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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUCSP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL Sheila de Souza Backx Justiça social: contribuições para sua resignificação no âmbito do Serviço Social DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUCSP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL

Sheila de Souza Backx

Justiça social: contribuições para sua resignificação no âmbito do Serviço Social

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUCSP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL

Sheila de Souza Backx

Justiça social: contribuições para sua resignificação no âmbito do Serviço Social

Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Carmelita Yasbek

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO 2008

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Banca Examinadora

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A família e aos amigos, pelas ausências e omissões.

A Guta e ao Luiz, por arcarem de perto com as dificuldades do processo.

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AGRADECIMENTOS

Esta talvez seja uma das partes mais difíceis do trabalho. Não pelo fato de que seja difícil

agradecer, mas a questão que se coloca é a quem agradecer na medida em que tantos

contribuíram para a realização deste trabalho: a omissão é o risco. Na busca de um meio termo

entre agradecimentos mais amplos e a recomendação do órgão técnico competente, agradeço aos

que contribuíram indiretamente sem referenciá-los nominalmente – aliás, não haveria espaço

suficiente.

Assim começo agradecendo ao corpo docente do Programa pelo acolhimento e, em

especial a Profa. Dra. Carmelita Yasbek que se dispôs não só a me orientar, mas também a

caminhar comigo em “terrenos movediços” quando mudei de tema. Pela disponibilidade, mas,

sobretudo pelo afeto e amizade, muito obrigada. Ao Prof. Dr. Evaldo Vieira, pelo “mote” (que

ainda não foi explorado, mas levou-me a caminhos que julgo também importantes) e pela

paciência em me guiar pelo raciocínio de autores dos quais estava muito afastada. Ao Prof. Dr.

José Paulo Netto pelos comentários sempre instigantes que dispensou a este trabalho.

Fora do âmbito do Programa tenho a agradecer ao Prof. Dr. José María Gómez que

gentilmente me acolheu em sala de aula e discutiu pacientemente minhas dúvidas e questões,

principalmente no que diz respeito ao debate contemporâneo. A Profa. Dra. Cacilda Machado

que, carinhosa e cuidadosamente, revisou os originais e sempre acompanhou de perto – tecendo

comentários preciosos – os caminhos deste trabalho.

No plano institucional cabe agradecer a Congregação da Escola de Serviço Social da

UFRJ pela aprovação final de meu afastamento, bem como aos colegas do Departamento de

Métodos e Técnicas que assumiram minhas tarefas ao longo dos quatro anos em que estive

afastada; período em que contei também com o apoio do CNPq, sem o qual não teria sido

possível a realização deste trabalho.

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BACKX, Sheila de Souza. Justiça social: contribuições para sua resignificação no âmbito do Serviço Social. São Paulo, 2008. Tese (Doutorado em Serviço Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

RESUMO

O presente trabalho enfoca diferentes concepções de justiça social, objetivando fornecer aos assistentes sociais instrumentos mínimos para situarem-se no debate contemporâneo sobre o tema. Justifica-se, por um lado, pela denominada “reestruturação das políticas sociais” que decorrem das transformações que se processam a partir do contexto global do final dos anos 80; transformações que implicam em debates sobre a redefinição da esfera pública no mundo atual e, no campo da política social, têm significado central, pois se inserem nas questões relativas ao papel do Estado e sua relação com a sociedade civil, tanto na deliberação como na execução da política social, interferindo na configuração do padrão de proteção social. Por outro, pela necessidade sentida de provocar essa categoria profissional - que faz da “justiça social” quase que sua marca registrada - a pensar o conteúdo teórico que atribui à expressão. Defende-se, principalmente, que: o uso da expressão “justiça social” oculta as relações sociais de produção; apesar da importância da contribuição de Marx para o alargamento das teorias da justiça, sua obra, a rigor, se coloca “além da justiça” (HELLER, 1998), o que significa que pensar em termos de justiça social ou distributiva é situar-se estritamente nos marcos da sociedade burguesa. Na introdução do trabalho recupera-se questões gerais em relação ao tema, aspectos do pensamento antigo e medieval sobre a justiça, bem como os princípios de justiça; o objetivo desta parte é “limpar o campo”, refutando-se determinadas concepções correntes no âmbito do senso comum que turvam ainda mais a compreensão da discussão sobre o tema. O restante do trabalho foi estruturado em três seções que recuperam as grandes temáticas defendidas dentro de cada uma dessas concepções/teorias, a saber: o liberalismo clássico e moderno, o chamado igualitarismo, bem como o liberalismo radical e o chamado liberal-igualitarismo. Cabe esclarecer que este trabalho não tem a pretensão de se inscrever no campo da “história da filosofia”, mas remonta aos antigos tendo como fio condutor o debate contemporâneo, sobretudo a contribuição de John Rawls. A última parte - considerações finais – além de sumariar o conjunto de questões que sustentam as hipóteses defendidas, retoma algumas implicações para o Serviço Social hoje.

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BACKX, Sheila de Souza. Justiça social: contribuições para sua resignificação no âmbito do Serviço Social. São Paulo, 2008. Tese (Doutorado em Serviço Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

ABSTRACT

This work highlights different conceptions of social justice, and its objective is to supply

basic tools to make social workers able to place themselves in the contemporary debate about the theme. From one side it is justified due to the denominated “social political reconstruction” which comes from global context transformations in the end of the 80’s; transformations involving debates about public matters redefinition in the present, and it has a main role in the social political field inserting points related to the State and its relation with civil society as much in deliberation as in social politic execution, interfering in the social protection standard configuration. From the other side the need of inciting this professional category- which takes “social justice” as their sign – to think about the theoretical content given to the expression. The main supported idea is that the “social justice” expression application conceals the production social relations; despite the importance of Marx contribution to the justice theory widening, his work, certainly, is “beyond justice” (HELLER, 1998), what means that thinking of distributive or social justice means to be situated strictly in the middle-class society boundaries. The work introduction recuperates general points related to the theme, aspects from the ancient and medieval thought about justice, as well as the justice principles; the objective of this part is to “clean the area”, denying certain concepts in the common sense field which disturbs even more the discussion understanding about the theme. The rest of the work was structured in three parts which recuperate the great themes supported inside each of these concepts theories, like: the classic and modern liberalism, the denominated equalitarianism, as well as the radical liberalism and the denominated liberal-equalitarianism. It's important to inform that this work has no intention to inscribe in the “philosophy history” field, but it goes back to the ancients having as main idea the contemporary debate, over all John Rawls contribution. The last part besides summarising the topics that give support to the hypothesis defended, it retakes some points to the Social Work nowadays.

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO, 9 1.1 Contextualizando o tema, 14 1.1.1 Algumas lições da antiguidade e do medievo para o tema, 16 1.1.2 Justiça social: uma aproximação, 23 1.1.2.1 Um interlúdio necessário: a propósito da questão da justiça em Marx, 27 1.1.2.1.1 Princípios de Justiça, 32 1.1.2.2 Justiça e igualdade: novos significados, outras concepções, 42 1.2 Linhas gerais do trabalho, 44 2 JUSTIÇA E IGUALDADE, 47 2.1 Século XVI: o chanceler, o povo e o pastor, 51 2.1.1 Thomas More e sua Utopia, 53 2.1.2 O pregador sem igreja e a revolta camponesa, 60 2.1.2.1 O massacre dos camponeses na Alemanha, 66 2.2 Embate com o pensamento liberal inglês do XVII: os niveladores e os cavadores, 74 2.3 O Século das Luzes e os homens desse tempo, 78 2.3.1 O padre ateu, 80 2.3.2 O ilustre desconhecido: Morelly, 95 2.3.3 As origens das desigualdades e uma nova proposta de contrato social, 103 2.3.3.1 O estado de natureza em Rousseau, 105 2.3.3.2 A “Idade de Ouro”, 108 2.3.3.3 O avanço da desigualdade: a propriedade, 110 2.3.3.4 De ricos e pobres a poderosos e fracos, 113 2.3.3.5 Senhor e escravo: último grau da desigualdade ou o retorno à igualdade, 114 2.3.3.6 Os limites da desigualdade, 117 2.4 O anúncio do Mundo Contemporâneo, 124 2.4.1 No calor da hora, 125 2.4.2 O socialismo de Owen, 137 2.4.3 A “busca da justiça na igualdade”: a anarquia positiva de Proudhon, 149 2.5 Justiças e igualdades: (des)semelhanças, especificidades, 161 3 LIBERALISMO, IGUALDADE E MERCADO, 168 3.1 A justiça para os liberais clássicos, 172 3.2 O liberalismo revisionista, 183 3.3 Justiça, desigualdade e liberdade, 190 4 JUSTIÇA, EQUIDADE E DESIGUALDADE, 193 4.1 Justiça como equidade em Rawls, 193 4.1.1 Sobre Uma Teoria da Justiça, 195 4.1.2 Sobre O Liberalismo Político e outras revisões posteriores, 216

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4.2 Alguns contrapontos à obra de Rawls, 228 4.2.1 O liberal liberalismo, 228 4.2.1.1 A desigualdade como regra do jogo, 229 4.2.1.2 Radicalidade à direita em uma obra renegada, 241 4.2.2 Aspectos da Crítica Comunitarista, 247 4.3 Algumas implicações para se pensar concepções de política social, 251 CONSIDERAÇÕES FINAIS, 260 REFERÊNCIAS, 270 APÊNDICE, 280

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1 INTRODUÇÃO

O presente estudo1 tem como área temática a discussão sobre justiça – mais

particularmente falando, sobre a justiça social. Contudo não se trata de remissão aos seus

fundamentos sócio-históricos ou à sua caracterização, nem tão pouco sua conceituação. A

motivação para este estudo é atual e justifica-se tanto pela recente configuração da política social

no Brasil, como pela importância da justiça social no ideário do Serviço Social.

Em relação a política social tem-se, de um lado, a Constituição Federal que dispõe que “a

ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça

sociais”2, especificando no artigo 6º os direitos sociais3: “educação, saúde, trabalho, moradia4,

lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos

desamparados”. De outro, assiste-se as mais variadas e inimagináveis expressões da questão

social que desafiam a realização desses direitos; constata-se que se a lei, num Estado moderno, é

indispensável para instituir um direito, ela não é (e, de fato, não tem sido) suficiente para garanti-

lo. Ademais, verifica-se que nem todos os direitos sociais são tratados do mesmo modo5 e que

nesta formação social ainda estão extremamente marcados não pelo status da cidadania, mas sim

1 Vale ressaltar que a idéia de sua realização surgiu de uma provocação (no sentido de convocação para pensar) formulada em sala de aula pelo Prof. Dr. Evaldo Vieira; a idéia foi gentilmente acolhida pela orientadora Profa. Dra. Carmelita Yasbeck que apostou na relevância da discussão. No entanto, a forma de desenvolvimento da proposta é de total responsabilidade desta signatária. 2 Artigo 193, único artigo do Capítulo I, Título VIII. Esse título versa sobre a Ordem Social e trata das seguintes matérias: Seguridade Social (Capítulo II – arts. 194 a 204), Educação, cultura e desporto (Capítulo III), Ciência e tecnologia (Cap. IV), Comunicação social (Cap. V), Meio ambiente (Cap. VI), Família, criança, adolescente e idoso (Cap. VII) e Índios (Cap. VIII). 3 Esse artigo encontra-se no Capítulo II (arts. 6º a 11) que trata dos direitos sociais; esse Capítulo situa-se no Título II que versa sobre os direitos e garantias fundamentais; no entanto, os demais artigos do Capítulo II tratam de questões diretamente ligadas aos trabalhadores formais, apesar de destinar-se aos direitos sociais. 4 Introduzido através da Emenda Constitucional no. 26, de 2000. 5 Dentre os direitos que estão relacionados no artigo 6º destacam-se o trabalho, a moradia, o lazer e a segurança – aliás, não qualificada no texto legal -, bem como a educação que, no nível fundamental, vem sendo tratada mais como condicionalidade de determinados programas sociais do que como um direito a ser exercido.

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pela condição de trabalhador assalariado formal – condição cada vez mais difícil de ser

alcançada.

Como é sabido, o contexto global do final dos anos 80 marcou um período de mudanças

significativas na sociedade capitalista (transformações radicais no mundo do trabalho, crises

econômicas e o avanço da ofensiva liberal-conservadora) pressionando – através dos organismos

internacionais e dos países hegemônicos – pelo esvaziamento do Estado e do seu papel regulador

da sociedade (FIORI, 1995). Essas transformações têm suscitado debates sobre a redefinição da

esfera pública no mundo atual e, no campo da política social, têm significado central, pois se

inserem nas questões relativas ao papel do Estado e sua relação com a sociedade civil tanto na

deliberação como na execução da política social, interferindo na configuração do padrão de

proteção social. No caso brasileiro, em particular, esses fatores aliam-se a uma cultura política

patrimonialista, privatista e que recusa a universalização da cidadania e, conseqüentemente, dos

direitos sociais.

Tal quadro tem suscitado uma série de trabalhos, pesquisas e estudos voltados para as

questões colocadas para o conjunto da política social em geral e para alguns setores em

particular; também a própria legislação complementar – que se contrapõe aos princípios gerais

estabelecidos na Constituição Federal de 1988 – provoca investidas das áreas acadêmicas nas

questões relativas à gestão, ao monitoramento, ao controle social e aos fundamentos dessa ou

daquela setorial da política social brasileira.

Neste panorama, aqui sinteticamente retratado, obviamente cabem discursos de diferentes

matizes ideológicos e teóricos sobre a “Justiça Social”; cabe perguntar, no entanto: que justiça

social? Hodiernamente, assiste-se ao uso intensivo dessa expressão6, tanto no conjunto da

6 Uma rápida consulta ao sítio Google (e somente nas páginas em português), revelou um resultado de 278 mil registros para a expressão. Ao observar a fonte de grande parte dos endereços relacionados, verifica-se o uso pelos

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sociedade brasileira, como no mundo como um todo, freqüentemente associada à necessidade de

um novo “pacto social”, sem que, todavia, se revele um conteúdo unívoco.

Como aponta Álvaro de Vita (2004)

Um dos problemas que afetam tanto a pesquisa acadêmica sobre as políticas sociais quanto, ao que parece, a própria formulação dessas políticas no Brasil, é o de que essas coisas costumam ser discutidas sem que nenhum vínculo claro seja estabelecido com uma concepção plausível de justiça social.

No que diz respeito ao Serviço Social a expressão aparece explícita e implicitamente na

produção, no projeto ético-político e no discurso dos profissionais; é quase que uma marca

registrada da profissão. Se historicamente a expressão foi incorporada na versão defendida pela

Doutrina Social da Igreja, contemporaneamente ela necessita ser explicitada. Porém, isto não se

configura como um problema específico do Serviço Social; a produção recente tanto no âmbito

das Ciências Sociais, como na da Ciência Política, aparece, grosso modo, marcada pela

indiferenciação.

Essa indiferenciação angustia particularmente o assistente social em função da

incoerência entre a intenção da ação e o seu resultado. A rigor, a decisão de se lançar sobre esse

tema – que, simultaneamente, é tão próximo no plano do cotidiano profissional, mas também tão

distante do Serviço Social, no plano teórico - vem do acompanhamento dessa angústia na

condição de docente que tenta pensar a formação profissional de modo crítico e participa da

formação e qualificação profissional de alunos e de assistentes sociais.

Neste sentido, entende-se como oportuna a pretensão de contribuir para o desvelamento

de alguns princípios, teorias e concepções de justiça social, objetivando fornecer elementos para a

mais diferentes atores e para as mais diferentes finalidades: partidos políticos (cobrindo todo o espectro: da extrema direita à extrema esquerda), organizações não governamentais (com as mais diversas linhas de ação, objetivos e população alvo), páginas dos governos federal, estaduais e municipais, associações de categorias profissionais ou áreas de trabalho, dentre outras, além de eventos e algumas produções “acadêmicas” (das mais variadas espécies). O que só ratificou a hipótese da denominada “justiça social” como expressão canônica, no sentido empregado por Bobbio (2000, p. 207) referindo-se aos textos clássicos, ou seja, descontextualizada, tornando-se uma máxima “que pode ser usada nas mais diversas circunstâncias”.

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reflexão dos assistentes sociais em seus embates/impasses cotidianos. Não se pretende, neste

momento, pensar a política social brasileira em seu significado, suas possibilidades e limites na

contemporaneidade. Nem tão pouco realizar incursão no mundo tanto da filosofia ou da teoria

política. Esta é a principal marca e, simultaneamente, limite do presente trabalho. Assim, trata-se

de recuperar o debate entre as principais concepções de justiça social de modo a permitir, num

desdobramento futuro, iluminar suas implicações na política social brasileira contemporânea.

Desta forma o trabalho contém três seções que recuperam as grandes temáticas defendidas

dentro de cada uma dessas concepções/teorias, a saber: o liberalismo clássico e moderno, o

chamado igualitarismo, bem como o liberalismo radical e o chamado liberal-igualitarismo.

Na introdução, especificamente, recuperam-se questões gerais em relação ao tema,

aspectos do pensamento antigo e medieval sobre a justiça, bem como os princípios de justiça; o

objetivo desta parte é “limpar o campo”, refutando-se determinadas concepções correntes no

âmbito do senso comum que turvam ainda mais a compreensão da discussão sobre o tema. Dado

o longo intervalo de tempo, apresenta-se (como apêndice) uma cronologia7 para auxiliar o leitor

na localização dos períodos históricos, complementando as notas de rodapé que os situam

brevemente.

Contudo, cabe aqui uma explicação adicional sobre a própria forma de construção deste

trabalho – afinal, ele surge de uma preocupação contemporânea e, no entanto, remonta aos

antigos.

Em primeiro lugar deve-se esclarecer que o fio condutor desse retorno à grande tradição

do pensamento político ocidental é o próprio John Rawls e isto porque: a) esse autor se diz

legatário de Kant e Rousseau e reinterpreta o conceito aristotélico de equidade; b) suas

7 Esta cronologia obviamente é sumariada e parcial; considerando seu objetivo, ela vai somente até o início da II Grande Guerra Mundial.

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argumentações – elípticas, diga-se de passagem – retomam sistematicamente essa tradição; c) a

decorrência direta é que – para entendê-lo de modo minimamente conseqüente – se torna

indispensável esse retorno; d) especialistas apontam-no como a grande – e obrigatória - referência

contemporânea para se discutir esse tema, bem como sua influência em várias disciplinas

(filosofia política e social, ciências jurídicas, econômicas, sociais e política, ética médica,

psicologia, urbanismo e ecologia são algumas delas). De fato, cada vez mais se encontra remissão

ao nome desse autor, bem como aos princípios de justiça que defende e à sua concepção de

“justiça como equidade” seja nos discursos governamentais, como no de entidades

comprometidas com o avanço de determinados setores da política social brasileira – como a

Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), por exemplo. Ressalte-se que, no plano

discursivo, o setor saúde da política social foi o primeiro a incorporar a expressão “equidade” em

substituição à “igualdade”, apelando para o atendimento dos “menos favorecidos”8.

8 Na proposta de organismos internacionais, a equidade em saúde é entendida como superação/eliminação de desigualdades que, em determinado contexto histórico e social, são evitáveis e consideradas injustas, significando que necessidades diferenciadas da população sejam atendidas por meio de ações governamentais também diferenciadas (WHITEHEAD, 1992). Sua primeira formulação data de 1990, quando foi incorporado em documento apresentado a Organização Mundial de Saúde (OMS). A justificativa é a de que a observância do princípio da universalidade exige, em função do contexto de profundas desigualdades sociais no país, a incorporação da equidade como princípio orientador da implementação da política de saúde. Sua importância também se revelaria pela incorporação da idéia de respeito à diversidade, pois permitiria um melhor atendimento (OPS, 2002). O alcance da equidade, portanto, implicaria em promover uma redistribuição de bens e serviços determinantes da saúde de forma a dar conta dessas diferenças – o que significaria priorizar os menos favorecidos. No Brasil, o conceito surge em documentos oficiais somente a partir de 1996 (mais precisamente na Norma Operacional Básica do SUS no 01/96, de 05.11.96). Já na literatura produzida na área, freqüentemente é empregado como sinônimo de igualdade ou como justificador de ações focalizadas no setor saúde, antes determinadas pela situação epidemiológica de determinados grupos vulneráveis, bem como critério definidor de investimentos. Em linhas gerais, sua aplicação se remete aos seguintes sentidos: desigualdades no estado de saúde da população (e, portanto, resultado das iniqüidades que existem no próprio sistema de saúde), problemas no acesso e utilização dos serviços de saúde e situações alocativas de recursos financeiros e humanos. Essa polissemia pode ser explicada pelo fato de que esse setor sempre trabalhou com o enfrentamento de situações específicas em função de dados epidemiológicos que, grosso modo, revelam as condições sociais da grande maioria da população; aliás, procedimento previsto no inciso VII, do Artigo 7o, da Lei Orgânica da Saúde (“utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática”). Ou seja, na área sempre houve um atendimento desigual para situações desiguais. Considerar as iniqüidades (“injustiças”) em saúde como resultado das desigualdades sociais (estruturais e de acesso aos serviços) facilitaria o emprego do conceito descolado de seu contexto original. A construção sui generis do sentido da equidade no setor saúde, caminha pela seguinte lógica: tendo-se como pressuposto o conceito de saúde formulado e difundido na VIII Conferência de Saúde (ou seja, resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a

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Em segundo lugar um trabalho deste tipo só se justifica pelo compartilhamento das

informações que contém ou das idéias que defende; isto significa que foi uma opção – com todos

os riscos que dela decorrem – partilhar esse retorno ao pensamento político partindo da hipótese

que a grande maioria dos assistentes sociais pode estar – tal qual a signatária estava – afastada

dessa discussão; por outro lado, a forma fragmentada e parcelar de pensar e lidar com as

informações – que é determinada por este modo de produção – dificulta sobremaneira o

processamento das propostas desses pensadores.

Obviamente a opção feita não justifica plenamente a “tensão entre história e teoria”, na

medida em que cada proposta é uma resposta a desafios colocados aos pensadores pelo contexto

de seu tempo; mas, por outro lado, como sinalizam Maffettone e Veca (2005), uma solução

puramente contextual não lança alguma luz sobre a questão mais importante do ponto de vista de

uma reconstrução racional que tem por fio condutor a proposta de justiça de Rawls.

1.1 Contextualizando o tema

Este trabalho tem um aspecto introdutório preliminar, dada a natureza do próprio tema

que remete ao núcleo da grande tradição do pensamento político ocidental; isto significa recorrer

a uma gama significativa de pensadores que produziram diferentes concepções de justiça em

contextos sócio-históricos distintos e, obviamente, partilhavam de visões de mundo distintas,

determinadas, sobretudo por diferentes modos de produção que interferem no modo de viver e de

serviços de saúde), identifica-se a desigualdade (ou iniqüidades) da população para justificar determinadas ações. Nessa linha argumentativa, a equidade poderia ser monitorada e avaliada em sua evolução ao longo do tempo, sendo objeto de preocupação por parte de programas de avaliação de ações e/ou programas desenvolvidos na área da saúde. Assim, organismos internacionais (e em especial a Organização Pan-americana de Saúde, 2001) indicam a necessidade de se avançar na construção do conceito e sua operacionalização para a área no que diz respeito ao processo de avaliação. O que está em jogo, portanto é a questão da igualdade com o seu referente de universalidade e o conceito de equidade interpretado como focalização (v. BACKX, 2004).

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pensar. Em síntese, cada pensador formula sua teoria como resposta aos problemas de justiça

colocados pelo contexto local e social de seu tempo.

Como conseqüência, uma das principais dificuldades para tratar desse tema é, por um

lado, a inexistência de uma definição absoluta (a justiça é um conceito normativo, passível de ser

descrito através de princípios que variam ao longo do tempo e em conformidade com

determinadas formações sociais); por outro, devido a sua relação com outros valores políticos

(como liberdade e igualdade) que constituem a base do pensamento político ocidental.

Desta forma, como não se trata de apresentar uma história das idéias políticas, tão pouco a

vida e a obra completa de cada pensador em seu contexto de origem, as discussões dos autores

abordados ao longo do trabalho serão apresentadas por temáticas. A exceção é a teoria de justiça

de John Rawls que, dada a complexidade dos seus argumentos, segue a lógica de apresentação de

seus livros.

Contudo, vale alertar que, por se situar numa grande tradição teórico-intelectual, a justiça

social em dados contextos sócio-históricos foi tratada subsumidamente à questão da chamada

justiça geral, pois, para os gregos – por exemplo - não havia distinção entre o “político” e o

“social” (BOBBIO, 2000). Com essa ressalva, pretende-se marcar que este trabalho não versa

sobre a justiça como uma virtude individual9 (ou como conformidade da conduta a uma norma),

apesar de em certos momentos essa conotação se fazer presente na abordagem dos clássicos.

Aqui interessa a justiça “como eficiência de uma norma ou sistema de normas”, no sentido de

9 A justiça - como uma noção ética fundamental e não determinada - operaria num duplo registro: de um lado, como conformidade ao direito e, por outro, como valor ou como virtude (COMTE-SPONVILLE, 1999). Como virtude, poderia vir a ser de uma sociedade, mas prepondera a conotação individual, de sujeitos particulares (acepção subjetiva, posto que exercida pela vontade). Como valor, é entendida como uma exigência social – tal como a legalidade – mas vai além dela (acepção objetiva, usualmente empregada para designar – ou negar – uma qualidade da ordem social, de uma lei e/ou instituição). Como probidade pessoal os imperativos ocidentais principais são aqueles sistematizados por Justiniano, imperador romano do Oriente (527-565), a saber: viver honestamente, não lesar ninguém e “dar a cada um o que é seu”.

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“certa capacidade de possibilitar as relações entre os homens” (ABBAGNANO, 2003, p.593);

apesar de significados interligados, são distintos.

1.1.1 Algumas lições da antiguidade e do medievo para o tema

Este item objetiva recuperar o sentido da justiça para alguns pensadores antigos e

medievos. Sua inclusão no presente trabalho justifica-se pela recorrência com que, por um lado,

os autores ainda evocam questões colocadas nesses períodos; e, por outro, idéias forjadas nessa

época da cultura ocidental ainda são reificadas pelo senso comum10.

Desta forma não se tem a pretensão do diletantismo, tão pouco da recuperação do

contexto dessas idéias; seu objetivo é muito mais modesto: melhor situar possíveis leitores que

estão afastados dessa discussão. As idéias desses pensadores serão apresentadas segundo a lógica

de suas concepções, isto é o sentido (unívoco ou plurívoco) atribuído à justiça.

No que diz respeito ao sentido plurívoco da justiça tem-se em Sócrates (c.469 ou 470-399

a.C.) a primeira referência. Depreende-se11 que questionava preconceitos e condições que não só

orientavam a conduta dos indivíduos no que dizia respeito a valores morais e religiosos, mas

também serviam de base às instituições políticas; atribuía diversos sentidos à idéia de justiça:

como verdade, como razão, como princípio de proporcionalidade e mérito12 e como respeito à lei

(apesar das duras críticas dispensadas aos juízes e às instituições democráticas de per si).

10 V. esse desdobramento na seção Princípios de Justiça. 11 Utiliza-se essa expressão pois além de não deixar obra escrita, sua forma de interpelação – os chamados “diálogos socráticos” - , não pretendia a definição de conceitos, mas sim levar o seu pobre interlocutor, bem como aos ouvintes circundantes, a refletirem sobre o tema em debate, livrando-se de pré-conceitos para atingir a “essência das coisas”. 12 Na Apologia de Sócrates (p.40), lavrada por Platão, Sócrates teria invocado para si o princípio “mesma situação, mesmo procedimento” ao justificar sua posição de neófito, “tal qual um estrangeiro”, perante o tribunal, aos 70 anos de idade. Utiliza-se também das noções de proporcionalidade e mérito na aplicação de sua própria pena: “Que sentença mereço por ser assim? (...). Algo de bom, se há de ser a sentença verdadeiramente proporcionada ao mérito; não só, mas algo de bom adequado a minha pessoa. (...). Se, pois, cumpre que me sentenciem com justiça e em proporção ao mérito, eu proponho o sustento no Pritaneu.” (SÓCRATES, 2004, p.66).

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Preocupava-se em saber se existiria um valor essencial comum aos homens, “algo que seja a

essência de virtudes particulares como coragem, sabedoria e justiça” (ABRÃO, 2004, p.44).

Platão (c.428-347 a.C.) tendia a considerar justiça e virtude como sinônimos, assumindo

uma certa correspondência entre justiça pessoal e política; entendia a justiça como uma virtude

universal, ética, metafísica e deontológica que deveria funcionar como princípio regulador da

vida individual e social, como um sentido de dever ser e dever agir dentro da polis (2003).

A justiça assim se torna condição para a felicidade; é a virtude estruturante e o

fundamento de uma constituição, da estabilidade da ordem social. Viver com justiça é buscar o

justo além da lei e do costume. Partindo da premissa de que não há justiça sem homens justos, a

defendia como a imperativa adequação da conduta humana à ordem do cosmos (daí sua

preocupação com a educação que entendia ser responsabilidade do Estado), sendo a justiça a lei

suprema da sociedade organizada como Estado.

Para Aristóteles (384-322 a.C) o homem é um animal político que necessita da ética para

constituir a polis, sendo a justiça a responsável por viabilizar a relação entre o homem e a

política. Para ele é através da política que o bem comum pode ser alcançado; o bem supremo – a

felicidade na comunidade – se dá com a realização do bem político, que é a justiça.

Com ele tem-se o primeiro tratado efetivo sobre a justiça: o Livro V da Ética a Nicômaco.

Nessa obra defende a justiça como idéia abrangente que deve ser pensada como conformidade ao

bem (individual, social, político) e a felicidade (que é a finalidade da vida); é considerada como

completa virtude, como excelência13; significa cumprir voluntariamente tudo o que a lei e os

13 Excelência que significa melhor realização possível das potencialidades humanas. Caillé et al. (2004, p.20) explicam que o “bem supremo”, implica em “um conjunto de dimensões específicas”: ação bem sucedida, disposição à ação, conhecimentos em vista da ação, conhecimento em si mesmo etc.).” Na filosofia antiga esse “conjunto de práticas ou de operações do conhecimento” é denominado de “virtude”. “’A areté’ grega designa, em sentido amplo, uma disposição para produzir certos efeitos comuns aos diferentes seres naturais, e se fala corretamente da virtude do clima, de um alimento ou de um medicamento. Porém, mais especificamente, ela designa uma excelência que consiste em realizar de maneira ótima aquilo a que se está destinado, quer dizer o cumprimento o mais perfeito

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costumes exigem e ser probo. Para tal, deve vigorar nas instituições e nas relações sociais em

geral.

Para o que denomina relações sociais em geral formula a idéia de uma justiça particular

que se refere às questões de honra, dinheiro e autoconservação; alguns autores (HÖFFE, entre

eles) acrescentam a essa listagem também o poder. Dentro desse tipo de justiça existem dois

subcasos: a justiça distributiva e a justiça comutativa14.

A justiça distributiva – na qual bens públicos estão em disputa - é definida como a que

“se manifesta nas distribuições de magistraturas, de dinheiro ou das outras coisas que são

divididas entre aqueles que participam do sistema político (pois em tais coisas alguém pode

receber um quinhão igual ou desigual ao de outra pessoa)” (2003a, p.108). Neste subcaso admitia

a desigualdade na distribuição que deveria ser feita “de acordo com o mérito de cada um”; assim,

“o justo é o proporcional” (relação geométrica).

A justiça comutativa desempenha uma “função corretiva nas transações entre indivíduos”,

visando ao restabelecimento da ordem, seja através da compensação, seja através da punição.

Essas transações podem ser voluntárias e involuntárias. Esta última envolve questões

hodiernamente ligadas ao Direito Penal (justiça corretiva).

Já as transações voluntárias dizem respeito aos negócios privados (compra e venda,

empréstimos, penhor e demais ações que hoje estão sob a égide do Direito Civil) e a intenção da

justiça visa ao retorno da situação anterior de equilíbrio mediante compensação para a parte

ofendida. Por tratar de bens privados, Aristóteles defendia a relação aritmética como base de

medida, posto que entende as transações entre os homens como uma “espécie de igualdade” e

possível da função que a natureza atribui a um ser. A virtude humana designa, para os filósofos, a melhor realização daquilo que é específico do homem e que constitui o seu melhor.” 14 V. discussão na seção Justiça social: uma aproximação. Desde já cabe esclarecer que Macpherson (1993) denomina de “justiça econômica” o que aqui é apresentado – talvez por força de tradução – como “justiça particular”.

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essa “espécie de justiça uma desigualdade” na qual “o juiz tenta estabelecer a igualdade” (2003a,

p.110).

Em que pese a preocupação com relações aritméticas e geométricas entende que a justiça

deve buscar “qual justo meio constitui a justiça e de que extremo o justo é o meio.” E com base

nessa idéia desenvolve a noção de equidade como correção da lei15.

Para Aristóteles (2003a, p.116) a justiça política (a que vigora nas instituições) “é

encontrada entre as pessoas que vivem em comum visando à auto-suficiência, homens que são

livres e iguais, seja proporcionalmente, seja aritmeticamente” e “existiria apenas entre os homens

cujas relações mútuas são regidas pela lei”; exclui desse escopo as relações entre senhor e

escravo, pai e filho, bem como marido e mulher, pois defende (2003b) que a justiça que prima na

“sociedade doméstica” é de outra ordem.

A justiça relativa às instituições subdivide-se em natural e legal. A natural – que

corresponde ao chamado Direito natural – “é aquela que tem a mesma força em todos os lugares e

não existe por pensarem os homens deste ou daquele modo”. Já a legal é estabelecida direta ou

indiretamente por uma autoridade humana, reconhecida pelo poder político.

Ainda dentro de uma concepção plurívoca de justiça, Santo Tomas de Aquino (1225-

1274) defende que o fim do homem é o aperfeiçoamento de sua natureza, pois sempre quer o bem

– “o mais excelente e o mais divino entre os bens humanos” – que é a perfeita felicidade (que é

identificável apenas como a visão de Deus, não sendo, portanto, alcançável neste mundo). Esta

meta – que reúne em um só pressuposto política, religião e ética - deveria orientar o Estado, as

cidades e os indivíduos no seu dia-a-dia.

Vale ressaltar que para Aquino o Estado é uma instituição natural, cujo papel é a

promoção dos fins das pessoas que o constituem; por esse motivo é concebido como subordinado

15 V. discussão no item Princípios de Justiça e na Seção 4.

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à Igreja que tem como função promover o objetivo final da união dos homens com Deus. Neste

sentido, toda lei deve ser ordenada à salvaguarda comum dos homens, pois o fim da lei é o bem

comum e somente a lei assim prescrita – logo de acordo com a lei divina – deve ser observada.

Para ele a justiça legal relaciona-se com o bem comum. Também a confirma como uma virtude

geral16 que remete todas as outras à consecução do bem comum. Admite-a ainda como um hábito

pelo qual, “com vontade constante e perpétua”, se atribui a cada um o que lhe pertence, mas

também coíbe os atos injuriosos.

No que diz respeito à justiça distributiva prega como justa a distribuição que não exaure o

todo, distribuindo o que é devido segundo uma regra racional de justiça, pois cada um é parte do

todo e tem parte no fundo comum. A define como sendo aquela que “reparte proporcionalmente o

que é comum”.

Aquino partilha com Santo Agostinho, a premissa de que Deus tem sobre o universo

domínio principal e absoluto: Deus é o único proprietário das coisas; numa sociedade justa a

questão da propriedade não se colocaria. Tece críticas a extrema abundância dos bens materiais, a

usura e comenta o justo preço e o justo salário. Em relação a este último defende o atendimento

do mínimo necessário para a sobrevivência da pessoa e de sua família; nessa formulação, deve-se

ressaltar, “necessário” implica em duplo registro: “aquilo sem o que não se pode viver” e em

função da condição da pessoa e de seus dependentes. Ou seja, a regra de distribuição na

comunidade política é “a cada um segundo sua posição”; conforme palavras do próprio aquineu:

Na justiça distributiva, se dá algo a um particular, enquanto aquilo que pertence ao todo é devido à parte, e isto será tanto maior, quanto maior seja a relevância da parte no todo. Por isto na justiça distributiva, se dá a uma pessoa mais dos bens comuns quanto maior a relevância que possui na comunidade.” (Suma Teleológica, II-II, q.60, a. 3. Apud: ABEL, 2004)

16 Para Aquino a virtude é o que torna bons não somente os atos humanos mas o próprio homem, sendo a justiça a maior das virtudes morais e a ela toda as outras virtudes fazem referência. “As demais virtudes (...) aperfeiçoam o homem somente no que toca ‘a si mesmo’, mas a justiça está ordenada a regular a ação humana, em relação ‘a outrem’: (...) é próprio à justiça ordenar o homem no que diz respeito a outrem” (2001).

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No que diz respeito ao sentido unívoco da justiça tem-se nos romanos a primeira

referência. Merece destaque a obra de Cícero (106-43 a.C.) que sempre buscou um conhecimento

que garantisse o consenso entre os homens, a partir do desenvolvimento da idéia de conexão

íntima entre a natureza e a razão. Ressalte-se também a relação direta que estabelece entre justiça

e direito (CÍCERO, 2002).

A ascensão do Direito, como resultado da preocupação básica da convivência do homem

em sociedade, mas em vasto território como o Império Romano, torna a legislação técnica,

coerente e sistemática, levando ao desenvolvimento da idéia de justiça como igualdade de todos

perante a lei. Dele também provém a jurisprudência – entendida como aplicação de normas

abstratas a casos concretos, e a compreensão do Direito como campo distinto da ética e da moral.

Seguindo o princípio estóico – “se todo homem é racional, todos são iguais” - a justiça é a

fórmula (abstrata) que faz a lei tratar a todos com igualdade. O justo será submeter-se à lei

natural, à reta razão (recta ratio). Deve-se dar “a cada um o que lhe é devido, conforme definido

pela lei” (natural ou positiva).

Ainda nessa perspectiva unívoca, Santo Agostinho (354-430) entende que todo poder está

na vontade de Deus que é justa. E essa vontade se manifesta como Lei Natural ou como Lei

Divina desde a criação do universo e da humanidade, através da comunicação de Deus com o

homem. Daí resulta sua trilogia da lei: divina, natural (comunicada ao homem através da

natureza que Deus criou) e humana (que deve estar de acordo com as anteriores e que estabelece

a ordenação para os bens: vida, liberdade, família, pátria, honras e patrimônio). A justiça deve

atribuir “a cada um o que lhe é próprio”.

Entende que da justiça depende a unidade e a nobreza de toda a sociedade humana, pois

ao regular as relações entre os homens, conserva a paz – bem inerente à sociedade e requisito de

todos os benefícios que se busca coletivamente (FORTIN, 2001, p.181). Daí situar sua sede por

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excelência na cidade, apesar de quase nunca nela existir. Se não existe é porque os homens não

preservaram o estado de justiça original; ao contrário, submeteram outros homens – contra a

vontade destes – e competiram pela posse de bens materiais (terrenos) quando deveriam tê-los

compartilhado eqüitativamente em perfeita amizade e liberdade17. Para ele a economia está

marcada pelos “apetites mais baixos do homem e por uma tendência invencível a colocar o

interesse egoísta acima do bem comum da sociedade”; a propriedade privada, a escravidão e o

governo seriam testemunhos da incapacidade do homem de viver de acordo com o ditado pela

razão (p.183).18

Alguns desses princípios de justiça são até hoje evocados e apropriados tanto pelo senso

comum, como pela discussão teórica. Obviamente, contextos diferentes, questões diferentes e

interpretações diferentes, mas que caminham e se entrelaçam para delinear novas idéias sobre a

Justiça Social.

17 Campanella (1983, p.289-90), nos contra-argumentos de Cidade do Sol, defende que a posição da Igreja Católica – seguida tanto por Agostinho, como por Aquino – foi “antes tolerante do que positiva e direta”, isto é, “apenas uma tolerância e não o uso do supérfluo”. E adenda: “Eis porque, com justiça Santo Tomas prega a propriedade de administração e concede a comunidade do uso”. 18 Caillé et al (2004, p.7-25) enfatizam as semelhanças entre o pensamento antigo e medieval. Alegam que, tanto no âmbito do raciocínio “espontâneo”, como no do filosófico, o alcance da felicidade estaria relacionado com a conquista ou posse dos “elementos que lhe são constitutivos”- “todos aqueles bens desejáveis, materiais ou imateriais, sem os quais a vida não parece digna de ser vivida”. Assim, mostram como na filosofia antiga (excetuando-se o ceticismo) se estabeleceu uma relação íntima entre “exercício da razão e obtenção da felicidade” – o que permitia uma “concepção objetivamente definível de felicidade” atrelada ao interesse comum. Mesmo com as dimensões específicas do bem supremo (explicitadas na nota de rodapé 13) se estabelecia uma “cadeia de condições recíprocas entre o interesse privado, o interesse comum e a virtude moral” que permitia identificar ações que afastava o homem de sua excelência (quando o proveito delas decorrente era de caráter exclusivamente individual). Essa concepção é apropriada pelo cristianismo que transforma o “conceito de virtude em uma disposição a se conformar com a lei divina” e confere ao de utilidade (“tanto privada quanto pública”) uma significação espiritual. Admite-se que a razão – que tem por objeto somente “aquilo que restabelece a ordem natural” – não pode determinar o conteúdo da felicidade. Contudo, mantém a mesma relação entre a virtude e a felicidade. Tal compreensão colocava (principalmente na patrística cristã e na igreja medieval) o “amor de si” na “raiz do pecado”, condenando a “vantagem exclusiva do indivíduo” como uma “desvantagem para a comunidade”.

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1.1.2 Justiça Social: uma aproximação

Justiça social – descrita por muitos como a própria norma da ação política da democracia

contemporânea – surge como expressão muito tardiamente no pensamento ocidental, não sendo

tarefa simples marcar claramente sua primeira utilização. Como já salientado anteriormente, um

conceito contém as concepções de um dado contexto sócio-histórico-político.

Em que pese a dificuldade de precisar o primeiro uso da expressão, há autores (ABEL,

2005; MACEDO, 1995) que identificam seu emprego pioneiro por Edward Gibbon (na obra

Declínio e queda do Império Romano), no século XVIII, com o significado de “aplicação das

normas de conduta justa numa sociedade”. Hayek (1985) ressalta que o sentido no qual a

expressão é usada é o de normas gerais abstratas.

Afirmam ainda que o primeiro a usar o termo na forma como atualmente é conhecido, foi

o jesuíta Luigi Taparelli Dázeglio (1793-1862)19 que aponta a seguinte finalidade para a justiça

social: “deve tornar, efetivamente, todos os homens iguais em tudo quanto se refere aos direitos

da humanidade, como o Criador os fez perfeitamente iguais na sua natureza” (MACEDO, 1995,

p.75). Para esses autores “o termo justiça social não se encontrava no vocabulário comum da

ética tradicional” e “era uma reação contra o individualismo” (ABEL, 2005, p.75).

Já Höffe (2003, p. 101) defende que assinalar sua primeira manifestação é uma tarefa

impossível, mas aponta o uso por “precursores na Itália, posteriormente na França e Alemanha”,

sendo, por fim, assumida pelo “tomismo do século XIX”, que difunde a expressão através do

pensamento social cristão20.

19 Referem-se aqui ao título Saggio Teoretico de Diritto Naturalle (1840). 20 Para Bobbio, Matteucci e Pasquino (2000, p.918-9) pensamento social cristão refere-se ao “conjunto de idéias e doutrinas que, embora inspiradas nos valores do cristianismo, concebem a si mesmas como inseridas numa sociedade

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Divergências à parte, a noção tem como pano de fundo o conjunto de problemas

decorrentes da produção capitalista em seu estágio industrial-concorrencial e, em especial, a

pauperização sem precedentes da população trabalhadora que por sua inconformidade à situação,

foi designado como “questão social” – outra expressão que em sua fase inicial era utilizada por

um escopo indefinido de críticos sociais. Paulatinamente, vincula-se definitivamente ao

pensamento conservador confessional e laico (NETTO, 2001).

De fato, a expansão maior da noção de justiça social se dá com as Encíclicas papais,

mesmo sem a utilização explícita da expressão. É observar o texto da Rerum Novarum (Leão XIII

– 1891) para identificar a sua presença. Além de reconhecer o direito de associação, introduzia a

idéia da intervenção obrigatória do Estado em favor dos economicamente mais fracos, sobretudo

os operários. Essa encíclica é considerada como momento original do pensamento social cristão

(BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 2002, p. 919).

Na Encíclica Quadragésimo Anno (Pio XI - 1931), a expressão refere-se, em geral, à

esfera econômica, para avaliar a distribuição de renda e riqueza; mas também apresenta a idéia da

justiça geral e legal: todos têm obrigações em relação ao bem comum que somente poderá ser

realizado “quando todos e cada um tiverem todos os bens que as riquezas naturais, a arte técnica

e a boa administração econômica podem proporcionar” (n.75).

Para o pensamento social cristão a justiça social não se restringe ao “aspecto da

distribuição”; ela se estenderia ao conjunto da sociedade, conforme pode ser observado no

parágrafo 110 da citada Encíclica que prescreve uma “ordem sã e bem equilibrada”.

Essas idéias são ratificadas na Encíclica Divini Redemptoris (Pio XI – 1937) que também

concebe a justiça social como reguladora da ordem econômica e da organização civil (n.32). Esta

autônoma em relação à comunidade eclesial. (...) que ambicionava apresentar-se como interpretação católica da ciência social e, por isso, de qualquer modo, como uma ciência alternativa”.

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Encíclica defende que “é próprio da justiça social exigir dos indivíduos quanto é necessário ao

bem comum”; advoga, assim que “não se pode prover ao organismo social e ao bem de toda a

sociedade, se não se dá a cada parte e a cada membro, isto é, aos homens dotados da dignidade de

pessoa, tudo quanto necessitam para desempenharem suas funções sociais”.

Numa outra perspectiva Macpherson (1993), analisando a ascensão, queda e revitalização

do conceito de justiça econômica, demonstra a relação causal existente entre as mudanças do

conceito e das relações sociais e econômicas ao longo do tempo. Sinaliza a emergência tardia do

conceito (“muito depois do aparecimento da propriedade privada, da divisão de classes e do

Estado”) e seu caráter de reação à “introdução do mercado na sociedade política tradicional

(p.266)”; esclarece que nessas sociedades “os primitivos mercados, conquanto amplos, eram

subsidiários da sociedade e do Estado”, sendo controlados pelo próprio Estado que fixava “preços

ou equivalências” - tratava-se, portanto, de uma “economia de mercado simples, na qual a

produção e a troca visavam ao mero consumo” (p.268).

Para esse autor quando Aristóteles apontava diferentes formas de justiça – e entre elas a

comutativa e a distributiva que seriam retomadas na Idade Média - teria percebido a formação

“de uma economia de mercado mais complexa” na qual o lucro (e não o consumo) era o objetivo

final. E ao perceber esse processo usou de um argumento ético para designá-la como “destruidora

da vida digna”:

Chamou-a de antinatural por três motivos: ela torna a aquisição um fim em si mesmo e não um meio para a vida digna; o processo de acumulação não tem limites, ao passo que a vida digna requer apenas recursos materiais limitados; ela é um meio pelo qual alguns homens ganham, à custa de outros, o que é injusto (p.268).

Tal análise decorreria do fato de que Aristóteles perceberia que a acumulação de riqueza

pelos comerciantes modificaria as relações de troca e a distribuição de renda, colocando “em

risco a subsistência, os meios de consumo materiais dos cidadãos livres” - o mercado assim

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estaria livre “dos costumeiros vínculos sociais” (p.269). Sua preocupação, portanto, era a de

propor um conceito de justiça especificamente econômico na tentativa de impedir o domínio de

uma “ética comercial”, cindindo – com a extrapolação do mercado – a economia da sociedade.

Sinaliza ainda esse autor que, quando da redescoberta da doutrina aristotélica no século

XII d.C. e de sua grande divulgação no século XIII com Tomás de Aquino, a sociedade feudal

européia vivia essa mesma tensão. Interpreta as restrições impostas ao comércio medieval como

uma tentativa de reagir a “sujeição total ao mercado”, com as sociedades, respaldadas pelo poder

da Igreja, tentando – com certo êxito até o final desse período – organizar a produção e as trocas

subordinando-as a objetivos sociais.

A partir dos séculos XV e XVI a doutrina medieval da justiça econômica sucumbiu –

juntamente com a ordem feudal – ao estado mercantil cujo interesse “identificava-se com a

acumulação e aplicação do capital privado e empresarial”:

A principal questão era saber se o Estado devia orientar a sua política para a acumulação de ouro e prata ou para outros meios de promover a acumulação de capital em um nível mais adiantado de atividade econômica. Não mais importava se os grandes lucros obtidos, por exemplo, pelas companhias coloniais inglesas eram resultado do fato de elas se aproveitarem de meras diferenças geográficas nos preços das mercadorias no Oriente e no Ocidente (o que seria justificável segundo a doutrina medieval), ou de sua capacidade para impor condições comerciais que lhes fossem favoráveis (o que seria condenado pela mesma doutrina). A política econômica já não levava em conta questões de justiça (p.271).

Se no período de sua emergência observa-se essa tendência à autonomização, defende

Macpherson que posteriormente, nos séculos XVII e XVIII, as relações de mercado não só

suplantaram as relações sociais e políticas, como as absorveu; e nesse quadro

a justiça em geral [aí incluída a econômica] foi reduzida ao cálculo da utilidade máxima ou à observância dos contratos. Enquanto a economia de mercado capitalista fosse considerada de modo geral benéfica, dificilmente seria preciso recorrer a qualquer conceito de justiça, de modo que os teóricos pouco se ocuparam da matéria (p.276).

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Já Maffettone e Veca (2005, p. XIX) defendem que a possibilidade do desenvolvimento

das idéias sobre justiça social foi dada pelas formulações de “Bentham, Mill e Marx (...) [que]

estendem o paradigma da justificação do âmbito das instituições para o âmbito da sociedade”,

reinterpretando-se a justiça, a partir de então, como justiça social. E acrescentam:

A partir do final do século XVIII e durante todo o século seguinte, o principal interesse dos teóricos da justiça parece deslocar-se do problema da boa ordem política e do propósito das instituições para o âmbito das interações e das relações de conflito e cooperação social. (...). Nesse sentido, pode-se dizer que a questão social reorienta a busca dos princípios de justificação e tem como êxito paradigmático a interpretação da justiça como justiça distributiva. Afirma-se, assim, o princípio de que o significado e o valor de uma teoria da justiça resultam da capacidade de satisfazer fins e expectativas sociais. As diversas teorias, no âmbito do paradigma da justiça social, não apenas propõem diferentes critérios de justiça, mas também implicam interpretações alternativas dos fins e das próprias expectativas. Pode-se apresentar a hipótese de que o paradigma da justiça social assim entendido seja aquele em que tomam forma os desenvolvimentos da teoria normativa da política contemporânea. (p.227).

1.1.2.1 Um interlúdio necessário: a propósito da questão da justiça em Marx

Sem dúvida, com Marx o problema da justificação sofre uma verdadeira reviravolta – ou

melhor: talvez se deva dizer que o que se coloca é a impossibilidade de justificação; uma

impossibilidade de justificação tão radical que não deixa espaço para a colocação da questão da

justiça. Marx defende uma nova lógica de produção, uma nova lógica de distribuição; trata-se de

outra sociedade ainda a ser construída.

Defender essa idéia é um grande risco, pois implica em estabelecer polêmica com vários

interlocutores – alguns com extremo prestígio no campo intelectual. Contudo, entende-se como

tarefa necessária questionar essa interpretação corrente; para tal, será necessário não só recuperar

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“idéias-força” da obra de Marx21, como também se apropriar da discussão travada no âmbito da

filosofia e da teoria política. Este item, então, se desdobrará no sub-item que discute o que em

geral é denominada de “princípios de justiça”, de modo a completar a argumentação.

No Manifesto Comunista, Marx claramente defende que idéias gerais – como moral,

liberdade, direitos, obrigações e justiça – desaparecerão com o fim do antagonismo de classe; e

isto porque essas idéias são forjadas num dado estágio particular do desenvolvimento das forças

produtivas e das relações de produção, correspondendo a interesses particulares de classe.

Boron (2004, p.152) chama a atenção para o fato de que no pensamento de Marx22

“qualquer modo de produção baseado em relações de exploração é inerentemente injusto” o que

coloca a “impossibilidade de elaborar uma sociedade justa aí onde precisamente a exploração

chegou a seu maior refinamento histórico”. Baseado na Crítica ao Programa de Gotha (onde

Marx afirma que as relações jurídicas surgem das relações econômicas) e na carta explicativa de

Engels dirigida a Babel, defende que “a justiça é um estado que, por definição, é sempre a

ditadura de uma classe sobre a outra (...), é apenas uma bela ilusão em uma sociedade de classes”.

Para Marx, as relações de distribuição apresentam-se de forma variada nas formações

sociais, sempre derivando do modo de produção hegemonicamente adotado. Assim, na sociedade

capitalista, a relação de distribuição é sempre distribuição do trabalho excedente entre as classes;

a mais-valia revela a natureza das relações de distribuição entre o capital e o trabalho.

21 Sem pretender – mesmo que de longe - dissertar sobre a obra de Marx (correndo-se, por outro lado, o grave risco de deturpar e/ou amputar seu pensamento), recorrer-se-á, sobretudo às idéias defendidas na Crítica ao Programa de Gotha por ter se tornado um “texto canônico” (no sentido anteriormente referido); a proposta, então, é defender que não se pode buscar em Marx uma teoria da justiça. 22 Boron adverte que apesar disso não se pode esquecer “as fortes contribuições de autores como Herman Heller, vinculado às vertentes mais social-democratas do marxismo”; como hipótese explicativa para a ausência do tema expõe: “(...). Em todo o caso, e mais além das considerações, o certo é que em sua breve e esquemática antecipação da boa sociedade, Marx não se preocupou muito com o tema. Talvez porque tenha lhe bastado saber que em seu desenho ideal, a futura sociedade comunista haveria arquivado definitivamente as relações de exploração” (p.153).

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Já a sociedade comunista – que se pode vislumbrar através da “esquemática antecipação

da boa sociedade” indicada na obra marxiana23 - prevê a abolição da propriedade privada, das

classes, da divisão do trabalho, da alienação humana; pensa-a como uma sociedade de produtores

associados que regulam o intercâmbio com a natureza de forma racional e com total controle

coletivo sobre o processo produtivo como um todo; uma associação genuína, na qual indivíduos

conquistam sua liberdade na/e através de sua associação, pois “o livre desenvolvimento de cada

um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (p.187).

Nessa sociedade se realizaria a verdadeira emancipação humana – “múltiplo

desenvolvimento das possibilidades humanas e a criação de uma forma de associação digna da

condição humana (p.124)”; o alcance da emancipação só é possível através da liberdade – que

significa eliminação dos obstáculos que impedem a realização da emancipação humana.

Somente assim a verdadeira igualdade poderia vigorar. Na Crítica ao Programa de Gotha

(1875), Marx refere-se a dois momentos no processo de constituição dessa sociedade (momentos

esses que, posteriormente, Lênin, em 1917, no livro O Estado e a Revolução, populariza como,

respectivamente, socialismo e comunismo).

O primeiro momento, que sucede imediatamente ao capitalismo, terá, ainda, resquícios

materiais e espirituais dessa organização anterior: a nova classe dominante – os operários –

necessitará de seu próprio estado (ditadura do proletariado) para se proteger de seus inimigos; o

horizonte intelectual e espiritual do povo estará ainda permeado de idéias e valores burgueses;

ainda existirá a divisão do trabalho por profissões e os elementos de uma economia de mercado e

23 Sínteses de idéias presentes nas seguintes obras: Manuscritos econômicos e filosóficos, Ideologia Alemã, O Capital e Crítica ao Programa de Gotha e aqui desenvolvidas a partir de diferentes verbetes disponíveis em Bottomore (1988).

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do direito burguês: o trabalhador receberá24 – ainda que não mais resultando da propriedade

privada – conforme o trabalho realizado.

Essa repartição ainda não poderia ser considerada como uma “igualdade justa”, pois,

apesar do tratamento formal igual (porque aplicado a todos), implicaria num tratamento

substantivo (ou material) desigual, posto que nem todas as necessidades seriam atendidas em

função de outras variáveis (tais como tamanho da família, diferença individual, necessidade de

vestiário e alimentação). Assim, a igualdade do socialismo ainda é incompleta e, pode-se dizer -

pois ainda existem elementos burgueses -, não [totalmente] justa. Nos dizeres de Marx (p.214):

Apesar deste progresso, este direito igual continua trazendo implícita uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional ao trabalho que prestou; a igualdade consiste em que é medida pelo mesmo critério: pelo trabalho. Mas, alguns indivíduos são superiores, física e intelectualmente, a outros e, pois, no mesmo tempo, prestam trabalho, ou podem trabalhar mais tempo; e o trabalho, servir de medida, tem que ser determinado quanto à duração ou intensidade; de outro modo, deixa de ser uma medida. Este direito igual é um direito desigual para trabalho desigual. Não reconhece nenhuma distinção de classe, por aqui cada indivíduo não é mais do que um operário como os demais; mas reconhece, tacitamente, como outros tantos privilégios naturais, as desiguais aptidões dos indivíduos, por conseguinte, a desigual capacidade de rendimento. No fundo é, portanto, como todo direito, o direito da desigualdade. O direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de uma medida igual; mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos por uma mesma medida sempre e quando sejam considerados sob um ponto de vista igual, sempre quando sejam olhados apenas sob um aspecto determinado, por exemplo, no caso concreto, só como operários, e não veja neles nenhuma outra coisa, Isto é, prescinda-se de tudo o mais. Prossigamos: uns operários são casados e outros não, uns têm mais filhos que outros, etc., etc. Para igual trabalho e, por conseguinte, para igual participação no fundo social de consumo, uns obtêm de fato mais do que outros, uns são mais ricos do que outros, etc. Para evitar todos estes inconvenientes, o direito não teria que ser igual, mas desigual.

24 Vale lembrar que aqui se trata de trabalho coletivo; neste sentido o cálculo para avaliar o trabalhado individual deve ser precedido das seguintes deduções apontadas por Marx: (1) parte necessária para repor os meios de produção consumidos; (2) parte suplementar para ampliar a produção; (3) fundo de reserva ou de seguro contra acidentes. Desse resultado há ainda que ser considerada as deduções relativas aos meios de consumo, antes de chegar a “repartição individual”: (1) despesas gerais de administração não concertes à produção; (2) parte necessária à satisfação das “necessidades coletivas” (tais como escolas, instituições sanitárias etc) e finalmente (3) os “fundos de manutenção das pessoas não capacitadas para o trabalho etc.” Após essas deduções o trabalhador receberá “um bônus consignando que prestou tal ou qual quantidade de trabalho” com o qual retirará dos “depósitos sociais de meios de consumo a parte equivalente à quantidade de trabalho que prestou”.

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Na segunda fase – ou “fase superior” da sociedade comunista -, quando as marcas do

passado capitalista teriam sido superadas pelo desenvolvimento dessas forças produtivas, por

uma nova educação, por um novo horizonte intelectual e espiritual; assim, nesta fase, ter-se-ia

uma nova atitude em relação ao trabalho e ao consumo, pois, por um lado, haveria abundância de

bens e, por outro, o desejo de possuir já não se colocaria em função de meios de vida adequados a

todos e da não existência de hierarquias de poder e de prestígio. Desta forma ter-se-ia outro modo

de repartição: “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades” que

expressaria uma igualdade real (abstrata/formal e substantiva/material). Portanto, a verdadeira

igualdade, só poderá se realizar no comunismo: “Só no comunismo será conferido um tratamento

realmente igual aos seres humanos desiguais, com todas as suas necessidades forçosamente

desiguais (BOTTOMORE, 1988, p.187).”

Marx, ainda na Crítica ao Programa de Gotha, aponta claramente a falácia da defesa de

uma “distribuição eqüitativa do produto social” (como pleiteava a social democracia alemã) ou de

uma “justa distribuição de renda” (como defendiam os socialistas vulgares) nos marcos do modo

de produção capitalista. Somente a luta por novas relações de produção poderia efetivamente

mudar “tanto a distribuição de renda como a transformação da condição humana”

(MACPHERSON, 1993, p. 272-3). Nas palavras de Marx (p.215):

Mesmo prescindindo do que fica exposto, é equivocado, em geral, tomar como essencial a chamada distribuição e aferrar-se a ela, como se fosse o mais importante. A distribuição dos meios de consumo é, em cada momento, um corolário da distribuição das próprias condições de produção. E esta é uma característica do modo mesmo de produção. Por exemplo, o modo capitalista de produção repousa no fato de que as condições materiais de produção são entregues aos que não trabalham sob a forma de propriedade do capital e propriedade do solo, enquanto a massa é proprietária apenas da condição pessoal de produção, a força de trabalho. Distribuídos deste modo os elementos de produção, a atual distribuição dos meios de consumo é uma conseqüência natural. Se as condições materiais de produção fosse propriedade coletiva dos próprios operários, isto determinaria, por si só, uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual. O socialismo vulgar (e através dele uma parte da democracia) aprendeu

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com os economistas burgueses a considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção, e, portanto, a expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição. Uma vez que desde há muito tempo já está elucidada a verdadeira relação das coisas, porque voltar a marchar para trás?

Desta forma, falar em justiça, moral ou qualquer outra palavra que se inscreva no campo

da palavra alemã Recht é se situar nos marcos da própria sociedade burguesa. Marx está além

desse campo, pois suas projeções têm como horizonte final a real emancipação humana.

Autonomizar, do conjunto de sua obra, o princípio por ele formulado, é querer enquadrá-lo nos

marcos do pensamento burguês. Assim, pode-se dizer, parodiando Heller (1998), que Marx está

“além da justiça”.

1.1.2.1.1 Princípios de Justiça25

Em sentido amplo a justiça social é entendida como bem comum ou bem estar coletivo;

para Heller (1998, p.50), a rigor, essa definição genérica remete a “valores” (“critérios de

justiça”) que em sua maioria são utilitários. Já em sentido estrito, a justiça social pode ser

admitida como “o conjunto dos princípios que regem a definição e a repartição eqüitativa dos

direitos e deveres entre os membros da sociedade” (ARNSPERGER e VAN PARIJS, 2003,

p.15). Sem dúvida, trata-se aqui de princípios de justiça que, como tal, são distributivos.

Contudo, autores ligados à filosofia do direito, insistem em reafirmar que a justiça social

não pode ser confundida com a justiça distributiva – a justiça social seria mais ampla e remeteria

25 Existem diferentes designações e definições: Perelman (2002) os denomina de “concepções de justiça” e “fórmulas de justiça”; Bobbio (2000, p.300) como “princípios de distribuição” ou “critérios de justiça”; Heller (1998) os designa como princípios de justiça, mas também como “idéia de justiça” e considera como “critérios de justiça” as idéias reguladoras. V. discussão neste sub-item.

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ao bem comum26. Para autores vinculados às ciências sociais, à filosofia ou à ciência política, o

aspecto distributivo constitui característica essencial e definitiva do conceito de justiça, opondo-

se a considerações agregativas que enfatizam princípios como bem-estar ou interesse público

(FIGUEIREDO, 1989).

No sentido contemporâneo – defende-se que a justiça social se refere à avaliação das

instituições sociais e políticas básicas, principalmente em relação à distribuição de bônus e ônus.

E, para isso, defendem-se diferentes princípios de justiça (ou de distribuição) – que, de um modo

ou de outro, fazem parte da vida cotidiana – mas que não esgotam “a idéia de justiça” (HELLER,

1988).

Para introduzir a discussão é necessário enfatizar a distinção entre justiça formal e justiça

substantiva27. Apela-se aqui para Perelman (2002) - autor cuja lista de fórmulas ou princípios de

justiça é referência para os comentários (concordantes ou não) de vários autores e que será

apresentada a seguir.

Lembra esse autor que se “a noção de justiça sugere a todos, inevitavelmente, a idéia de

certa igualdade”, a rigor, ela consiste é “numa certa aplicação da idéia de igualdade” (p.14), e

esclarece os termos: a igualdade a que refere a justiça (e isto desde Aristóteles) é a idéia de

igualdade de tratamento e não a “igualdade social” ou a “igualdade de condição” ou “de situação”

– que, segundo o autor, é “objeto da legislação social” -, bem como as “outras formas de

igualdade”: de resultado, de oportunidade, de concorrência etc (p.214 e 233).

26 Provavelmente, por um lado, objetivando demarcar melhor a discussão, dada à remissão aos vários âmbitos da justiça (p.e.: Justiça Criminal, Justiça Civil etc.); por outro, não se pode esquecer a forte influência que o neotomismo exerceu/exerce em nossa Filosofia do Direito que tem como referências, dentre outros: Tomás Antonio Gonzaga, José Soriano de Sousa, Edgard Mata Machado e Alceu Amoroso Lima. No campo das chamadas Ciências Sociais Van Parijs é uma exceção no uso corrente do termo, motivo pelo qual sua definição é usada. 27 Campbell (1996, p.406) lembra que a justiça formal “exige distribuições que estejam de acordo com os critérios ou regras existentes ou aceitos. É geralmente identificada com a justiça jurídica ou individual.” Em síntese, exige que todos sejam tratados de acordo com as mesmas regras. Já a justiça substantiva (ou material) “diz respeito à identificação dos critérios distributivos adequados (tais como direitos, merecimento, necessidade ou escolha) que constituem concepções rivais de justiça. (...). É em geral identificada com a justiça social”.

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A igualdade de tratamento se refere a forma como, sistemática e consistentemente, os

membros de uma mesma categoria essencial são submetidos às mesmas regras de justiça28; ou

seja, a igualdade de tratamento aplicada sistemática e consistentemente “incita a considerar como

essencial o que não passa da mera conseqüência da regularidade (p.43)”. Esclarece que “a

universalidade da regra é apenas uma conseqüência do fato de ela se aplicar a todos os seres de

uma categoria” (p.45)29.

Ademais, essa idéia de igualdade de tratamento pressupõe o estabelecimento do que o

autor chama de “categorias essenciais” – ou seja, a expressão “cada qual” que antecede as

fórmulas de justiça permite uma aplicação da justiça restrita a um determinado grupo ou

“categoria essencial”. E algumas regras pressupõem a avaliação de proporcionalidade, pois sua

aplicação exigiria que os sujeitos, objetos de comparação, não só atendam à regra de justiça, mas

a atendam no mesmo grau. Portanto, nada mais distante do que denomina de “humanismo

igualitário”, cuja fórmula deveria substituir a expressão “cada qual” por “a todos”. E argumenta:

“O que caracteriza nossa civilização, desde o século XVIII, é a insistência com que cada vez

mais, a igualdade é apresentada como substância da justiça (p.227)”.

Alerta o autor que a justiça formal pode coincidir com a “desigualdade real” em função da

arbitrariedade da regra que não é submetida a nenhum critério moral, fato que possibilita a ação

de “casuístas” – no impedimento de seu objetivo, muda-se a regra. Contudo, a questão da

“desigualdade real”, a rigor, já está dada pelo fato da possibilidade de uma regra se aplicar a um

28 Regras de justiça são constituintes da “justiça concreta”; desta forma os princípios de justiça seriam fórmulas de justiça concreta. A chamada justiça formal (ou abstrata) refere-se à aplicação correta de uma regra, independentemente de seu conteúdo; neste caso, significa “observar uma regra que enuncia a obrigação de tratar de uma certa maneira todos os seres de uma determinada categoria” (PERELMAN, 2002, p.45). 29 Esse entendimento restrito da “universalidade” tem trazido conseqüências danosas para determinados setores da política social, em especial para a assistência social (v. BACKX, 2007).

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determinado grupo... Defende-se que, talvez, a melhor formulação fosse a de que a justiça formal

pode coincidir com uma injustiça!30

Essa questão remete à distinção entre a concepção moral e a concepção jurídica da justiça

que impede que o julgador (no caso o juiz) escolha a regra a ser aplicada. Ademais, como sinaliza

o autor “em direito moderno, as duas instâncias, a que determina as categorias [essenciais] e a

que as aplica, são rigorosamente separadas; em moral, estão unidas na mesma consciência

(p.28)”. Essas considerações podem indicar porque os autores da área jurídica insistem em

distinguir a justiça social da justiça distributiva...

Em relação ao conceito formal de justiça, Heller (1998, p.24-58), dentre outros aspectos,

chama a atenção para o fato de que: (1) o conceito formal de justiça31 também se aplica aos

procedimentos; (2) a constituição do que Perelman chama de “categorias essenciais” se dá pela

aplicação consistente e sistemática das mesmas normas e regras ao mesmo grupo, pois normas e

regras “têm uma função niveladora”; (3) portanto tanto as igualdades como as desigualdades

sociais são criadas ou, pelo menos, reforçadas por normas e regras sociais; ou seja, “são

normativamente constituídas” (p.17); (4) assim ao se constituir diferentes grupos, se constitui,

também, relações assimétricas (entre grupos diferentes) e simétricas (dentro do mesmo grupo);

(5) neste sentido máximas de justiça só se aplicam se as relações forem simétricas; e mesmo se

tratando de interações entre “sociais iguais”, “qualquer membro precisa ser tratado

proporcionalmente (de acordo com o mérito e a competência), onde proporcionalidade pressupõe

a igualdade social (a escala comum)” (p.42); (6) conflitos sociais podem resultar da aplicação

dessas regras em função da: a) inconsistência na aplicação das regras (pois fere o princípio da

30 Nas formações sociais – como a portuguesa e a brasileira, por exemplo – que valorizam o caráter procedimental do Direito, coincide recorrentemente de fato! 31 Para Heller (1998, p.15) a concepção formal de justiça implica em “um nível muito mais alto de abstração do que o conceito de justiça formal! – que entende como uma “espécie (ou tipo) de justiça”.

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proporcionalidade); b) tentativa de aumentar ou diminuir o tamanho do grupamento social e c)

assimetria dos grupos comparados.

Com essas considerações preliminares, pode-se apreciar a tipologia apresentada por

Perelman (2002), com a síntese de suas explicações para os seis princípios ou fórmulas de justiça

que são usualmente utilizados:

(1) a cada qual a mesma coisa – aparentemente o mais igualitário, este princípio

prescreve que todos devem ser tratados de modo igual;

(2) a cada qual segundo seus méritos (ou: a cada qual segundo suas capacidades) –

supõe um critério moral que levaria em consideração a intenção e os sacrifícios

realizados por uma pessoa no processo de consecução de uma ação;

(3) a cada qual segundo suas obras (ou: a cada qual segundo seu trabalho) – aqui a

ênfase recairia sobre o resultado da ação, por exemplo: concursos e provas; para o

autor é a concepção de justiça mais utilizada na vida social.

(4) a cada qual segundo sua posição32 – essa fórmula defenderia tratamento diferenciado

por várias categorias, cada qual com inúmeras especificidades (por exemplo: origem e

posição de classe, cor, etnia, sexo, religião etc.). Acrescenta o autor que “o caráter que

serve de critério é de natureza social e, a maior parte do tempo, hereditário, portanto

independente da vontade do indivíduo” (p.11).

(5) a cada qual o que a lei lhe atribui - celebra a expressão “a cada um o que lhe é

devido” (p.12); defende o autor que a principal característica dessa fórmula é que ela

remete à aplicação pura e simples da lei;

32 No livro em questão o quarto princípio apresentado é “a cada qual segundo suas necessidades” que aqui é apresentado em último lugar por merecer maiores comentários em função da sua importância neste trabalho.

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(6) a cada qual segundo suas necessidades – essa concepção visa a “diminuir os

sofrimentos que resultam da impossibilidade” em que o homem “se encontra de

satisfazer suas necessidades essenciais. É nisso que a fórmula da justiça se aproxima

mais de nossa concepção de caridade” (p.10).

Defende que a aplicabilidade (justiça concreta) do sexto princípio – “afirmado na

legislação social contemporânea” - depende do estabelecimento de um “mínimo vital” que poderá

assegurar a cada homem seus “encargos familiares”, saúde e demais proteções especiais (idade,

velhice etc). Para esse fim deveriam ser consideradas as “necessidades essenciais” que, segundo

Perelman, devem ser definidas “por intermédio de critérios puramente formais, baseando-se nas

exigências do organismo humano em geral”. Esse princípio exigiria uma limitação de pessoas a

serem por ele atendidas. E mais:

Quem deseja aplicar a fórmula ‘a cada qual segundo suas necessidades’ deverá não só estabelecer uma distinção entre as necessidades essenciais e as outras [“mais refinadas”], mas também hierarquizar as necessidades essenciais, de modo que se conheçam aquelas que se há de satisfazer em primeiro lugar e determinar o preço que custará a sua satisfação: essa operação conduzirá à definição da noção de mínimo vital.(p.25-6)

Vale ressaltar que Perelman entende a caridade como uma virtude diametralmente oposta

à justiça, posto que “instintiva, direta, indescritível”, “incondicional e constitui um imperativo

categórico”; já a justiça “não é concebida sem regras”, é “uma virtude racional, a manifestação da

razão na ação”. Como então pôde pretender aproximar pólos diametralmente opostos? Tenta

explicar o próprio autor:

Essa imperfeição de todo sistema de justiça, a parte inevitável de arbitrariedade que contém, deve sempre estar presente na mente de quem quiser aplicar suas mais extremas conseqüências. É somente em nome de uma justiça perfeita que seria moral afirmar pereat mundus, fiat justitia. Mas todo sistema normativo imperfeito, para ser moralmente irrepreensível, deveria aquecer-se no contacto de valores mais imediatos e mais espontâneos. Todo sistema de justiça deveria não perder de vista sua própria imperfeição e disso concluir que uma justiça imperfeita, sem caridade, não é justiça. (p.46-7)

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Sinteticamente podem ser feitas as seguintes observações gerais, a partir das ponderações

apresentadas por Heller (1998)33 a essa lista de princípios: a quarta fórmula (a cada qual segundo

sua posição) remete a que vigorava ainda dentro da lógica aristocrática e que foi combatida na

Revolução Francesa. É uma idéia geral de justiça que opera em sociedades hierárquicas.

A quinta fórmula – a cada qual o que lei lhe atribui – não é uma idéia universal e nem

geral; nas sociedades pré-modernas remeteria à idéia de posição e, nas sociedades modernas

corresponderia ao primeiro princípio – a cada qual a mesma coisa. Aliás, esse princípio –

aparentemente igualitário – quando submetido à lógica que preside a regra de ouro, opera como

critério de justiça formal – esvaziando sua aplicação substantiva, pois – na maior parte das vezes,

mantém a desigualdade.

O segundo (a cada qual segundo seus méritos) e o terceiro princípios (a cada qual

segundo suas obras) não podem ser aplicados independentemente do primeiro; a rigor, são

variações do primeiro princípio (a cada qual a mesma coisa) porque também implicariam em

proporcionalidade (HELLER, 1998, p.49).

Heller (1998) considera, ainda, que os princípios de justiça podem ser apreendidos em

dois níveis distintos: como “idéias constitutivas” e como “idéias reguladoras”. No primeiro caso,

tem-se a prescrição de “normas de proporcionalidade”. No segundo o que está em jogo são

“filosofias, teorias sociais ou ideologias que sugerem a aceitação de uma ou duas idéias

abrangentes que prescreveriam métodos de estabelecer proporcionalidade, de modo a tornar a

sociedade justa” (p.46).

Neste sentido, advoga que todos os princípios de justiça até aqui comentados (i.e., do

primeiro ao quinto) devem ser tomados como idéias constitutivas. E, como tal “medeiam” entre a

33 Essa autora examina também a proposta por Rescher, mas em função de imprecisões desenvolve suas argumentações sobre a de Perelman.

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“substância da justiça – o que equivale a dizer: as normas e regras concretas aplicando-se a cada

membro de um grupo social – e o critério de justiça; isto é, os valores nos quais a justiça se

baseia, que são sempre valores que não a justiça” (p.47).

O sexto princípio – a cada qual segundo suas necessidades – é o mais controverso em sua

interpretação. Perelman – como já se viu – o entende nos marcos da “caridade”. Para Bobbio

(2000, p.300) este é o critério “igualitário por excelência” e serve para identificar doutrinas

igualitárias, posto que pessoas podem ser consideradas de fato mais iguais em relação à

quantidade e qualidade das necessidades do que qualquer outro princípio distributivo. Este seria,

portanto, o princípio que permitiria a menor diferenciação entre as pessoas. Relembra Marx

(1875) e cita Buonarroti34 (e também Babeuf) para justificar sua posição:

Dado que todos têm as mesmas necessidades e as mesmas faculdades, que exista, portanto, para todos uma só educação [os homens], uma só nutrição. Eles se contentam com um único sol e um único ar para todos: por que não deveria bastar para cada um deles a mesma quantidade e a mesma qualidade de alimentos?

Como “ninguém tem duas bocas ou duas barrigas” as pequenas diferenças entre

necessidades (adulto/criança; homem/mulher) não são obstáculos pois “em moral, em política, e

em economia, a igualdade não é uma identidade matemática e não se altera por pequenas

diferenças”; diferenças estas que sempre serão menores das que a sociedade reconhece ao

proceder repartição com base em capacidades, como propõe a doutrina liberal.

Bobbio chama atenção para o fato de que tanto no Manifesto dos Iguais, como na Crítica

ao Programa de Gotha, a capacidade é um critério utilizado para a distribuição do ônus

(repartição dos diferentes trabalhos) ao invés do bônus (como no pensamento liberal). Na

doutrina igualitária, conclui, a capacidade é invocada para justificar a desigualdade dos deveres

que cada um tem diante da sociedade.

34 BUONARROTI, Felippo. Cospirazione per l´eguaglianza detta di Babeuf. Turim: Einaudi, 1971. Apêndices: Manifesto degli Eguali e Manifesto dês plébéins de Babeuf.

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Correta observação, mas, por outro lado, em que pese sua posição em relação ao

tratamento canônico dado aos textos clássicos, Bobbio esqueceu como Marx entende toda e

qualquer “distribuição dos meios de consumo”: como “corolário da distribuição das próprias

condições de produção” – motivo pelo qual remeteu somente para a “fase superior da sociedade

comunista” a realização da repartição segundo o critério da necessidade. Tal argumento só

reforça a idéia – e a necessidade – de se buscar uma resignificação para justiça social ou assumi-

la como justiça distributiva.

Em outra linha argumentativa35 Heller (1998) critica o sexto princípio, alegando que

Perelman estava ciente de que a idéia “a cada um de acordo com suas necessidades” não é uma

idéia (ou princípio) de justiça, daí ter sugerido uma versão restrita: “a cada um de acordo com

suas necessidades essenciais”; porém, essa versão também não resolveria a questão, pois não se

pode dividir necessidades em “essenciais” e “não essenciais”; argumenta essa autora que, “nada

existe [de] naturalmente ‘essencial’ nas necessidades, e mesmo os objetos de diretriz de redução

são socialmente padronizados” (p.53). Por entender nessa “versão restrita” há um “engano

naturalístico”36, propõe a seguinte redação para esse princípio distributivo:

“a cada um o que lhe é devido por ser membro de um grupo social ou categoria essencial” que, em minha visão, formula claramente o ponto crucial do assunto. As próprias normas e regras definem aqui o que é devido a alguém por virtude

35 Heller coloca em discussão o conteúdo substantivo da “necessidade”; em sua opinião a necessidade não pode se expressar através de um princípio de simples distribuição de riqueza material (“ou de outro tipo”) porque implica em um sistema particular de necessidades individuais que varia de pessoa para pessoa, no qual normas e regras relativas a necessidades socialmente impostas não podem atuar. Neste caso, a justiça como idéia reguladora deveria ficar próxima à singularidade da pessoa – o que, no limite, não permite comparação ou posicionamento e, portanto, não existira justiça. Assim defende que uma sociedade “além da justiça” seria uma sociedade “sem justiça e nem injustiça”. 36 Entende que “sistemas de necessidades são moldados por normas e regras de cada sociedade, e, por isso,

diferentes sistemas de necessidades são alocados a diferentes grupos sociais. Os sistemas de necessidades atribuídos a um grupo social são necessidades reconhecidas. Depende de normas e regras quais necessidades são consideradas “essenciais” e quais não o são. (...). Se o sistema normativo de uma sociedade reconhece vida como um valor (o que está sempre longe de ser o caso), então a necessidade de mera sobrevivência também é reconhecida, e a alocação de alimento aos necessitados significa como que a satisfação de uma “necessidade essencial” – sendo, portanto, um ato justo (pp.53-4).

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de ser membro de um grupo social ou categoria essencial37 e, se alguém não receber os bens materiais e/ou espirituais, ou os meios adequados a ele devidos, houve injustiça.

A versão por ela sugerida comporta desdobramentos em relação aos princípios de mérito,

competência (ou trabalho) e “a mesma coisa” – que denomina de “princípios universais”, pois

podem ser aplicados em qualquer sociedade. E adenda tomando por base o exemplo de Perelman:

Se caridade é uma norma social, aqueles pertencentes ao grupo de “pessoas famintas” deveriam ser providos com alimento, independente de seu mérito e competência. Entretanto, isso não significa ou implica nós os abastecermos com alimento “de acordo com suas necessidades”, apenas que os alimentemos porque “eles estão em necessidade”. (...). Em outras palavras, a idéia relevante de justiça, aqui, não é “a cada um de acordo com suas necessidades”, mas “a cada um o que lhe é devido” (por ser membro de um grupo em particular, segundo uma norma reconhecida socialmente). (p.52)

Embora não concordando com a totalidade dos argumentos e com as conclusões dessa

autora38, admite-se que alguns arrazoados parciais tornam-se extremamente interessantes para se

pensar a temática em questão; a crítica contundente à lista de princípios de justiça elaboradas por

Perelman evidencia, por um lado, que os princípios de justiça tomados isoladamente, i.e., sem

uma perspectiva teórica que garanta um critério ético, se transformam em tautologia; por outro, a

redação sugerida para substituir o equivocadamente considerado “princípio da necessidade” pode

ser perfeitamente operacionalizado em qualquer modo de produção – explicitando que recorrer a

“necessidade” como critério distributivo, não significa recorrer-se a Marx.

37 Explica a autora que faz essa distinção, pois “existem categorias essenciais que não estão ligadas a qualquer grupo social. (...). Além do mais, categorias essenciais podem ser distinguidas dentro do mesmo grupo social – por exemplo, todos os filhos de um nobre pertencem ao mesmo grupo social, mas o primeiro, o segundo e o terceiro filho podem pertencer a “categorias essenciais” inteiramente diferentes (...)” (p.54). 38 Vale lembrar que um dos argumentos desenvolvidos por Heller no Capítulo V – e que sustentam sua conclusão geral – é o que “uma sociedade além da justiça é impossível e indesejável. Uma sociedade totalmente justa é possível, mas é indesejável” (p.305).

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1.1.2.2 Justiça e igualdade: novos significados, outras concepções

Com a dissolução do ancien régime, a emergência da vida pública, o assalariamento de

crescentes camadas da população e a expansão dos direitos civis no século XVII e também com a

conquista posterior da participação política, a idéia da chamada justiça social e da igualdade

tornam-se “um ideal social com força prática” (MILLER, 1996, p. 373). Como é sabido, a

cidadania remete a longos e conflituosos processos de consolidação de direitos através dos quais

se acomoda, nas sociedades ocidentais, a questão da subordinação política e da integração social,

com vistas a um mínimo de coesão social.

E nesse quadro a expressão justiça social seguiu – e segue - sendo divulgada através da

chamada doutrina social da Igreja – ocultando sua real dimensão econômica: “relações existentes,

em qualquer sociedade, entre os indivíduos enquanto produtores, proprietários ou permutadores

de bens e serviços de valor (MACPHERSON, 1993, p.267)39.

Para Macpherson (1993, p.277) três causas principais podem se apontadas no processo de

revitalização do conceito de justiça econômica nas sociedades ocidentais no século XX: a prática

política40 (e não a teoria política) das democracias liberais a partir da expansão dos sindicatos e

dos partidos trabalhistas e social-democratas e da adoção de medidas de proteção social; o

surgimento de monopólios e oligopólios que controlam o mercado, evidenciando ser

insustentável defender a idéia de um “mercado autônomo”; e, por fim, o fato do mercado deixar

39 A tradição de país que se diz católico no plano geral e a influência da doutrina e da prática social da Igreja (e em particular para o Serviço Social) são hipóteses que podem justificar o uso corrente dessa expressão tanto no país como no Serviço Social (o que, aliás, não combina com o ideário do atual projeto ético-político); tanto na produção teórica como na prática política de outras formações sociais a referência usual é à justiça distributiva, cuja discussão será retomada posteriormente. 40 Segundo esse autor essa prática política também teria revitalizado a idéia de justiça comutativa através da legislação de defesa do consumidor e da “doutrina judiciária dos ‘contratos extorsivos’”.

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de ser o maior responsável pela distribuição de renda a partir da intervenção estatal. Assim

resume esse autor:

O Estado viu-se compelido a intervir, em parte por pressões dos movimentos trabalhistas, em parte por pressões de vários setores do capital organizado, e em parte para salvar o próprio sistema. Tais pressões continuam atuando. Elas indicam que tanto os setores capitalistas mais avançados como os movimentos de trabalhadores (e agricultores) consideram o mercado incompetente para promover uma distribuição de renda justa. Por conseguinte, também nesse sentido o mercado não pode mais pretender-se isento de padrões éticos alheios à sua natureza. Além disso, o Estado, que agora participa da função distributiva, deve sustentar, enquanto Estado democrático, que sua política econômica visa ao interesse público; e o princípio mais conveniente, porque mais familiar, para ser invocado é a justiça econômica (p.277-8).

Pari passu ganha força a idéia de “igualdade social” (passando a ser mais fortemente

associada à noção de justiça), sendo entendida como

a idéia de que as pessoas devem ser tratadas como iguais em todas as esferas institucionais que afetam suas oportunidades de vida: na educação, no trabalho, nas oportunidades de consumo, no acesso aos serviços sociais, nas relações domésticas e assim por diante (MILLER, 1996, p.373).

Trata-se, portanto, de uma concepção de igualdade bastante distinta da proposta por Marx

(tanto por seu conteúdo, como pela base material em que se desenvolve), mas que, sem o

desenvolvimento de seu pensamento, talvez não pudesse ser formulada. Desta forma, no contexto

de “equalização” política e jurídica garantida pela expansão da cidadania, a questão da igualdade

fica contemporaneamente no centro de um campo de forças em torno de sua definição. Grosso

modo é qualificada por duas posições: a igualdade de oportunidades – defendida desde os liberais

clássicos41 - e a igualdade de resultados – tradicionalmente defendidas pelos social-democratas;

mas ambas são forjadas no âmbito da economia de mercado.

Não por acaso retorna com toda força uma antiga tradição no âmbito da filosofia política:

a de propor teorias de justiça – o panorama contemporâneo mundial, que recoloca novas

expressões da antiga questão social, repõe a necessidade de integração e recriação dos vínculos

41 A esse propósito, ver a crítica de Hayek (1985) na seção 4.

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sociais, garantindo um mínimo de coesão social, através da idéia apaziguadora do contrato

social42. Movimento iniciado pela filosofia política, mas acatado no conjunto do mundo político e

acadêmico, dada a agudização da impossibilidade de atendimento das demandas colocadas pela

dinâmica conflitiva da vida social nos marcos da sociedade burguesa.

Surgem assim novas propostas para pensar novos pactos e novas formas de cidadania,

com grande apelo à solidariedade social; mas também voltam velhas idéias e velhas formas de se

pensar a justiça a partir de critérios e princípios de distribuição descolados das concepções

teóricas nas quais são produzidos.

1.2 Linhas gerais do trabalho

Dada essa extensa introdução entende-se necessário marcar enfaticamente as linhas gerais

do presente trabalho, ou melhor, o que aqui é defendido:

(1) o uso da expressão justiça social de modo impreciso ou indeterminado, oculta

propostas e conteúdos distintos do ponto de vista das diferentes concepções teóricas

de justiça; isto porque, assim usada, oculta as relações sociais de produção, ou como

nos diz Macpherson (1993, p.267) as “relações existentes, em qualquer sociedade,

entre os indivíduos enquanto produtores, proprietários ou permutadores de bens e

serviços de valor” – tão evidentes quando se trata de justiça distributiva;

42 Ciriza (2006, p.82) refere-se ao “encanto duradouro do contrato” para referir-se ao seu “caráter de solução teórica que permite imaginar uma ordem social capaz de articular em forma simultânea o consenso e as tensões inerentes à defesa dos interesses particulares, sem que o individualismo se torne ameaça extrema e desemboque na selvagem guerra de todos contra todos. O contrato oferece uma imagem de pacificação das relações dos indivíduos entre si, que emana da possibilidade de lateralização do conflito, colocado na origem da constituição do pacto social, mas atenuado na medida em que a necessária sujeição à ordem da lei, se não o evita, ao menos regula o abuso.”

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(2) em que pese a importância da contribuição de Marx para o alargamento das teorias da

justiça, pensar em termos de justiça social ou justiça distributiva significa situar-se nos

marcos do modo de produção capitalista;

(3) no campo teórico, podem ser identificadas três grandes concepções de justiça social:

(a) a “igualitária radical” (cujas raízes são atribuídas ao pensamento de Rousseau), (b)

a liberal (orientada a partir dos princípios do liberalismo clássico) e (c) a chamada

“liberal-igualitária” que defende a equidade (tendo em Rawls seu grande expoente);

porém, no debate contemporâneo a discussão está restrita as diferentes concepções

que se situam no campo do “casamento não oficial” entre liberalismo e social-

democracia (HOBSBAWM, 2003).

Desta forma, o presente trabalho está organizado em quatro seções, aqui incluindo-se esta

introdução; nela se procedeu a um “mapeamento” do campo temático, colocando-se as questões

que se desdobram nas partes posteriores.

A segunda seção – Justiça e Igualdade – sumaria as concepções de justiça formuladas por

pensadores representativos a partir do século XVI; ressalte-se que já nessa época – e a despeito

do comentário de Perelman (2002) – essas concepções já se vinculavam à questão da igualdade.

Evidentemente concepções igualitárias diferentes, mas com vinculação explícita.

Na terceira seção – Liberalismo, Igualdade e Mercado – apresenta-se tanto o pensamento

liberal clássico como o revisionista, apontando semelhanças e diferenças entre os autores

comentados. Aqui também, a exemplo do que se buscou na seção anterior, apresenta-se um

balanço sobre convergências e divergências entre os pensadores, a partir das considerações

formuladas por Bobbio (2000, p. 297-319), para se avaliar questões relativas às concepções de

liberdade, igualdade e justiça.

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A quarta seção – Justiça, Equidade e Desigualdade – apresenta parte do debate

contemporâneo sobre justiça. Debate intenso e inacabado que se (re)institui a partir da década de

70 do século passado, instigado pela obra de John Rawls. Aqui também são apresentadas

algumas questões relativas à vinculação entre concepções de justiça e política social. Na última

parte - considerações finais – além de sumariar o conjunto de questões que sustentam as hipóteses

aqui defendidas, são apresentadas algumas implicações que se colocam para o Serviço Social

hoje.

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2 JUSTIÇA E IGUALDADE

Conseqüentemente (...) toda a história tem sido a história da luta de classes, da luta entre explorados e exploradores, entre as classes dominadas e as dominantes nos vários estágios da evolução social.

Engels (Prefácio à edição alemã de 1883 do Manifesto Comunista)

Ficará evidenciado, então, que o mundo há muito possui o sonho de uma coisa da qual ele só precisa da consciência para possuir realmente. Ficará evidenciado que não se trata de um grande travessão entre o passado e o futuro, mas da efetivação das idéias do passado.

Marx (a Ruge, 1843)

Já que a história tem sido a história da exploração de uma classe por outra, esta seção tem

por suposto que sempre houve, portanto, “vozes dissonantes”; “vozes” essas que – por não

aceitarem a justificação da ordem social vigente em seu tempo e rechaçarem a concepção de

igualdade na fé ou na condição de proprietários – não conseguiram se inscrever nos registros da

história. As vozes que o conseguiram entraram na história, em geral, por dois caminhos: pelo

plano da ação política (o que significa serem referenciados como “vencidos”) ou pelo discurso

considerado “visionário” (que era sustentado também por pensadores vinculados aos setores

dominantes).

Nesse sentido, a presente seção tem por objetivo apresentar um contraponto às

concepções da antiguidade e do medievo, bem como às liberais (que serão discutidas na terceira

seção). Trata-se das principais concepções – teóricas ou doutrinárias – que, ao fazerem a crítica

da sociedade nas quais foram produzidas, clamaram tanto por um novo referencial de igualdade,

como por uma justiça que fosse além da justificação da propriedade privada já estabelecida e por

uma liberdade além das regras do mercado. No entanto, nem todos os “vencidos” e “visionários”

almejavam aos mesmos ideais. Entre os próximos, nem todos partilhavam as mesmas idéias sobre

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igualdade, sobre justiça, sobre liberdade e, sobretudo, em relação – se existiam43 - às táticas para

alcançar a ordem social almejada.

Aqui serão referenciados pensadores muito peculiares, pois apesar dos contrapontos por

eles apresentados nem todos são passíveis de uma “conceituação acadêmica”; podem apresentar

premissas liberais e conclusões não liberais, como também premissas não liberais e conclusões

passíveis de serem assim interpretadas. Por essa ampla configuração, esses pensadores e/ou

atores serão apresentados a partir do seu próprio tempo – a partir do século XVI até o XIX.

Cabem algumas considerações: a primeira se refere ao fato de que não se entende que a

galeria de retratados esgota o panorama desse longo período – ao contrário: os autores/atores

desse tempo ainda estão em processo de descoberta – seja do ponto de vista da teoria, da filosofia

e ciência política, como da história. Ademais, iniciar essa apresentação pelo século XVI não

significa admitir a hipótese de que essas “vozes” não tenham existência anterior ao período –

afinal, é demais supor que a revolta ou o contraponto decorrente da exploração de uma classe por

outra somente tenha sido formulada a partir daquele século44, apesar da especificidade que ela

adquire desde então.

43 Piva (2006) faz uma distinção entre o homem revoltado e o homem revolucionário que pode ser aqui evocada. Buscando entender a “revolta metafísica” (entendida, com base em Camus, como “desenvolvimento da consciência ontológica”, cuja origem seria a “constatação do absurdo da condição humana” – p.35) e partindo da conceituação de Catherine Clément e da argumentação de Albert Soubol, defende Piva que a revolta é “mais ampla” e se caracterizaria por um “sentimento de indignação contra uma determinada ordem de opressão e injustiça”. Assim, o “desencadeamento revolucionário tem origem na revolta”; mas se, por um lado, o homem “revoltado permanece sempre na insubmissão”, por outro, o homem revolucionário – que é necessariamente um homem de ação, pois além de teorizar, propagandear, “organizam-na mediante o engajamento da práxis, seja esta vitoriosa ou não” (p.250) – se perder a revolta, reduz-se a um reacionário (p.267). Porém, ressalta: “por outro lado, como bem salienta Dominique Lecourt, ‘a revolta não quer nada se ela não anuncia a revolução’”. Neste sentido, esta seção é dedicada tanto aos revoltados como aos revolucionários. 44 Vale lembrar, a título de exemplo, das Jacqueries (ou “Revolta da Pobreza”) logo após a Peste Negra que dizimou boa parte da população européia, obrigando aos sobreviventes ao aumento da exploração da força de trabalho. Colheitas ruins, carestia, fome, aumento dos impostos dentre outros aspectos constituem o contexto das revoltas camponesas no séc. XIV. Elas ocorreram em diferentes regiões européias, levando pânico as vilas e cidades. Na Inglaterra, pouco mais tarde, camponeses, artesãos e pequenos comerciantes também se levantaram contra seus senhores e o poder real. Outro exemplo pode ser encontrado em Morelly (1994, p.73n23) que se refere a revolta dos ilotas ainda na Antiguidade: “a última categoria social na antiga Esparta: ocupavam-se da agricultura. Eram considerados como posse (...) da comunidade de Esparta, isto é, da classe dirigente dos cidadãos todo-poderosos. A

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Toda essa digressão justifica-se também por duas questões levantadas por Darnton (1998)

ao mapear o que os franceses liam no século XVIII, mais especificamente no período pré-

revolucionário; nessa investigação identificou uma intensa e criativa literatura contestatória que

divergia do que era prescrito nos manuais ou na própria Enciclopédia45.

A primeira questão diz respeito à dificuldade de divulgação de idéias que não se

coadunavam com as “autorizadas” (“definidas” através de legislação, mas com um caráter

extremamente difuso de modo a permitir a censura) e, sobretudo, com a destruição dos livros que

se propunham discutir a autoridade do rei, atacar a igreja ou os costumes da época.

Evidentemente tal quadro restritivo não era uma prerrogativa francesa, tampouco exclusivo do

período das Luzes.

A segunda questão de Darnton diz respeito a impossibilidade de produzir qualquer

conclusão – por vários argumentos muito bem fundamentados – acerca da determinação de

“origem” daquelas idéias – ou seja: aquela literatura contestatória espelhava a opinião pública da

época ou a conformaria? Obviamente, conta para a formulação dessas idéias todo o contexto

cultural da época46.

vida, os bens e os instrumentos de trabalho dos ilotas se encontravam à disposição da comunidade urbana dos espartanos. O tratamento cruel que estes dispensavam aos ilotas provocou sua revolta nos séculos V e VII a.C.” 45 A esse respeito vale também referenciar a obra do mesmo autor intitulada O Iluminismo como negócio (Companhia das Letras). Sobre a destruição desses “livros filosóficos” – cujos pedidos eram feitos em listas à parte - lembra o autor que se tentava fazê-la de modo o mais discreto possível, posto que só o anúncio sobre tal procedimento, respondia pelo fim de toda a edição – o público comprava avidamente - e o material era logo reproduzido informalmente. 46 Caillé et al (2004, p.7-25) argumentam que se a antiguidade e o medievo garantiram a relação entre interesse individual, interesse comum e virtude (v. notas de rodapé 13 e 17) a Renascença romperá essa tradição. Vale lembrar que durante a Idade Média houve um retrocesso nas funções produtivas, com a economia sendo segmentada nos feudos – quase que auto-suficientes – com drástica redução do comércio. A ascensão das novas forças produtivas, que marca o fim da Idade Média, se deveu à ruptura da auto-suficiência feudal e ao renascimento do comércio de longa distância, entre Oriente e Ocidente, precedida pelo sistema de encomendas domiciliar levado a cabo entre mercadores (que em geral forneciam a matéria-prima) e camponeses, iniciando uma forma de “produção simples de mercadoria”. “O renascimento comercial implicou no crescimento das cidades, em cujo seio começou a se desenvolver uma nova classe social, a burguesia, constituída inicialmente por mercadores e cambistas. Ressurgiu a divisão internacional do trabalho, que suscitou o desenvolvimento das forças produtivas tanto na agricultura quanto na manufatura (SINGER, 1998). A cultura das cidades-estado italianas (final do século XV, início do XVI) com a “literatura dos escritores-negociantes desenhará o retrato de um interesse indestrutível” que o descolará,

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Em síntese, a presente seção remete ao utopismo – aqui entendido nos termos do

Manifesto Comunista: “idéias [que] precederam o desenvolvimento decisivo da indústria, do

proletariado e da luta de classes, e [que] não poderiam, por isso, levar estes fatores em

consideração”. Ou ainda, como o define Löwy (1987), o conjunto articulado e estruturado de

valores e representações que se contrapõem à ordem social vigente, propondo a realização, no

presente ou no futuro, de uma nova sociedade ou de reformas que alterem significativamente a

sociedade em curso.

progressivamente, do “interesse comum”. Tal literatura – sob a forma de análises ou de “conselhos práticos” – influenciará até mesmo humanistas italianos que “exaltarão o papel de uma riqueza distributiva e benéfica para a cidade”. Tal concepção faz emergir o interesse sem a virtude (excelência) que sempre contribuiu para regular as relações de cada homem tanto com a sua comunidade, como com outros homens. Com o estabelecimento do poder centralizado das grandes monarquias, a intensificação das trocas mercantis, os conflitos religiosos e a emergência da ciência moderna, novos cismas entre razão e felicidade serão criados. Essa concepção implicou em três reações que são “suscetíveis de se combinar parcialmente”. “A primeira reação rompe com a idéia de um possível domínio ético dos comportamentos interessados e com o desejo de uma educação cívica por meio das instituições da cidade. Ela confia a regulamentação dessas condutas a práticas governamentais capazes de orientá-las em direção à produção de um interesse público: cabe agora os teóricos da polícia e da razão de Estado descrever e promover uma racionalidade governamental capaz de tirar proveito das condutas (e de as suscitar), ligando-as ao valor dos recursos do Estado (população, território, recursos naturais. Essa teoria e essa prática governamentais se desdobrarão, com tais pressupostos, a partir da segunda metade do século XVI na Europa, e é possível seguir seu aperfeiçoamento ao longo dos séculos XVII e XVIII, quando elas formam verdadeiramente o alicerce da racionalidade governamental e administrativa do Estado moderno. A segunda reação também retém a idéia da falência do domínio ético dos comportamentos interessados, mas ela se distingue da primeira por sustentar que uma certa ‘equivalência’ da conduta virtuosa pode ser obtida a partir de processos de auto-organização coletiva independentes das práticas governamentais. Desde a segunda metade do século XVII, será dada ênfase a todas as formas de ação coletiva pelas quais os indivíduos, mesmo que buscando apenas realizar seu interesse individual, chegam de uma forma não intencional a imitar as condutas caridosas, cooperativas e cívicas. (...). Esse novo tipo de saber se cristalizará na economia política e nos inícios da sociologia do século XVIII, principalmente com os autores da escola escocesa e na França. A terceira reação caracteriza-se, ao contrário, das duas primeiras, por uma tentativa de renovar, de forma mais ou menos ampla, o ‘programa ético’ da filosofia antiga, repensando as relações da virtude, do útil e da felicidade por meio de uma retomada das diferentes correntes que são o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo.” Independentemente do caminho de reação, o auge do pensamento que se institui a partir da Renascença italiana chegará ao seu auge no período das Luzes. E aí a grande contribuição será de Kant que, ao analisar as condições da felicidade (ao invés da multiplicidade de definições do bem supremo), também deduz (como Agostinho) que a razão não pode definir a felicidade. Mas deduz também que ela é um “ideal da imaginação” e, portanto, não há como se estabelecer “regras universais” para seu alcance; com essa concepção Kant constrói o “alicerce da argumentação liberal moderna”, a saber: a da imensa incomensurabilidade das inclinações individuais que “nenhum poder público” pode pretender satisfazê-las.

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2.1 Século XVI: o chanceler, o povo e o pastor

Para o século XVI foram escolhidos dois pensadores movidos pela fé – ambos foram

executados em função das suas convicções religiosas que, no entanto não eram coincidentes,

como não era coincidente o “lugar” do qual descreveram suas idéias: Thomas More (1478-1535)

e Tomás Müntzer (1490 – 1525).

O primeiro – More (ou Morus, em latim), advogado, foi membro do Parlamento Inglês

(1504) e desenvolveu missões diplomáticas até tornar-se chanceler (1529) e, em 1517, membro

do Conselho do Príncipe. Sua formação humanista (mas não exclusivamente cristã), no período

do renascimento voltava-se para a releitura dos filósofos antigos; Pessanha (2004) vê em Utopia

uma revalorização indireta do epicurismo, mas também a influência de Platão – esse sim já

“integrado ao pensamento cristão”; sustentava a “origem divina da autoridade da Igreja”, mas

como chanceler não concordou com a perseguição aos adeptos da Reforma.

Contudo, sua demissão do cargo motivada pela recusa em assinar o Ato de Sucessão (que

validava o casamento de Henrique VIII com Ana Bolena47) levou-o à decapitação; mesmo não

sendo papista, foi beatificado em 1886 e posteriormente canonizado (1935). Bloch (2006, v. II,

p.71) defende que, apesar de sua beatificação e canonização, More deve ser considerado um

precursor do Estado não-confessional, bem como o “mais nobre precursor do comunismo” (p.72);

dentre outros aspectos que sustentam sua afirmação, chamam particular atenção o epicurismo

anti-clerical, mas sobretudo a “eliminação da controvérsia dogmática”.

A Renascença pode ser caracterizada em linhas gerais como reação à filosofia escolástica,

mas também à Igreja Católica como hierarquia, como autoridade e centralismo e por

47 Ver nota posterior que resume o contexto.

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procedimentos incompatíveis com a pregação (posse de terras, acúmulo de riquezas, cobrança de

impostos a vários reinos, venda de indulgências e veneração às relíquias).

Essa situação levou – nos países baixos e na Alemanha Ocidental – à criação de um

movimento denominado “Irmãos da Vida Comum”, que defendia um retorno às origens cristãs,

“uma religião simples, de piedade prática, liberta do dogmatismo e do ritual de igreja organizada”

(BURNS, 186, v.II, p. 442). Por volta de 1500 esse movimento se associa aos ideais humanistas,

recebendo apoio de escritores e filósofos cristãos, bem como de alguns setores da Igreja; nesse

quadro, destaca-se Desidério Erasmo (Erasmo de Rotterdam48: 1469-1536), amigo pessoal de

More. Erasmo foi um elo indireto entre More e Müntzer, e também com outros reformadores

envolvidos no cisma da Igreja Medieval - pano de fundo (não exclusivo) desse período. Afinal,

vale lembrar, a Reforma, “em um mundo sobredeterminado pelo religioso, repercutiu

intensamente em todas as instituições sociais” (DE BONI, 2000, p.7).

O segundo – Müntzer – monge agostiniano, amigo de Lutero, que aderiu a Reforma.

Contudo, sua experiência com os “profetas de Zwickau”, fez de Müntzer um dissidente, um

“pastor sem igreja” que errou durante dez anos pela Europa, apoiando as revoltas camponesas e

pregando contra os ricos e poderosos (aí incluso o clero). Renunciou ao seu título de doutor e

vestia-se como um camponês, pregando idéias radicais (religiosas, mas também de conseqüências

não clericais) que o levaram a chefiar uma revolta de 8.000 camponeses armados somente com

foices e enxadas. Foram dizimados e Müntzer executado.

Nesse contexto, marcado pela crise do antigo sistema feudal e pela transição para uma

nova forma de organização da sociedade com o capitalismo mercantilista emergente, movem-se

48 Seu livro mais conhecido - Elogio da loucura (1509) – inicia com uma carta dirigida a More. Neste livro quem fala é a loucura; através dela seu autor critica os racionalistas e escolásticos ortodoxos que colocam o homem a serviço da “razão louca”; defende a “loucura sã”, a dos simples e dos justos. Nessa dedicatória especial já referida, Erasmo exorta More à defesa de suas idéias.

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esses dois pensadores/atores. More, um homem urbano com uma visão geral não só da Inglaterra,

mas do conjunto de problemas de seu tempo; Müntzer, ligado às experiências das aldeias,

sobretudo alemães, partindo dos dilemas vividos por ele e pelos camponeses em geral.

2.1.1 Thomas More e sua Utopia

Thomas More não é o criador do pensamento político utópico, mas é, em grande medida,

o responsável por sua difusão. Contudo, nem todos os textos publicados possuíam a mesma

consistência, a mesma proposta ou a mesma originalidade. Utopia49 (1516) – título mais

conhecido dessa obra - até hoje desperta curiosidade e interpretações contraditórias.

Usando do artifício de um narrador50, More faz a crítica da ordem social de seu tempo e,

simultaneamente, defende – sem comprometer sua situação de homem público – suas idéias de

sociedade justa.

49 Nome completo: Da condição ótima do Estado ou da nova ilha Utopia. Cabe ressaltar que Bloch (2006, v.II, p.74) entende ser “altamente provável que a Utopia seja uma obra híbrida de dois autores”: Morus e Erasmo. Autores atribuem a origem da expressão a essa obra, bem como a própria estrutura do texto utópico: insularismo, sistema agrícola e aversão ao comércio, regularidade de funcionamento das cidades, fixismo (sendo perfeita não há o que mudar), legislação centralizada e outorgada, coletivismo absoluto, pedagogia estatizada que visa a mudança da natureza individualista da criança; humanista, porém totalitária (TROUSSON, 1989). Neste sentido, o utopismo pode incluir o gênero literário utópico – mas não necessariamente. Um bom exemplo é A República de Platão – sem dúvida passível de ser considerada nos termos do gênero literário – mas um exemplo de conservantismo, bem como A Cidade do Sol, de Campanella. Nova Atlântida (Bacon), até onde foi escrita, é uma defesa do ponto de vista da ciência moderna, não se vinculando, portanto, ao utopismo aqui pretendido. Já A República de Zenon (estóico) – se não fosse um tratado perdido – serviria perfeitamente aos propósitos deste trabalho, na medida em que defendia, segundo Plutarco, “uma igualdade perfeita”, principalmente entre homens e mulheres. Aqui, reitera-se, só serão consideradas obras que, nos termos do Manifesto Comunista, contenham “elemento crítico”, que “anunciam o desaparecimento dos antagonismos de classes”; obras, portanto, que apontam para o porvir. Neste sentido, Os trabalhos e os dias de Hesíodo, onde os homens viveriam como deuses porque sem os tormentos do trabalho, da dor e da velhice, não se enquadra apesar de defender a posse comum dos bens. 50 Rafael Hitlodeu, um português que teria se juntado à esquadra de Américo Vespúcio, após desvencilhar-se de seus bens (é assim que se sente no mais puro gozo da liberdade). No livro, More teria a ele sido apresentado quando em missão na Bélgica, por intermédio de um nativo. Bloch (2006, v.II, p.71) assevera que More fundamentou-se no “memorando de Américo Vespúcio referente à sua segunda excursão à América”; neste documento o navegador informava que ali as pessoas “vivem de acordo com a natureza”, os hábitos epicuristas (mais que estóicos) e que “também convivem sem propriedade privada”. Assevera ainda que apesar da grafia no original significar charlatão, “não há dúvidas de que Rafael representa as opiniões mais radicais de Morus” (p.75).

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A parte relativa à crítica cobre um amplo espectro e se constrói a partir da reconstituição

de um debate travado entre o narrador e vários interlocutores na casa do cardeal-arcebispo John

Morton – de quem o autor foi pajem. A questão que deflagra o debate é a pena capital imputada

aos crimes contra o patrimônio – dentre eles o roubo.51

Argumenta o narrador ser essa pena “injusta e inútil”, pois pune o roubo de modo muito

forte e cruel (advoga que “se a lei castiga é para matar o crime, conservando o homem” – p.35),

mas, por outro lado, é fraca para impedir que ele seja cometido, pois não há outro recurso para

quem passa fome. Assim questiona: “não seria melhor garantir a existência a todos os membros

da sociedade, a fim de que ninguém se visse na necessidade de roubar, primeiro, e de morrer,

depois? (p.36)”

Para ele a “principal causa da miséria pública” residiria, por um lado, no “número

excessivo de nobres zangões ociosos” com seu entourage e, por outro, nas ovelhas. A nobreza é

responsabilizada por, simultânea e contraditoriamente, explorar ao limite máximo os

trabalhadores de suas terras, ao mesmo tempo em que sustenta tanto lacaios e mandriões52, como

ostenta luxos extravagantes e caros. Se os primeiros são destruídos por ficarem “em carne viva” –

e isso devidamente sancionado por leis, posto que “essas maquinações decretadas pelos ricos em

nome do Estado, e, por conseguinte, em nome dos pobres também, são transformadas em leis”

(p.132); os segundos por se tornarem “incapazes de ganhar a vida”.

As ovelhas, obviamente, entram na ironia por conta dos enclousures53, para o qual

acorrem não só a nobreza, como também “os ricos e os abades”. Acrescenta o narrador que esses

51 Vale lembrar que, ainda em 1829, Victor Hugo escreveu anonimamente o libelo intitulado O último dia de um condenado à morte no qual defendia a extinção da pena de morte. Somente na 6ª edição, esse autor assume a autoria. Na última versão do Prefácio descreve situações de má execução da pena que infligia mais horrores aos supliciados. 52 Estes seriam as “sementeiras para o exército em tempo de guerra”; adenda o narrador: “com efeito, os ladrões não são os piores soldados, como os soldados não são os ladrões mais tímidos” (p.26) 53 A situação da Inglaterra do século XVI não era das melhores; a Guerra das Rosas (1455-1485) deixou boa parte da aristocracia feudal em condições instáveis; a igreja inglesa não tinha tradição de autonomia e pagava impostos à

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“engordadores de gado” levavam a carestia a todos os lugares em que levam suas mercadorias.

Com isso, dispensam-se a criadagem para se reduzir despesas. A saída é a mendicância ou o

roubo, com suas conseqüências:

Os infelizes abandonam, chorando, o teto que os viu nascer, o solo que os alimentou, e não encontram abrigo onde refugiar-se. Então vendem a baixo preço o que puderam carregar de seus trastes, mercadoria cujo valor é já bem insignificante. Esgotados esses recursos, que lhes resta? O roubo, e, depois, o enforcamento segundo as regras. Preferem arrastar sua miséria mendigando? Não tardam a ser atirados no porão como vagabundos e gente sem eira nem beira. No entanto qual é o seu crime? É o de não achar ninguém que queira aceitar os seus serviços, ainda que eles o ofereçam com o mais vivo empenho. E, aliás, como empregar esses homens? Eles só sabem trabalhar a terra; não há então nada a fazer com eles, onde não há mais nem semeaduras nem colheitas (p.30).

Defende textualmente o fim da propriedade como “direito individual”, pois sua existência

implica em procedimentos em que “cada um se apóia em diversos títulos e direitos para atrair

para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de um

reduzido número de indivíduos que deixam aos outros apenas indigência e miséria” (p.49).

Alerta o narrador para o fato de que sem o fim da propriedade privada só existiriam

“remédios paliativos” que, a rigor, não resolvem o problema. Cita como exemplos:

Santa Sé, levando os ingleses a uma dupla insatisfação: com o poder papal e com os rumos da Reforma. Nesse contexto Henrique VIII ascende ao trono iniciando a dinastia Tudor. Dentre outras medidas adotadas no período (que constituem o pano de fundo para os eventos que antecedem a chamada Revolução Inglesa – mais detalhada em nota posterior) destacam-se nesta parte da seção: 1) a ruptura da monarquia inglesa com a Igreja Católica - Henrique VIII, invocando razões de Estado, solicitou seu divórcio (da rainha Catarina de Aragão) para desposar Ana Bolena. Como o papa adiava sua decisão, Henrique VIII, em 1531, forçou a assembléia do clero a reconhecê-lo como protetor da igreja inglesa e persuadiu o Parlamento a decretar leis que transferiam os impostos papais para o tesouro real. Em 1534 proclamou-se (por meio da Ata da Supremacia) chefe supremo da igreja inglesa, com prerrogativa de nomeação dos bispos, lançando as bases do anglicanismo; na esteira desse procedimento, apropria-se dos bens da Igreja Católica em terras inglesas, vendendo-os à nobreza e à burguesia; a partir daí passa também a nomear os bispos. Morus é uma das poucas vozes dissonantes no governo; 2) os enclousures - cercamento de terras comunais e públicas, com o objetivo de expandir, sobretudo, a criação de caprinos para fins de produção de lã; essa prática que se inicia no século XVI só se acentua com o crescimento da indústria lanífera; tanto a nobreza como a gentry rural agiram brutalmente para expulsar os camponeses e aldeões das terras comuns, provocando uma migração em massa para as cidades, principalmente para Londres que se tornou um dos maiores conglomerados humanos daqueles tempos. A pauperização crescente desse contingente levou a um profundo endurecimento das leis penais. Marx retrata de modo pungente essa situação nO Capital(vol. I, cap. XXIV, 3). Assim More se refere às ovelhas: “Estes animais tão dóceis e tão sóbrios em qualquer outra parte, são entre vós de tal sorte vorazes e ferozes que devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as casas, as aldeias” (p.29).

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Decretar um máximo de posse individual em terras e dinheiro. Premunir-se por meio de severas leis contra o despotismo e a anarquia. Denunciar e castigar a ambição e a intriga. Não traficar as magistraturas. Suprimir o fausto e a representação nos altos cargos, a fim de que o funcionário, para sustentar sua posição, não se entregue à fraude e à rapina, a fim de que não se veja obrigado a dar aos mais ricos os cargos que deveriam caber aos mais capazes. Estes meios, repito-o, são excelentes paliativos que podem adormecer a dor e aliviar as chagas do corpo social; mas não espereis com isto devolver-lhe a forma e a saúde, enquanto cada um possuir solitariamente e absolutamente seus bens; podeis cauterizar uma úlcera, mas inflamareis todas as outras; curareis um doente e matareis um homem são; porque o que acrescentais ao haver de um indivíduo tirais ao de seu vizinho. (p.50)

Face ao argumento de inviabilidade de tal sociedade – por uma possível miséria e pela

desordem como conseqüência da recusa de trabalho - o narrador apresenta, como contraponto, a

vida na ilha de Utopia, em vários detalhes. Aqui cabe ressaltar somente alguns aspectos, dentre os

quais: a noção de equilíbrio e proporcionalidade demográfica pelas cinqüenta e quatro cidades54

que compõem a ilha (cabendo, até mesmo, migração da Ilha para sua preservação), o modo de

vida comunitário, a tolerância religiosa, a preocupação sistemática com a consolidação do

cidadão virtuoso55 e uma preocupação particular com a educação infantil.

A ilha é governada por um príncipe eleito pelo Senado a partir de uma lista quádrupla

indicada pelo povo. O cargo é vitalício, desde que não se recaia sobre o príncipe a “suspeita de

aspirar à tirania”. Adota-se a representação e as deliberações colegiadas sistemáticas, no que diz

respeito ao governo cotidiano da ilha. Quando se apresenta uma proposta, a discussão só é

realizada no dia seguinte, sob o seguinte argumento:

54 Ressalta o “narrador” que apesar dessa organização em 54 cidades a linguagem, os hábitos, as instituições e as leis são todas idênticas. Depreende-se que essa forma de organização espacial seria importante para garantir não só acesso aos bens necessários, mas, sobretudo para atender à questão do controle do conjunto da vida social e individual. 55 Esse perfil compreenderia, por um lado, o repúdio da vaidade, da avareza, da mentira, da dissimulação, bem como de determinadas práticas, como por exemplo, a caça, posto que desperta sentimentos vis no caçador que “procura no sangue e na morte um divertimento estéril” (até mesmo o abate de animais é tarefa entregue aos escravos - que serão posteriormente mencionados); de outro, da afirmação de valores do espírito e da virtude concebida como “viver segundo a natureza” (p.87).

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Desta maneira ninguém fica exposto a desembuchar levianamente as primeiras coisas que lhe passem pela cabeça, e a defender, em seguida, a sua opinião antes do que o bem geral; pois não é freqüente acontecer que se recue diante da vergonha de uma retratação e do reconhecimento de um erro irrefletido? Então, sacrifica-se o bem público para salvar a reputação. Este perigo funesto da precipitação foi previsto, e aos senadores é dado o tempo suficiente para refletir (p.66).

Para se evitar a idéia de propriedade individual e absoluta os utopianos, decenalmente,

trocam de casa através de sorteio. Essas não são trancadas e podem abrigar membros de outras

famílias em virtude de ensino de um ofício. Em relação ao trabalho, todos passam dois anos em

trabalhos agrícolas, havendo um revezamento anual. Em épocas de colheita, citadinos são

deslocados para o campo. A idéia é a de se produzir para todos sem que alguns poucos sejam

consumidos no trabalho do campo. Obviamente quem desejar ali permanecer, poderá ser

autorizado a fazê-lo pelo magistrado de sua circunscrição.

A função principal “e quase única” desses magistrados (os “sacerdotes” também são

assim designados) – eleitos anualmente pelo povo de cada cidade que compõe a ilha – é “velar

para que ninguém se entregue à ociosidade e à preguiça e todos exerçam com ânimo sua

profissão”. A jornada de “trabalho material” é de seis horas diárias; antes do alvorecer são

oferecidos cursos públicos eletivos que, no entanto, todos freqüentam; estes só se tornam

obrigatórios para os que são “destinados às letras”56. Todos têm horário livre para o

desenvolvimento de atividades que “enobrecem” o espírito e desenvolvem a cultura.

Essa jornada de trabalho garante a produção de tudo o que é necessário para uma vida

cômoda, sendo organizada de modo a abastecer – do ponto de vista dos gêneros alimentícios – a

ilha por dois anos (para atender a períodos de condições desfavoráveis à produção regular).

Ademais, com tanta abundância “em todas as coisas, não se teme que alguém tire além de sua

56 Desse segmento sairiam os embaixadores, padres, príncipes (p.70)

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necessidade. De fato, aquele que tem a certeza de que nada faltará jamais, não procurará possuir

mais do que é preciso” (p.74).

O excedente é destinado ao comércio exterior. Caso haja um “acúmulo de excedente”, os

citadinos são destinados ao cumprimento de outras atividades (como, por exemplo, restaurar as

estradas) e se mesmo assim não for suficiente, reduz-se a jornada de trabalho, posto que “o

governo não procura fatigar seus cidadãos em labores inúteis (p.71).” Isto não traria

complicações, a partir dos seguintes argumentos:

Ao contrário, as seis horas de trabalho produzem abundantemente para todas as necessidades e comodidades da vida, e ainda um supérfluo bem superior às exigências do consumo. Compreendereis facilmente se refletirdes no grande número de pessoas ociosas existentes nas outras nações. Antes de tudo são essas quase todas as mulheres, que em si constituem a metade da população, e maioria dos homens, ali onde as mulheres trabalham. Em seguida, esta imensa multidão de padres e religiosos vagabundos. Somai ainda todos esses ricos proprietários vulgarmente chamados nobres e senhores; acrescentai também as nuvens de lacaios e outro tanto de malandros de libré; e o dilúvio de mendigos robustos e válidos que escondem sua preguiça sob o disfarce de enfermidades. E achareis, em resumo, que o número de todas as necessidades é bem menor do que imaginais. Considerai também como são poucos aqueles que a trabalhar estão empregados em coisas verdadeiramente necessárias. Porque, neste século de dinheiro, onde o dinheiro é o deus e a medida universal, grande é o número de artes frívolas e vãs que se exercem unicamente a serviço do luxo e do desregramento. Mas se a massa atual dos trabalhadores estivesse repartida pelas diversas profissões úteis, de maneira a produzir mesmo com abundância tudo que exige o consumo, o preço da mão-de-obra baixaria a um ponto que o operário não poderia mais viver de seu salário (p.69).

Para os ulpianos a grande quantidade de leis existentes entre outros povos é uma

“injustiça suprema”, pois impede que os homens possam a todas conhecer e compreender

(p.104). Para esses ilhéus “a sabedoria reside em procurar a felicidade sem violar as leis. A

religião é trabalhar pelo bem geral. Calcar aos pés a felicidade de outrem, em busca da sua, é uma

ação injusta” (p.88). Vale ainda ressaltar, que dada a simplicidade da legislação, não existiriam

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advogados na ilha - eles “foram excluídos”; ademais, o Senado da Utopia pratica a máxima de

aplicar a “pena conforme a extensão do delito”57.

Contudo, a ilha teria seus escravos – segmento de constituição complexa e contraditória,

basicamente formado por prisioneiros de guerra58 (mas somente aqueles que foram pegos com

“arma na mão”), como também (mas não exclusivamente) pelos ilhéus que reincidiram em erro

grave. O interessante, porém, é que seus filhos são livres – ou seja, não há escravidão hereditária,

coisa usual até muito tempo depois.

Sob o argumento de que seus cidadãos são o bem mais precioso que possuem, mantém

uma relação extremamente instrumental com os “zapoletas” – povo vizinho que é arregimentado

para os combates que são inevitáveis; ressalte-se que os utopianos são contrários à guerra e que

“choram amargamente sobre os louros de uma vitória sangrenta”; para os ilhéus é glorioso ganhar

uma guerra não pela força bruta, mas “à força da habilidade e engenho”. Contudo, possuem um

original sistema bélico, defendem a “guerra justa”, considerando “justo” anexar territórios não

explorados de outros povos. A Utopia de Morus, assim, também é um estado de classes que

exerce seu poder político na relação com os outros países de modo intenso.

Enfim, são esses últimos aspectos os mais problemáticos – tanto do ponto de vista ético e

como da coerência da narração – no conjunto da obra que, evidentemente, revela ambivalências

decorrentes do diálogo do autor com seu tempo, pontuando a obra com seus valores; contudo, o

brilho da proposta formulada por um chanceler inglês (particularmente nesse momento da

história de seu país59) não se ofusca com esses percalços – ao contrário, esse misto de

57 Essa idéia será consolidada por Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, na obra Do Delito e da pena, em 1766. 58 É particularmente interessante a forma de tratamento aos povos vencidos – em vários aspectos lembram as prescrições de Maquiavel em O Príncipe. Contudo, aqui situá-las seria alongar demasiadamente o presente item. 59 Junto com o deslocamento do pensamento característico do medievo, várias transformações se deram; por um lado, as sociedades européias desenvolveram conhecimentos e técnicas (principalmente relacionadas à guerra) se colocando à frente de civilizações e culturas mais antigas e sofisticadas (como a árabe e a chinesa, por exemplo); por outro, os sucessivos conflitos – tradicionais e religiosos – geravam insegurança, traziam fome e devastação. Na

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conservadorismo e de inovação que opera dá vitalidade à sua obra. Várias idéias defendidas por

More neste texto considerado por muitos como uma “simples utopia literária” serão ainda

defendidos e fundamentados em séculos posteriores.

2.1.2 O pregador sem igreja e a revolta camponesa

Entender a dimensão política contida nos escritos de Müntzer – assim como do conjunto

dos reformadores protestantes do século XVI – exige intérpretes especialistas; afinal, trata-se de

discursos teológicos que revelam concepções de mundo; mas de um mundo extremamente

marcado, constituído pela religião. A motivação era teológica e essa dimensão se sobrepõe ao

debate político e filosófico.

Se a Reforma foi um “acontecimento primeiramente religioso”, o debate entre os

diferentes atores desse período revela aspectos da organização política daquele tempo. Neste

sentido, a Reforma não pode ser apreendida, independentemente da formação social na qual se

considere, como “apenas” referida à opção ou dogmas religiosos.

Para De Boni (2000, p.8) Lutero, Müntzer, Calvino e Inácio de Loyola podem ser

considerados “os principais paladinos do século XVI60, aos quais se deve a reorganização das

Inglaterra, particularmente, as questões econômicas descritas se complexificam contribuindo para que no século seguinte se dê a Revolução Inglesa. 60 Vale ressaltar que, de modo algum, esse autor autonomiza esses teólogos; ao contrário, marca de modo contundente que esse processo já se arrastava por quatro séculos. Diz De Boni (2000, p. 10): “esboçara-se no século XII, ao iniciar-se a crise do feudalismo, e foi evitada no século seguinte graças às figuras ímpares de Inocêncio III e Francisco de Assis, que souberam incorporar à Igreja as aspirações dos novos grupos sociais e religiosos que surgiram por toda a Europa. Quando a ameaça de cisão voltou a manifestar-se no século XV, foram inúmeras as tentativas de reformar a Igreja in capite et in membris, mas faltou, naquele momento, a maturação da situação histórica, a decisão da cúpula eclesiástica, bem como o gênio capaz de compreender os novos tempos, no que eles tinham de novo e irreversível. E, no século seguinte, a Igreja católica não teve mais a abertura suficiente para trazer para dentro de si os movimentos reformadores. Foi necessário o terremoto protestante para que ela também se renovasse.” Em relação a esses processos, lembra Abrão (2004, p.169-171) importância de John Wyclif (c.1320-1384) e de João Huss (1369-1415) que defendiam “o retorno à mensagem simples do Evangelho, o fim da hierarquia, maior participação dos leigos” que em seu entender “são ideais reformadores que liberam os desejos de justiça,

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instituições cristãs do Ocidente, preparando-as para o então nascente mundo moderno”. Contudo,

para os limites do presente trabalho a Reforma Protestante (nem mesmo a alemã, em particular) e

o pensamento político de Müntzer não ocupam o primeiro plano – o interesse principal reside na

revolta dos camponeses (em sua fase mais marcante) e na ação desse pensador nesse contexto.

Desta forma, seu pensamento não é objeto privilegiado de análise – mas sim sua ação.

Evidentemente, serão realizadas referências a todos esses aspectos, mas não de forma prioritária.

Assim, no que diz respeito a Reforma, há que se destacar sua importância no sentido de

fazer desistir-se da idéia de “um único monarca a reger politicamente o povo santo de Deus”, tão

desejada pela Igreja romana. Não é preciso, portanto, delongar sobre a perda da importância e da

influência da Igreja católica nos domínios da política. A Reforma só atingiu uma parte do mundo

cristão61 e, só aparentemente, as divergências entre católicos e protestantes não eram tão

significativas; De Boni (2000, p.11) ressalta que “o luterano Hegel” bem entendeu que “por trás

da relativização da autoridade eclesiástica” estava em jogo uma “subversão a ordem vigente” ao

se defender a interpretação individual da Bíblia e a partir daí se recusar obediência ao papa.

A Reforma foi a primeira grande revolução dos tempos modernos. Uma revolução religiosa num mundo sobredeterminado pela religião. Por isso mesmo, como foi observado, as mudanças por ela provocadas não se limitaram às questões eclesiásticas ou teológicas. Tão-somente recordamos aqui o exemplo desta influência para além da religião, apontado no estudo clássico de Max Weber, dizendo que o capitalismo moderno encontra sua raiz mais profunda na visão teológica da existência humana, tal como a concebia o calvinismo. Também deixamos de aprofundar um tema instigante, qual seja, o fato de que a subjetividade, enquanto experiência religiosa, articulou-se entre os reformadores um século antes de ser elaborada por Descartes como a categoria a filosófica fundamental da modernidade. (DE BONI, 2000, p.12)

igualdade e liberdade.” No caso de Wyclif suas pregações na Inglaterra motivaram, em 1381, uma rebelião de camponeses em Essex; suas pregações também teriam sido lembradas por Henrique VIII. Na Boêmia, a imolação de Huss na fogueira, desencadeou tanto a aceitação de sua seita como religião oficial (hussitas), como o desejo de emancipação nacional. Esses mesmos ideais foram retomados para impulsionar a Reforma Protestante. 61 Ressalta esse autor que a Reforma não atingiu, “por exemplo, as regiões de confissão ortodoxa, copta, síria, maronita”, dentre outras.

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Não à toa, assevera De Boni (p.13) que a distinção entre vida pública (dimensão do

cidadão) e a vida privada (dimensão do homem) – bandeira de luta do Iluminismo – foi

amplamente debatida no âmbito do protestantismo; afinal, ao distinguir cristianismo e Igreja,

optou-se pela individualidade (ou “subjetividade” moderna) em detrimento de uma forma

religiosa de caráter holístico, privilegiando o indivíduo à hierarquia eclesiástica.

Assim, pois, a crítica à Igreja transformava-se em crítica ao dogma; e esta, em crítica histórica à tradição cristã. Só então, “ao receber na liberdade as exigências da autoridade cristã, abria-se espaço para uma relação livre também diante de outras autoridades, inclusive a política. E vice-versa: toda a crítica à instituição eclesiástica e à sua doutrina tornava-se já, de modo indireto, também crítica política. (...). Onde se questiona a pretensão eclesiástica de ser a representante única do cristianismo, questiona-se ao mesmo tempo o monopólio político do Estado” (Rendtorff, p.29). Os iluministas franceses perceberam com clareza essa conexão, e por não poderem atacar frontalmente o Estado demoliram-no pelos flancos, de forma indireta, voltando sua crítica à instituição eclesiástica. Não foi diferente a posição de Marx: ao formular sua crítica à filosofia do direito de Hegel, começou observando que toda e qualquer crítica às instituições deve ser precedida pela crítica da religião, visto que nela estão de certo modo subsumidas todas as formas de alienação do homem: “A crítica da religião é a premissa de toda a crítica” (Marx, p. 378). (DE BONI, 2000, p.14).

É nesse cenário que se coloca Tomás Müntzer que permaneceu à sombra de Lutero62

durante séculos até ser resgatado por “Engels, Kautsky, Bensing, Bloch e Smirin”, surgindo então

como “principal expoente da ‘ala esquerda’ da Reforma” e como “primeiro revolucionário do

62 Martinho Lutero (1483-1546), agostiniano, doutorou-se em teologia. Defendia que a salvação se daria através de uma relação pessoal com Deus, apelando para o “sacerdócio comum de todos os fiéis”. Para De Boni (2000, p.24), com essa defesa, Lutero abriu “caminho para as formas democráticas de exercício de poder dentro da Igreja” – essa não era a opinião de Müntzer que o acusava de atuar como uma raposa que usava o povo simples para seus interesses pessoais. Por criticar a Igreja católica em suas práticas e, particularmente, a venda de indulgências, foi excomungado em 1520, mas já em 1517, iniciara a defesa do que se convencionou chamar de Reforma Luterana, quando afixou as “95 Teses” na porta da igreja de Wittenberg. Esta quando comparada à ação dos calvinistas ou batistas – que em outras partes da Europa para se instituírem lutavam contra o poder absoluto do Estado, a Reforma Luterana se deu graças aos príncipes rurais. Aliás, considera Abrão (2004, p. 172) que a Alemanha era “um palco propício” para as idéias de Lutero, posto que – apesar de formalmente pertencer ao Sacro Império Romano-Germânico – era “um mosaico de Estados e cidades que buscam afirmar sua soberania”; nesse cenário competiam diferentes interesses que ora se apresentavam como antagônicos e ora como solidários, mas passíveis de serem contemplados na proposta teológica de Lutero. Foi um conservador em questões políticas ao defender que “toda autoridade vem de Deus”, apesar de também pregar resistência passiva em caso de interseção do poder temporal (v. episódio das entregas do Novo Testamento) - idéia inócua considerando-se que o direito de resistir e o tiranicídio já eram abertamente defendidos nessa época. Considerando-se, ainda, sua posição no principal levante dos camponeses (Contra as hordas salteadores e assassinas de camponeses) de nada vale sua declaração posterior: “Na revolta eu assassinei todos os camponeses; o sangue todo deles encontra-se em minha garganta. Mas isso eu atribuo ao Senhor, nosso Deus, Ele mandou que eu falasse assim”.

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povo alemão”. A partir daí vários estudos voltaram-se para Müntzer, havendo, porém, poucos em

língua portuguesa63.

Mais jovem que Lutero e simpático à Reforma inicialmente, é provável que tenha

assumido a paróquia de Zwickau (maio de 1520) por recomendação daquele. Contudo, lá entra

em contato com os “profetas de Zwickau” e com discípulos de João Huss64, passando a

questionar os princípios da Reforma proposta por Lutero e a dele se distanciar; assim, defenderá

que mesmo aqueles que ignoram a “Palavra” podem possuir o “Espírito” (entendido como

experiência interior).

Esse entendimento o coloca em rota de colisão com Lutero, pois torna a igreja –

“entendida como vida humana em comunhão” (DREHER, 2006, p.149) - mais próxima dos “não

letrados”, do povo – entendido como “os pobres e humilhados”; nessa lógica, as obras adquirem

um papel relevante, sendo, porém, mais um ponto de confronto com Lutero que pensa numa

forma individualista de religião. Dreher (2006, p.149) sinaliza que essa é uma concepção

imanente de religião, posto que existe “no coração humano” antes mesmo da Palavra, colocando

a possibilidade de todos possuírem o Espírito – em outras palavras, essa concepção e “essa

possibilidade torna todos os homens iguais, pois perpassa todas as classes e diferenças

nacionais”.

Igreja é, para Müntzer, uma comunhão, sem classes e sem a existência de propriedade privada, dos “eleitos”, através da posse do Espírito. Em outras palavras: Igreja é um ideal social, onde inexistem Estado, classes, propriedade privada. Quem exige esse tipo de Igreja, o único verdadeiro, é o Espírito que age independentemente da Palavra; ele é inerente a todos os homens, é um princípio

63 Segundo De Boni (2000, p.31) só foram traduzidos o “livro de Bloch, um texto de L. Dreher e outro de M.N.Dreher”. 64 De Boni (2000, p.33) evidencia também como influência do pensamento de Müntzer movimentos heréticos medievais, de Joaquim de Fiore e dos místicos alemães, principalmente de Tauler, cuja leitura teria sido recomendada pelo próprio Lutero. Dreher (2006, p. 148) esclarece que os “profetas de Ziwckau” – congregados em torno do tecelão Nicolau Storch – viviam numa “espécie de cristianismo leigo”, com forte influência da “linha taborita dos hussitas” que defendiam a “idéia de concretização terrestre do Reino de Deus”; acredita esse autor que Müntzer, então, “se sentiu chamado a fundar a Nova Igreja Apostólica”. Essa interpretação pode justificar sua ação – a seguir referida – na localidade de Allsted, em 1523.

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uniformizador de toda a vida, exigindo a uniformização de toda a vida social, segundo a vontade de Deus que pode ser conhecida por todos os seres humanos.

Não à toa, Müntzer desenvolve a “concepção de que a história da Igreja é a história da

progressiva deteriorização de uma situação inicial” (DREHER, 2006, p.152). Lutero ainda tenta,

em vão, fazê-lo voltar ao seu grupo. Contudo, segundo De Boni (2000, p.34), já não poderia

haver mais volta para Müntzer:

Quem, pois não se entrega à cruz, também não pode dizer-se eleito, como é o caso de Lutero, que ‘gostaria de viver uma vida (...) de delícias, conservar todo o luxo e riqueza e, ao mesmo tempo, possuir, uma fé provada’ (AE, p.88). A seu modo de ver, pregar um Jesus doce (‘um jesuzinho que não morde’, no dizer de E. Bloch) é o mais perigoso veneno que se pode dar ao rebanho de Cristo, e a não ser na conformidade com a cruz, não se pode saber se a doutrina ou a pessoa de Cristo são verdadeiras ou falsas, dirá ele a Lutero (BW, 43)65.

Em Zwickau entra em atrito com franciscanos e autoridades locais, é deposto e foge para

Praga (1521); reaparece na páscoa de 1523, como pároco em Allstedt, onde permanece até o

verão de 1524, atraindo multidões (já pregava em alemão) e a preocupação dos príncipes

católicos que proíbem seus súditos de viajarem até lá; Müntzer a eles se dirige em

pronunciamento ameaçando “os príncipes católicos com oposição total, afirmando não mais

reconhecê-los como autoridade” (DREHER, 2006, p. 150).

Nessa localidade, Müntzer tenta organizar uma associação, envolvendo todas as

corporações e diferentes segmentos de classe objetivando implantar uma “verdadeira Igreja”; foi

boicotado pelos senhores que viam no projeto uma ameaça à ordem instituída. Em julgamento,

pronuncia a Interpretação do segundo capítulo do Profeta Daniel: proferida no Castelo de

Allstedt ante os ativos e valorosos príncipes e duques da Saxônia (vulgarmente conhecida como a

“Homilia dos Príncipes”); nessa homilia, Müntzer não deixou de fazer críticas vigorosas aos

65 BW: abreviação do texto intitulado Briefwechseln; AE é a abreviação do escrito Denúncia expressa da falsa fé; ambos não integram a coletânea organizada por De Boni. Pelos fragmentos que constam do citado livro, esses escritos são os mais contundentes em relação à posição de Müntzer sobre a revolta.

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príncipes em presença de seus delegados; e na quarta parte da pregação defende, segundo Dreher

(2006, p.154-7) uma “aplicação político-revolucionária” de seus princípios:

Müntzer faz propostas concretas para a ação dos príncipes. Inicialmente, eles devem oferecer a paz aos “inimigos” do Evangelho (...). Se não se opuserem à revelação de Deus, devem ser poupados, “mas se se opõem a ela, que sejam degolados sem clemência (...). Não há outra maneira de a Igreja cristã voltar as suas origens”. Aqui vemos o que Müntzer quer: a volta da humanidade a um estágio social que já houve no passado, se bem que passageiramente, “o comunismo do amor” da cristandade primitiva (...). Nessa pregação de Müntzer se evidencia que ele quer a revolução e não a evolução pregada por Lutero. O fim da velha igreja não deve ser confiado apenas à “palavra”. Finda essa velha Igreja, deve surgir uma nova ordem social. Por isso a lei divina exige que se “matem os governantes ímpios, especialmente os freis e monges que nos infamam o Evangelho como uma heresia”. Para que a verdade vença, os príncipes devem agir assim como Nabucodonosor no final de Daniel 2. Ali Nabucodonosor põe Daniel sobre todos os sábios e dá-lhe o governo da província da Babilônia. Com isso, Müntzer aponta para si próprio: ele liderará a revolução. A pregação encerra com a exclamação: “Se temos a Deus, por que haveríamos de atemorizar-nos ante pessoas relaxadas e incapazes? Sede audazes! O governo será daquele a quem foi dado todo o poder no céu e na terra; que ele, amadíssimos, vos proteja para sempre. Amém”.

Em junho de 1524 inicia a revolta dos camponeses no sul da Alemanha e já no mês

seguinte Lutero, na Carta aos príncipes da Saxônia: sobre o espírito subversivo versava sobre o

perigo que Müntzer representava. É o rompimento definitivo que leva Müntzer a responder

através do Pronunciamento de defesa altamente motivado e resposta contra a carne despida de

espírito, a carne da vida folgada66 em Wittenberg, que sujou tão miseravelmente, de maneira

incorreta, a cristandade digna de compaixão, através do furto da Sagrada Escritura, em 1524.

Nesse escrito – de forte caráter teológico – Müntzer fala sobre a sua alcunha de subversivo:

Observe a causa fundamental da usura, da ladroagem e do banditismo são os nossos senhores e príncipes. Eles tomam todas as criaturas como propriedade: os peixes no mar, as aves no ar, as plantas na terra, tudo precisa ser deles (Is 5,8). A esse respeito fazem proclamar entre os pobres o mandamento de Deus e falam: “Deus ordenou: Não furtarás”. Isso, porém, não se aplica a eles. Obrigam todos os homens, arrancam a pele e rapam o pobre do lavrador, o trabalhador manual e tudo o que vive (Mq 3,2s) mas se alguém furta a mínima coisa, tem de ser enforcado. Vem então o doutor Mentiroso e ainda diz: Amém. Deste modo os

66 Este texto, particularmente, é pródigo em adjetivos dirigidos a Lutero: “Pai Pisa-mansinho”, “Doutor Mentiroso”, “arquimaroto”, “arquidiabo”, dentre outros.

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próprios senhores ensejam que o homem pobre lhes seja hostil. Não querem remover a causa da revolta. Como isso poderá melhorar no decorrer dos tempos? Se falo estas coisas, tenho de ser subversivo. Pois bem! (p.212).

Em início de agosto, Müntzer segue para o sul, fugindo das autoridades de Allsted e indo

ao encontro dos camponeses rebelados. Após contato direto com os camponeses, ruma para a

Suíça e quando retorna à Mühlhausen tem como plano “organizar um levante geral, para forçar os

senhores a introduzirem as reformas exigidas pelos camponeses” (DE BONI, 2000, p.31).

Segundo De Boni (2000, p.37), ainda no início de levante Müntzer adotava uma posição muito

conservadora; porém, ao ver “a violência dos senhores, a perseguição que fazem contra aqueles

que querem viver a fé reformada, tal como julgam ser prescrito no Evangelho”, Müntzer muda de

atitude e admite a luta pela sobrevivência.

O ponto de discórdia fundamental entre Lutero e Müntzer era exatamente o direito do

povo em viver de modo mais intenso e integralmente possível essa fé reformada. Se para Lutero

as autoridades tinham precedência e a idéia dos dois reinos era premente, em Müntzer a reforma

só era pensada “primeira e principalmente” para o povo e no reino de Deus na terra. Como diz De

Boni (p.38-9), Müntzer foi fortalecendo a convicção de que “a reforma religiosa só viria com a

reforma política, e esta, só com a destruição dos “sem-Deus”; talvez fosse mais acertado

acrescentar a dimensão econômica, principalmente quando se verifica o conteúdo dos pleitos dos

camponeses.

2.1.2.1 O massacre dos camponeses na Alemanha

A passagem do regime feudal para o capitalismo mercantilista implicou em uma série de

alterações sócio-econômicas que atingiu de modo especial os camponeses que, a rigor, a partir da

peste negra na Europa, passaram a ser cada vez mais explorados. Essa transição foi

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particularmente vivida pelos camponeses alemães (grande maioria da população) que

organizaram vários levantes (1476, 1491, 1498, 1503 e 1514, conforme VANDERLINDE, 2004,

p.51).

Aqui o interesse especial recai sobre o levante alemão de 1524-5 (conhecido como Guerra

dos Camponeses67), tanto pela sua magnitude, como pelo envolvimento dos reformadores no

processo, com embates que culminaram com a recomendação – por parte de Lutero – de

extermínio dos revoltosos.

Antes mesmo de sua excomunhão Lutero já havia elaborado as linhas gerais de sua

doutrina de justificação – que, a rigor, não era de todo incomum entre os teólogos do século XV

(cf. DENIFLE, apud DE BONI, 2000, p.18) – fundamentando seu apelo para o sacerdócio

comum de todos os fiéis (através da leitura das Escrituras) não reconhecendo a função de

“intérprete” da Bíblia. Mesmo com a excomunhão, Lutero continua defendendo suas idéias – seja

através de seus “escritos políticos”, como através de suas pregações. Suas idéias encontraram eco

tanto no meio clerical como no seio da nobreza – de quem sempre foi aliado – e também junto

aos camponeses.

Tanto é que em 1525 os camponeses da Suábia – principais protagonistas da Guerra dos

Camponeses – elaboraram dois documentos: o primeiro é conhecido como Doze Artigos e outro

texto – Ação, ordem e instrução estabelecidas por todas as hordas e grupamentos de camponeses

que se comprometeram mutuamente e que segundo De Boni (p.125n4) é o estatuto da união de

Memmingen - no qual Lutero era solicitado à função de mediador do conflito.

67 Hugo Echegaray (apud: VANDERLINDE, 2004, p.57) afirma que o movimento havia começado na Boêmia por volta de 1520, explodindo efetivamente em 1525, quando se estendeu pela Alemanha.

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O primeiro documento – cujo título original é Fundamentais e Verdadeiros Artigos

Principais de todo o Campesinato e dos Vassalos sob as Autoridades Religiosas e Seculares,

pelas quais se Crêem Sobrecarregados68 – pode ser assim resumido:

1º Direito de escolha – e de destituição, em caso de conduta “repreensível” – do pastor da comuna. Justificativa: Como objetivam “conhecer a verdadeira fé” somente um pastor que pregue o Evangelho “sem qualquer acréscimo humano” seria de “primeira necessidade”;

2º Abolição do pequeno dízimo69 e administração coletiva do dízimo sobre grãos, por representantes da comunidade; esse dízimo – a ser pago de maneira “conveniente” – teria a seguinte distribuição: a primeira parte destinar-se-ia ao pastor (para sua manutenção e de sua família) e a segunda ao pagamento dos credores da comunidade. Do que sobrar, parte seria destinada aos “pobres e necessitados da cidade” conforme “sua situação”. A outra parte70 seria “guardada em previsão” para cobrir, em caso de necessidade, “impostos vexatórios” que são imputados aos pobres em “momentos de provação”. Justificativa: “o dízimo autorizado pela escritura” visa a “manutenção dos pastores e dos necessitados”; o pequeno dízimo é injusto porque inventados pelos homens.

3º Término do regime de servidão pautado no reconhecimento da sua condição de homens nascidos livres e iguais. Justificativa: todos foram “redimidos por Cristo, nascido livre, segundo a Escritura”. Ressalva: Esse pleito não significava a rejeição “de toda a autoridade, qualquer que seja ela. Isto não no-la ensina Deus”.

4º Direito de caça (pelo e pena) e pesca bem como restituição à comuna dos “reservatórios” cujos proprietários não possam comprovar aquisição legal; e caso o possam, uso comum de acordo com as “considerações cristãs”. Justificativa: A interdição seria “injusta, pouco fraternal, egoísta e oposta à palavra de Deus”.

5º Direito de livre uso da madeira sem pagar aos que dela se apossaram e também restituição à comuna das florestas que não foram adquiridas legalmente; se assim o foram, permissão de uso nos termos cristãos.

6º Apelo ao discernimento no uso moderado da servidão. 7º Limite à sobrecarga de trabalho; término do serviço gratuito por parte do senhor feudal; em caso de aluguel de algum instrumento de trabalho, esse passará a ser propriedade do camponês.

8º Impostos compatíveis com os bens para evitar a ruína dos camponeses. Justificativa: Não desejam trabalho “em vão porque todo trabalhador é digno de seu salário”.

9º Punições conforme as leis escritas (eliminação da arbitrariedade dos castigos). 10º Restituição dos prados e campos da comuna que foram apropriados sem aquisição legal. 11. Supressão do costume chamado de “caso de óbito” (através do qual os senhores feudais retinham os bens de viúvas e órfãos).

12. Desconsideração – presente e futura – de qualquer artigo, caso não seja compatível com o escrito na Bíblia. Por outro lado, qualquer outra reivindicação poderá ser incluída desde que também conste das escrituras como conduta cristã.

68 Segundo Vanderlinde (2004, p.31) é considerado um documento confiável e autêntico, tem sua sistematização atribuída à Sebastião Lotzer (oficial de peleiro e pregador leigo) e Chistoph Schapeller que viviam em Memmingen. Acredita-se que se inspiraram em documento similar formulado na região do alto Reno – com possível autoria de Baltasar Hubmeier (reformador radical, pregador e líder do movimento anabatista na localidade de Waldstrut, onde promoveu uma coalizão entre setores urbanos e camponeses rebelados). Segundo De Boni (2000, p.124n1), esse documento é referenciado à “União Cristã” de camponeses do grupamento de Baltring, Bodensee e de Allgaü. 69 Pago sobre as hortaliças; chamam “dízimo” o pagamento que recai somente sobre os cereais. 70 O texto ora se refere a duas partes do que sobra e ora se remete a “se restar”.

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Em que pese o modo de sua formulação e o recurso sistemático às escrituras, a pauta de

reivindicações era eminentemente econômica – até mesmo no primeiro artigo, posto que dele é

possível depreender que os “intérpretes” da Bíblia a “distorciam” segundo outros interesses que

não os dos camponeses. Observa-se, ainda, a pretensão inicial de não recorrer à luta armada e sim

à conciliação.

Contudo, os Doze Artigos geraram, da parte de Lutero, o artigo Exortação à Paz que tem

uma composição bastante peculiar; nele, Lutero diz que se posiciona - pois foi solicitado no já

referenciado estatuto da “União Cristã” – e o faz para “dar a público” a sua “instrução”. E

adenda: “Eu o faço num espírito amigável e cristão, como dever do amor fraternal, para que, se

esse caso resultar em infortúnio ou desastre, isso não seja atribuído e imputado a mim perante

Deus e o mundo por ter silenciado”71. A esse texto – primeira manifestação pública de Lutero

sobre o levante - é imputado o reconhecimento da causa camponesa (DE BONI, 2000 e

VANDERLINDE, 2006).

Contudo, ainda em sua introdução, Lutero já duvida que “tamanha multidão” envolvida

no levante seja composta “somente de bons cristãos e gente de boas intenções”. Obviamente está

questionando, principalmente, a participação de Müntzer que – após ter sido expulso de Zwickau,

em 1521, por intervenção do próprio Lutero que não mais o conseguia cooptar – havia retornado

à região e participava ativamente do movimento. Aliás, Lutero, na Carta aos príncipes da

Saxônia: sobre o espírito subversivo (escrita em julho de 1524), já havia se posicionado

publicamente contra Müntzer, distorcendo seus escritos. Todavia, Müntzer não era alvo

exclusivo: Lutero dirigia-se também a todos os que dele divergiam.

71 Exortação à Paz: resposta aos doze artigos do campesinato da Suábia. In: DE BONI, 2000, p.124.

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Ainda nessa mesma parte, Lutero adverte que se a rebelião “se espalhasse e chegasse a

dominar, ambos os reinos seriam destruídos, de modo que não prevaleceria nem o regime secular

nem a palavra divina”. É de se perguntar, portanto, o que queria Lutero... O seu pronunciamento

desagradou os camponeses - e não era para menos: seu texto destina 10 parágrafos aos opressores

e 26 para o movimento, bem como já o critica na própria introdução. Nos demais argumenta em

favor da “verdade” de sua própria posição, como por exemplo:

Como qualquer um, terão que concordar que ensinei sem o menor alarde e que lutei bravamente contra a idéia da rebelião e que instei com muito empenho os súditos para a obediência e respeito até para com as autoridades tirânicas e loucas. Portanto, essa rebelião não tem sua origem em mim. É que os profetas assassinos, que são tão hostis a mim quanto a vocês, se misturaram ao povão. Estão agindo desse modo há mais de três anos e praticamente ninguém se opôs a eles, a não ser eu. (...). Que posso fazer eu ou meu Evangelho, que até aqui tão-somente sofri perseguição, assassínio e fúria da parte de vocês, enquanto eu rezei por vocês e ajudei a proteger e resguardar a autoridade de vocês entre a gente simples! (...). Por isso, senhores, quer sejam amigos ou inimigos, rogo submissamente que não desprezem minha fidelidade, ainda que seja apenas um pobre homem. Também não menosprezem essa rebelião, eu lho peço.(p.128)

Este é, sem dúvida, um excerto que revela a posição de Lutero, seja em relação ao seu

papel no levante, a sua ligação com o poder, bem como a defesa intransigente de sua própria

persona. Esse é o tom de boa parte do documento que – longe de defender a posição dos

rebelados, mais defende a própria posição de Lutero. Vejam-se, os trechos que falam sobre a

situação de exploração dos rebelados ainda nessa mesma seção dirigida às autoridades:

Na administração pública vocês outra coisa não fazem do que maltratar e explorar, para alimentar seu luxo e sua arrogância, até que o pobre homem do povo não queira e nem possa mais agüentar. (p.126)

Eles apresentaram doze artigos. Alguns deles são tão justos e procedentes que desmascaram vocês perante Deus e o mundo e tornam verdadeiras as palavras de Deus (...). (p. 129)

A autoridade não foi instituída para arrancar vantagens de seus súditos e explorá-los, mas para procurar seu bem-estar e o que é melhor para eles. Afinal, não se pode explorar e esfolar desse modo indefinidamente. (p.130)

De certo é muito pouco, principalmente porque, nesta parte, só reputa como justos o

primeiro artigo, o décimo primeiro e os impostos exorbitantes. E recomenda: “antes seria preciso

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diminuir o luxo e parar com o desperdício, para que sobrasse também alguma coisa para o

pobre”.

Na seção dirigida aos camponeses a lógica se repete: admite que as autoridades “impedem

a pregação do Evangelho e exploram o povo de forma insuportável”; reputa algumas

reivindicações como justas, previne reiteradamente contra os falsos pregadores, manda observar a

autoridade e ameaça os rebelados pelo uso indevido do nome de Deus, colocando-se como

“exemplo vivo” para o comportamento do bom cristão – cujo “direito” seria: “Sofrer e sofrer!

Cruz e cruz!” (p.137).

Não questiono os méritos da causa de vocês. Como, porém, querem impô-la e não aceitam sofrer alguma injustiça, façam ou deixem de fazer o que Deus lhes permite. Mas o nome de cristão deixem de fora e não façam dele pretexto para encobrir sua iniciativa impaciente, hostil e acristã; não quero admitir e conceder-lhes esse nome; farei tudo para arrancá-lo de vocês através de pregação e publicações, enquanto correr uma gota de sangue em meu corpo. Pois não terão sucesso. O máximo que poderão conseguir é a ruína de corpo e alma (p.139).

Quanto ao uso indevido do nome de cristão, assevera Lutero que as reivindicações não

correspondem ao direito cristão, pois: “admitem a formação de quadrilhas e de rebelião”,

submetem “as autoridades à vontade e impaciência” dos rebelados, “tudo visa unicamente à

liberdade pessoal e aos bens, todos falam de coisas terrenas e temporais: querem ter poder e bens

sem sofrer qualquer injustiça”.

Pois, pelo fato de não aceitar que se lhe tome e proíba o Evangelho, ele [o cristão] tolera que se lhe tomem e proíbam cidades, vilas, bens e tudo quanto é e possui. Como fica aqui o movimento de vocês, que ocupam cidades e povoados e os mantêm sob domínio, quando não lhes pertencem, e não querem tolerar que se os negue a vocês ou recupere; vocês é que os tomam e negam a seus senhores por natureza! Que cristãos são esses que, em nome do Evangelho, se tornam assaltantes, ladrões e safados, e depois dizem que são evangélicos? (p.145)

A partir daí analisa os três primeiros artigos já que os demais deixa a cargo dos “juristas”

(p.147), pois “o Evangelho não se envolve com assuntos seculares, mas fala da vida no mundo

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como sujeita a sofrimentos, injustiça, cruz, paciência e desprendimento de bens e vida temporais”

(p.143).

Mesmo em relação aos três primeiros artigos, Lutero apresenta várias contra-

argumentações; em relação ao primeiro, só reconhece o pleito referente ao direito de escolha e

destituição do pastor; alega que se a propriedade da paróquia pertence à autoridade, o

atendimento desse pleito será um “assalto e roubo”: “se ela quiser ter um pároco, que primeiro o

peçam humildemente à autoridade constituída. Se não os atender escolham seu pároco e

sustentem-no com recursos próprios” – aqui, explica sua recusa a endossar tanto a extinção do

pequeno dízimo, como a administração do dízimo (que é tributo estatal). Ademais, para quem

escreveu (Sobre o comércio e a usura) que os salteadores castigavam e faziam justiça quando

atacavam os comerciantes ávidos de usura, essa interpretação é assaz interessante e só reforça a

denúncia formulada por Müntzer sobre o uso que fez do povo. Sobre o segundo artigo afirma

peremptoriamente:

Esse artigo é ladroeira e assalto público. Aí vocês querem apoderar-se do dízimo que não pertence a vocês, mas à autoridade, e fazer com ele o que bem entendem. Assim não dá, meus amigos; isso significa destituir completamente as autoridades. (...). Se quiserem dar e fazer caridade, façam-na com seus próprios recursos (...). Vocês falam nesse artigo como se já fossem senhores do território, como se já tivessem requisitado todos os bens das autoridades, não quisessem mais ser súditos de ninguém e não pagar tributos. Por aí se entende o que pretendem. (...). De nada lhes adiantam as passagens bíblicas que seu pregador mentiroso e falso profeta rabiscou à margem. Pelo contrário, elas são contra vocês. (p.146)

O terceiro artigo não tem avaliação melhor; a interpretação dada pelos rebelados soa para

Lutero como “transformar a liberdade cristã em coisa meramente carnal” (p.147), posto que

patriarcas e profetas também tiveram “escravos”. Na opinião de Lutero

esse artigo conflita diretamente com o Evangelho e é ladro, porque sugere que cada qual, fazendo-se dono de seu corpo, pode tirá-lo do domínio de seu senhor. Um escravo pode muito bem ser cristão e gozar da liberdade cristã, tal como um prisioneiro ou enfermo é cristão, mas não é livre. Esse artigo quer deixar todas as pessoas iguais e fazer do reino espiritual de Cristo um reino secular e exterior,

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coisa que é impossível. Pois o reino secular não pode subsistir onde não houver desigualdade das pessoas, de sorte que alguns são livres, outros estão presos, uns são senhores, outros subalternos, etc. (...). Sobre isso meu senhor e amigo Urbano Régio certamente escreveu o suficiente. Para maiores informações, leiam seu livro72.

Termina esse escrito reafirmando que nessa contenda nenhum dos lados é cristão e nem

está em jogo uma causa cristã: “ambos, senhores e camponeses, estão tratando de justiça e

injustiça profana e secular e de bens temporais”; e que ambos estão se colocando sob a ira de

Deus. É assim que Lutero, nesse escrito, lava suas mãos, aconselhando as duas partes a aceitarem

algumas injustiças e optarem pela conciliação.

Porém, ainda tenta remediar a situação em viagem à Turíngia, não sendo, contudo,

recebido como achava que o deveria. Vendo a situação, então fora de controle, e assustado com o

motim, escreve Contra as hordas salteadoras e assassinas de camponeses, “no qual fiel ao seu

ensinamento, concita os príncipes a exterminar impiedosamente os rebeldes, visto que estes eram

réus de três crimes: revolta contra a autoridade legítima, assalto e pilhagem, e uso indevido do

nome de Deus”. Como mediador, seu papel não poderia ter sido mais positivo.

Cerca de 100 mil camponeses foram mortos, sendo 8 mil somente na decisiva batalha de

Frankenhausen, em 15 de maio, liderados por Tomás Müntzer que, do alto de uma colina, ainda

exortou os camponeses à vitória ao vislumbrar no céu um arco-íris, símbolo da bandeira dos

rebelados. Preso, foi torturado e seu último pedido antes da decapitação (aos trinta e cinco anos

de idade) foi por clemência ao povo alemão.

72 Cf. De Boni (2000, p.147n51), Lutero se refere à obra Sobre vassalagem ou servidão, como senhores e vassalos devem portar-se cristamente: relato a partir do direito divino; prédica realizada no dia 19.02.1525, onde Régio discutiu a questão: “se um cristão também poderia possuir servos, sem, contudo, questionar a servidão em si. Ele também redigiu, a pedido do conselho da cidade de Memmingen, um parecer relativo às exigências dos camponeses, no qual postulou o reconhecimento incondicional da autoridade e reprovou a rebelião. Mesmo assim, suas manifestações primaram pela sobriedade, objetividade e sensibilidade quanto à questão social o que fez com que se colocasse ao lado dos camponeses e advertisse a autoridade, lembrando seus deveres”.

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2.2 Embate com o pensamento liberal inglês do XVII: os niveladores e os cavadores

No contexto da Revolução Puritana73 forja-se a excepcionalidade do pensamento dos

niveladores (levellers) e a radicalidade dos cavadores (diggers)74 procedentes da “base” do

oficialato do exercito parlamentar inglês. Para Fiori (2006, p.73) é no debate desses “democratas

populares” que a esquerda européia teria buscado seu ponto de partida:

De um lado estavam as propostas políticas e jurídicas dos “niveladores”, de John Lilburne e Richard Overton, que estão na origem do “liberalismo revolucionário” e da “democracia radical” dos séculos XVIII e XIX e, do outro, o projeto econômico dos “cavadores”, de Gerrard Winstanley, que está na origem de todos os “socialismos utópicos” da história moderna.

Para Macpherson (1979) a marca fundamental do individualismo dos niveladores é a sua

qualidade proprietária que, no entanto, deve ser entendida nos marcos da sua concepção de

73 Sinteticamente falando, é assim denominada a série de eventos que se desenrolam na Inglaterra (entre 1640 e 1649) que tem como referência inicial a instauração do “Longo Parlamento” (1640-2) que limitou o poder do rei e da Igreja. A reação real levou a uma guerra civil que resultou na derrota da monarquia e execução do rei, dando início a Crommonwealth (1649-1658). Nesse período foram realizadas profundas reformas na sociedade inglesa (fim do absolutismo, restrição dos poderes feudais, da Igreja e gremiais, abrindo caminho para o capitalismo). A Restauração (1658-1688) da monarquia já não consegue reverter essas modificações que levaram à entrada do capitalismo no campo e a Revolução Gloriosa (1688-89); esses eventos compõem o que comumente se denomina de Revolução Inglesa. Esse período leva a burguesia ao poder, produz a Revolução Industrial ao final do século XVIII e transforma a Grã-Bretanha no maior império do século XIX. Seus antecedentes remontam à monarquia absolutista dos Tudor (Henrique VIII e Elizabeth I) que centralizam poder a despeito da Carta Magna de 1215 e – dentre outras medidas polêmicas – não conseguem enfrentar as decorrências dos chamados enclousures (cercamentos de terras comunais e públicas, com o objetivo de expandir a criação de caprinos para fins de produção de lã) que provocou o deslocamento a esmo de camponeses desalojados dessas terras. O período Tudor – a despeito da prosperidade econômica inglesa – foi marcado pela tensão que se estabeleceu com o Parlamento; tensão que se acentuou a partir de 1603 com o período Stuart. O atropelamento constante do Parlamento levou a Guerra Civil: de um lado o rei Carlos I com cerca de vinte mil homens, apoiado por aristocratas do oeste e norte e por burgueses preocupados com a desordem popular; de outro, Oliver Cromwell, parlamentar Independente, que apoiado pela burguesia londrina e amplos setores do Parlamento organiza um exército de novo tipo: além de estimular a participação dos soldados nos debates, a ascensão na hierarquia se dava por mérito (e não mais pela origem de classe). O recrutamento se deu entre pequenos produtores rurais e comerciantes, bem como desempregados – “homens sem senhores” – o que fez ruir a autoridade da nobreza, sempre na frente das batalhas. O exercito do rei é derrotado e ele se refugia na Escócia onde é preso e restituído à Inglaterra em troca de quatro mil libras esterlinas. Para o Parlamento a tarefa estava concluída, posto que conseguiu submeter o monarca, mas para a “base” do oficialato inglês não, entrando aí em cena os niveladores e os cavadores. Situa-se esse movimento no período de 1645 e 1653 quando foram massacrados por Cromwell (SILVA, 2006). Para melhor contextualização vale lembrar que O Leviatã é de 1651 e em 1632 nasce Locke. 74 Os primeiros eram assim denominados pela pretensão de nivelar as condições sociais; já os segundos teriam se instalado, em 1648, num terreno ainda não aproveitado e cavaram a terra para semeá-la, “numa espécie de reforma agrária feita espontaneamente em direta oposição aos poderes da sociedade e do Estado (HILL, 1987 apud SILVA, 2006, p.53).

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liberdade para que se possa distingui-la da qualidade proprietária do vitorioso individualismo

possessivo.

Os niveladores entendiam a liberdade como “essência humana” – já que “todos os homens

nascem iguais, para a igualdade da propriedade [inclusive a de si próprio] e da liberdade” (p.151)

- e como “estado ativo de propriedade da própria pessoa e das próprias capacidades” (p.153); o

postulado era a “múltipla propriedade natural da pessoa como essência da liberdade e da

humanidade” (p.164).

Afirmavam “vigorosamente o direito [natural] individual à propriedade” (p.147),

entendendo que “cada homem tinha o direito natural à mera subsistência, mas que isso não

destruiria a propriedade porque esta já era parte da tessitura da sociedade, como a caridade, ou a

assistência estatal aos pobres” (p.149).

Para eles não ser livre significava depender da vontade alheia e para não depender da

vontade alheia era necessário deter a propriedade sobre um tipo de mercadoria particular: o

próprio trabalho – cuja propriedade fazia o homem livre:

O que digo é que os niveladores haviam chegado à sua concepção de liberdade generalizando a partir de dados de experiência própria, ou seja, generalizando a partir do fenômeno composto da liberdade como a haviam conhecido – liberdade do produtor independente que estava livre da vontade alheia na medida em que tinha energia e capital de trabalho. (...). O conceito nivelador de liberdade (...) [faz] da liberdade função de uma espécie de propriedade (a propriedade do próprio trabalho) cuja definição era necessariamente ambígua. A propriedade do próprio trabalho era, ao mesmo tempo, um atributo humano, uma parte da personalidade humana, e uma mercadoria inalienável. Mas, a única condição com a qual podia ser preservada como parte da própria personalidade, ao invés de ser alienada como mercadoria, era a posse, concomitantemente, de alguma propriedade material. Ou era propriedade, no pleno sentido de mercadoria alienável, ou uma propriedade que exigia a propriedade material para efetivá-la.

Vale explicitar a concepção de trabalho dos niveladores a partir da análise de Macpherson

(p.159):

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No pensamento nivelador, o trabalho era um atributo humano, diferente em espécie, da terra ou do capital. Mas sua utilização do termo propriedade abrangendo tanto o direito ao próprio trabalho quanto o direito a bens materiais, não era simplesmente um modo de dizer; as duas formas de propriedade tinham algo fundamental em comum. O que tinham em comum pode ser encarado de duas maneiras. Em primeiro lugar, embora do ponto de vista dos niveladores o trabalho fosse um atributo humano, era também uma mercadoria. Podia ser alienado pelo seu proprietário natural, e então seu preço, como o de qualquer outra mercadoria, era determinado pelo mercado. Os niveladores não levantavam objeção contra isso; parecia-lhes natural que os salários fossem determinados por este modo; quando reclamavam, quando fizeram algumas vezes, contra salários opressivamente baixos, atribuíam-nos às operações de comerciantes monopolistas ou ao fisco e viam remédio em um comércio mais livre. No caso do trabalho, como no caso da terra, ou de qualquer outra mercadoria, o que podia ser vendido era precisamente aquele direito exclusivo ao seu uso, benefício e produção, que consistia na propriedade de si próprio. Assim, na medida em que os niveladores conceituavam o trabalho como mercadoria, conceituavam-no como propriedade da mesma espécie que a propriedade de coisas materiais. Em segundo lugar, devemos notar que, realmente, e por experiência dos próprios niveladores, um pré-requisito para a conservação do controle do próprio trabalho era a posse de pelo menos algum capital de trabalho. Para alguém se estabelecer como produtor independente, quer em terras, quer no comércio, e continuar independente, ou seja, conservar a capacidade de tomar decisões quanto ao uso do trabalho próprio, era necessário um certo capital.”

Com base nessa concepção de liberdade reivindicaram direitos civis, religiosos,

econômicos e políticos. No que diz respeito à liberdade civil e religiosa, a concepção de liberdade

que defendiam exigia tanto a liberdade de expressão (escrita e falada) e de culto, como “garantias

de liberdade contra prisão, processo e encarceramento arbitrários e o direito ao julgamento

previsto pelas leis”. Esses direitos eram exigidos para todos, independentemente do “grau de

dependência em razão de sexo ou ocupação” (p.153).

Os direitos econômicos pleiteados – também derivados da concepção do indivíduo como

proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades – se constituíam na garantia de

permitir o governo de “suas próprias energias e vida produtivas”: direito à propriedade individual

de bens e fortunas (posse e aquisição), liberdade para “produzir e comerciar, sem permissão,

monopólio, regulamentação ou taxação arbitrárias” (p.154). Esclarece esse autor:

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Esses direitos econômicos, como os civis e os religiosos, eram exigidos para todos. Na prática, naturalmente, os direitos de produzir, comerciar etc, só podiam ser usufruídos pelos que detinham o controle de seu próprio trabalho. Os assalariados, enquanto assalariados, eram incapazes de usá-lo. Mas, os direitos precisavam ser instaurados de forma completamente generalizada, de modo a assegurá-los aos que deles podiam usufruir. Uma vez aceitos o monopólio, a regulamentação ou a tributação arbitrárias de qualquer ramo de indústria ou comércio, o mal estava feito: a área de empreendimentos ficava restrita aos empresários em geral. Os direitos econômicos, assim como os direitos civis, precisavam ser reivindicados para todos, de modo a ficarem assegurados a cada um. (p.155)

No campo dos direitos políticos os niveladores foram os primeiros a defender um sufrágio

ampliado75 masculino, excluindo os mendicantes e os assalariados, pois, por não deterem a

propriedade de suas próprias capacidades de trabalho,76 não poderiam ser considerados

plenamente livres, na acepção niveladora.

Vale, portanto marcar que os niveladores eram contrários à concentração de riqueza e –

portanto o direito à propriedade ilimitada defendida por Locke77 – à desigualdade dela

decorrente, bem como aos monopólios e privilégios que impediam o acesso dos humildes aos

seus direitos. Defendiam ainda a idéia da sociedade como bem supremo e o supremo valor da

convivência; desejavam uma comunidade de empreendedores – no sentido mais lato:

empreendedores, não somente “econômicos, mas espirituais e intelectuais” (p.167).

75 Entre os quatro tipos de sufrágios que discutiam em 1648 (no primeiro Acordo do Povo) este – denominado por Macpherson de “sufrágio dos não-assalariados” – teria maior amplidão possível, pois compreenderia cerca de 417.000 pessoas (p.124). 76 Os mendicantes por sua dependência da caridade pública e os assalariados por submeterem-se a um contrato de locação de serviços alienando a outrem a utilização e administração de suas próprias capacidades, isto é, de sua própria força de trabalho. Como sinaliza Macpherson (p.145): “A linha traçada pelos niveladores não era entre pobreza e riqueza, mas entre dependência e independência, e as duas linhas não coincidiam”. Vale lembrar que entre os “mendicantes”, os niveladores acreditavam que existiam os que temporariamente estavam fora da força de trabalho útil e os que eram “inveterados”. Independentemente dessa subdivisão, mendicantes em geral e assalariados alienaram parte significativa de sua liberdade inata, da propriedade de si mesmos e de suas capacidades e, assim, não precisavam do sufrágio para defendê-los posto que a função primordial do Estado, nessa concepção, seria garantir e criar regras que visavam ao desenvolvimento máximo dessas capacidades. “Para os niveladores, a propriedade do próprio trabalho fazia o homem livre” (p.159). 77 Macpherson chama a atenção para a distorção que Locke procede com o pensamento dos niveladores – distorção essa que ficou quase dois séculos sem correção.

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Dentre os levellers, havia os true levellers (também conhecidos como cavadores ou

diggers) que representavam uma minoria progressista dos niveladores. Seu expoente foi Gerrard

Winstanley. Defendiam que, para existir igualdade política, teria que haver igualdade econômica,

igualdade no acesso à propriedade.

Eram contrários à propriedade privada, pois para eles, a terra havia sido outorgada em

propriedade comum a todos os homens pela natureza, da qual toda a humanidade tinha direito a

tirar o necessário para viver; neste sentido, a fonte de todos os males residia na propriedade

privada, pois dela derivam todas as formas de abuso e corrupção sociais. Seu fim era a única

garantia contra a exploração do homem pelo homem. Macpherson (1979, p.167) comenta que o

único direito natural por eles reconhecido era o de “trabalhar junto e viver junto, gorvernando-se

de acordo com uma lei natural de conservação social”.

Os true levellers representaram o segmento que foi além dos marcos do liberalismo e, por

isso mesmo, eram marginais e minoritários. Obviamente eram percebidos como perigosos, pois

sustentavam uma idéia de sociedade sem classes e buscavam também a vida em comunidade e a

liberação sexual (SILVA, 2006). Portanto, não é difícil entender o extermínio desses dois grupos

dissidentes no período em que Cromwell considera-os dispensáveis porque consolidado no poder.

2.3 O Século das Luzes e os homens desse tempo

Tão deplorável é o estado da razão que se tornam necessários mil esforços, mil estratagemas para rasgar a venda que a cega e fazê-la voltar os olhos para os verdadeiros interesses da humanidade (...).

Morelly, 1755

Esse excerto de Morelly – um dos pensadores referenciados nesta seção – bem explicita o

que há de comum no Iluminismo europeu, independentemente do país no qual se desenvolve e se

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particulariza: iluminar, ilustrar, dar o devido lugar à razão para combater as trevas, o

obscurantismo que marcou períodos anteriores.

Para os iluministas somente através da razão o homem poderia alcançar o conhecimento, a

convivência harmoniosa em sociedade, a liberdade individual e a felicidade. A razão era,

portanto, o único caminho que possibilitaria ao homem a compreensão de si e o domínio da

natureza. Os defensores desses ideais acreditavam que o pensamento racional deveria substituir

as crenças religiosas e o misticismo, ainda remanescentes do medievo. Tanto o antropocentrismo

(que considera o homem o centro do universo) como o individualismo renascentista, contribuíram

para o desenvolvimento da investigação científica, para a gradativa separação entre o campo da fé

e o da razão, mas também para o “individualismo possessivo” – base do pensamento político

liberal que já iniciara sua sistematização ao longo do século XVII78.

Contudo, esse período foi particularmente profícuo no que diz respeito à formulação de

um pensamento capaz de se fazer “voltar os olhos para os verdadeiros interesses da humanidade”;

aqui serão resenhados – nos termos do interesse deste trabalho - vários pensadores que preparam

os caminhos para se fazer uma crítica efetiva e contundente da ordem burguesa e os caminhos

para sua derradeira superação. Alguns avançaram, outros retrocederam. Mas sem eles, a

expressão “sobre ombros de gigantes” não seria possível.

78 A esse respeito ver a seção 3, em especial o item 3.2.

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2.3.1 O padre ateu

A rigor, Jean Meslier (1664-1729) pode ser qualificado de modo mais completo através

do seguinte predicado: padre, materialista79 e ateu80 ou ainda “pensador realista, materialista,

ateu, anti-cristão, tiranicida e comunista” (DEPRUN apud PIVA, 2006, p.196). Em língua

portuguesa81 são raras as referências ao inspirador do slogan do Comitê de Ocupação da

79 Piva (2006, p.209-17) - autor que serve como referência para esta seção – defende que o “materialismo das Luzes” caracteriza-se por um “duplo reducionismo”: ao criticar o criacionismo reduz o sobrenatural ao natural; “ao sustentar que a sensibilidade, o sentimento e o pensamento são oriundos unicamente da matéria” reduziu o espiritual ao material. Por não ser “um sistema fechado e acabado”, “adquiriu diferentes matizes e se expressou de forma heterogênea” (p.210). Independentemente da forma “o materialismo foi um escândalo no século XVIII” em função de sua proposta de “desmistificação da realidade”; é, ainda, extremamente libertário “por livrar o homem da fantasmagoria do espírito, mesmo à custa da perda da ilusão da imortalidade e, sobretudo, por despertá-lo de que há apenas um único mundo, ou seja, um único lugar para a humanidade ser feliz, o que o forçaria a tomar uma atitude política em face desse limite e dessa efemeridade precários” (p.261). A expressão surge na Europa nos séculos XVII e XVIII, porém tardiamente na França. Transforma-se em conceito a partir de 1740, mas sempre “com o estatuto de uma posição extremada e perigosa” (p.211). Sua difusão gerou uma “reação exasperada” de todos os que queriam manter a ordem social. Suscita animosidade até hoje, mas no XIX foi “caricaturado e banido dos volumes de história e dos programas universitários” (p. 212) – o que explicaria a ausência de disciplinas, cursos, dissertações e teses sobre Diderot, Holbach, La Mettrie, Meslier ou Sylvain Marechal – em síntese, um “complô idealista e espiritualista”; isso esclareceria porque a filosofia no Brasil – “que nasceu como um ‘departamento francês de ultramar’” – continua a relegar esses pensadores que no XIX foram rotulados de “filósofos menores”. Alega que contribuiu para o descrédito desses pensadores a própria classificação que Marx e Engels apresentam nA Sagrada Família (p.213) que teria sido elaborada com base no Manual de Filosofia Moderna, de Charles Renouvier de 1842 que aliás, não referenciava Meslier (p.214). A reprodução subseqüente da análise procedida por Marx e Engels fez com que o materialismo francês fosse “desvirtuado, dessa vez pelos próprios materialistas” (p.215). Defende que “se Marx e Engels tivessem se deparado com Meslier” as “suas conclusões acerca da natureza do materialismo francês do XVIII” – considerado nA Ideologia Alemã como “um pensamento meramente metafísico e ideologicamente burguês e anti-comunista” - seria diferente (p.216). 80 Em longa introdução Piva (2006) busca caracterizar as diferentes concepções do ateísmo - em especial a forma particular que assume tanto no medievo, como no início da modernidade, isto é, como sinônimo de imoralidade, pois “como não havia Deus, tudo era permitido” (p.49) – caracterização essa bem diferente da de Sylvain Marechal, para quem “somente o virtuoso teria condições de ser ateu” (p.51). Cita (p.41) Comte-Sponville (para quem “crer em Deus é acreditar em Papai Noel, mas na enésima potência, ou antes, na potência infinita”) que diferencia o “não crer em Deus” (“ateísmo negativo” ou “ausência de uma crença” já que essa formulação admite a possibilidade de sua existência, aproximando-se do agnosticismo e de certo “ceticismo religioso”) do “crer que Deus não existe” (“ateísmo positivo, ou mesmo militante”, ou seja, uma “crença numa ausência” na qual a existência de Deus é “absolutamente negada”). Este último seria o ateísmo stricto sensu que: (1) é exclusivo da cultura ocidental (p.44); (2) só tem condições de se constituir como “pensamento organizado” na ilustração (p.40); (3) é necessariamente materialista. E, acrescenta Piva (p.261) extremamente libertário porque “coloca o homem diante da liberdade em sua plenitude, ou seja, sem a mediação ou a regulação de um Deus”. Neste sentido Piva defende, com base numa galeria de autores, Meslier como o “precursor não só do ateísmo stricto sensu”, como “também do próprio materialismo francês” (p.57) ou “um dos primeiros ateus propriamente ditos da literatura filosófica, isto é, um dos antepassados primordiais de uma árvore genealógica de revoltados metafísicos” (p.58). 81 No Brasil as referências são produzidas por Paulo Jonas de Lima Piva e Maria das Graças de Souza (em trabalho sobre Voltaire e em artigo especificamente dedicado à Meslier); em Portugal há uma publicação da editora Antígona

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Sorbonne, em maio de 1968: “A humanidade será feliz somente no dia em que o último burocrata

for pendurado com as tripas do último capitalista”.

Meslier não pôde ter esse entendimento, pois seu tempo não o permitia, mas conclamava

“a união dos oprimidos em torno do estrangulamento do último rei com as tripas do último

padre” (PIVA, 2005, p.99). Aliás, essa formulação – que Meslier atribui a um camponês cansado

de testemunhar e de ser vítima de tanta exploração (PIVA, 2006. p.79) – foi reapropriada também

por Voltaire, Diderot, Chamfort, Pouchline, dentre outros.

Nascido em Mazerny, na região de Champagne, como primogênito de uma família

tradicional (muito provavelmente “no âmbito da pequena e média burguesia agrária”), cresceu

“sob as iniqüidades e as atrocidades cometidas pelo despotismo de Luis XIV” (1643-1715)82 –

período “marcado por inúmeras revoltas camponesas contra a insuportável miséria que imperava”

(p.74).

Aprendeu a ler e a escrever aos oito anos de idade e, na condição de jovem estudioso, foi

pressionado pela família a assumir, com vinte anos, a carreira eclesiástica – “meio de

sobrevivência mais seguro na época” – já abraçada por vários outros membros da família.

Comenta Piva (2006, p.75) que Meslier sucumbiu “à autoridade patriarcal”.

(2003) com a tradução da obra Memória. As demais publicações de e sobre Meslier estão disponíveis em francês e em várias línguas do leste europeu – onde é considerado um “revolucionário”. 82 Vale lembrar que de 1500 a 1789 a França viveu sob monarquia absoluta com rígida hierarquia social – nobreza (com a aristocracia hereditária e a denominada “nobreza togada” – isto é, burgueses que comprar títulos de nobreza), clero, burgueses e camponeses (muito poucos com terras próprias). Estes viviam na mais brutal miséria, “agravada, sobretudo pela insuportável sobrecarga de impostos e de obrigações feudais, o que significa que a economia orbitava em torno do trabalho na terra” (PIVA, 2006, p. 217) levando a freqüentes sublevações (em especial no período de Luís XIV). Apesar de a moral cristã entender “a miséria como parte constitutiva de uma ordem natural das coisas”, defendia a caridade para com os camponeses; ademais, em função da ameaça que os famélicos constituíam à ordem e à propriedade “forçaram a monarquia a assumir um comportamento paternalista”, devidamente retribuído com “obediência cega”. Contudo, os gastos com as guerras de conquista (o exército de Luis XIV contava com quase um milhão de soldados), “os empreendimentos suntuosos e as despesas de manutenção de uma corte esbanjadora e parasitária eram financiados pela criação constante de novos impostos e pelo aumento exorbitante da carga tributária para a população, a qual chegava a 60% do valor bruto. Com isso, toda a agricultura era submetida às necessidades das guerras. Os efeitos obviamente foram desastrosos, sobretudo do ponto de vista social” (p.218).

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Mas Meslier não era um “caso isolado”, pois o seminário de Reims onde estudou

acumulava “padres rebeldes” – o que Piva (2006, p.75) atribui à proximidade com a Bélgica, país

de maioria protestante, com influência do jansenismo. Lá teria tido a oportunidade de conhecer

outras perspectivas filosóficas, inclusive as idéias de “religiosos heréticos”, devido a

“clandestinidade literária”.

Desenvolvendo suas atividades como cura numa aldeia francesa nas Ardenhas (Etrépigny,

em 1689, contava com “algumas dezenas de habitantes”) e – tudo indica – sem dispor de boa uma

biblioteca, Meslier escreveu na clandestinidade para a posteridade (PIVA, 2006)83; seu

pensamento só foi revelado com sua morte.

Foram encontrados entre seus pertences os seguintes manuscritos: Memória (iniciada em

1723), “duas cartas redigidas no mesmo período e que ficaram conhecidas posteriormente como

Cartas aos curas da vizinhança” e suas anotações de leitura (sobre os livros Demonstração da

existência de Deus, de Fénelon e Reflexões sobre o ateísmo, do padre Tournemine) que foram

reunidas e denominadas postumamente de Anti-Fénelon (p.107). Com a descoberta de seus

escritos, foi acusado de apostasia, sem direito a uma sepultura digna. Foi enterrado

clandestinamente por seus amigos, em local até hoje ignorado84.

83 Para esse autor, não há dúvidas de que Meslier conseguiu transmitir suas idéias aos seus contemporâneos, conforme nota posterior. Contra a lista de best-sellers de Darnton já anteriormente mencionada, Piva evoca duas grandes questões para justificar a ausência de Meslier: em primeiro lugar, pela sua presença num círculo mais elitizado, tanto pelo caráter dos seus escritos (bem diferente, por exemplo, de Teresa Filósofa), como em relação ao seu custo (em 1934, se estimava que um exemplar da Memória à época custava em torno de 2 ou 3 mil francos – o que em termos atuais equivaleria a 460 ou 500 euros – p.111); em segundo lugar, argumenta Piva que Darnton utilizou uma fonte – documentos de uma empresa “voltada exclusivamente para o comércio de textos impressos” (p.131) – que, a priori, já deixava Meslier fora do circuito. Nesse sentido, Piva evoca listagens anteriores das quais constam tanto referências à como o próprio Meslier e que demonstram sua influência nos círculos letrados da época. Sylvain Marechal, por exemplo, era sabidamente um leitor de Meslier. 84 As condições de seu sepultamento deve-se à pretensão de seus superiores em “abafar o caso”. Contudo, Meslier, quando a cegueira se prenunciava, tomou o cuidado de elaborar “três cópias manuscritas da sua Memória, todas curiosamente diferentes entre si, não no essencial, mas nos detalhes” que foram destinadas a “um advogado, ao Arquivo da Justiça de Sainte-Menehould e [a]o vigário geral de Reims” (p.109). Imediatamente foram produzidas cópias, “recópias”, extratos, bem nos moldes da já mencionada “literatura clandestina”, alterando a idéia original de Meslier. E neste sentido imputa-se à Voltaire a fama de, simultaneamente, maior divulgador e maior deturpador de

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Exerceu essa função por “atormentados quarenta anos”, particularmente pela remuneração

de seiscentas libras anuais (proveniente do dízimo), que lhe deixava em situação financeira

confortável quando “comparado aos seus confrades do baixo clero rural” (p.76). Para amenizar o

sofrimento da população local (e, provavelmente, sua consciência), dava esmolas, emprestava

dinheiro sem cobrança de juros “e, ao término de cada ano, dividia parte de sua renda acumulada

no período com os paroquianos mais necessitados” (p.77). Geralmente não cobrava pelas

cerimônias de casamento e sepultamento, numa atitude absolutamente diversa de seus colegas de

ofício.

Apoiava – contrariamente à orientação da Igreja – as festas populares, admirava a música

campesina e o teatro de marionetes. “Ademais, tratava os fiéis de igual para igual, inclusive do

ponto de vista cultural” (p.78). Preocupava-se particularmente com as crianças: distribuía as

hóstias que não eram utilizadas nas celebrações para aplacar a fome e “zelava pelo bem-estar

delas opondo-se efetivamente à violência e à promiscuidade cometidas por alguns pais” (p.78).

Dedicava-se especialmente aos “órfãos e rejeitados” e abominava crueldades praticadas contra os

animais85.

Meslier. Através do seu Extrait a “crítica fulminante” de Meslier “à propriedade privada e à nobreza”, bem como seu “apelo de sublevação dos camponeses” foram suprimidos. Como diz Piva (2006, p.112): “Em sua iniciativa indubitavelmente criminosa, o célebre filósofo iluminista chegou ao cúmulo de atribuir a Meslier uma oração na qual este pede perdão a Deus por ter pregado o cristianismo e outros dogmas eclesiásticos ao invés da religião natural, isto é, o deísmo voltairiano. Em outras palavras, em sua mutilação, falsificação e desonestidade intelectual, Voltaire subtraiu da Memória o que ela teria de mais radical, original e marcante: o seu materialismo ateu e comunista”. Nessa linha, ao ser demandada por uma reedição em 1768, Voltaire publica os Extrait sob o título de Testamento, distorcendo também a idéia de memória – que ao tempo de Meslier significava “idéia de tese, sobretudo de tese jurídica, isto é, a idéia de defesa de uma causa” (p. 115). 85 Uma das alegações de Meslier – na terceira “prova” de Memória – contra a idéia da existência de uma divindade, residiria sobre a prática dos sacrifícios tanto humanos, como de animais. O sacrifício seria incompatível com a idéia de “um deus infinitamente bom e sábio” para que funcionassem como “expressão de fé e referência”. Piva (2006, p.158) informa a similitude do argumento para humanos e para os animais: “inocentes, inofensivos e indefesos”, “nossos fiéis companheiros de vida e de trabalho, e, por isso é preciso tratá-los com doçura”. Adenda que Meslier recusa o entendimento do cartesianismo via Malebranche de que os animias seriam como que “puras máquinas, isto é, como seres incapazes de, entre outras coisas, ter conhecimento, de sentir prazer ou sofrer de dor”. Nesse sentido a argumentação de Meslier também ia na contramão das idéias de seu tempo.

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Tais posições colocavam Meslier em boa conta com os paroquianos, mas não com os

senhores da sua paróquia. Odiava “a ganância, a opressão, as injustiças e, particularmente, a

indiferença” dos senhores (p.77). Algumas vezes deixava transparecer sua posição em seus

sermões sendo sistematicamente inspecionado – administrativa e ideologicamente, pois

buscavam livros proibidos.

A única vez em que a investigação resultou em punição (um mês de reclusão no seminário

de Reims para ser “reeducado”) foi em função da sua recusa em fazer a homilia86 em favor de um

homem poderoso e temido da região que tratava desumanamente seus servos. Contudo, essa não

foi a única acusação, pois quando da investigação encontraram uma criada com cerca de 18 anos,

quando a permissão da igreja para se tê-las limitava a idade mínima em 50 anos. Retornando da

reclusão foi obrigado a celebrar a homilia recusada; mas o fez ironicamente, chegando a rogar “a

Deus para que o senhor não mais maltratasse os seus subordinados” (p.89). Denúncias

continuaram a ocorrer e os inspetores passaram a considerá-lo “negligente, presunçoso,

ignorante, teimoso e até jansenista” (p.88).

Apesar das condições adversas, Meslier deslocou-se por três vezes à Paris e mantinha

contatos sistemáticos com muitos religiosos e hereges (p.91), tendo uma aproximação – através

do padre Buffier (“introdutor de Locke na França”) – com a “vanguarda intelectual de sua época”

(p.91).

Jean Meslier abre sua obra menos desconhecida - Memória87- manifestando seu mal-estar

e seu drama de consciência em exercer uma função que tem como principal missão “inculcar na

86 Segundo Piva (2006, p.88), prática comum de “sermão em louvor dos poderosos, no qual eram destacadas em público as virtudes e as pretensas benfeitorias destes à comunidade”. 87 O título completo e original dessa obra é Memória dos pensamentos e dos sentimentos de Jean Meslier, padre, cura de Etrépigny e de Balaives, sobre uma parte dos erros e dos abusos da conduta e do governo dos homens, onde se vê demonstrações claras e evidentes da futilidade e da falsidade de todas as divindades e de todas as religiões do mundo, para ser dirigida aos seus paroquianos após a sua morte e para servir-lhes de testemunha da verdade e a todos os seus semelhantes. Como bem comenta Piva (2006, p.136) trata-se de um abstract. Seu objetivo principal era

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consciência de seus paroquianos, todos eles ignaros e ingênuos camponeses, os dogmas públicos

dos quais discordava com radicalidade e veemência” (p.137); contudo, “mesmo contra a vontade

aterrorizou e iludiu seus fiéis com a mitologia dos evangelhos” (p.145).

A seu favor, alegava: a caridade que praticava e o fato não ter sido “supersticioso, beato

ou fanático”, bem como o fato de jamais ter zombado da credulidade de seus fiéis (como os

Papas Julio III, Leão X e Bonifácio VIII que, segundo ele, entre os íntimos, “repetiam que tinham

se enriquecido graças à fábula de Jesus Cristo”). “Com a consciência torturada, ele se lamenta e

pede desculpas aos seus paroquianos por tê-los enganado” (p.145). “Num tom de mea-culpa,

admite e pede desculpas à posteridade por ter abusado da boa-fé dos seus fiéis” (p.146).

Nessa apresentação também, Meslier adequadamente demonstra sua argumentação em

linhas gerais. A estrutura geral da Memória, segundo Dommanget (1965, apud PIVA, 2006,

p.137), pode ser assim resumida:

1ª Prova: as religiões são invenções humanas; 2ª Prova: a fé é um princípio de erro; 3ª Prova: as pretensas visões sobrenaturais e revelações divinas são falsas; 4ª Prova: as promessas e profecias são ilusões; 5ª Prova: a doutrina cristã em sua teologia e em sua moral é absurda; 6ª Prova: a religião em conluio com a política é a verdadeira causa histórica da opressão e da miséria; 7ª Prova: a idéia da existência de uma divindade é quimérica, ou seja, Deus não existe; 8ª Prova: a alma não é espiritual tampouco imortal, mas material/corporal e mortal.

Para Souza (apud PIVA, 2006, p.136-7), as cinco primeiras “provas” tratam da crítica da

religião; a sexta da crítica social (que também consta da Carta aos curas); as sétima e oitava têm

caráter mais filosófico. Estas últimas expõem o materialismo ateu88 de Meslier (cf. DESNÉ,

1973, apud PIVA, 2006, 137).

“desiludir o povo, fazê-lo ver, mediante a razão, a ‘verdade das coisas’ (p.146).” A obra é composta de dez partes: uma longa apresentação, oito seções (ou “provas” – no sentido de argumentos da tese) com subdivisões e uma conclusão. Aqui só serão destacados os aspectos mais significativos para este trabalho, a partir da visão de Piva (2006 e 2005). 88 Em seu artigo, Piva (2005, p.102-3) assim sintetiza esse materialismo ateu: “Do ponto de vista metafísico, Meslier nega categoricamente o dogma da criação do universo, por conseguinte, as idéias de divindade, transcendência e de providência ordenadora da natureza. Seu ateísmo, portanto, é inequívoco. (...). Meslier argumenta a favor do seu materialismo, que é radical. No seu entender, tudo o que existe é material, ou seja, só há matéria no universo, apenas

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Em seus argumentos gerais, Meslier apresenta a religião (em especial a católica) como

“um artifício humano” que, apropriada por “espertalhões” se torna “um eficiente instrumento de

dominação utilizado pelos reis, sacerdotes e demais parasitas para submeterem e manipularem os

povos imersos na miséria e debilitados pelo sofrimento” (PIVA, 2005, p. 103). Defende Meslier

que a ambição em relação aos “cargos de poder e de prestígio para se sentirem honrados e

respeitados” está na base desse comportamento (p.139). Detalhando essa idéia, Meslier apresenta

já na primeira “prova” o detalhamento das “artimanhas políticas”, das “cinco razões” do poder

dos “grandes da terra” (PIVA, 2006, p.15):

A primeira delas seriam as imposturas e as ameaças das religiões, como a tese teológica do direito divino dos reis e a fábula do inferno, por exemplo, as quais por meio da fé, impedem os fracos e oprimidos de adquirirem consciência dos mecanismos sociais e políticos de dominação e exploração. A segunda, a dependência que os esclarecidos que compõem as estruturas burocráticas e de funcionamento dos governos, dentre eles os magistrados, os intendentes e os cobradores de impostos, têm da preservação da ordem para garantir a sobrevivência. A terceira, por sua vez, também diz respeito à dependência, mais exatamente a dos bajuladores, os quais, em troca de favores e benesses espúrias, esforçam-se complacentes para que a tirania perpetue-se. Na realidade, dadas as suas devidas proporções, a relação dos funcionários do governo e dos bajuladores com a tirania seria da interdependência. A quarta razão consiste na astúcia do tirano em engambelar o povo e em fomentar a lógica da hipocrisia, da corrupção e das perfídias que movem o regime. E, por fim, a quinta e última razão: trata-se da ignorância e da credulidade dos povos e, por conseguinte, da resignação destes em face do poder. Meslier constata que os oprimidos acreditam com muita facilidade nas mentiras dos religiosos. Sugere que essas crenças possam até ser úteis num primeiro momento, uma vez que suas explicações feéricas proporcionar-lhes-iam um certo consolo em face da miséria. Entretanto, como conseqüência dessa fé teríamos uma profunda incapacidade desses fiéis de perceberem as astúcias políticas que sufocariam a sua liberdade e, notadamente, uma paralisante pusilanimidade. Ambas os impediriam de sublevar-se.

uma única substância na natureza. E substância para ele é toda realidade corporal. A matéria é a realidade, é o Ser propriamente dito. E como Ser, a matéria é a causa de si mesma e de tudo o que é. A idéia da existência de uma outra substância além da matéria, uma substância imaterial e imortal, é refutada como fantasiosa. Nesse sentido, Meslier opõe-se frontalmente a Descartes, o qual concebe o homem como uma substância composta, mais precisamente como uma união substancial constituída de matéria e espírito, extensão e pensamento. Vale dizer que o dualismo cartesiano era a corrente hegemônica no cenário filosófico no qual se desenvolveram as reflexões de Meslier.” Em relação ao cogito materialista de Meslier, Piva cita duas máximas: “Existo, logo penso” (p. 178) e: “O que pensa em mim, sou eu mesmo e nenhum outro ser” (p.200).

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Nesse contexto apresenta a metáfora do desabafo do camponês que, segundo PIVA (2006,

p.144) “sugere que nos regimes fomentados ideologicamente pela teoria do direito divino dos reis

haveria um elo visceral – visceral aqui na acepção mais orgânica e fisiológica da palavra, convém

enfatizar – entre o poder temporal e o poder espiritual” (p.144). Não à toa defendeu,

simultaneamente – e aí parece residir sua peculiaridade – “o deicídio, a rebelião popular e

comunismo” (p.105). Ressalta, Meslier, a crueza da metáfora para, no entanto, apoiá-la

entusiasticamente, acrescentando

eu desejaria ter o braço, a força, a coragem e a massa de Hércules para purgar o mundo de todos os vícios e de todas iniqüidades, e para ter o prazer de derrear todos esses monstros tiranos de cabeças coroadas, e todos os outros monstros, ministros de erros e de iniqüidades que fazem gemer tão impiedosamente todos os povos da terra (apud PIVA, 2006, p.144).

Assim, dentro de suas idéias gerais, defende Meslier que os ‘mais instruídos’ deveriam

convencer ‘os povos’ de duas verdades fundamentais: a primeira diz respeito ao seu

entendimento de que somente ‘as luzes da razão humana’ poderiam levar ao aperfeiçoamento

‘nas ciências e nas artes’; a segunda defende que: “as boas leis devem ser engendradas e

fundamentadas na prudência, na probidade, na ‘equidade natural’, enfim também na razão”

(p.147).

No que diz respeito a critica da ordem social de seu tempo a relação histórica entre

política e religião constituiu a base da análise de Meslier; entende que “as religiões sempre

autorizaram ‘abusos’ e ‘vexações injustas’ que acabaram legitimando historicamente a

exploração e a opressão dos grandes da Terra sobre os pobres”, “causando, principalmente em

‘sua versão católica apostólica romana, grande prejuízo do bem público e do bem comum dos

povos e dos particulares’” (p.219); isto porque a “uma situação de obscurantismo e miséria

acrescentou-se a mais servil obediência” (p.220).

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Arrola esses abusos históricos que tanto são de “caráter moral, político e social”; cita, em

primeiro lugar, a conivência da Igreja Católica com as “exorbitantes desigualdades políticas e

sociais” posto que “sempre justificou como natural e necessária

essa enorme desproporção que se vê por toda parte nos diferentes estados e condições dos homens, nos quais uns parecem ter nascido tão-somente para dominar tiranicamente os outros e para ter sempre os seus prazeres e seus contentamentos na vida, e os outros, ao contrário, parecem ter nascido apenas para serem vis, miseráveis e infelizes escravos, e para gemerem por toda a sua vida no tormento e na miséria. (...). Todos os homens são iguais por natureza, todos têm igualmente direito de viver e de caminhar sobre a Terra, igualmente direito de gozar a sua liberdade natural, e de ter parte nos bens da terra trabalhando utilmente uns para os outros para terem as coisas necessárias e úteis à vida. (apud PIVA, 2006, p.220-1).

Piva (2006, p.221) chama a atenção para a concepção de liberdade presente em Meslier

que se constrói “em oposição estrita à tirania”, mas admitindo hierarquia política (motivo pelo

qual o autor imputa como problemática a interpretação de Meslier como precursor do

anarquismo, apesar de sua posição libertária):

é absolutamente necessário para o bem da sociedade humana que haja entre os homens uma dependência e uma subordinação de uns em relação aos outros, mas é preciso também que essa dependência e que essa subordinação de uns em relação aos outros seja justa e bem proporcionada.

Mas se a igualdade e a liberdade são direitos inalienáveis, Meslier defende deveres

correspondentes: a fraternidade e a caridade – elementos fundamentais “no interior de uma ética”

(p.221). O que surpreende Piva são as bases alegadas por Meslier para ressaltar a importância

desses deveres: Sêneca e Jesus Cristo. Para Meslier “uma vez realizados, tais preceitos

promoveriam a justiça e a ‘equidade natural’ (p.221)”.

Na origem do poder político Meslier identifica a violência, a crueldade, a usurpação89 e a

falta de escrúpulos que sempre teve na Igreja Católica a cumplicidade necessária para os reis e

para os nobres. Assim, Meslier sugere que caberiam “às massas odiar o seu rei, a sua corte, bem

89 Piva (2006, p.268) afirma que para Meslier “a riqueza das grandes nações tem uma origem sórdida, a saber, a pilhagem dos povos”.

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como os eclesiásticos de seu país”; defende ainda: o fim das corvéias, o fim do trabalho não

remunerado, bem como remuneração digna (p.222).

O segundo “abuso” apoiado pela Igreja – em especial a católica – era a existência de

cargos inúteis no governo (como os já anteriormente citados), como também de subsídios90

mantidos com os altos impostos cobrados dos camponeses; neste último seriam privilegiados:

“nobres, eclesiásticos e, curiosamente, os mendigos91” que, formavam o segmento que Meslier

denomina de “ociosos e parasitas do suor e do sofrimento dos camponeses, portanto sócios de

algum modo dos dividendos da exploração e das injustiças” (p.233).

Nesse sentido, o cura defendia “ocupações úteis e produtivas para nobres, eclesiásticos e

mendigos”. Só reconhecia “utilidade” para o baixo clero (vigários das aldeias e curas das

paróquias), se, e somente se, praticassem o “ensino da virtude”: a prática da fraternidade e da

solidariedade (p.233) e o amor à probidade, a justiça e a verdade (p.238), bem como à “liberdade

pública” (p.269). Essa seria uma excelente contribuição para a boa “república” – ou para uma

“república sábia”.

O terceiro “abuso” denunciado seria a

Apropriação particular dos bens da natureza e das riquezas da terra, ou seja, a propriedade privada dos meios de produção. Para ele, a posse da terra deveria ser comum, todos os homens deveriam viver em torno do trabalho, repartindo fraternalmente os frutos deste, mas também os dissabores da vida em

90 Na sexta prova, Meslier se referiria a esses subsídios (i.e., a concessão de favores aos coletores de impostos e pobres, especialmente), como “um dos principais ardis dos tiranos”, pois essa “corrupção” contribuiria para impedir a “união e, sobretudo, a rebelião dos setores mais oprimidos da população contra o jugo tirânico” (p.234). Na continuidade dessa reflexão, Meslier refere-se especificamente – e com muito maus modos – a Luis XIV (p.235) e, por oposição, defende os princípios que caracterizariam um “bom rei” (p.234-7). 91 Piva (2006, p.22-5) ao longo desse trecho reafirma sua surpresa, identificando em Meslier um “ardoroso defensor do trabalho”. Em que pese a ausência de consulta à obra referida, entende-se que dois fatores podem determinar essa concepção de “parasitismo” em relação aos mendigos: por um lado, a existência de ordens mendicantes (como os “cenobitas mendigos” que, na opinião de Meslier, concorriam deslealmente com os mendigos que as vezes eram injustamente presos, enquanto os “mendigos de batina” não o eram ) e, como parte, da Igreja Católica deveriam ser atacados por uma questão de coerência da análise; por outro lado, o contexto francês do período de Luis XIV que, com base na exploração do trabalho camponês, “paternalizava” os expulsos do campo. Obviamente, como aponta Piva, faltou uma avaliação das condições econômicas, mas entende-se que no domínio da análise política não há incoerência da parte de Meslier, conforme observação em nota posterior.

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comunidade. (...). Já a organização e a condução política dessa comunidade fundamentada na fraternidade e na união deveriam ficar a cargo dos mais esclarecidos, dos mais sábios e dos mais bem-intencionados no que concerne ao “bem público”, os quais, por suas virtudes, não exerceriam tiranicamente sobre os outros os seus poderes. Estes deveriam fazer alianças com os sábios e os bem-intencionados dos vilarejos e de outras comunidades vizinhas de modo que pudessem viver em paz e se auxiliassem nos momentos difíceis. (...). Meslier explica que os mais cúpidos foram historicamente os que mais se beneficiaram com as divisões das terras. Para isso, fizeram uso de todos os estratagemas que os infames são capazes de fazer. Conseqüentemente tornaram-se ricos, adquiriram poder e prestígio, ao passo que os menos gananciosos e hábeis foram condenados à miséria e à execração. (p.226).

Dessa “iniqüidade e penúria” nasceriam as “revoltas populares, os furtos, os roubos, as

trapaças e os assassinatos”; em função da “necessidade de sobrevivência”, não haveria outra

alternativa à prática de “atos imorais e ilícitos, o que é absolutamente compreensível e sobretudo

legítimo aos olhos de Meslier92” (p.227).

O quarto “abuso” reside tanto na “aceitação da divisão das riquezas e, por conseguinte,

das diferenças sociais”, como na conivência dessa situação que gera a “distinção hierárquica

entre as famílias”.

Os ricos passavam a ver os pobres como seres humanos de uma espécie não apenas diferente, mas sobretudo inferior, mais precisamente como os seus legítimos escravos, os quais lhe seriam ofertados como presentes pela divindade.O resultado imediato dessa odiosa e absurda soberba é a difamação, a discriminação e o desprezo entre os homens. Amizades e matrimônios são impedidos por esse motivo, a perda de laços torna a vida em sociedade conflituosa e as relações humanas indiferentes. (...). Contra isso Meslier afirma o seu igualitarismo, objetando indignado que os indivíduos deveriam ser apreciados não pela sua origem familiar ou pela sua colocação na hierarquia social, mas pelas suas virtudes e méritos próprios. (p.237)

O quinto – e último – “abuso” residiria “na concepção de matrimônio como união

indissolúvel93” que, no entender de Meslier seria um dogma com várias decorrências

92 É exatamente essa passagem que faz questionar uma possível falta de “análise” ou uma marcação de coerência em relação à questão da mendicância. Ademais o título completo da Memória explicita que Meslier só estava tratando de uma “parte dos erros e abusos”. 93 Vale destacar que na 5ª “Prova” – ao procurar demonstrar a falácia das religiões em geral, porém mais especificamente, o cristianismo católico – Meslier identifica e comenta vários erros doutrinários em geral, porém destaca o que denomina de “erros da doutrina moral dos cristãos” que seriam: (1) “fazer do sofrimento a perfeição da virtude”, pois o modelo de Cristo – o “miserável fanático” – promoveria a infelicidade dos homens, levando-os à

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problemáticas. Pressupondo que “as paixões são inconstantes” entende como conseqüência

plausível o fato de um dia não mais um casal se amar; e quando isto ocorre, o melhor é a

separação, principalmente em função dos filhos.

Alega Meslier que um casal sem afeto submete seus filhos à condição de expectadores de

“animosidades cotidianas”, à ausência de uma “atmosfera familiar afetuosa”, tornando

“impossível o aprendizado de bons costumes e de valores edificantes”; nesse contexto doméstico,

não há condições de se formar “bons pais”.

Meslier, segundo Piva (2006, p.228-9) preocupava-se com o tamanho das proles –

particularmente entre os camponeses, na contramão da doutrina cristã que “incentivava a

reprodução desenfreada como vontade divina”. Mas a motivação de Meslier era a orfandade –

situação comum em seu tempo -, independentemente da origem de classe. Entre os camponeses,

quando a orfandade não era total (o que implicava em desamparo maior), as crianças seriam

submetidas a “madrastas ou padrastos indiferentes, negligentes e até truculentos”. Entre os

abastados, o temor recaía sobre a figura dos tutores inescrupulosos que dilapidariam e usurpariam

a herança para si (p.229). Em ambos os casos entendia que as crianças ficariam entregues à sua

própria sorte.

Em relação ao modo de vida simultaneamente comunal e fraternal – “única garantia

possível para o desaparecimento das injustiças sociais” – eliminaria “sentimentos como a inveja,

a cupidez e o egoísmo”, pois “não faltaria nada a ninguém” (p.230). Ademais, sem ociosos e

parasitas o povo todo trabalharia, porém sem excesso. Enfim, “o trabalho coletivo voltado para as

resignação por pretenderem a ilusão do paraíso (p.171-2); (2) desaprovação/cerceamento das inclinações naturais, isto é, da “concupiscência” – para ele é “um grande erro condenar ‘os prazeres naturais do corpo’”, pois são “naturais, legítimos e necessários à conservação e à proliferação da espécie humana”, devendo ser “celebrados como dádivas”; ressalta, porém que os excessos são condenáveis. Nessa reflexão incentivaria o casamento entre irmãos pois “contaria com um duplo vínculo afetivo: o amor de irmãos e o sentimento dos amantes” (p.172-3); (3) apregoar o “amor ao inimigo e a resignação à opressão e à miséria” – tal prática, nas palavras de Meslier seria “nocivas às pessoas de bem, prejudiciais ao Estado e ao bom governo dos homens” (p.173).

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necessidades básicas e para o bem de todos” – mesmo para o atendimento das necessidades

específicas das crianças, dos idosos e dos enfermos – consistiria no núcleo da vida comunitária

que se apoiava na propriedade coletiva da terra.

A referência primordial de Meslier seria assim a “comunidade dos primeiros cristãos, um

exemplo clássico de comunismo milenar” – “como as que ocorriam no interior de algumas ordens

monásticas do século XVIII (p.251)” -, onde o trabalho coletivo garantiria “a cada um, conforme

as suas necessidades, numa verdadeira comunhão de bens94” (p.232).

Essa proposta constitui a antítese do que era observado por Meslier:

O que seriam, por exemplo, dos maiores príncipes e dos maiores potentados da Terra se os povos não os sustentassem; é tão somente dos povos (que eles poupam entretanto tão pouco) que eles tiram toda a sua grandeza, todas as suas riquezas e todo seu poder, em uma palavra, eles não seriam nada senão homens fracos e pequenos como vós se vós não sustentásseis sua grandeza; eles não teriam mais riquezas do que vós se vós não lhes désseis as vossas e, enfim, eles não teriam mais poder nem mais autoridade do que vós se vós não quisésseis vos submeter às suas leis e às suas vontades. (...) Mas, não, todo o tormento é para vós e para vossos semelhantes e todo o bem é para os outros, embora eles o mereçam menos e é por isso que os pobres povos têm tantos males e tantos tormentos na vida. (apud PIVA, 2006, p. 230-1)

Reafirma Piva (2006, p. 231), com base em análise de Albert Soubol, a inexistência de

um “projeto político propriamente dito” na doutrina de Meslier que – acrescenta – não “tinha uma

concepção clara da natureza do Estado”; considerando-se, porém, tratar-se de “um pensador de

uma pequena aldeia do século XVIII com as limitações próprias dessa realidade”, sua

originalidade merece ser reverenciada, posto que, reconhecem existir “sentimentos e intenções de

ruptura absoluta em suas colocações”, características que não foram encontradas “nos

pensamentos políticos mais célebres das Luzes. A esse propósito, comenta PIVA (2006, p.242-9)

que ao passar em revista os grandes filósofos franceses das Luzes (Montesquieu, Voltaire, 94 A esse propósito, Meslier denuncia o sacramento da eucaristia que “transforma a comunhão de bens materiais em comunhão de bens espirituais, isto é de bens fantasiosos e ilusórios”. “ao invés de realizarem comunhões de bens que pudessem resolver efetivamente os problemas dos camponeses famintos e aflitos, o clero assou a priorizar a comunhão de porções de farinha e de pequenos pedaços de massa apresentados nas mise-en-scènes dominicais, como o corpo e o sangue de um homem que seria Deus ou vice-versa” (p.233).

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Rousseau, Diderot, Holbach, La Mettrie, Helvétius, Quesnay, d´Alembert, Condorcet, Mably e

Deschamps) identifica que a “essência do Iluminismo político francês”, mesmo em sua corrente

utópica, primou pelo “reformismo”; fato que só confere mais originalidade ao pensamento de

Meslier.

O seu ideal de sociedade comunista tem na razão o guia principal. E “uma sociedade

governada pela razão teria como finalidade a realização do bem comum” (p.231). Essa sociedade

pautada no princípio de que todos os homens nascem livres e iguais por natureza, seria guiada por

“assembléias de representantes do povo” e regulada por leis às quais todos (inclusive o

governante) deveriam obedecer.

Contudo, a forma de realização dessa sociedade difere no conjunto de textos de Meslier,

posto que as Carta(s) aos curas adota uma posição mais conservadora. Na Memória Meslier

preconiza:

Vossa salvação está em vossas mãos (...) vossa libertação dependerá apenas de vós, se vós todos sabeis bem entender; vós tendes todos os meios e todas as forças necessárias para vos colocar em liberdade e para tornar escravos vossos tiranos; pois vossos tiranos, por mais poderosos e temíveis que eles possam ser, não teriam nenhum poder sobre vós sem vós mesmos; toda a sua grandeza, todas as suas riquezas, todas as suas forças e todo seu poder vêm somente de vós. (...). Mas isso não seria o mesmo se todos os povos, se todas as províncias, se todas as cidades se entendessem bem e se todos os povos conspirassem juntos para se libertar de uma comum escravidão na qual eles estão; todos os tiranos seriam então logo destruídos e aniquilados. Uni-vos pois, povos, se vós sois sábios, uni-vos todos se vós tendes coração para vos libertar de todas as vossas misérias comuns, animai-vos e encorajai-vos uns aos outros a uma tão nobre, tão generosa, tão importante e tão gloriosa empresa como essa. (apud PIVA, 2006, p.266).

Se na Memória a força reside na metáfora das tripas, na idéia do tiranicídio e na

conclamação da união “dos povos”, nas Cartas o tom é de moderação. Em comum, a aposta na

força da razão e na capacidade dos curas – que nas Cartas têm papel de vanguarda – em fazer

emergir as “consciências oprimidas” (p.266). Essa posição de que a reação popular não

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necessariamente passasse pela via das armas, sua defesa de “justa submissão” e do bom rei

apontam para o que Piva denomina de “incongruência ideológica” (p.242) em Meslier.

Neste sentido, entende que a emancipação popular referida pelo “cura ateu é clara”: é uma

“emancipação política e social” (p.241). Assim, ganha sentido outra passagem na qual Piva

(2006, p.201) comenta outra concepção de liberdade presente em Meslier; como o pensador

entende o livre-arbítrio como uma “quimera” – o que conferiria ao seu materialismo um caráter

“mecanicista” – posto que o “homem é conduzido e arrastado por um fluxo natural desarrazoado”

o espaço para a liberdade seria “relativo”; ou seja, “não haveria liberdade no sentido ontológico

do termo, porém como em Diderot, a liberdade poderia existir um dia no âmbito político”. E esta

estaria condicionada à igualdade, garantida por leis criadas por homens sábios para todos e

promulgadas por assembléias populares.

Contudo, informa Piva (2006, p.260-1) que o próprio Meslier antevia a possibilidade de

que mesmo sob a ação da razão iluminadora e de sua “crítica à alienação95”, a cosmovisão

religiosa96 poderia não ser superada – e aí Meslier previa a piora crescente da situação dos povos.

Citando Soubol, Piva (2006, p.268) conclui que Meslier foi um filósofo e um homem revoltado,

mas “seu grito de revolta amplia-se em perspectiva revolucionária”.

95 Albert Soubol (apud PIVA, 2006, p.264) defende o conjunto do pensamento, mas em particular o ateísmo de Meslier, como uma “crítica da alienação” em função do reconhecimento da Igreja católica e do cristianismo em geral, como “fontes de alienação intelectual e moral do povo”, como “sustentáculos vitais da ordem social”; e isso em ‘um todo unificado interiormente’. 96 Piva (2006, p.259) melhor explica: “seja como for, um dos principais empecilhos à efetivação dessa catarse revolucionária sempre foi e, ao que parece, continua sendo, a cosmovisão religiosa nas suas mais variadas formas expressivas, isto é, da superstição mais obscurantista ao misticismo mais delirante, passando pelo messianismo histérico ou pelo ascetismo paralisante.”

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2.3.2 O ilustre desconhecido: Morelly

Segundo Moraes (1994) quase nada se sabe dos dados biográficos – nem mesmo pré-

nome ou ano de nascimento – de Morelly; biografia ignorada, mas, sem dúvida, não sua

produção97. Informa ainda esse autor que, à exceção de “trechos” de La Basiliade (1753) e do

Código da Natureza (1755), os demais títulos não foram republicados.

Contudo, isso não impediu que esse pensador entrasse para a história como “um dos mais

notáveis precursores do ideário comunista” (p.8). Afirma, ainda (p.13) que, “como é a vocação de

todas as teorias revolucionárias”, tornou-se “um guia para a ação”, defendendo que “Babeuf e os

Iguais”, bem como Fourier, se inspiraram em Morelly.

Para Moraes (1994, p.9), “com Morelly, o comunismo utópico se torna doutrina”, em

função da “continuidade temática e a coerência filosófica” que esse pensador estabelece entre as

obras de 1745 e 1751, com as mais conhecidas (de 1753 e 1755).

A justificativa apresentada pelo autor para a publicação do romance utópico antes do seu

Código é exatamente a que serve de epígrafe para a seção relativa ao século XVIII: a necessidade

de estratégias “para rasgar a venda” que cegava a humanidade. E o Código – sustenta Moraes

(1994, p.12) – teria sido escrito para refutar críticas proferidas contra a La Basiliade98. A

97 Cita Moraes (1994, p.8) as seguintes obras: Essais sur l´espirit humain (Paris, 1743), Essais sur le coeur humain (ou principes naturels de l´education, Paris, 1745), Physique de la beauté (ou pouvoir naturel de ses charmes, Amsterdã, 1748), Le prince, les délices su couer (ou traité des qualités d´un grand roi et système d´un sage governement, Amsterdã, 1751), La Basiliade du célèbre Pilpai (ou naufrage des îles flottantes, ou Poema épico em catorze cantos, traduzido do indiano por M.M., Messina, 1753) e Código da Natureza (ou o verdadeiro espírito de suas eternas leis, neglicenciado ou desconhecido, 1755). É está última que servirá de referência para o presente trabalho e doravante somente denominada por Código. Vale ainda lembrar que sua publicação data do mesmo ano que o Segundo Discurso de Rousseau. 98 Logo de início, Morelly (1994, p.23) informa a finalidade desse romance utópico – que tudo indica foi a base do Código: “mostrar que o verdadeiro herói é o próprio homem formado pelas lições da natureza, e minar pela base todos os infelizes preconceitos que o fazem surdo à voz dessa amável legisladora. É da dignidade desse tema que se extrai o título principal desse poema, e sob a alegoria de “naufrágio das ilhas flutuantes” designa-se a sorte que se pretende infligir à maioria das frivolidades que ofusca a razão”.

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finalidade do Código é reafirmada do princípio ao fim da obra “encontrar uma situação em que o

homem seja tão feliz e bondoso quanto pode ser nesta vida” (p.100).

O Código foi estruturado em quatro partes99, sendo a última constituída pela apresentação

de um “modelo de legislação” coerente com o conjunto do texto.. Apesar de apresentado sob a

“forma de apêndice, e como acessório” – uma vez que alega Morelly não ter “a temeridade de

pretender reformar o gênero humano” (p.105) -, essa parte condensa o conjunto de suas idéias.

Para Moraes (p. 11) as três primeiras partes constituiriam a “exposição de motivos” dessa última

seção; mas sua leitura parece indicar – salvo erro - tratar dos fundamentos de sua proposta.

Antes de apresentar essa obra, vale lembrar que Morelly era um homem de seu tempo,

adepto do que posteriormente foi convencionado chamar de período das Luzes e que, como tal,

acreditava que toda e qualquer mudança passava, necessariamente, pela educação; e,

evidentemente, pela educação das luzes, pela educação através da razão, para que se pudesse –

livre dos preconceitos e “vícios” – compreender “as intenções da Natureza”.

Já no prefácio, Morelly convida os leitores a deixarem “cair o véu por um instante” para

que possam reconhecer “com horror, a fonte e a origem de todos os males, de todos os crimes,

exatamente onde” se pretendia encontrar sabedoria. Na apresentação do tema da dissertação

explica sua intenção: “tento reunir essas verdades esparsas aqui e ali nos escritos de alguns de

nossos sábios, mas confundidas (...) que mal se fazem perceber.” Alega que as reúne “para lhes

restituir toda a sua força”. No entanto, nem todas as teses por ele defendidas – até onde se sabe –

o foram anteriormente. Nesse processo chama ao debate, direta e indiretamente, vários autores,

99 São partes do Código: “Defeitos dos princípios gerais da política e da moral”, “Defeitos particulares da política”, “Defeitos particulares da moral vulgar” e “Modelo de legislação conforme as intenções da natureza”.

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dentre os quais “os Bacon, os Hobbes, os Locke, os Pope, os Montesquieu” (p.24) e também

Rousseau100.

Morelly também tem como suposto o mito da “idade do ouro” da vida social, cujas

“sociedades americanas” há pouco descobertas corroborariam; ao avaliar a ordem social do seu

tempo como uma degeneração desse momento pretérito, analisa os motivos de sua decadência,

aponta os “erros reiterados” pela política e pela moral e, sugere – apesar de negar – as bases

necessárias para, no seu entender, “reformar” a ordem vigente, recolocando-a dentro “das leis da

natureza”.

O resultado de sua análise101 indica que o início do momento de declínio e de corrupção

se deu com a instauração da propriedade privada – ela seria a causa de todos os “efeitos”

posteriores: a avareza102, rompimento dos laços de sociabilidade, aversão às ocupações úteis,

afastamento das leis da natureza, religiões contrárias às leis naturais, fragilidade da filosofia

moral e da política, educação que perpetua os erros da moral, leis que perpetuam a corrupção,

fraqueza do poder político, degeneração dos Estados; enfim, “um amontoado de ruínas” (p.53),

cuja raiz está na propriedade privada; daí aconselhar aos governantes: “se não tiverdes cortado a

propriedade pela raiz não havereis feito nada” (p.63).

100 Moraes (1994, p.13) chama atenção particular para o fato de que Morelly diverge diametralmente da resposta dada por Rousseau no seu Primeiro Discurso à questão formulada pela Academia de Dijon. “Morelly comenta o caráter sofístico da argumentação rousseauniana, insistindo – com razão – em que, se as instituições sociais fossem más, o progresso das artes e das ciências só traria benefícios para a humanidade”. 101 Morelly (p.25) revela seu método para apreender “a verdadeira origem, a natureza, o encadeamento dos vícios e a ineficácia dos remédios que a moral vulgar pretende ministrar. Teriam conseguido, digo eu, com o auxílio dessas luzes, decompor facilmente essa moral instituída, provar a falsidade de suas hipóteses, a impotência de seus preceitos, as contradições de suas máximas, a oposição entre seus meios e fim; numa palavra, demonstrar minuciosamente as falhas de cada parte desse corpo monstruoso. Tal análise, como a das equações matemáticas, afastando e eliminando o falso, o duvidoso, acabaria mostrando o desconhecido, ou seja, a moral realmente passível das mais claras demonstrações.” 102 Além de considerá-la berço de todos os vícios, Morelly defende que a avareza teria na propriedade privada sua “expressão institucional”; percebe-se aqui uma circularidade onde uma reproduz e reforça a outra, na medida em que a avareza leva ao “sentimento” de propriedade que a amplia e se institucionaliza na propriedade privada. Decorrem da avareza: vaidade, fatuidade, orgulho, ambição, fraude, hipocrisia, perfídia – vícios que se resumem ao “desejo de ter” (p.30-1).

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Nesse quadro explicita os equívocos da moral, da política e, em especial, dos legisladores

que só faziam reiterar os mesmos erros. Defende, então Morelly - e o fará também Rousseau –

que “o primeiro elo do erro” residiria no fato de não se reconhecer que os homens não nascem

nem bons, nem maus; entende que “o homem não possui idéias e nem tendências inatas (p.27)”.

Como resume Moraes (1994, p.11):

O homem nasce indiferente: seu coração é branco como uma folha de papel não escrita. Suas carências manifestam-se pouco a pouco; sabiamente, a natureza adequou-as a suas forças. À medida que estas aumentam, crescem também os desejos e as necessidades humanas. A sabedoria da natureza foi ainda mais longe: fez com que os homens quisessem sempre um pouco mais do que aquilo de que dispunham, estabelecendo assim uma permanente tensão entre o desejo e o seu objeto. Sem esta tensão, o homem permaneceria na condição de animal meramente instintivo. Sua vida obedeceria ao ritmo ternário da carência instintiva: desejo/satisfação/indiferença/retorno do desejo/satisfação/indiferença. Como o próprio da condição humana é ter mais desejos do que possibilidades imediatas de satisfazê-los, isto é, como as carências do animal que é o homem não estão repetitivamente predeterminadas pelo instinto, ele busca nos laços sociais e no “desenvolvimento da razão” as satisfações mais complexas e nunca completas que sua constituição natural sui generis o faz almejar.

Argumenta Morelly que os “discursadores”, ao fazerem repousar sobre a natureza a

origem do mal, se eximem da necessidade de questionar “suas leis, suas regras”, em síntese,

“suas primeiras lições” (p.25), mas, sobretudo, suas instituições. Desta forma, são incapazes de

perceber que o “amor a si mesmo na ordem natural” é tão somente “um desejo constante de

conservar o próprio ser através de meios fáceis e inocentes que a Providência colocou ao nosso

alcance, e aos quais o sentimento de um ínfimo número de necessidades nos aconselhava a

recorrer” (p.26).

Afirma ainda Morelly (p.28) que também são incapazes de identificar os fundamentos e

mecanismos - ou ainda leis - da sociabilidade pautados na natureza que são, respectivamente,

“unidade indivisível do fundo patrimonial e uso comum de seus produtos” e “abundância e

diversidade desses produtos, mais amplos do que nossas necessidades, mas que só podemos obter

com labuta”.

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Morelly (p.29) ainda lembra o que “a natureza fez para dispor os homens a uma

unanimidade, a uma concórdia geral”: os faz sentir, “pela paridade de sentimentos e

necessidades, sua igualdade de condições e direitos, e a necessidade de um trabalho comum”;

como as necessidades não afetam a todos do mesmo modo e nem mesmo ao mesmo tempo, a

natureza “nos aconselha a abrir mão, ocasionalmente, desses direitos para cedê-los a outros, e nos

induz a fazê-lo sem dificuldade”103; previne a oposição através da abundância de um mesmo

“objeto” e com a variedade dos “desejos”; “diversidade de força, industriosidade, talentos

talhados pelas diferentes idades de nossa vida ou pela conformação de nossos órgãos” indicariam

as melhores ocupações; o cansaço decorrente do trabalho solitário em busca da satisfação de

nossas necessidades sempre crescentes faz “compreender a necessidade de recorrer a auxílios” e

aceitar os “atrativos e vantagens de uma poderosa reunião, de uma sociedade”.

Esse conjunto de fatores faz Morelly assim conceber a vida em sociedade quando regida

pelas leis da natureza (1994, p.29-30, 37n16):

Tudo é compassado, tudo é ponderado, tudo é previsto no maravilhoso autômato da sociedade, suas engrenagens, seus contrapesos, seus mecanismos, seus efeitos: se há contraposição de forças, é uma oscilação sem abalo ou um equilíbrio sem violência, tudo é levado, tudo é conduzido para um único objetivo comum. Esta máquina, em suma, embora composta de partes inteligentes, em geral opera independentemente da razão delas em muitos casos particulares; as deliberações desse guia são evitadas e não o deixam senão como espectador do que é efetuado pelo sentimento. Pode-se, pois dizer com Cícero: A natureza, sem estudo, fez nascer em nós um débil conhecimento das maiores verdades, ela própria semeou a virtude.

Essa lógica é que deveria ser mantida pela moral, pela política, pelas leis. Essas últimas

deveriam ter a função de fazer “apenas lembrar e recolocar em vigência a primeira lei natural de

sociabilidade” (p. 52). Para Morelly tanto o direito civil como o “direito das gentes” se apoiariam

103 Esclarece Morelly na página anterior (p.18): “O mundo é uma mesa guarnecida o suficiente para todos os convivas, aos quais pertencem todas as iguarias, ou a todos, porque todos estão com fome, ou apenas a alguns, porque os outros estão saciados; assim, ninguém é seu dono nem tem o direito de pretender sê-lo”.

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em princípios falsos (p.55); a educação – que se fosse de acordo com os princípios naturais

“preveniria qualquer vício” – é fundada nesse equívoco e, portanto, só faz os homens

degenerarem cada vez mais.

Defende Morelly uma “lógica” compatível com a própria natureza, e essa lógica deveria

coordenar as diversas forças sociais com a capacidade do indivíduo – essa seria síntese do cuique

suum, ou seja, a cada um o seu, que deve presidir a distribuição dos direitos e dos deveres (p.30).

Esse princípio orientador só é passível de ser alcançado quando se percebe e se admite

que “o todo vale mais que a parte”, que a “humanidade inteira vale mais que o melhor dos

homens, e uma nação é preferível à mais respeitável família e ao mais respeitado cidadão” (p.67).

Só assim se pode manter a “igualdade natural” de todos os homens – que para o pensador é a base

da harmonia social (p.88) – só assim é possível, como sinaliza Moraes (p.12), “fazer rimar

sociabilidade com felicidade”.

Porém, os “sábios da Europa” insistiriam em não ver o que é tão simples e reiteram os

seus termos. Nesse sentido, eles recomendariam aos “povos americanos”:

Meus amigos, louvo e admiro a humanidade com que vos ajudais mutuamente, o zelo infatigável com que trabalhais em comum para atender a vossas necessidades comuns; mas acreditai-me, vós possuís vastas áreas que ninguém vos disputa; desmatai esses ermos; a terra deve ser fértil; depois partilhai entre vós esses campos; mas observai uma coisa: não é preciso que as partes sejam iguais, nem que todos entrem na partilha; pois, assim, cada qual trabalhando para si e podendo sobreviver com o produto de sua área, ninguém haveria de querer ajudar seu vizinho; além disso, as sucessões, as alianças, o aumento do número de famílias logo provocariam novas divisões que destruiriam a igualdade das primeiras. Portanto, nessa distribuição das terras, é preciso guardar certas proporções; alguns cidadãos terão mais do que os outros: eles formarão a principal categoria da república, sendo como que a depositária dessas riquezas; dela extraireis vossos chefes e vossos conselheiros; eles decidirão vossas diferenças: por causa desses serviços é conveniente que eles sejam um pouco mais abastados do que os outros. O resto do povo será dividido em várias classes, cujas posses irão decrescendo até a última delas, composta de pessoas que vivem de seu trabalho, de todas as espécies de artesãos aos quais os outros cidadãos entregarão todos os serviços penosos, a troco de pagamento diário; assim, essas pessoas serão como os braços da sociedade. (p.43-4).

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Para Morelly, deduz-se, essa seria proposta básica do contrato social que, a rigor, entende

ser posterior à origem da sociedade. Uma sociedade, independentemente de sua extensão

territorial ou de sua densidade demográfica, “deve seu início a uma ou várias famílias

associadas”. A assembléia marcaria a “origem de sua sociedade”, mas o contrato não garantiria

os laços de sociabilidade necessários à sua manutenção, conforme as leis da natureza (p.49-51).

Para isso também concorreria de maneira precípua aquilo que Morelly denomina de

“verdadeira liberdade política ou civil do homem”. Aqui esse pensador rechaça sua versão

individualista que, em seu entendimento, faria com que os homens vivam “isolados como as

plantas”, i.e., “nada de sociedade”, posto que seria um “estado de completo abandono”.

Para Morelly a verdadeira liberdade implica em dependência mútua – mas a dependência

mútua entre homens absolutamente iguais, onde todos, simultânea e alternadamente, comandam e

servem, socorrem e são socorridos, onde, enfim, não há “senhor nem escravo” (p.60); mesmo o

exercício de cargos e funções – já que inevitáveis – não levariam ao domínio posto que “não

podem existir tiranos numa sociedade em que toda autoridade consiste exatamente em assumir os

mais penosos deveres e cuidados” (p.41-2). Assim, define a “verdadeira liberdade civil ou

política” como “gozar, sem obstáculos nem temores, tudo o que pode satisfazer seus apetites

naturais e, portanto, muito legítimos”, desde que essa “combinação de causas” fosse respeitada

(pp.59-60).

Ao discorrer sobre as regras que um governo sábio poderia instituir de modo a manter as

nações selvagens próximas às leis da natureza, Morelly (p. 41) resume a essência da quarta e

última parte de seu livro104:

104 Essa parte está subdivida nas seguintes e respectivas seções; “Leis Fundamentais e Sagradas” (“que erradicariam os vícios e todos os males de uma sociedade”, composta de 3 artigos); “Leis Distributivas ou Econômicas” (com 12 artigos, discorre sobre a organização das famílias, tribos, cidades ou províncias de modo a permitir uma distribuição igual dos produtos e do trabalho – isto é, do ônus e bônus -, bem como a interdição do comércio interno e das

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A concórdia e a união que o reformador encontrou entre as famílias, o respeito pelos anciãos, pelos mais inteligentes, pelos mais hábeis, aumentarão na proporção das realizações obtidas pelo trabalho de comum acordo e dos conhecimentos sobre a utilidade de novos expedientes. A deferência desses índios diante dos conselhos dos mais prudentes é maior do que nossa obediência às ordens de nossos senhores despóticos. O ponto de honra que ainda persiste entre os selvagens vizinhos de nossas colônias é julgar-se grande apenas na medida em que se é útil para os companheiros; numa palavra, nessas regiões a pessoa só se torna respeitável pelos serviços que presta. Todas essas virtudes autênticas, longe de se debilitar com as disposições do novo legislador, serão encorajadas e assumirão um novo brilho conforme a barbárie for desaparecendo com suas leis; ao invés de homens indóceis a seus dispositivos, todos aplaudirão, todas as circunstâncias se mostrarão favoráveis a seus desígnios, desde que ele não imponha nenhuma partilha, nem dos produtos da natureza, nem dos da arte: ele poderá distribuir as tarefas, os serviços entre os membros da sociedade, estabelecer o tempo das diversas ocupações gerais ou particulares, combinar os recursos, calcular os diferentes graus de utilidade de tais e tais profissões, definir a contribuição de cada uma delas à República para atender às necessidades de todos os seus membros. A partir disso e do número dos agentes, o legislador estabelecerá as proporções do trabalho; ele indicará as pessoas com a idade de maior prudência para a manutenção da ordem e da economia, e a de maior robustez para a execução. Enfim, definirá as posições de cada indivíduo particular, não sobre quiméricas dignidades, mas sobre a autoridade natural que o benfeitor granjeia sobre o beneficiário, sobre essa doce autoridade do parentesco, da amizade, da experiência, da habilidade, da diligência e da atividade. (p.41)

Vale ressaltar que admite Morelly restrições à “primeira lei natural de sociabilidade” –

isto é, a “unidade indivisível do fundo patrimonial e uso comum de seus produtos” – e isso se

revela na quarta parte do livro: poderão ser apropriadas individualmente as coisas usadas

efetivamente “seja para suas necessidades, seus prazeres ou seu trabalho diário” (p. 105). Mas

segundo Volguine (apud MORAES, 1994, p.11-12) essa “propriedade privada” dentro do

“sistema comunista de Morelly”, evidencia “os limites econômicos da perspectiva histórica do

século XVIII”.

relações comerciais externas): “Leis Agrárias” (com 13 artigos, normatiza, a rigor, não só o trabalho agrário, mas o trabalho em geral e a disposição e ocupação das cidades); “Leis de Ordenamento Social” (10 artigos voltados para o trabalho, sua organização e jornada); “Leis Suntuárias” (13 artigos que discorrem sobre a organização e administração da cidade, com ênfase nas funções executivas que, cf. o nono artigos, não se confundem com as legislativas); “(Leis da Administração do Governo)” (12 artigos cujo caput já esclarece o conteúdo); “Leis Conjugais” (“que impediriam qualquer devassidão”, com 13 artigos); “Leis de Educação” (“que impediriam as conseqüências da cega indulgência dos pais em relação aos filhos”, com 12 artigos); “Leis dos Estudos” (“que impediriam os extravios do espírito humano e qualquer divagação transcendente”, com 8 artigos) e “Leis Penais” (“em número tão reduzido quanto as prevaricações e tão brandas quão eficazes”, com 14 artigos).

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De fato, soa mais forte o conjunto de sua teoria – uma defesa intransigente da eliminação

da propriedade privada, conferindo a todo cidadão o caráter de “homem público” e, como tal,

“sustentado, mantido e empregado às expensas do público” (p.106) – que através de leis gerais e

distributivas garante justiça.

2.3.3 As origens das desigualdades e uma nova proposta de contrato social

Esta seção é dedicada a Rousseau (1712-1778), pensador que, diferentemente de vários

outros que integram essa unidade, dispensa apresentações. Contudo, vale lembrar que, como

sinaliza Chauí (1983) é um pensador, por um lado, assistemático e avesso à conceituação

acadêmica e, por outro, constituído por “idéias radicadas profundamente na vida do autor e da

qual não podem ser desligadas” (p.VII); mas aqui serão apresentadas apenas algumas noções que

sustentam sua concepção de justiça em função das características deste trabalho.

Para tal, utiliza-se tanto o Segundo Discurso como Do Contrato Social, motivo pelo qual

levou à apresentação desta seção com sub-temas comuns às duas obras. Justifica-se esse

procedimento na medida em que a primeira obra denuncia a ordem social vigente e a segunda

fala de como deveria ser constituída uma ordem social para que não degenerasse; portanto, é

através desta última que se melhor vislumbra a proposta desse pensador.

Rousseau - em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os

Homens (1754/55) – atendendo a mais uma convocatória da Academia de Dijon105, inicia seu

105 Kersffeld (2006) indica como contexto de produção da obra de Rousseau a “efetiva entrada da França no desenvolvimento industrial capitalista” (p.394); situa-o “como testemunha privilegiada do processo de industrialização”, do “incremento demográfico” (da ordem de 30% ao longo do século XVIII) e do aumento tanto “da renda proveniente do campo” (em torno de 60%) como da “frota e da rede viária” que impulsionaram o comércio interno e externo francês. Apesar de apresentar um desenvolvimento econômico – que, segundo esse autor, poderia ser equiparado ao desenvolvimento industrial na Inglaterra – somente uma minoria (burgueses e “certas frações de uma aristocracia com mentalidade claramente capitalista”) se beneficiava dessa modernização econômica. Sob a

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Segundo Discurso identificando dois tipos de desigualdade: a “natural ou física” e a “moral ou

política”. A primeira “consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das

qualidades do espírito e da alma”; já a segunda decorre de uma convenção106 e “é estabelecida ou,

pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens”, consistindo “nos vários privilégios de

que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e

homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles.”

Para discursar sobre a desigualdade entende ser necessário, como sinaliza Arbousse-

Bastide (1983), distinguir o “homem como deveria ser” (remetendo-se à idéia do estado de

natureza original) do “homem em que se transformou” (p.205). Nas palavras de Rousseau

(1983a, p.235):

De que se trata, pois, precisamente neste Discurso? De assinalar, no progresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito107 à violência, submeteu-se a natureza à lei; de explicar por que encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir ao fraco, e o povo a comprar uma tranqüilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real.

Estabelecendo um diálogo com predecessores e contemporâneos (Locke, Montesquieu,

Grócio, Pufendorf, Burlamarqui, Aristóteles e Hobbes) afirma que pensam o “homem selvagem”

a partir das características do “homem civil”, do homem que vive em sociedade com toda sua

monarquia de Luis XV (1723-1774) ocorreram crises inflacionárias e recessivas que impactaram os ganhos dos trabalhadores da cidade e do campo – só que neste caso, a eliminação sempre crescente das antigas formas de produção teve efeito mais drástico, além de um sistema tributário que os onerava especialmente e alteraria seu modo de vida e sociabilidade (p.396). Lembra ainda esse autor o contexto já retratado na seção acima citada, bem como o fortalecimento de publicações – literárias ou não – que manifestavam protestos e utopias, usando a polaridade tanto entre natureza e cultura como entre campo e cidade (p.398). Em 1753 foi proposta a questão: “Qual a origem da desigualdade entre os homens e será ela permitida pela lei natural?” Diferentemente do que aconteceu com o Primeiro Discurso - (“Discurso sobre as Ciências e as Artes”) cuja questão proposta por essa mesma Academia era “O restabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?” –- seu Segundo Discurso não foi premiado. 106 Machado (1983, p.230n30) destaca que a concepção rousseauniana de que “a sociedade só pode ter nascido de uma convenção” é oposta à concepção da escola de direito natural (ou jusnaturalista). Acrescente-se ainda a importância da enunciação desse postulado numa época em que ainda se creditava à inspiração divina os mandatos e as legislações. A esse propósito assevera esse autor (p.245n58) que Rousseau argumenta que “os deuses foram inventados pelos homens para dar autoridade às descobertas humanas”. 107 Assevera Machado (1983, p.26n33) que: “Direito, no vocabulário de Rousseau, corresponde exatamente a um conceito moral fundado na razão. Um fato não faz, nem desfaz um direito, pois o direito deriva da convicção de serem ou não legítimos determinados fatos.”

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degenerescência. Entende que, mesmo em se tratando de “raciocínios hipotéticos e condicionais”,

essa separação é fundamental para o esclarecimento da “natureza das coisas”. Arbousse-Bastide

(1983) evidencia, nessa busca conjetural de Rousseau, cinco estágios pelos quais passou a

humanidade a caminho da desigualdade. Esses estágios serão resumidamente apresentados nas

seções seguintes.

2.3.3.1 O estado de natureza em Rousseau

Rousseau apresenta um estado de natureza diametralmente oposto ao de Hobbes, posto

que concebido como um momento no qual os seres humanos viveriam isolados pelas florestas.

Do ponto de vista físico o homem seria forte, instintivo, auto-suficiente e seu corpo seria seu

único instrumento.

Em seu aspecto “metafísico e moral” o homem, tal qual os animais, “tem idéias, posto que

tem sentidos”; através dos sentidos, percebe e sente. O entendimento humano é atribuído às

paixões que provém das necessidades – que nesse momento se resumem ao desejo de nutrição,

reprodução e repouso, bem como ao temor da dor.

Contudo, o que diferenciaria o homem do animal seriam suas capacidades de agir

livremente (no sentido de poder concordar ou resistir às ordens da “natureza que manda em todos

os animais”, evidenciando a “espiritualidade de sua alma”) e de se transformar, com o auxílio das

circunstâncias, tanto física (pela velhice, por exemplo) como moralmente (pelas circunstâncias ou

“por outros acidentes”)108. Suas “módicas necessidades” são facilmente atendidas e mesmo a

108 Essa capacidade de autotransformação tanto permite ao homem no estado de natureza garantir sua sobrevivência, como também é responsável por levar o homem à sua própria degeneração.

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relativa à reprodução não implica necessariamente em relações sistemáticas (entre machos e

fêmeas) e nem mesmo violentas (entre machos), pois não haveria fêmeas a disputar.

Nesse momento da história da humanidade o homem é amoral, pois não conhece o bem e

nem mesmo o mal - mas apresenta um primeiro instinto moral natural que é a conservação de si

mesmo; porém, como ressalta Rousseau, a conservação de si não implica necessariamente em

lutar, matar ou escravizar outrem ou o desejo de “domínio universal”; esse instinto, portanto, não

implica em impor prejuízo ao outro – não ser bom, não significa necessariamente ser mal, mas

sim “o coração estar em paz e o corpo com saúde”.

Do princípio da conservação de si, tem-se outro também natural109 – a piedade – um

sentimento anterior à reflexão110 e que “suaviza a ferocidade” de seu desejo de conservação.

Entende Rousseau que a piedade é uma “virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem

quando nele precede o uso de qualquer reflexão, e tão natural que as próprias bestas às vezes dão

delas sinais perceptíveis (p.253)”; a piedade, assim, “concorre para a conservação da espécie”,

funcionando como um “freio salutar”. Resume Rousseau (1983a, p.256-7):

Concluamos que, errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus semelhantes, bem como sem qualquer desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos do que a vaidade. Se por acaso descobria qualquer coisa, era tanto mais incapaz de comunicá-la quanto nem mesmo reconhecia os próprios filhos. A arte perecia com o inventor. Então não havia nem educação, nem progresso: as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do

109 Esclarece Machado (1983, p.23n19) que “em Rousseau o conceito de ‘natural’ inclui o de necessário. 110 Arbousse-Bastide (1983, p.231n31) evidencia uma remissão do instinto de conservação de si ao egoísmo e da piedade ao altruísmo. Em nota posterior (252n74) comenta que, no Capítulo IV do Ensaio sobre a Origem das Línguas, Rousseau faz uma inflexão sobre a piedade como anterior à razão, concluindo que “a piedade é muito anterior à reflexão, mas só se estende a toda a humanidade por meio desta.” De fato, na nota “o”, Rousseau esclarece (p.306-7): “O amor de si é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigida pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude.” Machado (1983, p.36n75) lembra que no Segundo Discurso Rousseau defende que tanto a moral como a razão (ao menos em seu desenvolvimento completo) representam produtos da vida social.

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mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre criança.

No estado de natureza de Rousseau mesmo a desigualdade natural não é significativa, pois

os que sobrevivem no processo de adaptação têm o mesmo modo de vida e as mesmas

necessidades. Contudo, o aumento do “gênero humano”, por um lado, e adversidades naturais

(tais como altura das árvores, presença de animais de grande porte etc.) por outro, levaram o

homem ao aumento do seu trabalho: entregou-se aos exercícios do corpo, descobriu armas

naturais (galhos e pedras), aprendeu a dominar obstáculos da natureza, a combater com outros

animais quando necessário e a “disputar sua subsistência com os próprios homens ou a

compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte (p. 260)”; a adaptação a essa situação,

bem como às condições naturais (estações do ano e região geofísica) leva à invenção da pesca, da

caça, da vestimenta e do fogo.

Essa adequação reiterada dos vários seres a si mesmos e de uns a outros levou, naturalmente, o espírito do homem a perceber certas relações. Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande, pequeno, forte, rápido, lento, medroso, ousado e outras idéias semelhantes, comparadas ao azar da necessidade e quase sem pensar nisso, acabaram por produzir-lhe uma certa espécie de reflexão, ou melhor uma prudência maquinal, que lhe indicava as precauções mais necessárias à sua segurança. As novas luzes, que resultaram desse desenvolvimento, aumentaram sua superioridade sobre os demais animais, dando-lhe consciência dela. (...). Assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo produziu-lhe o primeiro movimento de orgulho; assim, apenas distinguindo as categorias por considerar-se o primeiro por sua espécie, dispôs-se desde logo a considerar-se o primeiro como indivíduo. (p.260-1)

A observação do comportamento do outro em “circunstâncias idênticas” fez com que o

homem percebesse “que suas maneiras de pensar e de sentir eram inteiramente conformes à sua”,

ou seja, “ser o amor ao bem-estar o único móvel das ações humanas”. Rousseau entende que

nesse processo os homens começaram a desenvolver “certa idéia grosseira dos compromissos

mútuos e da vantagem de respeitá-los” para que tarefas específicas, eventuais e momentâneas

fossem realizadas. Para a consecução desses empreendimentos em conjunto a linguagem ainda

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não era necessária – “gritos inarticulados, muitos gestos e alguns ruídos imitativos” eram

suficientes para sua realização.

2.3.3.2 A “Idade de Ouro”

Saltando “multidões de séculos”, pois segundo Rousseau os primeiros progressos

anteriormente descritos não alteraram significativamente as condições do homem – até mesmo

em função de sua impossibilidade de transmissão de conhecimentos -, chega ao que considera a

“idade do ouro” da humanidade. Esses primeiros progressos colocaram o homem em condições

de alcançar outros e de modo mais rápido, pois, para Rousseau, “quanto mais esclarecia o

espírito, mais se aperfeiçoava a indústria” (p. 262). Descobrira o machado de pedra que permitiu

“cortar a lenha, cavar a terra, e fazer choupanas de ramos que logo resolveu cobrir de argila e

lama”.

O homem cria a habitação considerada juntamente com as vestes “coisas pouco

necessárias, pois tinha passado até então sem elas” (p. 242); porém, diferentemente da

vestimenta, a habitação “determinou o estabelecimento e a distinção das famílias” e, sobretudo,

“introduziu uma espécie de propriedade”.

Pressupondo que essas habitações foram criadas pelos mais fortes e considerando a

conservação de si, Rousseau infere que foi provavelmente mais fácil para os mais fracos

construírem outras habitações que tentar tomá-las. Assim, “cada família tornou-se uma pequena

sociedade” unida por afeição recíproca e com base na liberdade; isso levou ao início da

diferenciação entre os sexos (o homem caçava e a mulher cuidava da prole) e à diminuição da

“ferocidade e vigor” até então comum ao homem e a mulher.

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Nesse novo estado, numa vida simples e solitária, com necessidades muito limitadas e os instrumentos que tinham inventado para satisfazê-las, os homens, gozando de um lazer bem maior, empregaram-no na obtenção de inúmeras espécies de comodidades desconhecidas por seus antepassados; foi o primeiro jugo que, impensadamente, impuseram a si mesmos e a primeira fonte de males que prepararam para seus descendentes, pois, além de assim continuarem a enfraquecer o corpo, essas comodidades, perdendo pelo hábito quase todo o seu deleite e degenerando ao mesmo tempo em verdadeiras necessidades, a privação se tornou mais cruel do que doce fora sua posse, e os homens sentiam-se infelizes por perdê-las, sem terem sido felizes por possuí-las (p.262).

A convivência próxima no âmbito da habitação e ocorrência de cataclismos naturais que

insularam os homens, os obrigaram a viver juntos, levando à formação de “um idioma comum,

mais facilmente do que entre aqueles que erraram livremente nas florestas das terras firmes”111.

Como diz Rousseau, nesse momento “tudo começa a mudar de aspecto”; em decorrência

da habitação, instituiu-se, de uma só vez, uma primeira forma de propriedade e a família e com

ela a diferenciação do trabalho entre os sexos. Ademais a conseqüente necessidade de

convivência entre as diferentes famílias para enfrentar as adversidades, forma lentamente “em

cada região, uma nação, una de costumes e caracteres, não por regulamentos e leis, mas, sim pelo

mesmo gênero de vida e de alimentos e pela influência comum do clima” (p.263).

Essa aproximação física e necessária ao trabalho, leva à convivência mútua; com a

capacidade de observação já mais desenvolvida os homens fazem comparações e através dela

“adquirem idéias de mérito e beleza, que produzem sentimento de preferência”; surge o amor e o

ciúme, com o triunfo da discórdia. Dentre sentimentos e idéias que se desenvolvem a partir de

então, o mais nefasto é o sentimento de “estima pública” – que todos passaram a ter e em um

grau maior do que o outro; do ponto de vista moral,

foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro,

111 Rousseau parte da hipótese de que “as línguas tenham nascido nas ilhas e aí se aperfeiçoado antes de serem conhecidas no continente (p.263).” Ademais, essa explicação reforça sua defesa de que a vida em comum não provém das necessidades naturais, mas sim de circunstâncias e eventualidades que obrigam o homem ao convívio com outros.

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110

a vergonha e a inveja. A fermentação determinada por esses novos germes produziu, por fim, compostos funestos à felicidade e à inocência (p.263).

Desse processo surgiram os “primeiros deveres de civilidade mesmo entre os

selvagens”112; a “afronta voluntária tornou-se ultraje” porque entendida como “desprezo pela sua

pessoa, freqüentemente mais insuportável do que o próprio mal” (p.263). E assim, já com uma

“certa alteração” da piedade natural, os homens introduzem a moralidade, policiam os costumes e

punem cada vez mais cruelmente os “contraventores”. Nas palavras de Rousseau: “o temor das

vinganças ocupam o lugar de freio das leis” (p.264).

2.3.3.3 O avanço da desigualdade: a propriedade

Se no estado natural a desigualdade natural não é significativa e inexiste a desigualdade

moral ou política, os progressos vividos na Idade do Ouro já colocam os “germes dos males

futuros”: a diferença entre os sexos, o sentimento de propriedade e, agora, o amor-próprio. Novas

formas de trabalho, ainda dentro da lógica da subsistência comum, foram se construindo; porém

com a metalurgia e a agricultura essa diferenciação alcança novo patamar posto que, por um lado,

os homens não mais trabalham somente para a subsistência comum113 e, por outro, do cultivo da

terra “resultou necessariamente a sua partilha”, a partir da posse contínua em função do trabalho

que o homem sistematicamente colocou na terra (p.266).

112 Arbousse-Bastide (1983, p.264n90) comenta que Rousseau “distingue, implicitamente, duas espécies de selvagens”: os bons selvagens (que conservaram a simplicidade do estado de natureza original” e que, a rigor, “seriam antes ‘primitivos’”) e os maus selvagens (“que aprenderam os vícios da corrupção social sem equilibrá-los com as vantagens da civilização – seriam antes “bárbaros”). De qualquer modo, sinaliza Machado (1983) que Rousseau recupera definitivamente o mito do bom selvagem com o Segundo Discurso. 113 Nas páginas 226-7, Rousseau detalha esse processo enfatizando que o que era desigualdade natural (referindo-se aos talentos, tais como força, habilidade, engenhosidade) implica em uma “desigualdade de combinação” a partir da qual os menos dotados mesmo “trabalhando igualmente, um ganhava muito enquanto outro tinha dificuldade de viver. Assim, a desigualdade natural insensivelmente se desenvolve junto com a desigualdade de combinação, e as diferenças entre os homens, desenvolvidas pelas diferenças das circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes em seus efeitos e, em idêntica proporção, começam a influir na sorte dos particulares.”

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111

É recompondo esse momento que Rousseau inicia a segunda parte desse Discurso:

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!” Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como eram, pois essa idéia de propriedade, dependendo de muitas idéias anteriores que só poderiam ter nascido sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração para geração, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza (p.259-260).

Do reconhecimento da propriedade decorrem “as primeiras regras de justiça, pois, para

dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa” (p. 266). Ademais, são

fundamentais quando se tem consciência da possibilidade de sua perda, seja pela represália dos

danos que se podia causar a alguém, bem como pela precariedade do título – já que apoiado

somente “num direito precário e abusivo” adquirido pela força.

Rousseau desfia uma série de “vícios” que decorrem da instituição da propriedade – a

riqueza leva à ambição, a concorrência, a rivalidade de interesses – todos indicados como germes

do mal que são levados ao extremo resultando na distinção entre “ser” e “parecer ser”. Nesse

processo, o homem torna-se escravo (mesmo sendo senhor) de suas necessidades e de seus

semelhantes. É o contexto que possibilita a servidão e a dominação, bem como um verdadeiro

“estado de guerra”:

Ora, quando as heranças cresceram em número e extensão, a ponto de cobrir todo o solo, e tocaram-se umas às outras, uns só puderam prosperar a expensas dos outros, e os supranumerários, que a fraqueza ou a indolência tinham impedido por seu turno de as adquirir, tendo se tornado pobres sem nada ter perdido, porque, tudo mudando à sua volta, somente eles não mudaram, viram-se obrigados a receber ou roubar sua subsistência da mão dos ricos. Daí começaram a nascer, segundo os vários caracteres de uns e de outros, a dominação e a servidão, ou a violência e os roubos. (...). Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem; assim

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112

as usurpações dos ricos, as extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, abafando a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o direito do mais forte e o do primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates e assassinatos. A sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar sobre seus passos nem renunciar às aquisições infelizes que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar senão para sua vergonha, abusando das faculdades que os dignificam. (p.267-8)

É pela consciência dos riscos pessoais e patrimoniais que correm numa contenda

permanente (“na qual nem ricos e nem pobres encontram segurança”) que os proprietários criam

instituições que lhe são favoráveis tanto “quanto lhe era contrário o direito natural”. Rousseau

assim critica a celebração desse pacto que evolui sem uma boa direção:

“Unamos-nos”, disse-lhes, “para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence; instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a conformar-se, que não abram exceção para ninguém e que, submetendo igual a deveres mútuos o poderoso e o fraco, reparem de certo modo os caprichos da fortuna. Em uma palavra, em lugar de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da associação114, expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna”. Fora preciso muito menos do que o equivalente desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de seduzir, que aliás tinham questões para deslindar entre si, que não podiam dispensar árbitros e possuíam demasiada ambição para poder por muito tempo dispensar os senhores. Todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade, pois, com muita razão reconhecendo as vantagens de um estabelecimento político, não contavam com a suficiente experiência para prover-lhes os perigos: os mais capazes de pressentir os abusos eram precisamente aqueles que contavam aproveitar-se deles, e até os prudentes compreenderam a necessidade de resolverem-se sacrificar parte de sua liberdade para conservar a do outro, como um ferido manda cortar um braço para salvar o resto do corpo. Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos,

114 Vale notar que nesse trecho, em função do engodo daquele que discursa, Rousseau fala em “associação” e não em sociedade; desta forma, marca a um só tempo, a sociedade tal como ela é (“Caso me respondam que a sociedade é constituída de tal modo que cada homem lucra auxiliando os outros, replicarei que isso seria muito bom se ele não lucrasse mais ainda prejudicando-os” – p. 292) e como deveria ser (como compromisso recíproco de todos com todos e de todos com o todo, formando uma “conexão substancial entre dever e interesse”); esta última evidencia o que Machado (1983, p.35n69) denomina de “síntese social (base de toda a sociologia moderna) para a qual o individual e o coletivo são simples aspectos especiais de uma mesma realidade”.

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daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria (p.269-270).

2.3.3.4 De ricos e pobres a poderosos e fracos

Criada a sociedade política com algumas convenções gerais – mas também com a perda

da liberdade e do direito natural – “a falta de filosofia e experiência” fez com que o estado115

político fosse “sempre imperfeito”, remendando-se, sem “corrigir os vícios de constituição”.

Novo pacto é realizado e por ele a sociedade dá a si mesma um governo116. Mas a fragilidade de

suas convenções e as possibilidades de infringi-la levaram a que “se pensasse em confiar a

particulares a perigosa custódia da autoridade pública e se delegasse a magistrados o cuidado de

fazer observar as deliberações do povo”. Estava dada a base para um novo progresso da

desigualdade.

Rousseau lembra que o governo existe “para que nos preserve de ter um senhor” (p.272) e

nesse sentido defende que não há uma tendência natural à servidão; ao contrário, concebe a

liberdade como indissociável do homem, não podendo ser alienada. Aqui contesta Punfendorf

explicitamente e a Locke implicitamente:

Além disso, o direito de propriedade sendo apenas de convenção e instituição humana, qualquer homem pode a seu arbítrio dispor daquilo que possui; isso porém, não acontece com os bens essenciais da natureza, tais como a vida e a liberdade, de que cada um pode gozar e dos quais é pelo menos duvidoso se tenha o direito de despojar-se. Destituindo-se de uma, degrada-se o ser;

115 Machado (1983, p.35n72) chama atenção para o fato de que no pensamento de Rousseau, o Estado é um ente real, mas, sobretudo moral, posto que “só a vontade racional pode criá-lo”; e nesse caso, foi criado de forma “imperfeita” posto que atendendo às necessidades dos ricos e não as comuns. Sua “solução” como já foi mencionado é apresentada na seção 3.1.6. 116 Rousseau (1983b, Livro III) defende que o governo deve ser uma instância intermediária, encarregada da execução das leis e da manutenção da liberdade tanto civil como política que tem sua origem em decisão deliberativa convencionada. “Chamo, pois de Governo ou administração suprema o exercício legítimo do poder executivo, e de príncipe ou magistrado o homem ou o corpo encarregado dessa administração (p.75).” Contudo, neste Segundo Discurso – lócus em que Rousseau analisa o que vê – uma organização degradada, mas sempre resultado da ação humana -, pode ser interpretado no sentido corrente.

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114

destituindo-se de outra, anula-se quanto exige em si próprio, e, como nenhum bem temporal pode dispensar-se de uma e de outra, constituiria ofensa às leis da natureza e à razão renunciar a elas a qualquer preço. Mas, ainda que se pudesse alienar a sua liberdade como a seus bens, a diferença seria muito grande para os filhos que só gozam dos bens do pai pela transmissão de seu direito, enquanto, sendo a liberdade um dom que lhes advém da natureza pela qualidade de homem, seus pais não têm qualquer direito de despojá-los dele. De modo que, assim como para estabelecer a escravidão precisou-se violentar a natureza, foi necessário modificá-la para perpetuar esse direito e os jurisconsultos que pronunciaram gravemente nascer escravo o filho de um escravo resolveram, em outras palavras, que um homem não nasceria homem.

Desta forma, defende que se o pacto entre o povo e o soberano se rompe deve voltar-se

imediatamente à liberdade, posto que “não era o magistrado, mas a lei, que constituíra a essência

do Estado” (p. 276). Contudo isso não se dá e a religião contribuiu para esse processo conferindo

“uma base mais sólida que a pura razão” ao sacralizar a autoridade soberana.

2.3.3.5 Senhor e escravo: último grau da desigualdade ou o retorno à igualdade

Em princípio, as magistraturas em todos os governos teriam sido eletivas e recaíam sobre

os homens com idade avançada; contudo, o perfil dos indicados tornava as eleições mais

freqüentes e as dificuldades que as circundavam: formação de tramas e distensões, partidos

exaltados, guerras civis se ateavam. Essas foram circunstâncias das quais os mais ambiciosos se

aproveitaram para “perpetuar seus mandatos em suas famílias”, tornando-os hereditários. Os

chefes logo “acostumaram-se a considerar a magistratura como um bem de família e a si próprios

proprietários do Estado, do qual a princípio” eram funcionários; os súditos - por sua vez,

acostumados com a dependência e incapazes “de quebrar seus próprios grilhões”, consentiram em

“deixar aumentar a sua servidão para assegurar sua tranqüilidade” – logo foram chamados de

escravos e incorporados aos bens dos reis.

Assim resume Rousseau:

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115

Se seguirmos o processo da desigualdade nessas diferentes revoluções, verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a instituição da magistratura, o segundo. Sendo o terceiro e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário. Assim, o estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira época; o de poderoso e de fraco pela segunda; e, pela terceira, o de senhor e escravo, que é ultimo grau da desigualdade e o termo em que todos os outros se resolvem, até que novas revoluções dissolvam completamente o Governo ou o aproximem da instituição legítima (p.277).

Entende Rousseau que as distinções políticas – magistraturas e cargos por ela criados e

delegados – levam as distinções civis que fazem crescer “a desigualdade entre o povo e seus

chefes”; essa situação se reproduz entre os particulares que, movidos por uma ambição cega,

chegam ao ponto de consentirem em “carregar grilhões para por sua vez poder aplicá-los”. Como

diz Rousseau: “é muito difícil reduzir à obediência aquele que não procura comandar e o político

mais esperto não conseguiria submeter homens que só desejassem ser livres” (p.278).

Assim, a desigualdade de consideração e de autoridade “torna-se inevitável entre os

particulares”, mesmo sem a participação direta do Governo, já que os homens comparam-se entre

si e tomam “conhecimento das diferenças reveladas no uso contínuo que têm de fazer uns aos

outros”. Para Rousseau “essas diferenças são de várias espécies”, mas destacam-se: (1) a riqueza,

(2) a nobreza ou condição, (3) o poder e o (4) mérito pessoal por serem as principais distinções

através das quais as pessoas “se medem na sociedade” e por permitirem indicar se um Estado é

“bem ou mal constituído”. Dentre esses “quatro tipos de desigualdades” a riqueza tem

preponderância, pois “sendo a mais imediatamente útil ao bem-estar e a mais fácil de comunicar-

se, servem-se dela para comprar todo o resto”.

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116

Mas a “extrema desigualdade das condições e das fortunas”, com todas as paixões que as

motivam e delas decorrem, atendem aos interesses dos chefes, pois permite que o despotismo117

se instale. Rousseau o entende como

o ponto extremo que fecha o círculo e toca o ponto de que partimos; então, todos os particulares se tornam iguais, porque nada são, e os súditos, não tendo outra lei além da vontade do senhor, nem o senhor outra regra além de suas paixões, as noções do bem e os princípios da justiça desfalecem novamente; então tudo se governa unicamente pela lei do mais forte e, conseqüentemente, segundo um novo estado de natureza, diverso daquele pelo qual começamos, por ser este um estado de natureza em sua pureza, e o outro, fruto de um excesso de corrupção. (...). A rebelião que finalmente degola ou destrona um sultão é um ato tão jurídico quanto aqueles pelos quais ele, na véspera, dispunha das vidas e dos bens de seus súditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba; todas as coisas se passam, assim, segundo a ordem natural118 e, seja qual for o resultado dessas revoluções breves e freqüentes, ninguém pode lamentar-se da injustiça de outrem, mas unicamente de sua própria imprudência ou de sua infelicidade (p.280)119.

Para Rousseau, portanto, a desigualdade moral não pode ser buscada no estado da

natureza da humanidade, mas sim nos “progressos do espírito humano”; ou seja, na passagem do

estado natural para o estado civil que através da propriedade e das leis torna-se “estável”.

Entende que essa desigualdade é “autorizada unicamente pelo direito positivo”, sendo “contrária

ao direito natural” se não ocorrer junto, “e na mesma proporção”, da desigualdade física. Em

Rousseau liberdade e igualdade são atributos indissociáveis e constituem bens naturais.

117 No Do Contrato Social Rousseau defende – como parte de sua teoria geral – que os governos que usurpam a soberania (que emana do povo na condição de corpo político – v. detalhes na seção 3.2) infringem a lei e decretam a morte do Estado que pode, no entanto, “escapar dos braços da morte” quando “abrasado por guerras civis, por assim dizer renasce da cinzas e retoma o vigor da juventude” (p.61). Contudo, as guerras civis não se constituem no único caminho para seu renascimento; como sinaliza Machado (1983, p.59n174), “a qualquer momento da vida social pode-se dar a instituição legítima” do Estado – evidenciando o caráter reformador de Rousseau. 118 Neste trecho da publicação Paul Arbousse-Bastide comenta: “Rousseau parece predizer, para depois do Antigo Regime, a Revolução de 1789, e até a invocá-la” (1983, p.280n119). 119 Machado (1983, p.280n120) sinaliza nessa passagem a contribuição de Rousseau quando volta ao tema do tiranicídio (da maior “importância ao tempo da consolidação das monarquias nacionais e das lutas religiosas”, mas também motivo de maiores perseguições sob a égide do despotismo esclarecido) fazendo “uma de suas maiores contribuições ao espírito revolucionário em formação, rebaixando o rei à sua condição de homem falível e, sobretudo, de criminoso punível.”

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117

2.3.3.6 Os limites da desigualdade

Como mencionado anteriormente, no Segundo Discurso Rousseau busca explicar a ordem

social de seu tempo (marcada pela desigualdade, pela servidão, pela injustiça) através da

reconstrução de certa história conjetural; ao assim proceder Rousseau define os critérios que

devem pautar uma sociedade marcada pela sua concepção de justiça; é esse o tema Do Contrato

Social (1757/62), no qual Rousseau (p.21) vai procurar unir “o que o direito permite” (justiça ou

princípio) e “o que o interesse prescreve” (utilidade ou ação), de modo a permitir que essa

passagem para a liberdade civil se dê garantindo o seu “objetivo realmente natural”: “a

preservação do homem pelo grupo” (MACHADO, 1983, p.9).

Rousseau parte do suposto de que a humanidade poderia ter construído para si outra forma

de sociedade – uma sociedade justa porque fundada na liberdade (real e efetiva) e na igualdade

(ou melhor, numa igualdade limitada). E é sobre esses termos que versa essa obra ampla120 e que

aqui só terá alguns de seus aspectos referenciados.

Partindo da análise explicitada no Segundo Discurso, Rousseau reafirma que a

desigualdade entre os homens não é natural e sim resultado das convenções por eles celebradas e

que o direito do mais forte não pode ser a base de uma ordem social121.

120 Está organizado em quatro livros, cada qual com vários capítulos; no Livro Primeiro evidencia qual deve ser o fundamento legítimo de uma sociedade política; o Segundo trata das condições e limites do poder soberano; o Terceiro versa sobre o aparato governamental e o Quarto sobre as funções suplementares do governo e sua relação com as instâncias de deliberação do corpo político. No desenvolvimento desse desenho institucional amplo, Rousseau polemiza com vários pensadores e tradições, aproveitando-se de algumas concepções para desenvolver seu pensamento de forma extremamente original. 121 Machado (1983, p.25n29) cita a arguta observação de Beaulavon relativa à inovação de Rousseau na teoria política ao se recusar a “reconhecer nas deficiências reais de certos homens uma justificativa para a diminuição de seus direitos”, especialmente em relação ao seguinte excerto: “Se há, pois, escravos pela natureza é porque houve escravos contra a natureza. A força fez os primeiros escravos, sua covardia os perpetuou.” Essa inovação foi especialmente importante, pois, como informa Machado (n31), no século XVIII além de afirmações teóricas a seu favor, era corrente aceitar-se a idéia do direito do mais forte como “fato consumado”; ademais ganha também relevância pelas suas decorrências - possíveis e históricas.

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O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever. Daí o direito do mais forte – direito aparentemente tomado com ironia e na realidade estabelecido como princípio. Jamais alcançaremos uma explicação dessa palavra? A força é um poder físico; não imagino que moralidade possa resultar de seus efeitos. Ceder à força constitui ato de necessidade, não de vontade; quando muito, ato de prudência. Em que sentido poderá representar um dever? (ROUSSEAU, 1983b, p.25).

Neste sentido defende que o pacto social deve constituir a origem da sociedade e não do

poder; o contrato social levaria assim, à constituição de uma nova entidade que designa de

“pessoa pública” ou “corpo político” – um corpo moral e coletivo uno, com várias “dimensões”

que se evidenciam de acordo com o exercício de suas funções e prerrogativas122.

Com essa concepção de contrato social e de organização sócio-política, Rousseau

transfigura noções anteriores: agora, não mais se trata de submissão do povo ao governante, mas

sim o povo que exercendo sua prerrogativa soberana, estabelece o padrão de suas relações

pautadas em princípios éticos e morais. Ademais, esse ente coletivo é marcado por um caráter

supra-humano - no sentido de estar acima dos contratantes particulares, deles resultando, mas

também simultaneamente, deles exigindo o cumprimento do que todos convencionaram; só assim

a soberania pode ser absoluta.

Os compromissos que nos ligam ao corpo social só são obrigatórios por serem mútuos, e tal é a sua natureza, que, ao cumpri-los, não se pode trabalhar por outrem sem também trabalhar para si mesmo. Por que é sempre certa a vontade geral123 e por que desejam todos constantemente a felicidade de cada um, senão

122 Rousseau (1983b, p.33-4) assim explicita: “(...) o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana e, súditos enquanto submetidos às leis do Estado.” Vale lembrar que é do corpo político como soberano que emana a vontade geral; o soberano deve reunir-se sempre que julgar conveniente e quanto menos óbices à esse procedimento, maior é o sinal de saúde do corpo político. 123 A vontade geral deve ser entendida como o que há de comum em todas as vontades individuais, como “substrato coletivo das consciências individuais”, “reflexo essencial do processo de socialização de cada um e de todos os indivíduos” (p.118n405); seu objeto é o interesse comum (que não pode ser confundido com o interesse de todos, pois este pode implicar em interesses particulares compartilhados por determinados grupos). Como afirma Machado (1983, p.49n124-5), “no consenso da vontade geral” cada qual deve pensar em si, pensando nos demais, e pensar nos demais, pensando em si. O egoísmo natural transforma-se no senso de justiça do homem socializado”. Nas palavras de Rousseau (p.50): “é o interesse comum que os une, pois nessa instituição cada um necessariamente se submete às condições que impõe aos outros: admirável acordo entre o interesse e a justiça que dá às deliberações comuns um

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por não haver ninguém que não se aproprie da expressão cada um e não pense em si mesmo ao votar por todos? – eis a prova de que a igualdade de direito e a noção de justiça, por aquela determinada, derivam da preferência que cada um tem por si mesmo, e, conseqüentemente, da natureza do homem; (...) (ROUSSEAU, 1983b, p. 49)

Esse corpo político estabelece convenções gerais – posto que a vontade geral (e,

conseqüentemente, as leis) nada particulariza; dentre essas convenções é também estabelecida a

forma de governo e, posteriormente, o governante que jamais poderá exceder a função de

empregado do soberano, bem como os magistrados. A rigor, o governo, seria uma instância

intermediária entre o Soberano e o povo, que operacionalizaria as determinações da vontade geral

que devem ser sistematizadas pelo “Legislador” 124.

A legislação – “única manifestação completa e direta da vontade geral” (MACHADO,

1983, p. 11) - teria dois objetivos centrais: a preservação da liberdade e da igualdade. Rousseau

entende que as convenções constituem a “base de toda a autoridade legítima existente entre os

homens”; contudo, essa convenção não pode implicar na total renúncia à liberdade, pois do

contrário renuncia-se também “à qualidade de homem, aos direitos da humanidade e até aos

próprios deveres. Não há recompensa possível para quem a tudo renuncia” (27). O modo de

conceber essa forma de associação específica é assim explicado por Rousseau (1983b, p.32):

Essas cláusulas, quando bem compreendidas, reduzem-se todas a uma só: a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa para os demais.

caráter de equidade que vimos desaparecer na discussão de qualquer negócio particular (...).”. Rousseau a concebe como “fundada numa transformação social do homem” pela vida coletiva – o que pressupõe, obviamente, uma função pedagógica sobre o homem com vistas à “incutir no comportamento individual a consciência da vontade geral” (p.35n71); esse aspecto é melhor desenvolvido na obra Emílio – na qual Rousseau defende uma educação fundada na liberdade para que através dela se aprenda tanto a não se submeter à vontade particular como também a não submeter o outro à nossa vontade (isto é: formação do cidadão como atribuição do corpo político) -, mas está delineado como uma das funções do “Legislador” que, aliás, “pela clara visão dos fins da sociedade, antecipará, pois, a tomada de consciência que em cada indivíduo, significa, realmente, a adesão ao pacto social” (p. 59n174). 124 Inspirando-se na antiga história greco-romana Rousseau defende que o legislador estaria simultaneamente dentro e fora do Estado, pois não pode ter nem poder (portanto não exerceria a soberania na condição de cidadão) e nem autoridade (situação que o afastaria de qualquer uma das funções governamentais, mas principalmente da magistratura).

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Com essa definição Rousseau concebe o Estado com um poder limitado e evidencia a

sociedade como – na condição de matriz da moral e do direito – livre em relação ao próprio pacto

fundamental, podendo, portanto, “a qualquer momento tomar novas direções que seus membros,

na medida de suas consciências, buscarão estabelecer de forma concreta” (MACHADO, 1983,

p.34n64).

Desta forma, no estado civil o homem substitui “na sua conduta o instinto pela justiça” e

dá “às suas ações a moralidade que antes lhe faltava” (ROUSSEAU, 1983b, p.36); através dessa

ação, conquista sua “liberdade moral”, pois, como explica Machado (1983, p.37n76), é a “única a

tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite é a

escravidão, e a obediência à lei que se estatui a si mesma é liberdade”. Assim resume Rousseau

(1983b, p.36-7):

Reduzamos todo esse balanço a termos de fácil comparação. O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui. A fim de não fazer um julgamento errado dessas compensações, impõem-se distinguir entre a liberdade natural, que só conhece limites nas forças do indivíduo, e a liberdade civil, que se limita pela vontade geral, e, mais, distinguir a posse, que não é senão o efeito da força ou direito do primeiro ocupante, da propriedade, que só pode fundar-se num título positivo.

Com esse excerto Rousseau antecipa sua concepção em relação ao direito de propriedade

e explicita os termos da “alienação total” que advoga. No ato de associação cada contratante

particular aliena – no âmbito de seus direitos e força – também suas posses, até aqui consideradas

indevidamente como “propriedade”. A rigor, Rousseau entende que fora de um legítimo estado

civil não há propriedade, mas sim posse – e isto porque essa “propriedade” se funda num

princípio ilegítimo, como, por exemplo, o direito do mais forte. Então, ao submeter ao Estado à

sua posse – o que não significa transferir ao Estado a sua titularidade – recebe de volta uma

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propriedade legítima (porque sancionada coletivamente), porém devidamente condicionada.

Como explica Rousseau (1983b, p.38):

Em geral, são necessárias as seguintes condições para autorizar o direito de primeiro ocupante de qualquer pedaço de chão: primeiro, que esse terreno não esteja ainda habitado por ninguém; segundo, que dele só se ocupe a porção de que se tem necessidade para subsistir; terceiro, que dele se tome posse não por uma cerimônia vã, mas pelo trabalho e pela cultura, únicos sinais de propriedade que devem ser respeitados pelos outros, na ausência de títulos jurídicos.

Com essas condicionalidades define tanto o reconhecimento do primeiro ocupante

(portanto, daquele que pode ter sido desalojado pelo uso da força) como grava a propriedade com

uma base moral que associa a subsistência, utilização e observância do direito dos outros

proprietários – ou melhor: “depositários do bem público”. Nesse quadro, como afirma Rousseau

(p.39), troca-se a “usurpação por um direito verdadeiro e o gozo, pela propriedade”125.

Rousseau admite também outra forma legítima de aquisição:

Pode também acontecer que os homens comecem a unir-se antes de possuir qualquer coisa e que, apossando-se depois de um terreno bastante a todos, o fruam em comum ou dividam entre si, seja em partes iguais, seja de acordo com proporções estabelecidas pelo soberano. De qualquer forma que se realize tal aquisição, o direito que cada particular tem sobre seus próprios bens está sempre subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos, sem o que não teria solidez o liame social, nem força verdadeira o exercício da soberania.

Resumindo a base do seu sistema social, Rousseau (p.39) afirma que o pacto fundamental,

ao transformar a liberdade natural em liberdade convencional, não transforma necessariamente a

desigualdade natural em desigualdade social, pois todos se tornam iguais pela convenção e pelo

direito.

Por qualquer via que se remonte ao princípio, chega-se sempre à mesma conclusão, a saber: o pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade, que eles se comprometem todos nas mesmas condições e devem todos gozar dos mesmos direitos. Igualmente, devido à natureza do pacto, todo ato de soberania, isto é, todo ato autêntico da vontade geral, obriga ou favorece igualmente todos os cidadãos, de modo que o soberano conhece unicamente o corpo da nação e não distingue nenhum dos que a compõem (ROUSSEAU, 1983b, p.50).

125 Machado (1983, p.36n77) sinaliza que essa concepção chega a seu ponto máximo no Projeto de Constituição para a Córsega – a qual não se teve acesso. V. discussão a seguir.

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Desta forma Rousseau propôs uma ordem social que não reproduzia – ou ao menos

reduzia a determinados limites - aquilo que via em seu tempo: convenções que estabelecem uma

igualdade “aparente e ilusória” e que só servem “para manter o pobre em sua miséria e o rico na

sua usurpação” (MACHADO, 1983, p.39n87).

Se a liberdade não pode prescindir da igualdade para se realizar126 efetivamente – motivo

pelo qual constituem os dois objetivos centrais do sistema de legislação – cabe agora entender os

termos da igualdade proposta por Rousseau (1983b, p.66-7):

Já expliquei o que é a liberdade civil: quanto à igualdade, não se deve entender por essa palavra que sejam absolutamente os mesmos os graus de poder e de riqueza, mas, quanto ao poder, que esteja distanciado de qualquer violência e nunca se exerça senão em virtude do posto e das leis e, quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja suficientemente opulento para poder comprar um outro e não haja nenhum tão pobre que se veja constrangido a vender-se; o que supõe, nos grandes, moderação de bens e de crédito e, nos pequenos, moderação da avareza e da cupidez. Tal igualdade, dizem, é uma quimera do espírito especulativo, que não pode existir na prática. Mas, se o abuso é inevitável, segue-se que não precisemos pelo menos regulamentá-lo? Precisamente por sempre tender a força das coisas a destruir a igualdade, a força da legislação deve sempre tender a mantê-la.

Depreende-se que, mesmo em sua proposta de sociedade justa, Rousseau admite a

existência de certo nível de poder e de riqueza. No primeiro caso, em decorrência do exercício

das funções governamentais – questão que longe de fragilizar sua proposta, só revela a lucidez de

sua análise, pois obviamente cargos superiores do governo e a magistratura em particular, ainda

que na posição de funcionários do soberano, conferem autoridade aos que as exercem. No que diz

respeito à “riqueza”, se pode estimar que Rousseau - apesar de extremamente cuidadoso com a

identificação de variáveis (tais como: a restrição da propriedade, a relação entre demografia e

atividade econômica, o uso dos diferentes talentos naturais) que podem interferir no processo –

126 Como diz Rousseau (p.66): “Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependência particular corresponde a outro tanto de força tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, por que a liberdade não pode subsistir sem ela.”

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intui algo não previsto (ou não amadurecido suficientemente para ser reconhecido e incorporado

ao seu processo de análise) que geraria essa relativa desigualdade de renda.

A questão, assim colocada é a de não permitir que essas diferenças se consolidem em

desigualdades sociais a partir de convenções que privilegiem os ricos, os poderosos e os

talentosos, em detrimento dos pobres, dos fracos e dos que não possuem capacidades e talentos

iguais. Rousseau esclarece em nota:

Quereis dar consistência ao Estado? – aproximai tanto quanto possível os graus extremos, não suportai nem os opulentos nem os mendigos. Esses dois estados, naturalmente inseparáveis, são igualmente funestos ao bem comum – de um saem os fautores da tirania e de outro os tiranos. É sempre entre eles que se faz o tráfico da liberdade pública; um a compra e o outro a vende (p.67n203).

Machado (1983, p.67n204) – considerado um dos melhores comentadores da obra de

Rousseau em solo brasileiro – esclarece que é no Projeto de Constituição para a Córsega que o

sentido social da propriedade seria melhor caracterizado: “cada um só terá sua parte nos bens

comuns na proporção de seus serviços” – mas a rigor, este trecho é somente um critério

distributivo que sozinho não se refere à questão da propriedade e nem das desigualdades

identificadas por Rousseau – que, sem dúvida, reconhece a “divisão política que o econômico

impõe”, posto que reconhece a exploração do homem pelo homem (p. 119n409)127; adenda que

nessa obra a “propriedade particular, se não é destruída, resume-se ‘aos limites os mais estreitos

que seria possível’, estando sempre subordinada ao bem público”; mas, à subordinação ao bem

público já comparece no Contrato Social, assim como sua forte restrição.

127 Sinaliza Machado (1983, p.282n125): “Rousseau prega, já nesses primeiros discursos, a revolução. Impõe-se, contudo, notar que essa revolução não é apenas em prol da igualdade política – que a Revolução Francesa viria cumprir em seus aspectos jurídicos formais – mas também em prol da igualdade econômica. Se o segundo tema revolucionário não se estabelece com a nitidez que o primeiro encontrará no Contrato Social, vale notar que, no universo de pensamento rousseauniano, ambos se enunciam essencialmente unidos e que, apelando pela liberdade dos homens sob o poder do soberano, Rousseau o termina por um grito de revolta, não contra as cabeças coroadas, mas contra os que “regurgitam superfluidades”. (...) Rousseau entre todos dedica sua mais violenta acusação aos provenientes da desigualdade de riqueza – “uns morrem de suas necessidades e outros de seus excessos”, eis a condição do homem na sociedade disforme que Rousseau conhecia e desejava pelo menos corrigir.”

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Em outra nota (p.85n275), defende que o Do Contrato Social é um “tratado sobre a

essência igualitária do Estado legítimo” independentemente da forma de governo que seja

admitida. Argumenta que essa “igualdade essencial, encarada em seus múltiplos aspectos, admite

variações de “mais ou menos” no que respeita à política e à condição material, porém mantém-se

integra enquanto princípio moral”. Contudo, o que há de se ressaltar é a recomendação de

Rousseau de que esses objetivos gerais devem ser modificados em cada país em função tanto de

suas características locais geográficas e demográficas, quanto ao caráter de seus habitantes – mas

não se refere ao modo de produção e às relações sociais dele decorrentes.

2.4 O anúncio do Mundo Contemporâneo

O assim denominado mundo contemporâneo tem como marco inicial a Revolução

Francesa, mais precisamente em função da queda da Bastilha em 14 de julho de 1789. Mas

Hobsbawm (2002) chama atenção para o fato de que o período situado entre 1789 e 1848 – A Era

das Revoluções128 – foi marcado um uma “dupla revolução”: a industrial inglesa (1780) e a

128 Hobsbawm (2005, p.9-13) lembra que o final do século XVIII foi “uma época de crise para os velhos regimes da Europa e seus sistemas econômicos”, marcada por várias “agitações políticas”, algumas chegando a secessão: EUA (1776-83), Irlanda (1783-84), Liége (1787-90), Holanda (1783-87) e até mesmo Inglaterra (1779). Com base nesse autor (2002) pode-se resumir as condições européias na década de 1780: comunicações mais rápidas (principalmente de porto a porto); apesar da melhoria das estradas, o transporte marítimo era mais fácil e barato. O mundo era essencialmente rural; os “urbanos” estavam referidos aos centros das províncias, fazendo com que governantes zelassem pela distinção entre atividades urbanas e rurais. Essas províncias (cujo auge do desenvolvimento foi ao fim da Idade Média) viviam um declínio: raras eram livres ou continuavam a ser “centro produtor para um mercado mais amplo ou um importante palco no comércio internacional” (p.30). A prosperidade vinha do campo, razão pela qual a questão agrária era o problema fundamental - mais particularmente, as relações entre produtores e proprietários de terra. Essas relações – mesmo desconsiderando as colônias do além-mar – não seguiam um padrão único: variavam as características e formas de uso das propriedades, as dos donos de terras e dos produtores. Com a diversidade de relações jurídicas existentes, em comum só havia a intensa exploração do trabalho dos produtores, mesmo em áreas onde havia um setor agrícola dinâmico que já seguia o rumo capitalista, como na Inglaterra; sobre isso Hobsbawm (p.36) esclarece que, entre 1760 e 1830, havia “uma classe de empresários agrícolas” e um enorme “proletariado rural”. Como setores dinâmicos do período aponta: comércio, manufatura, atividades intelectuais e tecnológicas. O comércio era pautado na exploração colonial que, através das vias comerciais marítimas, fazia da figura do mercador o elo entre a “mão de obra do vilarejo perdido” com o “mercado mundial” (p.40). Do ponto de vista político, com a exceção da Grã-Bretanha e alguns “Estados menores”, vigoravam as monarquias absolutas que, premidas pelo

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francesa, de caráter mais político e social; esse período, no dizer desse autor, foi marcado pela

“maior transformação da história humana” (p.16).

Em que pese situarem-se no âmbito do século XVIII, as transformações econômicas,

políticas e sociais – tanto as imediatamente precedentes como as decorrentes – foram de tal

monta que não à toa o mundo contemporâneo começa antes do final desse século. E esta seção –

pelos pensadores selecionados – abarcará exatamente esse período.

2.4.1 No calor da hora

A presente seção trata de um personagem bastante peculiar – homem de muitos nomes:

François-Nöel Babeuf (nome que recebeu em seu batismo, em 1760), François-Nöel Camille

Babeuf (que adotou entre 1791 e1792) ou, como é mais conhecido, Graco Babeuf (escolhido em

1794 e assim chamado até sua morte, em1797) – e como tal será tratado, posto ser impossível

falar de seu pensamento sem minimamente mostrar a transformação de suas idéias descoladas de

sua trajetória pessoal129.

Nascido na área urbana de uma província produtora de grãos ao norte da França130,

Babeuf vivia profundamente as questões relativas a terra, não só por ser – como afirma

desenvolvimento da Inglaterra, tentaram “programas de modernização intelectual, administrativa, social e econômica” (p.43) que só “multiplicaram as oportunidades para esses conflitos nas décadas de 1770 e 1780” (p.46). Esses monarcas apostavam na cisão entre os diferentes grupos, mas o que “tornou a situação explosiva foi a rivalidade internacional” que se expressava por guerras, esgotando os recursos dos Estados. Lembra que o domínio político e militar do mundo pelo noroeste da Europa foi “produto” dessa “dupla revolução”. 129 Para tal, tem-se em Molon (2002) a principal referência. Sobre a incorporação dos nomes Camille e Graco, também explica esse autor: o primeiro (Camilo), refere-se a “um herói da antiguidade romana que tenta reconciliar, mediante um compromisso, patrícios e plebeus” (137); Babeuf ainda retomaria esse nome pouco tempo depois, abandonando-o definitivamente em 1794, quando, segundo Molon (p. 138) não mais acredita na possibilidade de conciliação; adotaria, então, Graco, correspondendo a uma importante família que em II d.C, defendeu a reforma agrária. 130 Lembra Hobsbawm (2005, p. 51, 86-9) que em 1760 (período de Luís XV) a França vivia seu apogeu econômico, com um sistema colonial que em determinadas áreas era mais dinâmico que o britânico; seu comércio externo havia quadruplicado entre 1720 e 1780; nesse quadro, a França fazia rivalidade à Grã-Bretanha, “mesmo não tendo uma

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Hobsbawm (2005) a questão fundamental desse tempo -, mas também em função das atividades

que exerceu quando jovem: agrimensor e feudiste. Seu pai era coletor de impostos sobre o sal,

mudando posteriormente de atividade; sua mãe acumulava as funções relativas ao trabalho

doméstico com a de fiação doméstica de linho, bastante comum nesse tempo.

Com cerca de treze anos trabalha na construção do canal de Saint-Quentim e aos 17 (em

1777) torna-se aprendiz de feudiste, calculando o que cada camponês deveria pagar de impostos;

aos dezenove aprendia o ofício de notário no cartório de um marquês e aprendia agrimensura –

atividade que o leva, já casado, a mudar de cidade em 1782, abrindo seu próprio escritório.

Como se pode observar Babeuf garante sua subsistência prestando serviços aos senhores

feudais – subsistência até mesmo confortável entre 1785-1786, ano no qual o escritório começa a

declinar em função de sucessivos serviços que não foram pagos: a inadimplência dos senhores

feudais leva Babeuf e sua família a uma situação bastante precária já em 1788.

Quando do seu período mais próspero Babeuf estabelece intensa correspondência com

Dubois de Fosseux, nobre e grande proprietário latifundiário, principal magistrado local e

secretario geral da Academia de Arras, norte da França (à qual também eram vinculados

política externa tão determinada pelos interesses da expansão capitalista como a Inglaterra”; de cada cinco europeus um era francês e a França possuía uma estrutura “mais típica” entre as “velhas e aristocráticas monarquias absolutas da Europa” – o que gerou um conflito mais agudo entre “novas e velhas forças”. Contudo, na década de 1770 (já sob Luis XVI), a França vive uma contração econômica, seguida por um período de regressão, acentuado por guerras diretamente travadas pelo país ou em apoio de guerra, como no caso da Independência Americana, em 1776. Sinaliza ainda esse historiador as tentativas de reformas, principalmente as do período Turgot (1774-6) que fracassaram rapidamente em função da chamada “reação feudal”. Para situá-la é preciso lembrar a estrutura social da França daquele tempo: o clero, grupo mais organizado, gozava de maiores isenções e privilégios e constituía o chamado Segundo Estado (oratoris); a nobreza (que constituía o Primeiro Estado – bellatoris) que apesar de também gozar de privilégios e isenções, mais em menor grau que o clero, perdeu muito de seu poder com a constituição do estado nacional francês (absolutismo); o Terceiro Estado (laboratis) era composto pelo “povo”: a rigor, composto de diversos segmentos que ia de grandes comerciantes a trabalhadores “sem qualquer propriedade”. Com as tentativas de reforma, que visavam a aumentar a arrecadação, a “reação feudal” entrou em ação; vale lembrar de que 23 milhões de habitantes, a nobreza francesa contava com cerca de 400 mil indivíduos; dividia-se em nobreza aristocrática e a noblesse de robe (constituída por uma “classe média governamental enobrecida”). A aristocracia nobiliária estava em fase crítica, pois o aumento da inflação diminuía o valor de renda fixa, como os aluguéis; os nobres não hesitaram em fazer crescer os “feudistas” – “especialistas em direito feudal” – com a finalidade de “reviver os direitos obsoletos desse tipo ou então para aumentar ao máximo o lucro das existentes” (p.88-9). Também integra esse movimento a ocupação de postos oficiais, deslocando a “classe média” desses lugares. Simultaneamente a nobreza “exasperava a classe média, mas também o campesinato”.

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Robespierre e Carnot); aproveita imensamente essa oportunidade, pois como afirmava: “é a

paixão que me excita a querer conhecer tudo, ver tudo” (BABEUF, 1786 apud MOLON, p.52).

Em 1786, como era de praxe, essa Academia lança a seguinte questão para seu Concurso:

“Seria útil dividir as fazendas da região para aumentar a produção e, em caso afirmativo, como

deveria se proceder tal divisão”131. Babeuf perde o prazo de inscrição e a Academia premia uma

proposta que defendia a concentração de terras. Porém, através de carta dirigida ao Secretario

Geral é possível se conhecer a concepção de Babeuf nesse período132.

Parte do suposto que o direito à vida – “correspondendo a tudo aquilo que o

desenvolvimento e a conservação do ser humano exigem” – tem precedência sobre qualquer

outro, pois é “um direito de nascença igual para todos” e que “não cria qualquer desigualdade”;

assim, concebe o direito de propriedade como um “direito de convenção ou de tolerância”, pois,

em geral, dispõe para quem dele usufrui, “mais do que sua organização exige”. Neste sentido, o

direito de propriedade é compreendido como “tradução do direito à vida”. Ademais, alega que:

Na qualidade de comissaire feudiste, não devo ignorar como a maior parte das grandes propriedades se formou e veio parar nas mãos daqueles que as possuem. A quase totalidade dos títulos mais antigos não passa da consagração de enormes iniqüidades e de espoliações enormes. (apud MOLON, 2002, p.57)

Desta forma, entende que grandes propriedades ultrapassam “em muito o direito

verdadeiro”, fazendo com que considere os grandes proprietários como “devedores do direito à

vida, a uma ou a várias pessoas”. Babeuf afirma textualmente: “é a grande propriedade que faz

com que os opressores e os oprimidos”, deixando clara a sua posição nesse período.133

131 Vale lembrar que Hobsbawm (2005) chama a atenção para o fato de que essa prática foi seriamente considerada por vários déspotas esclarecidos europeus que se curvaram, por um lado, ao argumento econômico de aumento de produtividade e, por outro, com as experiências em curso. 132 Babeuf, F.N.. Carta a Dubois de Fousseaux, de 01/06/1786. In : MAZAURIC, Claude (org.). Babeuf : Écrits. Paris, Éditions Sociales, 1988. Apud Molon (2002, p. 101, 57, 102, 93-6). 133 Não há dúvidas quanto a influência de Rousseau (principalmente o Segundo Discurso) sobre Babeuf, sendo exemplar o nome de sua segunda filha, Sophie, que morreu com 7 anos. Aliás, afirma Molon (2002, p.57n13) que em 1789 Babeuf tinha dois filhos: Robert e Catherine-Adelaïde; esta faleceu com 4 anos e 2 meses em novembro de 1787 – isto é, quando Babeuf se encontrava novamente em dificuldade financeira e quando – conforme declara em

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Compreendendo que “viver é percorrer livremente o circuito da nossa existência, dando a

todos os períodos do qual ele se compõem o que convém à nossa organização tanto física como

moral”, defende o “estabelecimento de fazendas coletivas”, nas quais todos trabalhariam “para

melhorar tudo com mais luz, porque há mais em vinte cabeças do que em uma”.

Segundo Molon (2002, p. 51, 95-7) Babeuf argumentava na defesa das fazendas coletivas

tanto benefícios econômicos, quanto sociais: aumento da produção, vez que, mobiliza

conjuntamente forças e capacidades; a direção do trabalho coletivo deveria ser entregue ao mais

inteligente, ao mais probo, ao mais experiente; o trabalho coletivo, também garantiria mais

estabilidade tanto da produção como dos trabalhadores, que teriam maior segurança; além da

diminuição da pobreza, aumentaria a solidariedade e refrearia “maus pensamentos” em função da

razão: “pois onde os homens se reúnem para viver juntos, a razão vem logo sentar-se entre eles;

ela os esclarece, ela os persuade, ela os governa por sua ascendência”.

Defendia, como procedimento, que do resultado da produção fosse tirado o necessário

para a próxima semeadura e o sustento dos trabalhadores e o que sobrasse deveria ser dividido

entre eles e o proprietário de terras. Desta forma, todos viveriam mais próximos, em comunidade,

aprendendo a ser mais solidários, buscando o bem-comum e, assim, alcançando a “felicidade

geral, que não é outra que a felicidade de todos” e na qual “encontra-se necessariamente a

felicidade particular”. Sobre a questão da propriedade, esclarece Babeuf em sua carta, revelando

sua capacidade de análise do momento e estratégia correlata:

Eu não quis colocar em questão a legitimidade das grandes propriedades e chegar assim a uma solução radical quanto as grandes fazendas atacadas em seu próprio princípio. É muito tarde ou muito cedo para abordar um tema como este. (apud MOLON, 2002, p.100)

sua Defesa à alta corte de Vendôme – se dá a “redução de duas onças de pão”. Quando da sua morte, Robert encontrava-se com 12 anos (p.86) e tem dois irmãos: Camille e Caio (este recém-nascido em Vendôme).

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No ano seguinte (1787) Babeuf propôs à Academia de Arras um tema para o concurso de

1789 que, no entanto, não foi considerado pelo Secretário Geral; mas a proposta revela os

caminhos de sua reflexão:

Com a soma dos conhecimentos até aqui adquiridos, qual seria o estado de um povo cujas instituições sociais seriam tais que reinasse indistintamente em cada um de seus membros a mais perfeita igualdade, que o solo que ele habitasse não pertencesse a ninguém, mas pertencesse a todos, que enfim, tudo fosse comum, até os produtos de todos os gêneros de indústria. Instituições como estas seriam autorizadas pela lei natural? Seria possível que esta sociedade subsistisse, e mesmo que os meios de observar uma repartição absolutamente igual fossem praticáveis?

No mesmo ano, através de correspondência com o Secretario da Academia, tem-se

conhecimento do seu projeto de redigir o Cadastro Perpétuo134 que, segundo Molon (2002, p.54)

se concretiza em 1789. Esta obra tem por motivação contribuir para a discussão da reforma fiscal

que se pretendia fazer135. A proposta de Babeuf permitiria tanto facilitar o cálculo do imposto,

134 Antes dessa obra, Babeuf já havia redigido (1785-6) o seguinte texto: Considerações talvez importantes para os proprietários de terra e de senhoriais ou idéias sobre a manutenção dos feudos que, segundo Molon (2002, p.54), sugeria formas de se melhor aproveitar e controlar os feudos. 135 Como já mencionado na primeira nota desta seção, a proposta era a de melhorar as finanças públicas através de uma reforma fiscal. A resistência a essa proposta leva à convocação dos Estados Gerais (situação que não ocorria desde 1614). Contudo, a conjuntura não favorecia essa convocação: 1787 foi um ano marcado por uma crise econômica e 1788 por uma colheita desastrosa; 1789, portanto, inicia com o aumento do preço dos alimentos (entre 100 e 200%), diminuição do poder aquisitivo, gerando um baixo consumo e diminuição da taxa de ocupação (a população também havia aumentado em torno de 32%); aumentaram, portanto, o êxodo, a fome, os mendicantes, a tensão social e a insatisfação geral. Não havia, portanto, um clima favorável para que os representantes dessas três ordens (ou Estados) se reunissem e acordassem qualquer assunto de interesse nacional, em função dos interesses antagônicos exacerbados. Iniciada a reunião em 05/05/1789, o Terceiro Estado – numericamente maior – defende que as decisões sejam tomadas em conjunto e com contagem de voto individual: objetiva garantir seus interesses, pois também contava com a adesão do baixo clero que tinha posições mais próximas às suas; os Primeiro e Segundo Estados recusam a proposta e o Terceiro Estado continua reunido, declarando-se Assembléia Nacional com poderes constituintes, em 17/6. Luis XVI ao não conseguir controlar a situação, determina às outras duas ordens que se juntem ao Terceiro Estado – o que se dá em 09/07. Este, que a todos já havia surpreendido com sua estratégia, continua a controlar a situação não abrindo mão de suas posições: fim dos privilégios e instauração da igualdade; liberdade econômica, com o fim das aduanas e pedágios internos entre as províncias, bem como o fim do monopólio das companhias comerciais. O desenrolar da situação é a queda da Bastilha em 14/07, iniciando o período girondino da Revolução Francesa. A Constituição de 1791, sob a égide dos interesses da grande burguesia mercantil, consagra: a liberdade econômica, garantindo melhores condições para a constituição do mercado interno e acesso ao mercado externo; em relação à igualdade, restringe-se à civil (que garante oportunidades e carreiras abertas aos talentos), posto que a política é limitada em função de um regime censitário (que institui a distinção entre cidadãos passivos e ativos – ou seja, com direito a voto somente os detentores de um patamar mínimo de riqueza), bem como pela manutenção do princípio de veto pelo rei; a social inexistiu, na medida em que, por um lado, o artigo segundo reconhece a propriedade como um direito natural e, por outro, adotou uma posição conciliatória em relação ao acesso à terra: os camponeses poderiam comprar – desde que em espécie – os direitos feudais; ademais, os donos da terra

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como impedir a sonegação de informações para esse cálculo – procedimento muito comum entre

os donos de terra.

Essa obra apresenta uma introdução – Discurso Preliminar -, no qual Babeuf apresenta o

conjunto de suas reflexões sociais e políticas. Inicia o Discurso explicando a finalidade que lhe

pretendeu dar: examinar os meios que tornarão possível reduzir a “desigualdade de repartição”

então existente, buscando a “felicidade comum do povo”, evocando, para tal, “os direitos do

homem”.

Assim, apresenta uma série de “reivindicações” que deveriam ser atendidas visando à

felicidade comum (p.xxiii-xxv): suspensão da venda de bens espirituais (para que os pobres não

gastassem dinheiro com isso), criação de uma caixa nacional para ajudar na subsistência dos

pobres, pagamento de salário (através de fundos públicos) aos médicos, boticários e cirurgiões

para que pudessem prestar seus serviços gratuitamente, elaboração de um plano nacional de

educação136 para todos os cidadãos e acesso gratuito à justiça.

Na crítica à ordem de seu tempo, reafirma as questões apontadas na carta à Fousseux,

apontado, ainda, os preconceitos que instauraram cisões entre os homens, citando, também a

questão da divisão do trabalho e dos talentos (p.xxvi-xxviii):

exigiam também o pagamento retroativo de direitos feudais já suprimidos – o que na prática só permitiu o acesso à terra de pouquíssimos camponeses; tal proposição gerou levantes em todo o período 1789-1793. Ademais, o próprio Babeuf (1791, p.15), comenta a retirada de um artigo elaborado por Petión, “que se referia à obrigação, por parte da sociedade, de assegurar a todos os seus membros uma digna subsistência”. Para resolver o problema das finanças públicas, foram expropriados os bens da Igreja e na esteira dessa ação se nacionalizou a Igreja na França (1790). 136 Este aspecto é o mais trabalhado ao longo do Discurso Preliminar – para Babeuf a importância da educação justificava-se pela emancipação do povo (daí a luta pelo ensino em língua nacional, p. xxxvii) que só então conseguiria lutar – pacificamente - por seus direitos, já que acusava os poderosos por esse estado de coisas: Vós fizeste um plano de educação que sempre tendeu a propagar a extrema miséria, a conseguir extrair continuamente os suores do infeliz, e vós cuidastes de lhe dar noções tais que ele não acreditasse dever se queixar de vossas perfídias, que ele não imaginasse sequer que vós a quisessem cometer. É, em uma palavra, do contraste estabelecido entre a educação do pobre e a vossa que vós conseguistes tornar este o que é e que vós vos formastes estes corações duros e impiedosos que vos fazem suportar o espetáculo dos vossos semelhantes morrendo de fome, enquanto vós nadais nos supérfluos e nas delícias... (...). É preciso ter estudo para se defender continuamente da opressão (...). Além disso, se a educação não é dada a todos, torna-se fator de desigualdade social (...) em uma sociedade de homens, seria necessário não ter educação alguma ou que todos os indivíduos pudessem tê-la igualmente” (p.xxxv).

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Mas se o pacto social estivesse realmente fundamentado na razão, não deveria tender a fazer desaparecer aquilo que as leis naturais têm de defeituoso ou injusto? [A lei social] não deveria me levar a partilhar a vantagem de minhas faculdades superiores (...)? Com a ajuda de falsos preconceitos, exaltaram-se ridiculamente o mérito e a importância de certas profissões das quais, na verdade, a utilidade era, na maioria das vezes, ilusória ou quimérica. [...] [Os] homens realmente essenciais por seus trabalhos indispensavelmente necessários viram seus salários diminuídos a quase nada.

Assim amplia sua concepção de felicidade: suprir “a subsistência, o crescimento e o

desenvolvimento seja físico, seja intelectual de seus membros”; supérfluos seriam os prazeres

“desnecessários” e “infinitos” e seria injusto usar da desigualdade das habilidades naturais

(inteligência, força e criatividade), se não fosse para o bem de todos (p.xxvi-xxvii). E afirma suas

pretensões: “Não pensamos dever pretender reformar o mundo, a ponto de querer restabelecer a

primitiva igualdade: mas tendemos a demonstrar que todos os que caíram no infortúnio teriam o

direito de requerê-la, se a opulência insistir em negar-lhes um socorro honroso (p. xxxiv)”.

Aproveitando a convocação para a reunião dos Estados Gerais, Babeuf segue para Paris a

fim de publicar o Cadastro Perpétuo. Chega em 17/07 e na segunda carta dirigida à sua mulher,

reafirma sua dificuldade de entender o que se passa, principalmente em relação às ações violentas

que assiste. Afirma entender “que o povo faça justiça” e tenta compreendê-la como resultado de

ações anteriormente empreendidas contra o próprio povo e que o teria feito aprender métodos

cruéis.

Entendendo a necessidade de buscar outra ocupação, inicia sua atividade de jornalista137,

como correspondente de um jornal “editado na Inglaterra, Le Courrier de l´Europe” (MOLON,

2002, p.59), até conseguir editor para seu livro, ainda em 1789; nessa época, ainda sob o impacto

137 Molon (2002, p. 20-9) resume, com base em vários autores, a intensa proliferação de jornais nessa época – que aliás, marca o nascimento da imprensa moderna -, com os mais variados formados e estilos, através dos quais se lutava pelo domínio da opinião pública. Sem dúvida, um “negócio lucrativo, mas arriscado” (p.23).

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da força dos movimentos de massa, retorna à sua cidade onde inicia sua “ação revolucionária

local” (BRUHAT, apud MOLON, 2002, p.61).138

Em 1791, em carta dirigida a Jacques-Michel Coupé139 comenta os princípios que devem

orientar a sociedade: “igualdade de origem, interesse geral, a Vontade comum que decreta as leis

e a Força de todos os que constituem a soberania” (p.9) que, para Babeuf, podem se resumir aos

princípios de “garantir a todos os indivíduos a base material de sua existência” e “educação igual

para todos”. E para alcançá-los, entende absolutamente necessário uma lei agrária que, se

perfeita, deve incitar ao “estabelecimento da igualdade primitiva” (p.10), com “a igualdade das

propriedades” (p.15).

Adverte então ao seu interlocutor da necessidade de observar estratégias para a

consecução desses objetivos, advertindo-os sobre os argumentos que deveriam ser usados:

que a terra não deve ser alienável; que ao nascer, todo o homem tem direito a dispor de uma parte dela, que seja suficiente para bastar às suas necessidades, como acontece com o ar que respira e a água que bebe; que, ao morrer, o indivíduo deve nomear herdeiros, não os seus parentes mais chegados na sociedade, mas toda a sociedade; que, apenas devido ao sistema de alienabilidade, a uns tudo foi transmitido, enquanto aos outros nada lhes foi deixado; que, graças a certos convencionalismos, o preço dos trabalhos mais úteis foi reduzido às taxas mais baixas, enquanto o preço das ocupações sem importância e ainda por cima diretamente prejudiciais à sociedade centuplicaram; que sempre todos se valeram do operário inútil para explorar o operário útil e mais trabalhador; que se tivesse existido maior uniformidade no preço de todos os trabalhos, se não se tivesse dado a uns um valor superior, todos os outros operários seriam aproximadamente tão ricos uns como os outros; que estando como está posta a questão, uma nova divisão não viria senão a deixar as coisas tal como antes se encontravam; que, se a terra tivesse sido declarada inalienável (sistema que desfaz pela raiz a objeção do receio do estabelecimento da desigualdade através das mudanças operadas depois da nova

138 Organiza movimentos, elabora petições, usa sua experiência como agrimensor e como feudiste para defender camponeses contra pretensões senhoriais; enfim, inicia uma série de atividades que lhe causaram inimizades, perdas eleitorais fraudulentas e a seqüência de prisões – só em 1791 foram duas. Mas todas essas atividades o consolidam seu envolvimento com a causa pública e com seus ideais: “Não sei se estou enganado, mas me parece que a revolução me arrebatou. A política e a meditação sobre os verdadeiros princípios das leis e sobre sua execução exercem sobre mim uma atração tão irresistível que me inclino a pensar que é a minha única vocação.” (Carta a Charles Germain, de 20/10/1791. Apud MOLON, 2002, p.65). 139 Dadas as condições assinaladas na nota anterior, Babeuf promoveu a candidatura de Coupé a membro da Assembléia Legislativa, inaugurada em 01.10.79. Nessa missiva, aqui publicada como O Comunismo e Lei Agrária, Babeuf cobra o compromisso de Coupé, já que não pôde se candidatar pessoalmente à eleição.

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divisão), qualquer indivíduo teria um patrimônio assegurado para sempre (...), podendo surgir daí a Idade de Ouro e a felicidade coletiva em vez da dissolução da sociedade e donde emanaria uma situação de tranqüilidade para o futuro, um destino duradouro e perpétuo, ao abrigo dos caprichos da sorte (...); que, em suma, não é verdade que o desaparecimento das artes seria o resultado necessário desta nova ordem, dado que, pelo contrário, é evidente que nem todos poderiam ser agricultores e cada um dos indivíduos não poderia, em maior escala do que acontece hoje em dia, procurar todos os instrumentos necessários ao homem; que, com toda a certeza, não deixaremos que ter de permutar, contínua e reciprocamente, prestações e serviços e que, à exceção dos bens que o indivíduo possui como patrimônio pessoal inalienável e constitutivo, em qualquer tempo e circunstância, tudo o que se acrescente a esse fundo e a esses recursos, permaneceria no mesmo estado em que hoje se encontra? (p. 10-1).

Babeuf adverte ainda sobre outros aspectos que não poderiam ser negligenciados:

participação direta para se obter a igualdade real; o veto como prerrogativa de soberania popular;

a extinção da separação dos cidadãos em diversas classes: com a admissão de todos em todos os

cargos, direito de voto incondicional, direito de expressão em todas as assembléias, liberdade de

reunião em praça pública e a restrição das funções da guarda nacional ao combate do inimigo

externo; litígios nacionais tratados em assembléias e com tempo suficiente para amadurecimento

das discussões (p. 13-4). Ou esses princípios eram respeitados, ou liberdade, igualdade, direitos

do homem e civilização seriam “palavras desprovidas de sentido” (p.14-5).

Essa é, em linhas gerais, a essência do pensamento de Babeuf nesse período140. Grosso

modo, a base da argumentação permanece muito próxima da apresentada; porém, sua concepção

140 Vários eventos marcaram o período entre julho de 1789 e 1794. Segundo Hobsbawm (2005, p.97-107), a vitoriosa burguesia moderada toma providências para racionalizar e reformar a França: são realizados empreendimentos institucionais duradouros, institui-se o sistema métrico e se dá a emancipação pioneira dos judeus; do ponto de vista da orientação econômica são adotadas as perspectivas inteira liberais; houve cercamento das terras (1/5) e incentivos aos empresários rurais; foram abolidos os grêmios e as corporações dos pequenos artesões e houve interdição dos sindicatos. Contudo, a economia livre acentuou a flutuação dos preços dos alimentos, levando ao aumento da “militância dos pobres, particularmente em Paris”. A França passa por um processo de migração em massa (1789-1795), com a saída de cerca de 300 mil franceses. Ademais, as tentativas de reação da nobreza, apoiada por uma facção burguesa ex-revolucionária, bem como e a tentativa de fuga pelo rei (o que gera a perda do direito à lealdade) desestabilizam a política. Em abril de 1792 (e até 1794) a França entra em guerra interna (60 dos 80 departamentos franceses estão rebelados contra Paris) e externa (contra a maior parte da Europa, que teme o avanço do ideário da Revolução Francesa), desenvolvendo a “estratégia da guerra total” que só hoje é devidamente entendida. Nesse mesmo ano, a Insurreição de 1792 (que derruba o rei e a Constituição de 1791), promovida pelos girondinos que, no entanto, capitulam frente a força popular (capitaneada por jacobinos – média burguesia – e sans-cullotes – grupo extremamente heterogêneo: pequena burguesia, juristas, intelectuais, artesãos, lojistas – cujo objetivo era conter a grande burguesia que ameaçava torná-los trabalhadores dependentes), abre possibilidade da constituição da

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se radicaliza em alguns aspectos, mas, sobretudo, em relação à questão da propriedade. Sem

dúvida, mudam também sua capacidade de análise e suas estratégias.

Babeuf retoma as atividades de jornalista em 1794, fundando o Journal de La Liberte de

La Presse; posteriormente muda seu nome: Le Tribun Du Peuple ou Le Défenseur des Droits de

l´Homme. Todas essas publicações sofreram solução de continuidade em função da necessidade

de fugas ou da realização de mandados de prisão contra Babeuf. É num desses enclausuramentos

que conhece Buonarroti e Bodson; avaliando o insucesso das “jornadas populares” (12 Germinal

e 01 Prairal) ocorridas em abril e maio de 1795141, concluem que faltou organização e programa,

de modo a melhor aproveitar a insatisfação popular. É nesse contexto que se inicia a organização

do movimento de resistência que ficará para sempre conhecido como Conspiração (ou

Conjuração) dos Iguais.

Com um nível de organização sem precedentes (seja do ponto de vista de qualquer

movimento existente até então, seja por sua estrutura, comparável aos atuais partidos políticos), o

grupo dirigente escolhe o mote “Pão e Constituição de 93” para garantir o maior número possível

de adesões; em síntese, visavam ao estabelecimento de uma frente ampla (MOLON, 2002).

República Democrática e Popular. Em 02/06/1793 inicia a ditadura Jacobina tendo como estratégias prioritárias resistência aos inimigos (instauração do Terror) e manter unido o Terceiro Estado; dezoito meses depois a situação estará sob controle. Algumas medidas foram adotadas rapidamente: o recrutamento geral, o maximum (instrumento regulador de preços dos principais gêneros alimentícios) e a Constituinte. A Constituição de 1793 – “primeira constituição genuinamente democrática” (p.104) - garantia: felicidade de todos como objetivo do governo, direitos econômico-sociais (trabalho, subsistência e educação), direitos políticos (sufrágio universal, direito de insurreição, admissão da soberania popular), limitação do direito, mas aumento do acesso às terras, bem como abolição da escravidão nas colônias francesas. Contudo, as necessidades econômicas da guerra por um lado e, por outro, o avanço do Terror que levou “direita e esquerda” para a guilhotina, esvaziou a vida seccionaria e, sobretudo, executou herberistas (porta-vozes dos sans-culottes) deixaram o grupo de Robespierre isolado; quando as guerras acabam (junho/1794) Robespierre é derrubado pela Convenção. Ainda em sua fase Camille, Babeuf posiciona-se contrariamente à violência do Terror, entendida como atentando contra a liberdade; saúda o Diretório, pois achava que com a restituição da liberdade, a luta pela igualdade real poderia se recolocar. Não podia imaginar que o novo grupo no poder, por um lado, enterraria todas as pretensões democráticas e populares (abandono do dirigismo estatal, abolição do maximum, moeda desaba e inflação sobe; derrogam a Constituição de 1793 e todos os seus ganhos políticos, econômicos e sociais) e, por outro, iniciaria o Terror Branco, com perseguição aos jacobinos e membros do governo revolucionário e demais oponentes. A burguesia estava livre para executar os seus planos e Babeuf será uma das vítimas do governo do “Diretório”, amargando sucessivas prisões e fugas, até a sua execução. 141 Essa foi a derradeira campanha dos sans-cullotes, levada a termo pela carestia, escassez, rigoroso e incomum inverno de 94-95.

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Se no número 31 do Tribuno do Povo (28.01.1795), Babeuf dava por certa uma nova

insurreição que deveria ocorrer “pacificamente”, já no número 35, de 30.11.1795, Babeuf divulga

o Manifesto dos Plebeus142:

Nós definiremos a propriedade. Nós provaremos que a terra não pertence a ninguém, mas é de todos. Nós provaremos que tudo aquilo de que um indivíduo se apropria além do necessário para sua alimentação é um roubo social. (...). [Que o único meio de se chegar lá é estabelecer a administração comum; suprimir a propriedade particular (...)143]. Que os infelizes respondam enfim a seus agressores! (...) Que se conspire contra a opressão, seja pensando grande ou pequeno, secreta ou abertamente, em 100 mil conciliábulos ou em um só, pouco nos importa, desde que se conspire (...).Todos os males atingiram o seu máximo; não podem piorar mais; só podem ser reparados por uma transformação total! (...). Que tudo entre no caos, e que do caos surja um mundo novo e regenerado! Venhamos, após mil anos, mudar estas leis grosseiras. Que esta guerra atroz do rico contra o pobre tome uma cor menos ignóbil! (...) Vocês gritam que é preciso evitar uma guerra civil? Que não se pode lançar no meio do povo o brado da discórdia? E qual guerra civil é mais revoltante do que aquela em que se vê todos os assassinos de um lado e toda as vítimas sem defesa do outro? Vocês podem incriminar aquele que quer armar as vítimas contra os assassinos? Não é melhor uma guerra civil em que os dois partidos podem se defender reciprocamente? Que acusem, se quiserem, o nosso jornal de ser uma brasa da discórdia. Tanto melhor: a discórdia é melhor do que uma horrível concórdia onde a fome sufoca.

Nesse mesmo número, Babeuf denuncia uma tentativa de cooptação que sofre por parte

do Diretório. A estratégia muda e, com o avançar da organização da Conspiração, infiltra-se um

traidor. Levados à Alta Corte de Vendôme (em função da participação de um Deputado),

juntamente com sans-cullotes que não participavam da conspiração, mas que igualmente

142 Babeuf foi preso em 07 de fevereiro de 1795, só saindo em 18 de outubro desse mesmo ano – um intervalo de apenas seis meses, para mudar suas percepção e estratégia, levando à criação do “Diretório Secreto Executivo de Salvação Pública”, em 30/03/1796. Vale ainda ressaltar que, usual e equivocadamente, atribui-se a Babeuf a autoria do Manifesto dos Iguais; porém, seu autor é Sylvain Marechal (1750-1803), amigo de longa data de Babeuf e também um dos Iguais. Da lavra de Babeuf é o Manifesto dos Plebeus que, em discussão entre os membros foi considerado menos radical do que o Manifesto de Sylvain, sendo, portanto, o primeiro a ser divulgado. Contudo, o documento mais conhecido e que melhor expressa o espírito dos Iguais, é sem dúvida o Manifesto de Sylvain; já o de Babeuf, não consta nem mesmo do site da Biblioteca Nacional Francesa. Os excertos aqui citados constam de Molon (2002, p. 97 e 98), reproduzidos de MAZAURIC (op cit.). 143 Cattani (2002) assim complementa esse trecho do Manifesto dos Plebeus: “estabelecimento da administração popular; pela supressão da propriedade provada, pela vinculação de cada indivíduo ao seu talento, fazendo-o depositar os frutos do seu trabalho em um espaço coletivo, estabelecendo uma administração única dos bens que assegurará a sua repartição segundo mais escrupulosa igualdade”.

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incomodavam, todos os que não fugiram são deportados para as Guianas; somente Babeuf e

Darthé são executados, em 28.05.1797.

Com base em Philippe Buonarroti (1761-1837), através do seu trabalho Système politique

et social des égaux (p.54-59), pode-se conhecer o programa que seria adotado no caso de sucesso

da Conspiração, abaixo resumido:

Artigo 1 – A natureza deu a todo homem o direito de usufruir de todos os seus bens. Artigo 2 – O propósito da sociedade é defender essa igualdade, comumente atacada pelos mais fortes, e promover o concurso de todos ao usufruto comum. Artigo 3 - A natureza impôs a todos a obrigação de trabalhar; quem disso se escusar cometeria um crime. Artigo 4 – O trabalho e seus frutos são de gozo comum. Artigo 5 – Há opressão quando um se exaure no trabalho e lhe falta tudo, enquanto outro vive na opulência sem nada fazer. Artigo 6 – É crime se apropriar individualmente dos bens da terra ou da indústria. Artigo 7 – Numa verdadeira sociedade não pode existir nem ricos e nem pobres. Artigo 8 – Os ricos que não renunciarem aos seus supérfluos em favor dos indigentes serão considerados inimigos do povo. Artigo 9 – Ninguém, pela acumulação de todos os meios, poderá privar outro da instrução necessária para sua felicidade. A educação é direito comum. Artigo 10 – A finalidade da revolução é destruir a desigualdade e restabelecer a felicidade comum. Artigo 11 – A revolução não acabou porque os ricos absorveram todas as riquezas, colocando-as sob seu controle exclusivo, enquanto os pobres trabalhavam enclausurados, lânguidos, não sendo considerados pelo Estado. Artigo 12 – A Constituição de 1793 é a verdadeira lei dos franceses.

Das funções de feudiste e agrimensor à crítica da ordem social de seu tempo, da defesa de

conciliação e da revolução pacífica até à Conspiração dos Iguais; Babeuf, acertadamente, mudou

de nome, manifestando suas concepções, mas sobretudo suas ações. No calor da hora, transita de

François-Nöel, a Camille e a Graco, legando análises, concepções, e, sobretudo estratégias de

organização e ação, contribuindo para “um pensamento de esquerda programático” (MOLON,

2002, p. 160). Mas também deixa sonhos e exemplo de determinação.

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2.4.2 O socialismo de Owen

Robert Owen (1771-1858)144, natural do país de Gales, era filho de artesão. Trabalhando

como ajudante de um vendedor de tecidos obteve, em 1789, um empréstimo de 100 libras em

Manchester e se tornou um industrial. Ainda segundo Hobsbawm (2005, p.61), nessa época a

expansão da indústria era financiada através dos lucros correntes, pois tanto a inflação do

período, como a conquista de mercado “produzia lucros fantásticos”.

144 Em função dos eventos já sumariados em nota da seção 2.2 a Inglaterra inicia sua revolução burguesa (XVII) instituindo mudanças jurídicas e econômicas que se mostraram essenciais para o desenvolvimento da acumulação capitalista. Do ponto de vista da “mobilização e transferência de recursos econômicos”, coloca em curso sua “revolução agrícola”, dando base para a Revolução Industrial. Vale lembrar o papel desempenhado pelo “sistema de Speenhamland” (1795) - “espontaneamente adotado por juízes-cavalheiros em vários condados durante e depois da fome de 1795”, que, tal como a Corn Law, foi criada como tentativa de “salvaguardar a velha sociedade rural contra a corrosão do vínculo monetário” (HOBSBAWM, 2005, p. 77-8); mas “seu principal efeito foi o de desmoralizar os trabalhadores e encorajar os fazendeiros a baixar os salários” (p.232). A Revolução industrial inicia na década de 1780 (p.50-1) quando foi dada a “partida para o crescimento sustentável”, levando à liberação dos “grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços.” Essa “partida” vai da década de 1780 até a construção das ferrovias e da indústria pesada na Grã-Bretanha na década de 1840. Aqui a contribuição foi da Lei dos Pobres (1834) que objetivou “tornar a vida tão intolerável para o pobres do campo que eles se vissem forçados a abandonar a terra em busca de qualquer emprego que lhes fosse oferecido.” (p.215). Nesse período, mais precisamente na década de 1820, a discussão intelectual na França e na Inglaterra cria a palavra (e o conceito de) “socialismo”. Segundo Hobsbawm (p.292-3), “por volta do início da década de 1830, já existiam a consciência de classe proletária e as aspirações sociais. Quase certamente, eram mais débeis e menos efetivas do que a consciência da classe média que seus patrões adquiriram ou puseram em prática ao mesmo tempo. Mas elas estavam presentes.” Mantoux (1927, p. 74 apud: SINGER, 1988) chama a atenção para o fato de que “tão logo os meios de produção deixaram de pertencer ao produtor e se forma uma classe de homens que compra trabalho de outra classe, uma oposição de interesses tem de se manifestar”. Desta forma, em 1700, penteadores de lã se organizam para fixar um piso e, em 1720, há embate sangrento em Tiverton, em função da importação de lã penteada da Irlanda; no XIX, os luddistas faziam levantes (1811/12) de proporções regionais; mas no centro das manifestações estavam os operários mais qualificados, pois foram reduzidos a não-qualificados com o avanço do capitalismo: a alienação desse trabalhador leva à “homogeneização crescente da classe operária” (SINGER, 1988). Neste sentido, defende Singer (1988) que a revolução socialista – “desde a legalização dos sindicatos, a regulamentação das cooperativas, a instituição de uma previdência pública até a conquista do sufrágio universal” – “resulta basicamente de lutas reativas” em função da “dinâmica cega da acumulação”. Com a crise que se seguiu às guerras napoleônicas, gerando amplo desemprego, se dá a “primeira onda revolucionária” da Europa; mas a situação de desespero dos trabalhadores pobres se prolonga nos anos 30 e 40. Para esse autor a classe operária reagia de três formas: “(1) opondo-se ao industrialismo, em nome de direitos adquiridos e dos fundamentos tradicionais do ancien regime; (2) somando-se à luta pela democracia e (3) desenvolvendo formas próprias, potencialmente anticapitalistas, de organização social (sindicalismo) e de organização da produção e distribuição (cooperativismo)”. E é exatamente nesse contexto de organização da reação ao avanço do modo de produção capitalista – que se torna no século XIX, como diz Teixeira (2002, p. 13) “dominante em escala planetária” – que Owen produz tanto suas idéias, como suas experiências pioneiras

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De fato, mesmo seu sucesso no mundo dos negócios sendo considerado como

“relativamente modesto”, quando Owen compra a parte de seus sócios, por volta de 1809, paga

84 mil libras em cash. Para entender suas idéias é necessário conhecer alguns aspectos de sua

trajetória, posto que Owen – industrial (um dos pioneiros da indústria algodoeira) e filantropo - é

mais conhecido como um dos precursores do posteriormente denominado “socialismo

utópico”145, sendo seus “experimentos” entendidos como antítese da – ou modelo de – cidade

industrial.

Owen era um entusiasta do progresso industrial, pois entendia que através da abundância

produzida seria possível acabar com a miséria e garantir mais facilmente o “aperfeiçoamento

humano”. Essa meta seria atingida pela mudança das condições de vida da classe operária:

reconstruir o ambiente determinaria a sorte dos indivíduos e conseqüentemente da sociedade, e

nesse plano a educação ocupava um lugar central.

Assim, em 1799, adquiriu a fábrica têxtil New Lanark, situada às margens de um rio do

qual provinha energia hidráulica; face à distância da cidade de Lanark, Owen comprou também

uma propriedade local para que os operários e seus familiares morassem junto à fábrica. Casas

antigas foram reformadas e novas construídas, abriu uma escola e uma loja para o consumo dos

trabalhadores, a preços módicos. Reduziu a jornada de trabalho e aumentou os salários e, no

145 Essa denominação foi consagrada por Engels, em seu estudo intitulado Do Socialismo utópico ao socialismo científico (1880). Integram ainda esse grupo, na condição de precursores, Claude-Henry de Rouvroy (Conde de Saint-Simon, 1760-1825) e François Marie Charles Fourier (1772-1837). Teixeira (2002, p. 47-8) defende que Saint-Simon – o mais representativo do grupo e que exerceu maior influência no pensamento político francês do século XIX - não era um democrata, pois não só “acreditava na virtude das elites”, como também “considerava a desigualdade natural e benéfica”. Já Fourier, apesar de sua crítica à ordem social de seu tempo, “não era contra a propriedade privada, nem a organização social que propõe é um sistema comunista. Ao contrário, respeita o direito de herança e considera a pobreza e riqueza fatos naturais. É antiigualitário e antidemocrata (...). (p.64)”. Para Hobsbawm (2005, p. 363) esses pensadores, bem como seus seguidores, “dificilmente podem ser considerados outra coisa que românticos”; na distinção, comenta (p. 364) que “a crítica mais vigorosa da sociedade burguesa” viria “daqueles que levaram as tradições do pensamento clássico burguês a suas conclusões anti-burguesas”, aí situando Owen. Para esse historiador: “o socialismo de Robert Owen não tinha sequer o mínimo elemento de romantismo em si mesmo; seus componentes eram inteiramente do racionalismo do século XVIII e da mais burguesa das ciências, a economia política”. Neste sentido, somente Robert Owen é, dentre os utópicos, aqui mencionado.

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período da guerra, não demitiu os trabalhadores, pagando-lhes os salários. Ainda segundo Singer

(1998):

Apesar de tudo que fez ou talvez por causa disso, Owen continuou realizando bons lucros, o que lhe granjeou grande fama de filantropo. (...). Owen proclamou que o capital investido só deveria ter um dividendo limitado e que todo lucro excedente deveria ser aplicado a favor dos trabalhadores. Com o que não concordaram seus sócios, o que obrigou Owen a achar outros (...). E de fato os encontrou, estando entre eles o famoso autor do utilitarismo Jeremy Bentham.

As escolas de Owen (posteriormente foram várias) tinham por meta a formação integral –

física e moral - do indivíduo, desde a mais tenra infância. Ademais, foi um dos poucos industriais

do período a não utilizar o trabalho infantil. É com a experiência de New Lanark que amadurece

suas idéias sobre reforma e educação.

Em 1815, Owen, na condição de “empregador modelar”, engaja-se pessoalmente no pleito

de uma nova lei fabril, dadas as condições da Factory Act de 1802. Reivindicava uma lei que

proibisse o trabalho para os menores de 10 anos de idade, que limitasse a jornada dos

trabalhadores com menos de 18 anos em 10 horas e meia, incluindo o intervalo para refeições.

Evidentemente, solicitava também a existência de inspetores para que se garantisse a

implementação dessas medidas. Em 1819, foi adotada uma nova Lei fabril que se restringia às

usinas algodoeiras, estabelecia a idade mínima em 9 anos e limitava a jornada dos menores de 16

anos a 12 horas. Essa derrota da classe operária britânica favorece a que uma parcela significativa

embarque na utopia owenista, principalmente no período de vigência do Combination Acts146.

146 Vale lembrar que durante sua vigência (iniciada em 1799), os sindicatos foram duramente reprimidos e alguns passaram à clandestinidade, funcionando como sociedades mutualistas. O Combination Acts só foi revogado em 1824, ainda com um parlamento não renovado, mas já como resultado da mobilização dos trabalhadores em função dos termos da nova Lei Fabril; a rigor, lançaram-se na luta simultâneamente pela renovação do parlamento e pelo sufrágio universal masculino, com a pretensão de conseguir ganhos no que diz respeito à regulamentação das relações de trabalho. Após a revogação do Combination Acts, a Inglaterra viveu uma rápida reorganização dos sindicatos que fizeram campanhas vitoriosas para renegociação de salários; como conseqüência, em 1825, foi aprovada uma lei que restringia a atividade sindical (sobretudo a realização de greves). Vale também lembrar que essa mobilização levou ao início do Cartismo (em 1836), quando se funda a Associação Londrina de trabalhadores para beneficiar política, social e moralmente as classes úteis (LWA) cuja primeira petição (em 1837) reivindicava: sufrágio universal masculino, distritos eleitorais iguais, parlamentos anuais, remuneração dos parlamentares, voto

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Em 1816 cria o “Instituto para a Formação do Caráter”, no qual unia educação e

filantropia como uma alternativa a Lei dos Pobres, ainda em vigor, e em 1817 propõe seu plano.

Partindo do aumento do desemprego propõe como solução as comunidades auto-suficientes – as

“Aldeias Cooperativas” – que deveriam se organizar de acordo com os “paralelogramos”,

divulgados, segundo Meneguello (2001, p.190-1), nos jornais londrinos da época:

Assim, a comunidade ideal de Owen se distribuiria em prédios que abrigavam cerca de 1200 pessoas, rodeados por cerca de 1000 acres, divididos em paralelogramos. O prédio central possuiria, à direita, a cozinha geral, refeitórios, escolas para crianças pequenas, gabinetes de leitura e local para cultos. À esquerda, haveria a escola para as crianças mais velhas e salas para adultos, além da biblioteca. Os três lados de cada um dos quadrados habitados seriam alojamentos para casados, obrigatoriamente com quatro cômodos (para o casal e duas crianças que, conforme indicavam os relatos médicos da época, deveriam dormir separados se fossem de sexos diferentes). O quarto lado do quadrado abrigaria crianças com mais de três anos que excedessem o número de dois filhos em uma família. Em uma extremidade ficaria a enfermaria e, na outra, um prédio para forasteiros que viessem visitar a família ou os amigos. Nesse sistema, as funções estavam também divididas por sexo: as crianças deveriam comer no refeitório e dormir em seus próprios dormitórios “sendo que os pais podem, é claro, vê-las e falar com elas durante as refeições e em outros momentos apropriados (...), pois as crianças devem ser instruídas a não adquirir os mais hábitos de seus pais”. As mulheres deveriam, em primeiro lugar, cuidar das crianças; em seguida, cultivar as hortas; poderiam trabalhar na manufatura, mas não mais do que quatro a cinco horas por dia; por fim, deveriam fazer as roupas, cuidar da cozinha e dos dormitórios e supervisionar a educação das crianças na escola. As crianças mais velhas teriam funções semelhantes.

Nessa vida comunitária, os habitantes das aldeias consumiriam seus próprios produtos,

reservando o excedente para a troca com outras aldeias; sugeria que algumas aldeias fossem

industriais e outras agrícolas, de modo que todas as necessidades fossem atendidas na base de

troca. Sugeria ainda Owen, que “o estado e as paróquias, em vez de desperdiçar dinheiro com a

manutenção dos indigentes ociosos, deveriam fornecer capital para que eles se estabelecessem em

aldeias e pudessem prover o próprio sustento” (SINGER, 1998).

Mas, quanto mais Owen explicava o seu “plano”, mais claro se tornava que ele estava propondo não simplesmente um meio de baratear a subsistência dos

secreto e nenhuma exigência de propriedade para pertencer ao Parlamento. Esses mesmos pontos integrariam, posteriormente, a Carta do Povo (SINGER, 1998).

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pobres, mas uma mudança completa do sistema social e a abolição da empresa capitalista voltada ao lucro” (Cole, 1944, p.20). Além disso, Owen passou a atacar todas as religiões por ensinarem que os homens são responsáveis pelo mal que praticam. Para Owen, a origem do mal social estava no ambiente ruim a que os homens estavam submetidos. Caberia pois transformar o ambiente em vez de pregar, como faziam as igrejas, a reforma individual. Owen terminou por denunciar todas as religiões como sustentáculos do “velho mundo imoral” (SINGER, 1998).

Essas idéias geraram perda de apoio a Owen entre os abastados e outros filantropos

europeus, mas mesmo assim suas experiências são levadas para algumas cidades nos EUA,

diretamente sob a direção de Owen: New Harmony (Indiana, 1825-1828), Wanborough (Illinois,

1825), Yellow Springs Community (1826-1827), Nashoba (Tenesse, 1825), Valley Forge

Community (Pennsylvania, 1825-1826), Kendall (Ohio, 1826) e Blue Springs Community

(Indiana, 1826-1827).

A rigor, Owen começa, a partir de 1820, a defender que essas aldeias deveriam congregar

não só os pobres, mas o conjunto dos trabalhadores. Segundo Meneguello (2001, p. 191), o

subtítulo do Report to the County of Lanark, bem traduzia o pensamento de Owen nesse

momento: “Um plano para diminuir a tensão pública e eliminar o descontentamento, ao

proporcionar emprego permanente e produtivo aos pobres e às classes trabalhadoras, sob arranjos

que fundamentalmente elevam seu caráter e melhoram sua condição, diminuindo os gastos com

produção e consumo para criar mercados coextensivos à produção”. Nessa mesma época, na

Inglaterra, várias cooperativas são criadas sob a influência das idéias de Owen.147

Esse “comunitarismo” – que se retrai na década de 30 nos EUA e terá um novo momento

nos meados dos anos 40, quando quatro novas comunidades são criadas, mas não mais sob

147 Meneguello (2001, p. 193), aponta as seguintes iniciativas: Cooperative and Economical Society (Londres, Spa Fields, 1821/1823 – 21 operários dividiam os custos de vida trabalhando nos mesmos empregos, com suas famílias) e Orbiston Community (Lanarkshier, 1825/1827); já Talahine (Irlanda, 1831/1833) e Manea Fen (Cambridgshire, 1838) foram dirigidas pelo famoso owenista E. T. Craig; Pont Glass (Merionetshire, 1840 – dirigidas por owenistas de Liverpool); Garnlwyd (Carnarthenshire – comunidade galesa dirigida pela Leeds Redemption Society (1847 a 1855); e a famosa Harmony Hall (Queenwood, East Tytherly, Hampshire) que representa o maior esforço owenista (1839 a 1845).

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supervisão direta de Owen e com alguma influência fourierista – pautava-se, por um lado, no

apoio ao desenvolvimento industrial e, por outro, na recusa de Owen à idéia da luta de classes;

para ele, somente a recuperação do sentido de comunidade, poderia formar um novo homem, um

homem compatível com a abundância que a revolução industrial promoveria; precisava-se,

portanto, preparar as novas gerações para esse momento, apoiando as famílias de trabalhadores

pobres.

Owen parte148 de “cinco fatos fundamentais” que considera “base do sistema racional” e

que constituem os “princípios da ciência da natureza humana”; no primeiro defende que “o

homem é um ser complexo cujo caráter” resulta quase que de uma “reação química” entre sua

“organização original” (“que traz desde o nascimento”) e “as influências externas”; essa sobre-

determinação – que opera do nascimento “até a sua morte” – implicam em, “após cada nova

combinação, uma mudança no próprio caráter do indivíduo”. “Após cada mudança no caráter, o

que existia anteriormente é, em todos os casos, perdido para sempre”.

Recusando o entendimento de que “sentimentos e convicções são o resultado da escolha

do individuo” (liberdade da vontade) – idéia dominante no contexto de ascensão do pensamento

liberal -, Owen constrói como segundo fato que: “sentimentos são instintos da natureza humana,

tentando mudar seus sentimentos atuais de amor ou de aversão pelas pessoas ou pelas coisas”; já

as convicções seriam resultado “da mais forte impressão produzida sobre o espírito”; assim,

deduz que “somos forçados a ter a convicção que sentimos”.

Desta forma, a vontade seria a “motivação para agir” que resulta dos sentimentos e/ou das

convicções – esse é o fundamento do terceiro princípio. Para Owen o entendimento dominante

em sua época – liberdade da vontade, como resultado de sentimentos e convicções – seria a

148 As idéias de Owen aqui apresentadas foram sistematizadas a partir do texto O Livro do Novo Mundo Moral (apud TEIXEIRA, 2002, p. 101-146) por apresentar o pensamento mais maduro desse pensador.

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“fonte dos erros que têm perpetuado a ignorância, a discórdia, a guerra e as matanças, o vício, o

crime e o sofrimento”.

O quarto princípio diz respeito à impossibilidade de “dois seres humanos” terem a mesma

“organização” quando do seu nascimento e da impossibilidade da “arte” em fazê-los iguais

posteriormente. No entanto, defende no quinto princípio, que essa “organização” – no caso de

crianças organicamente saudáveis – pode formar “um ser superior ou um ser inferior” em função

das influências externas.

Neste sentido, entende “que a diferença entre os indivíduos provém da natureza, e que a

arte pode muito bem aumentá-la ou diminuí-la”; e conclui: “ninguém pode, portanto, justa ou

racionalmente, atribuir-se mérito por causa dessa diferença entre ele e o outro”. É exatamente a

conjugação desses princípios que fazem com que Owen invista tanto na questão da reforma ou

melhoria do ambiente fabril, domiciliar e geral, quanto na educação; simultaneamente, combate a

idéia do mérito – tão cara ao pensamento liberal.

Desses cinco fatos, decorrem vinte “leis fundamentais da natureza humana” ou “primeiros

princípios da ciência do homem”, base para uma “verdadeira ciência moral” que deve ter como

objetivo “assegurar o bem-estar da humanidade”. Vale destacar algumas dessas leis:

8. Todo ser humano é organizado de modo tal que, quando jovem, será possível fazê-lo receber tanto idéias verdadeiras retiradas do conhecimento dos fatos quanto falsas noções, extraídas da imaginação e em oposição aos fatos. 9. Ele deve necessariamente tornar-se irracional se é forçado, desde a infância, a receber, como verdadeiras, falsas noções fundamentais, e não poderá tornar-se verdadeiramente racional a menos que receba princípios fundamentais verdadeiros, sem nenhum traço de erro.

*** 17. A mais perfeita saúde, o melhor aperfeiçoamento progressivo e a felicidade permanente dependem do desenvolvimento conveniente de todas as suas faculdades físicas, intelectuais e morais, que são os elementos de sua natureza e devem ser postas em atividade na época conveniente da vida e, em seguida, exercidas com sabedoria, de acordo com sua força física e sua capacidade. (p.105-6)

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Assim, “um mau caráter” seria resultado de “circunstâncias desfavoráveis” desde o

nascimento (décima oitava lei); “um caráter médio” resultaria da exposição a circunstâncias

contrárias à organização original, “produzindo sensações boas e más” (décima nona lei); na

vigésima lei defende que:

20. Ele [o indivíduo] adquire um caráter superior quando sua organização contém a melhor proporção dos elementos da natureza humana e quando as circunstâncias que o cercam desde o nascimento e durante sua vida são tais que produzem somente sensações superiores; ou, em outros termos, quando as leis, instituições e costumes sob os quais vive estão de acordo com as leis da natureza (p.106).

Em sendo leis naturais fundamentais, “e não uma invenção do homem”, seriam “as únicas

leis divinas, no sentido verdadeiro da palavra”. Deveriam, portanto, ser observadas para se

garantir uma plena e sempre equilibrada existência:

A finalidade da existência do homem é desfrutar de felicidade, e a mais alta sabedoria humana consiste no conhecimento dos meios para obter e garantir a maior soma de felicidade que seja possível usufruir permanentemente. Esta importante ciência deve preparar o homem para atingir o mais alto grau possível de perfeição física, intelectual e moral. Ora, a experiência lhe ensina que todas as suas inclinações, todas as suas faculdades são igualmente necessárias para sua felicidade, e devem ser exercidas e desenvolvidas em ordem conveniente e com moderação, sem jamais ultrapassar determinado ponto, sob pena de desarrumar todas as funções do indivíduo e de prejudicar a saúde de sua organização e o bem-estar de seus semelhantes. Como cada parte da organização é essencial para a perfeição do todo, não se pode justamente considerar uma parte inferior às outras. Os sistemas que quiseram reduzir e proscrever certas inclinações e faculdades formaram-se na ignorância da natureza humana e do que constitui a felicidade. (p. 107-8)

Esses princípios e leis levam Owen – na segunda parte do texto – a discutir os “princípios

da religião racional149” que opõe às religiões convencionais; a estas atribui a responsabilidade de

dividirem “as nações e os homens entre si, desde o primeiro período histórico até hoje” e a não

corresponderem à verdade, posto que apoiadas em “três absurdos”: a obrigação de crer nas

149 Em nota a tradução francesa (devidamente incorporada à tradução disponível em TEIXEIRA, 2002, p. 110) esclarece que: “por ‘religião’, deve-se entender o conjunto dos vínculos que unem os homens em sociedade. A palavra ‘caridade’ não significa esmola, mas amor fraternal, benevolência universal. A esmola pode fazer mendigos, mas somente a justiça pode fazer homens.

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doutrinas do modo em que “são explicadas pelos padres” e conforme os livros sagrados; a

obrigação de experimentar os sentimentos que as doutrinas determinam, bem como a obrigação

de pagar os padres e de cumprir esses três absurdos para alcançar méritos “neste mundo e

recompensa eterna no próximo”.

A partir dessas deduções defende que a religião racional – “inestimável ciência prática”

que só “pode ser adquirida senão pela ampla busca da verdade, por meio de um exame exato,

paciente e sem preconceitos dos fatos apresentados pela natureza” – deverá:

unir nação à nação, homem a homem, até que o gênero humano não forme senão uma única família, unida em interesses e sentimentos, sendo todos os seus membros iguais, em educação e condição, segundo a idade, e governada apenas pela caridade e pelo amor, fundados sobre o conhecimento da ciência da natureza humana e da sociedade.(p.110)

Para garantir qualidade e excelência das circunstâncias exteriores, defende instituições e

“disposições” “adequadas ao sistema social racional”; para tal, algumas deveriam ser “abandonas

ou modificadas” e outras criadas. Defende, assim, o abandono ou modificação das seguintes

instituições (p.116-7): religiões, governos de toda as formas, profissões civis e militares, sistemas

monetários, a prática de comprar e vender, as que produzem lutas civis e militares, “o modo atual

de produção e distribuição das riquezas”; a educação (particularmente das mulheres); as práticas

de fraude e violência, interesses isolados que geram o desacordo universal; famílias isoladas e

interesses familiares separados; casamentos de conveniência e indissolúveis; desigualdade da

educação, do emprego e das condições [sociais]; “a opressão do fraco pelo forte”; os impostos

desiguais que, indevidamente, são dispensados; a produção de bens de qualidade inferior.

Os arranjos e disposições que entende deveriam vigorar são (p.117-9): todo o

conhecimento e experiência acumulados (manuais e científicos) devem ser reunidos e

concentrados “por toda a parte” de modo a produzir “a maior quantidade da riqueza mais

preciosa, com um mínimo de trabalho manual malsão ou desagradável, com a menor perda de

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tempo e de capital possível”; que esse conhecimento e experiência sejam utilizados em todos os

“campos da vida social” em nível de excelência; “que as riquezas produzidas sejam conservadas

e distribuídas da maneira mais vantajosa para todos”; “que os governos local e geral” estejam em

consonância com “esse novo estado superior de existência”, preservando a “unidade das

diferentes partes da sociedade” e assegurando o “bem-estar progressivo de todos”; que a

excelência seja de tal ordem que a “única divisão seja a da idade: às crianças, o serviço; aos

adultos, a produção, conservação e distribuição das riquezas; aos idosos, o governo e gozo do

lazer”. Adenda também:

8. Que todos sejam assim empregados em ocupações ativas e atraentes, para aumentar a felicidade e o aperfeiçoamento da sociedade, sem ter consideração exclusivamente para si. A felicidade de cada um será assim constantemente assegurada sem luta e mil vezes ampliada; 9. Esta maneira de educar e de empregar, e de governar a sociedade de acordo com princípios de justiça e de benevolência, tornará inúteis as religiões e as leis antinaturais, as recompensas e as punições150. 10. Que os dois sexos sejam iguais em educação e em direitos (...). Que as crianças sejam todas educadas como filhos de uma mesma família, a grande família humana, unidas pelos interesses e pelo afeto, e ao abrigo de qualquer influência repulsiva.

*** 13. Que não seja cobrado nenhum imposto, sendo todo mundo amplamente provido pela superabundância de um fundo comum. (p. 118-9)

Completam ainda essas disposições a certeza de Owen sobre as conseqüências

decorrentes desse novo sistema: a paz universal decorrente da união que deve ser pautada “na

verdade, sem mistério, mistura de erro, nem temor ao homem”. Assim resume as treze

disposições:

Em virtude dessas mudanças, a sociedade não será mais uma composição discordante de classes altas, médias e baixas, mas tornar-se-á uma única classe eminentemente superior, dividida em seções de acordo com idade, e assegurando a todos a maior soma de bem-estar que comporte sua organização. Formará um único sistema científico vinculado a todas as suas ramificações, para a produção, conservação, distribuição e consumo das riquezas, da maneira mais

150 Em nota da edição francesa consta: “como o autor não admite nem recompensa nem punições, ele só pode contar com atrativos. Esse sistema é o que colocou em prática em New Lanark, na escola. Se o trabalho pode tornar-se atraente, é um contra-senso querer retribuí-lo, igual ou desigualmente.” (TEIXEIRA, 2002, p.118n88).

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vantajosa para cada um e para todos; para melhor formar o caráter físico e intelectual, moral e prático de todos, e para governar o todo, sem violência nem fraude, de maneira a promover o progresso contínuo no aperfeiçoamento de todos os dispositivos sociais, em toda espécie de conhecimentos e no gozo de uma finalidade crescente e inalterável. (p.119)

Defende, ainda, plena e ampla liberdade de expressão em todos os assuntos, mas,

sobretudo, “maior liberdade pessoal de ação compatível com o bem permanente da sociedade” –

isto é, uma liberdade individual que só se justifica em função da vida coletiva.

A terceira parte é dedicada ao que denomina de “Economia Social”151 e, após recapitular

as “leis da natureza humana”, discute aspectos da produção e distribuição, bem como aspectos

relativos à educação, à religião, do governo da sociedade. A exposição que se segue, versará

fundamentalmente sobre a concepção de produção e distribuição, em função das características

do presente trabalho.

Como já referido anteriormente, Owen condena o lucro – entendido como tudo que

excedia o custo de produção, vendo o âmbito da distribuição como um grande vilão do processo

produtivo152:

Na sociedade atual, este ramo ocupa uma grande parte da população que não acrescenta nada à soma dos produtos. Essa classe compreende os compradores e vendedores, negociantes, comerciantes no varejo e no atacado, banqueiros, corretores, agentes e os que recebem rendas, vencimentos e impostos. O interesse de cada um encontra-se em oposição ao dos outros, o desejo de comprar barato e vender caro produz milhares de enganos, fraudes, mentiras, querelas, inveja e miséria; em suma, um verdadeiro estado de guerra social. Em uma sociedade racional, todos esses males desapareceriam e a distribuição do produto tornar-se-ia bem simples e fácil, assegurando a cada um, segundo suas necessidades, uma ampla provisão de objetos úteis. (p.125)

151 Na qual apresenta as seguintes sub-seções: condições necessárias para produzir a felicidade da humanidade; o que é necessário para manter a organização de um estado de saúde permanente até a época natural da velhice e decomposição; e elementos da ciência social – subdivida em várias partes que serão mais detalhadas no corpo do texto. 152 Singer (1998) afirma que “Owen propunha, à base da teoria clássica do valor-trabalho, que o trabalhador tinha direito ao usufruto de todo o seu produto. Para tanto ele propunha a substituição do dinheiro por uma moeda baseada no “tempo de trabalho” gasto na produção.”. Segundo esse autor, essa idéia teria sido o germe das teorias anti-capitalistas do valor que passaram a ganhar ampla aceitação entre os trabalhadores mais informados durante os anos de 1820. Teria como base a doutrina de Ricardo de que “os valores relativos das mercadorias eram principalmente determinados pelas quantidades de trabalho humano incorporadas direta ou indiretamente” na produção; como o trabalhador seria “a única fonte do valor”, deveria também ser o “único detentor legítimo do produto”.

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Para ele produzir em “abundância tudo o que é necessário e útil ao homem” é

fundamental; mas não só: o que é produzido deve sê-lo dentro da “melhor qualidade” e do modo

“mais vantajoso para produtores e consumidores”. E para Owen:

As coisas mais úteis, e em conseqüência mais preciosas, são as que são mais necessárias à existência humana e ao bem-estar social: isto é, o ar, a água, os alimentos, o vestuário, a habitação, a instrução, os divertimentos, a estima e a afeição de nossos associados e da boa sociedade (p.124).

Viver é a primeira necessidade do homem, e a segunda é viver em um estado de fartura que lhe permita desenvolver e exercer todas as suas faculdades. Os meios necessários estão em poder dos governos e seu dever consiste em colocar em ação os poderes produtivos, de maneira que a existência de cada um seja assegurada em estado permanente de bem-estar, com plena garantia de sua duração por toda a vida (p.125).

Para Owen todas as disputas (pela riqueza, pelo poder, pela religião, pela sobrevivência e

pela reprodução) cessariam quando todos “os objetos da mais elevada ambição forem

assegurados a todos” que teriam plena igualdade na “educação e nas condições de vida”, nos

direitos e na liberdade pessoal (conforme os termos anteriormente definidos)153. A essência da

justiça residiria no fato de que “todos os homens têm, por natureza, direitos iguais”. E isso só

seria possível com o fim da propriedade individual – “mal absoluto, a única causa da pobreza e

de mil crimes e sofrimentos, de egoísmo e prostituição, orgulho, injustiça, opressão, decepção,

luta e discórdia”. Para Owen “quando as causas do mal foram eliminadas, o mal cessará, e para

sempre”.

153 Hobsbawm (2005, p. 165 e 171-2) enfatiza como as idéias de Owen influenciaram tanto o movimento como, particularmente, a organização sindical do período na Grã-Bretanha – onde a “tendência proletária independente na política e na ideologia surgiu sob a égide do ‘cooperativismo’ de Robert Owen por volta de 1830.” Lembra também que o “Sindicato Geral (no estilo cooperativista de Owen) de 1834-5” enfrentou hostilidades tanto dos que apoiaram os Atos de Reforma de 1832, como dos que foram contrários. O movimento trabalhista de então buscou uma liderança nos “owenistas, cooperativistas, sindicalistas revolucionários primitivos etc.”, “mas seu fracasso em desenvolver uma estratégia política e uma liderança eficazes e as ofensivas sistemáticas dos empregadores e do governo destruíram o movimento em 1834-6. Este fracasso reduziu os socialistas a grupos educacionais e propagandísticos um tanto à margem da principal corrente de agitação trabalhista ou a pioneiros de algo mais modesto, a cooperação de consumidores, sob a forma de cooperativa de compras, iniciada em Rochdale, Lancashire, em 1844.”

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2.4.3 A “busca da justiça na igualdade”154: a anarquia positiva155 de Proudhon

Dentre os pensadores arrolados nesta parte, foi Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) o que

mais tentou entender os mecanismos da nova ordem social; levando-se em conta que nasceu duas

décadas após a Revolução Francesa, há que se considerar seu esforço em criticar, “por dentro”

dos seus próprios argumentos, as bases da economia política burguesa – movimento necessário,

porém não suficiente para a tarefa pretendida, mas, sem dúvida, um avanço para o seu tempo.

Dado os limites do presente trabalho, privilegiar-se-á o conjunto das principais idéias

desse autor que sustentam sua concepção de justiça sem, contudo, avaliar-se sua análise. Mesmo

com essa redução, não se trata de tarefa simples, pois como afirma Woodcock (2004, p.117):

A dupla imagem de Proudhon que freqüentemente nos chega através das contradições contidas na sua obra não deve, de modo algum, desmerecer a sua importância na história do pensamento político e social ou a natureza de sua contribuição a esse pensamento. Pois Proudhon, que valorizava a liberdade individual a ponto de desconfiar até da própria palavra “associação”, viria a tornar-se o antepassado direto do movimento anarquista organizado, que deu às suas idéias expressão e força coletiva e o verdadeiro mestre de alguns dos homens que o criaram.156

154 Trata-se de um excerto do livro O que é a propriedade? (1840), seu livro mais citado, sendo, porém sua terceira obra, contendo elementos já abordados em De la Célébration du Dimanche (1838), no qual, segundo Woodcock (p.124) “esboçara de forma tosca aqueles que viriam a ser os elementos principais do seu pensamento: o igualitarismo, a teoria sobre os males da propriedade acumulada, a crença numa justiça natural e imanente”. Segundo Trindade (2001, p.19), Proudhon deixou “uma obra enciclopédica que ele nunca teria tido o prazer de resumir (mais de quarenta obras representando quase cinqüenta volumes, sem contar os artigos dos três jornais que criou sucessivamente e uma imensa obra dispersa ainda hoje inédita).” Todas as citações das obras de Proudhon têm um caráter de livre tradução. 155 Segundo Woodcock (2004, p.10-2) Proudhon é “o pioneiro dos filósofos libertários”, tendo sido o primeiro a auto-arrogar a designação de anarquista; em sua concepção positiva, define-a “como um sistema de filosofia social, visando promover mudanças básicas na estrutura da sociedade e, principalmente – pois esse é o elemento comum a todas as formas de anarquismo – a substituição do estado autoritário por alguma forma de cooperação não-governamental entre indivíduos livres”. Envolveria, ainda, três elementos: “uma crítica à sociedade como ela é, uma visão de sociedade alternativa e um planejamento para por em prática esta transformação. Esclarece ainda (p.167) que “as próprias características da atitude libertária – a rejeição ao dogma, a deliberada fuga a sistemas teóricos rígidos e, acima de tudo, a ênfase que dá a total liberdade de escolha, à primazia do julgamento individual”, marcam o anarquismo com diversificação e instância. Como movimento ativista, “pertence unicamente aos séculos XIX e XX”, apesar de identificar elementos comuns na ação direta dos cavadores (XVII) e dos Enargés (XVIII - Revolução Francesa). 156 Lembra ainda que “foram as idéias de Proudhon que influenciaram os operários franceses que ajudaram a criar a Internacional e muitos dos líderes da Comuna de 1871 e a maioria dos sindicalistas militantes da França entre 1890 e

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No campo da crítica à ordem social, Proudhon, buscando identificar o “princípio” do

governo e das instituições, elege como seu objeto de investigação a lei, entendida como “a

determinação do princípio social”; contudo, deseja investigar a relação entre justiça e direito,

posto que a justiça “é o fundamento das sociedades” em torno da qual “gira o mundo político, o

princípio e a regra de todas as transações”157.

Para ele a justiça “não é obra da lei”, pois a lei é “uma declaração e uma aplicação do

justo em todas as circunstâncias em que os homens podem encontrar-se com relação a seus

interesses”. Portanto, se “a idéia de justo e de direito estão mal determinadas”, resultam como

conseqüência: leis desastrosas, instituições viciosas, política equivocada, causando desordem e

mal-estar social – e isto seria uma perversão da idéia de justiça.

1910” (p.117); defende que Proudhon não pode ser pensado “fora da tradição revolucionária francesa” (p.120). Vale lembrar que por nascimento, ele era “um homem do povo”; seu pai era um pequeno artesão: tanoeiro e posteriormente cervejeiro e dono de taberna “totalmente falido”; sua mãe era cozinheira e ambos provinham de famílias camponesas; nasceu numa região devastada pelas guerras napoleônicas (leste da França). Aos nove anos, segundo Trindade (2001), trabalhava como vaqueiro; foi bolsista no Collége de Besançon, abandonando os estudos em função da situação familiar; passa a trabalhar como tipógrafo. Como autodidata aproveitou o ofício para manter aceso seu interesse pelos estudos, afastar-se cada vez mais da religião (revisava as provas dos discursos clericais) e conhecer idéias novas, como O Novo Mundo Industrial e Societário (1829), cuja revisão fez conhecer pessoalmente Fourier. Abriu uma oficina que faliu levando um sócio ao suicídio – Proudhon “herdou sozinho uma dívida que tentaria pagar, sem sucesso, nos trinta anos de vida que lhe restavam” (WOODCOCK, p.122). Por um prêmio recebido da Academia de Besançon vai à Paris e toma conhecimento do descontentamento que grassava entre os operários citadinos. Passa a trabalhar em Lyon que se transformava em centro industrial francês. Inicia contato mais sistemático com um grupo de veteranos que participaram dos levantes de 1831 e 1834 – os mutualistas – que compartilhavam de suas idéias relativas à primazia das mudanças econômicas – e objetivavam criar uma grande associação de operários. Segundo Woodcock (p.129) esse foi o único momento em que Proudhon participou de uma organização clandestina. Foi em Paris que Proudhon conheceu, dentre outros, Herzen, Bakunin e Marx; foi em Paris que se elegeu deputado constituinte em 1848 – quando já vivia como escritor independente - e também foi preso por três anos (1849-52). Em 1858, com a publicação De la Justice dans la revolution et dans eglisés é obrigado a se exilar em Bruxelas. Em 1862 retorna à Paris. 157 Comenta, ainda, Proudhon que “nossas idéias são completamente confusas” acerca da justiça, da equidade e da liberdade; e adenda que essa ignorância “é a única causa do pauperismo que nos degenera e de todas as calamidades que tem afligido a humanidade”. Onze anos depois, no Sétimo Estudo (Absorção do governo pelo organismo econômico) da obra Idée générale de la révolution au XIXe scièle, na seção em que trata da justiça, diz Proudhon: “Enfim, desde 1789, a Justiça é exercida diretamente pelo Estado, que sozinho pronuncia julgamentos executórios , e fatura, sem contar as multas, uma soma fixa de 27 milhões. O que ganhou o povo com essa mudança? Nada. A Justiça permanece o que era antes, uma emanação da autoridade, isto é, uma fórmula de coerção radicalmente nula, e em todas as suas disposições, recusável. Não sabemos o que é a justiça.” Em função disso alega: “Do ponto de vista político, recolocar nas mãos das antigas magistraturas, imbuídas de idéias nefastas, a interpretação do novo pacto, seria tudo comprometer. Constatamos isso com grande facilidade: se os homens da justiça mostram-se impiedosos em relação a socialistas, é que o socialismo é a negação da função jurídica, assim como da lei que a determina.”

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Com esse quadro inicial faz um balanço dos desdobramentos da Revolução Francesa e da

Revolução de 1830; a primeira observação diz respeito à sua constatação da conservação dos

mesmos princípios que as motivaram: soberania da paixão (autoridade) e não da razão (lei), posto

que reduzida à vontade do homem (despotismo); a desigualdade de fortunas e de posição que

impedem a igualdade de direitos e a manutenção da propriedade – base de “abusos”,

desigualdade e injustiça.

Proudhon leva ao extremo os argumentos de sua época em relação ao valor-trabalho –

definidor, segundo Locke, do direito do primeiro ocupante – para denunciar os “abusos” da

propriedade dos meios de produção, principalmente em relação à distribuição158; denunciava a

contradição entre condições de produção (“organização técnica e operatória”), os “atores”

envolvidos no trabalho e a “organização jurídico-social” (TRINDADE, 2001, p.45). Para

Proudhon o trabalho gera direitos absolutos sobre o que é produzido, tanto pelo conhecimento

acumulado sobre o modo de produzir, como pela organização que gera a “força coletiva” – e

esses fatores, que não são cobertos por salário159 algum, se constituem em eterna dívida do

capitalista.

Este fermento reprodutor, este germe eterno de vida, esta preparação de um fundo e de instrumentos de produção, é o que o capitalista deve ao produtor, e o que não lhe paga jamais, e esta recusa fraudulenta é a causa da indigência do trabalhador, do luxo do ocioso e da desigualdade de condições. Nisto consiste, especialmente o que tão propriamente se tem chamado exploração do homem pelo homem.

158 Neste sentido, Proudhon ataca particularmente os princípios distributivos de Saint-Simon (a cada um segundo sua capacidade, a cada capacidade segundo suas obras) e de Fourier (a cada um segundo seu capital, seu trabalho e sua capacidade). 159 Argumentando contra o entendimento corrente de que o salário é resultado de uma troca ou de uma venda, advoga Proudhon que o salário deve ser entendido como “um gasto necessário ao sustento diário do trabalhador”. Neste sentido, refuta até mesmo as propostas de participação nos produtos e benefícios, pois para ele “é pura caridade, simples favor”. Sua proposição consiste em advogar que “o trabalhador conserva, ainda depois de ter recebido seu salário, um direito natural de propriedade sobre a coisa que foi produzida”.

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Ademais a propriedade dos meios de produção – que tem “faculdade de exclusão” e de

“usurpação”160 – cria uma desigualdade natural, pois impede a igualdade de retribuição; contribui

ainda de modo determinante a divisão social do trabalho que resulta também da defesa

ignominiosa da desigualdade das faculdades ou dos talentos naturais.

Entende Proudhon que todos têm capacidades iguais161 e que não há justificativa plausível

para a diferença de retribuição, pois o que se troca é o tempo de custo investido na criação de um

produto. Assim, o talento pode ser infinito, mas a retribuição esta limitada à utilidade que um

trabalho retorna à sociedade e às condições de riqueza dessa sociedade – neste sentido, uma

sociedade pode viver sem as mais variadas expressões artísticas e literárias, mas não pode existir

160 A “faculdade de exclusão” está referida à dimensão jurídica que se constrói a partir do direito ilimitado de propriedade – motivo pelo qual afirma, criticando a Constituição de 1793, que “defender hoje a propriedade é condenar a Revolução”. Já a “faculdade usurpação” é assim resumida por Proudhon ao final do Capítulo 4 (apud TEIXEIRA, 2002, p. 297-8): “1. O princípio do direito econômico é de que os produtos só podem ser comprados por produtos; a propriedade, não podendo ser defendida como produtora de utilidades e nada produzindo, está, a partir desse momento condenada. 2. É uma lei da economia que o trabalho deve ser compensado pelo produto; é um fato que, com a propriedade, a produção custa mais do que vale. 3. Outra lei da economia: sendo dado o capital, a produção se mede não pelo tamanho do capital, mas pela força produtiva: a propriedade, ao exigir que o rendimento seja sempre proporcional ao capital, sem levar em conta o trabalho, desconhece esta relação de igualdade entre causa e efeito. 4. Como o inseto que faz a seda, o trabalhador produz sempre para si mesmo; a propriedade, ao exigir produção dupla e não a podendo obter, espolia o trabalhador e o mata. 5. A natureza deu a cada homem apenas uma razão, um espírito e uma vontade; a propriedade, ao conceder ao mesmo indivíduo pluralidade de votos, supõe-lhe pluralidade de almas. 6. Todo consumo que não é capaz de reproduzir uma utilidade é destrutivo; a propriedade, seja consumindo, seja poupando, seja capitalizando, é produtora de inutilidade, causa de esterilidade e de morte. 7. Toda satisfação de um direito natural é uma equação, em outros termos, o direito a uma coisa é necessariamente satisfeito pela posse dessa coisa. Assim, entre o direito à liberdade e a condições de homem livre existe equilíbrio, equação; entre o direito de ser pai e a paternidade, equação; entre o direito à segurança e garantia social, equação. Mas entre o direito de albana e o recebimento da albana nunca existe equação; pois à medida que a albana é recebida, ela dá direito a uma outra, essa a uma terceira etc., o que não tem mais fim. A propriedade, não sendo jamais adequada ao seu objeto, é um direito contrário à natureza e à razão. 8. A propriedade, enfim, não existe por si mesma; para produzir, para atuar, ela tem necessidade de um fator externo, que é a força ou a fraude; em outras palavras, a propriedade não é igual à propriedade, é uma negação, uma mentira, nada.” 161 No Capítulo V, seção III, defende Proudhon: “Todos, sin excepción, nacemos poetas, matemáticos, filósofos, artistas, artesanos, labradores; pero no tenemos estas aptitudes iguales, y de un hombre a otro en la sociedad, y de una facultad a otra, en un mismo hombre, las proporciones son infinitas. Esta variedad de grados en las mismas facultades, esta preponderancia de talento para ciertos trabajos, es, según hemos dicho anteriormente, el fundamento de nuestra sociedad. La inteligencia y el genio natural han sido distribuidos por la Naturaleza con tan exquisita economía y de modo tan providencial, que en el organismo social no puede haber jamás exceso ni falta de talentos especiales, y cada trabajador, limitándose a su función propia, puede siempre adquirir el grado de instrucción necesaria para disfrutar de los trabajos y descubrimentos de todos sus asociados. Por esta previsión tan sencilla como sabia de la Naturaleza, el trabajador no está aislado en su labor; por el contrario, se halla por el pensamiento en comunicación con sus semejantes antes de unirse a ellos por el corazón; de suerte que el amor en él nace de la inteligencia.”

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“sem comida e alojamento”; ademais, todo talento é uma propriedade coletiva que nenhum

portador individual poderá retribuir.

Mas agora [o médico] tampouco pode elevar-se por cima dessa mesma igualdade, porque seu talento é uma propriedade coletiva pela qual não pagou e sempre será devedor. Assim como a criação de todo instrumento de produção é resultado de um esforço coletivo, o talento e a ciência de um homem são produto da inteligência universal e de uma ciência geral lentamente acumulada por multidão de sábios, mediante o concurso de um sem número de contribuições inferiores. Ainda quando o médico paga seus professores, seus livros, seus títulos e cumpre todos os seus gastos, não pode por isso dizer que pagou seu talento, como o capitalista tampouco pagou sua propriedade e seu palácio com o salário de seus trabalhadores. O homem de talento contribui para produzir a si mesmo como um instrumento útil, do qual é co-possuidor, porém não proprietário. Ao mesmo tempo existe nele um trabalhador livre e um capital social acumulado. Como trabalhador está apto para o uso de um instrumento, para a direção de uma máquina, que é sua própria capacidade. Como capital não se pertence, não deve explorar-se em seu benefício, mas sim no benefício dos demais homens.

No conjunto dos argumentos contrários à meritocracia, Proudhon critica a chamada

“carreiras abertas ao talento” e denuncia a “desigualdade de hierarquias” das funções públicas

que se implicassem em igualdade seriam deveres e não direitos. Outro argumento – que é

considerado ainda hoje – diz respeito ao exercício das funções “mais repugnantes, mas vis e

desprezadas” e que não se pode obrigar ninguém a executá-las; para esse pensador se a

desigualdade de retribuição atendesse à lógica das capacidades – isto é, segundo as suas obras –

essas deveriam ser as atividades melhor remuneradas.

Em relação à justiça Proudhon invoca o concurso da “psicologia” e da “antropologia”

para defendê-la como resultado “híbrido” das faculdades afetivas e intelectuais do homem – que

considera um “animal social” que tem como fim a conservação da espécie e do indivíduo. Desta

forma, “metafisicamente” falando, a sociedade é obrigatória – pois um produtor é sempre

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associado de outro - assim como a justiça e a igualdade, que para ele são “termos equivalentes,

três expressões sinônimas, cuja mútua substituição é sempre legítima” 162.

Assim, como “idéia geral”, “como categoria de entendimento”, define a justiça como “a

categoria das quantidades iguais”; para ele, se faz justiça quando se dá “a cada um uma parte

igual de bens, sob a condição igual de trabalho. É trabalhar em associação”. Já o “direito de

ocupação” é definido como “um modo natural de distribuir a terra entre os trabalhadores a

medida que existem. Este direito desaparece ante o interesse geral que, por ser interesse social, é

também o do ocupante”. O direito ao trabalho é entendido como “o direito de participar dos bens

levando em consideração as condições requeridas”. Em síntese, constata que os “fatos da

sociedade que até aqui temos observado são de sociabilidade animal. Sabemos que a justiça é a

sociabilidade concebida sob a razão de igualdade, porém em nada nos diferenciamos dos

animais”.

Sociabilidade, justiça, equidade, tal é, em seu terceiro grau, a exata definição da faculdade instintiva que nos força a buscar o comércio com nossos semelhantes e cuja fórmula gráfica está contida nesta expressão: Igualdade nos produtos da Natureza e no trabalho. Estes três graus de sociabilidade se complementam uns aos outros. A equidade, sem a justiça, não existe; a sociedade, sem a justiça, é impossível. Com efeito, se para recompensar o talento tomo o produto de um para dá-lo a outro, ao despojar o primeiro não aprecio devidamente o seu talento. Se a sociedade me adjudicou uma participação maior que a de meu associado, não estamos verdadeiramente associados. A justiça é a sociabilidade que se manifesta pelo desfrute igual das coisas materiais, únicas suscetíveis de peso e de medida. A equidade é a justiça acompanhada de admiração e afeto, coisas que não podem ser medidas.

O sentido de igualdade como equivalente à justiça é tão forte em Proudhon que defende

que “a construção da alma humana e a divisão industrial” devem encontrar “compensações” para

as desigualdades naturais. Afirma Trindade (2004):

162 Arroga Proudhon: “ainda que não quiséssemos estar associados, a força das coisas, as necessidades de nosso consumo, as leis da produção, o princípio matemático da troca, nos associariam”; e acrescenta: “uma sociedade de comércio, de indústria, de agricultura não pode conceber-se fora da igualdade. A igualdade é a condição necessária de sua existência de tal modo, que em todas as coisas que dizem respeito à sociedade, faltar a sociedade ou a justiça ou a igualdade, são atos equivalentes”.

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Aliás, quando a igualdade não está na natureza a função dos homens é de aí a colocar. É o papel da verdadeira economia política, que não é a dos economistas oficiais. Esta declara fatais as variações caprichosas dos fatos econômicos: “a ciência, para estes senhores, acaba ou acaba a fatalidade”. Mas para Proudhon a ciência deve dominar os fenômenos e não sujeitar-se a eles. Deve “compensar os minima et maxima” entre os quais oscilam os fenômenos, e “libertar as médias”: tal é “ a aplicação da Justiça à economia política”, que é o que diz Léon Walras. Deste modo a igualdade é tanto uma lei natural, como o resultado duma intervenção para restabelecer à média as desigualdades naturais ou sociais. Devem colaborar “a prudência do legislador, a habilidade do economista, a sabedoria do pedagogo”.

É com base nessas premissas que Proudhon apresenta sua “proposta alternativa de

sociedade” – que Woodcock (p, 117-9) define como um “individualismo social” – isto é, uma

concepção de liberdade individual como “enraizada nos processos naturais que deram origem à

própria sociedade”. Por isso Proudhon recusa tanto o comunismo (cuja forma primitiva implicava

em escravidão porque impunha uma “uniformidade” que subsumia com as diferenças individuais,

e cuja negação teria dado origem à propriedade163), como o capitalismo (que atenta contra a

igualdade, contra a verdadeira e natural liberdade e, portanto, contra a justiça, mantendo ainda a

autoridade do homem sobre o homem). Recusa a concepção atomista de sociedade, pois entende

que só através dela o homem pode “encontrar sua função e realização”. Sinteticamente, o

capitalismo seria injusto pelos princípios da igualdade e da lei e o comunismo (ou “comunidade”)

também o seria, mas em função da liberdade individual.

Assim propõe o “sistema da liberdade” – ou anarquia - argumentando que “a propriedade

e a autoridade estão ameaçadas de ruína desde o princípio do mundo, e assim como o homem

busca a justiça na igualdade, a sociedade aspira a ordem na anarquia”. E adenda:

Mas se imaginamos uma sociedade fundada nestes quatro princípios – igualdade, lei, independência, proporcionalidade, acharemos:

163 Argumenta Proudhon: “assim, o mal moral, ou seja, a questão que tratamos, a desordem da sociedade se explica naturalmente por nossa capacidade de reflexão. O pauperismo, os crimes, as revoluções, as guerras tem tido por mãe a desigualdade de condições, que é filha da propriedade, a qual nasceu do egoísmo, foi engendrada pelo interesse privado e descende em linha reta da autocracia da razão. “ E adenda: “A comunidade pretende a igualdade e a lei. A propriedade, nascida do sentimento de mérito pessoal, aspira freqüentemente a independência e a proporcionalidade”.

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1º Que consistindo a igualdade unicamente na igualdade de condições, ou seja, não na igualdade de bem-estar (a qual, mediante a igualdade de meios, deve ser obra do trabalhador), não se atenta contra a justiça e a equidade.164 2º Que a lei, como resultado da ciência e dos fatos, fundada, portanto, na necessidade mesma, não pode atentar jamais contra independência. 3º Que a independência recíproca dos indivíduos, ou a autonomia da razão privada, como derivada que é da diferença de talentos e capacidades, pode existir sem perigo dentro da lei. 4º Que não se admitindo a proporcionalidade, senão na esfera da inteligência e do sentimento, porém não na ordem das coisas físicas, pode observar-se sem violar a justiça ou a igualdade social. Esta terceira forma de sociedade, síntese da comunidade e da propriedade, se chama liberdade.

Nessa sociedade seriam garantidos: a posse individual e o direito igual de ocupação, o

igual resultado do trabalho, propriedade dos meios de produção (coletiva e indivisa), iguais

remuneração, direitos e deveres; troca de produtos por produtos equivalentes, associação livre;

direito de posse individual (bem como sucessão hereditária, sem possibilidade de acumulação);

direito de ocupação igual para todos. Conseqüentemente seriam vetados: desigualdade de

remuneração e fortuna, sob o pretexto de desigualdade de capacidades, o lucro (que faria

desaparecer o pauperismo, o luxo, a opressão e o vício, o crime e a fome). Neste contexto a

política se afirmaria como a ciência da liberdade. Essa sociedade garantiria ainda:

Os homens estão associados pela lei física e matemática da produção antes de estarem por seu consentimento; por conseguinte, a igualdade de condições é de justiça, ou seja, de direito social, de direito estrito; o afeto, a amizade, a gratidão, a admiração correspondem ao direito equitativo ou proporcional.

Para Proudhon a estratégia compatível com o alcance desse tipo de sociedade seria a

proliferação pacífica de organizações cooperativistas – em síntese, o mutualismo de Proudhon:

grandes federações de comunas e cooperativas operárias, com um modelo econômico onde

indivíduos e pequenos grupos disporiam de meios de produção coletivos e se associariam por

164 Woodcock (2004, p. 30) chama a atenção que “recursos suficientes para permitir que o homem seja livre – esse é o limite das exigências materiais do anarquista”. Assevera que é com base nessa idéia que Proudhon em seu livro La Guerre et la Paix diferencia indigência (entendida como penúria) e pobreza ( “estado em que o homem ganha com seu trabalho o suficiente para satisfazer suas necessidades”, portanto, “mais livre – senhor dos seus sentidos e apetites”, mas em condições para “espiritualizar a vida”).

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intermédio da permuta de produtos e crédito mútuo (uniões de crédito) – assim todos teriam

assegurados o produto de seu próprio trabalho (WOODCOCK, 2004, p. 20).

A concepção de mutualismo esta atrelada à idéia do federalismo. Ambas, constituem o

que hoje se denomina “federalismo autogestionário de Proudhon” (TRINDADE, 2004, p. 27-8).

Este comportaria duas dimensões distintas, porém complementares: “a democracia econômica

mutualista” (que corresponderia às relações sócio-econômicas ou “sociedade de produção ou

organismo econômico”) e a “democracia política e federalista” (referida à “sociedade de relação

ou corpo político”).

Proudhon (1967) define o mutualismo como um “sistema de garantias” que substituiria

tanto a organização da sociedade, como as relações comerciais vigentes; tal sistema atenderia “às

condições de eficácia, de progresso de justiça”, constituindo uma sociedade real que, “pelo poder

de seu princípio”, ao invés de “demandar crédito ao capital e proteção ao Estado”, submeteria ao

trabalho tanto o capital como o Estado (p.109). Para ele o mutualismo é a “aplicação da justiça à

economia política” – “uma fórmula radical de democracia” que “intenta fundar o direito

econômico” e “profissional”.

Seu manancial são as “relações sócio-econômicas”; sua base, um contrato real; o objetivo

é reconstruir a sociedade – vez que, “do ponto de vista do ser coletivo”, é “a síntese das idéias de

propriedade e de comunidade” (p. 103); tem por princípio as associações de trabalhadores”,

independentemente de sua forma de inserção no processo produtivo: “corporações ou

indivíduos”, “industriais ou agricultores”. O importante é a base desse contrato, através do qual

prometem e garantem reciprocamente “serviços por serviços, crédito por crédito, valor por valor,

informação por informação, propriedade por propriedade”. Assim seriam “instituições” do

mutualismo proudhoniano: segurança mútua, crédito mútuo, socorro mútuo, ensino mútuo,

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garantias recíprocas de mercado, de troca, de trabalho, de qualidade e de justo preço de

mercadorias (p.110).

Neste sentido, formula uma “teoria mutualista e federativa da propriedade” (p. 111) que

objetiva reconstruir a propriedade – aqui Proudhon se reposiciona: “se a propriedade é uma

realidade”, ela deve ser condicionada, ela deve ser submetida ao princípio da federação (p. 115),

entendido como “sinônimo de mutualidade” e “corolário da federação agrícola-industrial”

(p.116).

A idéia é a de que a “propriedade mutualista” sirva de “contrapeso ao poder político” de

modo a garantir a liberdade individual; neste sistema, portanto, será essa a “função principal da

propriedade” (p. 112). Vale destacar que Proudhon aponta outras funções da propriedade: a

pessoal (o que gera para o trabalhador), a econômica (que diz respeito à “economia política e a

moral” e que remete à questão da posse anteriormente mencionada) e a função social (trabalhar,

produzir, possuir). A proposta é a de que a propriedade federalista substitua “o princípio do

monopólio pelo da mutualidade”. Assim, a Federação Agrícola-industrial colocaria fim à

especulação, substituindo o comando capitalista pela mutualidade dos serviços e pela associação

dos trabalhadores; enfim, garantiria a igualdade e o desenvolvimento (p.116).

Trindade (2004, p. 28-9) assim resume a idéia da socialização liberal e não-estatal

defendida por Proudhon e parte integrante do seu mutualismo:

A federação das propriedades mutualistas constitui a sociedade econômica mutualista dos trabalhadores. Esta teoria termina na mutualização federativa da agricultura: constituição de propriedades individuais de exploração, associadas em conjuntos cooperativos dotados de poderes próprios e de serviços coletivos, e reagrupados numa federação agrícola. Ela desemboca numa socialização federativa da indústria, ou seja, a exceção feita às propriedades artesanais ou liberais mutualizadas, sobre um conjunto de propriedades coletivas de empresas, concorrentes entre si, mas associadas numa federação industrial. Traduz-se pelo agrupamento da indústria e da agricultura numa “federação agrícola industrial” e pela constituição de agrupamentos de uniões de consumidores que formarão, em conjunto o “sindicato da produção e do consumo”. Este último, vigia a organização cooperativa dos serviços (comércio, alojamento, seguros e crédito)

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e a gestão geral da sociedade econômica, independentemente do Estado. No plano internacional, está prevista uma “confederação mutualista” aliando um mercado comum socializado dos grupos de sociedades econômicas nacionais. Este coletivismo econômico, liberal e a-estatal quer evitar um duplo perigo de um capitalismo integrante e de um coletivismo integral.

Essas relações mútuas seriam celebradas apenas sob a razão que impera por mútua

concordância dos interesses de todos os envolvidos, conforme usos e costumes sociais,

dispensando, portanto, leis e/ou qualquer representação de autoridade. Com liberdade e igualdade

para transacionar só haveria uma “contínua evolução – tal como se vê na Natureza”

(WOODCOCK, 2004, p. 23). Para esse autor,

Aqui é possível perceber que o que Proudhon está na verdade buscando é um tipo de equilíbrio no qual as contradições econômicas não serão eliminadas – já que isso é impossível -, mas transformadas numa igualdade dinâmica. Essa igualdade dinâmica ele a encontra no mutualismo, um conceito que inclui elementos tão familiares aos proudhonianos como a dissolução do governo, a distribuição da propriedade e a liberdade do crédito.

Já adoentado Proudhon escreve Du Principe Féderatif (1863), tendo como base especial

de observação a denominada Questão Meridional italiana, bem como os rumos da democracia –

que havia se tornado “infiel a si mesma”, pois “rompeu com suas origens”. Essa obra se constitui

numa tentativa de pensar seus princípios – mais econômicos – para a “sociedade em geral”;

contudo, como informa Woodcock (2004, p. 155) é também sua obra mais confusa.

Define como federação o pacto (ou convênio) que se estabelece entre “muitos chefes de

família, um ou muitos municípios”, “regiões, províncias”, “muitos grupos de povos ou Estados”

através do qual as partes “se obrigam recíproca e igualmente uns para com outros, com o fim de

satisfazer um ou muitos objetivos particulares”; ao pactuar garantem suas autonomias e também

“mais direitos, mais liberdade, mais autoridades, mais propriedade do que cedem”; esse pacto é

“restrito, apesar dos grandes interesses que constituem seu objeto”. Tem como condição

fundamental a autonomia das partes contratantes, a garantia da liberdade dos cidadãos,

mantendo-se com isso a unidade e a estabilidade.

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Aplicando logo esta idéia e procurando darmos conta dela, temos reconhecido que o contrato social por excelência é um contrato de federação, que temos definido nestes termos: Um contrato geral e comutativo para um ou muitos objetos determinados, cuja condição essencial é que os contratantes se reservem sempre uma parte de soberania e de ação maior da que cedem.

Assim definido, o federalismo pressupõe vários níveis de organização que se estruturam a

partir do nível local165 – este seria controlado pelo povo a partir de sua inserção em comunas e

associações, garantindo simultaneamente liberdade, soberania e estabilidade social – chegando

até uma confederação de confederações (como a que sugere para a Europa).

Nisto consiste toda a ciência constitucional que vou resumir em três proposições: 1º Convém formar grupos nem muito grandes, nem muito pequenos que sejam respectivamente soberanos e unidos por meio de um pacto federal. 2º Convém organizar em cada Estado federado o governo com arranjo da lei de separação de órgãos e funções; isto é, separar no poder tudo o que seja separável; definir tudo o que seja definível; distribuir entre os diferentes funcionários e órgãos tudo o que havia sido definido e separado, não deixar nada indiviso; cercar por fim a administração pública de todas as condições de publicidade e vigilância. 3º Convém, ao invés de refundir os Estados federados ou as autoridades regionais e municipais em uma autoridade central, se reduzir as atribuições a um simples papel de iniciativa, garantia mútua e vigilância, sem que seus decretos possam ser executados sem o prévio visto dos governos confederados e por agentes postos a suas ordens, como acontece na monarquia constitucional, onde toda ordem que emana do rei não pode ser executada sem o referendo de um ministro.

Defende Proudhon que o papel do “estado ou governo” é o de “legislar, instituir, criar,

inaugurar” e “o menos possível” executar; para ele o Estado “não é um empresário do serviços

públicos; isto seria assemelhar-se aos industriais que se encarregam por um preço orçado dos

trabalhos dos municípios”. Esclarece, assim, sua proposta:

Considerada em si mesma, a idéia de uma federação industrial que venha a servir de complemento e sanção à política está ostensivamente confirmada pelos princípios da economia política. É a aplicação em sua mais alta escala dos

165 No já citado Sétimo estudo de Idée générale de la révolution au XIXe scièle, esse pensador sintetiza sua posição em relação à centralização: “Assim como a religião de Estado é o estupro da consciência, a centralização administrativa é a castração da liberdade. (...). A religião de Estado produziu a Inquisição, a administração de Estado engendrou a polícia.”

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princípios de reciprocidade, de divisão do trabalho e de solidariedade econômica, princípios que seriam leis do Estado pela vontade do povo.

É possível depreender-se que esse pensador passou a admitir a limitação do poder do

Estado como uma etapa necessária para a anarquia. Proudhon termina esse trabalho indicando a

síntese de suas idéias econômicas como a idéia de “federação agrícola-industrial” e as políticas

na idéias de “federação política ou descentralização”; explica ainda que a expressão “federação

progressiva” encerra todas as suas esperanças para o presente e para o futuro.

2.5 Justiças e igualdades: (des)semelhanças, especificidades

Como foi sinalizado em segmentos anteriores, mesmo no próprio “campo” – o da crítica a

ordem social vigente – e no mesmo período histórico existiram diferentes concepções de justiça,

de igualdade e de liberdade; variável também era tanto a existência, como o conteúdo das

estratégias para enfrentamento das mazelas de cada tempo, de cada ordem social. A rigor, um

mesmo pensador – até mesmo em uma única obra – defende concepções diferentes.

O grande traço comum é a concepção de justiça atrelada à de igualdade – que deve se

explicitar na lei, conformando uma sociedade justa. Nesta seção, portanto, foram apresentados

critérios normativos independentes que avaliam a ordem social vigente – por todos considerada

injusta – logo, não se tratando de justificação. Porém, cabem algumas observações. Nem todos os

autores aqui relacionados atribuem à legislação um papel preponderante no porvir (Owen, por

exemplo), nem mesmo partilham da mesma concepção de igualdade.

A concepção de igualdade em Morus se constrói a partir de grupos sociais definidos –

igualdade plena para os cidadãos utopianos livres; se não é esse o caso, as regras mudam.

Defende uma organização social hierarquizada, mas com resultados previamente definidos a

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partir da restrição de privilégios e do fim da propriedade privada. Na Utopia o critério de justiça é

baseado na necessidade; mas Hitlodeu – o narrador – define como princípio de justiça a

expressão “a cada um uma porção igual de bens” que só elimina as desigualdades numa

sociedade que aboliu a propriedade privada e adotou um modo de produção que não contenha a

possibilidade de exploração; do contrário, mantém as desigualdades pré-existentes.

Müntzer parte de uma concepção de organização social – comunitarismo fraternal – onde

todos são iguais em tudo, apesar de admitir governantes. Tem como motivação a necessidade e a

exploração; defende resultado, restrição de privilégios e liberdade religiosa. Como estratégia

defende a ação direta: associação, regicídio, enfrentamento direto. Já os camponeses

reivindicavam o fim da arbitrariedade, a extensão de direitos e limitação da exploração (mas

também fim da servidão) em nome da necessidade; entendiam que todos tinham direito ao que

era comum.

Os Niveladores, dentre o elenco apresentado, são os primeiros a fazer referência explícita

à liberdade, pelos motivos já apontados. A igualdade defendida era restrita, pois voltada para os

proprietários de sua própria força de trabalho – o que já se viu deixava de fora extensos

segmentos da população – igualdade de todos na propriedade (de sua força de trabalho) e na

liberdade (como independência), consolidadas através dos direitos políticos, econômicos, civis e

religiosos que – em tese – reivindicavam para todos. Partindo do direito de subsistência como um

direito natural, pleiteavam extensão de direitos e oportunidade ao invés de resultados; mas

mesmo o pleito por oportunidades - como já se viu – era restrito. Aqui a lógica não era a do

genus, mas sim a do individualismo que Macpherson (1979) denomina de possessivo; pode

deduzir-se que o critério de justiça defendido era “a cada um segundo seu trabalho e sua

capacidade”. A reforma pretendida, portanto, indica um igualitarismo restrito.

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Já os Cavadores alinham-se com os autores anteriormente mencionados: partem da

necessidade, desejam resultado através da restrição de privilégios, do fim da propriedade privada

e do domínio; defendem também o comunismo fraternal, sem classes.

Meslier defendia o critério da necessidade, mas para ele a justiça englobava um conjunto

complexo de direitos (naturais, como a igualdade de todos e a liberdade concebida como

oposição à tirania) e deveres (fraternidade e caridade); a justiça só se realizaria, portanto, com o

que denomina de “equidade natural” no sentido aristotélico de compensação, de ajuste. Defendia

uma ordem social de resultado, com restrição de privilégios e o fim da propriedade privada e,

conseqüentemente, da exploração, bem como do domínio. Se em Morus a legislação era

outorgada e a administração coletivizada, em Meslier tem-se a defesa do povo participando da

elaboração da lei; seu comunitarismo também previa hierarquia e sua concepção de liberdade se

restringia à política. Apesar de sua trajetória, pregava ação direta (com regicídio e rebelião)

através da união dos explorados com liderança dos “esclarecidos”.

Morelly também defende um comunitarismo, com resultado e restrição; seu critério é “a

cada um o seu”, mas porque defende a coordenação das “forças sociais com a capacidade do

indivíduo”; se até aqui as desigualdades naturais não tinham destaque na argumentação - isto é,

se constituíam em breve referência de que deveriam ser atendidas (com exceção para os

niveladores que não tratam dessa questão) -, a partir desse pensador entram com força no

conjunto dos argumentos: talentos e capacidade devem ser colocados à serviço da coletividade.

Outro aspecto que deve ser destacado é a concepção de liberdade como “dependência

mútua entre homens absolutamente iguais” sob a égide do contrato social que também tem uma

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leitura inovadora166. Introduz ainda a idéia de “igualdade de condições e de direito” que o faz

restringir a propriedade privada somente “para trabalho diário, necessidades e prazeres”, pois os

cidadãos devem ser mantidos pelo Estado. Sua sugestão de reforma lembra o diagnóstico de

Morus quando defende que nada fará voltar a “igualdade natural” se a propriedade privada não

for eliminada.

Rousseau defende a restrição da propriedade individual e, conseqüentemente, dos

privilégios que dela decorrem, a igualdade se define pela mesma condição para todos perante a

lei – lei essa pautada na vontade geral: a condição da verdadeira liberdade e da própria igualdade.

A organização social que defende se pauta pela restrição, mas também pela extensão e pela

oportunidade: “a cada um segundo seu trabalho”. Se a tirania se instala, cabe a ação direta.

Babeuf também acompanha essa concepção de liberdade, mas pressupondo o direito à

vida, ao seu desenvolvimento e à sua conservação como o único direito natural, defende a

igualdade como garantia de base material para todos. Advoga resultados tanto pela restrição de

privilégio pela eliminação da propriedade privada, como pela extensão de direitos também no

campo político; neste contexto as desigualdades naturais (talentos e capacidades) devem ser

usadas para o conjunto da sociedade.

Owen justifica as diferenças entre os indivíduos a partir das diferentes “oportunidades”: as

influências do meio em que vivem e o tipo de educação que recebem seriam os responsáveis

pelas desigualdades sociais; defende que sob iguais influências do meio todos são iguais, sendo

as diferenças geracionais as únicas naturais; para as demais diferenças advoga compensação. A

liberdade individual só é admitida em função da vida coletiva. Pretende resultado a partir da

restrição e da eliminação da propriedade privada. Nesse quadro a justiça é o que faz os homens

166 Não se advoga aqui que Morelly foi dentre todos os pensadores de sua época e de épocas anteriores o “descobridor” da questão; a rigor, o próprio Morelly diz que não fez mais que sistematizar idéias que todos conheciam. O que se pretende dizer, é que dentre os pensadores lidos, é esse autor que coloca a questão pela primeira vez.

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desenvolverem suas possibilidades e potencialidades. Propõe um comunitarismo associativista e

fraternal, defendendo como critérios distributivos tanto a necessidade, como uma distribuição

mais vantajosa para cada um e para todos – assim, pretende garantir a todos “seus objetos de

ambição”.

Com Proudhon a liberdade é defendida como “autonomia da razão privada”; a igualdade é

qualificada como “social”, significando igualdade de condições – e não de bem-estar, posto que

ficaria ao encargo de cada trabalhador realizar; em função de sua concepção de liberdade, só

pode defender o pluralismo. Por refutar veementemente (e com a mais completa elaboração) as

desigualdades de talento e capacidade, defende que a igualdade também é “resultado de uma

intervenção para restabelecer à média as desigualdades sociais ou naturais”. Seu igualitarismo é

pela restrição (também da propriedade) e pela oportunidade; a justiça é a “categoria das

quantidades iguais” e não pode ser pensada sem a igualdade e a sociabilidade (concebida sob a

razão da igualdade) que necessariamente implicam em liberdade. Apresenta como estratégia a

consecução do mutualismo cooperativista e a ação direta espontânea.

Vale lembrar que essas diferentes concepções (mas não só essas), explícita ou

implicitamente, se encontram – e também se confrontam – em vários momentos de resistência

aberta – organizada ou não – do movimento operário nos diferentes países: na Inglaterra tanto na

luta pelo sufrágio universal (1819) como nas manifestações de rua (1835), nas manifestações sob

a égide do Cartismo (1838, 1840, 1848), na chamada “primavera dos povos” (1848, iniciada em

Paris e que segue pela Alemanha, Império Austro-Húngaro, Itália, Polônia e norte da Europa) e

na Comuna de Paris.

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Se as primeiras tentativas de unificar as idéias socialistas e as organizações operárias só se

dão a partir da criação da Associação Internacional do Trabalho (1864 – mais conhecida como I

Internacional), do ponto de vista do capital, a reação já aparece pouco depois de 1848167.

Esses embates prosseguiram, valendo aqui destacar o Congresso de Erfürt (1891), no qual

a proposta rechaçada de um dos “jovens” – o “reformista” Vollmar – que defendia não se tratar

“de renunciar aos ‘postulados essenciais’, mas colocar no centro da luta do movimento operário e

socialista o objetivo da ‘melhoria das condições de vida do trabalhador’”. Nesse Congresso vence

a proposta de Bernstein que, assim resume Fiori (2006, p.74) é

O primeiro e mais conhecido dos “revisionismos” – liderado por Eduard Bernstein – propôs, em 1894, um primeiro “ajuste” das idéias de Marx às “novas formas” assumidas pelo capitalismo, no final do século XIX, e uma adequação aos objetivos programáticos dos social-democratas às exigências democráticas da competição eleitoral e da luta parlamentar. Segundo Bernstein, o progresso técnico e a internacionalização do capital haviam mudado a natureza da classe operária e do sistema capitalista, cujo desenvolvimento histórico concreto não estaria mais apontando na direção prevista por Marx, da “pauperização crescente” e da “crise final”. Como conseqüência, Bernstein propunha o abandono do socialismo como objetivo final e a opção por uma transformação permanente e sem fim a partir do próprio capitalismo. O essencial, neste primeiro momento, foi a opção pela via eleitoral, com todas as suas conseqüências estratégicas e programáticas, como ficou cada vez mais claro ao longo do século XX em geral e, em particular, nos novos “ciclos revisionistas” das décadas de 1950-1960 e de 1980-1990.

Para Teixeira (2002, p.323) é nesse revisionismo alemão e nos fabianos ingleses (que

defendiam um “‘socialismo democrático’, sem traumas nem revoluções”) que se encontra o berço

da social-democracia. O debate prosseguiu, bem como inicia a participação em governos

167 Segundo Teixeira (2002, p.25-26) – base para esta breve retrospectiva – há que se destacar como efeitos de longo prazo a partir de 1848: o sonho da revolução mundial acalentado, pelos 150 anos subseqüentes, pelo movimento socialista; e do ponto de vista das classes dominantes européias e do capital: unificação no interior de cada país, no confronto com a representação política dos trabalhadores; aceleração do processo de expansão do modo de produção capitalista aos demais países da Europa, alargamento dos direitos políticos que continuou século afora; implementação de “novas políticas no campo da educação, da seguridade, da saúde e das relações de trabalho que significaram efetivos avanços no campo dos direitos sociais” e que em geral foram promovidas por “políticos conservadores”, objetivando “mudar para manter”. Vale lembrar, por exemplo, da atuação de Bismark (1815-1898). Avalia que, em seu conjunto, o século XIX “foi marcado por agudos afastamentos entre capacidade de gerar riqueza através do desenvolvimento industrial, tecnológico e comercial, por um lado, e os sistemas políticos e o desenvolvimento social, por outro”, principalmente na Inglaterra.

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(Dinamarca, 1917 – em coalizão) que Fiori (2006, p.74) aglutina em três grandes períodos: 1917-

1938, 1964-1983 e 1992-2005.

Um balanço desse período – que passa pela social-democracia alemã, pelo

eurocomunismo e pelo socialismo democrático – aponta para um reformismo não atrelado aos

compromissos clássicos que revelam uma adaptação às “regras do jogo” e o abandono não só do

programa de transição, mas até mesmo das reformas sistêmicas dentro do capitalismo. Voltar-se-

á a essa questão, mas deve-se, agora, verificar como se deu o desenvolvimento do pensamento

liberal a partir do XVII.

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3 LIBERALISMO, IGUALDADE E MERCADO

Desde o século XVII, o liberalismo apresenta muitas variações, determinadas por aspectos

históricos, culturais, sócio-institucionais e políticos de cada país onde se desenvolveu, no

contexto do individualismo europeu, no início da época moderna. Tais variações evidenciam,

sobretudo, a imensa capacidade de acomodação do pensamento liberal às situações sócio-

históricas novas.

Na base das variações, tem-se, genericamente falando, o liberalismo entendido como

“uma determinada concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e

como tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de social”

(BOBBIO, 1988, p.7). O liberalismo defende uma idéia de liberdade que “significa uma esfera

protegida de não-interferência ou de independência sob o poder da lei” ou “um espaço seguro de

independência individual” (GRAY, 1988, p.17).

Apesar do longo processo de alteração e reformulação das idéias liberais no decorrer

desses séculos - e mesmo quando John Stuart Mill lança as bases do chamado liberalismo

moderno ou revisionista -, o liberalismo não deixa de se constituir como uma “tradição única”;

como sinaliza John Gray (1988, p.12) sua concepção de homem e de sociedade permanece se

constituindo na argamassa da unidade e da identidade entre “todas as variantes da tradição

liberal”; para esse autor, essa concepção é marcada pelos seguintes elementos:

Em primeiro lugar, é individualista, no sentido em que pugna pela primazia moral da pessoa contra qualquer pretensão da coletividade social; em segundo lugar, é igualitária168, porque confere a todos os homens o mesmo estatuto moral e nega a relevância de graus de diferenciação, legais ou políticos, da riqueza moral entre seres humanos; em terceiro lugar, é universalista, afirmando a unidade moral da espécie humana, com importância secundária para as associações históricas e as formas culturais específicas; quarto e último, é

168 Obviamente trata-se aqui da igualdade formal.

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melhorista, na sua afirmação da correção e aperfeiçoamento de todas as instituições sociais e dos acordos políticos.

Para o citado autor, o liberalismo se serviu de fontes distintas e até mesmo conflitantes,

como a ciência e a religião, buscando sua validade ou justificação em filosofias muito diferentes,

como o estoicismo, o cristianismo, o cepticismo e até mesmo numa certeza fideísta169 de

revelação divina.

O liberalismo tem como postulados o indivíduo autônomo, preocupado com sua liberdade

e privacidade, com o aumento de sua riqueza, com a invenção e inovação e com a máquina do

governo, considerada, simultaneamente, “indispensável à vida civil e uma real ameaça para ela”

(GRAY, 1988, p.135).

Tem como suposto filosófico a doutrina dos direitos do homem formalizada pelos

jusnaturalistas com base numa concepção geral e hipotética sobre a natureza humana, que

prescinde de comprovação empírica e validade histórica. Ao afirmar os direitos fundamentais do

homem – à vida, à liberdade (econômica e política), à segurança -, o jusnaturalismo funda

também a doutrina dos limites jurídicos do poder estatal, na medida em que quem detém poder

deve respeitá-los para conseguir obediência. Estes direitos fundamentais do homem resumem-se

sob o título de “liberdade”; mas liberdade em relação ao Estado, liberdade (de ação e de posse de

bens) contra o poder coativo do soberano.

John Gray (1988) aponta mais duas vias de justificação dos princípios liberais: uma via é

dada pela teoria de Kant (que a partir de uma concepção particular de liberdade refutaria qualquer

apelo à natureza e ao bem-estar humanos); e a outra é dada pela abordagem contratualista (que

buscaria fundar seus princípios comuns numa base ética individualista sem compromissos,

abandonando qualquer preocupação com a promoção do bem-estar geral).

169 O fideísmo só reconhece a fé como única fonte de conhecimento humano.

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Para Bobbio (1988, p. 11-6), o curso histórico que dá origem ao Estado liberal nasce da

progressiva erosão do poder absoluto do soberano (no qual se vivia uma situação de servidão),

com sucessivas conquistas de espaços de liberdade num processo gradual. Contudo, a doutrina

liberal percorre o caminho inverso, como se o Estado liberal tivesse surgido como resultante de

um acordo entre os indivíduos inicialmente livres; essa argumentação só é possível em função da

teoria do direito natural, assim definida por Bobbio (1988, p.12):

Pode-se definir o jusnaturalismo como a doutrina segundo a qual existem leis não postas pela vontade humana – que por isso mesmo precedem à formação de todo grupo social e são reconhecíveis através da pesquisa racional – das quais derivam, como em toda e qualquer lei moral ou jurídica, direitos e deveres que são, pelo próprio fato de serem derivados de uma lei natural, direitos e deveres naturais.

Para esse autor o ponto comum entre o jusnaturalismo e o contratualismo é a concepção

individualista da sociedade; ressalta que com o contratualismo, a sociedade não mais é

considerada como um fato “natural” que não só precede os indivíduos, mas que existe

“independentemente da vontade dos indivíduos” (concepção organicista); ela passa a ser

considerada como um “corpo artificial, criado pelos indivíduos à sua imagem e semelhança e

para satisfação de seus interesses e carências e o mais amplo exercício de seus direitos”

(BOBBIO, 1988, p.16).

Essa luta constante pela tentativa de limitação tanto do poder soberano como dos limites

do Estado caracteriza o liberalismo, que passa a ser entendido, numa acepção mais comum, como

a concepção de Estado onde este tem funções mínimas e poderes limitados; os princípios liberais

quanto à forma jurídica ou constitucional do Estado pressupõem limitação do governo a regras

restritas e contém mecanismos constitucionais que têm o objetivo de defender o indivíduo dos

abusos do poder e permitir seu desenvolvimento pleno. Assim, o Estado não é um fim em si

mesmo, mas um meio para a realização do indivíduo.

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Contudo, alguns autores liberais, como John Gray, alegam que o fato da constituição

liberal garantir ao indivíduo reivindicar direitos ou exigências de justiça (até mesmo contra o

próprio governo), que o governo deve reconhecer e respeitar, não lhe confere uma designação de

Estado mínimo – apesar de admitir a necessidade de uma “especificação adequada” dos direitos

que devem ser protegidos. Ressalta, ainda, que muitos liberais concordam em que o Estado tenha

uma área de funções públicas que não se restrinja à proteção dos direitos e à manutenção da

justiça. Gray (p.121) entende que a posição defendida por liberais clássicos como Humboldt,

Spencer e Nozick “não tem uma justificação clara nos princípios liberais e representa uma visão

minoritária na tradição liberal”.

Diferentemente do entendimento de John Gray, Matteucci (2004, p.290) aponta como

único denominador comum entre os pensadores liberais a defesa do Estado Liberal que tem “a

finalidade de garantir os direitos dos indivíduos contra o poder político e, para atingir esta

finalidade, exige formas, mais ou menos amplas, de representação política.”170

Para Macpherson (1979), o que marca o pensamento inglês desse período é “uma nova

crença no valor e nos direitos do indivíduo”, abrindo novas perspectivas de liberdade e progresso.

O princípio é o indivíduo, em oposição ao modelo aristotélico no qual predominava uma

concepção organicista171 da sociedade.

Para o citado autor, esse individualismo tem uma qualidade possessiva que influenciou

fortemente a produção liberal até o século XIX. Essas “suposições possessivas” fazem com que

se conceba o indivíduo como proprietário de si mesmo e de suas próprias capacidades, só

dependendo de sua liberdade real para desenvolver todas as suas potencialidades; nessa

170 Em que pese a importância desse eixo, ele só será enfocado em função da teoria de justiça de cada pensador. 171 O Organicismo (holismo), em todas as suas formas, sustenta que “a sociedade é anterior aos indivíduos ou, conforme a fórmula aristotélica destinada a ter êxito ao longo dos séculos, o todo é anterior às partes.” (BOBBIO, 1988, p. 15)

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concepção, nada é devido à sociedade – a liberdade individual é concebida como independente e

prioritária em relação a qualquer obrigação cívica. Conseqüentemente, o indivíduo não era visto

nem como um todo moral e nem como parte de um todo social mais amplo.

A essência humana é ser livre da dependência das vontades alheias, e a liberdade existe como exercício da posse. A sociedade torna-se uma porção de indivíduos livres e iguais, relacionados entre si como proprietários de suas próprias capacidades e do que adquiriram mediante a prática dessas capacidades. A sociedade consiste de relações de troca entre proprietários. A sociedade política torna-se um artifício calculado para a proteção dessa propriedade e para a manutenção de um ordeiro relacionamento de trocas. (p.15)

O presente capítulo tem por objetivo situar a concepção de justiça concebida pelo

liberalismo. Dada a dificuldade de se referir ao liberalismo como uma concepção unívoca e

atemporal, optou-se por apresentar, sinteticamente, as bases desse pensamento através dos

autores que mais contribuíram com uma inflexão especial para o seu desenvolvimento, em

particular à questão da justiça; essa apresentação está organizada em três tópicos: a formulação

clássica, a revisionista e o liberal liberalismo ou liberalismo radical172.

Vale ressaltar que, dado à sua diferenciação em relação ao pensamento liberal tradicional

e ao seu desdobramento no que diz respeito ao formato da política social, o pensamento de John

Rawls - denominado de liberalismo político ou de liberal-igualitarismo - será apresentado na

Seção 4173.

3.1 A justiça para os liberais clássicos

Thomas Hobbes (1588-1679) é o principal precursor do individualismo, apesar de não ter

conclusões liberais, posto defender um Estado forte. Como todos os demais pensadores, foi um

172 Essa vertente contemporânea é comumente conhecida como neoliberalismo. 173 Merece ser consignado que também para o debate contemporâneo privilegia-se – em face das características deste trabalho – pensadores com vinculação às áreas da filosofia e/ou ciência política.

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homem marcado pelo seu tempo, que soube, como nenhum outro, apreender as relações

necessárias dos indivíduos em uma sociedade de mercado, como a Inglaterra na sua época.

Para Hobbes todos os indivíduos, sem exceção, procuram cada vez mais poder sobre os

demais (estado de natureza), fato que por si só geraria insegurança; percebendo que as relações

de mercado penetravam toda a sociedade, considerou todos os indivíduos inseguros, pois todos

estão subjugados às suas leis.

Hobbes concebe o estado de natureza como foro das relações elementares entre os

homens, como esfera econômica (diferentemente da esfera política), isto é, como esfera privada

contraposta à pública (a indiferenciação prevalente no Estado feudal já desaparecera); reconhece

que a esfera das relações econômicas é regida por leis próprias de existência e de

desenvolvimento e que representam a emancipação da burguesia que se torna economicamente

dominante; o estado de natureza encerra, assim, uma visão individualista da sociedade e da

história.

O Estado é visto como produto da vontade racional (contrato social) e o estado civil, em

oposição ao estado de natureza, também é produto da razão, como um princípio de legitimação

dado pelo consenso. Preconiza um Estado Absoluto, com um poder soberano, instituído mediante

um contrato, que se perpetua e que tem intervenção no mercado. Este contrato residiria numa

transferência de direitos e poderes naturais a um indivíduo (ou a um grupo de indivíduos;

preferencialmente a um mesmo indivíduo, para evitar disputas e um possível retorno ao estado de

natureza, gerando instabilidade) para que, em troca, fossem garantidas a vida e a propriedade.

Dessa transferência de poderes e de direitos decorrem deveres políticos para com o

soberano: o contrato é simultaneamente um pacto de sociedade (pois cria uma ordem social como

ato fundado pelos indivíduos) e um pacto de sujeição ao soberano (nos termos do contrato). Neste

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contrato, participam ativamente os proprietários (por interesse próprio e consentimento) e os

homens comuns o aceitam pela não-manifestação.

Sem a noção de soberania – com seus dois atributos fundamentais, isto é, caráter absoluto

e indivisibilidade – a idéia de justiça fica esvaziada de sentido porque está subordinada ao

problema da obrigação política, pois a justiça depende do respeito a um acordo – visando ao

interesse de cada um – que é estabelecido entre indivíduos racionais e auto-interessados.

A justiça decorreria de uma [terceira] lei natural: os homens devem manter os pactos que

celebram, pois do contrário permanece o direito de todos os homens a todas as coisas e,

conseqüentemente, a condição de guerra.

Onde não houver pacto, não há injustiça – considerada como não cumprimento do pacto.

Em decorrência, justo é tudo que não é injusto. Para Hobbes somente a existência de um poder

coercitivo obriga ao cumprimento dos pactos. Assim, torna bem claro o sentido da justiça no

liberalismo:

Tal poder não existe antes da instituição do Estado. Isso também pode ser deduzido a partir da definição de justiça comumente dada nas escolas, pois dizem que a justiça é a vontade constante de dar a cada um o que é seu. Por isso, não existe seu, ou seja, onde não existe propriedade, não existe injustiça; e não existe propriedade onde não existir um poder coercitivo instituído, ou seja, onde não existir Estado, pois [neste caso] todos os homens têm direito a todas as coisas: portanto, onde não existe Estado, nada é injusto. De modo que a natureza da justiça consiste em respeitar os pactos válidos, mas a validade dos pactos só tem princípio com a constituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a mantê-los; e é então que a propriedade também tem um princípio. (HOBBES apud MAFFETONE e VECA, p.112)

Hobbes admite a existência de dois sentidos às noções de justo e injusto: um, quando

atribuído aos homens e outro, quando designam ações. No primeiro caso – quando atribuídos aos

homens – significam a conformidade ou não conformidade aos costumes; e o homem justo é

aquele que age honestamente, é aquele que investe todo o seu empenho em fazer com que todos

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os seus atos sejam justos. Assim, “injustiça dos costumes” seria a predisposição ou o dom para

fazer mal aos outros (dolo) e não pressupõe nenhum indivíduo específico como objeto do mal.

Quando se trata de qualificar a justiça das ações, as expressões correspondentes seriam

inocentes e culpados. A injustiça da ação se voltaria para um indivíduo específico como objeto do

mal – no caso, o outro com quem se celebra um pacto. Em conseqüência o mal pode ser realizado

contra um indivíduo e o dano pode recair sobre outro. E exemplifica: um servo que não cumpre o

pacto de obedecer ao seu senhor que lhe ordena dar dinheiro a uma terceira pessoa; neste caso, o

mal é cometido ao seu senhor e o dano é causado a essa terceira pessoa. E adenda:

Do mesmo modo, nos Estados, os cidadãos podem liberar-se reciprocamente das suas dívidas, mas não dos latrocínios e de outras violências, pelas quais foram prejudicados, uma vez que a não-restituição de uma dívida é um mal cometido contra eles, enquanto o latrocínio e a violência são males cometidos contra a pessoa do Estado. (p.117)

Hobbes discorda da distinção aristotélica entre justiça comutativa e distributiva. Para ele a

medida do valor das coisas a serem trocadas, por contrato, não residiria “na igualdade do valor”

(proporção aritmética), mas seria pelo desejo dos contratantes em possuí-las; desta forma, o justo

valor é aquele pelo qual se contentam em dar (logo é a justiça dos contratantes).

Em relação à justiça distributiva, entende o autor que a recompensa do mérito (desde que

não acordada por contrato, pois assim estaria no âmbito da justiça comutativa) não é devido pelo

mérito, mas é “dispensado pela graça”:

A justiça distributiva é a justiça do árbitro; vale dizer, o ato de definir o que é justo. Se, no cumprimento desse ato (que lhe foi confiado por aqueles que o escolheram), o árbitro confirmar o encargo, deverá distribuir a cada um o que lhe é devido. De fato, essa é uma distribuição justa e pode ser chamada (embora impropriamente) de justiça distributiva, mas, de modo mais correto, de equidade; essa também é uma lei natural, conforme será mostrado no momento oportuno. Assim como a justiça depende de um pacto anterior, a GRATIDÃO depende de uma graça anterior, ou seja, de uma livre doação anterior. Constitui a quarta lei natural e pode ser concebida da seguinte forma: um homem que recebe um benefício de outro por pura graça deve esforçar-se para que o doador não tenha nenhum motivo razoável para arrepender-se da própria benevolência. (...) A

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infração dessa lei é chamada de ingratidão e tem com a graça a mesma relação que a injustiça tem com a obrigação derivada do pacto. (p.118-9).

Na discussão da justiça distributiva o papel do árbitro ganha relevância, pois a ele cabe

fazer uma repartição igual entre dois homens. Essa igual distribuição que dispõe para cada um

aquilo que segundo a razão lhe pertence, Hobbes chama de equidade.

As “coisas que não podem ser divididas devem ser usufruídas em comum” e

preferivelmente sem restrição; quando a quantidade disponível não o permitir, devem ser

usufruídas proporcionalmente ao número daqueles que têm direito a ela. Do contrário a

distribuição seria desigual e contrária à equidade.

Em situações em que o objeto de disputa não pode ser usufruído em comum e nem

dividido, defende Hobbes, que devem ser preferencialmente “adjudicadas ao primeiro

possuidor”; havendo a impossibilidade devem ser então adjudicadas ao primogênito “mediante

recurso à sorte”.

Nesse contexto da obra de Hobbes a justiça – assim como “a gratidão, a moderação, a

equidade, a misericórdia e todas as outras leis naturais” - é o meio para se alcançar a paz – essa

sim, um bem a ser garantido; e a justiça que garante essa paz, é a mesma que claramente garante

a propriedade. E essa justiça (comutativa) só pode ser garantida por um poder coercitivo (Estado)

que obrigue o cumprimento dos pactos que os homens estabelecem entre si.

No século XVII a filosofia individualista moderna passa a ser sistematizada dando origem

a tradição liberal que se inicia com John Locke (1632-1704), que teorizou aspectos da prática

política inglesa (afirmação do governo parlamentar sob o poder da lei, com ênfase na liberdade

de associação e na propriedade privada, contra o absolutismo monárquico). Vale lembrar que a

sociedade inglesa sempre foi marcada pelo individualismo em sua tradição legal, especialmente

nas leis sobre propriedade, mas também na vida familiar e cultural.

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O conjunto desse debate permitiu a elaboração da concepção de sociedade civil defendida

por Locke, como uma “sociedade de homens livres, iguais sob o domínio da lei, reunidos não por

um objetivo comum, mas partilhando o respeito pelos direitos de cada um (Gray, 1988, p.31)”.

Essa sociedade se funda a partir de um contrato social, estabelecido por homens pacíficos, de boa

vontade e plenamente livres que sentem a necessidade de colocar limites à sua própria liberdade

para garantir sua propriedade.

Há, então, um consentimento entre homens livres, iguais, racionais, em estado de natureza

que concordam em renunciar ao direito de fazer justiça por si mesmos: este é o consenso que cria

a sociedade civil e o Estado e que lhe dá legitimidade. Assim, criam uma autoridade soberana

para que possa imparcialmente atuar como juiz, a fim de garantir a propriedade. Em Locke, na

passagem do estado de natureza para a condição civil os homens só perdem “a liberdade de se

punirem a si próprios pelas violações aos seus direitos naturais”, mantendo-se todos os direitos

que antes possuíam (GRAY, 1988).

Locke diferencia-se de Hobbes por defender que a independência pessoal pressupõe a

propriedade privada seguramente protegida pela lei, ou seja, “a liberdade nada significa na

ausência dos direitos fundamentais da propriedade privada”. Sua doutrina dos direitos naturais –

jusnaturalismo174 – compreende as condições que as pessoas precisam para defender e proteger

suas vidas conforme as leis naturais que foram dadas por Deus; leis estas que asseguram o direito

à liberdade e à aquisição da propriedade, sem qualquer interferência humana. A liberdade liberal

em Locke, portanto, assenta-se como expressão da natureza divina da lei natural.

174 Bobbio e Bovero (1987) chamam atenção para o fato de que a idéia de direito natural remonta à época clássica, mas durante o século XVII, mas precisamente com Hugo Grócio (1588-1625), ela é revivida e difundida e permanece no ideário de vários autores do período. Identificam o método racional como ponto em comum entre os diferentes autores, pois permite “a redução do direito e da moral (bem como da política), pela primeira vez na história da reflexão sobre a conduta humana, a uma ciência demonstrativa (p.15).”

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Vale lembrar que para esse pensador a terra e seus frutos foram dados originariamente em

comum à espécie humana; através do trabalho gasto numa parte dessa terra (de forma que permita

que também outros homens trabalhem em outras partes) e com a finalidade de autopreservação, o

homem dela se apropria de direito. Com essa argumentação, Locke parte de dois postulados (o do

direito humano à conservação da sua vida e o do trabalho de um homem como sua propriedade)

para, como sinaliza Macpherson (1979, p.212), justificar “a apropriação individual dos produtos

da terra, que foram originalmente dados em comum à humanidade”. Argumenta Locke:

Assim, de início, o mundo inteiro era a América, mais do que é hoje, pois em nenhum lugar se conhecia algo semelhante ao dinheiro. Encontrai algo que tenha o uso e o valor do dinheiro entre os vizinhos e vereis aquele mesmo homem começar de imediato a ampliar as suas posses. Mas, visto que o ouro e a prata, (...) adquirem seu valor apenas pelo consenso dos homens, e desse valor o trabalho constitui, em grande parte, a medida, é evidente que os homens aceitaram em unanimidade que a terra fosse possuída de modo desproporcional e desigual, (...) recebendo em troca do excesso de ouro e prata, que pode acumular sem cometer uma injustiça contra ninguém, (...).Essa divisão dos bens, na desigualdade da propriedade privada, os homens a tornaram realizável fora da sociedade e sem um pacto, simplesmente atribuindo um valor ao ouro e à prata e concordando tacitamente sobre o uso do dinheiro. (...). Sendo assim, parece-me bastante fácil compreender como o trabalho pôde, originariamente, fundar o direito à propriedade dos bens comuns da natureza e como o limite dessa propriedade foi fixado pelo consumo que podemos fazer dela para os nossos usos. (...) tendo direito a tudo aquilo sobre o qual podia exercer o seu trabalho, um homem nunca sentia-se tentado a trabalhar mais do que serviria para o seu uso. (...) a porção que um homem tomava para si era facilmente visível, e era inútil, além de desonesto, tomar uma porção muito grande ou tomar mais do que podia servir.

Em Locke o Estado pode ser revisto como qualquer contrato; isto é, se o Estado não

garantir determinadas liberdades (propriedade, relativa liberdade política, segurança pessoal para

garantir o pleno exercício da propriedade e a própria defesa da liberdade) pode ser refeito (logo,

não podia ser hereditário). Isto se torna possível porque para Locke a sociedade continua unida e

refaz o contrato. Esta posição é oposta a de Hobbes – para ele a dissolução do Estado implica em

retorno ao estado de natureza, podendo cada um proteger a si próprio, como a prudência bem lhe

sugerir.

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Essa concepção de Locke evidencia a diferenciação que faz entre a sociedade civil e o

Estado, bem como pela sua compreensão relativa à transmissão da propriedade na sociedade

civil, mas não a admitindo em relação ao poder político. O exercício do poder político só é

legítimo se fundado sobre o consenso dos governados. Para Gruppi (1986, p.16) essa concepção

de Locke evidenciava que

a sociedade política e a sociedade civil obedecem a normas e leis diferentes. Todos os direitos de propriedade são exercidos na sociedade civil e o Estado não deve interferir, mas sim garantir e tutelar o livre exercício da propriedade. A separação dessas duas esferas está também na base das próprias liberdades políticas, que são as garantias necessárias para tutelar em nível político a propriedade e, portanto, a livre iniciativa econômica.

Se em Hobbes o Estado deve ser absoluto, a fim de desenvolver uma política

intervencionista para implementar uma economia mercantil segura, em Locke nota-se a defesa do

Estado mínimo, onde o que lhe compete é a arbitragem dos conflitos que possam existir numa

sociedade já bem definidamente mercantil.

É clara a preocupação deste autor em limitar o poder soberano, em garantir a

representação dos cidadãos (isto é, dos proprietários), em lutar pela autonomia (no sentido de

liberdade de se criar as leis às quais se vai obedecer), já que o soberano é um delegado do povo e

com este tem obrigações. Para Locke (1993, p.96), uma ordem igualitária e eficiente da sociedade

civil, garante direitos fundamentais como a vida, a liberdade, a saúde física, a libertação da dor e,

obviamente, a posse e propriedade de “coisas externas, tais como terras, dinheiro, móveis etc.”

sua proposta é – sem dúvida – uma teoria da justificação que une definitivamente a justiça à

estabilidade no pensamento liberal.

Para David Hume (1711-1776) a justiça pode ser pensada como virtude e como regras de

justiça. Como virtude, o senso de justiça (e o de injustiça) surge da educação e do aprendizado

moral no processo de surgimento das normas que ganham estabilidade através de convenções: é

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virtude que produz “prazer e aprovação graças a artifícios ou invenções que nascem das

condições e das necessidades da humanidade” (p.149).

A justiça – como regras que freiam as paixões humanas – seria então

um remédio para certos inconvenientes que derivam do concurso de certas qualidades da mente humana e da situação dos objetos externos. As qualidades da mente são o egoísmo e uma generosidade limitada; e a situação dos objetos externos é dada pela sua facilidade de mudar o possuidor e pela sua escassez em relação às necessidades e aos desejos dos homens. (p.167)

Com essa definição, Hume assenta na filosofia política a noção de “circunstâncias de

justiça” – isto é, condições objetivas e subjetivas que permitem o desenvolvimento da virtude da

justiça. Esse pensador - diferentemente dos outros modernos mencionados nesta seção – não

partilha do pressuposto do “contrato social” do qual derivam direitos e deveres. Ele advoga que a

convenção – que dá estabilidade à posse e ao usufruto de determinados bens – deriva da

“consciência geral para o interesse comum” que, por sua vez, resultaria num comportamento

compatível com determinadas regras que justificariam a vida em sociedade.

A vida em sociedade, para Hume, compensaria todas as fragilidades humanas e tornaria o

homem mais feliz do que se vivesse em uma “condição solitária e selvagem”. Ela permitiria a

união de forças (o que faria o poder do grupo aumentar), a divisão de tarefas (o que aumentaria as

capacidades humanas) e a ajuda recíproca (o que diminuiria os riscos do acaso e das desgraças).

Em suas palavras: “É justamente nesse suplemento de força, capacidade e segurança que

residem as vantagens da sociedade” (p.158). Para formar a sociedade os homens, contudo, devem

reconhecer essas vantagens.

Vale mencionar que Hume identifica três espécies diferentes de bens: “a satisfação íntima

da nossa mente, as vantagens externas do nosso corpo e o usufruto daqueles bens que adquirimos

com nosso trabalho e nossa boa sorte” (p.160). Esses bens adquiridos através do trabalho e/ou da

boa sorte seriam exatamente os passíveis de serem retirados de seu possuidor através da violência

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alheia e sem perda ou alteração de suas características. O aumento desses bens só seria possível

através da vida em sociedade (aliás, a principal vantagem da vida em sociedade); sua

instabilidade ou escassez seria o principal obstáculo. Desta forma, o interesse comum - que

sustenta e justifica a convenção - é a garantia desse tipo de bem.

Somente após a consolidação da convenção referente à “abstenção dos bens alheios e

depois que cada um atingiu a estabilidade dos bens que possui, surgem imediatamente as idéias

de justiça e injustiça, bem como aquelas de propriedade, direito e obrigação”(p.163). Neste

sentido, também para esse autor não há um sentido primitivo ou “natural” de justiça, pois a

existência da justiça depende de convenções prévias, duradouras e estáveis sobre a propriedade.

Em Emmanuel Kant (1724-1804) reencontra-se a separação formal entre Estado e

sociedade civil. Parte do princípio democrático – de inspiração rousseauniana – de que a

soberania é do povo; contudo, para Kant, existem cidadãos não-independentes (os quais têm

direitos civis) e cidadãos independentes (que detêm direitos civis e políticos); a estes últimos – os

proprietários - compete decidir sobre a política do Estado.

Contudo, a soberania do povo em Kant é dependente e limitada pelas leis que garantem o

direito de propriedade, a liberdade de palavra, de expressão, de reunião e de associação – que são

a expressão típica dos interesses da classe burguesa.

Apesar de reafirmar a relação indissociável entre propriedade e liberdade, sua concepção

de liberdade implica em autogoverno racional do agente individual, isto é, o indivíduo é

governado apenas por si próprio, sem restrição de opções (autonomia).

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Kant preocupa-se, sobretudo com a liberdade moral do indivíduo, daí seu enfrentamento

ao que define como imperium paternale –“governo paternalista”175 – no qual cabe aos súditos se

comportar passivamente, esperando que o “chefe do Estado julgue de que modo devem eles ser

felizes e para aguardar apenas da sua bondade que ele o queira”; para esse pensador, um governo

paternalista é comparável ao despotismo176.

Em Kant se encontra também um tema característico da tradição liberal clássica que é a

valorização do conflito. Diferentemente da concepção orgânica – que entende o conflito como

desarmonia, desordem e gerador de desagregação social (porque não garante a subordinação das

partes ao todo) – o pensamento liberal vai valorizá-lo positivamente; e isto porque defende que

do antagonismo e da concorrência entre indivíduos (ou, até mesmos estados contra estados – i.e.,

situação de guerra, que seria uma formadora da virtude dos povos) surge o progresso técnico e

moral da humanidade. O progresso e o bem-estar social surgiriam de um “aperfeiçoamento

recíproco” (“lei do progresso indefinido”).

Para Kant sem o conflito todos os homens “tal como as boas ovelhas conduzidas ao

pastoreio, não dariam valor algum a existência”:

Devemos, então, dar graças à natureza pela intratabilidade que gera, pela invejosa emulação da vaidade, pela cupidez jamais satisfeita de possuir e de dominar! Sem isso, todas as excelentes disposições naturais intrínsecas à humanidade permaneceriam eternamente adormecidas sem qualquer desenvolvimento.177

Assim, no que diz respeito à questão da justiça dois sentidos são encontrados: o primeiro

diz respeito ao sistema das instituições (deveres de justiça), o outro está relacionado à justificação

moral – noção que se vincula a idéia de autonomia (que, por sua vez, encontra-se em consonância

175 O paternalismo pode ser entendido como “toda doutrina política que atribui ao Estado o direito de interferir na esfera interior do indivíduo com base na consideração de que todo indivíduo, inclusive o adulto, precisa ser protegido das próprias inclinações e dos próprios impulsos (...).” (BOBBIO, 1988, p. 66). 176 Kant, E. Scritti Politici e di Filosofia della Storia e del Diritto. Turim, Utet, 1956, p.255 (Apud: BOBBIO, 1988, p. 23). 177 Kant, E. Op cit., p.127 (Apud: BOBBIO, 1988, p. 29)

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com a idéia de imperativo categórico). Contudo, os “deveres de justiça” também dependem da

virtude (“querer atribuir a si próprio a máxima de agir corretamente é uma exigência imposta pela

ética”- p.213).

Os deveres de justiça atuam como limites externos (isto é, independentemente das

motivações pessoais) que evitariam “choques” entre as liberdades dos indivíduos:

O direito une-se à faculdade de obrigar. A resistência que é oposta àquilo que impede um efeito serve para promover esse efeito e harmoniza-se com ele. Ora, tudo o que é injusto é um obstáculo à liberdade entendida segundo as leis universais, e a obrigação é justamente um obstáculo ou uma resistência que se impõe à liberdade. Por conseguinte, quando certo uso da liberdade é, ele próprio, um obstáculo à liberdade segundo leis universais (vale dizer, é injusto), então a obrigação oposta a ele, uma vez que impede um obstáculo feito à liberdade, harmoniza-se com a liberdade segundo leis universais, ou seja, é justa: destarte, segundo o princípio de contradição, a faculdade de obrigar aquele que o prejudica está imediatamente ligada ao direito. (p.213-4)

Para Maffettone e Veca (2005, p.89) os autores apresentados nesta seção compartilham –

ainda que implicitamente – uma avaliação positiva da passagem da sociedade natural para a

sociedade civil, posto que uniu justiça e estabilidade com o surgimento da obrigação política e a

consolidação das instituições. A política, portanto, para esses autores, tem prevalência e suas

concepções de justiça é a da justiça política, amplamente pautada na questão da justificação – e

também espectro das Declarações de Direitos que marcam o final desse século.

3.2 O liberalismo revisionista

São grandes expoentes dessa fase da doutrina liberal178 Jeremy Bentham (1748-1832) e

John Stuart Mill (1807-1873); ao primeiro cabe a reputação de grande sistematizador179 e ao

segundo de maior divulgador das idéias que caracterizam o chamado utilitarismo180.

178 Vale lembrar, ainda que sinteticamente, que no começo do século XIX a Inglaterra se defrontava com a resistência dos trabalhadores ao sistema fabril que ainda se consolidava e com a reivindicação de ampliação de

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Bentham opôs-se frontalmente ao jusnaturalismo e a sua concepção contratualista. Para

ele, pensar em direitos que seriam anteriores às instituições de governo é conseqüência de se

aceitar a quimera do estado de natureza e do contrato original; argumenta que se nele não havia

sociedade, governo ou instituições o que existiria era a liberdade ilimitada, sem deveres, e por

tanto, sem direitos. A rigor, direitos e deveres seriam “entidades fictícias” no sentido de que

existiriam gramaticalmente, mas sem existência de fato. Defende que direitos só existem onde

existem deveres; por sua vez, deveres – para se realizarem – dependem de leis positivas

emanadas do Estado e com previsão (bem como aplicação) de sanções para os que as

desrespeitarem (MONTOYA, 1998, p.96-110).

direitos até então específicos dos proprietários; são os ventos da Revolução Francesa contribuindo para um retrocesso nas idéias liberais clássicas. A conquista do sufrágio universal possibilitou o encontro do liberalismo e da democracia, ou melhor, uma “metabolização” da democracia, reduzida ao “método democrático”, que garante direitos individuais que estão na base do Estado liberal; por sua vez, o Estado burguês garante o funcionamento do método democrático. A crescente militância em meados do século XIX constitui-se no pano de fundo do pensamento de J.S.Mill. 179 Carnoy (1986, p.44) defende que Jeremy Bentham e James Mill “deram continuidade no campo da política, às idéias de Smith”. 180 O Utilitarismo não possui um sentido unívoco podendo, em linhas gerais, ser entendido como uma “tradição em teoria moral, política e social que avalia a retidão de atos, escolhas, decisões e políticas por suas conseqüências”; a rigor, é uma expressão atribuída a “um grupo de teorias que constituem variações sobre um mesmo tema” (OUTHWAITE e BOTTOMORE, 1996, p.785-6). Alguns autores (dentre eles VIEIRA, 2004) identificam em Hobbes e Hume traços que marcam o pensamento utilitarista; Abbagnano (2003, p. 987) ressalta uma “associação estreita” do utilitarismo com “doutrinas da nascente ciência econômica”, mas ressalta que a identificação do bem com o útil remonta à Epicuro; afirma também que a partir de Hobbes utiliza-se a expressão útil ao “que serve à conservação do homem ou, em geral, satisfaz às suas necessidades ou atende aos seus interesses”. O princípio geral utilitarista dispõe que uma ação moralmente correta é a que produz maior prazer (bem) e/ou menor sofrimento (mal ou dor) para a maioria. Pode ser tomado como teoria metaética ou – como é o mais usual – como conjunto de doutrinas normativas que têm como base comum o entendimento que “a justificação moral de uma ação depende exclusivamente de sua utilidade, ou seja, do valor das conseqüências a ele conexas”. Neste sentido, conforme Bobbio, Matteucci e Pasquino (1996, p.1275) pode ainda ser pensado como “método deliberativo” ou “processo decisório” (preocupando-se com “operações mentais que um ser racional deve cumprir em situações de escolhas” que permitam pensar a partir das conseqüências prováveis) e, como “sistema ético” (recaindo a preocupação sobre conseqüências efetivas, buscando-se “estabelecer em quais condições uma ação é moralmente reta, obrigatória ou proibida”). Outhwaite e Bottomore (1996, p. 786) identificam três componentes dessa tradição: conseqüência (a retidão esta vinculada à produção de boas conseqüências), valor (o caráter da conseqüência é avaliado por um padrão de bem intrínseco que tem que ser maximizado) e alcance (que leva em conta as conseqüências de atos que afetam a todos) - a ação é julgada por suas conseqüências e não pelos seus motivos. Essas questões geram diferentes concepções: utilitarismo hedonístico/ideal, total/médio, positivo/negativo, preferencial, de ato, de norma, generalizado, cooperativo dentre outros. Essa “tradição” – de longa existência – é atravessada por críticas, sendo as mais sérias as que dizem respeito às questões de justiça (redistributiva ou distributiva) e de justificação do agir político e das instituições de determinadas sociedades que, serão retomadas, na seção 4.

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185

Essa concepção de direitos e deveres é compatível com a visão de sociedade que seria

“um conjunto de indivíduos procurando incessantemente o poder, sem consideração e à custa um

do outro”. A concepção de indivíduo pode ser assim resumida:

Locke e Rousseau clamaram por um novo tipo de homem, enquanto Bentham e James Mill tomaram “o homem como ele era, o homem como ele tinha sido moldado pela sociedade de mercado, e presumiram que ele era inalterável... tal modelo se ajustou extraordinariamente bem à sociedade capitalista concorrencial e aos indivíduos que tinham sido moldados por ela... eles não questionaram que o seu modelo de sociedade – a sociedade de mercado concorrencial de difícil direção, com todas as suas divisões de classe – era justificado pelo seu elevado índice de produtividade material e que a desigualdade era inevitável (MACPHERSON, 1977, pp.43-3 Apud CARNOY, 1986, p.46).

Com esse entendimento Bentham defendia a necessidade de ordenamentos jurídicos (civis

e criminais) que evitariam tal situação, pois estabeleceriam a melhor distribuição de direitos e

deveres, segundo o princípio ético utilitarista de maior felicidade para um maior número de

pessoas. Esses ordenamentos teriam quatro finalidades subordinadas: fornecer a subsistência,

produzir a abundância, favorecer a igualdade e manter a segurança181.

O princípio “ético” utilitarista – ou o “princípio de utilidade” - dispõe que o único critério

que deve inspirar o bom legislador é criar leis que visem a maior felicidade do maior número de

pessoas. Portanto, o que deve limitar o poder dos governantes não seriam supostos direitos

naturais, mas sim o fato objetivo de que os homens desejam o prazer e rejeitam a dor; neste

sentido, a melhor sociedade é a que consegue obter o máximo de felicidade para o maior número

de seus componentes.

Seu utilitarismo (de ato ou ação) compreendia três princípios básicos: a felicidade (ou o

bem) individual deve ser a finalidade da ação moral; cada indivíduo conta apenas por um; e o

objeto da ação social deve ser a maximização da utilidade geral, ou seja, a promoção da maior

felicidade para o maior número de pessoas.

181 Macpherson, C.B. The life and times of liberal democracy. Londres: Oxford University Press, 1977. pp.26-27. Apud: CARNOY, 1986, p.45

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Para proceder a avaliação da finalidade de uma ação que afeta a uma coletividade, sugere

um cálculo utilitário que consiste em fazer um balanço do valor do prazer e do valor do

sofrimento (que chamava de dor) produzido inicialmente pela ação; em seguida, o valor de cada

prazer e de cada dor derivada, levando em consideração sua fecundidade e pureza182. Soma-se

todos os valores do prazer e do sofrimento e se terá o resultado para indivíduo afetado pela

ação183. Quando esse procedimento for realizado para todos os indivíduos afetados poderá se

calcular a tendência geral da ação; se o resultado apontar a prevalência da dor significa que a

ação não era moralmente correta; caso contrário (prevalência do prazer) a ação é moralmente

correta (BENTHAM, 1984, p.16-7).

Assim, caberia ao Estado “proporcionar igualdade e segurança ao sistema de propriedade

ilimitada e à empresa capitalista” (CARNOY, 1986, p.44), através do apoio ao sistema de

mercado livre e proteção da propriedade e dos cidadãos da corrupção e da avidez do próprio

governo. Eleições e liberdade de imprensa seriam os meios de mudar os governos oficiais e o

povo poderia proteger-se do governo (o poder também era colocado no eleitorado) – a questão

aqui era quem integraria o grupo de eleitores. Ao mercado livre, competia desenvolver a

maximização econômica e o bem-estar social (CARNOY, 1986, p.45).

Em relação à questão da justiça, afirmam Maffettone e Veca (2005, p. 228):

No texto de Bentham (...) encontramos a primeira formulação clássica do utilitarismo como teoria da justiça. Como se sabe, Bentham sustenta que o único princípio racional de justiça é aquele baseado na noção de utilidade, individual e coletiva. Mais precisamente, toda questão de justiça social deve poder ser reformulada em termos de maximização da utilidade coletiva. Desse modo, Bentham tem o indubitável mérito de vincular a exigência da reforma social e política com a “ciência moral”.

182 Fecundidade e pureza dizem respeito à produção de sensações similares e contrárias, respectivamente, mas sempre derivadas da dor ou do prazer principal. 183 Os cálculos propostos por Bentham apresentam outras variações. Somente este é apresentado em função do escopo deste trabalho.

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187

Stuart Mill, numa tentativa de enfrentar as críticas formuladas aos seus antecessores,

necessitou rever os fundamentos do princípio da utilidade relacionando-o com um significado

mais amplo de felicidade e prazer (no sentido de “estados mentais”), que passou a enfatizar

aspirações humanas mais elevadas; criticou também a concepção de indivíduo de Bentham,

aduzindo que os seres humanos têm um senso de auto-respeito e que a felicidade humana só pode

existir com o respeito à dignidade humana, defendendo, assim, o aprimoramento de sentimentos e

virtudes para a formação do caráter humano.

Criticou também a concepção benthaniana de sociedade em função de defender a

existência de um caráter supra-individual e intersubjetivo do prazer que fariam coincidir a

utilidade individual e a utilidade pública; isto decorreria de um sentimento de unidade humana184

que, segundo Abbagnano (2003, p.986), “Comte evidenciava com sua religião da humanidade”.

A rigor, para ele a “utilidade está fundamentada nos interesses permanentes do homem como um

ser” (2005, p.204).

Stuart Mill defendeu um utilitarismo de regras (ou normas), no qual a ação é considerada

correta quando está de acordo com uma norma ou regra que produz um bem maior para a

sociedade que a adota. A norma sugerida por Stuart Mill é o seu “princípio da liberdade” que

afirma que cada um é livre para fazer tudo que diz respeito a si mesmo, pois assim se maximiza o

bem-estar coletivo.

Tomando por base uma concepção de liberdade negativa e visando ao estabelecimento de

um princípio que delimitasse a esfera privada em relação à pública, propôs que o Estado se

limitasse a restringir a esfera da liberdade individual apenas em relação “à esfera das ações

184 Neste sentido afastava-se também de seu pai – James Mill – que entendia que essa coincidência era decorrente da lei da associação psicológica na qual cada um deseja a felicidade alheia porque ela estaria intimamente associada a sua própria felicidade.

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externas (no sentido kantiano da palavra)”; ou seja, somente no caso de se ferir o interesse de

outrem (BOBBIO, 1988, p.65-6).

Para Stuart Mill esse “princípio da liberdade” - na qual cada um é guardião de si

próprio185 – somente se aplica para indivíduos em plenas condições de suas faculdades, o que

significa em sua concepção, um patamar mínimo de civilidade186. Aqui adquire importância a

noção de dano – pois ela é quem estabelece a fronteira entre a esfera privada e a pública

(SIMÕES, 2005, p.78).

Stuart Mill reconhecia a desigualdade e lhe creditava à conta do ranço da distribuição

feudal da propriedade; acreditava que, por ser “acidental”, a desigualdade poderia ser remediada

pela criação de algum tipo de organização da produção capitalista (cooperativas de produtores

que possibilitariam a transformação dos trabalhadores em capitalistas). Comenta Carnoy (1986,

p.46):

Desse modo o jovem Mill retomou a idéia clássica da sociedade ideal, definindo esse ideal como uma comunidade de trabalhadores laboriosos impulsionando o desenvolvimento da capacidade humana. As recompensas nessa sociedade seriam proporcionais ao esforço, embora ele tenha estabelecido o efetivo sistema de recompensas, baseado nos mesmos princípios capitalistas, injustos. Ele colocou a culpa por essa injusta desigualdade na distribuição feudal da propriedade; ele acreditava que o capitalismo estava reduzindo gradativamente a desigualdade de renda, riqueza e poder.

185 Alguns autores liberais (dentre eles GRAY, 1988) vêem em Stuart Mill um precursor do direito à privacidade e do direito ao livre modo de vida que permita a cada um “experimentos de vida” de modo a encontrar “sua felicidade distinta”. 186 Stuart Mill – assim como Bentham – é considerado um grande reformador social; aos dois é imputado grande empenho na reforma do sistema penal inglês, bem como na luta pela humanização do sistema carcerário. Ao primeiro, imputa-se, também, participação ativa no processo de reconhecimento do voto feminino e do método proporcional. Porém, como um bom liberal, Stuart Mill temia a tirania da maioria, motivo pelo qual apontava a democracia representativa como a melhor forma de governo. Acreditava que um dos remédios contra a tirania era a “participação de todos nos benefícios da liberdade” e por isto foi um defensor da extensão do sufrágio, mas de modo condicionado; a condição para a participação das classes populares no processo eleitoral era o pagamento de um imposto por menor que fosse. Embasava seu argumento no valor educativo do voto, pois através da discussão política do operário com cidadãos de diversos segmentos, tornava-se um membro consciente de uma grande comunidade. Mas o sufrágio universal proposto por Mill também continha outras restrições, a saber: falidos, devedores fraudulentos, analfabetos (advogava que o ensino extensivo a todos deveria preceder o sufrágio universal) e os mendicantes (entendia que por não contribuírem, mesmo com um pequeno imposto, não tinham “o direito de decidir o modo pelo qual cada um deve contribuir para as despesas públicas”).

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Do ponto de vista da justiça Stuart Mill defende sua subsunção à utilidade. Para ele “ter

um direito significa, então, ter algo, cuja posse deve ser defendida pela sociedade” o que só

ocorre em função da utilidade geral; e é a utilidade social que define o critério de justiça.

Carnoy (1986, p.47) assim sintetiza o pensamento desses autores:

O Estado ideal era aquele no qual o poder político era estendido a um grupo amplo, deixando que o mercado livre cuidasse da distribuição da riqueza e da renda. A desigualdade de propriedade era crescentemente aceitável (...) como o preço necessário a pagar pelo aumento da produção, com a “igualdade” expressa cada vez mais em termos políticos. Com Bentham e James Mill houve a primeira separação formal entre a organização do Estado, como democracia política, e a organização da economia, como produção capitalista desigual e baseada nas classes sociais. O problema foi deslocado do papel do Estado como fiador da igualdade na produção (a fim de preservar o Estado democrático) para a questão do sufrágio numa sociedade de classe – isto é, a quem deveria ser permitido, entre as diferentes classes de produtores e não-produtores, participar da eleição (e, por esse meio, do controle) de um governo que proveria um número limitado de serviços e o cumprimento das leis. (...). A democracia não era mais o instrumento de controle dos excessos econômicos (...) era necessária somente para limitar os excessos inatos dos funcionários governamentais, dando aos cidadãos o poder para mudar tais funcionários através da vontade geral.

Como assevera Teixeira (2002, p. 304-9), dentre as várias mudanças desse período não se

pode esquecer que a Grande Depressão do fim do XIX (que vai de meados da década de 70 a

meados dos anos 80) foi um processo diferente do movimento cíclico do capitalismo: um longo

período em que as atividades econômicas não recuperaram o dinamismo da fase precedente,

apesar de indicadores apontarem crescimento industrial.

Foi um momento de “mudança de base técnica, com a emergência de um novo padrão

manufatureiro e de novos setores líderes” que exigiam “novos modelos de organização

industrial” e “novos requerimentos financeiros”. Esse processo propicia a ascensão industrial dos

EUA e da Alemanha levando a revolução industrial a novos países (como Rússia e Suécia). Por

outro lado, a Grande Depressão introduziu as tarifas protecionistas, colocando fim “a era do

liberalismo econômico”, com o Estado adotando um novo papel: de modo direto como provedor

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de serviços públicos e gestor de políticas econômicas ativas e, indiretamente, “na conquista de

colônias e na defesa do patrimônio externo” 187.

Esse novo papel do Estado só acentua, sobretudo, após a Grande Depressão do século

XX, quando a URSS foi considerada “aparentemente imune” à crise. Tal situação leva

Hobsbawm (2003, p. 89, 111) a afirmar que a Revolução Russa foi a “salvadora do capitalismo

liberal” posto que a partir desse período houve um abandono da crença na ortodoxia do livre

mercado”, o que após a II Grande Guerra Mundial leva a um “casamento não oficial ou ligação

permanente com a moderada social-democracia de movimentos trabalhistas não comunistas”.

Inicia-se a era do planejamento econômico, da emergência do Welfare State, a era de ouro do

capitalismo.

3.3 Justiça, desigualdade e liberdade

Se para os autores abordados na segunda seção a justiça está visceralmente articulada com

a igualdade, aqui a justiça se vincula à liberdade e à estabilidade – tanto da propriedade, como

política; na emergência do liberalismo a liberdade é sempre pensada a partir dos contratantes

187 Apresenta esse autor um “resumo” contendo outras características principais da economia mundial no período 1875-1914: “(i) a “globalização, com a extensão dos processos de industrialização a novas regiões, como a Rússia e a Escandinávia, o Japão e os Estados Unidos, e a incorporação de novas áreas agrícolas, nomeadamente o Canadá, a Argentina, a Ucrânia, a Austrália, a Nova Zelândia, produtoras e exportadoras de carne e grãos. (ii) a “diferenciação dos centros”, com a predominância industrial dos Estados Unidos e da Alemanha, e a permanência da Inglaterra como centro financeiro e comercial. (iii) a “revolução tecnológica”, que afetou tanto as “condições gerais da produção capitalista (sistemas básicos de transporte, comunicação e energia), com a introdução do telefone, do telégrafo sem fio, do automóvel do avião e da eletricidade, como o segmento de bens de consumo, com o aspirador de pó (1908), a aspirina (1899) e a bicicleta (1869). (iv) a “financeirização da economia”, com a concentração bancária e a articulação entre bancos e empresas produtivas, o crescimento das sociedades por ações e da exportação de capitais. (v) o novo papel do Estado no domínio econômico, diretamente como provedor de serviços públicos e como gestor de políticas econômicas ativas, e indiretamente, na conquista de colônias e na defesa do patrimônio externo. (vi) mudanças na estrutura da empresa capitalista e no padrão de concorrência, com a concentração do capital e da produção, aumento de escala, novas formas de competição intercapitalista e a introdução da administração científica e profissionalização de gerentes e executivos empresariais.” (TEIXEIRA, 2002, p.308-9).

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privados e iguais na condição de proprietários. Trata-se, a partir daqui, independentemente das

variações de tempo e espaço, de teorias de justificação da ordem social vigente.

Assim, Locke entende justiça como autonomia, como liberdade de se criar leis a serem

obedecidas. Sua concepção de autonomia está profundamente ligada à condição de proprietário.

Não à toa defende o mesmo critério de justiça dos niveladores – a cada um segundo o seu

trabalho e sua capacidade – mas com todas as restrições de quem não partilha de uma proposta

igualitarista. Para Hume – que também defende esse critério – a justiça se vincula às idéias de

propriedade, direito e dever, devendo à convenção que os homens estabelecem garantir a

estabilidade dos bens.

Kant apresenta duas questões para uma teoria da justiça: os deveres de justiça se articulam

tanto com as instituições quanto com a justificação moral; isto porque defende justiça como plena

liberdade, sem restrições de opções, e vinculada à autonomia; contudo, somente gozam dessa

concepção os cidadãos independentes – únicos a possuírem simultaneamente direitos civis e

políticos, posto que proprietários.

Ainda dentro do debate de emergência – aliás, preparando o caminho para tal - Hobbes

entende justiça como “justiça dos contratantes que respeitam o pacto – que se constitui numa

obrigação política; assim, dar a cada um o que é seu ou o que lhe é devido é seu princípio de

justiça188 que deve ser defendido por um Estado forte.

No liberalismo revisado a questão da obrigação política e das instituições de base deixa o

primeiro plano, que passa a ser ocupado pelas relações e expectativas sociais (MAFFETONE e

VECA, 2005, p.227), redefinindo a questão da justiça “como justiça distributiva” mesmo no

âmbito do pensamento liberal – trata-se, porém de uma “distribuição” muito específica.

188 Critério de justiça tout court que – é bom lembrar – também é defendido por Morelly na perspectiva igualitarista.

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Em Bentham a igualdade é invocada para dar segurança ao sistema de propriedade

ilimitada e à empresa capitalista. A “justiça social” deve garantir – através do princípio da

utilidade individual e coletiva – a maior felicidade para um maior número de pessoas -,

independentemente de seu conteúdo ético, posto que pelo cálculo do “legislador”, pouco importa

se a situação de certos indivíduos particulares piora de maneira considerável.

Essa mesma lógica geral segue Stuart Mill que defende como critério de justiça o

“princípio da liberdade” por melhor atender, em sua opinião, à utilidade social; contudo, esse

princípio é restringido a um indefinido “patamar mínimo de civilidade” que permitiria que cada

um, buscando o melhor para si, maximizasse o bem estar coletivo. Sem dúvida, uma defesa que

leva ao extremo o individualismo e o relativismo (VIEIRA, 2004), bem como traz implicações

bastante problemáticas tanto para a justiça retributiva, como para a distributiva.

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4 JUSTIÇA, EQUIDADE E DESIGUALDADE

A presente seção pretende apresentar parte189 do debate contemporâneo que se refere à

questão da justiça distributiva. Tem como eixo organizador central as idéias de John Rawls – o

que significa que a ele se refere a maior parte da discussão desenvolvida nesta fase do trabalho,

bem como sua centralidade em termos de organização; e isso dado o seu destaque no âmbito da

filosofia política contemporânea.

A rigor, Frederick Hayek inicia a sistematização de suas idéias um pouco antes de Rawls,

mas sua projeção – sobretudo como economista, e não como filósofo que também é – se dá

posteriormente, não só com o Prêmio Nobel de Economia, mas também com a participação em

governos que adotaram as suas orientações. Assim, apesar de ter uma produção anterior, esse

autor é apresentado em um item específico, juntamente com Nozick. Na seqüência, resumo o

debate em torno das teses comunitaristas e, por fim, uma pequena reflexão acerca dessas idéias

para o campo das políticas sociais.

4.1 Justiça como equidade em Rawls

A idéia de equidade não é nova; Aristóteles já a referenciava (Ética a Nicômaco - Livro

V) afirmando que o eqüitativo é justo, “porém não o legalmente justo, e sim uma correção da

justiça legal”. Essa idéia de equidade - como correção da lei – persistiu no pensamento político

ocidental através de inúmeros pensadores. Seu suposto é o de uma “tendência a não tratar de

forma por demais desigual os seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial”

189 Destaca-se parte, posto que os desdobramentos dessa discussão envolve não só autores que estão fora do marco da filosofia política (tais como economia, filosofia do direito dentre outros), bem como privilegiam outros aspectos da discussão.

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(PERELMAN, 2002, p. 41), sendo até hoje majoritariamente assim concebida no âmbito do

Direito.

Mas é com John Rawls (1921-2002) que a idéia de equidade ganha força no debate

político contemporâneo. Sua obra – composta pelos livros Uma Teoria da Justiça (1971), O

Liberalismo Político (1993) e O Direito dos Povos (1999), além de numerosos artigos e

conferências190 - é considerada peça central do neocontratualismo contemporâneo e versa sobre

estudos que, iniciados no final dos anos 50 do século passado191, abordam as relações entre

Direito e Moral (KRISCHKE, 1993, p.8).

Seguidor da tradição liberal, sua elaboração se vincula à teoria do contrato social, com o

objetivo declarado de se contrapor às correntes hegemônicas da tradição filosófica anglo-saxã,

especialmente o utilitarismo. Seu trabalho marca o pensamento social moderno (tanto na

filosofia, como nas ciências sociais e políticas, bem como no direito), fazendo com que se

concorde com Nozick quando afirma que a obra de Rawls não pode ser ignorada pela filosofia

política contemporânea, cabendo justificativa quando a ele não se fizer remissão.

190 Atualmente – dada a ampla divulgação de sua obra – é possível encontrar outros títulos, como por exemplo, Justiça como equidade: uma reformulação que originariamente era uma complementação da leitura de Uma Teoria da Justiça num curso que Rawls ministrou ao longo dos anos 80 em Harvard; este material não chegou a receber uma revisão definitiva do autor. Já Justiça e Democracia é constituído basicamente por conferências (e alguns artigos), selecionados por Catherine Audard – que os publicou originalmente em francês. As referências completas podem ser verificadas na bibliografia deste trabalho. 191 Como contexto imediato da produção do seu principal livro – Uma Teoria da Justiça - pode ser apontado o sucesso da Campanha pelos Direitos Civis, em seu país natal, durante os anos sessenta, bem como a luta pela independência dos países africanos, a luta pelo anti-imperialismo nos países da América Latina, o Movimento Feminista, a Revolução de 1968, a Primavera de Praga, a Revolução Cultural na China e o debate em torno da Guerra do Vietnã. Vale lembrar que, especificamente na tradição norte-americana, a corrente liberal admite a “adoção de mecanismos oficiais destinados a promover a elevação dos padrões de renda da minoria que não consegue fazê-lo através do mercado (New Deal de Roosevelt; Great Society e War on Poverty de Lyndon Johnson etc.).” Diferentemente da social-democracia européia – que se preocupa com certa igualdade de resultados -, o liberalismo norte-americano se preocupa com a igualdade de oportunidades. Nos EUA o livro também deu fôlego para os “liberals” que enfrentavam grande pressão com os dispêndios resultantes de programas de assistência social criados a partir de 1965 (CARDIN, 2000). Catherine Audard, organizadora do livro Justiça e Democracia, defende no Prefácio que a obra de Rawls como um todo – e, particularmente, seu conceito de político – é inseparável do “contexto intelectual e moral da democracia norte-americana” que “tem uma base quase religiosa no caráter sagrado do indivíduo e no seu direito a dispor de si próprio (p.XXI).”

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195

Neste trabalho a apresentação da síntese de suas idéias192 está centrada principalmente em

duas de suas obras: Uma Teoria da Justiça e O Liberalismo Político; a primeira por conter o

conjunto das formulações originais e a última por “corrigir” essas mesmas formulações193. Vale

ressaltar que a síntese apresentada não abarca – nem de longe – o conjunto das idéias e

argumentos de Rawls, em todas as suas nuances e profundidade – tarefa para especialistas em sua

obra e com formação específica para essa discussão: a idéia é destacar as concepções mais

fundamentais – assim como as principais críticas - que se relacionam com a questão da política

social.

4.1.1 Sobre Uma Teoria da Justiça194

Rawls se coloca como questão aquilo que identifica como um dilema da sociedade

democrática contemporânea: como conciliar direitos que devem ser iguais para todos numa

sociedade desigual? Sua finalidade é identificar de maneira racional um núcleo de princípios,

capazes de servir de fundamento para as principais instituições de uma sociedade, de reger os

direitos e os deveres dos indivíduos e de permitir que seja organizada uma distribuição eqüitativa 192 Apesar da advertência de Boron (2004, p.139) sobre os riscos de se sintetizar o trabalho de Rawls em função “dos argumentos que se reiteram e se reformulam capítulo após capítulo e movendo-se em uma espécie de espiral argumentativa” não há como se evitar uma tentativa de resumo sem maiores distorções. 193 O livro O Direito dos povos (1999) trata da relação das democracias ocidentais com outras culturas que não partilham da liberal-democracia, mas que respeitam os princípios internacionais da razão pública (direitos humanos, autodeterminação, não-intervenção, autodefesa, conduta na guerra e defesa de povos que vivem em condições desfavoráveis). No segundo item dessa seção deste trabalho também foram incorporadas discussões do livro “Justiça como equidade: uma reformulação” pelo motivo apontado em seu título – isto é, também se propõe a “corrigir” questões abordadas em “Uma Teoria da Justiça”. 194 É fundamental ressaltar que foi utilizada a publicação da editora Martins Fontes. Essa publicação tem como base a edição em língua inglesa que sofreu revisão do autor em 1975, com vistas à sua versão para o alemão. Desta forma, ela incorpora idéias que Rawls desenvolveu a partir das críticas que se seguiram à publicação do original em 1971. No que diz respeito a essa revisão, o autor destaca – em Prefácio à edição brasileira, datado de 1990 - a “explicação da liberdade” e a “análise dos bens primários”. Em relação ao que trataria “de modo diferente” cita: (1) a apresentação do argumento em favor dos dois princípios de justiça a partir da posição original e (2) a distinção entre “a idéia de uma democracia da propriedade privada” e a “idéia do bem-estar social” (que é focada em nota posterior deste trabalho). Vale lembrar que em 1990 – ano do citado Prefácio – Rawls já concebe a justiça como equidade como uma concepção política de justiça (v. p. XIX).

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de encargos e benefícios resultantes da cooperação social, garantindo a estabilidade das

instituições democrático-representantivas. A abrangência desse escopo se justifica pelo seu

entendimento de que a justiça diz respeito ao conjunto da vida humana; busca um princípio

básico através do qual se buscaria a “reorganização” da vida social.

Ou seja, a intenção de Rawls é formular uma concepção de justiça que atenda a essas

condições, pois só assim é possível se contrapor ao que identifica como as duas tendências da

filosofia política contemporânea: o utilitarismo e uma miscelânea incoerente de idéias e

princípios (que ele chama de intuicionismo195) que considera não oferecer uma alternativa

satisfatória ao utilitarismo (KYMLICKA, 2003).

Em relação ao intuicionismo identifica duas características: (1) repousa sobre uma

pluralidade de princípios primeiros que podem se revelar incompatíveis, submetendo as pessoas

em situações de conflito a injunções contraditórias em certos casos específicos; e (2) o fato de

não oferecerem método específico nem regra de prioridade que permita hierarquizar diferentes

princípios, tampouco um critério de parâmetro superior para determinar a relevância adequada

dos princípios de justiça.

No que diz respeito ao utilitarismo, tece uma crítica de princípio: afirma que essa teoria

fracassa enquanto teoria moral, pois ao se preocupar com a maximização do bem-estar coletivo

em detrimento dos direitos de cada indivíduo, pode gerar situações extremamente injustas. Ele o

define como uma teoria ética teleológica (isto é, define o que é correto ou justo fazer em função

de uma concepção de boa vida humana). No entanto, é uma teoria vazia de conteúdo, pois a “boa

vida humana” se define em função de preferências e desejos sem considerar princípios. No

195 Doutrina segundo a qual uma ordem de fatos morais independentes e anteriores ao nosso julgamento poderia ser atingida diretamente ou por aproximação (cf. RAWLS, 2002, p.378).

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utilitarismo o status da justiça é derivativo – o que fragiliza a garantia dos direitos porque são

concebidos como instrumentos para a utilidade social e não como valores em si mesmo.

Rawls entende que esse raciocínio utilitarista se baseia na aplicação do princípio racional

da prudência (que é eminentemente voltado para ações particulares196) à sociedade como um todo

e aponta que a soma total e coletiva da satisfação de interesses e necessidades pode implicar em

total prejuízo dos interesses e necessidades de alguns – e mesmo de numerosos – indivíduos. Ou

seja, na ótica utilitarista uma sociedade que priva alguns indivíduos da satisfação de seus

interesses e necessidades em favor da maximização do bem-estar da coletividade poderia ser

considerada bem ordenada e justa.

Em síntese, ao buscar a maximização da felicidade coletiva, o utilitarismo não se

preocuparia em saber se o modo segundo o qual essa felicidade é distribuída é justo (ou injusto)

em relação a cada membro da coletividade. Ao defender como justo que pessoas não tenham suas

necessidades atendidas, isto é, ao tratá-las como “coisas às quais se pode negar

inescrupulosamente o direito à satisfação de suas necessidades”, o utilitarismo confunde

“impessoalidade com imparcialidade”. Para Rawls, ao não dar conta da justiça na distribuição da

felicidade, o utilitarismo fracassaria como teoria da justificação moral do Estado.

Outra argumentação de Rawls é que o utilitarismo deveria ser rejeitado porque julga que

um governo deveria sempre ser legitimado quando promovesse a felicidade, independentemente

de sua forma. Pois, como escreve Rawls, o utilitaritarismo passa por cima do fato de que “cada

pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade

como um todo pode ignorar” (p.4). Ao considerar a maximização da felicidade como um bem

196 Simploriamente falando, se pode dizer que uma pessoa ao decidir abrir mão de uma atividade de lazer para estudar para uma prova usou do princípio racional da prudência; ela ponderou ganhos presentes e futuros e considerou perdas presentes e futuras para tomar essa decisão (cf. RAWLS, 2000a).

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supremo e incondicionado e, portanto, a grande justificativa de um Estado, o utilitarismo tende a

apoiar qualquer forma de governo, até mesmo uma ditadura (ESTEVES, 2002, p.96).

A partir desse conjunto de críticas (aqui delineado em linhas gerais), Rawls elabora sua

teoria de justiça. Entende que uma concepção ideal de justiça deve ser definida em função do

objetivo de longo alcance da sociedade, independentemente dos desejos e necessidades

particulares de seus membros atuais; assim, as instituições devem fomentar a virtude da justiça e

desencorajar desejos e aspirações que com ela são incompatíveis (p.289).

Parte de uma concepção geral de justiça que apresenta a seguinte idéia central: os bens

sociais primários197 – a liberdade e as oportunidades, a renda e a riqueza, bem como as bases

sociais do respeito a si198 – devem ser distribuídos de modo igualitário, salvo se uma distribuição

desigual do conjunto desses bens ou de um deles beneficie os menos favorecidos199. Imagina uma

sociedade marcada por uma situação de “igualdade democrática” garantida pela justiça de suas

instituições sociais que permitam a todos os participantes dessa sociedade se beneficiarem dos

resultados da cooperação social. Nessa concepção, “a injustiça, portanto, se constitui em

simplesmente de desigualdades que não beneficiam a todos” (p.66).

197 Neste livro define os bens primários como “coisas que todo homem racional presumivelmente quer” independentemente de outros desejos ou planos racionais de vida; sugere Rawls, que sem eles a consecução desses outros desejos ficaria comprometida. Vale ressaltar que para o autor é em função dos bens primários que se avalia a justiça de uma partilha. Identifica dois tipos de bens primários: (1) os naturais (saúde e vigor, inteligência e imaginação) – cuja posse é influenciada pela estrutura básica da sociedade, mas “não estão sob seu controle de forma tão direta” e (2) os sociais (especificados no corpo deste texto) – que por dependerem diretamente da estrutura básica da sociedade, devem ser “distribuídos igualitariamente” (pp.66-7). V. §§ 11 e 15. 198 O respeito a si (ou auto-respeito) é considerado por Rawls como um dos bens sociais primários mais importantes que uma democracia pode garantir para os seus membros. Implica a percepção que um indivíduo tem do seu próprio valor, bem como na confiança que tem em sua capacidade de realizar os seus objetivos numa sociedade justa. Ver §§ 29 e 67. 199 V. §§ 12/15 e especialmente p.66-7 para a discussão da concepção geral de justiça em Rawls. Porém, vale também referenciar seu entendimento sobre os “menos favorecidos” e como deve ser o procedimento: “são os que pertencem à classe de renda com expectativas mais baixas. Dizer que as desigualdades de renda e riqueza têm de ser dispostas de modo que elevem ao máximo os benefícios para os menos favorecidos significa simplesmente que temos de comparar esquemas de cooperação e verificar a situação dos menos favorecidos em cada esquema, e em seguida escolher o esquema no qual os menos favorecidos estão em melhor situação do que em qualquer outro” (RAWLS, 2003, p.84-5).

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A partir dessa concepção geral de justiça, Rawls encaminha seus argumentos200 para a

elaboração da teoria da justiça como equidade que foi proposta originalmente no âmbito de uma

sociedade democrática constitucional bem ordenada. Mas esta não seria uma sociedade igualitária

(como a proposta pelas diferentes concepções socialistas e “welfaristas”201), tampouco, segundo o

autor, uma sociedade que deixa as desigualdades ao encargo das regras do mercado (liberais e

ultraliberais); Rawls pretende demonstrar como uma democracia constitucional poderá assegurar

aos seus membros deveres, direitos básicos e algumas oportunidades iguais.

Tem como proposta elaborar “uma concepção razoável de justiça para a estrutura básica

da sociedade” (p.9). Mas sua “concepção razoável” exige um “tipo” de sociedade bem mais

específica: pressupõe uma “sociedade bem-ordenada”. Rawls a define como aquela que é

“planejada para promover o bem de todos os seus membros, mas também quando é efetivamente

regulada por uma concepção pública de justiça” (p.5). Esse planejamento se dá a partir de certas

regras de conduta reconhecidas como obrigatórias e que em geral seriam respeitadas. Daí

entender a sociedade como um “empreendimento cooperativo202 para a vantagem de todos”

(p.90) e tomá-la – para fins de elaboração de sua proposta – como um sistema fechado, isolado de

outras sociedades.

200 Vale lembrar que o próprio Rawls admite que toda a sua argumentação é deliberadamente construída de modo a justificar a escolha desses princípios de justiça na posição inicial. 201 No já citado Prefácio à edição brasileira de Uma Teoria da Justiça, escrito em novembro de 1990 pelo próprio Rawls (e, portanto, pouco antes da publicação de O Liberalismo Político), o autor lista “coisas que escreveria de um modo diferente” (p. XVI; v. nota 4 deste texto): “Uma outra coisa que agora faria de modo diferente é distinguir com mais precisão a idéia de uma democracia da propriedade privada (introduzida no Capítulo V) da idéia do bem-estar social. (...). A idéia [da democracia da propriedade privada] não é simplesmente auxiliar aqueles que malogram devido a um acidente ou a falta de sorte (embora isso deva ser feito), mas sim colocar todos os cidadãos em posição de lidar com seus próprios problemas e tomar parte na cooperação social, tendo como sustentáculo o respeito mútuo sob condições apropriadamente iguais.” [grifo nosso] Rawls entende que o objetivo do Welfare State é que ninguém fique abaixo de um “padrão decente de vida” enquanto que sua proposta coloca ênfase na “igualdade eqüitativa de oportunidades” de forma a realizar a idéia da “sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação ao longo do tempo, entre os cidadãos como pessoas livres e iguais (pp.XVII-XVIII).” Insiste, portanto, na igualdade de oportunidades em contraposição a igualdade de resultados. 202 Para esse autor a cooperação social possibilitaria uma vida melhor do que se cada um “dependesse de seu próprio esforço”.

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Gargarella (1999) chama a atenção para outros aspectos que caracterizam uma sociedade

bem ordenada na concepção rawlsiana: nela primam circunstâncias de justiça, não existe uma

extrema escassez203 ou uma abundância de bens, nem desigualdades significativas entre as

pessoas no que se refere às suas capacidades físicas e mentais.

Vale esclarecer alguns termos empregados por Rawls. De forma abrangente, considera

como instituições sociais “o complexo de instituições políticas, econômicas e sociais (p.507)”,

indicando como mais importantes a constituição política e os principais acordos econômicos e

sociais. E especifica: “Assim, a proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os

mercados competitivos, a propriedade particular no âmbito dos meios de produção e a família

monogâmica constituem exemplos das instituições sociais mais importantes (p.8).” Essas

instituições - “organizadas em um sistema unificado de cooperação social de uma geração até a

seguinte” - constituem a estrutura básica da sociedade204. E é a forma de organização da estrutura

básica que deve ser “julgada a partir de um ponto de vista geral” (p.93) como justa ou injusta e

não as instituições particulares, desvinculadas do todo; para esse autor, a estrutura básica da

sociedade exprime um ideal moral e político que lhe é próprio.

Destaca-se, ainda, sua concepção de pessoa ética – isto é, pessoas que em função de

determinadas “características” devem “ser tratadas de acordo com os princípios de justiça”

(p.560). E as “pessoas éticas” são aquelas capazes: (1) de ter (ou vir a ter) sua própria concepção

de bem (ter, ou vir a ter, um plano racional de vida); e (2) de ter (ou vir a ter) um senso de justiça

203 Rawls admite que uma escassez acentuada possa – momentaneamente – restringir a liberdade; mas nesse sentido, o primeiro princípio serve como norte para as mudanças fundamentais de uma sociedade (p.164). “Embora os interesses fundamentais na liberdade tenham um objetivo definido, ou seja, o estabelecimento efetivo das liberdades básicas, é possível que esses interesses nem sempre pareçam na posição de direção. A realização desses interesses pode exigir certas condições sociais e um grau de satisfação de necessidades e carências básicas, e isso explica por que a liberdade pode algumas vezes ser restringida. Mas uma vez que se atingem as condições sociais e o grau de satisfação das necessidades e carências materiais necessários, como acontece em uma sociedade bem-organizada em circunstâncias favoráveis, os interesses de ordem superior passam a ser normativos. (...). (p.604).” 204 V. §§ 2 e 33.

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(cumprem e aplicam os princípios de justiça “pelo menos em grau mínimo” – p.561)205. E esses

“atributos naturais”, segundo Rawls, fazem com que a justiça como equidade tenha “as marcas

características de uma teoria dos direitos naturais”206.

Para Rawls as pessoas podem ser assim concebidas, pois, apesar de seus interesses

próprios (formulados de acordo com a concepção de bem que definem para as suas vidas), se

dispõem (em função de seu senso de justiça) a ponderar quais os termos justos de cooperação que

devem nortear o convívio social e a distribuição dos benefícios sociais. Assim é possível chegar-

se a um acordo sobre os princípios da justiça que serão escolhidos.

Uma concepção pública de justiça se revelaria em uma “sociedade na qual (1) todos

aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e (2) as instituições

sociais básicas geralmente satisfazem, e geralmente se sabe que satisfazem, esses princípios

(p.5).” A reciprocidade entre os homens e a confiança nas instituições sociais garantiriam a

existência de uma sociedade concebida como um empreendimento cooperativo.

A importância da concepção pública de justiça se justificaria pelo fato de que a sociedade

– que apesar de ser um “empreendimento cooperativo” – é marcada tanto pela identidade como

205 Entende Rawls que sem o senso de justiça as pessoas se comportarão como “caronas” (free riders), como passageiros clandestinos, que não agiriam de acordo com os princípios de justiça. No limite essa situação inviabilizaria a idéia da sociedade como um sistema cooperativo entre pessoas livres e iguais, como também seria um óbice à estabilidade. 206 Diz Rawls (2000a, p.695): “Esse fato [condição suficiente para a justiça igual] pode ser usado na interpretação do conceito de direitos naturais. Em primeiro lugar, ele explica por que é adequado dar esse nome aos direitos protegidos pela justiça. Essas reivindicações dependem apenas de alguns atributos naturais (...). A existência desses atributos e das reivindicações neles baseadas é estabelecida independentemente das convenções sociais e das normas legais. A adequação do termo “natural” está no fato de ele sugerir a contraposição entre os direitos identificados pela teoria da justiça e os direitos definidos pela lei e os costumes. Mas, mais que isso, o conceito de direitos naturais inclui a idéia de que esses direitos são atribuídos em primeiro lugar às pessoas, e que lhes é conferido um peso especial. (...). Ora, os direitos protegidos pelo primeiro princípio têm essas duas características, em vista das regras de prioridade. Assim, a justiça como equidade tem as marcas características de uma teoria dos direitos naturais. Não só ela fundamenta os direitos essenciais nos atributos naturais e os distingue das normas sociais, mas também atribui direitos às pessoas através dos princípios da justiça igual, tendo esses princípios uma força especial que outros valores não podem normalmente sobrepujar. Embora os direitos específicos não sejam absolutos, o sistema de liberdades iguais é absoluto em termos práticos, contanto que as condições sejam favoráveis (nota de rodapé 31).” Essa idéia é reafirmada no livro O Liberalismo Político (p.337) quando afirma: “Temos direito às nossas capacidades naturais e um direito a tudo aquilo que obtemos participando de um processo social eqüitativo.”

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pelo conflito de interesses207. Esse conflito de interesses colocaria como imperativa a existência

de princípios de justiça publicamente reconhecidos e acordados que possibilitariam a associação

segura, pois “uma sociedade bem-ordenada é homogênea” (porque partilha do mesmo senso de

justiça) e o “debate político recorre a esse consenso moral” (p.291).

Esses princípios de justiça exerceriam permanente vigilância sobre a possibilidade de

algumas pessoas satisfazerem seus “interesses egoístas”. Neste sentido, a cooperação social deve

ser entendida e justificada não em nome de um “altruísmo”, mas sim em função da busca de

satisfação de necessidades e interesses próprios208, garantidos pelas regras públicas que definem

os limites das ações das pessoas envolvidas na cooperação social, promovendo uma “base

comum” para o estabelecimento de “expectativas mútuas”.

Dentro da concepção do autor, portanto, a justiça deve ser “a primeira virtude das

instituições sociais”, pois a maneira pela qual distribuem direitos e deveres fundamentais e

determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social será determinante – ou não

– para a manutenção dos princípios de justiça.

O principal papel dos princípios de justiça seria o de fornecer “um modo de atribuir

direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade” e definir “a distribuição apropriada dos

benefícios e encargos da cooperação social” (p.5), estabelecendo vínculos de convivência cívica.

207 Rawls refere-se às “circunstâncias da justiça” que define “como as condições normais sob as quais a cooperação é tanto possível quanto necessária” (p.136). Essas circunstâncias surgiriam “sempre que pessoas apresentam reivindicações conflitantes em relação à divisão de vantagens sociais em condições de escassez moderada (p.138).” Desdobra essa definição em circunstâncias objetivas e subjetivas de justiça. As “circunstâncias objetivas da justiça” se referem a dois aspectos: (1) a semelhança – física e mental – entre indivíduos de um mesmo território que se reconhecem como semelhantes e relativamente vulneráveis face à possibilidade de “união de forças dos outros” – o que poderia frustrar seus planos de vida; (2) “uma condição de escassez moderada implícita, para atender a uma ampla gama de situações (p.138)”. As “circunstâncias subjetivas da justiça” se traduziriam pelo conflito decorrente da persecução dos objetivos e planos de vida desses indivíduos (p.137); ou seja, pelos diferentes fins dos participantes e pelas exigências opostas ao resultado da cooperação social. 208 Trata-se do que Rawls denomina como “egoísmo moderado” ou “desinteresse mútuo”.

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Também podem servir como um padrão (não exclusivo) de avaliação das instituições e “como

orientação geral da mudança social” (p.290).

Seria ainda papel dos princípios de justiça garantir: 1) a coordenação dos planos

individuais de modo a garantir a articulação entre eles e evitar frustrações graves; 2) a eficiência

desses planos individuais que devem levar à consecução de fins sociais de formas eficientes e

coerentes com a justiça; 3) a estabilidade, pois o esquema de cooperação deve ter regularidade e

suas regras básicas devem espontaneamente nortear a ação (quando ocorrem infrações, devem

existir forças estabilizadoras que impeçam maiores violações e que tendam a restaurar a

organização social). Para o autor, avaliar uma concepção de justiça significa, portanto, ir além

dos seus aspectos distributivos. Esse papel “ampliado” dos princípios se constituiria em

requisitos para uma “comunidade humana viável” (p.6-7).

O suposto do autor é que essas instituições, “tomadas em conjunto como um único

esquema” (ou seja, a estrutura básica da sociedade), favoreceriam “certos pontos de partidas mais

que outros”, caracterizando “desigualdades especialmente profundas”, “difusas” que não

poderiam ser justificadas pelo “mérito ou valor” e que afetariam “as possibilidades de vida dos

seres humanos”. Assim, se a estrutura básica da sociedade é o objeto da justiça, as desigualdades

se constituem no objeto dos princípios de justiça.

A Teoria da Justiça de Rawls se insere na tradição contratualista209 e é exatamente através

da noção de contrato social que se chega aos princípios de justiça. Contudo sua idéia de contrato

apresenta diferenciação em relação àquela tradição.

209 A referência é à teoria do contrato social cuja idéia central clássica, segundo Krischke (1993, p.18), remete a “um acordo consociativo sobre a legitimidade política (o acatamento da autoridade estatal) através da deliberação dos indivíduos dessa sociedade, acerca dos direitos e deveres respectivos de governantes e governados (bem como de seus limites).” Como sinaliza esse autor essa tradição é marcada pela tensão existente entre os temas da liberdade e da igualdade (p.19), extremamente atual (pois refere-se à “diferentes níveis de acordos e institucionalização da vida em sociedade” – daí as referências sistemáticas no discurso político cotidiano à necessidade de estabelecimento de “pactos” e “entendimentos sociais”). Em sua versão mais contemporânea (o neocontratualismo) mantém-se o núcleo tradicional

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“(...) não devemos pensar no contrato original como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a idéia norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original. (...). Os princípios da justiça escolhidos no consenso (contrato) original, para a estrutura básica da sociedade, regulam todos os acordos subseqüentes, especificam os tipos de cooperação social que se podem assumir e as formas de governo que se podem estabelecer. A essa maneira de considerar os princípios da justiça eu chamarei de justiça como eqüidade (p.12).”

Enfatiza o autor que essa expressão – justiça como eqüidade – não significa que “os

conceitos de justiça e equidade sejam a mesma coisa” (p.14); a idéia é “usar a noção de justiça

procedimental pura210 para lidar com as contingências de situações particulares” (p.303). Assim,

eqüitativa é a posição inicial, pois a escolha dos princípios de justiça se daria “sob um véu de

ignorância” que impediria que os sujeitos envolvidos no processo de escolha conhecessem “seu

lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social”; desconhecem também “sua sorte

na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes

(p.13)”.

mas “os mecanismos e liberdades do contrato são retomados como outros tantos meios para o enquadramento e a resolução do problema central da desigualdade (p.22).” 210 Segundo Höffe (2003, p.53-4), existem três tipos de justiça procedimental – a forma pura, a forma imperfeita e a forma perfeita. Têm em comum o fato de que em procedimentos não importam conteúdos ou resultados, mas as competências, os trâmites e as formalidades. Esses procedimentos devem ser abertos às necessidades e interesses dos implicados e devem vincular-se às orientações prévias que são justas. Porém, só a forma pura – isto é, a justiça procedimental pura – é justa, subsidiária e originariamente, tanto em relação aos procedimentos como aos resultados; ou seja, garantindo-se o procedimento correto ou justo o resultado sempre será correto independentemente de qualquer avaliação de conteúdo desse resultado. Rawls compara-a a um jogo: “Se um certo número de pessoas se engaja em uma série de apostas justas, a distribuição do dinheiro após a última aposta é justa, ou pelo menos não injusta, qualquer que seja essa distribuição. Suponho aqui que apostas justas são aquelas que têm uma expectativa zero de ganho, que as apostas são feitas de forma voluntária, que ninguém trapaceia e assim por diante. O processo de apostas é justo e aceito livremente em condições que são justas. Assim, as circunstâncias contextuais definem um procedimento justo. (...)(p.92).” No entanto, no livro Justiça como equidade: uma reformulação (p.176), Rawls explicita sua posição em relação à Teoria dos Jogos: “Aqui estamos pressupondo que a cooperação política e social rapidamente se romperia se todos, ou mesmo muitas pessoas, sempre agissem em interesse próprio ou de grupos de uma forma puramente estratégica, conforme o supõe a teoria dos jogos. Num regime democrático, a cooperação social estável apóia-se no fato de que a maioria dos cidadãos aceita a ordem política como legítima, ou pelo menos como não gravemente ilegítima, e portanto a acata de boa vontade.” No livro O Liberalismo Político o autor esclarece sua concepção: “(...). Justiça procedimental pura significa que, em suas deliberações racionais, as partes não se vêem obrigadas a aplicar nenhum princípio de direito e justiça determinado previamente nem se consideram limitadas por ele (p.118).”

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Na assim chamada “justiça como equidade” a posição original de igualdade – “situação

puramente hipotética caracterizada de modo a conduzir a uma certa concepção de justiça (p.13)” -

corresponderia ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. Sua diferenciação

objetiva enfatizar uma posição inicial de igualdade que permite pensar a sociedade como um

sistema eqüitativo de cooperação.

Assim sendo, a concepção rawlsiana de posição original implica uma situação inicial de

igualdade – na fruição das denominadas liberdades fundamentais – e de equidade – posto que

todos os participantes estão “simetricamente dispostos” e, portanto, em posições “idênticas” e

condições consideradas ideais para procederem a escolha dos princípios de justiça que vão

especificar os justos termos da cooperação social.

Nesse contexto, a escolha dos “primeiros princípios” de uma concepção de justiça deve se

dar da forma mais abrangente possível, a fim de viabilizar a crítica e as conseqüentes reformas

institucionais. Para o autor as diversas concepções de justiça devem ser “classificadas por sua

aceitabilidade”, facilitando o processo de deliberação (p.19).

Para chegar aos princípios de justiça para as instituições211, Rawls prevê uma “seqüência

de quatro estágios”: o primeiro – anteriormente referido - se constitui na escolha dos primeiros

princípios na posição original que devem ser “aplicados” em etapas distintas subseqüentes; a

saber: na formulação de uma constituição justa, na elaboração de uma legislação eficaz e justa e,

como último estágio, a aplicação das regras constituídas com base nos princípios de justiça aos

casos concretos (que seria procedida por juízes e autoridades administrativas). Ou seja, toda a

legislação política, econômica e social deve estar pautada nos princípios de justiça acordados na

211 Rawls também prevê princípios de justiça para indivíduos (§§ 18, 19, 51 e 52) e para o direito internacional (§ 58), mas dado o tema deste trabalho só serão referidos os princípios de justiça que, para o autor, se aplicam à estrutura básica da sociedade. Entretanto, vale lembrar, que para Rawls “um sistema justo deve gerar sua própria sustentação”, ou seja, a sua organização deve gerar um senso de justiça correspondente, fazendo com que seus membros desejem “agir de acordo com suas regras por motivos de justiça”.

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posição original. Tal procedimento levaria a uma “situação social justa” porque garantiria uma

“seqüência de consensos hipotéticos” pautados no consenso original (p.14-5).

Sempre que houvesse discrepância entre a situação inicial e o conjunto de princípios que

dela deve decorrer se poderia lançar mão da idéia da posição inicial, desde que se conseguisse

“excluir o conhecimento dessas contingências que criam disparidades entre os homens e

permitem que eles se orientem pelos seus preconceitos” (p.21). A este procedimento – de

confrontação e de acomodação entre as convicções das pessoas e a escolha dos princípios de

justiça - Rawls denomina de equilíbrio reflexivo (p.22-3).

No contexto desta proposta, os sujeitos livres, racionais, razoavelmente bem informados,

donos de sólidos princípios morais e movidos por um moderado egoísmo (ou auto-interesse)

escolhem o conteúdo da justiça a partir do critério “maximin” – que é uma “regra para escolha em

condições de grande incerteza” (p.89)212 -, de forma a permitir que a escolha seja por uma opção

que seja menos pior para todos.

Assim os dois princípios de justiça (que constituem a concepção específica de justiça em

Rawls porque determinam como são distribuídos os benefícios resultantes da cooperação social)

escolhidos na situação inicial eqüitativa seriam formulados da seguinte forma:

Primeiro Princípio: Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos. Segundo Princípio As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos (...), e

212 No livro Justiça como equidade: uma reformulação (p.137) Rawls aponta uma “definição” mais detalhada: “segundo ela, devemos identificar o pior resultado de cada alternativa disponível e então adotar a alternativa cujo pior resultado é melhor do que os piores resultados de todas as outras alternativas. Para seguir essa regra, ao escolher princípios de justiça para a estrutura básica procuramos as piores posições sociais admissíveis quando essa estrutura é efetivamente regulada por aqueles princípios em várias circunstâncias.” Nesse mesmo livro já se apresenta outro argumento para a escolha dos dois princípios (v. item 3.2. do presente trabalho).

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(b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades (p.333).

Esses princípios seguem uma ordem (lexical) de prioridade, tendo o primeiro princípio

prioridade sobre o segundo (o princípio da diferença defendido por Rawls e que diz respeito às

desigualdades de renda e riqueza). Ou seja, somente com a garantia da igualdade no exercício das

liberdades básicas contidas no primeiro princípio é que se passa a enfrentar a questão das

desigualdades213.

Vale explicitar as liberdades a que se refere o primeiro princípio:

(...). As mais importantes entre elas são a liberdade política (o direito de votar e ocupar um cargo público) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a proteção contra a opressão psicológica e a agressão física (integridade da pessoa); o direito à propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, de acordo com o conceito de estado de direito. Segundo o primeiro princípio, essas liberdades devem ser iguais (p.65).

A concepção de justiça rawlsiana (em sua versão original) toma a liberdade como sendo o

bem maior, incondicional e irrenunciável, pois entende que “numa sociedade justa as liberdades

da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão

sujeitos à negociação política ou ao cálculo dos interesses sociais (p.4).” Para Rawls os dois

princípios “não permitem permuta entre liberdades básicas e ganhos sociais e econômicos

(p.67).” As desigualdades que não se justificam por esses princípios limitam as possibilidades dos

menos afortunados em desfrutar de sua liberdade. Diz o autor:

(...). Assim a liberdade e o valor da liberdade se distinguem da seguinte maneira: a liberdade é representada por um sistema completo das liberdades de cidadania igual, enquanto o valor da liberdade para pessoas e grupos depende de sua capacidade de promover seus fins dentro da estrutura definida pelo sistema. A noção de liberdade como liberdade igual é a mesma para todos; não surge o problema de se compensar uma liberdade que não atinja o requisito mínimo de igualdade. Mas o valor da liberdade não é o mesmo para todos. Alguns têm mais autoridade e riqueza, e portanto maiores meios de atingir seus objetivos. O valor

213 Para Catherine Audard (v. Prefácio in: Justiça e Democracia) Rawls entenderia que os imperativos da justiça social não devem “suprimir as liberdades e os direitos dos indivíduos, mas neles fincar raízes”, pois só assim “pode nascer um consenso” (p.XV).

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menor da liberdade é, todavia, compensado, uma vez que a capacidade dos membros menos afortunados da sociedade para conseguir seus objetivos seria ainda menor caso eles não aceitassem as desigualdades existentes sempre que o princípio da diferença fosse respeitado. Mas não se deve confundir a compensação do valor menor da liberdade com a afirmação de uma liberdade desigual. Juntando-se os dois princípios, a estrutura básica deve ser ordenada para maximizar o valor para os menos favorecidos, no sistema completo de liberdade igual partilhada por todos. Isso é o que define o fim da justiça social. (p.221-2)

Para o segundo princípio (conhecido como o princípio da diferença, pois trata mais

especificamente da distribuição dos benefícios resultantes da cooperação social), Rawls busca

uma interpretação que “trate todos igualmente como pessoas morais, e que não meça a parte de

cada homem nos benefícios e encargos da cooperação social em função da sua fortuna social ou

sua sorte na loteria natural”. A essa interpretação ele denomina de “igualdade democrática” que

consiste na “combinação” do princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades com o princípio

da diferença (p.79).

Cabe aqui uma explicitação dos termos. Rawls, discutindo as possíveis interpretações do

segundo princípio, afirma que o princípio da diferença não deve ser interpretado como um

princípio de eficiência. Segundo esse autor, o princípio da eficiência admite duas interpretações;

uma – que ele recusa - vincula-se ao “sistema de liberdade natural” e tem por base o princípio

ótimo de Pareto214. Essa interpretação do princípio de eficiência, segundo Rawls, concebe a

sociedade como um mercado competitivo no qual as pessoas capazes e dispostas lutam pelas

“carreiras abertas a talentos” (p.77). Assim essa “distribuição de benefício” seria justa porque

reconhece a eficiência do candidato; ou seja, é um parâmetro de justiça que ratifica uma

concepção meritocrática.

Rawls recusa esse entendimento e adota uma interpretação do princípio da eficiência que

implica o princípio da igualdade liberal; nessa perspectiva as “posições sociais” não estão

214 V. § 12.

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simplesmente “abertas a talentos”, mas sim submetidas a um “esquema eqüitativo de

oportunidades” que garante oportunidades semelhantes a todas as pessoas com dotes e

habilidades naturais semelhantes para alcançar posições sociais desejadas, independentemente de

sua origem de classe e handicap social e cultural; o pressuposto é o de que essas “contingências

sociais” interferem no acesso ao conhecimento cultural, na qualificação da pessoa e,

consequentemente, nas suas oportunidades. Neste sentido a igualdade liberal tenta anular as

“contingências sociais” existentes entre os que apresentam dotes e habilidades semelhantes.

Como o princípio da igualdade liberal – com sua conseqüente igualdade eqüitativa de

oportunidades – se volta somente para as “contingências sociais”, Rawls indica a concepção da

igualdade democrática como aquela que melhor interpreta as bases do que expõe no segundo

princípio de justiça, pois garantiria “vantagens para os menos afortunados” a partir do princípio

da diferença:

(...) o princípio da diferença é uma concepção fortemente igual no sentido de que, se não houver uma distribuição que melhore a situação de ambas as pessoas (limitando-nos, para simplificar, ao caso de duas pessoas), deve-se preferir uma distribuição igual. (...). Não importa o quanto a situação de cada pessoa seja melhorada; do ponto de vista do princípio da diferença, não há ganho algum a não ser que o outro também ganhe (p.80).

Assim, a igualdade democrática num contexto de desigualdades impõe que o benefício

dos mais favorecidos só se justifique caso melhore a situação dos menos favorecidos. A idéia

delineada é a de uma compensação aos menos favorecidos numa situação em que as

desigualdades advindas das “contingências” naturais e sociais são permitidas. Esses princípios,

no entanto, não eliminariam as desigualdades; ao contrário, a obra de Rawls as admite, desde que,

por um lado, não decorram dos pontos de partidas iniciais e, de outro, sejam para o maior

proveito dos desfavorecidos. Afinal, a eliminação dessas desigualdades implica infringir o

princípio da liberdade.

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210

Vale enfatizar o argumento de Rawls contra a tendência do senso comum em considerar

que as partes a serem distribuídas devem levar em conta o mérito moral dos indivíduos, reafirma

sua admissão da desigualdade, em consonância com o princípio “a cada um de acordo com o que

lhe é devido”: “(...) o mérito moral igual das pessoas não implica que as partes distributivas sejam

iguais. Cada um recebe de acordo com o que os princípios da justiça afirmam que é o seu direito,

e esses princípios não exigem a igualdade (p.345).”

Em relação à proposta de organização das instituições de modo a satisfazer o princípio da

diferença no contexto de um “Estado moderno”, Rawls defende a idéia de que os princípios de

justiça podem servir como parte de uma doutrina da economia política215 porque, de um lado,

“trazem em seu bojo um certo ideal das instituições sociais” (p.285) e, de outro, toda doutrina da

economia política “deve incluir uma interpretação do bem público que se baseie numa concepção

da justiça” (p.286), orientando as reflexões do cidadão em relação à política econômica e social.

Estabelece essa relação porque entende que o “efeito cumulativo da legislação econômica

e social é o de especificar a estrutura básica” e ao fazê-lo não apenas satisfaz “desejos e

necessidades existentes”, mas é também “um modo de criar e modelar as necessidades futuras”.

Em suas palavras, um sistema social “determina, em parte, que tipo de pessoas eles [os cidadãos]

querem ser e também o tipo de pessoas que são” (p.286).

Em função desse “efeito” das organizações econômicas, a escolha das instituições sociais

– e de suas estruturas que implementam a legislação econômico-social – deve ser pautada

principalmente “com base em motivos morais, políticos e também econômicos” (p.287). É por

isso que Rawls explicita que seu interesse está centrado “em alguns problemas morais da 215 Informa Rawls: “(...). A economia política se preocupa seriamente com o setor público, e com a forma adequada das instituições básicas que regulam a atividade econômica, com os impostos e os direitos de propriedade, com a estrutura dos mercados, e assim por diante. Um sistema econômico regula os bens que são produzidos e por quais meios, quem os recebe e em troca de quais contribuições, e o tamanho da fração de recursos sociais que é destinada à poupança e ao provimento de bens públicos. Idealmente, todos esses problemas deveriam ser ordenados de forma que satisfizessem os dois princípios da justiça. (...). (p.293-4).”

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economia política”, como por exemplo, “a taxa adequada de poupança ao longo do tempo”, o

modo de organizar as instituições básicas no que diz respeito “à taxação e à propriedade” e o

nível em que “deve ser fixado o mínimo social (p.293).”

Vale ressaltar a distinção que esse autor estabelece entre justiça distributiva e justiça

alocativa. A justiça distributiva na justiça como equidade se volta para a necessidade de ordenar

as instituições da estrutura básica de modo a garantir um sistema de cooperação social eqüitativo

que se mantenha no decorrer do tempo, garantindo aos participantes desse processo cooperativo

(em conformidade com as regras públicas que foram estabelecidas) o acesso ao que é produzido.

Já a justiça alocativa é utilizada “quando um conjunto de bens deve ser dividido entre

indivíduos concretos com necessidades e desejos conhecidos”. Esse conjunto de bens não resulta

da produção desses indivíduos; esses indivíduos tampouco se encontram “em uma relação

cooperativa concreta” (p.94). Neste caso, Rawls entende que o que ocorre é uma “alocação

administrativa de bens para pessoas específicas” (p.69), não estando, portanto, no âmbito da

justiça como equidade. Assim considerada – isto é, fora de uma concepção de sociedade -, a

justiça “se torna um tipo de eficiência” e, se generalizada, essa “concepção alocativa conduz à

visão utilitarista clássica” (p.94).

No já mencionado livro Justiça como equidade: uma reformulação216 Rawls é ainda mais

enfático ao refutar o que denomina de justiça alocativa:

Comparem isso [justiça distributiva na justiça como equidade] com o problema muito diferente de como distribuir ou alocar um determinado conjunto de produtos entre diferentes indivíduos cujas necessidades, desejos e preferências particulares são conhecidos e que não cooperaram de forma alguma para produzir esses produtos. Este segundo problema é o da justiça alocativa (p.70). Não há nenhum critério para uma distribuição justa fora das instituições de fundo e das titularidades que emergem do funcionamento efetivo do procedimento. São as instituições de fundo que fornecem o contexto para a cooperação eqüitativa no interior da qual surgem as titularidades. (p.71).

216 § 14 – pp.70-3.

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212

A justiça do processo distributivo depende, em sua opinião, de instituições básicas

adequadas (políticas e jurídicas, em especial). Idealmente, elas deveriam ser assim estruturadas

para que pudessem atender aos dois princípios de justiça estabelecidos em sua teoria:

Em primeiro lugar, presumo que a estrutura básica é regulada por uma constituição justa que assegura as liberdades de cidadania igual (já descritas no capítulo anterior). A liberdade de consciência e de pensamento são pressupostas, e o valor eqüitativo da liberdade política é assegurado. O processo político é conduzido, até onde permitem as circunstâncias, como um procedimento justo para a escolha do tipo de governo e para a elaboração de uma legislação justa. Também suponho que há uma igualdade de oportunidades que é eqüitativa (em oposição a uma igualdade formal). Isso significa que, além de manter as formas habituais de despesas sociais básicas, o governo tenta assegurar oportunidades iguais de educação e cultura para pessoas semelhantemente dotadas e motivadas, seja subsidiando escolas particulares seja estabelecendo um sistema de ensino público. Também reforça e assegura a igualdade de oportunidades nas atividades econômicas e na livre escolha de trabalho. Isso se consegue por meio da fiscalização de empresas e associações privadas e pela prevenção do estabelecimento de medidas monopolizantes e de barreiras que dificultem o acesso às posições mais procuradas. Por último, o governo garante um mínimo social, seja através de um salário-família e de subvenções especiais em casos de doença e desemprego, seja mais sistematicamente por meio de dispositivos tais como suplemento gradual de renda (o chamado imposto de renda negativo). (p.303-4)

Para atingir esse construto ideal o governo se dividiria em quatro grandes setores (que

admitem subdivisões e que “não se sobrepõem à organização habitual do governo, mas devem ser

entendidas como funções diferentes” - p.304)217: alocação, estabilização, distribuição e

transferências. O objetivo desses setores “é estabelecer um regime democrático no qual a posse

da terra e do capital é distribuída de forma ampla, embora presumivelmente possuída

desigualmente (p.309).”

O setor de alocação deve manter a competitividade do sistema de preços dentro dos

limites de modo a “impedir a formação de um poder sobre o mercado que não seja razoável”; 217 Rawls menciona ainda o setor de trocas (v. p.312-4), mas deixa claro que este setor atende “ao princípio do benefício e não os princípios de justiça” (p.313), motivo pelo qual não é incorporado à este trabalho. Mas vale situa-lo rapidamente: se constitui de um grupo de representantes que analisam projetos de leis relativos aos “vários interesses sociais e suas preferências pelos bens públicos” que são “independentes do que é estipulado pela justiça”; só podem ser aprovados “quando satisfazem o critério de unanimidade de Wicksell” o que significa que nenhum gasto público pode ser aprovado sem que haja um “acordo unânime (ou quase unânime) sobre os meios para cobrir os seus custos”.

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213

também zela pela eficiência do sistema no que diz respeito à correção de desvios, podendo para

tal, tanto lançar mão de impostos e subsídios, como também propor revisão do alcance e

definição do direito de propriedade.

Esse setor de alocação trabalha em conjunto com o de estabilização a fim de “manter a

eficiência da economia de mercado em termos gerais”, pois é tarefa do setor de estabilização

“criar um pleno emprego razoável” 218 e desenvolver as finanças a partir de uma “demanda

efetiva”. A idéia é a de que a regulação dos mercados competitivos garante a utilização eficiente

dos recursos e a alocação de mercadorias entre os consumidores, bem como fixem “um peso que

deve ser atribuído às normas convencionais relativas aos salários e rendimentos” (p.305).

Já o setor de distribuição deve ser subdividido (arrecadação e tributação), pois tem como

função “preservar uma justiça aproximativa das partes a serem distribuídas” (p.306), ou seja, sua

função é limitar “acúmulos de propriedade e de poder” (p.308). Para Rawls as instituições correm

riscos “quando as desigualdades de riqueza excedem um certo limite; e da mesma forma, a

liberdade política tende a perder o seu valor, e o governo representativo só existirá nas aparências

(p.307).”

Assim os tributos sobre heranças, sobre a renda (ou proporcionalmente sobre as despesas)

e sobre doações, bem como as restrições ao direito de legar e a definição legal dos direitos de

propriedade – todos afeitos ao setor de distribuição – servem não para angariar recursos

financeiros, mas sim para “distribuir” a riqueza de modo a não prejudicar o valor eqüitativo da

liberdade política e da igualdade eqüitativa de oportunidades.

Cabe ao setor de transferências a responsabilidade pelo “mínimo social”. Defende que é

tarefa desse setor levar em consideração as “necessidades” (que também não são por ele

218 Para Rawls, o “pleno emprego razoável” diz respeito não só a possibilidade de “aqueles que querem”, encontrar trabalho, mas também tenham a possibilidade de escolher livremente sua ocupação (p.304).

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214

qualificadas) e atribuir “a elas um peso apropriado com respeito a outras reivindicações” (p.305).

Esse setor deve garantir “um certo nível de bem-estar” e atender “às exigências dos necessitados”

(p.305).

O suposto de Rawls é que o mercado ignora “as exigências da pobreza e de um padrão de

vida adequado” (p.305), necessitando, portanto, de um setor específico que deve ser

“harmonizado” com os outros preceitos através das instituições básicas como um todo. Defende

que o provimento dos bens públicos deve ser assegurado pelo processo político e não pelo

mercado (p.298).

Entende que a distribuição de parcelas justas depende de como as instituições básicas

“alocam a renda total, isto é, os salários e outros rendimentos acrescidos de transferências”

(p.305). O mercado competitivo não pode determinar a renda total e considera justo que sejam

estabelecidas proteções “para nós e nossos descendentes” contra as contingências do mercado.

Afirma, portanto, que no estágio legislativo – o terceiro na seqüência de quatro estágios e que

define a legislação econômica e social – seja fixado um mínimo para as transferências,

considerando “perfeitamente justo que o resto da renda total seja estabelecido pelo sistema de

preços”. Na opinião desse autor é mais eficiente esse procedimento que a “tentativa de regular a

renda por padrões de salário-mínimo e métodos afins” (p.306).

Para Rawls, saber se o sistema social como um todo pode satisfazer os princípios de

justiça depende do nível em que deve ser fixado o mínimo social – que, por sua vez depende da

disponibilidade que a geração atual está disposta a respeitar as exigências das gerações seguintes.

Há que se saber, então, se a renda total dos menos favorecidos possibilita a “maximização de suas

expectativas a longo prazo (obedecendo às restrições da liberdade igual e da igualdade eqüitativa

de oportunidades) (p. 306).”, o que coloca a questão da justiça entre gerações.

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215

Defende que cada geração deve reservar quantidade adequada de capital. Tal poupança

pode assumir diversas formas, desde meios de produção ao investimento em conhecimento e

cultura, assim como técnicas e habilidades (p.321)219. Assim, a partir de um princípio de

poupança justa que nos indique qual a dimensão do investimento a fazer, o mínimo social poderia

ser determinado (p.315).

A poupança justa é exigida pela concepção de justiça como equidade como condição para

realização plena de instituições justas e de liberdades iguais para todos (p.321); isso não

implicaria em um elevado nível de vida material, pois, segundo Rawls, o que as pessoas buscam é

um trabalho que tenha um sentido, em livre associação com outros, dentro de um sistema social

justo (p.322). Assim, o princípio da poupança justa agiria como limite à taxa de acumulação (p.

329). A poupança justa seria obtida através de uma decisão política em relação as medidas

destinadas a melhorar o padrão de vida das gerações posteriores menos favorecidas, abdicando-

se, pois, dos ganhos imediatos que estão disponíveis (p. 323).

Uma vez identificada a taxa de poupança justa (ou especificado o conjunto adequado de

taxas) chega-se a um “critério” para ajustar o nível do mínimo social. A soma das transferências e

benefícios, sob a forma de bens públicos essenciais, deve ser organizada de modo a aumentar as

expectativas dos menos favorecidos (compatibilizando-se essas expectativas com o nível de

poupança exigido e com a manutenção das liberdades iguais para todos). “Cada um recebe a

renda total (salário mais transferências) a que tem direito dentro do sistema de regras públicas no

qual se fundam suas expectativas legítimas (p.335).”

Finalizando essa síntese, vale enfatizar o que para Rawls é a “base da igualdade”:

219 Diz Rawls: “Sem dúvida, a poupança dos menos favorecidos não precisa ser feita através de sua participação ativa no processo de investimento. Em vez disso, essa poupança consiste na sua aprovação das organizações econômicas e de outro tipo, necessárias para que se efetue a acumulação adequada. (...). (p.323)”

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216

Parece razoável supor que as partes na posição original são iguais. Isto é, todas têm os mesmos direitos no processo da escolha dos princípios; cada uma pode fazer propostas, apresentar razões para a sua aceitação e assim por diante. Naturalmente a finalidade dessas condições é representar a igualdade entre os seres humanos como pessoas éticas, como criaturas que têm uma concepção do seu próprio bem e que são capazes de ter um senso de justiça. Toma-se como base da igualdade a similaridade nesses dois pontos. (...). (p.21).

Defende Rawls que a “simplicidade da base da igualdade deve ser enfatizada” porque

“quem pode oferecer justiça tem direito à justiça” (p.566); mesmo a “personalidade ética

potencial” (ou “personalidade moral”) é “condição suficiente” para garantir tanto a “liberdade

igual”, como a participação num empreendimento cooperativo como a sociedade bem ordenada

(p.562). Afinal, vale lembrar aqui como Rawls entende a justiça como equidade:

Na justiça como equidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento cooperativo para vantagem de todos. A estrutura básica é um sistema público de regras que definem um esquema de atividades que conduz os homens a agirem juntos no intuito de produzir uma quantidade maior de benefícios e atribuindo a cada um certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos. O que uma pessoa faz depende do que as regras públicas determinam a respeito do que ela tem direito de fazer e os direitos de uma pessoa dependem do que ela faz. Alcança-se a distribuição que resulta desses princípios honrando os direitos determinados pelo que as pessoas se comprometem a fazer à luz dessas expectativas legítimas (p.90).[grifo nosso]

Segundo seu entendimento, sua concepção de justiça permitiria “transformar nossa

perspectiva em relação à sociedade” e “nos reconciliar com as disposições da ordem natural e

com as condições da vida humana” (p.568).

4.1.2 Sobre O Liberalismo Político e outras revisões posteriores

As críticas não tardaram e de todos os espectros de pensamento. De certa forma, isto

condicionou a própria trajetória de Rawls que até a publicação de seu último livro, se dedicou a

melhorar a argumentação da sua teoria de justiça, através do debate com vários interlocutores.

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217

Essa interlocução se deu basicamente através de artigos, mas, grosso modo, foram incorporadas

ao livro O Liberalismo Político (1993)220.

Em Prefácio datado de outubro de 2000221, o autor aponta mudanças de “três tipos” em

sua obra: (1º) “na formulação e no conteúdo dos dois princípios de justiça” – o que implica:

caracterização “bastante diferente das liberdades básicas iguais e sua prioridade”; concepção de

bens primários vinculados à concepção política de pessoa (de modo a não parecerem “definir-se

apenas com base na psicologia e nas necessidades humanas”); (2º) mudança “na organização” do

argumento a favor dos princípios de justiça; (3º) a interpretação da justiça como equidade como

uma concepção política de justiça e não como parte de uma doutrina moral abrangente.

De fato, já em 1985, no artigo intitulado Justice as Fairness: political not metaphysical222,

Rawls delineia a defesa da unidade da teoria da justiça e reitera as suas teses principais à luz do

que denominou “interpretação política e não metafísica223”. Para Rawls uma das tarefas da

filosofia política numa democracia é identificar conflitos para buscar princípios e regras gerais

que permitam um “entendimento público” em consonância com as “condições e os cerceamentos

históricos do nosso mundo social” (p.213); por isso passa a defender a posição de que uma

concepção liberal da justiça seria mais bem entendida como concepção política, pautada em

valores políticos, considerando que sua proposição se volta para uma sociedade democrática; sua

220 A idéia deste item é marcar as principais modificações na proposição de Rawls, não se prendendo à exposição da lógica como um todo, dado que, como já foi mencionado, o autor afirma que só melhorou sua argumentação e sua fundamentação. 221 V. Justiça como equidade: uma reformulação. p.XVII-XVIII. A introdução de O Liberalismo Político data de outubro de 1992, motivo pelo qual se recorreu ao Prefácio supramencionado; ressalte-se que várias questões foram desdobradas nesse livro que, conforme consta da primeira nota deste capítulo, não receberam revisão final do autor. Contudo, são dele as referências mais explícitas sobre, por exemplo, sua posição em relação aos mínimos sociais – mais um motivo pelo qual foi também incorporado a esta parte. 222 Este artigo foi originalmente publicado no Brasil pela Revista Lua Nova n. 25. As breves remissões a esse texto remetem-se ao já mencionado livro Justiça e Democracia. 223 Em Audard (2002, p.379) encontramos a seguinte definição: “Termo empregado por Rawls para designar concepções da justiça, como o utilitarismo, o perfeccionismo etc., que derivam de sistemas filosóficos, religiosos ou morais e se aplicam a todos os aspectos da vida, em vez de se limitarem à esfera política. O termo foi substituído posteriormente (em 1986) por abrangente (comprehensive), e Rawls fala então mais de doutrinas abrangentes do que metafísicas para expressar a mesma idéia. (...).”

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218

abordagem pressupõe a moralidade, mas não objetiva se constituir em uma investigação moral da

justiça.

Essa é a idéia central do livro O Liberalismo Político, no qual Rawls tenta conciliar o

liberalismo com idéias não liberais. Sua preocupação diz respeito à estabilidade e à justiça das

instituições democrático-representativas diante da existência de doutrinas abrangentes224

profundamente opostas: qual a estrutura e o teor de uma concepção política de justiça capaz de

ser endossada por todas essas doutrinas razoáveis, porém abrangentes? (p.26, 33).

Nesse livro defende que a idéia da teoria da justiça como equidade não deve ser

entendida como uma doutrina moral abrangente, mas como uma concepção política da justiça e

como uma forma de liberalismo político. Como admite o próprio autor essa distinção225 – que

levou a reformulações e a elaboração de novos conceitos - não foi feita em seu livro Uma Teoria

da Justiça, mas torna-se fundamental para compatibilizar a terceira parte desse livro com a teoria

“tomada como um todo” - e não para responder aos seus críticos mais ardorosos.

Rawls argumenta que a idéia de sociedade bem ordenada apresentada em seu primeiro

livro é irrealista, pois em uma sociedade democrática moderna têm-se uma diversidade de

doutrinas abrangentes, religiosas, filosóficas e morais que, no limite, podem ser incompatíveis

224 Para o autor as doutrinas abrangentes “de todos os tipos” (religiosas, filosóficas e morais) integram a “cultura de fundo” da sociedade civil, isto é uma “cultura do social” (que se distingue “do político”), uma “cultura da vida cotidiana, de suas diversas associações”, citando como exemplo igrejas e universidades, sociedades de eruditos e cientistas, clubes e times (p.56). Podem ser inteira ou parcialmente abrangentes; no primeiro caso abarcam “todos os valores e virtudes reconhecidos dentro de um sistema articulado de maneira muito precisa”; no segundo, “compreende um grande número de valores e virtudes não políticos e sua articulação é mais flexível” (p. 198-9; nota de rodapé n. 17). Na p. 403 dá como outro exemplo o socialismo – “uma das doutrinas políticas mais abrangentes que já foram formuladas.” 225 Para justificar a importância dessa distinção, argumenta Rawls que o “dualismo entre o ponto de vista da concepção política” e os das doutrinas abrangentes não reside na filosofia, mas “na natureza especial da cultura política democrática marcada pelo pluralismo razoável” que coloca a filosofia política do mundo moderno em “contraposição” com a do mundo antigo. Na seqüência da argumentação recorre a uma digressão histórica (reforma do século XVI, desenvolvimento do Estado Moderno e da ciência moderna) para concluir que “o mundo antigo não conheceu o choque entre religiões salvacionistas, doutrinárias e expansionistas” que introduziram “nas concepções de bem das pessoas um elemento transcendental que não admite conciliação” (v. p.29-34). Para ele a “origem histórica” do liberalismo político estaria no debate sobre tolerância religiosa “que se desenvolveu nos séculos XVI e XVII, a partir da Reforma”.

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219

entre si que, no entanto, coexistem sob certas condições políticas e sociais – situação que ele

denomina de pluralismo razoável. Disso decorre que sua “descrição da estabilidade226” (a já

referida terceira parte) deve ser reformulada, bem como os dois princípios de justiça – porque

concebidos dentro da lógica de doutrina filosófica “mais ou menos” abrangente. Entendendo a

teoria da justiça como equidade como uma concepção política da justiça, na visão do autor,

estaria resolvida a “ambigüidade” que marca a sua formulação original.

Considera ainda o fato de que a adesão de todos os participantes de uma sociedade a uma

doutrina abrangente particular só se torna possível através da opressão e do uso do poder estatal;

neste sentido, defende que um regime democrático só é sustentado a partir do endosso de

diferentes doutrinas abrangentes. Tem também como pressuposto que os julgamentos políticos

podem ser formulados de tal modo que pessoas razoáveis227, após reflexões bem ponderadas,

podem endossá-los a partir de suas próprias concepções de bem e dos seus planos racionais de

vida.

Para chegar a “idéia228” do liberalismo político, Rawls – “a partir de várias idéias básicas

e conhecidas, implícitas na cultura política pública229 de uma sociedade democrática” – constrói

226 Rawls distingue a estabilidade de um regime democrático (que pode ser injusto ou produzir algumas leis injustas) e a estabilidade de uma concepção política de justiça. Neste último caso – vale enfatizar – duas condições devem ser atendidas: as pessoas que crescem em uma sociedade regulada pelos princípios de justiça desenvolvem um forte desejo de cumprir as exigências institucionais (isto é, sem “free riders”), e que a concepção de justiça que regula essas instituições básicas “pode ser o foco de um consenso sobreposto”. Sua dificuldade residia em tornar coerente esse desejo de agir conforme o senso de justiça e a concepção do bem de cada um. Essa coerência entre o justo e o bem é fundamental para a estabilidade de uma sociedade justa. 227 Seriam assim denominadas as pessoas que seriam capazes de reconhecer um certo núcleo compartilhado de idéias políticas, como justificáveis a partir de sua própria concepção abrangente. Segundo Audard (2002, p.379) as idéias de “razoável” e de “racional” são desenvolvidas para responder críticas e dar início à reviravolta “kantiana” de Rawls. O racional representa a busca, por parte de cada um, da satisfação de seus interesses e remete ao bem. Já o razoável representa as limitações dos termos eqüitativos da cooperação social e remete ao justo. Desta forma, o razoável pressupõe e condiciona o racional. Para Rawls (2000b, p.16) “ser razoável” é “parte de um ideal político de cidadania democrática que inclui a idéia de razão pública”. É através do razoável que se supera o egoísmo na posição original. 228 O autor explica em nota de rodapé (n. 15) que usa essa expressão compreendendo tanto conceitos (entendidos como “significado de um termo”), como concepção (que compreenderia “também os princípios necessários para sua aplicação”) (p.56-7).

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uma “família de concepções230” que permitem a formulação e compreensão do liberalismo

político (p.87). Assim, destaca as concepções que integram essa família: justiça política,

sociedade como cooperação social, pessoa, sociedade bem-ordenada (e as idéias de consenso

sobreposto, doutrina abrangente razoável e pluralismo razoável, para defender a viabilidade dessa

sociedade bem-ordenada), estrutura básica, posição original, domínio do político e da razão

pública.

Entende que a unidade e a estabilidade231 de uma sociedade democrática e justa,

constituída por cidadãos livres e iguais – apesar de profundamente divididos por doutrinas

incompatíveis – pode ser alcançada através do liberalismo político; isto porque o liberalismo

político permite elaborar uma concepção política da justiça que formula os “valores políticos

essenciais de um regime constitucional”, a partir das “idéias políticas fundamentais, latentes na

cultura pública de uma democracia”. Em suas palavras “a concepção política é uma expressão

razoável dos valores políticos da razão pública232 e da justiça entre cidadãos vistos como livres e

iguais” (p.298).

229 Para Rawls a cultura política pública compreende “as instituições políticas de um regime constitucional e as tradições públicas de sua interpretação (inclusive as do judiciário), bem como os textos e documentos históricos que são de conhecimento geral” (p.56). 230 Em outra nota de rodapé (n. 16), Rawls chama a atenção para o fato de que as idéias de “estrutura básica” e “posição original” também são importantes, porém “não são consideradas familiares ao senso comum educado”; foram utilizadas para permitir a exposição de sua teoria de “forma unificada e clara” (p.57). 231 A “unidade social” se basearia num consenso sobre a concepção política de justiça; já a estabilidade ocorreria quando: (1) os “cidadãos politicamente ativos da sociedade” aceitam as doutrinas que constituem o consenso, e (2) as exigências da justiça não conflitam gravemente com os interesses essenciais desses cidadãos – interesses que já foram garantidos nos arranjos sociais dessa sociedade. No liberalismo político, a questão da estabilidade relaciona-se também com a discussão relativa à capacidade de aquisição de senso de justiça por parte dos cidadãos de uma sociedade bem-ordenada – muito explorada em Uma Teoria da Justiça (capítulo VIII) e com a possibilidade de uma concepção pública de justiça permitir a realização de um consenso sobreposto (p.179-80). 232 Entende Rawls que “numa sociedade democrática, a razão pública é a razão de cidadãos iguais que, enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns sobre os outros ao promulgar leis e emendar sua constituição” (p.263). Afirma ainda que sem seus valores (que são “expressos pelas diretrizes” da indagação pública livre, bem informada e razoável) e sem “as normas para avaliar a evidência” “de nada serve” a “concordância sobre uma concepção política de justiça” (p.120). Mas a razão pública aplica-se somente ao que o autor denomina de “elementos constitucionais essenciais” e às questões de justiça básica. Seu conteúdo é dado pela concepção política de justiça tanto em relação aos “princípios substantivos de justiça (os valores políticos da justiça)” como em relação às “diretrizes de indagação e as concepções de virtude que tornam a razão pública possível (os valores políticos da

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A premissa é a de que uma concepção política – diferentemente de uma doutrina

abrangente, mesmo que razoável – pode ser compartilhada por todos; uma concepção política

pode ter “uma base de justificação pública de ampla aceitação pelos cidadãos” (p.27), pois

envolve o apelo a elementos partilhados pelas diversas concepções abrangentes que compõem a

totalidade de uma sociedade política.

Neste sentido, essa concepção política da justiça – que é independente dessas diferentes

doutrinas – poderia ser “a base de um consenso” em favor das instituições democráticas. Mas

esse consenso se distingue de um consenso constitucional (que só incluiria procedimentos

políticos do governo democrático); seria um “consenso sobreposto” (overlapping consensus)233 –

isto é, um consenso político que asseguraria a redução dos conflitos oriundos de diferentes

valores defendidos pelas diferentes doutrinas, permitindo não só a convivência entre elas, como

também a estabilidade das instituições; permitiria também, através da razão pública, o

estabelecimento de um consenso em torno de questões limitadas relativas às exigências de

justiça, a saber: “igual liberdade política e civil; igualdade eqüitativa de oportunidades; os valores

da reciprocidade econômica; as bases sociais do respeito mútuo entre cidadãos”, dentre outras

(p.185).

A concepção política de justiça possui três características principais, a saber: 1. tem seu

objeto circunscrito à estrutura básica da sociedade234 e suas normas devem se “expressar no

razão pública)” (p.304). Daí desempenharia papel semelhante à estrutura básica em Uma Teoria da Justiça: “Enquanto concepção ideal de cidadania para um regime democrático constitucional, ela mostra como as coisas devem ser, considerando as pessoas tais como uma sociedade justa e bem-ordenada as encorajaria a ser. Descreve o que é possível e pode vir a ser, mesmo que isso nunca ocorra, e não é menos fundamental por isso” (p.262). 233 Em Uma Teoria da Justiça esse termo foi apresentado “como forma de minorar as condições para a razoabilidade da desobediência civil numa sociedade democrática aproximadamente justa”. Neste livro seu sentido é diferente e mais amplo (Cf.p.57n17). 234 Aqui a estrutura básica da sociedade “é entendida como a maneira pela qual as principais instituições sociais se encaixam num sistema, e a forma pela qual essas instituições distribuem os direitos e deveres fundamentais e moldam a divisão dos benefícios gerados pela cooperação social. Desse modo, a constituição política, as formas legalmente reconhecidas de propriedade e a organização da economia, assim como a natureza da família, são todas parte da estrutura básica (p.309).”

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caráter e nas atitudes dos membros da sociedade que realizam seus ideais” (p.54); 2. é

“apresentada” como uma “visão auto-sustentada”, isto é, ao ser elaborada especificamente para a

estrutura básica da sociedade operaria sem um “compromisso mais amplo com qualquer outra

doutrina” (p.54-5); 3. o conteúdo dessa concepção “é expresso por meio de certas idéias

fundamentais” implicitamente compartilhadas numa sociedade democrática.

Já a concepção de sociedade – entendida como sistema eqüitativo de cooperação social ao

longo do tempo (já comentada no item anterior) - é apontada por Rawls como uma “idéia

organizadora central” da justiça como equidade; destaca três elementos da cooperação social: 1. é

diferente da atividade socialmente coordenada que pressupõe a existência de uma “autoridade

central” e “guiada por regras e procedimentos publicamente reconhecidos, aceitos pelos

indivíduos que cooperam e por eles considerados reguladores adequados de sua conduta” (p.58);

2. implica em uma idéia de reciprocidade235 porque a cooperação se dá em termos eqüitativos, ou

seja: uma concepção política de justiça especifica “os termos eqüitativos da cooperação” que

devem ser observados por todos os participantes, os quais usufruem dos “benefícios produzidos

pelos esforços de todos”, sendo “distribuídos equitativamente e compartilhados de uma geração

até a seguinte” (p.59); 3. “a idéia de cooperação social requer uma idéia de vantagem racional ou

do bem de cada participante”, especificando o que cada participante da cooperação está tentando

conseguir.

A concepção de pessoa coerente com sua teoria é a de “alguém que pode ser um cidadão,

isto é, um membro normal e plenamente cooperativo da sociedade por toda a vida” (p.61)236.

235 A reciprocidade é entendida como “uma relação entre cidadãos numa sociedade bem ordenada expressa por sua concepção política pública de justiça”. Rawls enfatiza sua diferença em relação a idéia do benefício mútuo (pp.59-60) e a concebe, ainda, como selecionando “um ponto focal natural entre as exigências da eficiência e as da igualdade (p.174).” Contudo, em outra passagem, afirma que a “cooperação social sempre existe em benefício mútuo” (p.354). 236 Assim como em Uma Teoria da Justiça – na qual defende políticas “para pelo menos preservar o nível geral de capacidades naturais e impedir a difusão de defeitos graves” (v.p.115) – Rawls assume deixar de lado as

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Rawls se vê como partícipe da tradição do pensamento democrático, e entende que por “atribuir”

às pessoas que participam da cooperação – “no grau mínimo necessário” duas faculdades morais

(repito: capacidade de ter senso de justiça e de ter uma concepção do bem) e as faculdades da

razão (julgamento, pensamento e inferência – relacionadas com as duas faculdades morais) elas

são livres e iguais (p.61-2). É essa concepção política de “cidadãos como pessoas”

(...) com uma visão própria de suas faculdades morais e interesses de ordem superior, juntamente com a idéia do bem como racionalidade, os fatos básicos da vida social e as condições do desenvolvimento e educação do ser humano, que constitui o alicerce indispensável para especificar as necessidades e exigências dos cidadãos. Tudo isso nos possibilita chegar a uma lista viável de bens primários (...). (p.225)

Os bens primários – cuja idéia é uma dentre as “cinco idéias do bem encontradas na

justiça como equidade” (p.223) – têm então como “marcos conceituais” essa concepção política

de pessoa e a idéia do bem como racionalidade237. Para Rawls, só assim é possível formular o que

as pessoas “precisam e exigem” quando são vistas como cidadãos “plenamente cooperativos da

sociedade ao longo de toda a vida” (p.225).

Assim os bens primários passam a ser considerados como “necessidades das pessoas em

sua condição de cidadãs” e, como tal, devem ser entendidos “como as necessidades dos cidadãos

e, portanto, benefício para todos”. Entende o autor que “sem esse tipo de pressupostos restritivos”

é impossível o estabelecimento de uma lista.

Nesse quadro de mudanças, Rawls apresenta os bens sociais primários classificados em

“cinco tipos” para ressaltar a nova “caracterização” das liberdades, sua vinculação com a

concepção de pessoa e as modificações dos dois princípios de justiça:

“incapacitações temporárias e também permanentes, assim como as doenças mentais graves a ponto de impedir as pessoas de serem membros cooperativos da sociedade no sentido habitual” (p.63). 237 Para Rawls qualquer concepção política de justiça que se pretenda viável “deve considerar a vida e a satisfação das necessidades e dos objetivos humanos básicos como um bem geral e adotar a racionalidade como um princípio básico de organização política e social” (p.224). Vale ressaltar que posteriormente Rawls (2003, p.200) identifica seis idéias do bem na justiça como equidade.

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a. As liberdades fundamentais (liberdade de pensamento, consciência e congêneres): essas liberdades são condições institucionais essenciais e necessárias para o desenvolvimento e exercício pleno e bem-informado das duas capacidades morais (...); essas liberdades também são indispensáveis para a proteção de um amplo leque de concepções específicas do bem (dentro dos limites da justiça). b. A liberdade de movimento e a livre escolha de ocupação num contexto de oportunidades variadas: essas oportunidades permitem a realização de diversos fins últimos e a possibilidade de levar a cabo uma decisão de revisa-los e mudá-los, se o desejarmos. c. Os poderes e prerrogativas de posições e cargos de responsabilidade: eles abrem espaço para várias capacidades sociais e de autonomia do eu. d. Renda e riqueza, entendidos em sentido amplo, como meios polivalentes (que têm um valor de troca): renda e riqueza são necessários para realizar direta ou indiretamente uma grande variedade de fins, quaisquer que sejam. e. As bases sociais do auto-respeito: essas bases são aqueles aspectos das instituições básicas em geral essenciais para que os cidadãos tenham um vigoroso sentimento de seu próprio valor como pessoas, e para que sejam capazes de desenvolver e exercer suas capacidades morais e de promover seus objetivos e fins com autoconfiança (p.363).

Esses são os bens em torno dos quais as exigências, em questão de justiça, podem ser

consideradas válidas. São concebidos como “condições necessárias para realizar as capacidades

morais” e “meios polivalentes para um leque suficientemente amplo de fins últimos” (p. 362).

Assim, tem-se a seguinte reformulação dos princípios de justiça:

a. Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor eqüitativo garantido. b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade (p.47-8).238

Em relação à mudança do argumento em favor dos dois princípios de justiça – e no

conteúdo desses princípios – na posição original a primeira observação reside numa afirmação do

238 No livro Justiça como equidade: uma reformulação encontra-se a seguinte versão: “(a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos e; (b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio da diferença) (p.60).”

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autor de que o princípio de diferença é totalmente distinto da regra maximin de decisão em

situações de incerteza. Rawls defende que os argumentos baseiam-se nas noções de publicidade,

reciprocidade e estabilidade (RAWLS, 2003, p.XVII-XVIII)239.

Cada princípio de justiça corresponde a uma função da estrutura básica da sociedade e

expressa valores políticos. O primeiro princípio compreende o que o autor denomina de

“elementos constitucionais essenciais”; refere-se, portanto, “à aquisição e ao exercício do poder

político”. O segundo refere-se às “instituições de fundo da justiça social e econômica na forma

mais apropriada a cidadãos considerados livres e iguais”, e se aplicam às formas institucionais

básicas, regulando-as.

O primeiro princípio, portanto, “determina e garante as liberdades básicas iguais dos

cidadãos (entre os quais o valor eqüitativo das liberdades políticas e estabelece um regime

constitucional justo)”, bem como garante “um mínimo social” (2003, p.67). Entende o autor que

“o princípio de diferença é violado de modo gritante quando esse mínimo não é garantido”

(p.230), defendendo, portanto, sua inclusão na condição de “elemento constitucional

essencial”240.

No livro Justiça como equidade: uma reformulação Rawls formula uma definição para

mínimos sociais. Admite que, por um lado, Jeremy Waldron está correto quando demonstra que

suas “afirmações em Teoria estão equivocadas”; mas, por outro, aponta que esse autor possui

uma idéia de mínimos sociais – a de “satisfazer as necessidades humanas básicas essenciais para

239 Deste ponto em diante as referências são feitas a esse livro. 240 Em O Liberalismo Político o autor marca somente a posição dos mínimos sociais no âmbito dos elementos constitucionais essenciais (juntamente com a liberdade de movimento e a livre escolha de ocupação – p.280), bem como sua diferença em relação ao segundo princípio; seu uso mais sistemático se dá como parte do princípio de utilidade restrita para demonstrar os “argumentos fortes” em favor dos dois princípios de justiça.

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uma vida decente”241 – incompatível com a justiça como equidade, posto que “é um conceito

próprio de um estado de bem estar social capitalista (p.182).”

Sobre o mínimo social afirma:

Para isso [entender os ideais e princípios da sociedade e perceber de que forma as vantagens maiores obtidas por outros funcionam em favor dos menos favorecidos], junto com outras políticas sociais que regula, o princípio da diferença especifica um mínimo social derivado de uma idéia de reciprocidade. Esta cobre pelo menos as necessidades básicas essenciais para uma vida decente, e provavelmente mais. Supomos que os cidadãos se vêem como livres e iguais e consideram a sociedade um sistema eqüitativo de cooperação social ao longo do tempo. Também acham que a justiça distributiva regulamenta as desigualdades econômicas e sociais de perspectivas de vida, desigualdades afetadas pela classe social de origem, pelos talentos naturais e pelo acaso ao longo da vida242. Dizemos portanto: para que aqueles que vêem a si mesmos e à sociedade dessa maneira não se retirem de seu mundo público, mas, antes, se considerem membros plenos dele, o mínimo social, o que quer que abranja além das necessidades humanas essenciais, tem de derivar de uma idéia de reciprocidade apropriada para a sociedade política assim concebida. (...). (p.183)

Por outro lado, ao discutir as razões para “regulamentar as desigualdades econômicas e

sociais” (p.184), invoca inspiração em Rousseau para afirmar que o “status fundamental na

sociedade política é a cidadania igual para todos” porque é “um status que todos têm como

pessoas livres e iguais”243; argumenta que:

Essa relação igualitária no mais alto grau favorece, em se tratando de perspectivas de vida, um mínimo social baseado numa idéia de reciprocidade em detrimento de outra que cobre as necessidades essenciais humanas para uma vida humana decente. Isso permite entender como um conceito apropriado de mínimo social depende do conteúdo da cultura política pública, que, por sua vez, depende de como a própria sociedade política é concebida por sua concepção

241 Waldron, Jeremy. John Rawls and the social minimun. Journal of Applied Philosophy 3 (1986). Apud: Rawls, 2003, p. 180n47. 242 Vale lembrar a explicação de Rawls em Liberalismo Político (p. 49n5): “Há uma série de questões a respeito da interpretação proposta sobre o princípio de diferença. Por exemplo: os membros menos privilegiados da sociedade são determinados por uma descrição e não por um designador rígido (...). Além disso, o princípio não requer um crescimento econômico contínuo ao longo das gerações para maximizar de forma crescente e indefinidamente as expectativas dos menos privilegiados. É compatível com a idéia de Mill de uma sociedade num estado estacionário justo, onde a acumulação (real) de capital é zero. O que o princípio requer é que, por maiores que sejam as desigualdades existentes e por maior que seja a disposição das pessoas para trabalhar de modo a ganhar o mais que puderem, as desigualdades existentes devem ser ajustadas de modo a contribuir da forma mais efetiva possível para o benefício dos menos privilegiados. Essas observações sucintas não são claras; simplesmente indicam as complexidades que não são a nossa preocupação nessas conferências.” 243 Explica Rawls: “É na qualidade de cidadãos iguais que devemos ter um acesso eqüitativo aos procedimentos eqüitativos em que se apóia a estrutura básica” (p.186)

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política de justiça. O conceito de mínimo apropriado não está dado pelas necessidades básicas da natureza humana entendida em termos psicológicos (ou biológicos) independentemente de um mundo social particular. Pelo contrário, depende das idéias intuitivas fundamentais de pessoa e sociedade de acordo com as quais a justiça como equidade é formulada. (p.186-7)

Nesse contexto, os menos favorecidos são, assim, requalificados:

Os menos favorecidos não são, se tudo se passa como deve, os desafortunados e azarados – objeto de nossa caridade e compaixão, ou, pior ainda, de nossa piedade -, mas aqueles para quem a reciprocidade é devida por uma questão de justiça política entre aqueles que são cidadãos livres e iguais a todos os outros. Embora controlem menos recursos, eles fazem plenamente jus a sua parte em termos reconhecidos por todos como mutuamente vantajosos e consistentes com o auto-respeito de cada um (p.197).

Daí sua crítica ao Welfare State:

Note-se aqui duas concepções muito distintas do objetivo dos ajustes de fundo ao longo do tempo. No capitalismo de bem-estar social, o objetivo é que ninguém fique abaixo de um padrão de vida decente mínimo, padrão este em que as necessidades básicas são satisfeitas e segundo o qual todos devem receber certas proteções contra acidentes e infortúnios, tais como, por exemplo, compensação por desemprego e assistência médica. A redistribuição de renda serve a esse propósito quando, no fim de cada período, aqueles que necessitam de assistência podem ser identificados. No entanto, dada a falta de justiça de fundo e as desigualdades de renda e riqueza, pode-se desenvolver uma subclasse desestimulada e deprimida em que muitos de seus membros são cronicamente dependentes da assistência social. Essa subclasse se sente excluída e não participa da cultura política pública. Na democracia de cidadãos-proprietários, por outro lado, o objetivo é realizar nas instituições básicas a idéia de sociedade como sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais. Para isso, essas instituições têm, desde o princípio, de colocar nas mãos de todos os cidadãos, e não só de uns poucos, meios produtivos suficientes para que eles possam ser membros plenamente cooperativos da sociedade em pé de igualdade. Entre esses meios estão não só o capital físico como também o capital humano, ou seja, o conhecimento e a compreensão das instituições, as habilidades e aptidões treinadas e aperfeiçoadas. É só dessa maneira que a estrutura básica pode realizar a justiça procedimental pura de fundo de uma geração para outra. Esperamos que nessas condições não se crie uma subclasse; ou, se houver uma pequena classe dessas, que seja o resultado de condições sociais que não sabemos como modificar, ou talvez nem mesmo identifiquemos ou compreendamos. Quando a sociedade enfrenta esse impasse, pelo menos levou a sério a idéia de si mesma como sistema eqüitativo de cooperação entre seus cidadãos livres e iguais.” (p.197-8).

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228

4.2 Alguns contrapontos à obra de Rawls

Esta seção tem por finalidade apontar parte do debate, no âmbito das propostas de

fundamentação normativa da política, que se sucedeu a partir da publicação de Uma Teoria da

Justiça. Cabe esclarecer que não se trata de sistematizar todas as críticas – nem em sua extensão e

nem tampouco em sua profundidade dada a especificidade no âmbito da filosofia política –

mesmo porque Rawls se viu forçado a estabelecer debate com o seu próprio campo.

Estudiosos da área (ROUANET, 2003; KYMLICKA, 2003; GNASSOUNOU, 2004,

dentre outros) destacam três outras concepções de justiça que foram desenvolvidas a partir da

citada obra de Rawls: a proposta por Nozick244 na defesa do Estado mínimo, a base comum dos

chamados comunitaristas e a obra de Habermas. Neste trabalho são brevemente referenciados os

dois primeiros em função, no caso do primeiro, de seus desdobramentos para a política social

brasileira e, no segundo, da proximidade com o ideário do Serviço Social, principalmente no que

diz respeito à sua vertente de modernização conservadora (NETTO, 1990).

4.2.1 O liberal liberalismo

Mesmo dentro dessa vertente específica do liberalismo há posições díspares; aqui serão

apresentados dois pensadores que, a rigor, não são os únicos, mas são exemplares. O primeiro –

Hayek, pelo papel de destaque como sistematizador principal dessa proposta; contudo, sua

referência como contraponto a Rawls é minimizada, pois sua produção – como já foi sinalizado

anteriormente -, se inicia antes mesmo da grande circulação do pensamento de Rawls. Já Nozick

244 Cf. Rouanet (2003, p.239): assim definida “por antífrase”.

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escreve após a publicação de Uma Teoria de Justiça, mas renega sua própria obra

posteriormente.

4.2.1.1 A desigualdade como regra do jogo

Durante a Segunda Guerra, o economista austríaco Frederich A. Hayek (1899-1992)245

escreve O Caminho da Servidão – no qual defendia a tese de que, no pensamento e na prática

socialistas246, encontravam-se as bases dos regimes totalitários, sendo necessário, portanto, o

abandono desses ideais e um retorno aos princípios liberais clássicos247. Sua obra – que se

constitui na marca desse movimento de reação teórica e política – tem por escopo condenar toda

e qualquer intervenção na “ordem social”; nesse sentido, estabelece polêmica com o conjunto

formado pelo Estado de bem-estar social, pela intervenção estatal na economia que se

identificava com a teoria keynesiana e com amplos segmentos do pensamento liberal.

Insiste na distinção entre democracia e liberalismo; para ele a primeira é uma teoria

política (preocupada com questões relativas ao problema de quem deve governar e com quais

245 Em 1947 esse autor convoca a primeira reunião da posteriormente conhecida Sociedade de Mont Pèlerin (Suíça) que aclama como seus objetivos: defesa dos valores e das idéias liberais, sua propagação como tarefa de longo prazo e a formação de Fundações e Institutos como centros de divulgação. Filósofo e economista (formado pela Escola Austríaca) atribui-se à irrupção do nazismo e seu posterior exílio na Inglaterra como determinante para o deslocamento de suas preocupações do campo técnico para a filosofia política. No início da década de 60 é reconhecido como o principal responsável pelo renascimento do liberalismo clássico. 246 Para esse autor essa “prática socialista” teria sua origem na tradição européia continental, tendo em Rousseau e Voltaire suas fontes de inspiração. Entende que Rousseau é o ancestral do socialismo moderno, sobretudo em função da sua defesa dos poderes ilimitados da maioria que - para Hayek, desemboca num “democratismo anti-liberal” – teria influenciado o utilitarismo revisionista. (HAEYK, 1999, p.47). 247 Se a Primeira Guerra já produzira redução do campo liberal, a Segunda trouxe o consenso sobre a importância da intervenção estatal sobre a economia baseada no mercado livre, aumentando sua expansão e intensificando suas atividades, também em função da ampliação da demanda democrática. Tome-se, por exemplo, a Inglaterra (berço do liberalismo clássico – que produziu o Plano Beveridge para uma economia mista) e os Estados Unidos que intensificou o que alguns chamam de “tendência dirigista” do New Deal de Roosevelt. O quartel seguinte aponta para o consenso keynesiano (conjunto de idéias que propunham a intervenção estatal na vida econômica com o objetivo de conduzir a um regime de pleno emprego). Apesar desse clima inóspito ao liberalismo, ressurgem no cenário intelectual alguns novos pensadores identificados com o liberalismo clássico, defendendo ardorosamente a economia de mercado e a liberdade de iniciativa econômica, com a devida proteção da propriedade privada. Para Bobbio (1988, p. 87) o “neoliberalismo” pode ser entendido como uma “defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário”.

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230

procedimentos), enquanto o segundo tem seu ponto de partida numa teoria econômica

(preocupada em limitar os poderes inerentes às funções de governo); ao atribuir um valor

intrínseco à liberdade individual (da qual a liberdade econômica seria a condição sine qua non) e

um valor instrumental à democracia, justifica as alianças que no passado se formaram para

enfrentar o poder absoluto248. Hodiernamente, contudo, liberalismo e democracia colidiriam

frontalmente, em função do alargamento das demandas pela intervenção do Estado na promoção

de uma falaciosa “justiça social” – justiça que de fato a catalaxia249 por si só promoveria.

Ao reafirmar o liberalismo como uma teoria dos limites do poder do Estado em função

dos interesses dos indivíduos que existiria antes mesmo da formação de um poder político, Hayek

situa-se no núcleo originário do liberalismo clássico. Também para ele um Estado é tão mais

liberal quanto mais reduzidos são seus poderes e, correlativamente, quanto mais ampla é a esfera

da liberdade negativa250.

Rejeitava tanto o rótulo de liberal como o de conservador. No primeiro caso em função

das características do “liberalismo americano contemporâneo”, a saber: entendimento da

liberdade como participação e escolha efetiva; confiança na intervenção do governo para alcançar

a justiça distributiva e o progresso social, bem como aceitação/defesa da reconstrução da

sociedade com base em planejamento (1999, p.47-8). No segundo caso, afirma que o

248 Em suas palavras: “O liberalismo aceita o mandamento da maioria como método de decisão, mas não autoriza esta maioria a escolher a decisão” (The Constituition of Liberty. Apud: CRESPIGNY, 1982, p.68). Contudo, enumera o autor, “três argumentos decisivos em favor do método democrático: é o único meio para uma transformação pacífica; parece mais apto a produzir a liberdade que outras formas de governo; é o melhor caminho para elevar o nível geral de educação política” (Ibidem. p.69n8) 249 Segundo Hayek (1985, p.131) o termo “catalática” deriva do verbo grego katallatein (ou katallassein) significando “’trocar’, mas também ‘admitir na comunidade’ e “converter-se de inimigo em amigo’. (...) é um tipo especial de ordem espontânea produzida pelo mercado, mediante a ação das pessoas dentro das normas jurídicas da propriedade, da responsabilidade civil e do contrato.” É uma expressão escolhida por Hayek para definir a “ordem espontânea do mercado” e contrapô-la a idéia de “organização governada deliberadamente para servir a um sistema acordado de objetivos comuns”, defendida – segundo o autor - pelos “socialistas” (HAYEK, 1990, p.50). 250 A rigor, Hayek fala mais em governo do que em Estado provavelmente para marcar uma transitoriedade que justificaria mais ainda sua proposta de limitação máxima de poderes e de direitos restritos.

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conservadorismo não aceita mudanças e, por isso, não apresenta alternativas; ademais é

autoritário e antidemocrático.

Faz distinção entre o verdadeiro liberalismo e outras correntes liberais, entendendo que o

verdadeiro liberalismo não resulta “de uma construção teórica”; sua origem repousaria “no desejo

de estender e generalizar os efeitos benéficos” da “maior liberdade pessoal” que experimentavam

os ingleses do século XVIII e que decorria da imposição de limitação de poder do governo

(“oriundas da pura desconfiança quanto aos governantes”); em seu entendimento “o liberalismo

deriva assim da descoberta de uma ordem autogerada ou espontânea nos assuntos sociais” e do

“desejo de utilizar no máximo grau possível essas forças ordenadoras poderosas e espontâneas”

(HAYEK, 1999, p.48-9).

Entende essa ordem espontânea mais como resultado “de muitas economias que

interagem” e “de reciprocidades ou benefícios mútuos do que propósitos comuns”, não podendo,

portanto, ser “julgada nos termos de uma soma de resultados particulares” (HAYEK, 1999, p.50-

1). É distinta do “laissez-faire”, pois este implicaria numa “aceitação passiva de instituições tais

como são”; já na ordem espontânea o “estado liberal irá muito longe para promover a competição

anulando todos os acordos que dificultem o comércio e acarretando prejuízos para todas as ações

que apóiam estes acordos” (p.70).

A ordem espontânea seria o modo próprio de uma “Grande Sociedade” (ou Sociedade

Aberta) e se opõe a sociedade tribal (onde todos se conhecem e a coesão é garantida pela lealdade

pessoal, sendo possível saber da necessidade de cada um251); a Grande Sociedade tende a ser uma

“sociedade livre”, isto é, uma sociedade pluralista sem hierarquia de fins comuns específicos,

251 Argumenta Hayek (1985, p.173) que “o desaparecimento desses deveres específicos cria um vazio emocional ao privar o homem tanto do desempenho de tarefas agradáveis quando da segurança de obter apoio em caso de necessidade”; isso resultaria numa “nostalgia rousseauniana” que levaria ‘à reivindicação de uma sociedade socialista em que a autoridade assegure a realização da ‘justiça social’ visível, de maneira que satisfaça aos sentimentos naturais”.

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garantindo uma colaboração pacífica, pois a cooperação recai sobre os meios (e não sobre os

fins), explicitando um consenso sobre o procedimento.

Para esse autor o principal (e único) objetivo comum a todos os membros é “puramente

instrumental de assegurar a formação de uma ordem abstrata que não tem propósitos específicos,

mas que proporcionará a todos maiores possibilidades de realizar suas próprias finalidades”

(p.143). Só assim seria possível conciliar conhecimentos diferentes, propósitos diferentes,

independentemente do egoísmo das pessoas (HAYEK, 1985, p.131-4).

Na sociedade aberta todos contribuiriam para a satisfação das necessidades de todos – das

“que não temos conhecimento, mas por vezes até para a consecução de fins que desaprovaríamos

se os conhecêssemos” (p.132). O cerne do ethos dessa sociedade é o dever de “perseguir tão

eficazmente quanto possível um fim determinado por escolha própria, sem atentar para a função

que ele desempenha na complexa rede das atividades humanas” (p.171-2). Nela “o progresso da

moral” implica em uma “redução de obrigações específicas do homem para com seus

semelhantes” (p.122), sendo sua “coesão” garantida pelo “vínculo monetário” (p.136).

Hayek (1982, p.58) defende a existência dos “efeitos benéficos” da evolução e da ordem

espontânea do mercado. A sua postura evolucionária não permite reconhecer a dimensão

teleológica do homem; para esse autor a natureza humana é “indeterminada”, “sempre em

processo de formação e aberta a transformações improváveis” (p.60). A “ignorância irremediável

e inevitável dos homens” em relação aos “fatores dos quais depende a realização dos seus

objetivos”, torna impossível a tarefa de prever a “série de necessidades humanas e sua ordem de

prioridade” (p.60).

Desta forma, somente a ordem espontânea tornaria “possível utilizar os conhecimentos e

habilidades de todos os membros da sociedade numa extensão muito maior do que seria factível

em qualquer ordem criada por uma direção central” e minimizaria “oportunidades de submissão

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compulsória à vontade de outrem” (p.59). E isso só seria exeqüível com o máximo de liberdade –

que, por sua vez, só é possível sob o “império da lei”; para Hayek o homem é livre quando não

sofre a coerção252 da vontade de outrem.

E é somente nessa condição que se pode realizar “coisas benéficas para a sociedade”; a

liberdade253 – entendida como operar com “forças fora do nosso controle” (p.32) - seria um

instrumento do progresso social - ou seja, como crescimento cumulativo de conhecimento e que

pode ser desfrutado por todos “independentemente de desejarem” (p.62).

O “império da lei” está condicionado à existência e a obediência de “regras gerais

abstratas decretadas independentemente da sua aplicação ao nosso caso particular” (apud:

CRESPIGNY, 1982, p.67). Vale esclarecer que Hayek distingue “lei privada” (de aplicação

universal, independentemente de finalidades particulares e que seria produto de um processo

evolutivo; inclui o que designa de “lei criminal”) e “lei pública” (que determina a organização do

governo e tem finalidades específicas; e em função desse caráter específico não deveria ser

designada de “lei”).

As normas ou regras abstratas de conduta justa se enquadram no primeiro tipo e essa

expressão é usada “para designar as normas independentes de fins, que servem à formação de

252 Crespigny (1982, p.69n2) comenta que para Hayek há coerção “quando as ações de um agente são levadas a servir à vontade de outrem não para suas próprias finalidades e sim para as finalidades do outro. A coerção implica “ação” porque leva uma pessoa coagida à escolha de fazer o que faz. Isto só acontece quando uma pessoa ameaça outra de tornar as coisas desagradáveis para ela com a intenção de levar esta outra a agir como a primeira quer.” A coerção é definida por Hayek (1985, p.153) como um ato injusto e que, consequentemente, traz danos a ordem global. A coerção só seria legítima “se utilizada para fazer cumprir normas universais de conduta justa igualmente aplicáveis a todos os cidadãos” (p.63). 253 Para Crespigny (1982, p.57) Hayek identificaria três outras formas de se pensar o conceito de liberdade – todas diferentes da forma que ele valoriza que é a liberdade individual: liberdade política (entendida como participação na escolha do governo, no processo legislativo e no controle da administração), liberdade interior (quando as ações do indivíduo “são guiadas pela sua própria e ponderada vontade [...] e não por circunstâncias ou impulsos momentâneos”) e liberdade como poder (“poder de satisfazer nossos desejos, ou à medida da escolha de alternativas que nos são oferecidas”); está última é a mais combatida, pois permite “justificar” intervenções estatais. A liberdade pode ser objeto de acordo de todos pois não exige nenhuma visão comum do bem ou da justiça.

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uma ordem espontânea” – são a “base de uma sociedade fundada no direito privado” (HAEYK,

1985, p.35) e “em geral (...) são proibições de conduta injusta” (p.40).

A função dessas normas seria a de “dizer a cada um aquilo com que pode contar, que

objetos materiais ou serviços pode utilizar para alcançar seus propósitos e qual é sua livre esfera

de ação” (p.46). Em outra versão mais direta assevera o autor: “só permitem averiguar que coisas

específicas pertencem a cada pessoa” e que, em nenhuma hipótese, “alocam determinadas coisas

a determinadas pessoas” (p.147) – em síntese, seriam as “normas de justiça às quais se referia

Hume”. Defende Hayek que a obediência a essas normas é que definiria os membros de um

grupo social e garantiria a cooperação pacífica254. Explica Hayek (1985, p.5):

As normas de conduta vigente numa Grande Sociedade não são, portanto, intencionalmente criadas para produzir benefícios particulares previstos para pessoas particulares; são, antes, instrumentos polivalentes que se desenvolveram como adaptações a certos tipos de ambiente por auxiliarem a enfrentar certos tipos de situação. E essa adaptação a um tipo de ambiente se realiza através de um processo muito diverso daquele em que poderíamos decidir sobre um procedimento intencionalmente criado para alcançar resultados particulares previstos. Ela se baseia não na previsão de necessidades particulares, mas na experiência passada que ensina que certos tipos de situação tendem a ocorrer com variados graus de probabilidade. E o produto dessa experiência passada, adquirida por tentativa e erro, é preservado não como uma recordação do tipo de situação que tende a ocorrer, mas como um sentimento geral da importância de se observarem certas normas. Uma norma é adotada e transmitida, em vez de outra, porque o grupo que a adotou provou ser de fato o mais eficaz, e não em decorrência de os seus membros anteverem os efeitos que teria tal adoção. O que se preservaria seriam somente os efeitos das experiências passadas na seleção das normas, não as experiências em si.255

254 Diz, ainda (1985, p.132) que a origem dessas normas residiria no escambo; ou seja, o valor econômico seria “conferido pelas preferências ou avaliações dos indivíduos e não por quaisquer das suas propriedades objetivas (tal como a constituição física ou a quantidade de trabalho humano necessário para a alcançar) (GRAY, 1988, p.73).” Ou ainda: “Esse sistema pôde desenvolver-se (...) quando (...) os escolásticos (...) ensinaram (...) que os preços determinados pela conduta justa das partes no mercado (...) eram tudo o que a justiça exigia. Foi dessa tradição que John Locke e seus contemporâneos derivaram a concepção liberal clássica de justiça, segundo a qual, como bem se disse, só o modo como a concorrência era realizada, e não os seus resultados, é que podia ser justo ou injusto.” (p.92-3). Esse argumento é usado tanto para combater a idéia de piso salarial como a de que mérito, merecimento, necessidade ou valor social do trabalho se realizariam através do mercado (p.86-98). 255 Este longo trecho evidencia a importância dada por Hayek tanto à evolução como à adaptação. Seria esta última a responsável pela forma de “receituário” – passível de reajustes - das “orientações gerais” das propostas neoliberais? Afinal, Tapia (1996) defende que os anos 90 trouxeram um “movimento de modificação na agenda do debate” entre as agências internacionais sobre as “políticas sociais, em função das transformações produtivas na região, em grande medida resultantes das políticas de ajuste neoliberais da década passada”; essa inflexão começa com a proposta

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Neste sentido, defende o entendimento de justiça como “fundamento e limitação

indispensáveis de toda lei” (p.79) que garante a todos tratamento conforme as mesmas normas.

Não acredita, diferentemente do liberalismo clássico, na existência de uma justiça objetiva (p.54),

nem tão pouco concorda com o positivismo jurídico que entende que a lei é que determina o que

é justo, pois para Hayek a justiça é anterior ao direito (p.59). Entende a justiça como atributo da

conduta individual que estaria subsumida ao império da lei, não podendo ser atribuída “a

qualquer estado de coisas”. Defende, portanto, uma “concepção negativa de justiça” que deve ser

definida por normas de conduta individual (p.123)256. Assim entende a gênese da justiça (p.49):

A concepção da justiça, da forma como a entendemos, isto é, o princípio de tratar a todos segundo as mesmas normas, emergiu apenas gradativamente no curso desse processo; tornou-se, então, o guia na progressiva aproximação a uma Sociedade Aberta de indivíduos livres e iguais perante a lei. Julgar o comportamento humano com base em normas, e não por resultados específicos, foi o passo que tornou possível a Sociedade Aberta. Foi o mecanismo que o homem encontrou por acaso para superar a ignorância inerente a todo indivíduo no que diz respeito à maioria dos fatos específicos que determinam a ordem concreta de uma Grande Sociedade.

Para Hayek a “justiça social”257 é uma “miragem”, uma “superstição” ou uma “nostalgia

da sociedade tribal”. Toda justiça social – porque ligada a categorias particulares - é

Cepalina de Transformação Produtiva com Equidade, publicada em 1990, como uma alternativa à “proposta formulada pelos neoliberais”. A proposta da CEPAL articula “de maneira positiva” três “elementos-chave: a transformação produtiva, as reformas nos programas sociais e a ampliação e o reforço da democracia tendo como horizonte a redução das desigualdades”. O argumento é o de que é possível crescimento econômico com equidade porque esses elementos guardam “vínculos funcionais internos havendo um ‘círculo virtuoso’ entre crescimento, competitividade, progresso técnico e equidade.” Segundo o autor, essa proposta é reiterada e ampliada no documento Pobreza e Reforma Social (PNUD/BID), divulgado em 1993. 256 A conseqüência direta dessa forma de conceber a justiça é só admitir uma concepção de direito correspondente à norma de conduta justa individual; ou seja, como direito ao que estiver no âmbito do domínio individual de cada pessoa. Isto implica na recusa da noção de direitos sociais (v. discussão no Apêndice do Capítulo 9 – HAEYK, 1985, p. 123-8). 257 Vale ressaltar que ao longo de todo o volume II de Direito, Legislação e Liberdade a expressão sempre foi empregada entre aspas. Na p. 80 Hayek identifica vários sentidos correntes para a justiça social: (a) como “atributo das ações” ou “tratamento da sociedade para com indivíduos e grupos” (sentido que remonta há cerca de um século, segundo o autor); (b) “como esforços organizados para fazer cumprir normas de conduta justa” (como o teria usado Gibbon, no século XIII); (c) como forma de “avaliar os efeitos das instituições sociais existentes (uso recente, desenvolvido a partir de Rawls) e (d) como justiça distributiva (sentido hoje dominante e com o qual polemiza em especial, por não considerá-la exeqüível e muito menos moralmente justificável. Na p. 122 desse mesmo livro Hayek cita um excerto de um texto de J. Rawls (Constitutional liberty and the concept of justice, Nova York, 1963, p.102)

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discriminatória e se opõe à liberdade. Assim, há uma incompatibilidade radical entre justiça

social e liberdade (mercado). A única justiça é relativa às transações: é justa a conduta dos

jogadores e não o resultado.

Reputa à Stuart Mill essa confusão de “termos” ao incluir entre suas quatro concepções de

justiça que correspondem à norma de conduta justa, uma quinta com caráter totalmente distinto,

pois “define um estado factual de coisas que pode ter sido ocasionado por decisão humana

deliberada, mas que não o foi necessariamente” 258. Critica J.S.Mill por formular uma concepção

de justiça que “leva diretamente ao socialismo”. (1985, p. 81).

Em sua concepção a nostalgia tribal que reivindica justiça social é uma ameaça à

concepção de “império da lei” e da ordem espontânea de mercado – por que não é uma

“evolução” de tradições, não é “algo que se desenvolve, mas é algo imposto” (p.99)259. Insiste na

distinção entre governo e sociedade, reafirmando que está não age em função de fins específicos;

logo, não cabe reivindicar a obtenção de um determinado “padrão de distribuição considerado

justo” porque na Sociedade Aberta não há responsáveis pelo sucesso ou insucesso individual; isto

porque na Grande Sociedade não há “alocação deliberada a pessoas específicas”. E se não há

para afirmar a existência de uma base comum no trabalho de ambos; a única ressalva é ao uso “perturbador” da expressão “justiça social”. 258 Hayek refere-se às seguintes passagens de S.Mill (apud: Utilitarianism, Londres, 1861, p. 92 e 66, respectivamente): “A sociedade deveria tratar igualmente bem os que dela igualmente mereceram, isto é, que mereceram de modo absolutamente igual. Este é o mais elevado padrão abstrato de justiça social e distributiva, para o qual todas as instituições e os esforços de todos os cidadãos virtuosos deveriam ser levados a convergir o máximo possível” (grifo nosso) e ao excerto: “É universalmente considerado justo que cada pessoa obtenha o que merece (seja bom ou mau), e injusto que obtenha um bem ou seja submetida a um mal que não merece. Esta é talvez a mais clara e enfática forma em que a idéia de justiça é concebida pelo senso comum. Como envolve a idéia do merecimento, surge a questão do que constitui o merecimento”. 259 Alega Hayek (1985, p.83-5) que, “de início”, o uso da justiça social como argumento político era defendido pelos socialistas; com o tempo eles “descobriram” que ao invés de lutarem pela socialização dos meios de produção para conseguir uma “distribuição justa” teriam menos resistência efetuá-la através da “tributação” e de “serviços governamentais por ela financiados”. Hoje essa idéia teria a adesão de “outros movimentos políticos”, governos autoritários e totalitários, mas também de “professores e pregadores de moral”; entre os últimos destaca o clero – em especial o católico que “substituiu a promessa celeste de justiça por outra temporal”. A justiça social teria, então, se constituído na imaginação popular como o “principal meio de expressão da emoção moral, o atributo distintivo do homem bom e o sinal reconhecido da posse de uma consciência moral.” Mas para o autor, não passa de “pretexto para a coerção de outros homens” e ameaça “à maioria dos valores de uma civilização livre”.

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responsável, não há injustiça (p.87) e nem um “estado de coisas” que possa ser considerado

“socialmente injusto” (p.98). Para Hayek a justiça social “não pertence à categoria do erro, mas a

do absurdo” (p.97)260.

Refuta o autor a idéia de distribuição planejada, sob a alegação de que fere a liberdade

individual. Defende que “não existem padrões viáveis de mérito, merecimento ou necessidades

que pudessem servir de base à distribuição de benefícios materiais numa ordem de mercado, e

menos ainda qualquer princípio pelo qual essas diferentes reivindicações pudessem ser

conciliadas” (1985, p.113).

Apresenta argumentos específicos para algumas concepções recorrentes de justiça social;

para o que ele chama de “considerações igualitárias”261, alega que o governo – a fim de

“assegurar a mesma posição material a pessoas que diferem muito em força, inteligência,

habilidade, conhecimento, perseverança, bem como em ambiente físico e social” (p.103) –

dispensaria um tratamento demasiadamente desigual aos membros da mesma comunidade. Alega

que assim, uma rígida distribuição igual de benefícios “acarretaria” desigualdade das posições

materiais. Ademais, seria necessária a existência de uma “secretaria de planejamento central” que

distribuísse o ônus – e estes não seriam distribuídos “por princípios de justiça e igualdade”, mas

sim por “considerações de eficiência e conveniência” (p.103).

Em relação à igualdade de oportunidades – “um dos pontos centrais do liberalismo

clássico”, pois se refere “às facilidades e oportunidades que são necessariamente influenciadas

por decisões governamentais” – alega que sua utilização no sentido hodierno exigiria por parte do

260 Afirma textualmente o autor (p.88): “(...) nossas queixas de que o resultado do mercado é injusto não implicam realmente que alguém tenha sido injusto; e não há resposta para a questão de saber quem foi injusto. A sociedade simplesmente tornou-se a nova deusa a quem nos queixamos e clamamos por reparação, se ela não satisfaz as expectativas que criou. Não há um indivíduo nem um grupo organizado de pessoas contra os quais o sofredor teria uma queixa justa, e não há normas concebíveis de conduta individual justa capazes, ao mesmo tempo, de assegurar uma ordem viável e de evitar tais frustrações.” 261 Refere-se o autor a concepção que defende que “todo desvio, em relação à igualdade de benefícios materiais desfrutados deve ser justificado por algum interesse comum identificável a que essas diferenças atendam” (p.100).

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governo um controle de “todo o ambiente físico e humano da sociedade” e a oferta “a cada um de

oportunidades pelo menos equivalentes”. E mesmo assim isso não seria suficiente em função de

um círculo vicioso262 que criaria “um pesadelo” (1985, p.105-6).

No que diz respeito às chamadas “reivindicações específicas” – que seriam mais

comumente utilizadas para demonstrar a “injustiça da distribuição efetuada pelo processo de

mercado” – trata de duas situações: a “compensação por serviços desagradáveis” e o que designa

de “perda de posições habituais”. Em relação à primeira situação comenta o autor (p.114):

O fato de que aqueles que pouca coisa de valor têm a oferecer a seus concidadãos terem talvez de se sujeitar, para ganhar até mesmo uma ninharia, a maior sofrimento e esforço que outros que talvez gostem, de fato, de prestar serviços pelos quais são bem pagos é algo inerente a qualquer sistema em que a remuneração se baseie no valor dos serviços para o usuário, não numa avaliação do mérito adquirido. Isso deve, portanto, prevalecer em qualquer sistema social em que o indivíduo seja livre para escolher a ocupação disponível, não sendo, para esta, designado pela autoridade.

Chama atenção para o fato de que o argumento portador do maior apelo prático para

reivindicações de justiça social – a “perda de posições habituais” ou proteção “contra uma perda

imerecida da posição material” à qual a pessoa já se acostumou – foi pouco analisada pela

literatura. Argumenta o autor que esses “infortúnios”263 fazem parte do “processo de constante

adaptação às circunstâncias mutáveis”; esses infortúnios, a rigor, demonstram que essas pessoas

“orientaram mal os seus esforços” havendo assim necessidade de se “informar” com o mercado

para “buscar outra ocupação compensadora” (p. 115).

Assim, entende que as pessoas que fazem reivindicações com base nessa premissa,

acreditam que “mereciam moralmente” a sua “renda” ou sua “posição habitual”. Para Hayek esse

“infortúnio” não seria injusto, mas sim o privilégio que essas pessoas usaram para chegar a essas

262 Na p. 87 o autor já o havia descrito sem, contudo, usar a expressão em si. Mas a idéia de Hayek é que quanto mais indivíduos ou grupos dependessem das ações do governo, mais solicitariam justiça distributiva; para tal, o governo necessitaria aumentar o controle sobre os indivíduos, levando, assim, ao totalitarismo. 263 Vale esclarecer que na p.85n8, Hayek (1985) apóia a idéia de que “pobreza e infortúnios são males, não injustiças” defendida por Acton (The Morals of the Market. Londres, 1971, p.71).

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posições e para os quais solicitam proteção (p.117). Essas reivindicações, portanto, não teriam

legitimidade, pois injusto é retirar de uma pessoa algo que foi adquirido de acordo com as regras

do jogo (p.116). Assim, Hayek justifica sua posição (p.116):

Precisamente porque no universo do mercado todos nós recebemos a todo momento benefícios que não fizemos por merecer em nenhum sentido moral é que temos a obrigação de aceitar igualmente reduções imerecidas de nossas rendas. Nosso único direito moral ao que o mercado nos dá, nós adquirimos ao nos submetermos às normas que possibilitam a formação da ordem de mercado. Estas implicam que ninguém tem a obrigação de nos fornecer uma determinada renda, a menos que tenha especificamente contratado fazê-lo. Para que fôssemos todos uniformemente privados, como pretendem os socialistas, de todos os ‘benefícios imerecidos’ que o mercado nos confere, teríamos de ser privados da maior parte dos benefícios da civilização.

Para Hayek (1985, p. 91) a única distribuição legítima é aquela operada pelo mercado,

pois entende que através dele é possível se efetivar uma “estrutura de preços e remunerações

relativos que determinará um volume e uma composição do produto total que assegure que o

equivalente real da cota de cada indivíduo, a ele conferida pelo acaso ou pela habilidade, será tão

grande quanto possível”.

Afirma que “os serviços que o governo pode prestar, além da aplicação de normas de

conduta justa, não são apenas suplementares ou subsidiários às necessidades básicas atendidas

pela ordem espontânea”; porém, dependem, por um lado, do “aumento da riqueza e da densidade

da população” e, por outro, da conformidade às regras da ordem espontânea (p.7)264.

Neste sentido, argumenta que a ordem de mercado – desde que atenda a essas exigências -

não é, “de maneira nenhuma, incompatível com o fornecimento pelo governo, à margem do

mercado, de alguma garantia contra a pobreza extrema” (p.163). Assevera Hayek (p.165-6) que

“abolir a pobreza no sentido absoluto” – “intenção” e “realização do liberalismo clássico”

(p.165n8) – foi um “brilhante êxito” da grande sociedade, posto que “nos países desenvolvidos”,

264 Hayek (1985, p.7) aqui polemiza com a concepção de “bens coletivos” que para ele não são necessariamente do interesse geral da sociedade (v. p.6-8).

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os capazes de “exercer trabalho útil” não seriam “privados de alimento e abrigo” e para os

“incapazes de ganhar por si mesmos o suficiente, essas necessidades em geral são atendidas à

margem do mercado”.

Em função desse raciocínio, advoga que a “abolição da pobreza absoluta não é auxiliada

pelo empenho em realizar a ‘justiça social’”, principalmente nos países em que ela se tornou “um

problema crônico”; nesses casos a justiça social, para Hayek, torna-se “um dos maiores

obstáculos à sua eliminação”. Justifica essa afirmação alegando que no Ocidente grandes massas

alcançaram “um nível aceitável de conforto material”, pois o crescimento geral da riqueza “foi

apenas reduzido por medidas de interferência no mecanismo de mercado”, sem que se tentasse

“corrigir” os seus resultados.

Para ele a distorção da idéia original de justiça social estaria no fato de que um apelo

“feito no início em favor dos mais desafortunados” tenha sido “encampado por muitos outros

grupos cujos membros julgaram não ter recebido tanto quanto achavam merecer e, em particular,

por grupos que se sentiam ameaçados em sua posição” (p.166). Daí entender que

A concepção de “justiça social” redundou assim na garantia, pelo governo, de uma renda apropriada a determinados grupos, o que tornou inevitável a progressiva organização de todos esses grupos de pressão. Mas, a não ser numa sociedade estacionária, é impossível assegurar a todos a proteção de expectativas implícita nessa garantia. O único princípio justo é, portanto, não conceder esse privilégio a ninguém (p.168).

Ressalva também que “renunciar ao método de criar solidariedade” (p. 176) para privar

“necessariamente o pequeno grupo de todo poder coercitivo” não significa que numa sociedade

livre não se atribua “grande valor à ação voluntária no âmbito dos pequenos grupos”; ao

contrário: quando se limita a “coerção” dos “organismos governamentais” objetiva-se “deixar

tudo quanto possível aos esforços voluntários” (p.177). Argumenta que o “liberalismo não é

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individualista, no sentido de ‘cada um por si’” (p.178) – a rigor, sua defesa das “associações

voluntárias” preserva o “verdadeiro espírito público” (p.179).

4.2.1.2 Radicalidade à direita em uma obra renegada

Diferentemente de Hayeck, Robert Nozick (1938-2002), no livro Anarquia, Estado e

Utopia (1974), faz duras críticas ao trabalho de Rawls265; no aspecto geral, comenta que Rawls

não conseguiria se afastar do utilitarismo; ressalta, porém, que esse autor, apesar de afirmar a

prioridade da liberdade, permite a ingerência sobre a liberdade individual na medida em que

defende um esquema particular de partilha.

Ademais, também não respeitaria a distinção entre as pessoas já que rejeita a premissa da

posse de si mesmo e critica de modo especial o argumento relativo ao caráter moralmente

arbitrário – e por isto imerecido – dos talentos naturais; Nozick entende que ao tratá-los como

não propriedade do indivíduo (e que, portanto, só podem ser justificados se se voltam para o

benefício dos menos favorecidos, conforme a lógica do segundo princípio rawlsiano) fere o

princípio liberal de separação da pessoa.

Como sinaliza Bobbio (1988, p.91), Nozick “representa exemplarmente o ponto extremo

a que chegou a reivindicação da tradição autêntica do liberalismo, como teoria do Estado

mínimo, contra o Estado-bem-estar que se propõe, entre as suas funções, também a da justiça

social.”

Nesse livro – como comenta Araújo (2003) - Nozick estabelece um diálogo não somente

com Rawls, mas também com certa versão do pensamento anarquista que o autor considera “a

265 Vale ressaltar que não se pretende aqui cobrir todos os aspectos da rica polêmica entre esses dois autores. A rigor, pretende-se apresentar, em linhas gerais, a concepção de justiça de Nozick; no entanto, sua concepção de justiça constitui-se em contraponto ao trabalho de Rawls – daí a recorrência de sua referênciação.

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mais importante de toda a filosofia política”, pois questiona “se o Estado pode ser moralmente

justificado” (p.272). A essa questão Nozick responde positivamente, desde que, nos moldes da

sua proposta de Estado mínimo; ou seja, o Estado é passível de ser justificado desde que o

exercício do monopólio da força se dê sem a violação dos direitos individuais (principalmente os

de posse e propriedade); é, portanto, assim justificável “sem que seja necessário qualquer

princípio que vá além dos direitos naturais individuais (p.281)”.

Vale lembrar que Nozick defende irrestritamente os direitos individuais dos cidadãos

contra as possíveis interferências do Estado, não admitindo políticas redistributivas, em especial

políticas tributárias redistributivas, bem como a igualdade de oportunidades e outros aspectos

contemplados em outras teorias de justiça; defende sim, e irrestritamente, tanto a liberdade do

mercado como a limitação do papel do Estado – estabelecendo assim, também um diálogo com

determinadas correntes do próprio liberalismo

Para se ter uma idéia de sua posição no que diz respeito à distribuição vale lembrar que

para Nozick o “Estado guarda-noturno da teoria liberal clássica, limitado às funções de proteger

seus cidadãos contra a violência, o roubo e a fraude e à fiscalização do cumprimento de contratos,

etc., é aparentemente redistributivo” (p.42), já que alguns pagam pela proteção de todos.

Ao criticar as propostas distributivas vigentes, Nozick desenvolveu uma defesa poderosa

do Estado mínimo, entendendo-o como “o mais extenso que se pode justificar”;dentro de sua

proposição, a função é a de impedir que os indivíduos façam justiça por conta própria

(KRISCHKE, 1993, p.148). Já no segundo parágrafo do prefácio da citada obra, anuncia ao que

veio:

Nossa principal conclusão sobre o Estado é que um Estado mínimo, limitado às funções restritas de proteção contra a força, o roubo, a fraude, de fiscalização do cumprimento de contratos e assim por diante justifica-se; que o Estado mais amplo violará os direitos das pessoas de não serem forçadas a fazer certas coisas, e que não se justifica; e que o Estado mínimo é tanto inspirador quanto certo.

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Duas implicações dignas de nota são que o Estado não pode usar sua máquina coercitiva para obrigar certos cidadãos a ajudarem a outros ou para proibir atividades a pessoas que desejam realizá-las para seu próprio bem ou proteção (p.9).

Enfatiza a diferenciação entre liberdade econômica e valor das liberdades pessoais de tipo

não econômico, com uma clara defesa do Estado mínimo contra o Estado de bem-estar e contra a

proposta anarquista de supressão do estado, pois o entende como um mal necessário. É contrário

até mesmo à democracia formal, na qual vê a possibilidade de levar a um excesso de

intervencionismo estatal incompatível com o Estado mínimo (BOBBIO, 1988, p.91), mas

desenvolve a idéia de que o Estado mínimo permitiria a realização de utopias em função do tipo

de pluralismo exigido pelo ideal liberal, pois possibilitaria a coexistência de diferentes

experiências utópicas.

Sua “teoria da justiça”266 se constitui de três princípios; a saber:

Se o mundo fosse inteiramente justo, a definição indutiva seguinte cobriria exaustivamente a questão da justiça na propriedade: 1. A pessoa que adquire uma propriedade de acordo com o princípio de justiça

na aquisição tem o direito a essa propriedade. 2. A pessoa que adquire uma propriedade de acordo com o princípio de justiça

em transferências, de alguém mais com direito à propriedade, tem direito à propriedade;

3. Ninguém tem direito a uma propriedade exceto por aplicações (repetidas) de 1 e 2.

O princípio completo de justiça distributiva diria simplesmente que uma distribuição é justa se todos têm direito às propriedades que possuem segundo a distribuição. (p.172)

Rouanet (2003, p.240) assim sintetiza essas regras de justiça267: “1) Como coisas que não

pertencem anteriormente a ninguém podem ser adquiridas; 2) Como a posse pode ser transferida

de uma pessoa para outra; e 3) O que precisa ser feito para retificar as injustiças que surjam das

violações de 1 e 2.”

266 Também a denominada de teoria da justiça na propriedade (p.174) 267 Araújo (2003, p.282) alerta para o fato de que a preocupação de Nozick refere-se a concepção de justiça adequada à justificação do Estado que defende.

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Para Nozick, todo indivíduo tem direito de possuir tudo o que adquiriu justamente

(princípio de justiça na aquisição) e tudo o que adquiriu justamente do proprietário precedente

(princípio de justiça na transferência); essa teoria dos direitos de propriedade legítima se constitui

na sua proposta de – como ele a designa - justiça distributiva que se configura no direito de

reivindicar, com base na titularidade da propriedade.

Contra a premissa do mérito – que se configura como um axioma do pensamento liberal

clássico – Nozick desenvolve um argumento que conclui ser desnecessário que se mereça as

coisas que se usa, bastando possuí-las de forma legítima. Assim, na ausência do mérito, a

repartição que historicamente se deu como produto de aquisições legítimas devem ser mantidas

como estão. O problema da justiça para Nozick resume-se, portanto, ao da “legitimidade dos atos

de transmissão dos bens e da legitimidade da aquisição originária” (GNASSOUNOU, 2004,

p.692).

Argumenta Nozick que os princípios que defende são históricos e se contrapõem aos

princípios “a-históricos”; estes compreendem tanto os princípios de “resultado [ou estado] final”

como os “padronizados”. Cita como exemplo os princípios de justiça de “repartição correntes”,

para os quais a justiça de uma distribuição depende da forma como as coisas são distribuídas, da

forma julgada por algum princípio estrutural de distribuição considerado justo. Entende que para

se julgar um princípio de justiça desse tipo só há necessidade de se verificar “quem termina com

o quê”: “nenhuma outra informação precisa ser introduzida em um princípio de justiça. (...). A

economia do bem-estar social é a teoria dos princípios correntes de justiça repartida.” (p.174)

Neste sentido, os princípios denominados de “a-históricos” só se preocupariam com as

“matrizes de distribuição cujas colunas sejam rotuladas com algum princípio estrutural de

distribuição”; cita como exemplos mérito, necessidade, produto marginal, esforço ou até mesmo

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quociente de inteligência (“QI”). Em síntese, esses princípios são critérios padronizados, não

necessariamente generalizados, arbitrários e que só focam “o receber” (p.187).

Pensar que a tarefa de uma teoria de justiça distributiva é preencher o claro na frase “a cada um segundo suas _____” implica estar-se predisposto a procurar um padrão, ao passo que o tratamento separado dado a frase “de cada um segundo suas _____” focaliza produção e distribuição como duas questões distintas e independentes. Numa concepção sobre o direito a alguma coisa essas questões não são separadas. Quem quer que faça alguma coisa, tendo comprado ou contratado os recursos de propriedade de outrem usados no processo (transferindo algumas de suas posses para esses fatores cooperantes), tem direito a ela. Do ponto de vista histórico da concepção de justiça que confere direitos à propriedade, aqueles que começam tudo de novo para completar a frase “a cada um segundo suas ___” tratam objetos como se não viessem de algum lugar, como se saíssem do nada.(...).268

Nessa linha de raciocínio, entende que até mesmo Hayeck cria um padrão de distribuição,

mesmo sendo contrário a “todas as tentativas de impor à sociedade um padrão de distribuição

deliberadamente escolhido, seja ele uma ordem de igualdade ou desigualdade”. Entende Nozick

que Hayeck deixa espaço para reivindicações de padrões distributivos ao defender que numa

sociedade livre a distribuição se dará “de acordo com o valor [e não pelo mérito] percebido das

ações e serviços de uma pessoa a outras”, ou em outros termos: “a cada um de acordo com o

quanto ele beneficia os demais que possuem recursos para beneficiar aqueles que beneficiam”.

Já os princípios históricos que defende não são padronizados, uma vez que levariam em

conta “ações passadas que criaram direitos diferenciais ou merecimentos diferenciais às coisas”

(p.176). Vale lembrar a concepção de direito para Nozick: “permissão para fazer alguma

obrigação e obrigações dos outros de não interferir” (p.110). Marca, ainda, a distinção entre

“direito a alguma coisa” e “merecimento” (ou mérito) e reafirma a legitimidade desse direito

268 Sua semelhança com o ideário de Locke vai mais longe. Vincula-se ao pensamento do valor único, fundado em direitos de propriedade absolutos, inclusive sobre si (e consequentemente sobre sua força de trabalho). Só admite interferência com o consentimento do indivíduo ou em casos de violação aos direitos dos outros. No limite, o direito à liberdade do indivíduo é simplesmente uma conseqüência do direito à posse – o que sugere que todas as disputas políticas recaem sobre os direitos de propriedade. Aos direitos naturais lockeanos que Nozick incorpora à sua proposta, inclui um inviolável direito à propriedade que a taxação dos rendimentos viola; o autor compara essa taxação ao trabalho forçado. Entretanto, não propõe uma base de financiamento efetiva para o exercício da função definida para o Estado mínimo.

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(p.372N10). Assim, argumenta que o “erro” dos ideólogos socialistas reside na opinião sobre

quais “direitos surgem de que tipo de processos produtivos” (p.176). Para ele “manter um padrão

distributivo é individualismo com violência” (p.186).

Sua crítica aos princípios de justiça distributiva repousa no próprio pressuposto das

teorias que os sustentam, pois permitem reivindicações de justiça porque partem da noção de

cooperação social. Em suas palavras é a concepção de cooperação social que “cria o problema da

justiça distributiva”; daí defender que cada pessoa obtenha “sua parcela exclusivamente por seu

próprio esforço” (p.203-4).

Os princípios de justiça distributiva de resultado final e a maioria dos padronizados instituem a posse (parcial) por outros de pessoas, seus atos e trabalho. Esses princípios implicam uma mudança da idéia liberal clássica de propriedade de si mesmo para uma de direitos de propriedade (parciais) sobre outras pessoas (p.192).

Para esse autor o exercício de direitos exige uma “infra-estrutura de coisas, materiais e

atos” que podem estar sob a titularidade de outras pessoas e, entende, que “ninguém tem direito a

alguma coisa cuja realização exige certos usos de coisas e atividades sobre as quais outras

pessoas têm direitos e títulos” (p.262). E assim conclui seu livro:

O Estado mínimo trata-nos como indivíduos invioláveis, que não podem ser usados de certas maneiras por outros como meios, ferramentas, instrumentos ou recursos. Trata-nos como pessoas que têm direitos individuais, com a dignidade que isso pressupõe. Tratando-nos com respeito ao acatar nossos direitos, ele nos permite, individualmente ou em conjunto com aqueles que escolhermos, determinar nosso tipo de vida, atingir nossos fins e nossas concepções de nós mesmos, na medida em que sejamos capazes disso, auxiliados pela cooperação voluntária de outros indivíduos possuidores da mesma dignidade. Como ousaria qualquer Estado ou grupo de indivíduos fazer mais, ou menos? (p.357-8).

É com essas premissas que Nozick entende que qualquer princípio de justiça que

estabeleça “direitos especiais prévios a uma coletividade” dá margem a ações redistributivas e

paternalistas; e neste caso, o são assim consideradas porque baseadas num “suposto direito

coletivo de determinar o que é benéfico a todos os membros”, independentemente do

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consentimento dos indivíduos para depois coagi-los a alguma forma de retribuição (ARAÚJO,

2003, p.284).

4.2.2 Aspectos da Crítica Comunitarista

Nos anos 80 ganha destaque o conjunto de questões colocadas pelos chamados

comunitaristas que versa, sobretudo, em torno dos conceitos de pessoa e natureza humana e da

própria justificação da precedência do justo sobre o bem. Mas antes de situar as idéias e o debate

propriamente ditos, vale esclarecer que essa expressão genérica agrega autores diferentes entre si.

Em comum apresentam a crítica às teorias universalistas e não históricas da justiça - mais

precisamente se posicionam contra o individualismo radical e o formalismo que marcam a

tradição moral e política liberal; esses autores discordam da compreensão que defende que o

domínio do justo é o universal e que o domínio do bem está no âmbito do particular (GÓMEZ-

MULLER, 2004). Essa crítica pode ser sustentada em nome de um ideal da comunidade humana

(que tanto pode ter como referência Aristóteles – caso de MacIntyre -, como Hegel, posição

atribuída a Charles Taylor e mais recentemente à hermenêutica filosófica contemporânea) ou de

uma crítica severa aos fracassos das sociedades liberais contemporâneas (Sandel e Walzer).

Carvalho (2003, p.288) assim contextualiza o surgimento dessa perspectiva teórica:

Essa reação filosófica ao primado da moderna ciência política269 tomou na Alemanha a feição de uma ‘reabilitação’ da filosofia prática aristotélica, enquanto nos Estados Unidos ela se configurou, parcialmente, no debate entre comunitaristas e liberais. Com a crise do projeto liberal e seu artefato filosófico mais peculiar, o individualismo atomizado, a rearticulação entre ética e política

269 O autor refere-se à uma determinada “ciência política de corte weberiano, que pretendia ser livre de valores e, assim, recusava o papel de ser orientadora da prática” que juntamente com o “veto da filosofia analítica anglo-saxã a uma ética fundada no conhecimento” levaram à um “breve ocaso da filosofia política”. A reação mencionada teria iniciado por volta dos “anos 40 e 50 do século passado, principalmente entre os filósofos alemães emigrados nos Estados Unidos (Strauss, Voegelin e Arendt), que defendiam as filosofias políticas de Aristóteles e Platão como capazes de unir teoria e prática” (p.287).

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no mundo anglo-saxão teve uma de suas formas na revalorização da idéia de comunidade como eixo central da reflexão ético-política, constituindo o assim chamado ‘comunitarismo’.

Defendem uma concepção da ética que considera “a questão do sentido, dos fins e dos

valores que sustentam a prática histórica dos indivíduos e das comunidades”, colocando em

questão o próprio entendimento dos termos “ética”, “moral” e “política” (GÓMEZ-MULLER,

2004, p.652). Assim, advogam que a comunidade – genericamente entendida como “fundamento,

princípio ou justificativa racional da sociabilidade e da justiça, numa rejeição explícita do ideal

de autonomia individual” - deve ter o mesmo status que a liberdade e a igualdade na reflexão

política (CARVALHO, 2003, p.290). Nesse sentido, defendem uma “posição ético-política que

põe no centro das decisões a tomada de medidas políticas para o estancamento da erosão da vida

comunal e um fortalecimento das frágeis comunidades que nos interligam no interior das ordens

liberais” (p.289). Esse autor ressalta que

Essa preocupação com a comunidade já se encontra no marxismo em sua formulação do ideal comunista, mas, diferentemente deste, que considera necessário uma revolução destruidora do capitalismo para a construção da nova sociedade socialista, os comunitaristas anglo-saxões, como lembra Kymlicka (1994), estimam que a comunidade já existe, sob a forma de práticas sociais e tradições culturais comuns, e na forma de uma mesma compreensão da sociedade. A comunidade não é para ser construída de novo, e sim ser respeitada e protegida’. Essa referência à comunidade é também vista por alguns estudiosos como tendo suas raízes na concepção hegeliana de comunidade. (p.290)

No geral o argumento no debate com Rawls segue em duas direções correlatas: por um

lado, uma crítica ao universalismo que levaria a uma sociedade cega à diferença, posto que seus

membros não compartilhariam das mesmas tradições políticas, religiosas e culturais; e, por outro,

a crítica de que sua teoria não teria correspondência com a vida real, na qual as pessoas estariam

unidas por laços de parentesco, cultura e amizade.

Em síntese, os comunitaristas tentam reintroduzir na reflexão moral e política tudo o que

os processualistas se esforçaram para retirar, na medida em que argumentam existir uma

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concepção vida social que permite a consecução do bem comum – daí a impossibilidade de

neutralidade do Estado em relação às concepções de bens que podem rivalizar seus cidadãos.

Também alegam que essas concepções individuais não são forjadas independentemente “da

ancoragem dos indivíduos em um contexto social que tem uma história e que condiciona

amplamente as soluções que se poderia dar aos problemas morais e, em particular, aos problemas

da justiça distributiva” (GNASSOUNOU, 2004, p.687).

Dentre os chamados comunitaristas Michel Sandel, Charles Taylor e Michael Walzer

constroem sua reflexão polemizando diretamente com Rawls270; mas é o último que estrutura

uma proposta de justiça a partir de Uma Teoria da Justiça e por isso será um pouco mais

detalhado.

Michel Sandel (Liberalismo e os limites da justiça, 1982) critica o individualismo de

Rawls, pois entende que ele não leva em consideração a importância da vida coletiva e do bem

comum, pois o subordina à justiça, caracterizando um procedimento formal. Recusa a concepção

de pessoa em Rawls, à qual atribui um caráter metafísico. Para esse autor, uma filosofia moral

aceitável deve se pautar por uma consideração substancial do bem comum e não sobre um ideal

de justiça procedimental que implicaria na noção de um Estado neutro frente ao bem, frente aos

valores; nesse sentido questiona a prioridade da liberdade sobre o bem e uma concepção de

justiça independente de uma concepção de bem, presentes na proposta por Rawls.

Charles Taylor – que tem como horizonte a experiência canadense no Quebec, com os

aborígines – argumenta que a própria tradição liberal que se pretende universalista não é neutra

culturalmente, pois expressa valores que seriam incompatíveis com algumas culturas; ao

sustentar, por exemplo, a separação entre as esferas pública e privada, torna-se incompatível com

270 MacIntyre também é um autor destacado dentre os comunitaristas – apesar de recusar essa designação. Contudo, conforme Carvalho (2003) sua polêmica com Rawls é absolutamente residual, pois o debate se dá com a lógica geral que está também presente em seu trabalho.

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a cultura islâmica. Esse argumento – base da conhecida “política de reconhecimento”,

“igualdade pela diferença” ou “reconhecimento das diferenças” – aliado aos chamados estudos

culturais, respondem por boa parte da crítica ao liberalismo universalista, identificando-o como

um óbice à constituição de algumas identidades em função da homogeneização promovida pela

cultura e valores dominantes.

Já Michael Walzer (As esferas da justiça: em defesa do pluralismo e da igualdade, 1983)

critica o universalismo de Rawls, argumentando que a justiça plena só é possível nas

comunidades concretas. Alega que as comunidades271 são historicamente diferenciadas e

atribuem diferentes significações “às diferentes produções da cultura, inclusive à idéia do justo

que preside à distribuição dessas mesmas produções (GÓMEZ-MULLER, 2004, p.654)”:

Desse ponto de vista, que evoca a tese macintyriana da racionalidade particular a cada tradição prática, os critérios de avaliação do justo não podem ser senão internos a cada sociedade: a justiça de uma sociedade se define pelo fato de que sua vida substancial é vivida de uma maneira fiel às significações partilhadas (shared understandings) de seus membros – ou, quando existem desacordos internos a propósito dessas significações, pelo fato de que a sociedade assume esses desacordos, fornecendo a eles canais institucionais de expressão. Toda avaliação prática, inclusive a avaliação do justo, supõe uma estrutura hermenêutica particular que as significações múltiplas atribuídas aos diferentes bens sociais: ‘não há princípios externos ou universais’ de avaliação, destacados dessa estrutura hermenêutica fundamental.

Opõe-se Walzer a uma visão que considere apenas um sistema único em matéria

distributiva, pois alega que a justiça não pode se restringir a uma só esfera – ou melhor, que uma

esfera – a econômica, por exemplo – não pode se sobrepor a outras esferas que devem ser

consideradas – como amizade, amor, profissão, lazer, reconhecimento, poder político entre

outras; justifica sua posição argumentando que a justiça, também como uma construção humana,

está sujeita à variação e que dificilmente poderá haver uma única maneira de realizá-la.

271 Também para Carvalho (2003) esse autor, no conjunto de sua obra, utilizaria indistintamente comunidade e sociedade com o mesmo significado.

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Criticando explicitamente a idéia de bens sociais primários de Rawls argumenta que os

bens socialmente reconhecidos não cabem em uma lista, pois a compreensão das necessidades

inclui a própria vida, mas também o ideal da vida boa. Nesse sentido, só caberia discutir uma

“igualdade complexa”272:

’Em termos formais, igualdade complexa significa que a posição de nenhum cidadão em uma esfera ou em relação a um bem social pode ser minada por sua posição em alguma outra esfera, em relação a algum outro bem.’ (...). Em uma sociedade justa, portanto, um determinado bem como o dinheiro, não deve prevalecer sobre outros bens, como educação, saúde, alimentação, trabalho digno, lazer, etc. (...). É preciso, portanto, considerar a sociedade concreta, pois depende de sua organização interna haver esse predomínio de um fato sobre os outros (ROUANET, 2003, p.244).

Para Gómez-Muller (2004, p.656) o princípio da igualdade complexa de Walzer – que se

fundamenta na identificação da autonomia “relativa” de diferentes esferas distributivas – revela

que esse pensador – “o mais liberal dos comunitaristas” – “partilha no essencial da concepção

liberal da democracia pluralista”.

4.3 Algumas implicações para se pensar concepções de política social

Sem pretender explorar a especificidade do debate no âmbito da filosofia política, cabe

apontar algumas questões para se pensar a política social. A primeira que se impõe diz respeito à

distinção existente entre os autores aqui referenciados. Sem dúvida, todos – sem exceção – têm

como berço comum o “Liberalismo”.

Contudo, “liberalismo” é uma expressão genérica que abrange muitas possibilidades e

versões – fato que por si só dificulta uma definição; acrescente-se, ainda, que além de uma

272 Rouanet (2003, p. 244) esclarece que, a rigor, na filosofia política contemporânea “nenhum autor defende um igualitarismo simples que nivele todos os seres humanos em termos de igualdade de renda, status, profissão ou qualquer outra categoria.”

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corrente teórica do pensamento político moderno é também prática e ideologia políticas muito

disseminadas, variando no tempo e nas diferentes formações sociais.

Uma preocupação clássica comum reside nos limites do poder político do Estado – que

resulta na formulação de teorias normativas de governo – partindo de uma concepção de direitos

naturais (mesmo que em sua forma mínima como em Hobbes), passando pela liberdade como

omissão da lei e chegando a uma idéia de soberania.

Porém a questão da soberania não parece ser relevante em Rawls – que ao deslocar o

debate contemporâneo para a questão da justiça, se distancia (distanciando também seus

interlocutores) do debate clássico – e o contrato surge para sustentar as regras de justiça que são

acordadas. Como sinaliza Gnassounou (2004, p.689)

O papel e a natureza exata do processo contratualista nem sempre são claramente expostos na obra de Rawls. Não se trata, evidentemente, de lhe conferir um papel de legitimação das estruturas de base da sociedade. Nenhum contrato social real foi concluído, o qual legitimaria, ou cuja ausência deslegitimaria, o poder estabelecido. Aos olhos de Rawls, a função do contrato é unicamente avaliativa: ele serve como norma para julgar a menor ou maior justiça de certos arranjos sociais. Uma vez conferido um valor unicamente avaliativo ao contrato, permanece a questão de saber se um arranjo social julgado justo é tal porque ele teria sido escolhido na posição original ou se, ao contrário, ele é escolhido na posição original porque ele é justo. Para Rawls, não se trata de definir o justo como aquilo que é escolhido em uma situação de contrato. O processo contratualista é utilizado como um meio para descoberta e explicitação do que é justo. Sua natureza é então unicamente heurística, como mostram C. Kukathas e P. Pettit (1990, p.27).

Ademais sua concepção de comunidade política – que inexiste em Nozick, que constrói

seus argumentos só para combater a idéia de justiça distributiva – é a “associação cooperativa”

entre os membros de uma sociedade considerada fechada, um “empreendimento cooperativo” e,

portanto faz o leitor comum pensar em uma sociedade anônima e não em um Estado nacional

como o do debate clássico. E é exatamente essa concepção que dá o mote para os comunitaristas

que vêem nessa “ausência de laços” o fim da própria idéia de comunidade.

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Ao fazerem um balanço sobre o debate contemporâneo no âmbito da filosofia política

Caillé, Lazzeri e Senellart (2004, p.673) comentam:

Observemos que os três tipos de elaboração teórica que acabamos de examinar se desenvolvem sobre bases antiutilitaristas. Dito em outras palavras, contra a busca instrumental da felicidade individual ou coletiva calculada. Nisso consiste a proposta explícita de John Rawls. (...).Mas esse antiutilitarismo permanece tímido. (...). A filosofia do século XIX tinha se esforçado por fazer frente, contra o racionalismo estreito das Luzes, à História, aos povos, às comunidades, às paixões, ao antagonismo de classes, à miséria, à solidariedade, à violência, ao inconsciente. Quem poderia jurar que tudo isso desapareceu como que por encanto?

O fato é que a partir da publicação de Uma Teoria da Justiça a filosofia política ocidental

contemporânea vem tentando responder a questão relativa à quais direitos e quais liberdades se

deve garantir proteção. O trabalho de Rawls, sem dúvida, abre caminho para a aceitação dos

direitos das minorias e para as chamadas discriminações positivas ou ações afirmativas

(affirmative action273), bem como para o desenvolvimento da idéia de renda mínima por outros

autores.

Porém vale a pena ver com mais vagar alguns aspectos do “igualitarismo” rawlsiano. Em

primeiro lugar o próprio termo: igualitarismo refere-se à igualdade das partes na posição original

que se caracteriza pela capacidade (mesmo que somente potencial) de se ter uma concepção do

seu próprio bem e de ter um senso de justiça; essas características bastam para identificar a

pessoa como livre, igual e apta a participar de um empreendimento cooperativo.

Ademais, condiciona o exercício pleno dessa igualdade a partir da distinção que

estabelece entre as liberdades do primeiro princípio em si e o valor que essas liberdades possam

ter. Com esse procedimento fica ao encargo individual – só para se afinar ainda mais com a

273 As ações afirmativas – que se colocam como estratégias de compensação social - têm como proposta ampliar e facilitar as possibilidades de ascensão social (através do acesso aos empregos públicos e às universidades, bem como aos diversos postos do mercado de trabalho) por parte daquelas minorias (étnicas, sociais e de gênero) impossibilitadas de acesso em função de injustiças passadas. É a realização da meta “maximize the welfare of society´s worse-off member”. Assim pretende conciliar igualdade (“liberdade igual”), eficácia econômica e a plena afirmação das liberdades de escolha individual, ou uma integração subordinada entre liberdade e igualdade.

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lógica liberal – o aproveitamento desse benefício que a lei concede aos participantes da

cooperação social.

Ressalte-se que seu “igualitarismo” é construído a partir das desigualdades sociais – que

estão provisoriamente sob um véu de ignorância – e as mantém. Toda desigualdade é admitida

desde que justificada pelos princípios de justiça. Rawls recusa, tal como Hayek274, os princípios

de mérito ou de valor.

Desses pressupostos decorre a concepção de direito em Rawls. O que se pode depreender

é que, de fato, a pessoa entendida dessa forma tem duas espécies de direito: (1) os direitos

considerados naturais - que são os assegurados através do primeiro princípio de justiça e que por

isso devem ser garantidos constitucionalmente; e (2) o direito a uma parte – que jamais é igual

para todos os membros e que podem ter a forma de “bens públicos essenciais” – do que foi

produzido socialmente. Contudo, só tem direito à justiça distributiva rawlsiana aqueles que

participam da cooperação social, logo, somente os participantes desse “empreendimento

cooperativo” gozam plenamente do status de cidadão.

O que se pretende aqui marcar é que sua concepção de direito é completamente diferente

da concepção de direitos sociais de Marshall que inspira o Welfare State e algumas Constituições

– como a brasileira. Daí a ênfase de Rawls em distinguir sua proposta das idéias do Welfare,

marcando como a melhor forma para sua proposta a democracia de proprietários.

274 Aliás, não à toa Hayek (1985) não vê diferenças significativas entre seus argumentos e os de Rawls. Este, apesar de alegar que “pretende organizar a vida social” recusa qualquer “autoridade central” de planejamento. Se em Uma Teoria da Justiça “mercados competitivos” e a “propriedade privada dos meios de produção” são partes da estrutura básica da sociedade, em formulação posterior inclui “a organização da economia”, bem como “formas legalmente reconhecidas de propriedade”; ambos priorizam a liberdade e recusam – com argumentos diferentes – a idéia de regulação contida na proposta de salário-mínimo. Ora, se o planejamento advém de uma capacidade espontânea de auto-regulação decorrente dos princípios de justiça que são aplicados pela estrutura básica da sociedade, qual a diferença existente entre a proposta rawlsiana e a de ordem espontânea do mercado? Ademais (e essa é a base da alegação de Hayek) os princípios de justiça não atuariam como normas gerais de conduta justa – ambos justificando desigualdades? Obviamente Hayek vai mais longe ao refutar até mesmo o princípio de oportunidades iguais que vigora desde os liberais clássicos. Mas, sem dúvida, Rawls é um retrocesso em relação ao welfarismo.

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De fato, elas não têm correspondência; a proposta welfarista apresenta em sua versão

clássica uma tendência universalista, inclusiva no sentido de abarcar todos os cidadãos de um

Estado Nacional, visando a um determinado padrão mínimo como resultado. Rawls, ao contrário,

só considera cidadão quem participa do empreendimento cooperativo e exclui da sua proposta de

justiça distributiva os “free riders”, isto é, aqueles que não participam dessa associação –

excluindo tanto os que surfam em Malibu, como os que são incapacitados por motivos alheios à

sua vontade275. A esses – e a outros em função da impossibilidade de realização de determinados

pressupostos rawlsianos (como o de pleno emprego com livre escolha de ocupação) – só resta a

justiça alocativa276.

Assim a lista de bens sociais – que num primeiro momento pode parecer uma lista de

direitos sociais básicos ou uma lista de direitos mínimos que, conforme sinaliza seu autor,

permite a consecução de outros direitos ou a perseguição de sua própria concepção de bem –

adquire um outro sentido, pois, a rigor, restringe até mesmo os direitos sociais marshallianos. Em

síntese, tem-se a impressão de se lidar com uma concepção de direito que nega direitos, pois os

transforma em “benefícios” advindos como contrapartida da compulsória participação na

cooperação social.

Não é à toa, portanto, que Rawls combate aquilo que define como uma concepção de

mínimo social típica de um estado de bem-estar (“satisfazer as necessidades humanas básicas

essenciais para uma vida decente”); defende insistentemente uma idéia de mínimo social –

extremamente procedimental, como se viu em Uma Teoria da Justiça – que contenha a idéia de

275 V. nota relativa à reciprocidade no item 4.1.2. 276 V. nota referente ao setor de trocas no item 4.1.1. Depreende-se que, na estrutura da sociedade bem ordenada, essa “justiça alocativa” estaria vinculada ao “setor de trocas” que – a rigor – o nome e o seu significado não foram devidamente explicados.

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reciprocidade (porque resultado da cooperação) e conteúdos da cultura política da sociedade que

a implementa (cujas variações e limites são imponderáveis).

Aliás, vale lembrar que se, por um lado Ralws alega que a defesa do mínimo social está

garantida no primeiro princípio – portanto elemento constitucional – difícil é vê-lo representado

na idéia de “direito a ter um projeto inteiramente satisfatório de direitos”; o mínimo social, a

rigor, é usado como argumento para sustentar a idéia de liberdade no Liberalismo Político, mas

de fato, não está explicitado no primeiro princípio. O que foi assim consignado é a equidade na

liberdade política, reafirmando a proposta liberal de democracia como mera “regra do jogo” e

tática de justificação.

Ressalte-se que o seu grande princípio – o princípio da diferença – não é por ele

considerado como elemento constitucional – portanto, está fora da garantia legal, não se

constituindo também em direito formal e – sem dúvida – é subsidiário na ordem das prioridades.

Não adianta, portanto argumentar (cf. Vita, 1999, por exemplo) que Rawls defende (em dois ou

três parágrafos num conjunto de mais de mil páginas) que sem o atendimento das necessidades

básicas a liberdade não tem prioridade. Tem sim, pois é o primeiro princípio – e não o segundo –

que ele reconhece como elemento constitucional; e na ultima formulação dos princípios de justiça

foi colocado como segunda parte do segundo princípio (o da “igualdade democrática”).

Destarte, sua concepção de mínimo social vale tanto quanto uma forma vazia, posto que é

ou puro procedimento ou recomendações genéricas e abstratas. Gargarella (2004, p.104-5)

comenta:

Menos ironicamente, o certo é que o liberalismo tende a resistir ao reconhecimento do valor e da variedade de direitos sociais existentes, como se os últimos fossem de implantação menos (e não mais) urgente que os primeiros [direitos civis]; ou como se os direitos civis fossem pouco custosos ou diretamente gratuitos, e por isso, mais dignos de atenção estatal adequada. Notavelmente, essa atitude diferenciada entre uns e outros direitos não é característica exclusiva de alguns personagens isolados dentro do liberalismo

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progressista, mas alcança, ainda, pensadores tão extraordinariamente relevantes e sofisticados dentro dessa corrente, como é o caso de John Rawls.

Outro aspecto a ser destacado é que a equidade – entendida e defendida por executores de

programas sociais como sinônimo de igualdade – refere-se à equidade do procedimento, ou em

outras palavras, à imparcialidade do procedimento (como aponta qualquer dicionário de inglês-

português para a palavra “fairness” que é a utilizada por Rawls). Esse sentido coloca sua

definição bem distante do conceito aristotélico. Até mesmo a igualdade eqüitativa de

oportunidades se resume a “algumas oportunidades iguais”277.

Como se procurou demonstrar ao longo da exposição da proposta de Rawls, ela prescinde

da idéia do bem; basta o procedimento ser correto (independentemente do resultado, da demanda

ou do conteúdo) e estar dentro das regras acordadas que ele é considerado justo278, no sentido de

certo. Gnassounou (2004, p.686) comenta

Os liberais, os libertários e os utilitaristas têm uma visão da legitimação dessas concepções de justiça na qual a noção de procedimento, em particular o procedimento contratual, desempenha um papel preeminente. E isso em virtude da prevalência do “justo” (right, que não tem a priori nada a ver com o “justo” da justiça distributiva ou da equidade, mas que reenvia antes à idéia de resultado correto da aplicação de um procedimento) sobre o bem (good).

De fato, há que se concordar com Boron (2004, p.142) quando afirma que apesar da

“postura ´progressista´ em comparação com o consenso neoliberal reacionário de nosso tempo” –

a proposta de Rawls apresenta fragilidades insuperáveis. Esse autor desenvolve seu argumento a

partir do mito fundador que é tão caro ao liberalismo e que foi assumido no tempo pretérito por

277 Explicitamente defende “despesas sociais básicas” e despesas com “oportunidades iguais de educação e cultura para pessoas semelhantemente dotadas e motivadas”; no âmbito das atividades econômicas e na livre escolha do trabalho, isso se conseguiria por meio da fiscalização de empresas e associações privadas e pela prevenção do estabelecimento de medidas monopolizantes e de barreiras que dificultem o acesso às posições mais procuradas”. 278 Essa concepção fornece indícios no sentido que a proposta da “justiça como equidade” opera um deslocamento do campo dos direitos para o âmbito das necessidades. Contudo, não se trata aqui da “necessidade” nos termos propostos por Marx (1875); mas sim à “necessidade” que segundo Perelman (2002) mais se remete à “caridade” e para a qual Heller (1988) sugere a formulação: “a cada um o que lhe é devido por ser membro de um grupo social ou categoria essencial” – concepção que contribui para iluminar determinados aspectos da política social hoje que são entendidos como “focalização”.

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Rousseau: a assembléia deliberativa formada por homens e mulheres racionais, livres e iguais que

fundam uma nova sociedade – que a rigor nunca existiu.

Aponta, ainda, que esse mito “oculta o fato de que a instauração da sociedade capitalista

foi um processo de uma crueldade e uma violência inéditas”, caracterizado pela exploração sem

limites e pela injustiça (p.143).

Nesse sentido, o mito serve muito bem aos propósitos de Rawls que defende uma

democracia de propriedade privada como a forma mais adequada – mas não exclusiva – para a

sua sociedade bem ordenada. Como sinaliza Boron (p.149) “a teoria da justiça de Rawls é

indiferente ante a natureza exploradora ou não exploradora dos diferentes modos de produção”,

pois admite a exploração explicitamente em seu segundo princípio:

Subtrair a mais-valia não seria injusto, na medida em que, supondo pleno emprego, mesmo os mais pobres se beneficiariam dela, pois lhe permitiria sobreviver e, além disso, porque operaria em benefício do bem-estar coletivo da sociedade. Se Rawls não se altera diante da fraude da mais-valia, muito menos o faz diante do desigual279 acesso à propriedade dos meios de produção, ainda que suas conseqüências negativas para a liberdade e a igualdade não possam passar desapercebidas por ninguém.

Concluindo seu texto – Justiça sem Capitalismo, Capitalismo sem Justiça – Boron

(p.152) chama a atenção para o fato de que no pensamento de Marx “qualquer modo de produção

baseado em relações de exploração é inerentemente injusto” o que coloca a “impossibilidade de

elaborar uma sociedade justa aí onde precisamente a exploração chegou a seu maior refinamento

histórico”. Baseado na Crítica ao Programa de Gotha (onde Marx afirma que as relações

jurídicas surgem das relações econômicas) e na carta explicativa de Engels dirigida a Babel,

defende que “a justiça é um estado que, por definição, é sempre a ditadura de uma classe sobre a

outra (...), é apenas uma bela ilusão em uma sociedade de classes”.

279 Cabe aqui lembrar que Rawls defende – abstratamente (como é do seu costume) - um limite para a concentração individual/familiar dos meios de produção; mas se o faz é com base na justificativa de que a concentração ilimitada coloca em risco o poder político.

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E assim questiona Boron (2004, p.151-2):

Que igualdade poderia constituir-se consentindo a permanência da exploração? (...). Um acordo hipotético sobre “quais” desigualdades e “quanta” desigualdade não resolve em nada o problema posto, que exclui da agenda crítica nada menos que a sobrevivência das relações de exploração. Além disso, politicamente, um enfoque como o de Rawls (...) suprime de nosso horizonte de visão toda possibilidade de recriar uma utopia da boa sociedade. De fato, nos condena a aceitar resignadamente que o capitalismo é, como dizem alguns de seus apologistas, the only game in town quando, na realidade, há vários outros jogos possíveis. Que essa possibilidade algum dia se efetive não depende, afortunadamente, da retórica discursiva dos filósofos políticos mas do desenvolvimento das contradições sociais.

Rawls promove o que representa no “casamento não oficial” sinalizado por Hobsbawm

(2003): a aproximação do liberalismo à social-democracia; contudo, não abrindo mão da

precedência da liberdade, da oportunidade em detrimento do resultado, da cooperação que

espontaneamente regula a ação de todos e da restrição da cidadania à sua dimensão política.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todo trabalho monográfico tem uma história própria, independentemente de seu tema, de

sua extensão e duração ao longo do tempo ou das exigências compatíveis com o nível do estudo;

e este não é diferente. Da provocação inicial (de se pensar a política social brasileira à luz do

debate contemporâneo sobre justiça social) ao produto final há uma longa trajetória. Caminho

difícil e tortuoso que implicou – sistematicamente – em checagem de valores e concepções

pessoais.

A primeira dificuldade foi a (re)aproximação do campo temático e, principalmente,

através de Rawls – autor nada simples que (re)formula sistematicamente sua argumentação – o

que implicou no estabelecimento de várias interlocuções parciais, com várias tentativas de

“abordagens” diferentes: pelo próprio autor e por outros das mais diversas disciplinas.

Paralelamente, verificava-se o lócus através do qual suas idéias entravam e como

entravam na política social brasileira – uma síntese dessas reflexões preliminares gerou a

apresentação de uma comunicação em evento científico local, mas não resultando em

interlocução em função da sua forma de organização.

O profícuo debate levado a termo na qualificação – voltada para a perspectiva da política

social – acabou abrindo mais frentes e possibilidades no processo do tratamento da temática.

Nesse momento também foi indicado o estudo do neotomismo como forma de se entender a

concepção de justiça – proposta não assumida, pelo entendimento da necessidade de se buscar

referências mais amplas e externas e não as endógenas, para um melhor “mapeamento” de um

campo temático.

Assim, a proposta de estudo que inicialmente se apresentava de modo relativamente

delineado, transformou-se em um estudo que, segundo Humberto Eco (1992), Gramsci definiria

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como “breves acenos ao universo”. O que na qualificação era apreendido como pano de fundo a

partir do qual se desenvolveriam as reflexões voltadas para pensar a política social brasileira hoje,

passou para primeiro plano.

Porém a leitura de Rawls – bem como o modo de apropriação de suas idéias em áreas não

especializadas – provocava um estado de incessante “estranhamento” em relação a proposta por

ele defendida e as implicações para o âmbito da política social; mas, sobretudo, na condição de

assistente social, tornava-se impossível não estender essas reflexões para o próprio ideário do

Serviço Social e foi essa a perspectiva que se apresenta neste produto final.

Por um lado, o aludido caráter panorâmico se mostrou extremamente interessante na

medida em que, do ponto de vista pessoal, permitiu ampliação de conhecimento e reflexões

acerca de questões mais específicas do Serviço Social e, sobretudo, a construção de uma base

sólida para desenvolvimento de estudos posteriores (tanto no âmbito do Serviço Social, como no

da Política Social). Por outro, principalmente em função da necessidade de retomar a tradição do

pensamento político ocidental para melhor apreender as nuances envolvidas nas concepções de

justiça estudadas, tornou-se impossível maiores aprofundamentos.

Ao longo deste trabalho foram apresentadas várias concepções teóricas de justiça, mas

também concepções de fundo que auxiliaram na busca de uma melhor aproximação da idéia de

justiça social. Trata-se agora de recuperar o conjunto desses argumentos visando a apontar

caminhos e questões para que o Serviço Social possa repensar e redefinir uma concepção de

justiça social que apresente um conteúdo compatível com o atual projeto ético-político.

Entende-se, portanto, que esse movimento de redefinição e de resignificação se faz

necessário de modo a clarificar as tensões que parecem atravessar o referido projeto – tensões

essas que podem explicar a angústia dos profissionais. Mas essas tensões não são aqui

trabalhadas a fundo; de fato, um exame mais cuidadoso forneceu indícios dessa tensão; analisá-

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las, entendeu-se, requeria retomar os fundamentos teóricos e políticos – fora dos marcos do

neotomismo - para melhor qualificar a análise. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é iniciar a

busca dos fundamentos que permitirão – em trabalhos futuros – melhor “traduzir” essas tensões,

propondo caminhos alternativos para seu enfrentamento. Nos marcos desses limites, pareceu que

o caminho inicial de reflexão deveria se dar através da idéia de justiça social – idéia-força (ou

“marca registrada”) da profissão.

Para retomar os argumentos é necessário situar a idéia de justiça social a partir do que os

filósofos chamam de “justiça [em] geral”, tomando como referência a concepção aristotélica.

Vale lembrar, então, a análise de Bobbio (2000, p. 306-319) que identifica que a justiça nesse

plano tem uma função duplamente ordenadora, posto que desde Platão a justiça mantém a coesão

de uma totalidade composta de partes. Essa dupla função objetiva manter tanto as relações das

partes com o todo (justiça distributiva, nos termos aristotélicos), como a relação das partes entre

si – o que remete, respectivamente, às definições aristotélicas de justiça distributiva e justiça

comutativa.

Comenta ainda Bobbio que essa dupla função revela a “relação imanente” entre justiça e

ordem, ao mesmo tempo em que “ilumina” a relação que a justiça estabelece com a lei e com a

igualdade, na medida em que a lei objetiva sistematicamente manter a ordem através do seu

cumprimento; para tal, ela necessita também garantir uma relação de igualdade formal das partes

entre si e das partes entre o todo.

Esse continuum que se estabelece na relação entre justiça, ordem, lei e igualdade formal

ganha complexidade quando se introduz na reflexão os sujeitos que a efetivam: o legislador e

aquele que recebe a ordem e é convocado a cumpri-la; ou seja, sujeitos distintos aos quais se

atribuem valores que, por um lado são simultaneamente distintos porém complementares, por

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outro são incompatíveis na sua plenitude – trata-se aqui, portanto, da tensão existente entre

justiça e liberdade280.

E é justamente nesse plano onde há solução de continuidade que se inscreve a questão que

o Serviço Social (não exclusivamente) denomina como justiça social e que Macpherson (1993)

designa como justiça econômica. Esse autor nos lembra – também a partir do pensamento de

Aristóteles – “a relação entre mudanças do conceito e das relações sociais e econômicas” (que,

entende-se, pôde ser constatado com a recuperação das idéias dos diferentes pensadores ao longo

das seções dois, três e quatro).

Lembra ainda que essa definição de justiça econômica possui um caráter de reação à

“introdução do mercado na sociedade política tradicional” que Aristóteles não só pressentiu como

tentou integrar à lógica da totalidade que já ensinara Platão. Tentando apreender (e recompor) o

movimento do raciocínio aristotélico, Macpherson defende a justiça econômica, subsumida à

justiça geral; por sua vez, a justiça distributiva estaria subsumida à justiça econômica – e isso em

função da necessidade sentida por Aristóteles em subordinar tanto a distribuição como o conjunto

da economia de seu tempo a um critério ético normativo que garantisse a totalidade da vida

social.

Cabe, aqui, um retorno ao pensamento antigo (principalmente ao grego) para que se

entenda esse movimento. Como sinalizado ao longo de várias notas que constam da primeira

seção281 os antigos entendiam que a felicidade consiste na obtenção de um bem supremo; assim

felicidade seria definida, por um lado, pela posse ou conquista dos elementos que lhes são

constitutivos (bens materiais e/ou imateriais “sem os quais a vida não parece ser digna de ser 280 Nesse aspecto, Bobbio chama a atenção para o fato de que é um “ideal-limite” a idéia de indivíduos livres numa sociedade justa (ou em outros termos: de uma sociedade justa composta por indivíduos livres); “ideal-limite” que deu origem à cisão entre as doutrinas liberais e não-liberais. Obviamente no campo das não-liberais a referência se dá às socialistas e comunistas. Contudo, optou-se por não designá-las assim, pois entre elas a questão da liberdade tomada em sentido mais amplo também provoca “soluções de continuidade”. 281 Todas remetidas às considerações de CAILLÉ et al (2004).

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vivida”); por outro pela idéia de excelência (aretê) que deveria presidir as ações humanas no

conjunto da vida social, sob a lógica da razão. Nesta perspectiva estabelecia-se uma “cadeia de

condições recíprocas” entre interesse comum, interesse privado e virtude moral que submetia o

interesse individual ao coletivo. Os romanos mantiveram essa “cadeia de condições recíprocas”,

mas pensadas a partir das noções estóicas de interesse e utilidade defendidas por Cícero, para

preservar a beleza moral dos homens e a precedência do interesse coletivo.

Portanto, o movimento que Macpherson identifica em Aristóteles é compatível com o

modo de apreender a realidade no período antigo. Assim, identifica Macpherson dois critérios –

simultaneamente constitutivos e definidores - do conceito de justiça econômica: (1) para que seja

entendida como um ramo da justiça em geral, as relações econômicas precisam ser vistas como

algo distinto das relações sociais e políticas em geral – ou seja, fora da ordem social vigente

como um todo e nem por ela determinada; (2) a idéia de justiça econômica pressupõe a existência

de um critério ético que a submeta à lógica geral da vida social como um todo. Esse critério ético

pode ser buscado no direito natural, no direito divino ou numa “suposta natureza social do

homem” [grifo nosso]282. Independentemente do lócus a partir do qual se infere o critério ético, o

importante é que ele seja “capaz de refrear” as relações econômicas a partir de sua avaliação com

base em um critério ético.

É também nessa linha de raciocínio que Aquino formula, a partir de Aristóteles, sua

proposta para conter o avanço das relações econômicas em seu tempo, como já comentado na

primeira seção. Contudo, o pensamento cristão medieval – apesar da aparente continuidade com o

pensamento do período anterior em função do uso das mesmas expressões - operou um

deslocamento. A razão não mais pode levar a felicidade, pois sua função é o restabelecimento da

282 Assim entende que em Hobbes – que constrói sua teoria a partir do pressuposto que natureza humana é “insocial” - não há uma concepção de justiça, posto que reduzida à idéia de respeito ao contrato.

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ordem natural; a virtude passa a ser entendida como obediência à lei divina, mantendo o “amor de

si” na raiz do pecado; a utilidade (tanto a pública como a privada) passa a ter uma conotação

espiritual, mantendo a ligação entre virtude e felicidade.

Contudo, em Aquino a felicidade contém uma definição de bem: a beatitude; tendo como

sua forma mais perfeita – e inalcançável neste mundo – a “visão de Deus”. Essa concepção de

felicidade deve orientar as instituições e os homens em sua vida cotidiana, tendo a lei o objetivo

de garantir o “bem comum”. Também se coloca a questão dos bens materiais – porém estes

devem usufruídos em comum, administrados individualmente (ou por um grupo de indivíduos),

mas todos pertencem a Deus. Defende ainda que toda e qualquer distribuição (que não pode

exaurir o todo) deve ser proporcional a posição de quem recebe (se o conjunto da proposta fosse

possível implicaria, no mínimo, em manter as desigualdades existentes). Continua-se mantendo a

“cadeia de condições recíprocas”, mas com novas qualificações que acabarão sucumbindo ao

longo da Renascença – que, como vimos – “desenhará o retrato de um interesse indestrutível”,

pois separado da virtude.

Se a Renascença coloca condições materiais objetivas para que o interesse individual

descole progressivamente do “interesse comum”, ela ainda manteve – como demonstrado ao

longo da segunda seção – critérios éticos que resistiram tanto à solução de continuidade entre o

interesse privado e o interesse comum, como à autonomização das relações econômicas que

perdurou até o século XIX.

No terceiro capítulo revelam-se as concepções teóricas que sustentam essa distinção entre

os interesses privados e o interesse comum e que “reinterpretam” os princípios de justiça já

consagrados, porém formulados dentro de outra lógica – a de “refrear” a autonomização das

relações econômicas.

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Não à toa Macpherson comenta a impossibilidade de se reconhecer em Hobbes uma

concepção de justiça – afinal seu parâmetro é, corretamente, o do critério ético que subordina as

relações econômicas – condição, de fato, ausente em/a partir de Hobbes. Apesar de concordar

com esse entendimento, no percurso aqui traçado Hobbes foi integrado, posto que a crueza de sua

argumentação torna clara a questão das teorias de justiça como “justificação”; essa concepção

defendida por Maffetone e Veca (2005) é extremamente adequada para expressar os rumos que a

tradição liberal impôs à discussão sobre concepções de justiça formuladas a partir de então e que

levou ao declínio da discussão da justiça econômica a partir do XVII; afinal a partir desse período

o conteúdo do critério ético começa a ser definido a partir das relações econômicas.

A partir dos meados do XIX – quando a prática política, segundo Macpherson, a coloca

na ordem do dia - a expressão justiça social passa a ser utilizada pelo pensamento social cristão

com um sentido tão indefinido que Hayek (1985) defende que era utilizada sob a mesma lógica

que utiliza – isto é, como “normas gerais abstratas”. Sua formulação na Rerum Novarum (1891)

tem como referência Aquino e remete a expressões por ele utilizadas sem maiores redefinições283.

Na Quadragesimo Anno (1931) as expressões justiça social e bem comum são utilizadas

simultaneamente na mesma frase em várias passagens, esvaziando o sentido de que justiça social

possa ser definida pela expressão bem comum284.

Vale ainda lembrar que a definição de bem comum aprovada no Concílio Vaticano II

(1962/1965), através da Gaudium et Spes, é ainda extremamente genérica: "conjunto daquelas

283 Lê-se como o mais próximo de uma “definição”: “O fim da sociedade civil abrange universalmente todos os cidadãos, pois este fim está no bem comum, isto é, num bem do qual todos e cada um têm o direito de participar em medida proporcional. Por isso se chama público, porque “reúne os homens para formarem uma nação”. A fonte é Aquino: Contra impugn. Dei cultum et relig., II, 8. 284 A título de ilustração cita-se a menor passagem, por entender-se ser necessário aprofundar – a partir da conclusão do presente estudo - o ideário do denominado pensamento social cristão: “Cada um deve, pois ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social.”

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condições da vida social que permitem aos grupos e a cada um dos seus membros atingirem de

maneira a mais completa e desembaraçadamente a própria perfeição". E isso num momento bem

posterior à chamada “Era das Revoluções”.

Macpherson (1993), ao apontar as três mudanças ocorridas na sociedade ocidental do

século XX que determinam a revitalização da idéia de justiça econômica285, chama atenção -

tendo como parâmetro a concepção de justiça defendida por Rawls286 – para o fato de que a rigor

não pode ser entendida como uma concepção de justiça econômica, mas como “teoria geral de

justiça distributiva”.

Justifica sua defesa com as seguintes alegações: (1) se um dos critérios definidores de

justiça econômica é que as relações econômicas precisam ser entendidas como “algo distinto das

relações sociais e políticas em geral” e (2) se a outra referência diz respeito à existência de

normas sociais e valores éticos que refreie, ou resista, a autonomização das relações econômicas

– hoje não há como se pensar em justiça econômica; e isto porque as relações econômicas não só

se autonomizaram, mas suplantaram “todas as demais relações”. E nesse caso só resta justiça

distributiva tout court, posto que nenhum dos critérios mencionados podem efetivamente ser

sustentados.

Entende-se que as reflexões até aqui realizadas colocam sérias questões ao Serviço Social

– tanto do ponto de vista do ideário que o sustenta, como do ponto de vista que simultanemanete

reproduz, a partir do locus privilegiado de efetivação de sua ação: a política social.

285 Ver a discussão no item Justiça social: uma aproximação na primeira seção. 286 Macpherson (1993, p. 274-5), com razão, que há “um limite rígido para a distribuição de renda permitida pelo seu princípio ético, e tal limite é ditado pela economia de mercado” porque “trata-se do modelo clássico da economia de mercado competitiva e capitalista, na qual as forças de mercado impessoal determinam o investimento e a produtividade”.

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Assim, no que diz respeito ao ideário profissional defende-se que, ao clamar pela “justiça

social”287, sem dúvida, os assistentes sociais referem-se a “algum” “critério ético” e/ou “normas

sociais” que sirvam de parâmetro tanto para sua condição de ser no mundo, como na condição de

um profissional que trava embates cotidianos para “afirmar direitos”. Como resignificar, no

mínimo, justiça social e igualdade? Como pensá-la na relação com a liberdade, num momento

em que se apela ao “reconhecimento da diferença”?

Coloca-se a questão: que critérios ou normas são evocados por cada profissional e/ou pelo

ideário do Serviço Social? Justiça social como [intervenção estatal em nome do] bem comum?

Como ainda aceitar essa definição que foi original e genericamente formulada nos marcos do

tomismo (século XIII)288? Aceitar uma idéia sem resignificá-la implica em assumir o “modo de

ver o mundo” que ela defende.

Como se tentou demonstrar com este estudo, as concepções de justiça são formuladas para

responder as questões colocadas por seu tempo histórico – motivo que, por si só, coloca a

necessidade de sua resignificação, principalmente em função das transformações recentes

ocorridas na sociedade ocidental como um todo e particularmente no país.

Mas que critérios éticos podem balizar essa expressão hoje? Que conteúdos, no sentido de

valores ou normas sociais, ela deve conter de modo a se compatibilizar com o que

convencionamos denominar de projeto ético-político do Serviço Social?

Se, como nos diz Macpherson é inviável pensar-se em justiça econômica [justiça social]

de modo mais amplo em função do domínio das relações econômicas no conjunto da vida social,

que critério buscar? Afinal, também nos diz esse autor, o marxismo rejeitou o componente 287 Vale lembrar a mensagem na página do CFESS: “Em muitos lugares do Brasil existem profissionais a serviço da justiça social”. 288 Afinal Leão XIII na encíclica Aeterni patris (1879) afirma que o tomismo é a base da fé cristã. A partir dessa encíclica, multiplicaram-se os centros de estudo e difusão do tomismo, como o Instituto Superior de Filosofia, na Universidade de Louvain. Pio XI na encíclica Doctor Angelici (1914), declarou a inviolabilidade da doutrina de Santo Tomás de Aquino, posto que fundamento de toda ciência das coisas naturais e divinas.

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distributivo da justiça econômica... E, como defende-se aqui, Marx nos indica uma outra

sociedade, um outro modo de produção como possibilidade de solução. Por outro lado, o que

fazer enquanto não se dá o desenvolvimento das contradições sociais que nos levarão a essa outra

sociedade (Boron, 2004)? Ao menos assumir que o modo de produção capitalista só viabiliza

justiça distributiva pode reduzir a angústia da imensa maioria dos profissionais que vivem a

dicotomia da intenção e do resultado da ação.

Obviamente o processo que leva a essas respostas não é simples, fácil e muito menos

individual. Mas entende-se como tarefa de todos e também de cada um (ao menos num primeiro

momento), tentar identificar as lacunas que a agenda profissional necessita enfrentar e, na

sequência, efetivar uma interlocução com o conjunto da chamada “Ciências Sociais”, para

iluminar o espectro de questões, refutando primeiramente uma postura “endógena” ao próprio

Serviço Social. A partir daí – se a problematização é assumida como parte da agenda – o

processo é coletivo; espera-se, portanto, que as bases para o debate estejam colocadas...

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APÊNDICE

CRONOLOGIA SUMARIADA289 Mundo Antigo (Período a.C.) 1750 Código de Hamurabi (Babilônia) 1250 Lei de Talião 1200 Guerra de Tróia 508 Revolta popular liderada por Clístenes instaura a democracia em Atenas 499 Guerras Médicas (até 479) 477 Formação da confederação de Delos, que se transformará, pouco a pouco, em

império ateniense 470/469 Nasce Sócrates (� 399 a.C.) 451 Lei das XII Tábuas (Império Romano-449) 460 Período de apogeu de Atenas (430) 432 Irrompe a guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta (até 404) 428/427 Nascimento de Platão (morre em 348 ou 347) 415 Reinício da guerra entre Atenas e Esparta (413) 404 Governo dos Trinta Anos (403) 403 Restauração da democracia 399 Processo, condenação e morte de Sócrates 387 Platão funda, em Atenas, a Academia 384 Nasce Aristóteles (� 322 a.C.) 367/366 Aristóteles chega a Atenas e ingressa na Academia platônica 341 Nasce Epicuro (� 270 a.C.) 338 Filipe da Macedônia conquista a Grécia (Batalha de Queronéia) 335 Aristóteles funda o Liceu 334 Campanhas de Alexandre, o Grande (323) 334 Nasce Zenão de Cicio, fundador da escola estóica 306 Epicuro abre sua escola em Atenas 264 Primeira Guerra Púnica contra Cartago (241) 218 Segunda Guerra Púnica (202) 149 Terceira Guerra Púnica (146) 148 Os romanos reduzem a Macedônia a província 106 Nasce Cícero (� 43 a.C.) 100 Nasce Julio César (� 44 a.C.) 58 Guerras da Gália (conquistada por Júlio César – até 50) 4(?) Nasce Sêneca (� 65, assassinado)

289 Elaborada, sobretudo, a partir da Cronologia e dos dados apresentados nos vários livros que compõem a coleção Os Pensadores, da Editora Abril (em suas diferentes edições).

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(Período d.C.) 53 Nero torna-se Imperador 161 Marco Antonio torna-se imperador 215 Guerras Macedônicas (168) 313 Constantino torna o cristianismo religião oficial do Império Romano Ocidental 354 Nasce [Santo] Agostinho (África) (� 430) 413 A Cidade de Deus (Agostinho) 476 Queda do Império Romano no Ocidente Mundo Medieval (Século XI a XIV – desagregação do sistema feudal) 1066 Conquista Normanda da Inglaterra 1099 Cruzadas (1291) 1223 Invasão Mongol da Rússia (1240) 1225 Nasce Tomás de Aquino (� 1274) 1236 Invasão Mongol da Bulgária do Volga (11237) 1240 Alberto Magno começa a ensina em Paris e a comentar Aristóteles 1241 Invasão Mongol da Europa 1244 Fundação da Universidade de Roma; Aquino entra na Ordem dos Dominicanos 1265 Redação da Suma Teológica (Aquino, 1273); Nasce Dante Alighieri (� 1321) 1337 Guerra dos Cem Anos (1453) 1383 Revolução de Avis (1385) 1347 Peste negra (Europa, 1351: cerca de 2/3 da população mundial foi dizimada) 1415 Início do Império Africano de Portugal Mundo Moderno (Séculos XVI a XVIII: Transição para o capitalismo, Acumulação primitiva, Estados Absolutistas, Gestação de uma economia-mundo) 1453 Tomada de Constantinopla pelos turcos 1455 Guerra das Rosas (1485) 1469 Nasce Maquiavel (� 1527); inicia processo de unificação na Espanha 1478 Nasce Thomas More (� 1535) 1483 Ascensão de Ricardo III, na Inglaterra; nasce Martinho Lutero (� 1546) 1485 Ricardo III é assassinado por seu sucessor: Henrique VII 1490 Nasce Tomas Müntzer (� 1525) 1492 Colombo chega a América; expulsão de mouros muçulmanos da Espanha; início

da conquista da costa africana pela Espanha; 1494 Tratado de Tordesilhas (1750 – Tratado de Madri) 1498 Vasco da Gama descobre o caminho para as Índias (Século XVI) 1500 Cabral chega ao Brasil 1509 Henrique VIII ascende ao trono inglês; nasce Calvino (� 1564) 1513 Maquiavel começa a escrever O Príncipe 1516 Utopia (Thomas More, em latim)

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1517 A Reforma Protestante se inicia na Alemanha 1519/22 Fernão de Magalhães comanda a primeira viagem ao redor do mundo 1524-5 Guerra dos Camponeses na Alemanha 1532 Francisco Pizarro invadiu o Peru; inicio da conquista do império inca 1533 Calvino adere à Reforma. Henrique VII casa-se com Ana Bolena 1536 Instituição da Religião Cristã (Calvino) 1545 Concílio de Trento e Contra-Reforma 1546-7 Guerras religiosas na Europa Central 1547 Nasce Miguel de Cervantes Saavedra (�1616) 1548 Nasce Giordano Bruno (� 1600, executado pelo Santo Ofício) 1555 Franceses pilham Havana e tentam se estabelecer no Brasil 1557 Espanha e Inglaterra em guerra contra a França 1558 Elizabeth I ascende ao trono, sucedendo Maria Tudor 1561 Nasce Francis Bacon (�1626) 1562 Lutas religiosas na França 1564 Nascem Galileu Galilei (�1642) e W.Shakespare (�1616) 1566 Método para o Fácil Conhecimento da História (Jean Bodin) 1568 Guerra dos Oitenta Anos (1648); início do tráfico regular de escravos para o

Brasil; Nasce Campanella (� 1639) 1572 Reformadores franceses morrem no Massacre da Noite de São Bartolomeu 1576 A República (Jean Bodin) 1580 Formação da União Ibérica 1582 Gregório XIII reforma o calendário; As Sombras das Idéias (Giordano Bruno) 1585 Guerra Anglo-Espanhola (1604) 1587 Execução de Mary Stuart 1588 Nasce Thomas Hobbes (�1679); derrota da “invencível armada” espanhola 1594 O Parlamento de Paris bane os jesuítas 1596 Nasce Descartes (�1650, Estocolmo); Sonho de uma noite de verão (Shakespeare) (Século XVII) 1600 Criação da Companhia Inglesa das Índias Orientais 1601 Poor Law (Elisabetana) 1602 A Cidade do Sol (Tommaso Campanella) 1603 Morre Elizabeth I (última Tudor; dinastia dos Stuart, com Jaime I, seu primo);

Henrique IV reintroduz os jesuítas na França. 1609 Nasce Gerard Winstanley ( � 1660); Galileu aperfeiçoa o telescópio 1610 Galileu descobre os satélites de Júpiter 1613 Miguel Romanov torna-se czar da Rússia (domínio por 300 anos) 1614 Nasce John Lilburne ( � 1657) 1615 Galilei é denunciado ao Santo Ofício 1618 Guerra dos Trinta Anos (1648) 1620 Novum Organum (Bacon) 1622 História Natural (Bacon); nasce Jean-Baptiste Molière (� 1673) 1623 Nasce Pascal (� 1662) 1625 Morre Jaime I, sendo substituído por seu filho Carlos I 1627 Publicação póstuma de Sylva Sylvarum, contendo a Nova Atlântida (Bacon) 1631 Nasce Richard Overton (�1664)

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1632 Nasce John Locke (� 1704) 1637 Discurso do Método (Descartes) 1642/49 Guerra civil na Inglaterra (puritanos e presbiterianos escoceses aliam-se contra o

Rei Carlos I); Cromwell comanda os rebeldes (niveladores e cavadores) 1648-1653 Fronda (França) 1651 O Leviatã (Hobbes); início da vigência dos Atos de Navegação (1660) 1653 Protetorado de Cromwell (1658) 1656 Commonwealth of Oceana (James Harrington) 1658 Restauração da Monarquia na Inglaterra 1660 Restauração dos Stuart com Carlos II, na Inglaterra 1661 Luis XIV assume o trono da França 1664 Nasce Jean Meslier (� 1729) 1672 Carlos II concede a tolerância religiosa na Inglaterra 1686 Isaac Newton comunica sua hipótese sobre a gravidade 1689 Nasce Montesquieu (� 1755); Bill of Rigths (Inglaterra) 1690 Dois Tratados sobre o Governo Civil e Ensaio sobre o Entendimento Humano

(Locke); 1694 Nasce Voltaire (� 1778) (Século XVIII) 1701 Guerra da Sucessão Espanhola (1714) 1702 É fundado o primeiro diário inglês (Daily Courant) 1711 Nasce David Hume (Escócia) (� 1776) 1712 Nasce Rousseau (� 1778) 1715 Morte de Luis XIV e coroamento de Luis XV 1719 Robinson Crusoé (Daniel Defoe); criação de casas de fundição (Brasil) 1721 Cartas Persas (Montesquieu); funda-se a primeira loja maçônica na França 1723 Inicia o governo de Luis XV; nasce Adam Smith (� 1790) 1724 Nasce Kant (Prússia) (� 1804) 1733 Guerra de sucessão da Polônia (1738) 1740 Guerra de sucessão austríaca (1748); nasce Marques de Sade (� 1814) 1741 Ensaios Morais e Políticos (Hume) 1743 Nasce Jean-Paul Marat ( � 1793) 1748 Nasce Bentham (� 1832); O Espírito das Leis de (Montesquieu) 1749 Discurso sobre Ciências e as Artes (Rousseau); nasce Goethe (� 1832) 1753 La Basiliade (Morelli) 1755 Segundo Discurso e o Discurso Sobre a Economia Política (Rouseau); Código da

Natureza (Morelli) 1756 Tem inicio a Guerra dos Sete Anos: Inglaterra declara guerra à França 1757 Emílio e Do Contrato Social (Rousseau) 1758 Nasce Maximilien Robespierre (� 1794) 1760 Nascem François Babeuf (� 1797) e Claude-Henri de Saint-Simon (�1825) 1763 Tratado sobre a Natureza Humana (Hume) 1766 Do Delito e da pena (Cesare Bonesana, marquês de Beccaria) 1770 Nasce Hegel (�1831); Primeira fiandeira intermitente 1771 Nasce Robert Owen (� 1858)

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1772 Nascem David Ricardo (� 1823) e François Marie Charles Fourier (�1837); primeira partilha da Polônia

1774 Morre Luis XV, coroamento de Luis XVI 1775 Guerra da Independência dos Estados Unidos (1783) 1776 Declaração de Independência (EUA); Fragmentos sobre o Governo (Bentham); A

Riqueza das Nações (Adam Smith) 1777 Surgem as primeiras vilas operárias na Inglaterra 1780 “Partida” da Revolução Industrial (até meados de 1840) 1781 Crítica da Razão Pura (Kant) 1785 Publicação dos Fundamentos da Metafísica dos Costumes; Congresso de Gotha 1788 Inicia exploração metódica na África 1789 Eclode a Revolução Francesa; Uma Introdução aos Princípios da Moral e da

Legislação (Bentham) Mundo Contemporâneo 1790 O Cadastro Perpétuo (Babeuf) 1791 Destituição de Luis XVI 1792-4 República Jacobina 1793 Guerra entre a Inglaterra e a França (1815); execução de Luis XVI e Maria

Antonieta 1795 Lei de Speenhamland – Lei de Assistências aos pobres (ou Sistema de abonos);

Fundação da Sociedade dos Iguais (Babeuf e Buonarroti); Manifesto dos Plebeus (Babeuf)

1799 Nasce Honoré de Balzac (� 1850) (Século XIX) 1802 Nascem Alexandre Dumas (� 1870) e Victor Hugo (� 1885) 1803 Guerras Napoleônicas (1815) 1804 Napoleão é Proclamado Imperador (1814-1815); Um Sonho (Saint-Simon) 1805 Nascem Louis-Auguste Blanqui (� 1881) e Giuseppe Mazzini (�1872) 1806 Nasce John Stuart Mill; Inglaterra na África 1807 Criação do navio a vapor 1808 Corte portuguesa no Brasil; Théorie dês quatre mouvements et dês destinées

générales (Fourier) 1809 Nascem Pierre Joseph Proudhon (� 1865) e Nikolai Gogol (� 1852) 1810 Guerra de Independência do México (1821) 1814 Nasce Mikhail Bakunin (expulso da Internacional em 1872; �1876); Nova visão

da sociedade (Owen); fim das guerras napoleônicas 1814-48 Período de formação do “socialismo” 1815 Batalha de Waterloo; Aprovação das Corn Laws (1846); Nasce Otto Bismarck

(�1898) 1816-7 Fracasso geral nas colheitas; La classe dês prolétaries (Saint-Simon) 1817 Princípios de Economia Política e Tributação (David Ricardo) 1818 Nasce Karl Marx (�1883) 1819 Parábola (Saint-Simon) 1820 Revolução Liberal do Porto; Nasce Friedrich Engels (�1895)

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1821 Princípios da Filosofia do Direito (Hegel); morre Napoleão Bonaparte; nasce Gustave Flaubert (� 1880)

1822 Independência do Brasil; Traité de l´associacion domestique agricole (Fourier); invenção da dentadura

1823 Catecismo dos industriais (Fourier) 1824 Confederação do Equador 1825 Guerra da Cisplatina (1828); Le nouveau christianisme (Saint-Simon); Owen

funda a aldeia experimental de New Harmony (Indiana – EUA) 1828-9 Criação do Workingmen´s Party (EUA) 1829 O Novo mundo industrial e societário (Fourier); Último dia de um condenado à

morte (Victor Hugo); emancipação católica na Irlanda. 1831 Grande emigração polonesa (exílio); criação do fio encapado 1832 Insurreições no Brasil (1849); independência da Bélgica, vários levantes na

Europa (Espanha e Portugal); Revolução de Julho na França; criação da National Equitable Labour Exchange, por Owen

1833 Criação de ceifadeiras mecânicas 1834 Nova lei dos pobres (substituindo o sistema de abonos); Teoria da unidade

universal (Fourier) 1835 Levante dos Malês - africanos mulçumanos na Bahia (extermínio e deportação);

criação do revolver 1836 Fundação da Liga dos Justos (1847) 1839 Primeira Guerra do Ópio (1842); insurreição armada do período cartista 1840 O que é a Propriedade? (Proudhon); Nascem August Bebel (�1913) e Emile Zola

(� 1902) 1841 O que é o socialismo? (Owen) 1842 Revoltas liberais; nasce Alfred Marshall (�1924); greve geral dos cartistas;

Socialismo e comunismo na França de hoje (L. Von Stein) 1844 A questão judaica e Manuscritos econômicos e filosóficos (Marx); Esboço de uma

Crítica da Economia Política (Engels) 1845 A Sagrada Família (Marx e Engels) 1846 A Filosofia da Miséria (Proudhon); Revogação das Corn Laws (inglesas); revolta

dos servos na Galícia; início da “grande fome” (1848), levando à grande onda migratória para os EUA; criação da máquina de escrever, da máquina de costura e da prensa rotativa

1846/47 Marx escreve A Miséria da Filosofia 1847 Surge a Medicina Social; carestia (praga da batata), crise do comércio mundial

provocada pela especulação de ações ferroviárias na Inglaterra; Criação da “Associação Democrática para a Unificação de todos os Países”; A Liga dos Justos é sucedida pela Liga dos Comunistas;

1848 Movimentos revolucionários na Europa (França, Viena, Berlin e Milão; Espanha, Dinamarca, Romênia, Irlanda, Grécia e Grã-Bretanha; Suíça: 1847); Iniciam as guerras pela independência da Itália (até 1866); 2ª. República Francesa; Marx e Engels publicam O Manifesto Comunista; Napoleão III assume a Presidência; Princípios de Economia Política (Stuart Mill); início da vigência da Pax Britânica, com expansão do capitalismo (até 1914).

1850 Segunda Industrialização (1914) 1850 Processo de constituição do mercado de força de trabalho no Brasil (1888)

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1850 Proibição do tráfico de africanos para o Brasil 1851 Napoleão III dá um golpe de Estado (impera até 1870) 1852 Queda da República na França; O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Marx) 1853 Guerra da Criméia (1856) 1854 Nasce Karl Kautsky (� 1938) 1856 Nasce Freud (� 1939); 2ª. Guerra do Ópio (1860) 1857 Guerra da Reforma (México - 1861) 1858 Nasce Durkheim (�1917) 1859 Para a Crítica da Economia Política (Marx); A Origem das Espécies (Darwin);

Sobre a Liberdade (Stuart Mill) 1860 Descoberta do dínamo 1861 Guerra civil norte-americana (1865 - Abolição da escravatura); reforma

camponesa na Rússia 1864 Guerra do Paraguai; Marx apresenta o projeto de uma Associação Internacional

dos Trabalhadores – Fundação da I Internacional; I Convenção de Genebra; nasce Max Weber (�1920)

1865 A Capacidade Política da Classe Operária (Proudhon) 1867 Marx publica o primeiro volume de O Capital; movimento dos fenianos (Irlanda,

1870) 1868 Nasce Maxim Gorki (� 1936) 1869 Bebel e Liebknecht fundam o Partido Operário Social-Democrata Alemão 1870 Motor de combustão; França declara guerra à Prússia (1871); nasce Lênin (�

1924) 1871 Comuna de Paris; nasce Rosa Luxemburgo (� 1919) 1872 Nasce Alexandra Kollontai (� 1952) 1873 Morre Napoleão III 1875 Crescimento dos partidos trabalhistas e socialistas na Europa 1876 Último Congresso da I Internacional 1879 Nascem Joseph Stálin (� 1953) e Lev D. Trotsky (�1940) 1883 Direitos sociais na Alemanha; Nascem Keynes (� 1946) e Benito Mussolini

(�1945) 1884 Guerra sino-francesa (1885) 1885 Publica-se o segundo volume de O Capital 1888 Abolição Legal da Escravidão (Brasil); nasce Nikolai Bukharine (� 1938) 1889 Fundação da II Internacional (ou “Internacional Socialista” - 1914); Proclamação

da República no Brasil (1ª. República: 1889/1930) 1891 Rerum Novarum (Leão XIII) 1892 Nasce Walter Benjamin (� 1940) 1894 Engels publica o terceiro volume de O Capital 1895 As Regras do Método Sociológico (Durkheim); Lênin organiza a União de Luta

pela Emancipação da Classe Operária 1898 Guerra Hispano-Americana (Século XX) 1901 I Congresso Socialista do Brasil 1903 O POSDR se subdivide (bolcheviques [maioria] e mencheviques [minoria] 1904 Guerra Russo-Japonesa (1905); Criação da Secretaria da II Internacional

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1905 Onda revolucionária na Rússia; surge a União camponesa de toda a Rússia 1906 I Congresso Operário do Brasil 1907 Segunda Convenção de Genebra; V Congresso (de Londres) do POSAR (vitória

do bolchevismo) 1910 “Revolução Mexicana” (1928) 1912 Guerras Balcânicas (1913); Montenegro declara guerra à Turquia e torna a guerra

mundial iminente. Nasce Milton Friedman (� 2006) 1913 Ford desenvolve a linha de produção em suas fábricas 1914-8 I Grande Guerra Mundial; 1917 Revolução Russa; Início da Revolução Ucraniana (1921); Primeira greve geral no

Brasil (1919); O Estado e a Revolução (Lênin) 1918 Gripe espanhola (de 20 a 40 milhões de mortos no mundo); Tentativas

revolucionárias na Europa; Fundação dos primeiros partidos comunistas europeus; Guerra civil Russa; Tratado de Brest

1919 Congresso Socialista em Berna; Fundação do Comintern (III Internacional: designação de Internacional Comunista) em Moscou (1943); fundação da OIT; Tratado de Versailles; Movimento de 04 de maio (China); Fundação da Liga das Nações

1920 Congresso Socialista de Viena; II Congresso da Internacional Comunista (Petrogrado)

1921 Nasce John Rawls (� 2002); III Congresso da Internacional Comunista 1922 Mussolini no poder; Brasil: Semana de Arte Moderna; Levante do Forte;

Fundação do Partido Comunista do Brasil; IV da Internacional Comunista; Fundação da URSS; Stalin assume a Secretaria Geral do Partido Russo.

1923 Nasce Ernest Mandel (�1995); estabelecimento da General Motors nos EUA; Lei Eloy Chaves (Brasil); greve geral na Alemanha, organizada pelo PCA (leva a derrubada do governo, mas não consegue se sustentar no poder)

1924 Stalin assume o poder; início da Coluna Prestes; Revolução Constitucionalista (BR); V Congresso da Internacional Comunista: Política de Frente Única dos PCs; Fundação das Centrais Sindicais Mundiais

1927 Guerra Civil Chinesa (1949) 1928 VI Congresso da Internacional Comunista 1929 Nasce Habermas; Quebra da Bolsa de Nova York: em 3 anos de 7/16 milhões de

desempregados (Grande Depressão-1933); Terceira Convenção de Genebra; Trotsky é exilado.

1933 Hitler assume poder na Alemanha; New Deal (EUA) 1935 VII Congresso da Internacional Comunista (Política de Frente Popular dos PCs);

Intentona Comunista (BR) 1936 Guerra civil espanhola (1939) 1938 Alemanha ocupa a Áustria 1939 Fim da Guerra civil Espanhola; início da ditadura franquista; Hitler invade a

Polônia; Início da II Grande Guerra Mundial 1939 Pacto de não agressão entre URSS e Alemanha 1942 Ataque japonês à Pearl Habour; derrota alemã em Stalingrado 1943 A III Internacional é dissolvida por Stalin 1944 Criação do FMI e BIRD; Conferência de Bretton Woods (institui o padrão dólar-

ouro como base do sistema monetário internacional)

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1945 Fim da II GGM; criação da ONU 1946 Plano Beveridge (Inglaterra); nova Constituição (França) 1947 Início da Guerra Fria 1948-52 Plano Marshall (introduz na Europa cerca de US$ 14 bilhões)

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