silva, sguissardi - novas faces da educação superior no brasil

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O minucioso trabalho dos autores demonstra a unidade da matriz ideológico-doutrinária do go - verno Fernando Henrique Cardoso em dois importan- tes campos: na concepção da questão do Estado e na da educação superior; sequer se pode falar da subor- dinação de uma a outra. As políticas executadas, tan- to no campo da chamada reforma do Estado, quanto no da educação superior, correspondem a essa uni- dade, com os desvios, correções de rumo, às vezes oposições menores, que advêm da passagem da dou- trina para a prática política, na qual, costumeiramente, a mídia em geral (...) supõe enxergar fundas diver- gências. Seria fácil, por puro capricho doutrinário oposto, rotulá-las de neoliberais, que é, o que, de fato, são. Mas, para que essa conclusão seja possível, sem apriorismos, os autores procedem a uma rigorosa comparação das concepções relativas ao Estado e sua propalada reforma, assim como àquelas que se refe- rem à educação superior. Nessa comparação, buscam as assumidas matrizes teóricas de que se reclamam os formuladores das reformas, submetendo-as a cri - teriosa crítica. Ademais, procedem à análise das me- didas legais, desde as "reformas" constitucionais até simples portarias, para verificar a implantação e inci- dência das orientações doutrinárias. (Extraído do Prefácio de Francisco de Oliveira) I I r-p \f iriiri l, ) IN! f-IH. •»! t 1 - ir l l I Í-» U V ./V J I H H VH1 : , -í ; v -I -» \/V \l #1M João dos Reis Silva Jr. Valdemar Sguissardi novas FACES da 0üucaçao f .4) ;L ji S li ;:V-, V- V .N ^ /=•' % f: £ S: üi d __T ■■■■■'■;>' /if vn.:T--V Reforma do Estado e mudanças na produção

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Silva, Sguissardi - Novas faces da educação superior no Brasil

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  • O minucioso trabalho dos autores demonstra a unidade da matriz ideolgico-doutrinria do governo Fernando Henrique Cardoso em dois importantes campos: na concepo da questo do Estado e na da educao superior; sequer se pode falar da subordinao de uma a outra. As polticas executadas, tanto no campo da chamada reforma do Estado, quanto no da educao superior, correspondem a essa unidade, com os desvios, correes de rumo, s vezes oposies menores, que advm da passagem da doutrina para a prtica poltica, na qual, costumeiramente, a mdia em geral (...) supe enxergar fundas divergncias. Seria fcil, por puro capricho doutrinrio oposto, rotul-las de neoliberais, que , o que, de fato, so. Mas, para que essa concluso seja possvel, sem apriorismos, os autores procedem a uma rigorosa comparao das concepes relativas ao Estado e sua propalada reforma, assim como quelas que se referem educao superior. Nessa comparao, buscam as assumidas matrizes tericas de que se reclamam os formuladores das reformas, submetendo-as a criteriosa crtica. Ademais, procedem anlise das medidas legais, desde as "reformas" constitucionais at simples portarias, para verificar a implantao e incidncia das orientaes doutrinrias.

    (Extrado do Prefcio de Francisco de Oliveira)I I r-p \

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    Joo dos Reis Silva Jr. Valdemar Sguissardi

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    Reforma do Estado e mudanas na produo

  • Os autores mostram como o processo de liberalizao econmica desencadeado por organismos multilaterais (FMI, Bird, Banco Mundial) no sentido de buscar o equilbrio oramentrio via reduo de gastos pblicos, abertura comercial, privatizao das empresas e dos servios pblicos entre eles os de educao e sade , acrescidos das reformas do aparelho do Estado e das respectivas legislaes educacionais, dentre outras transformaes, reconfigura por completo o campo do ensino superior brasileiro. As conseqncias se fizeram sentir rapidamente, dadas pela ampliao assombrosa do setor privado, com a avaliao institucional assumindo importncia desmedida, como a diversificao e a diferenciao institucionais, assim como a flexibilizao curricular dando o tom.

    A fr n io M endes C atan i Professor da USP

    novasFACESda eDucaosuperior no BrASIL

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    BMTOftA AFILIADA

  • UNIVERSIDADE SO FRANCISCO Reitor: Frei Constncio Nogara, OFM Diretor do IF AN: Frei Orlando Bemardi, OFM Coordenador do CDAPH: Marcos de Cezar Freitas Historigrafa do CDAPH: Maria de Ftima Guimares Bueno

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Silva Junior, Joo dos ReisNovas faces da educao superior no Brasil / Joo dos Reis

    Silva Jr., Valdemar Sguissardi; prefcio de Francisco de Oliveira - 2. ed. rev. - So Paulo : Cortez ; Bragana Paulista, SP :USF-IFAN, 2001

    BibliografiaISBN 85-249-0770-3 (Cortez)

    1. Ensino superior - Brasil 2. Ensino superior - Brasil - Avaliao 3. Ensino superior-Brasil-Histria 4. Ensino superior e Estado - Brasil 5. Poltica e educao - Brasil 6. Reforma do ensino - Brasil I. Sguissardi, Valdemar. II. Ttulo.

    01-0587________________________________________________CDD-378.81

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. B rasil: Educao superior 378.81

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    Joo dos Reis Silva Jr. Valdemar Sguissardi x

    novasFACESda eDucaosuperior no BrASIL

    PrefcioFrancisco de Oliveira

    2 - edio revista

    Biblioteca ViHato Corra Rua Sena Madureira, 298 - V. Mariana

    So Paulo - SP - F. 5573-4017 biblioteca [email protected]*

    ESTUDOS CDAPHCENTRO DE DOCUMENTAO E APOIO PESQUISA

    EM HISTRIA DA EDUCAO INSTITUTO FRANCISCANO DE ANTROPOLOGIA

    UNIVERSIDADE SO FRANCISCO

  • NOVAS FACES DA EDUCAO SUPERIOR NO BRASIL: Reforma do Estadoe mudana na produoJoo dos Reis Silva Jr. e Valdemar Sguissardi

    Capa: Csar Landucci

    Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorizao expressa dos autores e dos editores.

    2001 by Autores

    Direitos para esta edioCORTEZ EDITORARua Bartira, 317 - Perdizes05009-000 - So Paulo - SPTel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290E-mail: [email protected]

    IFAN-USFAv. So Francisco de Assis, 218 12900-000 - Campus de Bragana Paulista Tel.: (11)7844-8000

    Impresso no Brasil - fevereiro de 2001

    PRINCIPAIS SIGLAS UTILIZADAS

    ABMESABRUCABRUEMADADCTANDES-SN

    ANDIFES

    ANPEd

    ANUPBIDBIRDCEP ALCFCLTCNPqCONADCONFENENCRUBDCNEAPESESPFASUBRA

    FE/USPFMIFUNDESPFUNADESP

    GEDGERESGTHIPCIESIFES

    Associao Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior Associao Brasileira de Universidades Comunitrias Associao Brasileira de Universidades Estaduais e Municipais Associao de DocentesAto das Disposies Constitucionais Transitrias Associao Nacional de Docentes do Ensino Superior - Sindicato NacionalAssociao Nacional dos Dirigentes de Instituies Federais de Ensino SuperiorAssociao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em EducaoAssociao Nacional de Universidades ParticularesBanco Interamericano de DesenvolvimentoBanco Internacional de Reconstruo e DesenvolvimentoComisso Econmica para a Amrica LatinaConstituio FederalConsolidao das Leis do TrabalhoConselho Nacional de PesquisasConselho Nacional de Associaes de DocentesConfederao Nacional de Estabelecimentos de EnsinoConselho dos Reitores das Universidades BrasileirasDirio do Congresso NacionalEquipe de Assessoria para o Planejamento do Ensino Superior Ensino Superior PrivadoFederao das Associaes de Servidores das Universidades BrasileirasFaculdade de Educao da Universidade de So Paulo Fundo Monetrio InternacionalFundao de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular Fundao Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior ParticularGratificao de Estmulo DocnciaGrupo Executivo de Reforma do Ensino SuperiorGrupo de TrabalhoHeavily Indebted Poor CountriesInstituies de Ensino SuperiorInstituies Federais de Ensino Superior

  • ITALACLDBMAREMECMPOCCOSPAIUB

    PECPIBPIDPNDCPSDBPUCPUCRCE

    RJUSEMESP/SP

    UEE-SPULBRAUMESPUNAMAUnBUNEUNESCO

    UNIBUNIBANUNICAMPUNICIDUNICSULUNIFRANUNIPUSAIDUSP

    Instituto Tecnolgico da Aeronutica Latin America and Caribe Lei de Diretrizes e BasesMinistrio da Administrao Federal e da Reforma do EstadoMinistrio da Educao e dos DesportosMedida ProvisriaOramento de Custeio e CapitalOrganizao SocialPrograma de Avaliao Institucional das Universidades BrasileirasProposta de Emenda Constitucional Produto Interno Bruto Programa de Incentivo Docncia Plano Nacional de Capacitao Docente Partido da Social Democracia Brasileira Pontifcia Universidade CatlicaPlano nico de Classificao e Retribuio de Cargos e EmpregosRegime Jurdico nicoSindicato das Entidades Mantenedoras do Estabelecimentode Ensino Superior no Estado de So PauloUnio Estadual de Estudantes - So PauloUniversidade Luterana do BrasilUniversidade Metodista de So PauloUniversidade da AmazniaUniversidade de BrasliaUnio Nacional de EstudantesUnited Nations Educational, Scientific and CulturalOrganisationUniversidade IbirapueraUniversidade BandeirantesUniversidade Estadual de CampinasUniversidade Cidade de S. PauloUniversidade Cruzeiro do SulUniversidade de FrancaUniversidade PaulistaUnited States Agency for Internacional Development Universidade de So Paulo

    SUM RIO

    Prefcio........................................................................................................ 07

    Introduo.................................................................................................... 15

    CAPTULO IEstratgia e aes governamentais para a reconfiguraodo Estado e da educao superior.............................................................25Reforma do Aparelho do Estado e da Educao Superiorno mbito do MARE...................................................................................28Reforma da Educao Superior no mbito do M EC............................. 46

    CAPTULO IIO pblico e o privado em face da tendncia demercantilizao da educao superior......................................................75O estatal, o pblico e o privado no capitalism o.................................. 81A expanso do capital e sua racionalidade intrnseca............................96A mercantilizao do campo educacional............................................. 101Do Estado de Bem-Estar Social ao Estado Gestor:ampliao do privado e restrio do pblico........................................104

    CAPTULO m O setor universitrio pblico eas aes de reforma da educao superior............................................. 121As Instituies Federais de Ensino Superior(lEES)diante das aes de reforma..................................................................... 123Os dirigentes das EFES e as aes de reforma.....................................123O movimento docente das IFES e as aes de reform a..................136

    CAPTULO IV O setor universitrio privado eas aes de reforma da educao superior............................................. 177A Educao Superior Privada nos anos setenta e oitenta................... 177O setor privado nos anos noventa.........................................................193

    CONCLUSO.......................................................................................... 257

    Bibliografia................................................................................................273

    Posfcio........................................................................................................... I

  • PREFCIO

    A FACE DO HORROR

    Conta-se uma anedota a respeito de um dilogo (sem eufemismos, um interrogatrio) entre os militares alemes ocupantes da Frana e Picasso:

    - Foi o senhor o autor desse horror? perguntaram-lhe os nazistas sobre Guemica.

    - No, foram os senhores! respondeu-lhes o genial andaluz.O livro de Joo dos Reis Silva Jnior e Valdemar Sguissardi

    a narrativa, crtica, do horror que est sendo perpetrado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso na educao superior. Se verdade que a concepo com que esse governo racionaliza sua atuao a mesma que grassa intemacionalmente e, no caso em espcie, da educao superior, defendida e aplicada por importantes organismos como o Banco Mundial e o Banco Interamericano, o que, em primeira instncia, o tomaria apenas caudatrio de tendncias do neoliberalismo global, tambm verdade que as concepes, pressupostos e teorias que dirigem essa ao esto sendo defendidas e propagadas h mais de uma dcada, pelos que fizeram o NUPES-Ncleo de Estudos sobre Ensino Superior da USP. No acidentalmente, alguns dos antigos principais pesquisadores do NUPES ocupam postos-chaves em setores decisivos para a formulao e implementao das polticas educacionais no aparelho de Estado; outros, ainda que deslocados para funes no diretamente envolvidas com a educao superior, influenciam notavelmente o que se passa na rea, e outros, mesmo no tendo participado do NUPES, atuam como fortes "publicizadores" - termo to caro a Bresser Pereira - dessas orientaes. O que se quer dizer com isso que as concepes privatistas e a atuao conseqentemente privatizante desse governo sobre a educao superior so partes importantes de sua matriz terico-ideolgico-doutrinria. Ao contrrio, pois, do que se pensa, o governo de Fernando Henrique Cardoso no prisioneiro de concepes que lhe so impostas: um de seus principais formuladores no campo prprio da educao superior.

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  • O minucioso trabalho dos autores demonstra a unidade da matriz ideolgico-doutrinria do governo Fernando Henrique Cardoso em dois importantes campos: na concepo da questo do Estado e na da educao superior; sequer se pode falar da subordinao de uma a outra. As polticas executadas, tanto no campo da chamada reforma do Estado, quanto no da educao superior, correspondem a essa unidade, com os desvios, correes de ramo, s vezes oposies menores, que advm da passagem da doutrina para a prtica poltica, na qual, costumeiramente, a mdia em geral, voyeurista e vazia, supe enxergar fundas divergncias.

    Seria fcil, por puro capricho doutrinrio oposto, rotul-las de neoliberais, que o que, de fato, so. Mas, para que essa concluso seja possvel, sem apriorismos, os autores procedem a uma rigorosa comparao das concepes relativas ao Estado e sua propalada reforma, assim como quelas que se referem educao superior. Nessa comparao, buscam as assumidas matrizes tericas de que se reclamam os formuladores das reformas, submetendo-as a criteriosa crtica. Ademais, procedem anlise das medidas legais, desde as "reformas" constitucionais at simples portarias, para verificar a implantao e incidncia das orientaes doutrinrias. O resultado , de um lado, aterrador, e de outro, revela uma insuspeitada pobreza terico-metodolgica por parte dos arrogantes donos da verdade do tucanato.

    A pretenso de sustentao em bases tericas para a reforma do Estado mais explcita e jactanciosa nos escritos de Luis Carlos Bresser Pereira, em seu exerccio no Ministrio da Administrao e da Reforma do Estado -MARE. J as formulaes que partem da rea da educao superior baseiam-se, nas mais das vezes, apenas numa pobre compreenso do papel do dficit oramentrio no capitalismo contemporneo, da insustentabilidade de uma tal progresso, e derivam dessa anlise contbil reflexes sobre o carter elitista - logo eles - de um ensino que atende a poucos, aos mais ricos, e por isso, antidemocrtico. A maior parte dos argumentos no se sustenta empiricamente, como a propalada tese de que os alunos das escolas pblicas superiores pertencem aos estratos mais ricos da sociedade e

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    provm, todos, de escolas particulares no ciclo anterior. Os dados alinhados por Silva Jr. e Sguissardi provam exausto a falcia do pressuposto.

    Examinadas mais de perto, as bases das proposies de Bresser Pereira so, no mnimo, de uma anemia intelectual profunda. Trata-se, no mximo, de um weberianismo de manual. Pois ele diagnostica, do alto de sua oniscincia, que o Estado, no Brasil, mal passou da fase patrimonialista para uma fase racional-burocrtica; na verdade, estagnou a meio da transio. Apesar de tudo, no se trata de completar a obra da estruturao racional-burocrtica, j que esta tampouco adequada na fase atual do capitalismo globalizado. Do que se trata, de implantar uma forma de Estado gerencial. Tudo isso sem se dar conta da crtica de Weber racionalidade burocrtica, sem se acautelar, como advertiu sombriamente o terico da constituio de Weimar, do risco que a burocracia implica para a democracia. E um Weber, para usar a expresso de Gabriel Cohn, apenas resignado, sem perspectiva crtica. A instituio da burocracia, em Bresser Pereira, devida apenas necessidade de evitar-se a corrupo e o nepotismo do sistema feudal. Logo ele, um economista e administrador, revela nunca ter entendido que a burocracia se institui pela necessidade do clculo e da previsibilidade, de que no pode prescindir o capitalismo. Isto diz quase tudo sobre a compreenso terica sobre a burocracia. Pobre Weber!

    Mas a justificativa do carter gerencial, esta permanece no limbo dos piores manuais da "business administration". Esse autor, Bresser Pereira, que nos anos setenta advertia dos perigos do domnio da tecnoburocracia - fazendo, na verdade, um pastiche do Galbraith de O Novo Estado Industrial - no se adverte a ele mesmo para o risco do reducionismo implcito numa concepo gerencial do Estado. O mesmo risco, no lado oposto, dos que reduziram a sociedade ao Estado, nos experimentos socialistas do Leste. O Estado deve aprender da e copiar a empresa privada. As duas racionalidades so do mesmo teor e da mesma natureza. A lgica da competio, destruidora, deve estar no corao do Estado contemporneo. A que se deve essa compreenso ? A crtica de Silva

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  • Jr. e Sguissardi sobre a teorizao do publico no-estatal de Bresser Pereira esclarece.

    A reforma do Estado deve basear-se na "publicizao", conceito caro aos reformadores. Mas o que exatamente "publicizao"? No passa de uma aproximao de publicidade, dar a conhecer, informar. Outra vez estamos em pleno domnio rducionista. Pois "publicizao", na prtica social-democrata deste sculo, universalizada a partir da Grande Depresso, uma operao mediante a qual o pblico se privatiza condio de que o privado no apenas se exponha publicidade, mas se transforme pelos critrios do pblico. Em outras palavras, o macroacordo que o Estado do Bem-Estar opera privatizando parte da riqueza pblica, desde que esse "novo" privado seja modificado pelo interesse pblico, que no uma simples soma dos referidos interesses privados. Assim, subsdios fiscais, por exemplo, que so recursos pblicos, podem ser dados ao setor privado da economia, desde que os resultados advindos dessa operao no sejam apenas dependentes da vontade dos proprietrios do capital. Mas a publicizao do pblico uma operao em que a cobra morde o prprio rabo, posto que ele j , por definio, pblico. Nisto consiste o silogismo, que uma operao mistificadora, do conceito de "pblico" em Bresser Pereira, que fundamenta a reforma do Estado de que o principal "publicitrio".

    Silva Jr. e Sguissardi concedem o benefcio da dvida concepo de pblico integrante das propostas de reforma do Estado e da educao superior. Examinam, por exemplo, o pensamento de Locke, insuspeito, posto que se trata talvez do principal representante do liberalismo que fundamenta a proeminncia do privado, dos interesses individuais, sobre o poltico e o Estado. Para Locke, o pblico basicamente a sociedade, enquanto o estatal uma emanao desse pblico, dessa sociedade. Logo, mesmo na tradio liberal, devolver o que funo do Estado ao pblico, devolv-lo sociedade, o que no faz nenhum sentido. O esforo terico de Bresser Pereira, revela-se, assim, como puro malabarismo intelectual para esconder a proposta de simples privatizao. Noutra tradio, a que vem de Hegel e passa por Marx, o pblico a demarcao do privado

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    em relao ao Estado. Ainda aqui, compreende-se mal por que de novo far-se-ia necessria essa demarcao: a inutilidade do novo conceito mostra-se em toda sua extenso. Pois nem assim, nessa tradio de Hegel que passa por reformulao de Marx e Engels em A Ideologia Alem, o pblico copia o privado: dele se distingue radicalmente, at mesmo para preservar a "comunidade ilusria" sem a qual a ideologia burguesa no se sustentaria. A reformulao do conceito de pblico, ou de esfera pblica, que se espera no final do sculo de natureza a exigir a ultrapassagem do pblico como demarcao burguesa ante o Estado, para coloc-lo num terreno onde, incorporando e reformulando toda a publicizao que j foi elaborada na prtica deste sculo social- democrata; ir alm, como o demonstram as crises do capitalismo globalizado. Esse "pblico" reclamado por Bresser Pereira j existe e sua capacidade para resistir a crises est sendo posta prova cotidianamente: ela nula. Reduzir outra vez o Estado e o pblico a essa caricatura de interesses privados uma regresso conceituai, mscara da regresso/represso brutalizadora.

    No terreno da educao superior, esse risco pode ser fatal. Exatamente porque quando o capitalismo integrou, exponencialmente, a cincia e a tecnologia nos processos produtivos, elas mesmas sendo processos produtivos, toda privatizao da cincia e da tecnologia profundamente, antidemocrtica. No apenas porque a cincia e tecnologia se tomam, pela especializao, mais e mais terreno exclusivo dos especialistas: ao se tomarem corpo e alma do capital, elas se rendem racionalizao formal, orientada apenas por interesses, caminho aberto para o horror, como j sabemos desde Auschwitz, Hiroshima, Nagasaki e Tchemobyl. Propostas de "diferenciao" institucional que vo no sentido de criarem a universidade para os pobres, os meros centros repassadores de conhecimento, e a universidade dos ricos, os centros de excelncia, so profundamente antidemocrticas exatamente porque reforam e ampliam a dualidade real na qual se movem as instituies de ensino superior. Toda proposta democrtica deve caminhar no sentido oposto, buscando, pela universalizao, que toda a sociedade tenha acesso e controle sobre as instituies que produzem o conhecimento e o transformam no apenas

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  • em auxiliares da produo: elas so o prprio processo produtivo. A proposio de "organizaes sociais" no mais que uma apropriao indevida da experincia recente das organizaes no-govemamentais, para produzirem o oposto da decantada "publicizao": elas produziro organizaes sem controle social e poltico, na verdade operadas no conluio do "corporativismo" dos quadros de cada organizo social com o Estado e o setor privado. Este ser o verdadeiro corporativismo e no aquele que se constituiu em besta-fera da retrica neoliberal

    Na tradio liberal, o mercado o lugar da autonomia; por isso, a reduo que o liberalismo opera entre mercado e liberdade. Mas, no bastaram dois ou trs sculos para chegar-se a conhecer que o mercado, mesmo ali onde o liberalismo estruturou a sociedade e o Estado, j no mais, se que alguma vez o foi, o lugar da autonomia, mas da heteronomia? Ser que algum, como Bresser Pereira, que se esforou na crtica tecnoburocracia, pode achar que uma simples eleio modifica o que ele chamava o "modo de produo tecnoburocrtico"? Formidveis concentraes de capital, que poder, vagalhes financeiros que destrem em fraes de segundos penosos processos de acumulao podem, ainda, ser compatveis com doutrinas do mercado como lugar da autonomia?

    Na pior tradio de pensar o Estado e o pblico como simples epifenmenos da economia - crtica que F. H. Cardoso, como cientista social no se cansou de fazer -, pensa-se uma crise do Estado e do pblico sem que nenhuma crise da economia, do capitalismo explique, ainda que parcialmente, as primeiras. Globalizao no visto como crise: apenas o Estado e o pblico, no se adaptando,funcionalisticamente por certo, mesma globalizao, que entram em crise, e, por isso, suas reformas estariam na ordem do dia. Ao invs de pensarem a crise do Estado e do pblico como sintomas de uma crise do capitalismo, onde dficits estatais e seu financiamento pela dvida pblica aparecem como expresses contraditrias de um desenvolvimento das foras produtivas que j no cabem na lei do valor, isto , no podem ser validados como mercadorias, optam por pensar a crise do Estado e do pblico como inadaptaes.

    O conjunto dos pressupostos terico-metodolgicos presente no diagnstico e na formulao de propostas sobre a reforma do Estado

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    e da educao superior, na verdade formam uma fantstica colcha de retalhos, cujos pedaos se contradizem a cada momento. Como, por exemplo, para combater o suposto corporativismo de funcionrios pblicos, e, principalmente, de professores e funcionrios das instituies de ensino superior, pensa-se que os direitos de isonomia devem ser assegurados, por princpio, mas livres da interpretao como direitos subjetivos. Ora, para que o direito no seja apenas expresso jurdica, mas se fundamente na sociabilidade, nada mais necessrio que a subjetivao do direito, a constituio de sujeitos de direito. Toda vez que a negao da subjetividade transformou-se em paradigma a presidir os regimes polticos, estes transitaram, inapelavelmente, para os autoritarismos e fascismos, para o totalitarismo, simplesmente. Entretanto, essa negao do direito subjetivo vai de par, na formulao dos "reformadores", como uma afirmao do indivduo e da democracia! Como costuma dizer Paulo Arantes, o capitalismo fin de sicle j dispensa a homenagem que o vcio faz virtude, isto , j dispensa a prpria ideologia: ele ps-ideolgico. Nenhuma mediao mais entre a realidade e sua representao. Talvez uma das falas do presidente F. H. Cardoso expresse isso como ningum o fez: ".... para poder chegar ao cidado que, numa sociedade democrtica, quem d legitimidade s instituies e que, portanto, se toma cliente privilegiado -j as aspas so dele - dos servios prestados pelo Estado"(Pres. Fernando H. Cardoso, apresentao do Plano Diretor da Reforma do Estado, 25/11/95), citado por Silva Jr. e Sguissardi. Nada mais preciso ser dito: a cidadania reduzida a uma mera clientela, ainda que privilegiada.

    Francisco de Oliveira S. Paulo, Vero de 1999.

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  • INTRODUO

    a poltica de abertura do mercado interno (...); a poltica de conteno fiscal e privatizao de servios pblicos, com o objetivo de reduzir o setor pblico (...); , afinal, a poltica de eliminar direitos previdencirios e trabalhistas, com o intento de diminuir o mbito da seguridade social pblica e a regulao pblica do mercado de trabalho. (Paul Singer, A coligao faltante. FSP, 10.04.98: 3)

    Este estudo, fruto do trabalho de muitas mos,1 pretende identificar algumas das novas faces do Ensino Superior no Brasil nas suas relaes com a atual conjuntura de desenvolvimento das foras produtivas, das relaes de trabalho e da reestruturao do Estado. Identificar as novas faces do Ensino Superior no Brasil um modo de compreend-lo em sua presente crise, nas estratgias e aes oficiais de sua reforma, nas novas configuraes que vem assumindo como resposta a necessidades histricas e/ou ideolgicas. E, tambm, uma forma especfica de compreender o desenvolvimento do capital nas suas atuais relaes com o trabalho, onde ocupam lugar de destaque a cincia e a tecnologia - como foras produtivas -, assim como as novas funes da sociedade civil e os novos papis do Estado.

    Em sua origem este estudo decorre de uma srie de fatos que ensejaram o levantamento de muitas questes. Entre aqueles podem ser arrolados sinttica e aleatoriamente: a) o conhecido processo de liberalizao econmica, proposto a pases como o Brasil por organismos multilaterais (FMI, BIRD/Banco Mundial e outros), que significa a busca de equilbrio oramentrio via reduo de gastos pblicos no setor de servios, abertura comercial, liberalizao financeira (com livre ingresso de capital estrangeiro), 1

    1 Os autores deste estudo puderam contar com a colaborao inestim vel de joven s estudantes, bolsistas do CNPq, entre eles: Sandro D ias, Luciana O. V erdicchio, Adriana Leal, Cludia M artins, N euza M edrado e Fernando K. M eneghetti.

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  • desregulamentao e liberao dos mercados domsticos, privatizao das empresas e dos servios pblicos, entre eles os de educao e sade; b) as principais aes governamentais nos anos recentes seguindo bastante risca tais diretrizes; c) as propostas de reforma do aparelho do Estado, originrias do Ministrio da Administrao Federal e da Reforma do Estado (MARE), que incluem a adoo de conceitos como atividades no-exclusivas do Estado e competitivas (entre elas a educao), propriedade pblica , no-estatal e organizao social, no que, prope-se, deveriam ser transformadas as atuais instituies federais de ensino superior (IFES), e a serem administradas como fundaes pblicas de direito privado e mediante contratos de gesto; d) o combate cerrado ao atual modelo universitrio brasileiro, supostamente seguidor do modelohumboldtiano de universidade, que associa ensino e pesquisa (e extenso), e a adoo de diretrizes e propostas que conduziriam mxima diferenciao institucional das quase 1000 instituies de ensino superior (IES) existentes no pas, 80% das quais privadas, e a uma distino, h muitos anos defendida, entre universidades de pesquisa (centros de excelncia) e universidades (ou instituies isoladas) de ensino; e) a aprovao de legislao e outras normas legais complementares, assim como o envio ao Congresso Nacional de propostas de emendas constitucionais que apontam na direo seja da liberalizao/flexibilizao das IES, seja na implementao de um conceito de autonomia que significa afastamento do Estado da manuteno exclusiva e prioritria das IES oficiais (conforme preceito constitucional), restando-lhes a necessidade de busca de recursos financeiros complementares junto iniciativa privada; e f) as persistentes campanhas, junto aos rgos de comunicao social, de desqualificao, em geral, dos servios pblicos, e, em particular, da educao superior pblica, e valorizao dos servios privados, inclusive das potencialidades da educao superior privada.

    Por outro lado, uma farta literatura recente apresenta estudos que examinam reformas do Estado e da educao superior, em andamento em outros pases, com traos semelhantes aos que marcariam essas mudanas no Brasil. A maior ou menor profundidade

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    do processo de desestatizao/privatizao, por exemplo, uma realidade dependente das conjunturas poltico-econmicas em que ocorreram e ocorrem e do grau de avano de certas conquistas democrticas alcanadas pelos diferentes povos.2 Caberia desde logo perguntar-se, embora a resposta no seja objeto do presente estudo, se o que ocorre no Brasil reproduziria e com que especificidade o que vem ocorrendo em muitos outros pases da Amrica Latina, como o Chile, a Argentina, a Colmbia, o Equador, etc.?3

    2 Cf. Revista Higher Education Policy, v. 8, n. 3, p. 4-29, set./95, que traz estudos sobre o tema, entre os quais: H. BUCHBINDER e P. RAJAGOPAL, Globalization, Deficit Reduction and Canadian Universities: Considering the Contradictions. Higher Education Policy, v. 8, n. 3, p. 23-26, set./95; e D. D. DENTON e B. KELLETT. Freedom to Pay. Higher Education Policy, v. 8, n. 3, p. 43-45, set./95. Cf. tambm, na coletnea de V. SGUISSARDI e J. dos R. SILVA JR (Orgs.). Polticas Pblicas para a Educao Superior (Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1997), os estudos de: L. C. LIMA. O paradigma da educao contbil: polticas educativas e perspectivas gerencialistas no ensino superior em Portugal (p. 23-63); M. D. VASCONCELLOS. As novas polticas para a universidade francesa e a profissionalizao do ensino (p. 81-100).3 Cf. de N. PAVIGLIANITI, M. C. NOSIGLIA e M. MARQUINA Recomposicin dieoconservadora - lugar afectado: la universidad. Buenos Aires: Mino y Dvila Ed., 1996; V. SGUISSARDI. Polticas de Estado e de Educao Superior no Brasil: alguns sinais marcantes da dependncia. Jornadas GEU "Universidade Contempornea: entre o global e o regional", Porto Alegre, UFRGS, 20-22.11.96; D. J. CANO. El Fondo para el Mejoramiento de la Calidad Universitria (FOMEC): Una Estratgia dei Poder Ejecutivo Nacional y dei Banco Mundial para la Reforma de la Educacin Superior Argentina. Revista do Centro de Estdios para la Reforma Universitria (CEPRU). Srie Universidad en Debate, n. 1, s/d, 41 p.; J. LAVADOS M. Discurso de inauguracin dei ano acadmico 1996 "La Creacin dei Futuro" Santiago (Chile), 7.5.96, p. 2. (Disponvel no site da Universidade do Chile na INTERNET). Cf. tambm, na coletnea de V. SGUISSARDI e J. dos R. SILVA JR. (Orgs.). Polticas Pblicas para a Educao Superior. (Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1997), os estudos de: J. C. CAMPBELL E. La universidad en Chile, 1981-1995 (p. 101-120); C. P. KROTSCH. La universidad argentina y los desafios dei cambio: el caso de los posgrados (p. 169-204).

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  • Entre as principais questes que orientaram o desenvolvimento do estudo que nos prximos captulos ser exposto, encontram-se: a) quais e como se caracterizam as estratgias e aes, especialmente oficiais, de reforma do Estado e da educao superior nesse contexto? b) como se articulam a caracterizada crtica da educao superior, particularmente a pblica, e as mudanas que lhe so propostas com as grandes transformaes que vm ocorrendo na base produtiva e na rpida insero da economia brasileira na mundializao do capital, assim como com a reforma do aparelho do Estado? c) qual a abrangncia dessa reforma pontual, mas sistemtica, em termos legais, estruturais e gerenciais? d) em que diagnstico da crise se apia e que pressupostos a orientam? e) sero esses pressupostos os da justia distributiva e da equidade que se confundem com os da privatizao/mercantilizao da esfera pblica (sade, educao, transporte, seguridade social, cincia e pesquisa), da competitividade (mercantil), via diferenciao institucional e uma concepo de autonomia universitria, que pressupe, para as IES pblicas, por exemplo, a busca, cada dia maior de fontes variadas de recursos em substituio ao Estado? f) quais so os pressupostos infra- estruturais econmico-polticos e culturais dessa nova racionalidade da educao superior no Brasil a ser implementada por tais aes de reforma? g) como reagem os principais atores/interlocutores envolvidos pelas estratgias e aes oficiais de reforma, vinculados aos setores pblico e privado? h) Finalmente, como tendem a configurar-se os setores pblico e privado diante da continuidade dessas polticas pblicas para a educao superior?

    Originalmente, dado o ritmo acelerado de implemento das polticas de minimizao do Estado, de valorizao do no-estatal e de criao de ainda melhores condies de ampliao do setor privado, este estudo deveria centrar-se na nova configurao adquirida pelo ensino superior no-oficial e privado. Entretanto, medida que o levantamento de dados e em especial as primeiras anlises foram sendo efetuadas, foi-se verificando que as hipteses com que se trabalhava seriam melhor demonstradas, se se pudesse ampliar o espectro dos indicadores do objeto dessa anlise: ao invs de tomar-se

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    apenas o ensino superior privado e particular em sentido estrito, far-se- ia um estudo abrangendo os aspectos nucleares desse contraditrio processo de reforma e reconfigurao do sistema de educao superior no Brasil, tanto pblico como privado.

    O exame dos fatos anteriormente arrolados, e de seus desdobramentos, e a resposta s questes acima demandaram a identificao de mltiplas fontes de dados e exigiram um difcil trabalho de coleta, sistematizao de categorias de anlise e de anlise propriamente dita. A dificuldade maior na fase da coleta de dados verificou-se na diminuta resposta aos questionrios enviados a duas centenas de IES particulares do estado de S. Paulo; na fase da anlise, o grande volume de informaes que necessitaram de sistematizao e categorizao para adquirirem o sentido e o significado que delas se deve poder esperar.

    A resposta s questes acima, visando caracterizar o processo de mudanas tpicas por que vem passando a educao superior no pas no interior de um movimento mais amplo de mudanas na economia (base produtiva) e na reconfigurao do Estado e suas consequncias sobre a estrutura e funcionamento desse nvel de ensino, requer que se considere como pressuposto e como hiptese que esse processo de reforma, no Brasil, como em outros pases da Amrica Latin#, e, por que no dizer, nos pases centrais, est se dando no contexto e como conseqncia: a) do movimento de passagem do regime de acumulao fordista para o denominado de acumulao flexvel (mundializao do capital, financeirizao, desemprego, desregulamentao da economia, etc.); b) do movimento da propalada diminuio do Estado, que se apresenta contraditoriamente como privatizao do Estado e como um processo de desconcentrao e maior controle sobre todos os setores da economia e dos servios do Estado (Sade, Educao, etc.); c) do fortalecimento do poder executivo no interior do Estado, no aqui denominado hiperpresidencialismo, que administra atravs do expediente das Medidas Provisrias, renovveis indefinidamente (algumas delas j se encontrando em sua 40a verso!); d) da mudana de concepo do saber como bem coletivo para bem particular/privado que conduz ao

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  • conceito de mercantilizao do saber e da educao; e) da campanha de desprestgio de tudo o que pblico e de superqualificao de tudo o que seja privado, inclusive da educao; f) da desconsiderao de que o desenvolvimento cientfico, especialmente da pesquisa chamada bsica no pode ocorrer sem a contribuio essencial do Estado (recursos pblicos) e de que os interesses privados objetivam em ltima instncia o lucro (ou a verdadeira essncia da Universidade deve conduzir ao lucro ou no ser concebvel entreg-la ao comando e administrao de interesses empresariais privados); g) da indisfarada adoo, pelo Poder Executivo (MARE e MEC), das diretrizes dos organismos multilaterais (FMI, BIRD, BID, etc.) para a implementao das reformas estruturais que se processam no aparelho do Estado e no sistema de educao superior no Brasil; h) da dependncia das reformas do MEC s diretrizes do MARE e dos Ministrios da rea econmica, o que condiciona, em grande medida, as mudanas da universidade s propostas desses ministrios, que se apresentam ostensivamente como de natureza econmica e gerencial, fazendo das teorias administrativas verdadeiras teorias polticas.

    Os resultados deste estudo sero apresentados em quatro captulos e uma concluso.

    No primeiro captulo, sob o ttulo Estratgia e aes governamentais para a reconfigurao do Estado e da educao superior, sero apresentadas a Reforma do Aparelho do Estado e da Educao Superior no mbito do MARE e a Reforma da Educao Superior no mbito do MEC e destacados alguns aspectos ou caractersticas marcantes dessas aes oficiais de reforma, para melhor anlise e demonstrao das reaes dos atores da sociedade civil envolvidos.

    No segundo captulo, sob o ttulo O pblico e o privado em face da tendncia de mercantilizao da educao superior, dada a necessidade de entender-se as razes das reformas em curso, que incluem conceitos novos ou atualizados como propriedade pblica no-estatal, semipblico e semiprivado, entre outros, tenta-se, antes de tudo, recuperar a histria de conceitos como estatal, pblico e privado no capitalismo, desde Locke, Jefferson, Diderot e Marx e suas recentes tradues.

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    Analisa-se o movimento de expanso do capital e sua intrnseca racionalidade, que, entre outros efeitos, produz a mercantilizao do saber, da cincia e do campo educacional. Discute- se, finalmente, o atual movimento de ampliao do espao privado e de restrio do espao pblico, no mbito da passagem do Estado de Bem-Estar Social ao Estado Gestor.

    No terceiro captulo, sob o ttulo O setor universitrio pblico e as aes de reforma da educao superior, apresenta-se a forma como os atores e interlocutores do Estado e representantes das instituies federais de ensino superior participam desse debate e reagem iniciativa governamental de reforma. Nesta apresentao destacam-se o projeto de Lei Orgnica das Universidades, da Associao Nacional dos Dirigentes de Instituies Federais de Ensino Superior (ANDIFES), e a Proposta para a Universidade Brasileira, da Associao Nacional de Docentes do Ensino Superior (ANDES-SN).

    Este captulo conclui-se com um levantamento de temas ou questes em relao aos quais existem divergncias acentuadas e histricas entre esses dois campos de atores e interlocutores em confronto, entre eles, o conceito de pblico e privado e a responsabilidade do Estado na educao superior; o modelo de universidade - de pesquisa e/ou de ensino - e a diferenciao institucional; a questo da autonomia: gesto financeija ou autonomia financeira e financiamento; e a avaliao institucional e o controle centralizado.

    No quarto captulo, sob o ttulo O setor universitrio privado e as aes de reforma da educao superior, inicia-se por uma anlise do movimento de privatizao desse nvel de ensino durante as dcadas de setenta e oitenta, com o objetivo de mostrar a produo dos condicionantes histricos da educao superior brasileira no incio dos anos noventa. Com base em condicionantes, procura-se analisar as aes dos representantes dos setores estritamente privados e comunitrios ante as aes do governo visando a reconfigurao da educao superior no Brasil, durante os anos noventa.

    Na concluso, baseando-se na articulao dos captulos anteriores, efetua-se uma sntese dos principais aspectos do processo de reconfigurao da educao superior no Brasil, nos anos noventa,

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  • busca-se aprofundar a anlise terico-metodolgica adotada neste estudo e fazem-se consideraes sobre as novas perspectivas que tendem a se pr para esse nvel de ensino.

    A pesquisa cujo resultado aqui se apresenta na forma de livro constituiu-se em longo processo de leitura e anlise de centenas de documentos oficiais, de instituies privadas de educao superior, de entidades associativas de representantes dos setores pblico e privado, bem como de suas publicaes peridicas, consultados inclusive nos respectivos sites na Internet. Foi um rduo trabalho de seleo e organizao das fontes primrias mais relevantes para o objeto de investigao. Por outro lado, as entrevistas efetuadas nos foram de grande valia no entendimento do ponto de partida - o concreto sensvel -, para, em seguida, realizarem-se as anlises e snteses necessrias produo do concreto no pensamento, e, dessa forma, conseguir-se uma primeira aproximao das Novas Faces da Educao Superior no Brasil.

    Por isso, somos sinceramente gratos a Adair Martins Pereira, dson Raymundo Pinheiro de Souza Franco, Hermes Ferreira Figueiredo, Jorge Bastos, Raulino Tramontin, Yugo Okida, Wilson Joo Zampieri, Antonio Carlos Ronca, Roberto Moreira, Gabriel Rodrigues, Valdir J. Lanza, Jussara Dutra Vieira, Maria Cristina De Morais, pela disposio com que nos receberam e nos falaram sobre suas concepes e reaes diante da Reforma do Estado e das Mudanas na Produo, que impuseram uma dinmica nova gesto de suas Instituies.

    Agradecemos em especial a Cleide Rita Silvrio de Almeida pela possibilidade de aproveitamento neste estudo das fontes primrias de que se utilizou em sua tese de doutorado O braso e o logotipo: um estudo das universidades na cidade de So Paulo, defendida na Faculdade de Educao da USP, em 1997, ao Prof. Almir de Sousa Maia, Reitor da Universidade M etodista de Piracicaba - UNIMEP, pela gentil cesso de documentos de seu arquivo pessoal e ao Prof. Marcos Czar de Freitas, por ter acolhido prontamente e com grande simpatia os originais deste estudo e tomado possvel sua publicao.

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    Destaque-se que, ao longo de todo processo de pesquisa, publicamos vrios artigos, captulos de livros e coletneas4 sobre o

    4 Joo do Reis Silva Jr. Tendncias do Ensino Superior Brasileiro diante da Atual Reestruturao do Processo Produtivo no Brasil. Em: CATANI, Afrnio (Org.) Universidade na Amrica Latina: tendncias e perspectivas. So Paulo: Cortez Editora, 1996;Joo dos Reis Silva Jr. e Valdemar Sguissardi. Reforma do Estado e da Educao Superior no Brasil. In: SGUISSARDI, V. Avaliao universitria em questo. Campinas: Editora Autores Associados, 1997;Joo dos Reis Silva Jr. e Valdemar Sguissardi. Reconfigurao da Educao Superior e Redefinio das Esferas Pblica e Privada no Brasil. Piracicaba: UNIMEP, 1997. (texto apresentado em Sesso Especial na 20a Reunio da ANPEd, Caxambu, 1997.); Joo dos Reis Silva Jr. e Valdemar Sguissardi. Reconfigurao da Educao Superior e Redefinio das Esferas Pblica e Privada no Brasil (Artigo publicado na ntegra nos Anais do Seminrio Internacional Reflexiones sobre la Educacin Superior en la Amrica Latina, Caracas, julho de 1998, Federacin de las Asociaciones de Profesores Universitrios de Venezuela e La Fundacin Gran Mariscai de Ayacucho);Joo dos Reis Silva Jr. e Valdemar Sguissardi. A produo intelectual sobre Educao Superior na Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos - RBEP, no perodo 1968-1995. In: MOROSINI, M., SGUISSARDI, V. A educao superior em perdicos nacionais. Vitria: FCAA/EDUFES e CNPq, 1998.Joo dos Reis Silva Jr. Reformas do Estado e da Educao Superior no Brasil (as aes dos atores em cena e o processo de privatizao). In: CATANI, Afrnio Mendes. Novas perspectivas nas polticas de educao superior na Amrica Latina no Limiar do Sculo XXI. Campinas: Editora Autores Associados, 1998, p. 83-102. Joo dos Reis Silva Jr. A Mercantilizao da Educao Superior no Brasil, nos Anos Noventa. II Encontro de Professores do Ensino Superior na Rede Privada de Minas Gerais. O Pblico e o Privado e os professores de ensino superior. Belo Horizonte, MG: SINPRO, p.21-27, jul./1998;Valdemar Sguissardi. Autonomia Universitria e Mudanas no Ensino Superior: da polissemia do conceito s controvrsias de sua aplicao. In: CATANI, Afrnio Mendes. Novas perspectivas nas polticas de educao superior na Amrica Latina no Limiar do Sculo XXL Campinas: Editora Autores Associados, 1998, p. 29-48;Valdemar Sguissardi. Polticas de Estado e de Educao Superior no Brasil: alguns sinais marcantes da dependncia. In: MERCOSUL/ MERCOCUR: polticas e aes universitrias. Campinas: Autores Associados, 1998, p. 149-171.

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  • tema em tela, que refletiam, a seu tempo, o nvel de compreenso que a investigao nos permitia construir. Tais publicaes ensejaram inmeras possibilidades de discusso com nossos pares e com os sujeitos tambm nela envolvidos. Vale lembrar as muitas palestras e exposies realizadas em quase todo Brasil, em especial no Grupo de Trabalho de Polticas de Educao Superior da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao (Anped), quando, em suas reunies anuais expnhamos e discutamos os resultados parciais do estudo em andamento. Por ltimo, ressalte-se que este livro pretende ser uma espcie de sntese de todos esses debates e publicaes e, a um s tempo, um detalhamento - no plano emprico - e um aprofundamento, no mbito da reflexo terica. Finalmente, registre-se que este estudo s foi possvel graas ao apoio do CNPq e da FAPESP, que concederam bolsas de aperfeioamento e de iniciao cientfica a nossos auxiliares de pesquisa e financiaram parcialmente as despesas desta investigao.

    So Paulo e Piracicaba, 20/10/98 Os Autores 1

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    CAPTULO I

    E s t r a t g i a e a e s G o v e r n a m e n t a i s p a r a a R e c o n f i g u r a o

    d o E s t a d o e d a E d u c a o S u p e r io r

    In t r o d u o

    A crise e a reestruturao do Estado e da educao superior no so fenmenos exclusivos do Brasil, nem apenas de pases do Terceiro Mundo ou da Amrica Latina, mas uma realidade presente e comum maioria dos pases de todas as dimenses, graus de desenvolvimento e latitudes. Trata-se de fenmenos que acompanham as transformaes da base econmica dos diferentes pases, a comear pelos do chamado Primeiro Mundo, e especialmente da Europa Ocidental, onde o trnsito do Fordismo para um novo regime de acumulao e a crise do Estado do Bem-Estar Social se fazem sentir antes e com maior intensidade do que nos demais pases desde os anos 60 e 70 e especialmente nos anos 80. O caso do Chile, na Amrica Latina, na dcada de 70 - pas em que primeiro se deram essas mudanas - talvez seja apenas uma exceo com caractersticas especficas, pois ocorre sob a mo muito visvel de uma ditadura militar (Baer e Maloney, 1997).

    Os resultados relativos tanto s novas e atuais faces do Estado quanto s dos sistemas de educao nesses diferentes pases decorrem de um conjunto de fatores de todas as naturezas, entre os quais no se pode deixar de elencar os avanos sociopolticos dos direitos de cidadania e, no caso da educao superior, do estgio de desenvolvimento desses sistemas em cada nao em particular. No sero apenas fatores gerais que explicaro o que ocorre em cada caso particular, mas sero tambm fatores especficos no interior de cada pas, da estrutura peculiar a cada Estado ou sistema de educao superior que podero facilitar o entendimento das dimenses mais gerais da mudana que se verifica em termos quase globais.1

    1 Para um estudo bastante atual acerca da crise vivida pela universidade, ver: D a Idia de Universidade Universidade de Idias. In: SOUSA SA NTO S, Boaventura de. Pela mo de Alice: o social e o poltico na ps-modemidade. So

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  • Os ajustes estruturais e fiscais e as reformas orientadas para o mercado tm preocupado polticos e economistas dos pases centrais (e perifricos) e dos organismos multilaterais - como o FMI e BIRD/Banco Mundial - especialmente a partir dos anos oitenta.

    A preocupao desses organismos em relao aos pases do terceiro mundo, no final dos anos 80 e incio dos noventa, revelava-se em alguns eixos de sua concepo de desenvolvimento/crescimento,que, nos termos do chamado Consenso de Washington, assim se traduziam:

    1. equilbrio oramentrio, sobretudo mediante a reduo dos gastos pblicos;

    2. abertura comercial, pela reduo das tarifas de importao e eliminao das barreiras no-tarifrias;

    3. liberalizao financeira, por meio de reformulao das normas que restringem o ingresso de capital estrangeiro;

    4. desregulamentao dos mercados domsticos, pela eliminao dos instrumentos de interveno do Estado, como controle de preos, incentivos, etc.;

    5. privatizao das empresas e dos servios pblicos (Soares, 1996: 23, grifos nossos).

    Este processo, conhecido como de liberalizao econmica, que, nos pases do primeiro mundo, se inicia sob os governos Thatcher (GB), Kohl (Alemanha) e Reagan (EUA), na Amrica Latina, tem aproximadamente as seguintes datas de incio: Chile (1976), Mxico (1986), Argentina (1988), Colmbia e Venezuela (1989) Brasil e Peru (1990) (Baer e Maloney, 1997: 42).

    Alm do incremento integrao com a economia mundial, enfatiza-se o papel do mercado na alocao de recursos e a diminuio do papel do Estado e acena-se, como horizonte, para um crescimento

    Paulo: Cortez, 1996, p. 187-226, onde esse autor a examina sob trs aspectos principais - como crise de hegemonia e de legitimidade e como crise institucional - e prope algumas teses "para uma universidade pautada pela cincia ps- moderna.

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    rpido, eficiente e sem os percalos dos modelos anteriores (Baer e Maloney, 1997: 39).

    As medidas recomendadas so relativas a ajuste fiscal, privatizao, liberao/ajuste de preos, desregulamentao do setor financeiro, liberao do comrcio, incentivo ao investimento externo, reforma do sistema de previdncia/seguridade social e reforma do mercado de trabalho.

    Segundo Bresser Pereira, que comanda, no atual Governo (Ministrio da Administrao Federal e da Reforma do Estado - MARE), a reforma do Aparelho do Estado, "Nos anos 90, embora o ajuste estrutural permanea entre os principais objetivos, a nfase deslocou-se para a reforma do Estado, particularmente para a reforma administrativa. Para ele, a questo central que se coloca "como reconstruir o Estado - como redefinir o novo Estado que est surgindo em um mundo globalizado" (Bresser Pereira, 1997: 27).

    O esforo oficial de reforma do Aparelho do Estado (reforma administrativa, especialmente), que se inicia, em 1990, no Governo Collor de Mello, e que relaxado durante do Governo Itamar Franco, recrudesce com o Governo de Fernando Henrique Cardoso a partir de 1995 e ao ser a ento Secretaria da Administrao Federal transformada no MARE, sob o comando do Ministro Luiz Carlos Bresser Pereiraj

    no mbito dessa reforma que se pode, sob muitos aspectos, situar a estratgia e as aes oficiais de reforma da educao superior no pas.

    Antes de tudo, verifiquemos quais so as idias centrais dessa reforma do Estado e quais suas principais propostas. Em seguida, identifiquemos quais so as principais idias que fundamentam as propostas de reforma da educao superior e quais so as principais medidas postas em prtica para sua concretizao.

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  • R e f o r m a d o A p a r e l h o d o E s t a d o e d a E d u c a o S u p e r io r n o m b it o d o MARE

    O MARE, desde o incio do atual Governo, vem capitaneando a Reforma do Aparelho do Estado. Para tanto, implementa um amplo programa de aes cujas justificativas so detalhadamente apresentadas pelo Ministro Bresser Pereira, em livros recentemente publicados (1996), (1998) e (Bresser Pereira, L. C. et al. 1998). Ao Ministro, a reforma do Estado impe-se a partir dos anos 90 e isto em decorrncia do processo de globalizao, que teria reduzido a autonomia dos Estados na formulao e implemento de polticas, assim como a partir do que chama de crise do Estado que se teria iniciado nos anos 70 e assumido plena definio nos anos 80. No Brasil a crise seria caudatria da grande crise econmica, que culmina no fenmeno da hiperinflao, quando, ento, a reforma do Estado ter-se-ia tomado uma exigncia imperiosa.

    A reforma do Estado, entretanto, s se tomou um tema central no Brasil em 1995, aps a eleio e a posse de Fernando Henrique Cardoso. Nesse ano, ficou claro para a sociedade brasileira que essa reforma toma-se condio, de um lado, da consolidao do ajuste fiscal do Estado brasileiro e, de outro, da existncia no pas de um servio pblico moderno, profissional, voltado para o atendimento dos cidados. (Bresser Pereira, 1996: 269)

    A chamada modernizao ou o aumento de eficincia da administrao pblica ser, para o Ministro, resultado de um complexo projeto de reforma, que vise a um s tempo o fortalecimento da administrao pblica direta - ncleo estratgico do Estado - e a descentralizao da administrao pblica com a "implantao de 'agncias executivas' e de 'organizaes sociais' controladas por contrato de gesto" (nfase nossa).

    A estratgia do Ministro foi uma cerrada campanha por todos os meios de comunicao, freqentes artigos nos principais jornais do

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    pas, conferncias em fruns nacionais e mesmo do exterior com repercusso no Brasil.

    Em uma de suas diferentes formas de sistematizar suas idias a respeito da reforma do Estado brasileiro, assim o Ministro Bresser Pereira definia o que para ele significava essa reforma:

    ...significa superar de vez a crise fiscal, de forma que o pas volte a apresentar uma poupana pblica que lhe permita estabilizar solidamente os preos e financiar os investimentos. Significa completar a mudana na forma de interveno do Estado no plano econmico e social, atravs de reformas voltadas para o mercado e para a justia social. Reformar o Estado significa, finalmente, rever a estrutura do aparelho estatal e do seu pessoal, a partir de uma crtica no apenas das velhas prticas patrimonialistas ou clientelistas, mas tambm do modelo burocrtico clssico, com o objetivo de tomar seus servios mais baratos e de melhor qualidade. (Bresser Pereira, 1995: 1)

    O ministro considerava, ento, a crise do Estado (crise fiscal, crise do modo de interveno da economia e do social e crise do aparelho do Estado) a causa fundamental da crise econmica por que o pas vinha passando nos 15 anos anteriores. Por crise fiscal, entendia a perda do crdito pblico e a poupana pblica negativa. Por crise do modo de interveno, o "esgotamento do modelo protecionista de substituio de importaes, que foi bem sucedido nos anos de 1930, 1940, 1950, mas que deixou de s-lo h muito tempo" (Bresser Pereira, 1991: 1). Finalmente, por crise do aparelho do Estado, objeto de sua principal preocupao, o ministro entendia a ocorrncia do clientelismo, da profissionalizao insuficiente e que, a partir da Constituio de 88, sofreria de mal oposto: "do enrigecimento burocrtico extremo".

    Para o Ministro, a quarta crise - a da poltica, do regime autoritrio, do pacto burocrtico-capitalista - j estaria superada com a eleio de 1994.

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  • No seu diagnstico da situao do aparelho do Estado afirmava que a Constituio de 88, tentando voltar aos anos 50, teria voltado aos anos 30, tal o arcasmo que via nas solues constitucionais encontradas. Condena quase tudo o que a Constituio de 88 teria normatizado no campo da administrao estatal, em especial a fixao do Regime Jurdico nico do funcionalismo pblico federal e a transformao de celetistas em estatutrios.

    Os constituintes de 1988, entretanto, no perceberam a crise fiscal, muito menos a crise do aparelho de Estado. No viram, portanto, que agora era necessrio reconstruir o Estado. Que era preciso recuperar a poupana pblica. Que era preciso dotar o Estado de novas formas de interveno mais leves, em que a competio tivesse um papel mais importante. Que era urgente montar uma administrao no apenas profissionalizada, mas tambm eficiente e orientada para o atendimento dos cidados (Bresser Pereira, 1995:5).

    Em janeiro de 1995, em conferncia proferida em Seminrio sobre Reforma Constitucional, sob o patrocnio da Presidncia da Repblica, Bresser Pereira defendia a tese de que o Estado moderno, social-democrata, se constituiria de duas esferas fundamentais: "um ncleo burocrtico2 voltado para consecuo das funes exclusivas do

    2 O ncleo burocrtico corresponde ao poder legislativo, ao poder judicirio, e, no poder executivo, s foras armadas, polcia, diplomacia, arrecadao de impostos, administrao do Tesouro pblico, e administrao do pessoal do Estado. Tambm fazem parte desse ncleo as atividades definidoras de polticas pblicas existentes em todos os ministrios. O ncleo burocrtico est voltado para as funes de governo, que nele se exercem de forma exclusiva: legislar e tributar, administrar a justia, garantir a segurana e a ordem interna, defender o pas contra o inimigo externo, e estabelecer polticas de carter econmico, social, cultural e do meio ambiente. (Bresser Perreira, 1995: 7)

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    Estado, e um setor de servios sociais3 e de obras de infra-estrutura" (Bresser Pereira, 1995: 7). Estas seriam premissas fundamentais para as propostas de reforma do aparelho administrativo do Estado.

    Quanto sua natureza, em que se diferenciariam essencialmente esses ncleos? O burocrtico, pela segurana das decises tomadas; o setor de servios, pela qualidade dos servios prestados aos cidados. No ncleo burocrtico, o princpio administrativo fundamental seria o da efetividade, o da capacidade de ver obedecidas e implementadas as decises tomadas; no setor de servios, o princpio correspondente seria o da eficincia, ou seja de uma relao tima entre qualidade e custo dos servios colocados disposio do pblico (Bresser Pereira, 1995: 7).

    Em seu livro, de 1996, Crise econmica e reforma do Estado no Brasil - para uma nova interpretao da Amrica Latina (So Paulo: Editora 34), o Ministro oferece um quadro mais detalhado de sua concepo do Estado, hoje:

    A proposta de reforma do aparelho do Estado parte da existncia de quatro setores dentro do Estado: (1) o ncleo estratgico do Estado, (2) as atividades exclusivas do Estado, (3) os servios no-exclusivos ou

    competitivos, e (4) a produo de bens e servios para o mercado. (...) Na Unio, os servios no exclusivos de Estado mais relevantes so as universidades, as escolas tcnicas, os centros de pesquisa, os hospitais e os museus. A reforma proposta a de transform-los em um tipo especial de entidade no-estatal, as organizaes sociais. A idia transform-los, voluntariamente, em organizaes sociais, ou seja, em entidades que celebrem um contrato de gesto

    3 O setor de servios faria parte do Estado, mas no seria governo. Suas funes: as de "...cuidar da educao, da pesquisa, da sade pblica, da cultura, e da seguridade social. So as funes que tambm existem no setor privado e no setor pblico no-estatal das organizaes sem fins lucrativos". (Bresser Pereira, 1995: 7)

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  • com o Poder Executivo e contem com a autorizao do parlamento para participar do oramento pblico. (Bresser Pereira, 1996: 286, nfase nossa)

    Estas distines conduzem ao significado ltimo da reforma do aparelho do Estado:

    (1) tomar a administrao pblica mais flexvel e eficiente; (2) reduzir seu custo; (3) garantir ao servio pblico, particularmente aos servios sociais do Estado, melhor qualidade; e (4) levar o servidor pblico a ser mais valorizado pela sociedade ao mesmo tempo que ele valorize mais seu prprio trabalho, executando-o com mais motivao. (Bresser Pereira, 1995:8)

    A primeira grande meta da reforma do aparelho do Estado , para o ministro, a sua flexibilizao. Em segundo lugar, no plano social, sua radical descentralizao (Bresser Pereira, 1995: 8).

    Fazendo eco a um movimento nos meios de comunicao que, via de regra, tem desqualificado os servios pblicos ou de responsabilidade coletiva por oposio ao privado e individual, o Ministro Bresser Pereira enfatiza as qualidades do setor privado, ao propor que a eficincia, agilidade, etc. dos servios do Estado deveriam ser semelhantes s desse setor. Para chegar-se a esse nvel de eficincia e agilidade defende a adoo de uma forma de organizao administrativa "mais flexvel do que a adotada no ncleo burocrtico da administrao direta", que se apoiaria especialmente nas denominadas "organizaes sociais" (Bresser Pereira, 1995: 8).

    Alm das organizaes sociais, o Ministro prope a criao de agncias executivas e profissionalizao dos servidores (do ncleo burocrtico do Estado).

    O grande obstculo para os projetos de reforma propostos seria a rigidez burocrtica imposta pela Constituio de 88. Da, a necessidade de sua urgente reforma para maior flexibilizao da administrao (maior eficincia e qualidade) e mudana do sistema de

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    previdncia do funcionalismo (menor custo e maior isonomia com o setor privado).

    Como se atingir o objetivo de maior flexibilidade?

    ...(1) permitindo a existncia de mais de um regime jurdico dentro do Estado; (2) mantendo o regime jurdico estatutrio apenas para os funcionrios que exercem funes no ncleo burocrtico do Estado; (3) conservando a estabilidade rgida, prevista na atual constituio, segundo a qual s pode ser dispensado o servidor que houver cometido falta grave, para as carreiras para cujo exerccio o funcionrio necessita de proteo da estabilidade dadas as ameaas que pode sofrer; (4) prevendo a dispensa por dois motivos adicionais - insuficincia de desempenho e excesso de quadros - para os demais funcionrios, garantindo-se, porm, a adoo de critrios objetivos para as decises e o recebimento de uma indenizao para o funcionrio dispensado nessas condies; (5) permitindo, altemativamente, a colocao do funcionrio excedente em disponibilidade com vencimentos proporcionais ao .tempo de servio; (6) (...) (Bresser Pereira, 1995: 9)

    Prope uma srie de medidas para tomar a previdncia dos funcionrios menos onerosa e mais semelhante vigente no setor privado (Bresser Pereira, 1995: 11-12).

    Ao programa de transformao das entidades de servios do Estado em "organizaes sociais" denominou o Ministro de "Programa de Publicizao". Essas novas entidades administrativas de servios pblicos seriam "entidades pblicas no-estatais" ou "fundaes pblicas de direito privado".

    Para conduzir s "organizaes sociais", dita "publicizao" dos servios pblicos, dois projetos so considerados essenciais:

    ...descentralizao dos servios sociais do Estado, de um lado para os Estados e Municpios, de outro, do

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  • aparelho do Estado propriamente dito para o setor pblico no-estatal. Esta ltima reforma se dar atravs da dramtica concesso de autonomia financeira e administrativa s entidades de servio do Estado, particularmente de servio social, como as universidades, as escolas tcnicas, os hospitais, os museus, os centros de pesquisa, e o prprio sistema de previdncia. Para isso, a idia . de criar a possibilidade dessas entidades serem transformadas em "organizaes sociais".

    Organizaes sociais sero organizaes pblicas no-estatais - mais especificamente fundaes de direito privado - que tm autorizao legislativa para celebrar contrato de gesto com o poder executivo, e, assim, poder, atravs do rgo do executivo correspondente, fazer parte do oramento pblico federal, estadual ou municipal. (Bresser Pereira, 1995: 13; grifos nossos)

    Para ele, isto permitiria a essas instituies ampla autonomia na gesto de suas receitas e despesas, pois continuariam a contar com a garantia bsica do Estado que lhes cederia, por mtuo, seus bens e seus funcionrios estatutrios. Agora, porm, se trata de entidades de direito privado, que escapam "s normas e regulamentos do aparelho estatal, e particularmente de seu ncleo burocrtico...." (Bresser Pereira, 1995:13).

    Na oportunidade do anncio dessas idias e propostas bsicas de reforma do aparelho do Estado, especialmente referindo-se s organizaes sociais, o Ministro preocupa-se com a necessidade de evitar-se "a privatizao e a feudalizao" dessas entidades, ou seja, "a apropriao destas por grupos de indivduos que as usam como se fossem privadas", e alerta para a necessidade de serem criadas "cautelas legais e administrativas", "tomando-se, entretanto, o cuidado de limitar os controles por processo, j que o essencial ser, tanto da parte do prprio Estado, quanto da sociedade, o controle por resultados das organizaes sociais" (Bresser Pereira, 1995: 13).

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    Encaminhada ao Congresso a PEC N2 173/95 e antes que fosse aprovada qualquer reforma constitucional que desse nova redao aos artigos 39 e 206, incisos IV e V, da Carta de 1988, a Secretaria de Reforma do Estado do MARE j tomava pblico, em l 2 de julho de 1995, o documento/roteiro denominado Etapas para viabilizao da aplicao da lei de organizaes sociais na recriao de universidade pblica a ser administrada por contrato de gesto. Ele explicitava o que se deveria entender por recriao de universidade pblica no estatal.4

    4 a. Conforme inteno do Min. da Educao e do Desporto, indica-se uma universidade, autrquica ou fundacional, para ser extinta e recriada como entidade pblica no-estatal.

    b. O Ministro promove contatos com representantes da universidade a ser extinta e iniciado o levantamento patrimonial, de recursos humanos e de servios a serem assumidos pela nova entidade.

    c. A indicao da entidade submetida ao Conselho Nacional de Publicizao para estudo da viabilidade e eventual recomendao.

    d. Constitui-se uma Associao Civil ou Fundao de Direito Privado, "que dever prever em seus atos constitutivos os requisitos para operar como Organizao Social apta a celebrar contratos de gesto".

    e. A nova entidade registra seu Estatuto em cartrio de registro civil de pessoas jurdicas, no esquecendo de estabelecer entre seus objetivos a prestao de servios de ensino pblico, sem fins lucrativos.

    f. Esta entidade apresenta-se ao Ministro e sua qualificao analisada pelo Conselho Nacional de Publicizao. Define-se (por quem?) a composio do Conselho Diretor desta entidade, por pessoas de "notria capacidade profissional e elevado esprito pblico".

    g. Comprovada a habilitao desta Associao Civil ou Fundao de Direito Privado, o Conselho Nacional de Publicizao prope Pres. da Repblica a qualificao da entidade como Organizao Social.

    h. O Presidente da Repblica encaminha ao Congresso pedido de autorizao legislativa para celebrao de Contrato de Gesto com a Organizao Social e extino da IFES que ser substituda pela nova entidade.

    i. Concedida a autorizao legislativa, o Conselho Curador da Organizao Social, seguindo as prioridades de poltica governamental estabelecidas pelo Ministro da Educao, "assumir suas atribuies de designar

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  • Ao final do primeiro ano do Governo Fernando Henrique Cardoso, o Decreto N2 1.738, de 08/12/95, institua, no mbito do Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, um Conselho de Reforma do Estado, constitudo dos seguintes membros: Malson Ferreira da Nbrega (presidente), Antnio Ermrio de Moraes, Antnio dos Santos Maciel Neto, Bolvar Lamounier, Celina Vargas do Amaral Peixoto, Geraldo Dinu Reiss, Hlio Mattar, Joo Geraldo Piquet Carneiro, Joaquim de Arruda Falco Neto, Jorge Wilheim, Luiz Carlos Mandelli, Srgio Henrique Hudson de Abranches.

    No discurso de instalao desse Conselho, o Sr. Presidente da Repblica enfatizava as principais intenes do projeto de reforma do Estado que se visava implementar:

    Isso importante, mas tambm no suficiente, porque no se trata apenas de substituir um modelo patrimonialista, burocrtico, por uma burocracia racional-legal e de cunho gerencial, mas se trata de algo que tem que incluir essas dimenses novas, mas tambm de uma participao mais ativa dos corpos que no so corpos do Estado e que so organizados, ou quase organizados. As vezes, so at movimentos. No chegam a gerar, ainda, instituies, mas tm que ser ouvidos na administrao moderna e no modo pelo qual

    dirigentes, dispor sobre a estrutura, definir diretrizes e objetivos e zelar pelo cumprimento das metas e finalidades da instituio".

    j. Definida a diretoria da Organizao Social, tem incio o processo de elaborao dos Termos do Contrato de Gesto e de transio administrativa da entidade estatal para a Organizao Social.

    l. O Ministro, representando o poder pblico, dever assinar o Contrato de Gesto e supervisionar sua execuo, onde estaro claramente identificados os servios e as aes a serem desenvolvidas, a alocao e as metas a serem alcanadas.

    m. O contrato ter vigncia de dois a trs anos, findo o qual sero avaliados os resultados e o correto cumprimento dos seus termos, mediante fiscalizao do Tribunal de Contas da Unio.

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    o Estado moderno se sustenta. (Apresentao do Plano Diretor da Reforma do Estado, 25/1195).

    Presidente e Ministro diagnosticam a administrao do Estado ento vigente como patrimonialista e burocrtica e denominam o novo modelo como devendo ser fundamentalmente gerencial.

    Antes, porm, da instalao desse Conselho, em setembro de 1995, era aprovado pela ento Cmara da Reforma do Estado* l. 5 e pelo Sr. Presidente da Repblica, o Plano Diretor da Reforma do Estado, elaborado pelo MARE.

    Publicado em novembro de 1995, nesse documento que "define objetivos e estabelece diretrizes para a reforma da administrao pblica brasileira" (nas palavras de apresentao do Sr. Presidente da Repblica) encontram-se sistematizados pressupostos bsicos da concepo de Estado que subjaz ao Plano de Reforma. Seus diagnsticos e quadro terico serviram de base para as propostas de Emenda Constitucional, encaminhadas pelo Poder Executivo ao Congressa Nacional para as reformas administrativa e previdenciria.

    Em sua apresentao diz-se que a crise vivida pelo pas nas ltimas dcadas confunde-se com a crise do Estado. O Estado, ao ampliar sua participao no setor produtivo, ter-se-ia desviado de suas funes bsicas, com gradual deteriorao dos servios pblicos, agravamento da crise fiscal e aumento da inflao. A reforma do Estado seria instrumento imprescindvel para consolidar-se a estabilizao, assegurar-se o crescimento da economia e promover-se a correo das desigualdades sociais e regionais.

    Reivindica-se para o Estado uma "ao reguladora, no quadro de uma economia de mercado, bem como os servios bsicos que presta e as polticas de cunho social que precisa implementar".

    Pretende-se passar de uma administrao pblica formal, fundada em princpios racional-burocrticos e contraposta ao

    5 A Cmara da Reforma do Estado era ento assim composta: Clvis Carvalho (Min. Chefe da Casa Civil - Presidente), Luiz Carlos Bresser Pereira (MARE), Paulo Paiva (MT),-Pedro Malan (MF), Jos Serra (MPO) e Gen. Benedito Onofre Bezerra Leonel (EMFA)

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  • patrimonialismo, ao clientelismo, ao nepotismo - vcios que, entretanto, ainda persistiriam e que precisariam ser extirpados - a uma administrao pblica que se chamaria de "gerencial", pois se basearia

    em conceitos atuais de administrao e eficincia, voltada para o controle dos resultados e descentralizada para poder chegar ao cidado, que, numa sociedade democrtica, quem d legitimidade s instituies e que, portanto, se toma "cliente privilegiado" dos servios prestados pelo Estado. (Presidente Fernando H. Cardoso, Apresentao do Plano Diretor da Reforma do Estado, 25/11/95)

    Na Introduo do Plano, faz-se uma sucinta apresentao do que se considera a desacelerao econmica do Estado nos anos 70, evidenciada nos anos 80: descontrole fiscal, reduo nas taxas de crescimento econmico, aumento do desemprego e elevados ndices de inflao. Aps vrias tentativas de explicao, ter-se-ia tomado claro afinal que a causa da desacelerao econmica nos pases desenvolvidos e dos graves desequilbrios na Amrica Latina e no Leste Europeu era a crise do Estado, que no soubera processar de forma adequada a sobrecarga de demandas a ele dirigidas. A desordem econmica expressava agora a dificuldade do Estado em continuar a administrar as crescentes expectativas em relao poltica de bem- estar aplicada com relativo sucesso no ps-guerra (Brasil, MARE, 1995, Introduo).

    Para chegar-se ao estgio atual dessa crise do Estado, faz-se um apanhado histrico dos papis por ele desempenhados nos pases ocidentais desde a Primeira Grande Guerra e a Grande Depresso, passando pela crise do mercado e do Estado Liberal, pelo novo formato do Estado - que "passa a desempenhar um papel estratgico na coordenao da economia capitalista, promovendo poupana forada, alavancando o desenvolvimento econmico, corrigindo as distores do mercado e garantindo uma distribuio de renda mais igualitria" - e pelo que ocorre nos ltimos 20 anos a esse modelo que estaria dando sinais claros de anacronismo. A crise do Estado atual definir-se-ia

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    como crise fiscal, de esgotamento da estratgia estatizante e de interveno (Estado do bem-estar social, nos pases desenvolvidos; substituio das importaes, no terceiro mundo; estatismo, no pases comunistas) e de superao da forma burocrtica de sua administrao.

    A reao a essa crise, no Brasil, segundo o documento, foi, primeiro, seu desconhecimento; segundo, uma "resposta igualmente inadequada foi a neoliberal, caracterizada pela ideologia do Estado mnimo". Somente em meados da dcada de noventa teria surgido uma resposta adequada para a crise: "a idia da reforma ou reconstruo do Estado, de forma a resgatar sua autonomia financeira e sua capacidade de implementar polticas pblicas".

    De que se constitui essa resposta "adequada"?

    (1) o ajustamento fiscal duradouro; (2) reformas econmicas orientadas para o mercado, que, acompanhadas de uma poltica industrial e tecnolgica, garantam a concorrncia interna e criem as condies para o enfrentamento da competio internacional; (3) a reforma da previdncia social; (4) a inovao dos instrumentos de poltica social, proporcionando maior abrangncia e promovendo melhor qualidade para os servios sociais; e (5) a reforma do aparelho do Estado, com vistas a aumentar sua "governana", ou seja, sua capacidade de implementar de forma eficiente polticas pblicas. (Brasil, MARE, 1995, Introduo)

    Ao Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado caberia a tarefa de implementar medidas visando ao contido no item (5), definidas no mbito desse Plano Diretor.

    Antes de apresentar essas medidas, o documento examina o conceito de Estado e de aparelho do Estado em sentido amplo. Analisa tambm o que seria a reforma do Estado e a do aparelho do Estado. Esta estaria orientada "para tomar a administrao pblica mais eficiente e mais voltada para a cidadania".

    A reforma do Estado significa, para os autores do documento, entre outras coisas:

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  • ...transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado. Da a generalizao dos processos de privatizao de empresas estatais. Neste plano, entretanto, salientaremos um outro processo to importante quanto, e que no entretanto no est to claro: a descentralizao para o setor pblico no-estatal da execuo de servios que no envolvem o exerccio do poder de Estado, mas devem ser subsidiados pelo Estado, como o caso dos servios de educao, sade, cultura e pesquisa cientfica. Chamaremos a esse processo de "publicizao". (Brasil, MARE, 1995, Introduo)

    O documento ir insistir no conceito de setor pblico no- estatal, para o qual seria gradativamente transferida, dentro do que denomina "Programa de publicizao", "a produo dos servios competitivos ou no-exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle" (Brasil, MARE, 1995, Introduo).

    O Estado reduziria seu papel de prestador direto de servios, mas manteria o papel de regulador, provedor e promotor desses servios, entre os quais os de educao e sade,

    ...essenciais para o desenvolvimento, na medida em que envolvem investimento em capital humano; para a democracia, na medida em que promovem cidados; e para uma distribuio de renda mais justa, que o mercado incapaz de garantir, dada a oferta muito superior demanda de mo-de-obra no-especializada. Como promotor desses servios o Estado continuar a subsidi-los, buscando, ao mesmo tempo, o controle social direto e a participao da sociedade. (Brasil, MARE, 1995, Introduo)

    Para fundamentar as medidas concretas que visam implementar a reforma do aparelho do Estado, entre elas o denominado programa de publicizao, como j dito anteriormente, embasa-se o MARE em um

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    conceito de administrao pblica gerencial, por oposio/diferenciao aos conceitos de administrao pblica patrimonialista6 e burocrtica.7 Por administrao pblica gerencial entende-se a que surgiu como resposta expanso das funes econmicas e sociais do Estado, ao desenvolvimento tecnolgico e globalizao da economia mundial; a que traria eficincia administrao pblica e que seria "orientada predominantemente pelos valores da eficincia e qualidade na prestao de servios pblicos e pelo desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizaes" (Brasil, MARE, 1995, Cap. 2).

    Alm da distino e caracterizao dos quatro setores do Estado - ncleo estratgico, atividades exclusivas, servios no- exclusivos e produo de bens e servios para o mercado - j referidos anteriormente, cabe registrar, pois tem importncia para os desdobramentos do presente estudo, a distino feita pelo MARE, neste documento, das form as de propriedade.

    Aqui faz-se um esforo significativo para definio de uma nova forma de propriedade, ao lado das tradicionais - propriedade

    6 No patrimonialismo, o aparelho do Estado funciona como uma extenso do poder do soberano, e os seus auxiliares, servidores, possuem status de nobreza real. Os cargos s considerados prebendas. A res publica no diferenciada das res principis. Em conseqncia, a corrupo e o nepotismo so inerentes a esse tipo de administrao. No momento em que o capitalismo e a democracia se tornam dominantes, o mercado e a sociedade civil passam a se distinguir do Estado. Neste novo momento histrico, a administrao patrimonialista toma-se uma excrescncia inaceitvel. (Brasil, MARE, 1995, Cap. 2)7 Surge na segunda metade do sculo XIX, na poca do Estado liberal, como forma de combater a corrupo e o nepotismo patrimonialista. Constituem princpios orientadores do seu desenvolvimento a profissionalizao, a idia de carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade, o formalismo, em sntese, o poder racional-legal. Os controles administrativos visando evitar a corrupo e o nepotismo so sempre a priori. Parte-se de uma desconfiana prvia nos administradores pblicos e nos cidados que a eles dirigem demandas. Por isso so sempre necessrios controles rgidos dos processos, como por exemplo na admisso de pessoal, nas compras e no atendimento a demandas. (Brasil, MARE, 1995, Cap. 2)

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  • estatal e propriedade privada - que seria a propriedade pblica no- estatal. Ela seria constituda pelas organizaes sem fins lucrativos, que no seriam propriedade de nenhum indivduo ou grupo e estariam orientadas diretamente para o atendimento do interesse pblico. Esta forma de propriedade seria a mais adequada para o setor das atividades no-exclusivas ou competitivas dos Estado. No seria adequada a propriedade estatal, porque a no se exerceria o poder de Estado; no seria a propriedade privada, porque se trataria de um,tipo de servio, por definio, subsidiado. A propriedade pblica no-estatal tomaria mais fcil e direto o controle social, pela participao

    ...nos conselhos de administrao dos diversos segmentos envolvidos, ao mesmo tempo que favorece a parceria entre sociedade e Estado. As organizaes nesse setor gozam de uma autonomia administrativa muito maior do que aquela possvel dentro do aparelho do Estado. Em compensao seus dirigentes so chamados a assumir uma responsabilidade maior, em conjunto com a sociedade, na gesto da instituio. (Brasil, MARE, 1995, Cap. 5, 5.3)

    Por ltimo, para melhor entendimento das propostas do MARE, visando, entre outras, a reforma da educao superior afeta ao aparelho do Estado, vale a pena registrar os objetivos estabelecidos no Plano Diretor para os Servios No-Exclusivos do Estado.

    Transferir para o setor publico no-estatal estes servios, atravs de um programa de "publicizao", transformando as atuais fundaes pblicas em organizaes sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorizao especfica do poder legislativo para celebrar contrato de gesto com o poder executivo e assim ter direito a dotao oramentria. Lograr, assim, uma maior autonomia e uma conseqente maior responsabilidade para os dirigentes desses servios.

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    Lograr adicionalmente um controle social direto desses servios por parte da sociedade atravs dos seus conselhos de administrao. Mais amplamente, fortalecer prticas de adoo de mecanismos que privilegiem a participao da sociedade tanto na formulao quanto na avaliao do desempenho da organizao social, viabilizando o controle social.

    Lograr, finalmente, uma maior parceria entre o Estado, que continuar a financiar a instituio, a prpria organizao social, e a sociedade a que serve e que dever tambm participar minoritariamente de seu financiamento via compra de servios e doaes.

    Aumentar, assim, a eficincia e a qualidade dos servios, atendendo melhor o cidado-cliente a um custo menor. (Brasil, MARE, 1995, Cap. 6, 6.4)

    Para atingir os objetivos gerais da reforma do aparelho do Estado e os relativos aos servios no-exclusivos do Estado, a estratgia chamada de transio constitui-se de trs dimenses, segundo o documento: 1) institucional-legal (reforma do sistema jurdico e das relaes de propriedade); 2) cultural (passagem de uma cultura burocrtica para uma gerencial); 3) modemizadora (introduo da administrao gerencial baseando-se na administrao burocrtica).

    Do ponto de vista legal, a reforma exigir a proposio de emendas constitucionais. Algumas de ordem econmica, tributria so do mbito geral da reforma do Estado. A da previdncia, por tratar das aposentadorias e penses dos servidores, considerada essencial, "dado o carter explosivo do aumento das despesas do Estado com os inativos".8

    8 Prope este Plano que tal problema seja enfrentado com medidas que visem: a) impedir aposentadorias abaixo dos 60 anos; b) fazer com que os proventos sejam proporcionais contribuio realizada; c) eliminar todo o gnero de aposentadorias especiais; d) estabelecer regras de atualizao dos valores dos proventos de aposentadoria desvinculados dos aumentos reais dos funcionrios em atividade (Brasil, MARE, 1995, Cap. 7, 7.1).

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  • Duas emendas constitucionais referem-se especificamente administrao pblica.

    A primeira delas prope, entre outras coisas: a) o fim da obrigatoriedade do regime jurdico nico e a permisso de contratos de servidores pela CLT; b) a flexibilizao da estabilidade dos servidores estatutrios, permitindo-se a demisso, alm de por falta grave, tambm por insuficincia de desempenho e por excesso de quadros; c) possibilidade de se colocar servidores em disponibilidade com remunerao proporcional ao tempo de servio como alternativa exonerao por excesso de quadros; d) limitao rgida dos proventos da aposentadoria e das penses ao valor equivalente percebido na ativa; e) eliminao da isonomia como direito subjetivo, embora mantenha, implicitamente, o princpio, que bsico para qualquer boa administrao.

    A segunda trata do equilbrio entre os trs poderes na organizao administrativa e a fixao de vencimentos dos servidores atravs de projeto de lei, por iniciativa de cada um dos poderes respectivos, mas todos dependendo de sano presidencial.

    Quanto aos prazos para as mudanas previstas, no que concerne criao das organizaes sociais, que afetariam as IFES (Instituies Federais do Ensino Superior), sua implementao era vista em 1995 como devendo ser desencadeada em curto espao de tempo. At a presente data - setembro/98 - como j dito, nenhuma IFES foi ainda transformada em organizao social. J o foram, porm, um Instituto de Pesquisa, uma Fundao Cultural e um Hospital Federal.

    Dentre os principais projetos em andamento, para a implementao do Plano, no que concerne a este estudo, cabe sempre registrar o voltado para a implementao das organizaes sociais. Para tanto previa-se a elaborao de projeto de lei que permitisse a "publicizao" dos servios no-exclusivos do Estado, "ou seja, sua transferncia do setor estatal para o pblico no-estatal, onde

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    assumiro a forma de 'organizaes sociais'9" (Brasil, MARE, 1995, Cap. 8; 8.1.3).

    Chama a ateno a afirmativa de que a transformao dos servios no-exclusivos do Estado far-se-ia de modo voluntrio, enquanto se afirma tambm que isto se dar "a partir da iniciativa dos respectivos ministros, atravs de um Programa Nacional de Publicizao".

    Neste programa teriam prioridade os hospitais, as universidades, e escolas tcnicas, os centros de pesquisa, as bibliotecas e os museus.

    Transcrevendo abaixo as palavras do Ministro Bresser Pereira, reitera-se a forma que tomariam os procedimentos dessa transformao:

    Para isto ser necessrio extinguir as atuais entidades e substitu-las por fundaes pblicas de direito privado, criadas por pessoas fsicas. Desta forma, se evita que as organizaes sociais sejam consideradas entidades estatais, como aconteceu com as fundaes de direito privado institudas pelo Estado, e assim submetidas a todas as restries da administrao estatal. As novas entidades recebero 'por cesso precria os bens da entidade extinta. Os atuais servidores da entidade transformar-se-o em uma categoria em extino e ficaro disposio da nova entidade. O oramento da organizao social ser

    9 Entende-se por organizaes sociais as entidades de direito privado que, por iniciativa do Poder Executivo, obtm autorizao legislativa para celebrar contrato de gesto com esse poder, e assim ter direito dotao oramentria.

    As organizaes sociais tero autonomia financeira e administrativa, respeitadas condies descritas em lei especfica como, por exemplo, a forma de composio de seus conselhos de administrao, prevenindo-se, deste modo, a privatizao ou a feudalizao dessas entidades. Elas recebero recursos oramentrios, podendo obter outros ingressos atravs da prestao de servios, doaes, legados, financiamentos, etc. (Brasil, MARE, 1995, Cap. 8; 8.1.3).

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  • global; a contratao de novos empregados ser pelo regime da Consolidao das Leis do Trabalho; as compras devero estar subordinadas aos princpios da licitao pblica, mas podero ter regime prprio. O controle dos recursos estatais postos disposio da organizao social ser feito por contrato de gesto, alm de estar submetido superviso do rgo de controle interno e do Tribunal de Contas. (Bresser Pereira, 1996: 286-7).

    Na proposta do Governo FHC, por iniciativa do MARE, portanto, as instituies estatais de educao superior transformar-se- iam em entidades pblicas de natureza privada, pode-se dizer, semipblicas. Na proposta de Bresser Pereira, as organizaes sociais submeter-se-iam a trs tipos de controle: estatal, comunitrio e do mercado. Ao estatal, pois estariam sendo gerenciadas por meio de contratos de gesto celebrados com o Estado; ao comunitrio, porque administradas por um Conselho de Administrao; e ao mercado, porque a este caberia velar pela eficincia e qualidade dos servios prestados, bem como oferecer um financiamento complementar ao oferecido pelo Estado.

    R e f o r m a d a e d u c a o S u p e r io r n o m b it o d o M E C

    De modo complementar ao MARE, na questo da Reforma do Estado, mas com uma atuao incisiva no propsito de profunda reestruturao do sistema de educao superior, o MEC se tem destacado pelo implemento de uma srie de medidas de ordem legal (LDB, Decretos, Portarias, envio ao Congresso Nacional de Medidas Provisrias, Propostas de Emendas Constitucionais), alm de, articulado quele Ministrio e aos Ministrios da rea econmica, contingenciar recursos de custeio e capital, desautorizar o preenchimento, via concurso, das vagas docentes e de funcionrios, congelar salrios de docentes e funcionrios das Instituies Federais de Ensino Superior (IKES). Com estas medidas tem se formado o clima poltico-institucional propcio, por um lado, ao abandono da carreira nas IFES, em especial via aposentadoria, por outro, possvel diminuio

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    das previsveis resistncias implementao seja do projeto de transformao das IFES em organizaes sociais, seja do projeto da autonomia universitria consubstanciado na Proposta de Emenda Constitucional - PEC-370-A96, em tramitao no Congresso Nacional.

    No mbito jurdico, tem agido com presteza, primeiramente antecipando-se nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, atravs de dispositivos legais, entre os quais se destacam a Medida Provisria, transformada na Lei 9.172/95, que trata da escolha de dirigentes das universidades e IES federais (o pargrafo nico do artigo 56 da LDB iria ser aprovado, dois anos depois, com idntica redao dessa Lei)10 e o Decreto 2.026, de 10/10/96, que estabelece procedimentos para o processo de avaliao dos cursos e instituies de ensino superior. Em seguida, tem agido o MEC, atravs de atuao muito especfica e coordenada junto ao Congresso Nacional, no objetivo de aprovao do projeto Darcy Ribeiro de LDB, no qual se destaca o captulo da Educao Superior, em cuja elaborao e defesa concentraram-se os esforos deste Ministrio e de seus melhores especialistas.

    Este captulo, o mais extenso dos que compem a LDB, uma espcie de plataforma legal, a dar guarida presente e futura srie de aes de reforma que se fundamenta em princpios defendidos tanto por organismos supranacionais, como o Banco Mundial