sheila_schvarzman - historia e historiografia do cinema brasileiro

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  • DossiCinema, Literatura

    e Sociedade

  • Histria e historiografia do cinema Brasileiro: objetos do historiador

    Sheila Schvarzman

    Doutora em Histria Social pela UNICAMP. Professora do Mestrado em Comunicao Contempornea da Universidade Anhembi Morumbi e do Bacharelado em Audiovisual do Centro Universitrio Senac. autora de

    Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, Edunesp, 2004.E-mail: [email protected]

    Resumo: A Historiografia do Cinema no era objeto do interesse de historiadores. Considerada um divertimento, sua histria ficava a cargo de pessoas do meio cinema-togrfico. Com a Nova Histria e seus no-vos objetos, o cinema, sobretudo os filmes, so apropriados pelos historiadores como fonte. A partir dessa aproximao e por conta de mudanas nos estudos histricos e nos estudos cinematogrficos, a partir dos anos 1970/80, estudiosos de cinema buscam mtodos histricos de anlise, e historiadores voltam-se para a atividade cinematogrfica como objeto de interesse. Nosso objetivo neste artigo observar como se plasmou essa histria ao longo do tempo, que modificaes aproximam os historiadores da histria do cinema e que modificaes introduzem nesses estudos. Isso permitir observar as oscilaes na forma de abordagem e na definio do objeto da histria do cinema e, em especial, do cinema brasileiro: o que estuda, com que materiais e mtodos trabalha e qual o sentido dessa histria.

    Palavras-chave: historiografia, cinema brasileiro, histria do cinema.

    Abstract: The History of the Cinema was not object of the interest of historians. Considered an amusement, its history was in charge of people of the way. With New History and its new objects, the cinema, over all the films are appropriate for the historians as source. From this approach and on account of changes in the History and the Cinematographic Studies, from years 1980 - studious of cinema they search analysis methods historical and historians turn themselves toward the cinematographic activity as interest object. Our objective in this article is to observe as if it shaped this history throughout the time, that modifications approach the historians of the history of the cinema and that modifications introduce in these studies. This will allow to observe the oscillations in the form of boarding and the definition of the object of the history of the cinema and in special of the Brazilian cinema: what it studies, with that material and methods works and which the direction of this history

    Keywords: history studies, Brazilian cinema, history of the cinema.

    1

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    introduo

    A reflexo sobre a Histria do Cinema deve ser propos-ta no mbito das preocupaes da disciplina histrica e no apenas do Cinema. Este no mais visto pela Histria apenas como uma fonte ou foco onde se produzem e reproduzem significaes histricas1 e passou a ser tomado tambm como um objeto de interesse em si mesmo, portador de uma histria particular que pensada tambm no mbito da historiografia, assim como objeto de ampla reflexo da Histria Social e da Histria Cultural.

    Entretanto, se isso est ocorrendo, deve-se a dois movimen-tos distintos: por um lado, nos estudos cinematogrficos, h um interesse pela sistematizao da metodologia histrica para a pesquisa, por suas formas de abordagem, pelo enquadramento dos objetos e novos objetos de pesquisa. Essas mudanas so, certamente, o influxo cinematogrfico do que estava ocorrendo na historiografia na Frana, na Inglaterra e nos Estados Unidos no fim dos anos 1970 e incio dos 1980. Com o tournant critique dos Annales para a Nova Histria e sua abertura para novo objetos e abordagens, assim como os aportes da Histria Cultural e do Cultural Studies pelo lado das pesquisas em Comunicao, a viso sobre o cinema no parou de se modificar.

    Esse texto tem por objetivo refletir sobre como essas trans-formaes se manifestam na historiografia do Cinema Brasileiro. Procuraremos observar como se plasmou essa histria ao longo do tempo e que modificaes ocorreram com a participao de historiadores ou a introduo de mtodos historiogrficos nesses estudos. Que mudanas ocorreram e em que sentido tm aponta-do. Isso permitir observar as oscilaes na forma de abordagem e na definio do objeto da histria do cinema brasileiro: o que estuda, com que materiais e mtodos trabalha.

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    histria e historiografia do cinema brasileiro: objetos do historiador

    Mudanas E aproxiMaEs MEtodolgicas

    Nos anos 1970, com as mudanas operadas na historiografia a partir da Nouvelle Histire, as contribuies de Michel Foucault questionando as ordens do saber e do poder - no mais vistas como rgidas, centradas e hierarquizadas entre o poder e o no poder, mas cientes de que o poder se espraia pelo social e tem re-lao direta com o saber (VEYNE, 1982), de Levi-Strauss, Roland Barthes e a Antropologia, a Histria tem ampliado e mudado o seu escopo, de tal forma que no s o Cinema assimilado como objeto, fonte e lugar de construo de significaes histricas (que vm ocorrendo com regularidade nos ltimos 40 anos), mas tambm como prtica, a partir das questes postas Histria pela noo de representao introduzida por Roger Chartier.

    Historiadores como Carlo Guinzburg e Roger Chartier, que estudam manifestaes culturais como a leitura, j se haviam posto de acordo sobre o esgotamento das vises dicotmicas en-tre a cultura popular e a erudita, ou cultura dominante e cultura dominada, inserido-as no mbito mais abrangente da noo de circularidade, proposta por Mikhail Bakhtin (1999). Isso ampliou a prpria noo de cultura, no mais vista como a mais alta ex-presso da produo do homem, conceito que a Antropologia j modificara, mas como uma prtica, sugerindo para o seu estudo as categorias de representao e apropriao.

    Como aponta Elias Saliba:

    tratava-se agora, de observar como os homens do passado se compreendiam, como eles se constituam a si mesmos, a sua totalidade e a sua prpria histria. Isso se daria atravs da in-terpretao dos elementos culturais, essencialmente como tex-tos, imagens, etc. (SALIBA, 1997, p. 16).

    Nesse sentido, Sandra Pesavento observa que

    representar , pois, fundamentalmente, estar no lugar de,

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    presentificao de um ausente; um apresentar de novo, que d a ver uma ausncia. A idia central , pois, a da substitui-o, que recoloca uma ausncia e torna sensvel uma presen-a (PESAVENTO, 2001).

    nessa direo que Roger Chartier introduz a noo do mundo como representao (1979). Para ele, a Histria Cultural a histria da maneira como os indivduos e a sociedade concebem (representam) a realidade e de como essa concepo orienta suas prticas sociais.

    Segundo Chartier, a Histria Cultural substitui a Histria Social da Cultura, que privilegia as chamadas estruturas econ-micas e sociais na anlise da produo material e cultural das civilizaes, por uma histria cultural do social, que ao contrrio considera o imaginrio social como a fonte das aes individuais e coletivas, materiais e culturais. Essa verdadeira ruptura meto-dolgica no estudo da Histria implica igualmente a redefinio do prprio conceito de cultura: esse conceito no se limita mais chamada cultura intelectual e artstica, mas passa a englobar toda a produo social, no sentido preciso de que tudo cultural, isto , toda prtica individual ou coletiva tem uma matriz cultural e s pode ser compreendida como produto de uma determinada representao do mundo.

    O cinema, antes visto com desconfiana ou desinteresse pelo historiador, por no passar de uma diverso popular, por construir justamente mundos autnomos, fantasiosos e de esca-pe, ganha um outro relevo: lugar das construes e projees do imaginrio, da aferio de sensibilidades e prticas sociais, lugar da representao. Desta forma, se a nfase primeira sobre a utilizao do cinema com fonte e foco, desenvolvida por Marc Ferro (1997), Pierre Sorlin (1996), ou Robert Rosenstone (1995), para citar apenas os decanos, se interessou sobremaneira pelo fato flmico, a Histria Cultural tem apontado para o fato cine-matogrfico2. Apesar disso, importante assinalar que, desde os

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    anos1960 e sobretudo nos 1970, os americanos j se dedicavam a estudar o fato cinematogrfico a freqentao, por exemplo procurando fazer uma Histria Social do Cinema, de tudo aquilo que envolvia a atividade fora da tela do cinema. verda-de tambm que desde os anos 1950 j encontramos artigos da Histria Social, como o de Robert Mandrou3, propondo tambm um enfoque semelhante.

    O fato cinematogrfico alvo de historiadores, mas tambm de socilogos e outros especialistas envolvidos com os estudos de comunicaes e mdia. Essa vertente comeou na Inglaterra nos anos 1960 com a Escola de Birmingham (Centre for Contemporary Cultural Studies), preocupada com a cultura operria: Richard Hoggart, The Uses of Literacy (1957), Utilizaes da Cultura, no Brasil (197,), Culture and Society de Raymond Williams (1958), Cultura e Sociedade (1969), Edward P.Thomson, The Making of the English Working Class (1963), A formao da classe operria no Brasil, (1987). O interesse pela vida cotidiana da classe operria induziu o interesse por outras manifestaes culturais por parte de outros grupos, como os jovens, as mulheres, os negros, e por questes de gnero e raa.

    A Histria Cultural ou Cultural Studies, que est ligada Sociologia e aos estudos sobre a mdia, conduzem ao estudo da recepo, verdadeira pedra de toque na comunicao. Assim, possvel perceber as diferentes nfases na Histria Cultural de origem inglesa e de dominncia francesa, e a verso anglo-americana do Cultural Studies onde o que predomina o interesse pelas vrias mdias e a sua recepo.

    Como parte das mudanas e revises historiogrficas e das novas descobertas documentais que se pem em curso, do incio dos anos 1980 que o cinema conhecido e desvalorizado at ento como primitivo, vai ser revisto e poder alar categoria de Primeiro Cinema, graas s pesquisas de Andr Gaudreault (1982), no Canad e na Frana, e de Tom Gunning, nos Estados

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    Unidos, entre outros (1991), e com a contribuio da brasileira Flvia Cesarino Costa (1995).

    desse momento tambm Film History, de Douglas Gomery e Robert Allen, de 1985, com foco na histria do cinema americano, e De lhistoire du cinma: mthodes historique et histoire du cinema, de Michele Lagny, de 1992, que trata da histria do cinema francs, mas que tem no livro americano sua inspirao inicial. Essas obras colocam em questo as historiografias do cinema constru-das at ento, mas, sobretudo se detm sobre o prprio sentido da disciplina histrica e de suas metodologias. A partir disso, propem novas abordagens para a escrita da histria do cinema. No Brasil, essa atitude visvel com Jean Claude Bernardet em Cinema Brasileiro: Propostas para uma histria, de 1979, e, sobretu-do, Historiografia Clssica do Cinema Brasileiro, de 1995, sem que, no entanto, o seu autor tenha se detido especificamente sobre a disciplina histrica como fizeram os americanos e franceses.

    a historiografia clssica do cinEMa nortE-aMEricano

    Se tomarmos em conta a anlise de Gomery e Allen sobre os Estados Unidos, possvel notar que a historiografia americana de cinema se comps, j nos anos 1920, com Lewis Jacob incen-sando a prpria realizao cinematogrfica e suas aplicaes na indstria americana. uma histria otimista, que narra os su-cessos sempre crescentes da atividade. Assim, o desdobramento dessas vises teve como resultado a construo de uma histria panteo onde figuravam como heris os pioneiros exatamente como na Histria Americana os Fouding Fathers: produtores, atores e tcnicos inventores de tecnologias. A identificao com esses personagens era to grande que os livros eram vendidos por subscrio.

    Como o aspecto econmico central no cinema americano,

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    ou seja, como o cinema foi sempre pensado primordialmente como um negcio que devia render, atrair pblico, e por isso se renovar tecnologicamente com constncia, h nfase sobre esses criadores, construindo-se hagiografias sobre suas realizaes. Gomery e Allen notam tambm que a preocupao com histo-rias de cunho econmico se sobrepe s preocupaes estticas e sociolgicas. Eles propem que as pesquisas se voltem para o mbito econmico, sociolgico, tecnolgico e artstico. Reconhe-cem que a historiografia do cinema americano marcada pela dicotomia entre arte e indstria, na medida em que o aspecto econmico prevalente.

    Por outro lado, Gomery e Allen lembram que s nos anos 1960 e isso acontece tambm no Brasil - que o cinema alado categoria de cultura, quando entra para a universidade. Antes, mero divertimento, no merecia estatuto mais nobre. E a sua popularidade, como apontam os autores, militava contra o reconhecimento cultural universitrio. Mas a absoro acadmica do cinema tem relao tambm com as mudanas no mbito da cultura: ocorrem no mesmo momento em que surgem os estudos sobre cultura popular, sobre os grupos sem voz, como mulheres, negros etc. Assim, o ensino de cinema nos Estados Unidos re-sultado do incio dos Estudos Culturais Cultural Studies no pas. Para isso contribuiu tambm a perda da hegemonia do cinema como divertimento popular para a televiso, ao mesmo tempo em que obras europias de Bergman, Fellini e Rosselini contribuam para o reconhecimento do carter artstico do cinema. Alm disso, o surgimento dos cursos de cinema foi facilitado tambm pelo aparecimento de materiais leves de gravao: cmeras e o filme super 8. O crescimento de cursos vertiginoso e cria a demanda por livros de histria do cinema, reeditando-se os livros clssico de 1920-30 at meados dos anos 1960.

    S quando o cinema reconhecido como lugar de expresso cultural pelas camadas cultas, que agregado universidade

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    e vira foco de interesse no s de curiosos ou amantes, mas dos letrados habilitados. Mas as primeiras teses, como aconteceu tambm no Brasil, so ainda produzidas nos departamentos de Letras e Filosofia.

    Por outro lado, parte significativa dos filmes as fontes pri-mordiais dos estudos de cinema - foi comprometida por questes de ordem tecnolgica. O nitrato, primeiro material para o suporte flmico, explosivo. Isso impedia que se estocassem filmes por mais de 6 meses. Quando o filme j havia dado o seu lucro, era destrudo e jogado no Oceano Pacfico, depois que o original tivesse sido guardado. At que a televiso comeasse a passar filmes nos anos 1950, o valor de uma cpia que j havia feito sua carreira era nulo, assim, no havia interesse econmico na sua preservao, alm de ser tecnicamente muito problemtica. Alm disso, como os filmes no eram vistos como valor cultural, no havia porque preserv-los. Os autores estimam que entre 1896 e 1951 se destruiu uma parte significativa do patrimnio cinematogrfico mundial. Se houve proteo aos filmes, foi ex-clusivamente por preocupao com os direitos autorais, e no por qualquer outra razo. Por conta dessa preocupao, foram depositadas na Biblioteca do Congresso, em Washington, cpias dos filmes tiradas em papel, como fotografias. Com base nesse material foi possvel resgatar 3050 filmes realizados entre 1894 e 1912. Foi a partir desse precioso material que curiosidades tomadas como primitivas puderam alar categoria de uma manifestao cinematogrfica especfica, como o Primeiro Ci-nema, transformando as vises no s do cinema produzido sobre esse perodo, mas o prprio sentido da Histria do Cinema, sem falar da documentao histrico-social que essas imagens representam e cujos estudos permitem.

    Com o surgimento do acetado, material no explosivo que substitui o nitrato na produo da pelcula, em 1951, aliado s mudanas no estatuto social do cinema, o seu reconhecimento

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    artstico, sua entrada no universo escolar levam, nos anos 1960, ao interesse pela conservao dos filmes.

    Essa trajetria descrita pelos autores tem como preocupao central definir o objeto da pesquisa histrica em cinema, e so muitas as suas possibilidades: o filme, a atividade cinematogr-fica, a esttica, a tecnologia, a economia ou os aspectos sociol-gicos. E a partir dessas diferentes abordagens que os autores propem o recorte dos estudos da histria do cinema e do filme como documento cultural.

    a historiografia do cinEMa francs

    O livro da francesa Michele Lagny, de 1992, visivelmente inspirado nos americanos. Para ela, como a escrita da histria do cinema francs no tinha um objetivo determinado, no ha-via sobre ele qualquer reflexo. Assim, o foco de sua anlise vai incidir sobre a disciplina histrica e sobre a Histria do Cinema. Desta forma, mais do que descrever os diferentes estgios do conhecimento histrico na Frana, a autora vai propor discusses sobre a historiografia do cinema francs e suas aproximaes com as mudanas na disciplina histrica.

    No incio da atividade cinematogrfica, os historiadores no levavam o cinema a srio, assim, no viam por que dedicar a ele um estudo ou at mesmo fazer a sua histria, j que no passava de um divertimento. Os historiadores, por outro lado, desde os anos 1970, criticam a Histria do Cinema por sua falta de mtodos. Para Pierre Sorlin, era uma histria santa, j que sem problemtica, o que acarreta uma deficincia metodolgica de origem. Da o carter santo, sagrado, inquestionvel.

    Por outro lado, especialistas como Georges Sadoul escre-veram a Histria do Cinema Mundial4, levando para o cinema a tendncia dos grandes textos panormicos e universalistas que caracterizavam a historiografia. Havia ali preocupao e pesqui-

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    sa, j que Sadoul, por exemplo, veio ao Brasil para conhecer a obra de Humberto Mauro, o nico brasileiro listado em sua obra. Entretanto, esse vis universalista, se contribuiu para divulgar o que se fazia em diferentes pases mostrando que havia cinema fora da Europa e dos Estados Unidos5, sua afirmao servia, certamente, para tirar do cinema americano a centralidade que este se atribua sobre o cinema mundial, algo que s os france-ses aqueles que tomaram a si a primazia sobre a criao do cinema - poderiam fazer. Para tanto, basta pensar nos festejos de 100 Anos do Cinema, em que a efemride no foi a primazia das invenes que foram muitas e em diversos pases, mas a primeira exibio pblica e paga de filmes de Lumire.

    Desse enfoque deriva o vis poltico (e engajado) que in-fluenciou historiadores do cinema brasileiro, como Paulo Emlio Salles Gomes.

    Como observou tambm Lagny (1992, cap. 2), os cortes cro-nolgicos, ciclos ou denominaes de perodo derivam, nessas histrias, mais dos movimentos histricos, econmicos e at mesmo da histria da arte do que seriam propriamente flmicos ou estticos. Se de 1929 a 1945 se pode falar numa Maturidade do Cinema Clssico, lgico que a datao, ainda que tome por base a passagem do mudo para o sonoro, coincide tambm com a Crise de 1929, da mesma forma que 1945, se marca o final da 2a. Guerra marca tambm o surgimento do neo-realismo.

    Partindo dessas constataes, Lagny prope uma aproxima-o metodolgica com os novos mtodos histricos, da mesma forma que aponta, como Allen e Gomery, a necessidade de alargar o escopo de investigao para as questes econmicas e tecnolgicas, alm das artsticas.

    o cinEMa brasilEiro

    Se tomarmos algumas das observaes levantadas pelos au-

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    tores acima, veremos que a Historiografia do Cinema Brasileiro tem com elas pontos em comum, ainda que esteja distante das propostas de uma histria exclusivamente esttica, tecnolgica, ou econmica6.

    Desta forma, gostaria de repensar como se plasmou a histria do cinema brasileiro e como ela foi escrita, lembrando que foi certamente Jean Claude Bernardet quem, desde 1979, primeiro refletiu sobre essas questes.

    Como j apontou Bernardet, a histria do cinema brasileiro seguiu, dentro de suas possibilidades, as formas consagradas de tratamento que as histrias do cinema europeu e americano haviam empregado. Ou seja, construram uma histria factual, de cunho evolucionista, que comparava o desenvolvimento do cinema ao desenvolvimento biolgico.

    Como observa Michele Lagny, em seu livro, fazer a histria construir uma memria destinada a construir uma identidade coletiva. Mas antes de tudo emitir julgamentos sobre o pas-sado que se examina. privilegiar aspectos em detrimento de outros, uma vez que o momento presente e suas interrogaes que norteiam essa escrita. Assim, o objeto dessa histria muda, assim como as suas abordagens.

    Se nos anos 1920 Lewis Jacobs escrevia um livro triunfa-lista sobre o cinema americano, vendido sob subscrio, dado o nmero aprecivel de interessados na obra, no Brasil, a revista Cinearte, atravs de sua Campanha pelo Cinema Brasileiro, lanava as bases sobre como, no seu entender, este deveria ser realizado por aqui. Negando e combatendo a atividade contnua de documentaristas que mostravam atividades sociais e polticas os rituais do poder ou imagens grandiosas e exotizadas da natureza brasileira o bero esplendido7 -, incensa o cinema de carter ficcional e artstico, ditando as regras de sua realizao correta. Por correta, Cinearte entendia o cinema que era capaz de agradar s elites letradas e s classes mdias que, freqentando

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    os cinemas, garantiriam a sua existncia. O grupo Cinearte propunha a primeira de vrias polticas

    cinematogrficas para o pas. A qualidade esttica, artstica e a en-cenao de aspectos modernos do pas garantiriam boas crticas que assegurariam a boa freqentao e, assim, o reconhecimento e a manuteno da atividade. No h preocupao com a forma-o de pblico em geral e, sobretudo, de pblico popular basta ver o descontentamento do crtico Octvio Gabus Mendes por ver que bons filmes passavam em cinemas de bairros operrios como o Brs ou a Mooca em So Paulo8.

    A qualidade e o afluxo do pblico vm das qualidades ar-tsticas do cinema. Assim, ele no obra de artesanato como aquilo que faziam os cavadores, no seu entender, aventureiros do cinema que filmavam com o nico escopo da encomenda, do dinheiro. Isso no era considerado cinema, por Cinearte, e no foi considerado cinema nem mesmo por Alex Viany e outros que, como ele, ensaiam as primeiras histrias da atividade no Brasil no fim dos anos 1950. Essa viso s vai mudar no final dos anos 1960 com Paulo Emlio Salles Gomes (1980) e Maria Rita Galvo (1975) que comeam a empreender o estudo sistemtico de todas as manifestaes da atividade no pas, desde o seu incio, e va-lorizam os cavadores j que realizaram parte significativa da produo flmica existente e, por isso mesmo, foram responsveis pela manuteno da produo cinematogrfica em momentos em que o filme de fico quase desaparece das telas.

    A viso centrada no carter artstico do cinema nortear por muito tempo a valorao da prpria histria do cinema brasileiro (e isso no foi diferente nas outras historiografias pelo mundo), de tal forma que, excetuando-se Paulo Emlio em suas incurses sobre o Pequeno Cinema Antigo (2001) ou A expresso social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930) (1986), Maria Rita Galvo (1975) e Jean Claude Bernardet (1979), que valorizam os cavadores sobretudo por sua contribuio

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    documental e por que foi a sua atividade que manteve o cinema brasileiro, eles, na verdade, s comeam a entrar para a histria mais recentemente.

    Desde o final dos anos 1970, estudos de mbito e escopo distinto j historiavam esses cavadores, pois muitos deles eram considerados pioneiros em suas regies como Silvino Santos, no Amazonas, por exemplo. Assim, podem ser encontrados, a partir desse momento, livros e mais tarde monografias e trabalhos acadmicos que passam a se dedicar ao estudo desses cineastas. Essa tendncia engrossada nos anos 1990 justamente por histo-riadores ou antroplogos a partir dos pressupostos da Histria Cultural (SOUZA, 2007) tendo por foco no apenas os realiza-dores, mas os chamados Ciclos Regionais ou a emergncia do cinema e sua prtica em diferentes locais do Brasil. Ao mesmo tempo, pelo lado do cinema, devido ao interesse contemporneo pelo documentrio, a cavao est sendo recuperada e ganhou um espao de pleno direito no verbete sobre o Documentrio Mudo na Enciclopdia do Cinema Brasileiro organizada por Ferno Ramos e Luiz Felipe Miranda, em 2000. Contraditoria-mente, entretanto, no primeiro livro que se props a sistematizar a histria do documentrio brasileiro, esses trabalhos ainda es-to ausentes, certamente pelo entendimento que tem Francisco Elinaldo Teixeira (2004) sobre o que documentrio, que deve implicar tambm na existncia de um grau de qualidade artstica e narrativa que esses documentrios no tinham. As vises se sobrepem.

    Cinearte tenta levar avante o seu projeto de qualidade e o v frustrado: apesar do sucesso e do reconhecimento crtico de Barro Humano (1929), que leva Adhemar Gonzaga a criar a Cindia, o estdio onde se faria a produo de filmes em moldes industriais, Lbios sem beijos (1930), Mulher (1932) e, sobretudo, Ganga Bruta (1933) no conseguem atrair nem pblico e nem crticos. So considerados ousados, ofensivos, maantes e le-

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    vam Gonzaga a mudar os rumos de sua produtora. O ferrenho crtico dos documentrios comea a faz-los quando, em 1932, a produo de filmes educativos incentivada e sua projeo tornada obrigatria por iniciativa oficial. A partir de 1934 passa a fazer filmes ficcionais musicais de apelo popular como Al Al Carnaval (1936).

    Nos anos 1930, o documentrio oficial vai tomar a cena, empregar parte dos tcnicos e dos antigos diretores e restam al-gumas produtoras centradas particularmente no Rio de Janeiro, onde produzem homeopaticamente Humberto Mauro, Adhemar Gonzaga, Carmem Santos, Lulu de Barros, e outros com filmu-sicais: Favela dos meus amores (1935), Cidade Mulher (1936), Al Al Brasil (1934), Samba da Vida (1937), e filmes patriticos como Alvorada de Glria (1931), O Descobrimento do Brasil (1937), Alma e Corpo de uma Raa (1938).

    Aqui, se h algum projeto, esse do Estado, e se h reflexo, ela est ligada s preocupaes de uso do cinema na educao, e suas relaes com a moral: obras como a do advogado Canuto Mendes de Almeida, Cinema contra Cinema, 1931, de educa-dores, o historiador catlico Jonathas Serrano e o fsico Francisco Venncio Filho, ambos professores do Colgio Pedro II,e autores de Cinema e Educao.

    Durante os anos 1940 at o fim da guerra, esse cenrio se altera pouco, apesar do surgimento do Clube de Cinema de So Paulo, com Paulo Emlio Salles Gomes, abortado por questes polticas e que voltar aps a redemocratizao. Est ali o incio do cineclubismo e as primeiras iniciativas do que vir a ser, a partir de 1956, a Cinemateca Brasileira.

    certamente o influxo internacional e o reconhecimento do papel do cinema na massificao do perodo totalitrio, ou como crtico, com o neo-realismo, que d ao cinema o seu pleno desenvolvimento crtico e de produo no ps-guerra. Local-mente, as vrias questes suscitadas pelas tentativas industriais

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    histria e historiografia do cinema brasileiro: objetos do historiador

    da Cia Cinematogrfica Vera Cruz e outros estdios de menor porte, como a Maristela, em So Paulo, e as discusses em torno da implantao de um Instituto Nacional de Cinema, proposta por Getlio Vargas, no mbito do governo federal, do ensejo ao surgimento dos Congressos de Cinema, foro privilegiado onde os profissionais de tcnicos a diretores e crticos - se reuniram para pensar a atividade no Brasil com desdobramentos no interesse e estudo do cinema. o perodo de surgimento de cineclubes e de uma nova apropriao poltica do cinema, j que muitos dos cineclubes surgiam ligados Igreja Catlica ou ao Partido Comunista. o momento do pleno desenvolvimento do setor de cinema do Museu de Arte Moderna, o que redundou em cursos, exibies e, sobretudo, na constituio de um acervo incipiente (SOUZA, 2005, p. 162).

    Assim, no de estranhar que as primeiras obras historio-grficas do cinema brasileiro sejam desse perodo. Ainda que Alex Viany e sua Introduo ao Cinema Brasileiro, de 1959, restem como fundadores de uma histria panteo muito semelhante quela descrita pelos americanos, mesmo se os seus heris so de outra natureza, essa obra reproduz vises historiogrficas europias sacramentadas no perodo, com destaque para a obra de Georges Sadoul. desse mesmo perodo e sob o influxo da experincia europia, o empenho de Paulo Emlio, na Cinema-teca, que passa a dirigir a partir de 1956, para preservar todos os filmes brasileiros. Paulo Emlio preocupava-se com pesquisa documental. Procurava dar consistncia a essa histria que deixa de ser apenas panormica, para estar calcada em documentao ou na evidncia de sua ausncia. Cinemateca, bibliografias e filmografias fazem com que o cinema brasileiro passe a existir de fato.

    Nessas obras inaugurais, tentava-se contar a histria da ati-vidade, apresentar seus autores e os rudimentos da profisso a descrio de cunho biolgico evolucionista, como apontou Ber-

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    nardet, e teleolgica. Tem como pai fundador Humberto Mauro. Como aponta Jean Claude Bernardet, essa histria tinha como misso fundamental mostrar s camadas cultas da sociedade, e principalmente aos cineastas que o cinema brasileiro tinha um passado, que ele no comeava do zero a cada novo filme, que o Brasil tinha tradio cinematogrfica (2003, p. 17).

    Ainda que o nacionalismo fosse elemento catalisador dessas anlises, o combate ao cinema estrangeiro (ocupante) ainda no fora deflagrado. Por conta das tentativas e fracassos industriais, discutia-se a questo, o papel do Estado, a militncia cinemato-grfica contra a contaminao estrangeira aspecto caro a Alex Viany. Apesar da qualidade dos filmes de Humberto Mauro, a esttica no alvo de preocupao nessas histrias.

    Nos anos 1960, os termos dessa histria vo se acirrar. A crtica assume um papel eminentemente poltico, como se pode ver em Glauber Rocha e Paulo Emlio Salles Gomes. E isso vai tomar maior consistncia com as lutas em torno da Cinemateca e a criao de cursos universitrios em cinema (como estava acontecendo tambm nos Estados Unidos e na Frana), onde ser constitudo um grupo de pesquisadores que ser respons-vel pelas primeiras abordagens sistemticas e metdicas sobre o cinema brasileiro. Pesquisa-se e recolhe-se documentao, procura-se preservar os filmes. Assim como fizera Mrio de Andrade com o patrimnio construdo, Paulo Emlio se lanava s origens criando uma tradio de pesquisa.

    Glauber Rocha, quando escreveu na imprensa os textos que vo compor seu Reviso Crtica do Cinema Brasileiro, editado em 1963, exerceu crtica militante. Ela funcionou como demarcao de espao, chamado ao confronto. obra marcada pela ao sobre o cinema brasileiro daquele momento. Em funo do Cinema Novo, Glauber Rocha estabelece sua prpria historiografia, suas relaes de parentesco: diretores e movimentos que comporo a sua antecedncia, como Humberto Mauro, o pai e bandeira do Ci-

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    nema Novo, e sua oposio: o cinema industrial. Desta forma cria uma viso da histria do cinema brasileiro que auto-referente e cujo ponto mximo o Cinema Novo.

    Amigo de Alex Viany, Glauber elogia o seu livro, mas critica a ausncia de anlises estticas, que faltavam na formao dos cineastas. Ao contrrio disso, Viany centrava-se nos aspectos do engajamento social. Segundo Glauber, precisamos de novas formas e no s de novos temas. Quer maior nfase na anlise do estilo e inveno de uma linguagem ajustada carncia de recursos em tenso com as questes da cultura e da formao nacional. Desta forma, sua reviso crtica pensada a partir do presente, do projeto esttico do Cinema Novo. a partir desses princpios que vai encontrar suas matrizes. Como incensa o ci-nema de autor, o anti-industrialismo e o carter nacional, Hum-berto Mauro torna-se o cineasta paradigmtico enquanto rejeita as experincias de vanguarda ou industriais de Mrio Peixoto, Alberto Cavalcanti e Lima Barreto. Como observou Ismail Xavier em seu comentrio nova edio do livro, Glauber inventa a tradio que interessa.

    70 anos de Cinema Brasileiro, de Paulo Emlio Salles Gomes e Adhemar Gonzaga, de 1966, uma pesquisa baseada no am-plo acervo de Gonzaga. Os vrios perodos so ordenados por ciclos. O modelo , certamente, a Histria Econmica do Brasil, de Caio Prado Jr., de 1938, um dos livros que, segundo Antonio Candido, inventaram o Brasil9. Paulo Emlio pensa o desenvol-vimento do cinema brasileiro da mesma forma que a economia brasileira foi pensada por Caio Prado Jnior, em 1938: a partir de ciclos econmicos onde est implcita a idia de um comeo, um apogeu e um fim que assinala o esgotamento da explorao de um determinado produto. Se o trabalho de Caio Prado segue sendo fundamental, como o de Paulo Emlio, crticas viso cclica no desenvolvimento do cinema brasileiro vm sendo feitas tambm.

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    No final dos anos 1960 e sobretudo nos anos 1970, o gru-po em torno de Paulo Emlio Salles Gomes (Maria Rita Galvo, Ismail Xavier, Carlos Roberto de Souza, Lucilia Bernardet, Jean Claude Bernardet) se volta para a pesquisa dos primrdios do cinema brasileiro, procurando resgatar documentao, filmes, diretores e a crtica. Recolher e salvar os testemunhos de mem-ria que afirmam, como mostra o trabalho de Maria Rita Galvo, Crnica do Cinema Paulistano (1975), que em meio total falta de recursos, foi possvel existir um cinema brasileiro.

    desse momento, tambm, Humberto Mauro, Cataguases e Cinearte, de Paulo Emlio (1974). Mauro o diretor escolhido, certamente pela enorme qualidade esttica de seu trabalho, e tambm por ter conseguido se manter numa carreira cinemato-grfica ao longo de 50 anos onde filmou no chamado Ciclo de Cataguases, participou da Cindia, do Instituto Nacional de Cinema Educativo e fez filmes independentes. O carter arte-sanal de sua obra, uma biografia que aponta para a superao de mentores, ou seja, para a depurao de sua conscincia de elementos culturais supostamente postios ou colonizados fazem do biografado o personagem smbolo de uma luta cultural que o perodo ento preconizava. Esse tambm o momento de Cine-ma: uma trajetria no subdesenvolvimento (1980), texto onde Paulo Emlio apontava a situao de dependncia cultural e ideolgica do cinema brasileiro em relao ao cinema americano e a neces-sidade de lutar contra essa ocupao colonial e estrangeira das telas e das conscincias. Ao contrrio disso, Humberto Mauro, atravs da prpria obra, do seu vnculo nacional, foi capaz de se descolonizar e de oferecer um outro parmetro de produo cinematogrfica.

    Desta forma, a construo histrica que se leva a efeito nesse perodo tem um vis marcadamente militante e nacional que persiste, em muitos casos, at hoje. O campo cinematogrfico pensado de forma dual: entre ocupantes e ocupados. Desta

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    forma, seja em Cinema: trajetria do subdesenvolvimento, seja em Uma esttica da fome, de Glauber Rocha (1995), o cinema se cons-titui como uma arma de resistncia e revanche cultural, para exorcizar o ocupante. Assim, cada filme algo que se arranca do inimigo, por isso, qualquer filme tem valor e melhor do que o melhor filme estrangeiro, como afirmava ento Paulo Emlio Salles Gomes. Assim, se Glauber, em sua Reviso, preocupava-se com a esttica enquanto forma de militncia, de demarcao e crtica, Paulo Emlio encontra o valor dos filmes brasileiros no fato mesmo de existirem.

    Assim, no h mais uma histria panteo, mas a proposi-o de uma histria de resistncia, no contaminada. Escrever a histria era, pois, militar pela existncia do cinema brasileiro. Mauro aparece como o grande pai, querido que era no s por Paulo Emlio, mas tambm por Alex Viany, Glauber Rocha e outros cineastas do Cinema Novo.

    Se essas so as linhas principais que definem a construo historiogrfica do cinema brasileiro, no final dos anos 1980, com Histria do Cinema Brasileiro, organizada por Ferno Ramos, em 1987, vemos uma nova tentativa totalizadora com poucas mu-danas no enfoque. As dataes consagradas e os ciclos regionais persistem, ainda que vistos de uma forma mais abrangente.

    Por outro lado, a partir de 1979, com Cinema Brasileiro: pro-postas para uma histria, que Jean Claude Bernardet (1979) comea a questionar a forma de construo da historiografia do cinema brasileiro, exerccio aprofundado em 1995 com Historiografia Clssica do Cinema Brasileiro. No sugestivo artigo Acreditam os brasileiros em seus mitos, o autor retoma a reflexo de Paul Veyne, Acreditavam os gregos em seus mitos, e repe para o cinema brasileiro a questo sagrada da construo da narra-tiva das origens. A partir da, dataes e idias estabelecidas so questionadas. Alm disso, quando juntou-se a Maria Rita Galvo para entender a questo do Nacional e Popular no

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    cinema brasileiro, novas construes mitolgicas sobre o que nacional foram questionadas. Certamente foram esses trabalhos que permitiram desdobramentos mais conseqentes, como o do historiador Jos Incio Mello Souza. Em Imagens do Passado, centrado nos anos 1910, tendo por base documentao de jornais e da literatura, pode reavaliar a consistncia da chamada Bela poca do cinema brasileiro que, no seu entender, questio-nvel, pois, se existiu, no passou do mbito da produo da Capital Federal (SOUZA, 2004). Assim fazendo, Jos Incio nos faz atentar para outra caracterstica recorrente dessa histria: a atribuio do carter nacional a uma produo que, com exceo do perodo mudo, onde a produo ficcional e documental - se desenvolveu em diferentes regies do pas , ela fundamental-mente carioca e paulista.

    o historiador E o cinEMa

    No campo da Histria, a pesquisa em torno da Histria e Cinema e da Histria Cultural conduziu a novos enfoques e reavaliaes. Com a preocupao com as sensibilidades, o coti-diano, a expresso de grupos marginalizados, as manifestaes da privacidade, outros materiais e enfoques passam a ter valor. E isso, ainda que no tenha como foco a histria do cinema, acabou por modific-la, enriquec-la, mudando as vises e valoraes tradicionais.

    A questo da circularidade cultural, posta por Mikhail Bakthin (1987), que pe por terra as dicotomias entre cultura popular, cultura erudita, ou as questes sobre o hegemnico e o ocupado passam a ter outra forma de abordagem que no a oposio, mas, ao contrrio, a compreenso interna de seus componentes, os dilogos e sobreposies.

    A idia do mundo como representao, posta por Roger Chartier, d ao cinema e a toda a atividade social a ele ligada,

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    assim como a sua projeo, seja na concretude da economia, seja na imaginao, um papel fundamental como forma de conhe-cimento.

    Assim, podemos observar que, dentre as mais de 600 teses arroladas por Jos Incio Melo Souza sobre cinema brasileiro desde 1995, h uma multiplicidade de abordagens, de temas que tocam sempre diversas reas, tendo a interdisciplinaridade como referncia marcante. Nesse ponto, poderia incluir tambm o meu prprio trabalho Humberto Mauro e as imagens do Brasil. Se a minha formao no passou diretamente pelo cinema, mas pela Histria e Histria e Cinema, Humberto Mauro e as imagens do Brasil uma obra que parte da construo das imagens de Mauro sobre o Brasil, mas que acaba se defrontando com as questes postas pela historiografia do cinema brasileiro, pelas vises em torno de Humberto Mauro e seu lugar como suposto pioneiro e patriarca. Desta forma, meu trabalho me levou tambm discusso sobre as construes historiogrficas, seus mitos, o papel de Mauro dentro delas e ao exame cinematogrfico e esttico dessas imagens.

    Desta forma, encontramos hoje trabalhos no mbito da eco-nomia, arquitetura, freqentao das salas de cinema, da crtica, da msica, da anlise da recepo, do papel do cinema na urba-nizao e na projeo da idia do urbano e da modernidade.

    Por outro lado, possvel notar tambm alguns traos comuns s pesquisas propostas originalmente no mbito da Histria e do cinema: os profissionais de cinema e comunicao esto mais interessados pelos fenmenos contemporneos e em sua maioria ligados ao universo propriamente flmico, ao fato flmico, preocupando-se com as questes narrativas, de gnero, de uso do espao e de todo o arcabouo tcnico, potico e nar-rativo que compem o cinema. Grosso modo, os trabalhos mais antigos so dedicados Companhia Cinematogrfica Vera Cruz e aos perodos subseqentes onde mais fcil encontrar docu-

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    mentao escrita, filmes, etc. Onde o documento obvio e se no , o filme j suficiente como fonte para a pesquisa.

    J entre os historiadores, e tambm entre socilogos e an-troplogos, grande o interesse pelo cinema do incio, at os anos 1940. O cinema, muitas vezes, no o foco central. Ele elemento de estudo como objeto de fruio, hbito da moder-nidade. Ele algo sobre o qual se projetam vises. O foco no o filme, mas o fato cinematogrfico. Por exemplo: O cinema na vida de Recife no comeo do sculo XX, ou como o cinema era visto na Imprensa em Porto Alegre, o cinema nas crnicas dos jornais at os anos 30 no Paran. Mas o cinema tambm uma porta a partir da qual se pode conhecer o funcionamento do Estado durante a ditadura de Vargas, as suas formas de controle social, seu iderio expresso, no s nos filmes do perodo, mas, sobretudo, nas obras oficiais produzidas por organismos como o Instituto Nacional de Cinema Educativo e o DIP Departamento de Imprensa e Propaganda. Ocioso dizer que mostram justamente faces distintas, complementares e muitas vezes contraditrias desse mesmo poder a que servem10.

    Com historiadores e outros especialistas, o foco sai da tela para a sala, o espectador, as significaes simblicas do cinema, a freqentao e as prticas sociais. Isso agregou rigor aos estudos de cinema, ampliou o foco, e tornou mais ricas as abordagens. Ou seja, o cinema um foco privilegiado de observao de algo que mais ampliado o cotidiano, a vida na fbrica ou na cidade. O cinema , portanto, um meio que se emprega para conhecer um mbito maior, um meio a partir do qual se lana mo para conhecer sentimentos, subjetividades, reaes. Ou o espelho onde se observa a forma de encenar a mulher, ou o homem: as representaes.

    A partir desses inmeros enfoques e sem explorar a rela-o cinema e histria, hoje j bastante conhecida e utilizada pelos especialistas, procuramos deixar aqui uma reflexo preliminar

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    histria e historiografia do cinema brasileiro: objetos do historiador

    sobre as formas pelas quais a histria do cinema brasileiro foi escrita, as prticas de pesquisa e as mudanas que vm acom-panhando os estudos que tm o cinema por objeto. Procuramos mostrar de que forma a historiografia do cinema brasileiro tem construdo essa histria e de que forma os estudos histricos tm contribudo para o seu conhecimento, crtica e mudana. apenas um esboo e um chamado reflexo. tambm a constatao de que a histria do cinema , hoje, no s fonte de conhecimento da disciplina histrica, mas tambm, felizmente, seu alvo.

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    1 Idia que se sedimenta com os escritos de Marc Ferro, em 1968, quando publica nos An-nales seu primeiro artigo sobre o tema. FERRO, Marc. Socit du XXe. sicle et histoire cinmatographique. In: Annales E.S.C., n. 3, 1968, p. 581 a 585.

    2 Essa diferenciao de Cristian Metz. A significao no cinema. So Paulo: Perspectiva, 1972.

    3 MANDROU, Robert Histoire et Cinma Annales E.S.C. Paris, Armand Colin, jan.-mars.1958,v. 13, n.1, p. 140. A sua proposta est prxima de uma histria social do cinema, onde a preocupao quanto ao crescimento das salas de exibio, a com-parao entre o nmero delas no campo e na cidade. A partir da leitura de Le Cinma u lHomme Imaginaire, de Edgar Morin (Paris, Minuit, 1956), prope que se escreva uma histriaampla e ambiciosa do cinema. Seria, de incio, uma Psicologia Social, um reconhecimento dos cruzamentos dessas mltiplas foras ao trabalho, do econmico ao espiritual... Na verdade, o cinema coloca todos os problemas jamais resolvidos e ja-mais abordados de frente, das superestruturas da vida social, para empregar esta bela palavra, perigosa, mas necessria

    4 SADOUL, Georges. Histria do Cinema Mundial. v. I e II. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1963. O original francs de 1946.

    5 na verso do livro de 1963 que o autor insere 3 captulos sobre o Oriente e pases da Amrica Latina.

    6 Esta vem recebendo contribuies significativas com os estudos de Arthur Autran. O pensamento industrial cinematogrfico brasileiro.Tese (Doutoramento), Unicamp, 2004, e Andr Gatti. O consumo e o comrcio cinematogrfico no Brasil vistos atra-vs da distribuio de filmes nacionais: empresas distribuidoras e filmes de longa-metragem (1966-1990), Mestrado, ECA,USP, 1999.

    7 Rituais do Poder e Bero Esplndido so denominaes criadas por Paulo Emlio Salles Gomes (GOMES, 1980).

    8 Cinearte 2, 10/2/1926.

    9 CANDIDO, Antonio. Prefcio. In: HOLLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. Cia. Editora Nacional, 1968.

    10 Esses vrios ttulos podem ser encontrados na pesquisa de Jos Incio Melo Souza no site Mnemocine.

    Recebido em: Agosto de 2006Aprovado em: Outubro de 2006