silenciador

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SILENCIADOR

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Peça de teatro de Jacinto Lucas Pires

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SILENCIADOR

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Título: Silenciador

© Jacinto Lucas Pires e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2008

Concepção gráfica de João Botelho

ISBN 978-972-795-278-6

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Jacinto Lucas Pires

Silenciador

teatro

Cotovia

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SILENCIADOR

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Elenco da estreiade

SILENCIADORno

Centro Cultural Vila Flor, Guimarãesem

9 de Outubro de 2008

Interpretação:

Diana Sá LindaEmílio Gomes SantosIvo Bastos Manel

Encenação Marcos BarbosaCenografia e figurinos Sara AmadoSom e Música Sérgio DelgadoDesenho de luz Pedro CarvalhoProdução executiva Teatro Oficina

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SANTOS e MANEL na esquadra.

SANTOS Também de que porra é que te lembraste parafazer aquilo? (O outro não responde.) Tens mais rebuça-dos?

MANEL Só um.

SANTOS Eu depois compro-te um pacote.

MANEL Um pacote.

SANTOS Sim.

MANEL (desembrulhando e comendo o último rebuçado)Adoro essa palavra, “pacote”. Sempre gostei do somdisso, não sei porquê. “Pacote”. (Pausa; SANTOS acendeum cigarro.) Sabes, tenho estado a ler um… (Vendo SAN-TOS a fumar.) Oh. Não tinhas deixado essa cena?

SANTOS Quando o homem apareceu. Quando ele apare-ceu com aquilo na mão. Havia, não sei se reparaste. Porcima do ombro, assim mesmo a tocar-lhe. Um — ou tãopróximo disso que era exactamente — não sei se repa-

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raste — como se. Um. Sim, pousando-lhe no ombro. Noombro, quando ele apareceu à porta. O ombro do ladocontrário, portanto, à mão que segurava aquilo. Haviaum foco, uma luz. Não sei se reparaste. Não reparaste?

MANEL Era branca?

SANTOS Da cor da luz.

MANEL Acho que sim.

SANTOS Não, portanto.

MANEL Não, não, lembro-me. Lembro-me, agora lem-bro-me. Enquanto estávamos a falar, veio-me à —

SANTOS Mas, então, foi por isso — sim, percebo —, foipor causa disso, dessa luz, que não vi logo aquilo na mãodele.

MANEL O tipo era bastante…

SANTOS Bonito.

MANEL Sim, hã. (Pausa.) Sim, é mesmo... tens razão.

SANTOS Parecia um actor.

MANEL Um bocado parecido comigo até.

SANTOS Ah, sim.

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MANEL Uma versão melhor de mim, vá lá.

SANTOS Por acaso…

MANEL O olhar, não é?

SANTOS Por acaso, não acho nada.

MANEL Mas olha que era. Não vês porque já me conhe-ces há demasiado tempo.

SANTOS (sorrindo) Isso é verdade.

MANEL Alto, boa figura.

SANTOS Uma “presença”.

MANEL Dignidade. Costas direitas.

SANTOS Pescoço direito.

MANEL Raça.

SANTOS Qualquer coisa de… sim. Um — brilho.

MANEL Sim.

SANTOS Pois.

MANEL É isso mesmo. Um brilho.

SANTOS Sim.

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MANEL Pois.

SANTOS E agora ficou com uma cara que parece artemoderna, ó caralho. (Pausa.) Mas ainda bem que dispa-raste.

MANEL Era uma pistola.

SANTOS O quê?

MANEL A coisa na mão dele, a coisa que primeiro...

SANTOS Pois era, era uma pistola.

MANEL Pois. Eu vi logo.

SANTOS (deitando cigarro ao chão) Pois viste.

MANEL Quer dizer, vi logo... na altura. (Pausa; SANTOS

não diz nada.) Por isso, ainda bem que disparei.

SANTOS Foi o que eu disse. Ainda bem que disparaste.

MANEL (referindo-se ao cigarro) Não vai queimar o chão?

SANTOS Ainda bem.

MANEL Hã? De certeza? E as... câmaras... e os detectoresde…?

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SANTOS Tudo bem. (MANEL continua preocupado, a olharpara o cigarro no chão.) Não há-de ser nada.

MANEL De certeza? Absoluta?

SANTOS É uma zona cega, já fiz a experiência. Aqui (indi-cando um corredor imaginário à frente), assim neste sen-tido, os gajos não apanham nada. (Sentindo alguma coisa,SANTOS olha para o relógio.)

MANEL A sério? Uuuh... (Pausa; e depois, mostrando ossapatos brancos que traz calçados.) Já alguma vez calçastedestes? São mesmo porreirinhos.

SANTOS (saindo) A maneira como tu falas, caralho… Fran-camente…

MANEL Oh? Onde é que vais? Onde é que…? Santos?

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SANTOS entra num espaço deserto. Dirige-se para o centrodo Lugar, olhando à volta e para cima, um pouco intimi-dado. Quando lá chega, pára e fala para o relógio.

SANTOS …Sim?

VOZ DO LUGAR Como vai a vida na cidade, no corpo, nacabeça?

SANTOS Vai bem. Vai bastante —

VOZ DO LUGAR Parece que ouço jazz só pelo facto deimaginar isso, uma vida num… Perdão?

SANTOS (falando para o relógio, mais alto) Vai muito bem.Obrigado.

VOZ DO LUGAR Fantástico. (Pausa. SANTOS fica inco-modado sem saber o que fazer.) A tarefa é simples e muitopouco vaga, se não completamente natural. Percebes?Estás a ouvir?

SANTOS Estou a ouvir, sim.

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VOZ DO LUGAR Trata-se de eliminar o cidadão A., resi-dente na rua G8, andar N, apartamento U.

SANTOS …“Eliminar”?

VOZ DO LUGAR A serenidade do Estado está dissodependente, vê lá. É uma grande empresa este acto. Nãotemas, não falhes.

SANTOS Não, é que não sei se… se terei percebido —

VOZ DO LUGAR Devias sentir orgulho e certeza no peito.Força e fé e felicidade até. De qualquer modo, emboranão fique inscrita nos relatórios oficiais, esta é umaordem directa, inapelável. Sim? Atinges o alcance destaspalavras?

SANTOS Sim, mas quanto ao —

VOZ DO LUGAR No topo, daqui a uns anos, vejo-te notopo. No gabinete mais espaçoso, mais aberto, mais altodo nosso compreensivo Estado. Uma vida de serviçorecompensada, o sucesso sério de quem deu tudo poruma causa. Cadeiras de couro negro, com rodinhas etelecomando; segurança vinte e quatro sobre vinte equatro; uma permanente sensação de poder, desejo epoder, loucura e poder, todas as coisas e poder; papéisultra-secretos, palavras mágicas; jovens secretárias demonoquíni, qualquer coisa, imagina. No topo, vemos-teno topo, Santos, acredita. Botões de ouro, punhos bran-cos. Acredita, por favor, que tu mereces.

SANTOS Sim?

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VOZ DO LUGAR É a resposta?

SANTOS Sim… sim.

VOZ DO LUGAR Palavras não são bastantes, queremosacções.

SANTOS Com certeza…

VOZ DO LUGAR Inclina-te, submisso, e beija o relógio.

SANTOS Beijo o… no visor…?

VOZ DO LUGAR Inclina-te, submisso, e beija.

Hesitante, SANTOS baixa a cabeça e beija o relógio. Nessemomento, ouve-se um alarme. O detective levanta a cara,assustado, enquanto a escuridão desce, lenta.

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MANEL está no lugar do colega, na tal zona cega, parado aolhar em frente, quando SANTOS regressa.

SANTOS Estes urinóis, valha-me Deus.

MANEL Hã?

SANTOS Um gajo está para ali, na calma, e de repenteaquilo começa: pi-pi…

MANEL Uma luz vermelha, não é?

SANTOS …A apitar e a descarregar água automática.

MANEL Pois é, é horrível, não é? (Pausa; SANTOS olhapara ele.)

SANTOS Até tem uma certa graça.

MANEL O quê?

SANTOS Mas, primeiro… porra.

MANEL Pois é, não é?

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SANTOS Um gajo assusta-se a sério.

MANEL Iá, ai não.

SANTOS Manel, por favor.

MANEL O quê?

SANTOS “Iá”?

MANEL Saiu-me. Desculpa.

SANTOS Sabes que faz parte — tudo bem — do novoplano dos gajos? (O outro não percebe do que é que eleestá a falar.) O “pi-pi”.

MANEL Hum?

SANTOS Dos urinóis.

MANEL Ah, iá. (Dando conta de ter dito “iá” outra vez.)Quer dizer… sim.

SANTOS Para o — como é que é? — o “aumento das pro-dutividades pública e público-institucional”. (Pausa;SANTOS não sabe para onde ir.)

MANEL Desculpa, pus-me aqui no teu lugar…

SANTOS (hesitando, a meio caminho) Tudo bem, não temproblema.

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MANEL Estava aqui a pensar numas coisas minhas. Comos meus botões.

SANTOS Vê lá, não penses demais.

MANEL E fico mais à vontade, portanto, longe dos…(olha para cima.)

SANTOS (olhando para baixo, sério de repente) Ah, boa.(Pausa, e SANTOS vai sentar-se à secretária.) Mas óbvioque não é por se poupar uns minutos a mijar que a “pro-dutividade” aumenta.

MANEL Óbvio.

SANTOS Por outro lado…

MANEL Sim?

SANTOS Bem, nem tudo será exactamente contabilizável.

MANEL (sem perceber) Pois…

SANTOS Às vezes uma mudança — uma mudança funda-mental, uma mudança de atitude, uma verdadeira trans-formação —

MANEL Estás a falar do…?

SANTOS …Pode começar nos pormenores.

MANEL Hã-hã. Nos detalhes.

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SANTOS Exacto. Nas coisas mais pequenas.

MANEL Exacto.

SANTOS Nas coisas mínimas. (Pausa.)

MANEL Lá isso.

SANTOS Estou a falar dessa coisa do alarme dos urinóis.

MANEL Ah, sim.

SANTOS Seja como for, é uma imbecilidade. (MANEL

aponta para cima.) Não me importa que ouçam, estou--me nas tintas, estou-me perfeitamente… (Pausa.) Osgajos também não ouvem tudo, sabes?

MANEL Não?

SANTOS Claro que não. Já viste o que é que era?

MANEL Há bocado estava a pensar nisso.

SANTOS Não, os gajos têm umas máquinas.

MANEL Máquinas, a sério?

SANTOS Imagina computadores.

MANEL Estou a ver.

SANTOS Mas sem teclas, ecrãs, corpo.

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MANEL Corpo?

SANTOS Só sensores, sem… portanto… sem fios.

MANEL Santos, como é que sabes sempre essas merdas?

SANTOS Máquinas, chamemos-lhes máquinas.

MANEL (sem perceber) Ah…

SANTOS Máquinas que certas palavras fazem disparar.(Referindo-se à pergunta de MANEL.) Oh, já cá ando hámuito tempo.

MANEL Oh.

SANTOS Só algumas palavras, claro.

MANEL “Palavras-chave”.

SANTOS É isso.

MANEL É mesmo esse o termo, não é? Hã?

SANTOS Palavras perigosas. Ou o que, em dado mo-mento, numa certa, digamos, conjuntura, eles achamperigosas.

MANEL “Os gajos”.

SANTOS Exacto. (Pausa.)

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MANEL Não queria dizer… Não era o exemplo de umapalavra que… de uma dessas que…

SANTOS Sim, eu percebi.

MANEL “Os gajos”. Não era, pois não?

SANTOS Não. Isto é, espero bem que não. (Pausa.) Já aca-baste o relatório?

MANEL Estou quase. (MANEL vai-se sentar à secretária.)Ainda nem comecei. Tenho aqui uma dúvida. Não sei…Não sei bem como…

SANTOS Nada?

MANEL Não consigo encontrar a… Qual a maneira, amelhor maneira, a forma mesmo… formal… de, sabes?,de… Nada.

SANTOS Tudo bem.

MANEL Tudo bem?

SANTOS Tudo bem. Escreve isto.

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