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D e onde vem a água que abas- tece São Paulo? A resposta mais fácil é pensar nas repre- sas, como a Cantareira. Mas a história começa bem antes: até encher as repre- sas, ela percorre um longo caminho. Entre os mecanismos fundamentais nesse processo estão as áreas cobertas com vegetação nativa, que funcionam como uma “fábrica de água”. “A vege- tação e o tipo de cobertura vegetal determinam o quanto [da água da chuva] infiltra e o quanto escorre pela superfície do solo”, explica o engenhei- ro agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto, gerente do Instituto de Manejo e Certificação Florestal (Imaflora). Shutterstock Lei paulista recém- -aprovada diminui áreas de vegetação em propriedades rurais e pode colocar em risco o já frágil equilíbrio do ciclo da água, agravando a crise hídrica no Estado A seca fabricada MEIO AMBIENTE 22 Abril 2015 REVISTA DO IDEC Outra personagem importante nesse enredo é a mata ciliar, a vege- tação que ocupa as margens dos rios. Ela atua como um filtro, que barra a poluição e impede que a água barren- ta que vem das encostas desmatadas encontre o curso d’água. Essa barreira evita o assoreamento do rio (acúmulo de sedimentos) e mantém a água mais limpa. Veja na página 24 como funcio- na o processo. Apesar do papel fundamental das matas para o ciclo da água, em janei- ro deste ano o Governo do Estado de São Paulo aprovou a Lei Estadual n o 15684/2015, apelidada de “Código Florestal Paulista”, que desprotege es-

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De onde vem a água que abas-tece São Paulo? A resposta mais fácil é pensar nas repre-

sas, como a Cantareira. Mas a história começa bem antes: até encher as repre-sas, ela percorre um longo caminho. Entre os mecanismos fundamentais nesse processo estão as áreas cobertas com vegetação nativa, que funcionam como uma “fábrica de água”. “A vege-tação e o tipo de cobertura vegetal determinam o quanto [da água da chuva] infiltra e o quanto escorre pela superfície do solo”, explica o engenhei-ro agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto, gerente do Instituto de Manejo e Certificação Florestal (Imaflora).

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Lei paulista recém--aprovada diminui áreas de vegetação em propriedades rurais e pode colocar em risco o já frágil equilíbrio do ciclo da água, agravando a crise hídrica no Estado

A secafabricada

MEIO AMBIENTE

22 • Abril 2015 • REVISTA DO IDEC

Outra personagem importante nesse enredo é a mata ciliar, a vege-tação que ocupa as margens dos rios. Ela atua como um filtro, que barra a poluição e impede que a água barren-ta que vem das encostas desmatadas encontre o curso d’água. Essa barreira evita o assoreamento do rio (acúmulo de sedimentos) e mantém a água mais limpa. Veja na página 24 como funcio-na o processo.

Apesar do papel fundamental das matas para o ciclo da água, em janei-ro deste ano o Governo do Estado de São Paulo aprovou a Lei Estadual no 15684/2015, apelidada de “Código Florestal Paulista”, que desprotege es-

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LEI MUDOU PARA PIOR

O novo Código Florestal Brasileiro, de 2012, mudou para pior vários dis-positivos do Código anterior, de 1965. “A lei anterior estabelecia metragens para reserva legal e mata ciliar funda-mentadas na segurança das populações e na preservação dos ecossistemas. Encostas, topo de morro e fundo de vale eram consideradas áreas de pre-servação permanente, porque são áreas de risco se ocupadas. Rios e nascentes eram preservados com 50 metros de vegetação nativa no entorno para pos-sibilitar o reabastecimento dos aquí-feros e a perenidade das nascentes”, explica Malu Ribeiro, coordenado- ra da Rede das Águas da ONG SOS Mata Atlântica.

A lei paulista seguiu a mesma lógica de retrocesso. Assim como no Código Florestal Nacional, uma das perdas do ponto de vista ambiental foi regularizar as chamadas “áreas consolidadas”: os locais em que já havia desmatamento, pastos, agricultura e atividades huma-nas receberam anistia – ou seja, foram regularizadas. Para tanto, a proprieda-de tem apenas que se adequar a requi-sitos mínimos, muito mais flexíveis do que a legislação anterior exigia.

Os ambientalistas criticam que o código deixou de ser florestal e passou a funcionar como um código rural. “O anterior protegia a floresta como reser-va legal, enquanto a nova lei passa a estabelecer usos permissivos, sem levar em conta a dinâmica da natureza”, diz Ribeiro. “O foco se tornou a regulariza-ção de atividades rurais. Contudo, sem impor nem sugerir técnicas agrícolas mais sustentáveis como forma de com-pensar as perdas”, complementa.

Para minimizar o problema, algu-mas medidas mais exigentes devem

sas áreas: ela reduz a extensão de vege-tação nativa e de mata ciliar que deve ser mantida por proprietários rurais e, além disso, perdoa propriedades que estavam irregulares de acordo com a legislação anterior.

A lei paulista é parte do Plano de Readequação Ambiental do Estado e regulamenta a aplicação do Novo Código Florestal Brasileiro, lei federal aprovada em 2012. A partir do Código, ficou sob responsabilidade dos estados regulamentar como ele seria imple-mentado em cada local. “A lei paulista é praticamente uma cópia da nacional, e pouco adiciona em proteção”, critica Guedes Pinto. “As áreas de proteção permanente (APPs) diminuíram: uma área que antes tinha de ter 30 metros de cada lado, agora pode ter 15 metros, assim como as faixas de recuperação de nascentes. Também foi reduzida a área total de uma fazenda que deveria ter floresta”, exemplifica.

A medida causa preocupação sobre-tudo porque pode agravar a crise de falta d’água já instalada em São Paulo. Ao lado de organizações ambientalis-tas, o Idec pediu o veto total do pro-jeto de lei, mas o governador Geraldo Alckimin baniu apenas alguns artigos. “Os vetos melhoram o PL aprovado pela Assembleia [Legislativa], mas ainda assim, a lei contém diversos pontos controversos”, afirma Renata Amaral, engenheira ambiental e pesquisadora do Idec.

Assim como São Paulo, a maioria dos Estados está alinhando a sua regu-lamentação aos parâmetros do Código Florestal Nacional; nenhum adotou medidas mais rígidas. Em alguns, como Santa Catarina, a legislação está sendo ainda mais flexibilizada para não interfe-rir nas atividades econômicas imediatas.

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Um dos problemas da lei paulista é a regularização de áreas consolidadas: proprietários de locais onde havia desmatamento irregular podem ser perdoados

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passar a ser aplicadas em regiões consideradas estratégicas, como a bacia do Cantareira e do Alto Tietê. Nesses locais, as normas de reflorestamento vão seguir padrões diferenciados, com extensão de mata nativa maior. “Na Cantareira, as áreas de proteção permanente terão de 30 a 60 metros. O DAEE [Departamento de Águas e Energia Elétrica] e a Sabesp têm termos de compromisso de ajuste e de recuperação ambiental para cada obra que fazem”, conta Malu Ribeiro.

Uma vez iniciado o reflorestamento, é possível colher resultados em três a cinco anos. “[O reflores-tamento] segura a encosta, melhora infiltração da água no lençol freático e mantém o solo úmido, evi-tando o processo de aridez”, explica a ambientalista. Mas ela alerta: “Precisamos ficar atentos para que a Assembleia não derrube os vetos [à atual lei paulista] e para que os Comitês de Bacia [órgãos colegiados que atuam na gestão de recursos hídricos] definam

como áreas prioritárias para os reflorestamentos o Alto Tietê, Piracicaba e Ribeira”.

ALTERNATIVAS

Para evitar “zerar” matas, uma ferramenta existen-te no Estado de São Paulo é o Cadastro Ambiental Rural (CRA), que pode ser usado para “forçar” o proprietário rural a reflorestar o local, delimitando as áreas de proteção permanente e as de reserva legal a serem cumpridas em um prazo de 20 anos. Segundo a coordenadora da SOS Mata Atlântica, no entanto, houve pouca adesão ao CRA, mesmo com a proposta de anistiar quem estava irregular.

Ambientalistas apostam que associar os financia-mentos rurais ao cadastramento é a melhor maneira de comprometê-los com as metas mínimas de reflo-restamento. Cissa Wey, secretária geral da WWF Brasil, aposta em ferramentas que restrinjam o acesso a crédito como medida eficaz para resgatar a função

O ciclo da água e o abastecimento urbanoEntenda o caminho percorrido pela água até chegar às torneiras e porquedesproteger a vegetação compromete o equilíbrio desse ciclo

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A chuva se infiltra nas áreas de mata nativa, forma o lençolfreático, brota em nascentes, forma rios e chega nas represasCidade

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pública da água. “A água é um bem público que passa por terras privadas. O agricultor que precisar pedir dinheiro para o governo deve estar em dia com a lei”, disse durante o seminário Crise da água em São Paulo: contexto e responsabilidades, promovido pelo Sesc-SP e pela Aliança Pela Água, em março, do qual o Idec participou (saiba mais sobre o evento na página 30).

Essa noção de que a água é um bem público em terras particulares foi bem-sucedida em muitos luga-res, como em Nova York. A cidade norte-americana investiu US$ 1 bilhão na recuperação de mananciais, remunerando o proprietário que cuidasse de suas nascentes. A economia estimada dessa medida é de cerca de US$ 7 bilhões, segundo afirmou Samuel Barreto, especialista em recursos hídricos e gerente da organização The Nature Conservancy no Brasil, durante o seminário do mês passado. “Temos um exemplo similar na cidade de Extrema, Minas Gerais, em que a recuperação de nascentes por meio da remuneração de seus proprietários teve ótimos resultados”, contou.

PrecipitaçãoCom as mudanças climáticas, o regime de

chuvas fica mais extremo, com precipitação intensa em alguns períodos e secas prolongadas em outros

Topos de morros e encostasA mata nativa ajuda a chuva a se infiltrar

lentamente no solo e formar o lençol freático, que armazena a água

NascentesSão o afloramento natural de água subterrânea

localizada em áreas onde o terreno se fragmenta. As nascentes dão origem aos cursos d’água, como ribeirões, rios e riachos

Reserva legalA reserva legal é a área mínima da propriedade

que deve ser mantida com mata nativa. No estado de São Paulo, corresponde a 20% da propriedade

Mata ciliarSua função é proteger o rio de assoreamento

e manter a água limpa. Junto com a vegetação nativa ao redor de nascentes, compõe as áreas de preserva-ção permanente (APPs)

PastoÁreas sem vegetação nativa, como os pastos ou

lavouras, não favorecem a infiltração da água da chuva e, durante enxurradas, ficam mais suscetíveis à erosão

AssoreamentoEncostas desmatadas ficam mais vulneráveis

ao assoreamento. A chuva carrega o sedimento, sujando a água dos rios e destruindo o solo

RepresasAs represas são formadas pela contenção

de rios e, quanto melhor a qualidade da água e mais protegidas as bacias que as alimentam, mais estável e barato é o fornecimento de água na região que depende do sistema

Estação de tratamento de água Se o ciclo da água é bem mantido, ela passa

por uma estação de tratamento e é distribuída com boa qualidade para a população

Estação de tratamento de esgotoO ideal é que 100% do esgoto seja tratado antes

de ser devolvido aos cursos d’água. No entanto, a rede é incompleta e boa parte das residências despeja esgoto em cursos d’água, comprometendo a qualidade do recurso para consumo humano e tornando seu tratamento mais caro

Captação de água dos riosNo Brasil, a maior parte das cidades é abastecida

diretamente de rios, sem ajuda de reservatórios. Por isso é fundamental manter rios despoluídos e não interferir no sistema de nascentes que os alimenta

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PROBLEMA DE DÉCADAS

Há muitas leis que deveriam ter preservado matas ciliares e definido reserva legal no Estado, mas algu-mas nunca foram sequer regulamentadas. Outras simplesmente não foram cumpridas pela dificuldade de fiscalização. “Estaríamos em uma situação mais cômoda se tivéssemos, a partir de 1997, feito todas as leis de mananciais serem cumpridas”, diz o ambien-talista Fabio Feldmann. Quando secretário do Meio Ambiente, Feldman propôs uma regulamentação que impedia a ocupação de áreas estratégicas para o abastecimento hídrico.

Ele defende uma legislação mais rígida para a Billings e a Guarapiranga – localizadas em áreas urbanas e povoadas, de onde é quase impossível remover a população instalada –, a fim de coletar todo o esgoto, reduzir a ocupação clandestina e man-ter a vegetação local. “Uma das lições da crise hídrica é que temos de conservar melhor esses mananciais. É preciso estimular atividades que mantenham a vegetação e garantir que não seja lançada poluição doméstica e industrial clandestina”, diz.

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Fontes: Luciana Travassos (especialista em planejamento hídrico) e Renata Amaral (Idec)

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