, de Alice urea Penteado Martha, publicado em Cuatrogatos revista de literatura infantil n 9, septiembre 2002. O texto traz uma pequena biografia de Sylvia Orthof e comenta sua habilidade em lidar com o cmico na literatura, sem perder nenhuma oportunidade de provocar questionamentos e reflexes.

O tempo, de culos, requebra numa bengala: Sylvia Orthof e a velhice, de Alice urea Penteado Martha, publicado em Leitura e Literatura infanto-juvenil. Memria de Gramado (org.) Joo Luis C. T. Ceccantini. So Paulo: Cultura Acadmica, 2004. No artigo, Martha expe como Sylvia Orthof aborda a questo da velhice pelo vis cmico, provocando no leitor jovem uma reflexo sobre a passagem do tempo, vista com naturalidade e bom humor.

E ainda encontramos um livro: Ora fada, ora bruxa. Estudos sobre Sylvia Orthof. Org. Vera Tietzmann Silva. Publicado pela Cnone Editorial. Trata-se de uma coletnea de textos em homenagem escritora, antecipando homenagens pelos dez anos de sua morte, produzidos por alunos concluintes do Curso de Letras da Universidade Federal de Gois.

13

A presena do humor na obra de Sylvia Orthof uma das questes mais abordadas nos estudos sobre a autora. O cmico e o deboche so elementos que desmontam e ridicularizam os preconceitos, provocando no jovem leitor uma reflexo sobre o mundo adulto e suas instituies. Os estudiosos ressaltam tambm a importncia e o papel do humor no universo escolar, tradicionalmente to srio e formal. Desta forma, a literatura infantil da autora contribui para o papel transgressor da literatura na sociedade e como elemento de ligao entre escola, fantasia e realidade. Como podemos perceber, Sylvia Orthof tem despertado a ateno de alguns pesquisadores em literatura infantil, entretanto os estudos realizados mostram-se insuficientes diante do volume e da importncia literria da autora. Contabilizamos mais de cem livros publicados, dez textos teatrais nos arquivos da SBAT, um filme para vdeo e quatro discos com histrias da autora. Trata-se, pois, de uma produo de flego, que, detentora de inmeros prmios, revela o reconhecimento obtido pela alta qualidade dos textos. , portanto, inexplicvel a carncia de estudos acadmicos sobre esta autora. Por outro lado, sua obra dramtica no tem sido contemplada nos estudos acadmicos, o que nos confirma e justifica a originalidade do presente trabalho. Para dar conta do estudo proposto, optamos por dividi-lo em captulos. No primeiro, expomos nossas consideraes iniciais, apresentando as justificativas de nossa escolha, os objetivos, a metodologia e um pequeno levantamento do estado da questo. No segundo, Literatura, leitura e leitor, abordaremos algumas concepes de literatura e suas funes, tomando por base autores como Antonio Candido, Terry Eagleton, Antoine Compagnon e Dieter Wellershoff. Ainda no mesmo captulo, passaremos, em seguida, para uma reflexo sobre a leitura do texto literrio, enfocando a importncia do leitor, sob a tica da Esttica da Recepo e da Teoria do Efeito. Dedicaremos o terceiro captulo a um breve histrico da literatura infantil no ocidente, a partir de seu surgimento na Europa do sculo XVIII, a que demos o ttulo de Gnese burguesa. Em seguida, focalizaremos a histria localizada da

14

literatura infantil no Brasil e, ainda dentro deste captulo, abordaremos o gnero dramtico infantil. O captulo de nmero quatro dedicado a Sylvia Orthof e ao teatro para crianas. Faremos um levantamento da produo dramtica de Sylvia Orthof e sua importncia dentro do contexto da dramaturgia brasileira. Ainda no mesmo captulo, iremos nos dedicar a uma leitura de dois textos dramticos de Sylvia Orthof: Z Vago da Roda Fina e Sua Me Leopoldina e A Gema do Ovo da Ema, segundo as abordagens da Esttica da Recepo de Hans Robert Jauss e da Teoria do Efeito de Wolfgang Iser. Em seguida, faremos a exposio nossas consideraes finais e, aps as referncias bibliogrficas, encontrar-se-o anexos os textos que compem o corpus do trabalho.

15

2 LITERATURA, LEITURA E LEITOR

Levantamos neste captulo questes primordiais para o estudo da literatura, a saber: definio e valor da literatura, a importncia do leitor, bem como as funes inerentes leitura do texto literrio. 2.1 NATUREZA E FUNO DA LITERATURA

Definir a literatura no uma tarefa fcil, talvez impossvel. No sentido de refletir sobre esta questo, tomamos os autores Antonio Candido2, Dieter Wellershoff (1970), Terry Eagleton (2001)3 e Antoine Compagnon (2003)4, que chegam a idias convergentes sobre o valor e a importncia da literatura para a sociedade e o ser humano. Antonio Candido (2002) discute a criao literria, modos possveis de se estudar a literatura e faz uma comparao dialtica entre a literatura primitiva e a erudita. Para ele, o meditar sobre as diversidades entre a nossa literatura e a primitiva ajuda a compreender certos aspectos da criao literria. O terico evidencia o erro da viso antropocntrica, que reduz todo estudo tica do adulto, branco e civilizado e verifica que as culturas so relativas, na medida em que cada qual tem suas maneiras peculiares, sendo que cada contexto geral interfere no significado dos traos particulares. Em funo disso, perceber essas diversidades revela-se importante. Para o homem primitivo, a troca com o meio um elemento fundamental; por este motivo, sua literatura deve ser estudada mediante a combinao de trs disciplinas: a cincia do folclore, a sociologia e a crtica literria. Ao expor essas idias, Candido deixa claro que a essncia do ser humano a mesma, mas cada cultura possui uma relao prpria com o meio e a abordagem de suas produes literrias deve ser vista sob uma tica contextualizada. Candido critica a viso maniquesta do dominante como homem branco, adulto e civilizado, e prope2 3

1 edio:1965, utilizamos a 8 ed. de 2002; 1 edio: 1976, utilizamos a de 1995. 1. edio: 1983; utilizamos a de 2001. 4 1. edio: 1998; 1 edio brasileira: 1999.

16

uma viso dialtica das culturas primitivas e civilizadas. O autor estabelece tambm uma relao entre a tica do dominante para culturas primitivas e a tica do adulto para com a criana e a literatura infantil. Dieter Wellershoff (1970) estabelece a relao entre a literatura e o mercado, a partir de uma retrospectiva da evoluo da literatura desde os primeiros manuscritos at a produo de massa da indstria livreira atual. Para o autor, esta evoluo tirou o leitor de uma atitude passiva, possibilitando-lhe uma posio crtica. A reproduo extinguiu o privilgio de uma minoria at ento detentora da cultura, de maneira que a literatura pde fazer parte da vida do homem comum. De acordo com Wellershoff, a questo do valor em uma sociedade capitalista est intimamente relacionada ao mercado literrio. Ao fazer uma retrospectiva da evoluo da indstria livreira, o autor afirma que a produo industrial trouxe, em um primeiro momento, liberdade para o autor, pois antes do mercado ele dependia da corte para sua sobrevivncia. Entretanto, a situao hoje s mudou aparentemente, ou seja, se verdade que o autor no precisa mais agradar ao patrono, hoje ele precisa agradar ao mercado. Para o mercado, tem valor o que vendvel e o prprio mercado constri reputaes, sendo importante manter a produo a todo o vapor. A oferta se tornou to vasta que os crticos no do conta de ler tudo e os leitores, cada vez mais, so levados a consumir as obras em evidncia os best-sellers. Todos querem ler o que todos esto lendo, mas o grande pblico s l superficialmente. Assim, a indstria cultural formata a sociedade, o leitor e at o crtico. Terry Eagleton (2001) expe algumas tentativas de se definir a literatura ao longo do tempo e, ao fazer isso, aborda, inicialmente, a distino entre fato e fico, mas esclarece o autor esta distino no confivel. Isto implica dizer que h obras que no so de fico e so literatura, enquanto, por outro lado, h obras de fico que no so literatura. Os formalistas russos tentaram definir a literatura pela forma artificial e de estranhamento da linguagem, preocupando-se com a abordagem da

materialidade e recusando as explicaes de base extraliterria. Para eles o

17

importante no a literatura, mas a literariedade. Eagleton tambm desmonta o formalismo, pois, s vezes, uma obra pode chamar a ateno justamente por sua sobriedade e simplicidade; outras vezes, pela linguagem artificial e estranha, como o caso das peas publicitrias, que podem no ser consideradas literatura. Alm disso, os formalistas, por privilegiarem a forma, deixaram de lado o estudo do contedo literrio. Contribuindo para a discusso em torno da literatura, Antoine Compagnon (2003) compila vrios tericos e afirma que a literatura arte, mas no tem uma cara definida. Em sentido amplo, literatura tudo aquilo que impresso, correspondendo, assim, noo clssica das belas-letras. Dessa forma, a literatura perde sua especificidade, sua qualidade literria. Pela filologia, atravs da literatura, possvel conhecer uma nao, como, por exemplo, a sociedade grega, o que se torna possvel por meio da leitura de obras como as de Hesodo, Homero e dos dramaturgos gregos. Em sentido estrito, a literatura varia de acordo com as pocas e as culturas. Para Compagnon, toda teoria repousa em um sistema de preferncias; assim, no podemos falar em uma essncia da literatura, visto que ela uma realidade complexa, heterognea, mutvel. Ao questionar quando um texto considerado literrio, Compagnon se refere ao valor da literatura e, neste ponto, percebemos que muitos autores concordam que o juzo de valor transitivo. O autor tambm valoriza o contexto, ao afirmar que a sociedade, na verdade, que define se uma obra literatura pelo uso que faz dela. Da mesma forma, para Eagleton, o contexto que decide se uma obra pode ou no ser considerada literatura, uma vez que ela no eterna nem imutvel. Nesse sentido, qualquer coisa pode vir a ser literatura e qualquer obra que j tenha sido considerada literria pode deixar de s-lo. Para o terico, valor um termo transitivo, pois significa tudo aquilo que considerado valioso para um grupo. Aps discutir vrias definies que j foram dadas para a literatura, Eagleton conclui que no se pode definir objetivamente a literatura. Nessa ordem de idias, literatura ser aquilo que o leitor considerar literatura em dado momento. Esses

18

juzos de valor referem-se, porm, no apenas ao gosto particular, mas tambm aos valores histricos, sociais e econmicos predominantes em cada perodo e que se expressam atravs do mercado. Retornando a Antonio Candido (2002), percebemos que quando o autor se refere s diferenas entre a literatura dos povos primitivos e a literatura dos povos civilizados, ele reafirma sua transitoriedade, pois o que altamente valorizado para um civilizado pode no ter nenhuma importncia para um primitivo e viceversa. a partir dessa anlise que Candido aponta trs funes para a literatura: a funo total, a funo social e a funo ideolgica. A funo total transcende a situao imediata, inscrevendo-se no patrimnio do grupo. Esta funo traz certa viso de mundo, atravs de instrumentos expressivos adequados. Para o estudioso, essa a funo mais importante. J a funo social consiste no papel exercido pela obra na conservao ou mudana de valores sociais. Mostrando-se mais acentuada na literatura dos grupos iletrados, independe da vontade dos autores e decorre da prpria natureza da obra. A funo ideolgica, por sua vez, refere-se a um sistema definido de idias e trata-se da funo menos importante por ser voluntria. O resultado a obra engajada, que, muitas vezes, serve apenas para o momento em que a mesma surgiu e para a questo discutida em tal momento. Um conceito importante, para Antonio Candido, o da gratuidade. Trata-se de uma palavra-chave que vai se opor funo ideolgica. Segundo Candido, o escritor est inserido em seu contexto e levado a transfigurar e transpor o real para o ilusrio, por meio da referida gratuidade. O autor enfatiza ainda que a gratuidade se d tanto por parte do autor, no momento da produo, como do leitor, no momento de sentir e apreciar. Antonio Candido (1972) tambm defende a funo humanizadora da literatura, isto , a capacidade que ela tem de confirmar traos humanos no homem, como a reflexo, o refinamento das emoes e outros aspectos envolvidos no relacionamento com o outro.

19

Dentro dessa funo maior que a humanizadora, o autor comenta outras trs que esto a ela estreitamente relacionadas. A primeira a funo psicolgica, que vem suprir a necessidade universal de fico e fantasia de todo ser humano. Todo homem, seja ele primitivo ou civilizado, criana ou adulto, tem necessidade de fico e fantasia. A literatura, oral ou impressa, uma das formas de responder a esta necessidade, sendo, alis, uma das modalidades mais ricas. A literatura tem tambm uma funo integradora e transformadora da realidade e a fantasia serve como matria-prima do ato criador. importante ressaltar que a fantasia quase nunca pura, uma vez que se refere a algum aspecto da realidade que ser transposto para a obra, numa certa ordem, a partir da escolha particular do artista. Assim, na concretizao do objeto artstico, a realidade transfigurada, rearranjada:

A arte e, portanto, a literatura, uma transposio do real para o ilusrio por meio de uma estilizao formal, que prope o tipo arbitrrio de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos, Nela se combinam realidade natural ou social, e elementos organizacionais que so configurados e apreciados gratuitamente pelo escritor e pelo leitor, respectivamente. (CANDIDO, 1995, p. 53)

Outra funo a ser comentada a funo formativa da literatura. As obras que lemos atuam no nosso subconsciente e inconsciente; assim, os filmes, os romances etc. atuam tanto quanto a escola e a famlia na formao de uma criana e um adolescente. Os pases civilizados educaram com base nas letras, propiciando o elo entre lngua, literatura, homem e humanismo. No h dvida de que a funo educativa da literatura muito ampla e complexa. Em vista disso, a literatura pode formar, mas no da forma preconizada pela pedagogia oficial, que prega o bem, o belo e o verdadeiro. No sendo uma experincia inofensiva, a literatura uma aventura que pode trazer problemas psquicos, como a prpria vida. Em outras palavras, a literatura pode formar a personalidade, pode educar, sim, mas no segundo as convenes, e sim segundo a realidade, que contm o bem e o mal, o humano: a literatura no corrompe nem edifica, portanto; mas,

20

trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver. (CANDIDO, 1972, p. 806). Essas funes comentadas pelo crtico atuam de forma simultnea e so responsveis pelo carter humanizador da literatura, permitindo ao leitor alargar sua experincia de vida e viso de mundo, ao vivenciar situaes que a vida prtica talvez no lhe proporcione. Por tudo que a literatura pode oferecer, Candido (1995) acredita que a mesma seja um direito do homem. O autor parte de reflexes sobre os prprios direitos humanos, chamando a ateno para as contradies a existentes: o que poderia servir para o bem o progresso, a tcnica, o domnio da natureza muitas vezes usado para o mal, como o caso da bomba atmica. O autor salienta que imprescindvel que se exija um mnimo de justia. Por outro lado, Candido otimista, ao lembrar que houve certa evoluo em relao igualdade dos direitos, pois os dirigentes j reconhecem que preciso minimizar as desigualdades sociais e, se na prtica isso no ocorre, pelo menos no discurso h uma nova conscincia. Candido expe, ainda, a distino entre bens incompressveis (que so absolutamente indispensveis a todo ser humano e, por isso, so direitos de todos) e os bens compressveis (que seriam suprfluos). Candido ento afirma que os bens incompressveis no so apenas os que asseguram a sobrevivncia fsica em nveis decentes, mas os que garantem integridade espiritual. Para o autor, a literatura situa-se entre tais bens. Ressaltando que os critrios de incompressibilidade podem variar com a poca e com a sociedade, Antonio Candido coloca em evidncia a importante questo da injustia social. Para que a fruio da arte e a da literatura estejam nesta categoria, preciso que a sociedade tenha uma organizao justa. No entender de Candido, ningum pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da fico e da poesia. Em funo disso, a literatura uma necessidade universal, sendo, por isso, um direito de todo ser humano. Alm disso, como a literatura tambm fator de conscientizao, este mais um motivo para que seja um direito de todos.

21

Igualmente importante a conscientizao de que tal direito no deve ser restrito a certas camadas sociais. No se pode, pois, concordar que os menos favorecidos economicamente no tenham necessidade e direito s grandes produes artsticas. Beethoven e Shakespeare, por exemplo, so patrimnios da humanidade e suas obras devem ser levadas a todos. De fato, um absurdo negar s classes mais baixas o acesso s melhores produes artsticas.

2.2 LEITURA E LEITOR

Ao abordar a questo da leitura, estamos pensando em uma atividade dinmica de interao entre autor, obra e leitor, na qual o indivduo leitor no pode ser concebido como mero decodificador de sinais grficos, pois, no ato da leitura, temos um processo que transforma o leitor em produtor de sentidos. Em tal processo, os sentidos no esto colados no texto, prontos para serem retirados, mas trata-se de sentidos que sero construdos mediante a experincia de leitura e de vida de cada leitor, visto que cada leitor traz consigo suas experincias, sua cultura e os valores de sua poca. Para Foucambert (1997), no processo da leitura, o conhecimento prvio que o leitor traz possui papel de destaque. Afirma o autor que, neste processo, apenas 20% das informaes visuais vm do texto, sendo que 80% provm do leitor. Na obra A criana, o professor e a leitura, ele declara queA leitura, como qualquer comunicao, supe que quem lida com a mensagem invista nela uma quantidade de informaes bastante superior quela que extrai (no confundir com aquelas que o autor j colocou, conscientemente ou no). [...] Um texto nunca existe sozinho, mas por referncia, oposio ou contribuio a outros textos, com os quais ele abre um dilogo no mais das vezes implcito. Ele lido, ento, em dois nveis: do ponto de vista de quem tenta elaborar a partir da experincia com que trabalha e no universo em que esse ponto de vista se insere. (FOUCAMBERT, 1997, p. 106)

Segundo Martins (1986), no lemos apenas o texto; afinal, a leitura vai alm dele e comea antes mesmo do contato com os textos escritos. Assim, podemos ler uma situao, uma pintura, uma msica, um gesto etc., desde que tenhamos a 22

vivncia necessria para atribuir sentido a essas circunstncias. A autora estabelece trs nveis bsicos de leitura, sendo que estes se encontram interligados e ocorrem de maneira simultnea. So eles: sensorial, emocional e racional. O primeiro nvel refere-se s leituras preliminares, em relao quilo que nos cerca, em que utilizamos os nossos sentidos (paladar, tato, olfato etc.). Tratase do tipo de leitura que fazemos desde o nascimento e em nossos primeiros contatos com o mundo e com os seres. J o segundo nvel, a leitura emocional, ocorre quando deixamos de utilizar apenas os sentidos e utilizamos elementos da nossa histria social individual, para atribuir significao s nossas vivncias. Por sua vez, o terceiro nvel est mais relacionado intelectualidade. Neste momento, o leitor assume uma postura mais reflexiva e crtica diante do objeto lido. Desse modo, a construo do sentido neste nvel ocorre de forma mais elaborada: o leitor faz julgamentos e se posiciona diante do texto e do contexto em que este est inserido. Este ltimo nvel de leitura o mais privilegiado pelos intelectuais, pois se acredita que os dois primeiros, principalmente o emocional, no permitem a realizao de uma leitura mais crtica, estando o leitor suscetvel manipulao de ideologias com as quais no compactuaria se possusse entendimento mais aprofundado da questo. Pensando nestes trs nveis de leitura discutidos por Martins, percebemos que os elementos focalizados nos dois primeiros tambm podem ser importantes para a formao de um leitor crtico. Isso ocorre porque as etapas sensorial e emocional podero servir como um bom comeo para um convite leitura. Partindo de textos que tragam entretenimento e uma leitura prazerosa, posteriormente este leitor poder realizar uma leitura de fruio, conforme definida por Barthes (1997), ou seja, aquela que coloca o leitor em movimento, na medida em que provoca uma ruptura de conceitos pr-estabelecidos, no implicando, portanto, apenas uma satisfao ligeira. Quando o texto literrio abordado no contexto escolar, essas primeiras fases de leitura so geralmente desconsideradas e a leitura assume um carter utilitrio, evidenciado, por exemplo, nos exerccios didticos e nas avaliaes, nos

23

quais a leitura se torna apenas um veculo para o ensino de contedos programticos. Para Aguiar (1996), isso ocorre porque a preocupao da escola reside em transmitir conhecimentos sobre a leitura e no em ensinar a ler. A pesquisadora afirma que a predisposio para a leitura fundamental para a formao do leitor e, para isso, necessrio estimular o gosto pela leitura. Em suas palavras, o ato de ler s funciona quando parte do interesse do leitor. (AGUIAR, 1996, p. 26). Ao iniciarmos a leitura de um texto literrio, precisamos utilizar estratgias de leitura diferentes das utilizadas, por exemplo, em um texto informativo. Graa Paulino (2003) ressalta que, neste ltimo, podemos ir com objetivos, como selecionar informaes e relacion-las com outras, diferentemente do texto literrio, que trata de um conhecimento que no est prontinho nas informaes presentes no texto e, portanto, exige de seu leitor habilidades e conhecimentos proporcionados por seu conhecimento de vida, de lngua e de leitura. Esse repertrio, no entanto, vai sendo desestabilizado, devido ambigidade e pluralidade dos textos dessa natureza, permitindo ao leitor interagir de forma mais significativa como co-autor desses textos. O lingista Vincent Jouve (2002) toma as teorias da recepo e do efeito, entre outras, como ponto de partida para sua reflexo. Jouve ressalta a importncia do enfoque no leitor para os estudos sobre a leitura, que foram iniciados nos anos 70 do sculo XX. Conforme o autor, h duas maneiras de se abordar o problema da leitura: a partir do questionamento sobre o modo de se ler um texto ou sobre o que nele se l. Para ele, em muitos casos, o estudo da leitura confunde-se com o da obra. O autor levanta as vrias facetas da atividade da leitura: os aspectos neurofisiolgicos, cognitivos, a importncia da emoo que a leitura suscita no leitor, a inteno argumentativa do autor e a interao da leitura com o contexto cultural de cada leitor. Explicitando a condio de comunicao diferida da atividade leitora e suas implicaes, Jouve observa que o autor e o leitor esto afastados um do outro no espao e no tempo, de modo que o leitor dever buscar, na estrutura do texto, o contexto necessrio compreenso da obra. O carter

24

diferido permite a pluralidade de interpretaes, contribuindo, assim, para a riqueza do texto, uma vez que cada novo leitor traz consigo, no momento da leitura, suas experincias, sua cultura e os valores de sua poca. O escrito permite aos leitores verem no texto outra coisa alm do projeto do autor, mas Jouve afirma que no se pode reduzir a obra a uma nica interpretao. Por outro lado, existem critrios de validao, de maneira que o texto permite vrias leituras, mas no autoriza qualquer leitura. Mas qual deveria ser a leitura retida para anlise? Jauss (1994) prope levar em conta a primeira leitura da obra, mediante a reconstituio do horizonte de expectativa no momento de sua publicao. A histria da leitura de uma obra seria, ento, a do pblico leitor, incluindo-se a o pblico contemporneo primeira publicao da obra, acrescido de todos os pblicos que a obra teve ou ter em sua histria. Jouve (2002) tambm analisa as questes implcitas aos modos de leitura. Sendo a leitura uma interao produtiva entre texto e leitor e considerando que os textos no conseguem descrever o mundo real por completo, o leitor, portanto, quem vai completar o texto em quatro esferas essenciais: a verossimilhana, a seqncia das aes, a lgica simblica e a significao geral da obra. Para Jouve, o texto programa sua recepo, propondo ao leitor algumas convenes, por intermdio de um pacto de leitura. O gnero da obra, por exemplo, uma forma de orientar a leitura. Alm disso, a recepo se organiza em torno de dois plos: os espaos de certeza e os espaos de incerteza. Os espaos de certeza so fornecidos pelo texto e do suporte ao leitor, orientando sua recepo. O texto, contudo, pode tambm programar espaos de indeterminao, decidindo quais elementos deixar para a criatividade do leitor. preciso lembrar, entretanto, que o texto pode apenas programar a leitura, visto que o leitor quem deve concretiz-la. Segundo Eco (2002), o leitor deve possuir uma competncia que compreenda os seguintes elementos: o conhecimento de um dicionrio de base, que lhe permita determinar o contedo semntico dos signos; o conhecimento de regras de co-referncia, que sirva para entender corretamente as expresses

25

diticas e anafricas; a capacidade de identificar as selees contextuais e circunstanciais, permitindo interpretar as expresses, em razo do contexto em que se encontram; a capacidade de interpretar o hipercdigo retrico e estilstico, tornando possvel a compreenso de certas formas, mais ou menos

estereotipadas, legadas pela histria literria; uma familiaridade com os cenrios comuns e intertextuais, para antecipar a seqncia do texto; e uma viso ideolgica, para que o leitor possa concordar ou contradizer o projeto do autor. Jauss (1994) aborda a atitude de fruio esttica quando o sujeito libertado pelo imaginrio de tudo aquilo que torna a realidade de sua vida constrangedora. Assim, a leitura , ao mesmo tempo, uma experincia de libertao e de preenchimento. Mediante o interesse que o leitor tem pelo destino das personagens, o leitor ver-se- confrontado com situaes inditas, o que, por seu turno, modificar seu olhar sobre as coisas. Para Jouve (2002), ler uma viagem, uma entrada inslita em outra dimenso que, na maioria das vezes, enriquece a experincia. Assim, o leitor, em um primeiro tempo, deixa a realidade para mergulhar no universo fictcio, e, em um segundo tempo, volta ao real nutrido da fico. necessrio lembrar, contudo, que a distncia histrica que separa o texto do leitor influenciar a forma de envolvimento do leitor com o universo textual. Iser (1996) classifica a leitura em duas modalidades: participativa, quando leva o leitor a questionar sua realidade, e contemplativa, quando a leitura, mais do que modificar a viso de mundo, leva o leitor a reconstituir o universo cultural que d sentido narrativa. Jouve (2002) aborda o impacto que a leitura exerce sobre o leitor. Se a leitura uma experincia, porque, de um modo ou de outro, o texto age sobre o leitor. H textos que exercem uma influncia concreta e outros que s divertem. Alguns textos, no entanto, parecem ser s divertidos, mas trazem desafios performativos e, neste caso, a leitura nunca uma atividade neutra. Em seu prefcio segunda edio de O Ato da Leitura, Iser (1996) justifica a Teoria do Efeito e afirma que a recepo est vinculada ao testemunho das reaes ao texto e que o texto a prefigurao da recepo potencial:

26

A recepo, no sentido estrito da palavra, diz respeito assimilao documentada de textos e , por conseguinte, extremamente dependente de testemunhos, nos quais atitudes e reaes se manifestam enquanto fatores que condicionam a apreenso de textos. Ao mesmo tempo, porm, o prprio texto a prefigurao da recepo, tendo com isso um potencial de efeito cujas estruturas pem a assimilao em curso e a controlam at certo ponto. (ISER, 1996, v. 1, p. 7)

O texto literrio no pretende reproduzir o mundo, mas se origina da reao de um autor ao mundo e ganha o carter de acontecimento medida que traz uma perspectiva para o mundo presente que no est nele contida (ISER, 1996, v. 1, p. 11). O texto funciona, assim, como um processo que se inicia com a reao do autor ao mundo e chega at a experincia do leitor. Desta forma, o efeito do texto depende da leitura deste, e, por isso, a leitura fundamental para a Teoria do Efeito. Compagnon (2003, p. 149), aps realizar uma compilao de tericos significativos, como Iser, conclui que o texto literrio se caracteriza por essa incompletude. Para ele, a literatura existe nos livros, mas ela s se concretiza e se completa em seu encontro com o leitor, isto , com o co-autor dos textos. Entretanto, no podemos esquecer que, se por um lado, o leitor atua sobre o texto, por outro, o texto tambm atua sobre o leitor, como evidencia Antonio Candido (1972), ao explicar as funes da literatura e a relao interacionista que ocorre no momento da leitura. Percebemos que a leitura no pode se satisfazer em encontrar no texto um sentido muito limitado. O discurso esttico destinado ambigidade, mas o nmero e a natureza dos nveis de sentido variam de acordo com os tipos de texto, pois nem todas as obras carregam a mesma polissemia. Com o advento da arte moderna, a arte deixou de ser descritiva e de visar significao, o que ressaltou a problemtica das diferentes possibilidades de interpretao. Assim, a questo das interpretaes, em todas as formas de expresso artstica e em especial na literatura, vem suscitando inmeras teorias e acalorados debates.

27

2.3 TEORIAS RECEPCIONAIS

Abordamos aqui, de forma sumria, alguns postulados tericos da Esttica da Recepo de Hans Robert Jauss e da Teoria do Efeito de Wolfgang Iser, que nos orientaro em nossa leitura do corpus escolhido.

2.3.1 ESTTICA DA RECEPO

Em toda a histria da teoria literria, a figura do leitor tem sido alvo de estudos, pesquisas de linguagem e da literatura. Em alguns momentos, o leitor visto como uma instncia exterior, que, por esta razo, no exerce influncia na natureza do texto; em outros, visto como figura essencial do processo artstico e, por isso, precisa ser analisado como elemento participante da obra. Porm, a princpio, outros elementos foram reconhecidos como os nicos fundamentais para a concretizao do processo literrio. Segundo Eagleton (2001), foram trs os grandes momentos ou fases do sistema literrio: a fase do autor, a fase do texto e, por ltimo, a fase do leitor. A figura do autor do texto ocupou o lugar de destaque entre os estudos literrios, j que o modelo de crtica romntica, que perdurou at o sculo XIX, conferia relevncia aos estudos da biografia do autor, concebendo-se o texto como um produto de uma mente genial. O autor romntico assume o lugar de produtor, senhor absoluto de sua criao, acima do leitor e mesmo de sua obra. A leitura bem sucedida seria aquela que conseguisse decifrar as intenes do autor. Para Eagleton (2001), o lanamento da revista Scrutiny trouxe uma valorizao das palavras, o que culminou em uma nfase importncia do texto. A Nova Crtica Americana entendia a obra literria como uma unidade orgnica que se mantinha por si s, estvel e fechada. Por conseqncia, tambm se exigia do leitor uma leitura fechada, objetiva, distante de qualquer contexto de produo ou recepo. Nesse contexto, o leitor bem sucedido era o que interpretasse competentemente, uma vez que o texto era visto como uma entidade impecvel e

28

auto-suficiente. Alm disso, o texto literrio romntico acabou dissociando a literatura da vida, como afirma Compagnon:

A vertente romntica dessa idia foi, durante algum tempo, a mais valorizada, separando a literatura da vida, considerando a literatura uma redeno da vida ou, desde o final do sculo XIX, a nica experincia autntica do absoluto e do nada. (COMPAGNON, 2003, p. 39)

O final do sculo XX trouxe mudanas significativas e um admirvel desenvolvimento tecnolgico, o que tornou necessria uma sistematizao objetiva e cientfica no tratamento do texto literrio. Surgem, ento, nos Estados Unidos e na Europa, as teorias estruturalistas, as quais se ocupavam em marcar as estruturas dos textos literrios, bem como o funcionamento das mesmas. Nesse momento, surge a noo de um leitor ideal: um sujeito transcendental, absolvido de todos os determinantes sociais limitadores (EAGLETON, 2001, p. 166). O texto, dessa forma, assume um carter neutro, isento de qualquer tipo de inferncia, pois o seu leitor possui limitaes no que diz respeito s faculdades interpretativas. Essa viso do leitor vigorou durante muito tempo. Entretanto, essas possibilidades de explicaes lingsticas e estruturais para os fatos literrios se esgotaram e novos enfoques sobre o texto literrio comearam a se desenvolver. Muitos estudos foram feitos e muitas teorias foram criadas, para que se chegasse abordagem da funo do leitor enquanto receptor do cdigo lingstico, enquanto aquele que d o significado ao texto; significado este que deixa, portanto, de ser determinado pelo texto ou pelo autor. Nessa nova concepo, percebe-se que na leitura que ocorre a elaborao do texto, a partir daquilo que o leitor assimila, sendo que nessa assimilao, em conjunto com aquilo que o texto produz de efeito para o leitor, que ocorre o processo de leitura. Nesse cenrio de revoluo e mudana de foco no que diz respeito aos estudos da leitura, as teorias recepcionais tendem a estudar tanto o modo de se ler um texto quanto o que se pode ler. Pode-se pensar, dessa forma, que a teoria da recepo centra-se na relao texto-leitor.

29

Diante dessas novas abordagens que tratam o texto e a leitura, faz-se necessria, para este trabalho, a considerao dos trabalhos da Escola de Constana, que se divide em duas linhas: a Esttica da Recepo, de Hans Robert Jauss (1967), baseada na teoria hermenutica e na resposta do pblico ao texto, e a Teoria do Efeito Esttico, de Wolfgang Iser (1976), que se interessa pela fenomenologia do ato individual da leitura. Para ele, o efeito esttico deve ser analisado de forma dialtica entre o leitor e o texto, requerendo do leitor um conjunto de atividades criativas e perceptivas. O autor caracteriza o texto no como simples documento sobre algo, mas como a reformulao de uma realidade que j foi reformulada. (ISER, 1996, v. 1, p. 16). Surge, ento, a gnese da chamada Esttica da Recepo, que, de uma forma geral, trata-se da assimilao de textos, que depende de algum para estabelecer o entendimento daquilo que est sendo dito no texto. A Esttica da Recepo opera com mtodos histrico-sociolgicos (recepo) ou com mtodos teorticos-textuais (efeito). Trata-se de uma linha de estudos recente que, tendo passado por diversas mudanas, recebeu contribuies de diversos tericos. Cabe ressaltar que, nas mudanas que marcaram os estudos literrios em seu percurso pelas abordagens sobre o texto, sobre o autor e, por fim, sobre o leitor, tambm foram desenvolvidos, paralelamente, estudos filosficos. Entre eles, podemos mencionar a Fenomenologia, que passou a repensar problemas como a dissociao entre sujeito e objeto, a conscincia e o mundo, questionando as condies de construo do conhecimento atravs do estudo dos fenmenos, e a Hermenutica, que, em linhas gerais, trata-se da cincia geral da interpretao e na qual se focaliza a relao de dilogo entre o texto e o leitor. Em A obra de arte literria, do pensador polons Roman Ingarden5 (1979), ressalta-se a necessidade de renovao e de atualizao para a existncia da obra de fico. Para o autor, uma obra literria possui pontos de indeterminao que devem ser completados no momento da leitura do texto, ou seja, na leitura que o leitor atualiza e preenche as lacunas necessrias para se dar a concretizao da literatura. Na concepo desse autor, o texto era visto como uma5

1 edio alem: 1930. Utilizamos a 2 edio publicada em Portugal em 1979.

30

estrutura potencializadora que apenas seria concretizada pelo leitor, e a leitura, como um processo que pe o texto em relao com normas e valores extraliterrios por intermdio dos quais o leitor d sentido sua experincia a partir do texto. Para Ingarden, no momento da leitura, o leitor passa por trs estgios que influenciam sua apreenso. Em primeiro lugar, o leitor vivencia esquemas disponibilizados pela obra literria. Depois despertado no leitor o prazer esttico, que pode advir da comparao com outras obras lidas anteriormente, ou do contedo da obra nova. Por fim, o leitor somatiza os prazeres da leitura, provocando sentimentos e afetos diversos. Podemos, assim, observar que a leitura do texto literrio, para Ingarden (1979), opera mecanismos bastante complexos, impossibilitando que o sujeito-leitor apreenda sua totalidade, at porque a obra de arte literria no se apresenta de forma total. Segundo o autor,A obra literria nunca apreendida plenamente em todos os seus estratos e componentes, mas sempre s parcialmente, sempre por assim dizer, apenas numa abreviao perspectivista. Estas abreviaes podem mudar constantemente no s de caso para caso mas tambm numa mesma leitura, pois elas podem at ser condicionadas e exigidas pela estruturao da obra em causa e de todas as suas partes singulares. Em geral no so, porm, to dependentes da prpria obra como das condies particulares em que a leitura se realiza. Eis porque apenas podemos captar uma obra s at certo grau, nunca, porm, inteiramente. (INGARDEN, 1979, p. 366)

Diante dessa complexidade, torna-se importante levar em conta que, no momento da leitura, o leitor se afaste de todas as possveis perturbaes do mundo exterior, real, tornando-se alheio aos apelos dos acontecimentos e fatos de sua vida cotidiana. De acordo com Ingarden (1979), o afastamento da realidade necessrio para a fruio esttica a respeito da obra e de suas relaes consigo mesma, com o leitor e com o mundo exterior a ela. Sartre (1999), ao contrrio, alega que tal afastamento torna-se impossvel, uma vez que a experimentao das situaes diversas de nosso cotidiano nos faz sermos o que somos. Por esta razo, o autor de qualquer texto literrio deve ter em mente que ele est falando a um sujeito concreto, que est ocupando um 31

determinado tempo e espao, que possui relaes sociais e polticas, que , enfim, um sujeito que traz em seu interior as marcas de sua vivncia. So essas marcas que trazem em si as concretizaes a que Ingarden (1979) se refere. Para ele, elas podem variar de acordo com o leitor e com a poca em que ele vive, agregando em seu interior a obra original e as possveis alteraes que possam surgir, a partir de uma atualizao das leituras. Entretanto, dependendo da poca, os valores estticos tomam novos rumos, e isso favorece a concretizao de uma mesma obra sob diversas vises, bastando ao leitor distinguir qual delas pode ser mais adequada. Entendemos que seja importante considerar as idias de Roman Ingarden, pois, em sua teoria, a realizao da atualizao determinante para a existncia da obra literria, o que prova que, em cada poca, o texto pode assumir diferentes leituras, conforme a viso do leitor. Outro aspecto relevante levantado pelo autor diz respeito aos pontos de indeterminao do texto literrio, os quais devem ser completados pelo leitor no momento da leitura. A essa ao de preenchimento de lacunas o autor nomeia de concretizao. Para Silva (2005), as concretizaes so variveis de acordo com o leitor, sendo que uma concretizao agrega em si a obra original e as alteraes advindas de atualizaes posteriores publicao da obra. Outro ponto que o autor destaca que, a cada momento histrico ou poca, feita uma leitura diferente de um texto; portanto, o conceito esttico mutvel, favorecendo, assim, novas formas de leitura de uma obra e apreenso da mesma. Durante os anos 60 e 70 do sculo XX, as teorias recepcionais retomam as idias de Ingarden, em relao concretizao da obra literria pelo leitor. Jauss (1994), representante das teorias que tratam da recepo, no mais estuda o leitor como um indivduo, mas como um pblico inserido em um contexto histrico e esttico. Nesse sentido, a leitura e as apreenses feitas pelo leitor dependem do momento histrico e do conceito esttico que este apresenta. Com relao questo esttica, Jauss (1994) refere-se comparao de uma obra com outras lidas anteriormente. Por sua vez, no que diz respeito ao conceito histrico, a continuidade de recepes a partir de uma primeira,

32

atribuindo significados variveis e, ao mesmo tempo, atualizando a obra, permite que um determinado texto tenha, agregado a ele, novos valores. Em outras palavras, as diferentes recepes que a obra literria pode apresentar se modificam de forma constante, atualizando a leitura. Criticando as diferentes vertentes que procuram dar ao texto literrio um aspecto estereotipado, Jauss tenta mostrar os pontos negativos de cada uma delas, pois, segundo ele, todas apresentam falhas, por sempre deixarem algum aspecto de lado. Sob esse ponto de vista, as obras literrias sempre acabam sendo analisadas sob uma nica viso, limitando, assim, suas possibilidades. Dessa forma, para Jauss, a teoria estruturalista, preocupada com a forma e a estrutura das obras literrias, perde-se em meio a essa anlise. Assim, o texto real, assim como o seu contexto, fica estranhamente em segundo plano, mesmo que os adeptos dessa teoria insistam em dizer que a estrutura o caminho mais fcil para se atingir a compreenso do texto. Em relao Sociologia da Literatura, Jauss acredita que a forte influncia marxista sobre a arte reduziu a grandiosidade do texto literrio a um mero reflexo de estruturas sociais. Em outras palavras, o reflexo da sociedade estaria imanente no texto, representando-o pura e simplesmente em uma relao de

verossimilhana. O Formalismo outra teoria criticada por Jauss, por desconsiderar os fatores condicionantes da histria literria, permitindo ao texto um automatismo no qual o leitor posto em segundo plano. Ora, um texto somente poder ser considerado manifestao artstica se for percebido por algum. Na tentativa de aproximar aspectos histricos e estticos que o Estruturalismo e o Marxismo separam, Jauss insere o leitor no bojo dos estudos literrios, a fim de refazer a histria da literatura:A histria da literatura um processo de recepo e produo esttica que se realiza na atualizao dos textos literrios por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crtico, que sobre eles reflete. (JAUSS, 1994, p. 25)

33

Alm disso, para Jauss, todo texto literrio, a partir de sinais e elementos estruturais ou no, indica caminhos a serem percorridos pelos leitores. Desse modo, permite antecipar a sua recepo e despertar lembranas que remetem a leituras anteriores. Esses so os chamados repertrios, que podem se expandir ou permanecer inalterados, conforme a qualidade esttica e o conhecimento esttico do leitor, dependendo, para isso, das normas extra-textuais, alm das aluses literrias. Com isso, Jauss afirma que no se trata de mera reproduo, mas de funcionalizao, posto que dado ao texto ou obra um novo contexto. Jauss tambm prope que a histria literria possa articular a recepo de determinado texto em sua atualidade, de modo sincrnico, quanto forma como ele pode ser recepcionado ao longo de seu percurso histrico, e, de forma diacrnica, relacionando-se com as experincias vividas pelo leitor, na poca em que ele se encontra. no sentido da historicidade da literatura que o autor se prope a fazer uma relao com o passado, ou seja, ocupa-se tanto do estudo das primeiras recepes como das mudanas de horizontes. Esse postulado permite compreender que o significado de uma obra no est inerente ao presente de sua escrita, mas muda conforme as recepes feitas no decorrer do tempo, atualizando-se a cada nova recepo. nesse contexto que surge a gnese da Esttica da Recepo, ou seja, o leitor/pblico, em um primeiro momento, recebe o texto e o compara com textos lidos anteriormente, construindo uma outra dimenso do texto, o que comprova que h, em seu interior, um significado histrico e um valor esttico, em uma relao dialgica. Alm disso, a historicidade da literatura acaba sendo recuperada, pois ela se reaproximar do pblico, havendo, assim, uma retomada dos aspectos estticos e histricos que cada texto traz em seu interior.

2.3.2 A TEORIA DO EFEITO

Tomando o aspecto individual da leitura, Iser (1999) considera o leitor como o responsvel pela atualizao do texto literrio, uma vez que o repertrio e as

34

estratgias textuais pr-estruturam o potencial do texto. Pode-se, nesse sentido, pensar que a leitura pensada sob dois plos: o do leitor (esttico) e o artstico (estrutura do texto). Para o terico, a situao comunicativa s possvel pela unio da estrutura do texto (o mundo constitudo pela viso do autor) com a estrutura do ato da leitura (feito pelo leitor e pela construo do sentido). Iser, a partir dos estudos da teoria do leitor implcito, afirma que o leitor est pressuposto no texto, mas a obra tambm possui importncia, uma vez que ela que vai gerar um efeito em seu recebedor, ou seja, vai dirigir a leitura, estabelecendo a comunicao. Ingarden, em A obra de arte literria, de 1930, analisa esse aspecto, ao abordar a disponibilidade da obra literria, atravs das lacunas e dos pontos de indeterminao. Com isso, a obra deixa de ser simplesmente obra de arte e passa a constituir um objeto esttico, a partir da multiplicidade de concretizaes estruturadas por sujeitos/leitores conscientes daquilo que lem. (SILVA, 2006). Para Iser (1979), o texto literrio caracteriza-se por ser incompleto, sendo que na leitura que ter sua concretizao, ou seja, haver um processo de interao entre texto e leitor, no qual este preencher as lacunas e os pontos de indeterminao contidos no interior do texto. Para que isso ocorra, o leitor deve ser educado para fazer uma leitura adequada, criando uma atmosfera literria, de modo que haver uma influncia determinante para as concretizaes. Iser afirma que:

O autor e o leitor participam portanto de um jogo de fantasia; jogo que sequer se iniciaria se o texto pretendesse ser algo mais do que uma regra de jogo. que a leitura s se torna um prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades. Sem dvida, h limites de tolerncia para essa produtividade; eles so ultrapassados quando o autor diz tudo claramente ou quando o que est sendo dito ameaa dissolver-se e torna-se difuso; nesse caso, o tdio e a fadiga representam situaes-limite, indicando em princpio o fim de nossa participao. (ISER, 1999, v. 2, p. 10-11)

Portanto, o autor prev o seu leitor, ao criar determinado texto, construindo uma espcie de leitor-modelo atravs das estratgias textuais. Assim, o leitor

35

crtico sempre l, questionando os motivos pelos quais o texto se encaminhou por determinadas formas e por que o texto produziu determinado efeito. Uma das tarefas da Teoria do Efeito pode ser tambm auxiliar a fundamentar a discusso dos processos individuais da leitura e da sua interpretao. Os objetivos da Teoria do Efeito consistem em estudar os modos pelos quais ocorre a assimilao do texto literrio por parte do leitor, as experincias que o mesmo transmite e a funo que os textos literrios desempenham em determinados contextos. Para tanto, Iser (1999) cria alguns conceitos que reforam a importncia do leitor, no que tange atribuio de significados ao texto. Entretanto, o terico no descarta os elementos-chave que permeiam o texto literrio, quais sejam: o autor, o texto e o leitor. O efeito vai depender, assim, da participao do leitor e da leitura que este faz do que est pressuposto no texto. Sobre o autor textual, torna-se importante destacar que este considerado um mediador, uma vez que o mundo est sendo representado por uma determinada perspectiva. Nesse sentido, cada texto construdo em uma materialidade, sob o ngulo de algum que percebe o mundo de uma determinada tica. Se o mundo representado pelo autor, tal mundo manifestado a partir de uma materialidade e apresentada ao leitor, que, por seu turno, encontra o papel que deve desempenhar, ao realizar o ato da leitura. Sobre o texto, Iser (1996) comenta que este uma estrutura que, ao mesmo tempo em que conduz a leitura do leitor, o impede de seguir outros caminhos ou pontos de vista diferentes daqueles apresentados pela materialidade. Dessa forma, a perspectiva adotada pelo leitor aquela designada pelo texto. Todo texto procura definir o seu leitor, sustentando-o em suas estratgias de comunicao, esperando que ele o atualize, sem buscar no texto a inteno do autor, mas a inteno do prprio texto. Afinal, o leitor o nico receptor do texto, ou seja, nenhuma anlise alcana efeito se o texto no for lido. Ao realizar o ato da leitura, o leitor deve estar familiarizado com as tcnicas e convenes literrias adotadas pelo texto. Alm disso, tambm preciso que

36

conhea o cdigo pelo qual se manifesta o significado da obra. Pode-se pensar, ento, que o leitor precisa ter o conhecimento de estratgias ou procedimentos que o faa realizar a leitura. Tais procedimentos e estratgias fazem parte de um repertrio que diz respeito, ao mesmo tempo, a normas literrias e conhecimentos extra-textuais que o leitor necessita para ler. No entender do terico, o repertrio concebido como as decises de seleo, pelas quais se incorporam ao texto certas normas de realidades sociais e histricas, mas tambm fragmentos da literatura de outros sculos. (ISER, 1996, v. 1, p. 132). Tais representaes histricas, sociais e convenes se manifestam no repertrio, na medida em que no texto se encena algo familiar, ou seja, representam-se as mesmas normas histricas, sociais e culturais. O repertrio pode oferecer o pano de fundo de que se originou, ao mesmo tempo em que possibilita a abertura para novos ambientes. Isso permite que uma rede de relaes seja estabelecida pelo confronto do que est posto no texto com as novas formas sociais. Iser ressalta tambm as estratgias do texto, responsveis por trazer referncias literrias ao mesmo, com objetivos que podem variar conforme a inteno do texto.

As estratgias precisam esboar as relaes entre os elementos do repertrio, ou seja, delinear determinadas possibilidades de combinao de elementos, que so necessrias para a produo da equivalncia. Elas tambm devem criar relaes entre o contexto de referncia do repertrio por elas organizado e o leitor do texto, que deve atualizar os sistemas de equivalncia. As estratgias organizam, por conseguinte, tanto o material do texto, quanto suas condies comunicativas. (ISER, 1996, v. 1, p. 159)

De forma sumria, podemos dizer que o repertrio compreende o conjunto de normas e aluses textuais. Por outro lado, as estratgias so responsveis pela organizao do repertrio, o qual conduzido por perspectivas textuais, como a do narrador, das personagens etc. Para o terico, a realizao da leitura se d atravs da interseco entre o repertrio do leitor real e o repertrio do texto, ou seja, a existncia de um leitor implcito mostra-se imprescindvel. Assim,

37

o repertrio, composto de convenes que se encontram reorganizadas no texto, reconstri a realidade. As referidas perspectivas so, para Iser (1996), de extrema importncia, uma vez que formam um sistema de perspectividade, que, ao instaurar combinaes por meio do repertrio, passa a constituir um tema. Nesse sentido, pode-se pensar que, ao analisar apenas uma perspectiva, seleciona-se do texto literrio uma forma de ver o mundo, excluindo, concomitantemente, outras perspectivas possveis que a estrutura do texto permite alcanar.

Como sistema da perspectividade, as perspectivas referidas significam que as vises diferentes de um objeto comum podem ser representadas por elas; da segue que nenhuma delas representa totalmente o objeto intencionado do texto. Cada perspectiva no apenas permite uma determinada viso do objeto intencionado, como tambm possibilita a viso das outras. (ISER, 1996, v. 1, p. 179)

O sistema de perspectividade interna do texto, caracterizado pelo autor como estrutura de tema e horizonte, cumpre a funo de regular as atitudes do leitor em relao ao texto. De acordo com Iser, quando um leitor se fixa em um ponto ou em uma perspectiva tem-se o que o terico chama de tema. J o horizonte um tema antigo que serve de pano de fundo para o tema atual, o qual, por sua vez, pode ser alterado conforme as expectativas do leitor, configurandose, assim, como um novo tema para leituras futuras. Para Iser, quando o autor textual insere sua perspectiva no texto literrio, tal realidade, ao confrontar-se com a do leitor, gera um repertrio que entra em choque com o repertrio do leitor e ocasiona fissuras ou lacunas que posteriormente sero preenchidas por meio da relao entre o texto e seu repertrio. Esse movimento de suprir uma necessidade de compreenso denominado por Iser de vazios. Ingarden (1979) foi o primeiro a desenvolver o conceito de vazio; porm, em sua concepo, este se encontra determinado pelo autor textual, como forma de deixar conscientemente pistas para o leitor. Iser retoma o conceito estudado por Ingarden, mas de forma diferente, pois, para ele, os lugares vazios so

38

apresentados como espaos que o leitor poder preencher: os lugares vazios incorporam os rels do texto, porque articulam as perspectivas de apresentao, possibilitando a conexo dos segmentos textuais. (ISER, 1999, v. 2, p. 126). possvel afirmar que os vazios tenham sofrido forte influncia da Hermenutica, uma vez que a mesma pode ser definida, segundo Barthes (1980), como um conjunto de enigmas que permitem ao leitor trilhar caminhos que o levem a desvendar o que est subentendido na obra; sem esse artifcio, o texto torna-se inerte. Nessa construo textual, o que mais est em evidncia a liberdade que o leitor possui no interior desse texto, e com isso que ele reconstri seu texto. Para Iser (1999), esse ocupar um espao vazio no foi dito com a inteno de complementar um espao com aquilo que bem entender; pelo contrrio, o espao deve ser preenchido, de acordo com Iser, por meio das combinaes oferecidas pelo texto. A combinao dos esquemas do texto liberada pelos vazios gera um objeto imaginrio e possibilita a perspectividade, bem como a conexo dos elementos textuais. Iser postula que o prprio texto direciona esse procedimento por meio das estruturas nele veiculadas. Desta forma, o texto literrio j antecipa os resultados do efeito sobre o leitor, mas este que os atualiza de acordo com os prprios princpios de seleo. Os lugares vazios permitem, desse modo, a combinao de aspectos encobertos e comeam a orientar as possibilidades combinatrias do leitor.(ISER, 1999, v. 2, p. 129). Assim, os vazios fazem parte do repertrio do texto, pois permitem ao leitor enxergar algo que estava oculto, atravs das inmeras possibilidades de conexo. Esse permitir enxergar algo leva o leitor a agir no texto, a usar sua capacidade de combinao e de criao, e compreender o que se encontra em seu interior. Quando os lugares vazios aparecem na construo textual, a expectativa do leitor rompida e seu ponto de referncia no se torna mais o dito, mas o no dito, proporcionando ao leitor um impulso de criar, de recriar, de verdadeiramente ler. (ISER, 1999).

39

Diante de todas estas reflexes, percebemos o quanto se faz necessrio, para o professor, refletir sobre a natureza e a funo da literatura, assim como conhecer as diversas abordagens tericas sobre a leitura, especialmente sobre as teorias da recepo. Entendemos que, ao ignorar estas questes, o professor perde a oportunidade de formar leitores. Enquanto a leitura for vista como mero veculo para a aquisio de conhecimentos, enquanto a leitura do texto literrio no for percebida como prazer, crescimento pessoal e humanizao, a escola encontrar srias dificuldades para alcanar o objetivo de promover a leitura como prtica de vida.

40

3 A LITERATURA INFANTIL

No presente captulo, realizamos um apanhado do nascimento da literatura infantil e de sua relao com a organizao social e poltica da Europa do sculo XVII, assim como sua importncia para a solidificao da famlia e de instituies sociais como a escola. Em seguida, relatamos, resumidamente, a trajetria da literatura infantil no Brasil, relacionando-a com os movimentos histricos, sociais e pedaggicos, e finalizamos este captulo, abordando o teatro infantil brasileiro.

3.1 A GNESE BURGUESA

As primeiras obras literrias que foram consideradas como literatura destinada infncia surgiram durante o classicismo francs, no sculo XVII. So elas: as Fbulas, de La Fontaine, As aventuras de Telmaco, de Fnelon e os Contos de Mame Gansa, ou Histrias ou narrativas do tempo passado com moralidades, de Charles Perrault. Esta ltima foi curiosamente atribuda ao filho mais novo de Perrault, conforme esclarecem Marisa Lajolo e Regina Zilberman:

A recusa de Perrault em assinar a primeira edio do livro sintomtica do destino do gnero que inaugura: desde o aparecimento ele ter dificuldades de legitimao. Para um membro da Academia Francesa, escrever uma obra popular representa fazer uma concesso a que ele no podia se permitir. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2003, p. 15-16)

Este fato demonstra que a literatura infantil j nasce sob uma forte dose de preconceito, mas, ironicamente, o mesmo Charles Perrault viria, no futuro, a ser festejado e imortalizado justamente pelo material infantil que produzira. Este seu livro seria, inclusive, considerado um marco na literatura universal, na medida em que desperta um enorme interesse pelos contos de fadas, os quais, at aquele momento, circulavam popularmente na forma de oralidade. A industrializao foi o grande marco do sculo XVIII e teve conseqncias significativas, como a urbanizao, que gerou xodo rural e inchao das cidades,

41

com cintures de misria na periferia urbana, e a consolidao da burguesia que, apoiada no poder do capital, emergiu como classe social. Esta nova classe se legitimou atravs de algumas instituies como a famlia, que, incentivada pelo Estado, passou a ser vista como modelo moderno e ideal. neste modelo de famlia que a criana passou a receber uma ateno especial:

A criana passa a deter um novo papel na sociedade, motivando o aparecimento de objetos industrializados (o brinquedo) e culturais (o livro) ou novos ramos da cincia (a psicologia infantil, a pedagogia ou a pediatria) de que destinatria [...] se a faixa etria equivalente infncia e o indivduo que a atravessa recebem uma srie de atributos que o promovem coletivamente, so esses mesmos fatores que o qualificam de modo negativo, pois ressaltam, em primeiro lugar, virtudes como a fragilidade, a desproteo e a dependncia. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2003, p. 17)

Para dar suporte s necessidades de atendimento criana, outra instituio veio solidificar as bases da burguesia a escola, que, aos poucos, vai ampliando sua ao para todos os segmentos da sociedade, assumindo o papel de mediadora entre a famlia e a sociedade. Por outro lado, a industrializao teve uma influncia direta na literatura, pois possibilitou a produo em srie da arte literria, dando origem cultura de massas. Essa literatura industrial assume a condio de mercadoria e prima pela banalidade dos temas, personagens estereotipados e veiculao de

comportamentos exemplares. nesse contexto, que inclui a industrializao, a ascenso da famlia burguesa e um novo status concedido infncia e escola, que surge a literatura infantil, como um instrumento educativo para as novas geraes. Regina Zilberman comenta esse fato, ao afirmar que[...] a emergncia deste gnero explica-se historicamente, na medida em que aconteceu estreitamente ligada a um contexto social delimitado pela presena da famlia nuclear domstica e particularizao da condio pueril enquanto faixa etria e estado existencial. Por outro lado, tornou-se um dos instrumentos atravs do qual a pedagogia almejou atingir seus objetivos. (ZILBERMAN, 1982, p. 11-12)

42

Esta associao com a pedagogia teve conseqncias duradouras e a literatura infantil sofreu um preconceito que ainda no foi de todo superado. Esta associao, porm, era inevitvel, pois o acesso literatura infantil dependia da capacidade de leitura das crianas e o aprendizado da leitura havia sido delegado escola. Assim como foram estabelecidas leis e regras especiais para a criana, existia tambm uma literatura voltada para o pblico infantil. Mas como definir literatura infantil? Trata-se de uma literatura destinada s crianas ou uma literatura que interessa s crianas? Ao discutir esta questo, Magda Soares cita Carlos Drumond de Andrade:O gnero literatura infantil tem, a meu ver, existncia duvidosa. Haver msica infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literria deixa de constituir alimento para o esprito da criana ou do jovem e se dirige ao esprito do adulto? Qual o bom livro para crianas que no seja lido, com interesse pelo homem feito? Qual o livro de viagens ou aventuras, destinado a adultos, que no possa ser dado criana, desde que vazado em linguagem simples e isento de matria de escndalo? Observados alguns cuidados de linguagem e decncia, a distino preconceituosa se desfaz. Ser a criana um ser parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura tambm parte? Ou ser a literatura infantil algo mutilado, de reduzido, de desvitalizado porque coisa primria, fabricada na persuaso de que a imitao da infncia a prpria infncia? (ANDRADE apud SOARES, 2003, p. 18)

Os livros infantis so escritos por adultos para crianas e, por isso, mostram o mundo que os adultos querem que a criana veja e percebemos que, ao longo do tempo, a escola usou e abusou da literatura para endossar os valores estabelecidos. Das obras pedaggicas do sculo XVIII poucas permaneceram, mas o sucesso dos contos de fadas e de outras obras, como os romances de aventuras, mostra a fora da literatura infantil.

43

3.2 PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA

Passamos agora a um breve histrico do desenvolvimento da literatura infantil brasileira. No Brasil, a literatura infantil surge, efetivamente, entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX, com a urbanizao, a Repblica e a industrializao. Segundo Lajolo e Zilberman,Decorrente dessa acelerada urbanizao que se deu entre o fim do sculo XIX e o comeo do XX, o momento se torna propcio para o aparecimento da literatura infantil. Gestam-se a as massas urbanas que, alm de consumidoras de produtos industrializados, vo constituindo os diferentes pblicos, para os quais se destinam os diversos tipos de publicaes feitos por aqui: as sofisticadas revistas femininas, os romances ligeiros, o material escolar, os livros para crianas. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2003, p. 25)

Nesse perodo, ao lado de uma modernizao problemtica e injusta, a instruo passa a ser valorizada. So realizadas campanhas de alfabetizao e fica patente a falta de um material literrio nacional para atender a demanda do pblico infantil. Vrios foram os escritores e professores que se dedicaram a esta tarefa e, assim, a escola propicia o aparecimento de uma produo didtica e literria dirigida em particular ao pblico infantil. O material literrio produzido traz teor patritico, pedaggico e marcada influncia da literatura estrangeira, como o caso do famoso Atravs do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel Bomfim, inspirado no francs Le tour de la France par deux garons. As obras do perodo trazem algumas caractersticas marcantes, como a presena de personagens infantis estereotipadas na condio de protagonistas e a valorizao da ptria, da famlia e de valores morais como a solidariedade. Ao lado da preocupao com modelos comportamentais exemplares, h uma preocupao com a correo da linguagem, que chega ao ridculo. A gratuidade da arte esquecida e percebe-se que os autores demonstram possuir uma concepo de leitor como um ser passivo. No h ainda nenhuma preocupao com a recepo.

44

No entanto, em 1920, ocorre uma grande mudana, com a publicao, pela Revista do Brasil, de A Menina do Narizinho Arrebitado, livro escrito por Monteiro Lobato, com desenhos de Voltolino:No se passa um dia sem que Lcia v sentar-se beira dgua, na raiz de um velho ingazeiro, alli ficando horas, a ouvir o barulhinho da corrente e a dar comida aos peixes. E elles bem que a conhecem! vir chegando a menina e todos l vm correndo, de longe, com as cabecinhas erguidas numa grande famiteza. Chegam primeiro os piquiras, os guars barrigudinhos, de olhos saltados; vm depois os lambarys ariscos de rabo vermelho; e finalmente uma ou outra parapitinga desconfiada. E nesse divertimento fica a menina at que a tia Anastcia apparea no portozinho do pomar e grite com a sua voz sossegada: Narizinho! Vov est chamando! (LOBATO, 1920, p. 4)

Assim, toda uma legio de personagens fabulosos passa a existir no imaginrio infantil brasileiro, proporcionando aventuras extraordinrias a seus leitores:Certa vez, estando a menina beira do rio, com a sua boneca sentiu os olhos pesados e uma grande lombeira pelo corpo. Estirou-se na relva e logo dormiu, embalada pelo murmurinho do ribeiro. E estava j a sonhar um lindo sonho quando sentiu ccegas no rosto. Arregalou os olhos e, com grande assombro, viu de p na ponta do seu narizinho um peixinho vestido. Vestido sim, pois no! Trazia casaco vermelho, cartola na cabea e flor ao peito: uma galanteza! O animalzinho olhava para o rosto della com ar de quem no est compreendendo coisa nenhuma. (LOBATO, 1920, p. 5)

Em 1921, com a publicao de Narizinho Arrebitado, repete-se o sucesso de Saudade, de Tales de Andrade. O livro adotado nas escolas pblicas do Estado de So Paulo, fazendo de Lobato um autor famoso. Lobato mistura o maravilhoso com o real, com detalhes do cotidiano. D sua personagem Narizinho uma esperteza que maior do que a das meninas da cidade e d Emlia argumentos para discutir assuntos importantes com grande propriedade. Para muitos, Lobato considerado o fundador da literatura infantil latinoamericana. As primeiras histrias mostram um escritor iniciante e talentoso, e as ltimas, um escritor seguro e universal.

45

Em 1931, Reinaes de Narizinho marca o incio da fase mais frtil de literatura infantil brasileira at ento produzida, uma vez que surgem, na prosa e na poesia vrios autores infantis, assim como autores j consagrados comeam a escrever tambm para crianas. O Brasil passa por uma seqncia de acontecimentos e reformas culturais e polticas, como a Semana de Arte Moderna, o motim do Forte de Copacabana e a Escola Nova, movimento reformador da educao com prioridade para a cincia e a tecnologia. Entre as necessidades prementes est o combate ao analfabetismo e, em vista disso, o governo Vargas torna a educao primria obrigatria. Nos meios intelectuais, o perodo marcado pela influncia europia. Desse modo, os escritores inspiram-se na Frana e, principalmente, na vida parisiense, mas valorizam o homem brasileiro e suas razes. Aparece uma linguagem inovadora, experimental, tendo como tema principal o nacionalismo. A literatura infantil foi predominantemente educativa, mas, mesmo assim, houve criatividade e fantasia, como o caso de Lobato. Pouca ousadia foi a caracterstica que prevaleceu na literatura infantil brasileira entre 1940 e 1960. Muitos fatores contriburam para esta falta de criatividade, de acordo com Marisa Lajolo e Regina Zilberman:

A opo por um padro culto, no que se refere ao emprego da lngua portuguesa na narrao e nos dilogos, e a atitude discriminatria perante a fala regional dos grupos mais humildes, endossam a postura normativa e autoritria, adotada pela literatura infantil igualmente no plano temtico. A recusa experimentao e o recuo perante a oralidade, conquista de escritores como Graciliano e Lobato nas dcadas anteriores, comprometem a literatura com uma perspectiva conservadora que, se est afinada tnica literria em evidncia, representa um retrocesso em relao ao patamar atingido antes pelo gnero. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2003, p. 121)

A literatura infantil do perodo se adequou aos ideais de desenvolvimento da poca, s influncias estrangeiras e s necessidades do mercado. Ainda por esses motivos, no deixou de refletir o momento histrico da sociedade brasileira. A partir dos anos 60, a literatura infantil brasileira experimentou um verdadeiro boom de criatividade. Novos autores romperam com a linguagem

46

tradicional, ousaram novos olhares e abordagens inusitadas, para tratar de temas importantes e reais como a injustia social, a pobreza, os preconceitos, as diferenas, os desajustes sociais, problemas familiares e, at mesmo, a morte. A literatura infantil assume, assim, a possibilidade de independncia em relao aos valores pedaggicos. H carncia de material bibliogrfico sobre o perodo dos anos 90 e do incio do sculo XXI. possvel, contudo, observar que a literatura infantil da contemporaneidade exibe facetas diversas. Por um lado, verifica-se uma enorme preocupao com a manuteno do mercado primordialmente escolar, que mantm o vnculo com a educao, mas trata-se agora de uma pedagogia com ares de modernidade. Segundo Lajolo e Zilberman (2003, p. 161), [...] um exame mais atento da produo infantil contempornea revela a permanncia da preocupao educativa, comprometida agora com outros valores, menos tradicionais e acredita-se libertadores. Por outro lado, ntida a maturidade de autores que esto no mesmo patamar dos melhores autores da literatura no infantil. H ainda tendncias de cultura de massa, de pedagogismo, de literatura escapista, mas tambm um fortalecimento da poesia infantil, que rompe com a tradio escolar e assume carter ldico e especulativo. Diante de todas estas reflexes, percebemos que a literatura infantil passa por alguns impasses. Se, de um lado, conquistou uma linguagem independente, madura e respeitada, de outro, continua dependente das instituies escolares, j que a leitura em famlia se torna, cada vez mais, uma lembrana de pocas passadas.

3.3 O GNERO DRAMTICO

Antes de iniciarmos nosso estudo sobre o teatro infantil, entendemos que seja importante situarmos o texto teatral enquanto gnero literrio, considerando algumas de suas especificidades.

47

O teatro comunica, ao vivo, idias, reflexes e conflitos humanos. uma arte contundente e efmera, pois cada representao nica e s permanece na memria de quem a presenciou. Nenhuma forma de documentao corresponde emoo experimentada por uma platia que presencie uma encenao. Segundo Anne Ubersfeld, a representao uma coisa instantnea, perecvel, somente o texto duradouro6 (UBERSFELD, 1978, p. 8). Costa, citando Barthes (1964), declara que o teatro uma densidade de signos:

O que a teatralidade? o teatro menos o texto, uma densidade de signos e de sensaes, construdas sobre o palco a partir do argumento escrito, esta espcie de percepo ecumnica dos artifcios sensoriais, gestos, tons, distncias, substncias, luzes, que submerge o texto na plenitude de sua linguagem exterior. (1964, apud COSTA, 2002, p. 169)

Todos os elementos extra-textuais influenciam na representao, formando uma outra obra. A partir do sculo XX, a moderna teoria do teatro v com cautela uma definio do texto dramtico que o identifique e o diferencie, pois a tendncia contempornea a de que possvel utilizar qualquer tipo de texto para uma eventual encenao. Para Patrice Pavis, todo texto teatralizvel, a partir do momento que o usam em cena (PAVIS, 1999, p. 405). Apesar disso, o texto dramtico, aquele escrito por um dramaturgo com vistas leitura individual, leitura coletiva ou a uma encenao, tem, geralmente, caractersticas prprias. O texto teatral traz, em sua estrutura, marcas especficas: dilogos, conflito, situao dramtica, noo de personagem e, muitas vezes, ausncia de narrador. No modo dramtico, h o uso exclusivo