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3279 SHEBA CHHACHHI E A NATUREZA DO SAGRADO Lúcia Helena Fidelis Bahia / PPGAV Universidade do Estado de Santa Catarina Vanessa Costa da Rosa / PPGAV Universidade do Estado de Santa Catarina Simpósio 7 Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões SHEBA CHHACHHI E A NATUREZA DO SAGRADO Lúcia Helena Fidelis Bahia / PPGAV Universidade do Estado de Santa Catarina Vanessa Costa da Rosa / PPGAV Universidade do Estado de Santa Catarina RESUMO O presente texto propõe um entrelaçamento das culturas Oriental e Ocidental através de uma questão evidenciada nas obras intituladas Water Diviner (2008) e Black Waters Will Burn (2011) da artista etíope Sheba Chhacchi - a qual vive e trabalha atualmente na Índia. Essa questão volta-se para um problema ecológico mundial, ou seja, a poluição desenfreada dos rios. Porém com uma ressalva: os rios, para os indianos, são considerados sagrados e, em sua maioria, representam deuses. Como é o caso do rio Yamuna, na Índia, que representa a deusa Yamuna Devi, a deusa da purificação. Com isso, é construído um desdobramento das obras de Chhachhi por meio das leituras de Néstor García Canclini, autor ocidental que pontua em seu pensamento a necessidade dos trânsitos culturais, e de Gita Mehta, escritora indiana que aponta a diversidade do universo indiano em seus contos. PALAVRAS-CHAVE arte; Oriente; Ocidente; trânsitos culturais; Sheba Chhachhi. ABSTRACT This paper proposes an intertwining of Eastern and Western cultures through an issue highlighted in the works titled Water Diviner (2008) and Black Waters Will Burn (2011) of the Ethiopian artist Sheba Chhacchi - which lives and currently works in India. This issue turns to a worldwide environmental problem, namely the rampant pollution of rivers. But with a reservation: the rivers, to the Indians, are considered sacred and mostly represent gods. As is the case of the Yamuna River in India, representing the goddess Yamuna Devi, the goddess of purification. Thus, it is built an offshoot of the works of Chhachhi through the readings of Néstor García Canclini, Western author who marks in their thinking the need of cultural influences, and Gita Mehta, Indian writer who marks out the diversity of the Indian universe in his tales. KEYWORDS art; Eastern; Western; cultural influences; Sheba Chhachhi.

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3279 SHEBA CHHACHHI E A NATUREZA DO SAGRADO Lúcia Helena Fidelis Bahia / PPGAV – Universidade do Estado de Santa Catarina

Vanessa Costa da Rosa / PPGAV – Universidade do Estado de Santa Catarina Simpósio 7 – Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões

SHEBA CHHACHHI E A NATUREZA DO SAGRADO Lúcia Helena Fidelis Bahia / PPGAV – Universidade do Estado de Santa Catarina Vanessa Costa da Rosa / PPGAV – Universidade do Estado de Santa Catarina RESUMO

O presente texto propõe um entrelaçamento das culturas Oriental e Ocidental através de uma questão evidenciada nas obras intituladas Water Diviner (2008) e Black Waters Will Burn (2011) da artista etíope Sheba Chhacchi - a qual vive e trabalha atualmente na Índia.

Essa questão volta-se para um problema ecológico mundial, ou seja, a poluição desenfreada dos rios. Porém com uma ressalva: os rios, para os indianos, são considerados sagrados e, em sua maioria, representam deuses. Como é o caso do rio Yamuna, na Índia, que representa a deusa Yamuna Devi, a deusa da purificação. Com isso, é construído um desdobramento das obras de Chhachhi por meio das leituras de Néstor García Canclini, autor ocidental que pontua em seu pensamento a necessidade dos trânsitos culturais, e de Gita Mehta, escritora indiana que aponta a diversidade do universo indiano em seus contos.

PALAVRAS-CHAVE

arte; Oriente; Ocidente; trânsitos culturais; Sheba Chhachhi. ABSTRACT This paper proposes an intertwining of Eastern and Western cultures through an issue highlighted in the works titled Water Diviner (2008) and Black Waters Will Burn (2011) of the Ethiopian artist Sheba Chhacchi - which lives and currently works in India. This issue turns to a worldwide environmental problem, namely the rampant pollution of rivers. But with a reservation: the rivers, to the Indians, are considered sacred and mostly represent gods. As is the case of the Yamuna River in India, representing the goddess Yamuna Devi, the goddess of purification. Thus, it is built an offshoot of the works of Chhachhi through the readings of Néstor García Canclini, Western author who marks in their thinking the need of cultural influences, and Gita Mehta, Indian writer who marks out the diversity of the Indian universe in his tales. KEYWORDS

art; Eastern; Western; cultural influences; Sheba Chhachhi.

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Cada vez mais as discussões acerca de trocas, conexões e influências presentes na

produção artística tanto Ocidental quanto Oriental tornam-se recorrentes no mundo

contemporâneo e conquistam espaços na teoria, poética e crítica de arte pós-

moderna. Algumas dessas discussões encontram-se presentes no texto Estética y

Antropologia: geopolítica y estéticas interculturales, escrito por Néstor García

Canclini (2007), o qual abrange o trânsito de culturas no atual estado da arte e

proporciona aos leitores uma base para a criação de novos intercâmbios artísticos. A

possibilidade de intercâmbio possibilitou o surgimento do presente texto e o diálogo

com as obras Water Diviner (2008) e Black Waters Will Burn (2011) da artista etíope

Sheba Chhachhi, que vive e trabalha em Nova Délhi, na Índia. Essas obras

permitem o entrelaçamento da cultura indiana com questões pertinentes ao mundo

inteiro e serão desdobradas ao longo do texto com o auxílio de considerações feitas

pela autora indiana Gita Mehta, em seu livro Escadas e serpentes: um olhar sobre a

Índia moderna. Assim, o texto de Canclini aparece como um mediador, uma possível

introdução e aproximação para pensar o multiculturalismo existente nos discursos

sobre arte contemporânea e que, em alguma medida, tangencia a produção

imagética de Sheba Chhachhi.

Nessa perspectiva, busca-se apresentar o conceito de nomadismo, proposto por

Canclini (2007), e as maneiras de ultrapassá-lo. O conceito de nomadismo é

utilizado para considerar a arte na época de globalização. O nomadismo, segundo o

autor, seria uma maneira de desterritorialização da arte onde não se coloca em

pauta questões locais ou nacionais da produção artística (CANCLINI, 2007, p.152).

Ao pensar alternativas que considere a arte sem desconsiderar os vínculos com a

cultura local, Canclini sugere uma nova forma de olhar relacionado à produção

artística que supere os limites encontrados no nomadismo:

Nem deslocalização absoluta, nem mero regresso à exaltação nacionalista. Os circuitos globais são poderosos, porém não abarcam tudo, a problemática migratória cresce e apela com força aos imaginários, porém em muitas regiões as identificações étnicas, nacionais ou simplesmente locais seguem sendo significativas. Talvez necessitemos, tanto nos megacircuitos como nos de escala pequena e mediana, analisar, como sugere Daniel Mato, não a desterritorialização, mas a “transterritorialização” ou “multilocalização” (MATO, 2007). Acrescentaria, por minha parte, a

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localização incerta de muitos processos culturais. Vejo nesta noção, uma potência poética e hermenêutica atrativa para a produção e a comunicação artística. (CANCLINI, 2007, p.152)

As preocupações do autor mostram-se relevantes para pensar o trabalho de Sheba

Chhachhi, pois suas obras relacionam-se de forma direta com elementos da cultura

indiana – como já foi dito anteriormente – e possibilitam entrelaçamentos e diálogos

com questões que ultrapassam o território local. Caso fosse partido do pressuposto

do nomadismo, acabaríamos por desconsiderar questões importantes da estética

artística e diluir leituras possíveis sobre a obra da artista. Por isso, Canclini nos

apresenta o método da ponderação, ou seja, de uma alternativa que não exclua o

local e o global e que considere as trocas e os jogos existentes entre ambos – e que

será utilizado no decorrer do texto para desdobrar as duas obras de Sheba.

Sheba Chhachhi e o apreço pela espiritualidade

Desde tempos remotos, o ser humano alimentava o desejo de traduzir a sua

espiritualidade em mitos e imagens. Era uma tentativa de dar visibilidade aquilo que

ainda não estava compreendido dentro de uma prática cotidiana e, talvez, em um

universo designado como primitivo. Segundo Julian Bell (2008), a arte visual era

capaz de proporcionar uma experiência espiritual primária, tanto ao observados

como ao autor. Quer ou não a figura do leão tenha adquirido sentido a partir de uma

história, sua chegada real ao mundo deu ao mito um rosto (BELL, 2008, p.17). O

autor do livro Uma Nova História da Arte continuou seu pensamento ao escrever: a

arte antiga gira em torno de forças e princípios invisíveis que fazem o mundo ser tal

como é, mas que são ao mesmo tempo pessoas. Em outras palavras, gira em torno

do que chamaríamos de "deuses" (BELL, 2008, p.18). Ou seja, com o surgimento de

elementos que possibilitavam a identificação de determinadas imagens, a

espiritualidade cedeu lugar à figuração de personificações que representavam seres

superiores. Sem demora, essas personificações serviram de base ao nascimento e

a consolidação dos mitos religiosos e das crenças.

Atualmente, é possível perceber o quanto as crenças entrelaçam-se a religiões de

diferentes regiões do mundo e, principalmente, ao seu mercado. Tanto o Ocidente

quanto o Oriente sustentam rituais provenientes das crenças antigas, mas que não

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conseguem reunir junto à prática, a espiritualidade necessária para a real interação

do ser com a religião. A falta dessa unificação aponta para uma ausência refletida no

abandono e no desrespeito ao outro e, principalmente, ao seu próprio lugar de

origem. Esse é um outro questionamento que envolve as obras Water Diviner (2008)

e Black Waters Will Burn (2011) da artista Sheba Chhachhi.

Também é necessário compreender que existem diferenças culturais que

ultrapassam as dicotomias entre Oriente e Ocidente e que, muitas vezes, estão

presentes em um mesmo país, como é o caso da Índia. A Índia é um país onde tal

argumento ganha um imenso sentido: um país que não possui uma língua oficial;

não possui uma única religião e que carrega inúmeras outras crenças e rituais; um

espaço de migrantes de diversas etnias, de história de reinos distantes e ou distintos

entre si; um espaço de trocas culturais constantes. As possíveis variações culturais

dentro de um mesmo local permitem enxergar a dificuldade de entendimento entre

os povos de um mesmo espaço geográfico, pois, de acordo com Canclini, em nossa

própria cultura descobrimos ser estrangeiros (CANCLINI, 2007, p.157):

Às vezes ocorre, assinala Ricoeur, que em nossa própria língua necessitamos dizer o mesmo de outra maneira, porque dentro de uma mesma cultura descobrimos ser estrangeiros. Cada vez que nos perguntamos “o que isso quer dizer?”, estamos reconhecendo a pluralidade de sentidos que podem ter uma expressão na mesma sociedade. Prestar atenção a experiência do estrangeiro é o que nos torna perceptivos a estrangeirismo que pode irromper na própria cultura. (CANCLINI, 2007, p.157)

Water Diviner e a vulnerabilidade da natureza diante de uma cultura

Considerada uma de suas obras mais relevantes, Water Diviner surgiu no início do

Projeto Arte Púlica 48° Celsius de Nova Délhi e foi apresentada pela primeira vez,

em 2008, na Délhi Public Library – local em que a dicotomia de tempos serviu como

base para o surgimento da obra.1 Water Diviner trata-se de uma instalação

constituída por uma intensa luz azul, livros ao redor da câmara, caixas de luz na

forma de livros trazendo imagens clássicas provenientes das culturas ribeirinhas,

pois [...] cidades sagradas de 3 mil anos de idade ainda florescem nas margens de

seus imensos rios [...] (MEHTA, 1998, p. 29) – pequenas pinturas retiradas do

Krishna stories, uma caixa de luz ao centro mostrando o mapa de Shahjahanabad e

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a rua na qual, um dia, havia corrido um canal de água, água preta e uma projeção

de vídeo em looping na qual um elefante – símbolo da cultura indiana – submerso na

água de uma piscina desintegra-se sucessivamente até seu desaparecimento. Ao

fim da projeção, as partículas do animal tornam-se invisíveis aos olhos apesar de

ainda coexistirem absorvidas à água. As etapas do vídeo podem ser observadas na

imagem abaixo (Figura 1). É importante ressaltar que a obra, ao ser exposta em

outros países, estava aberta a fragmentações de sua instalação original como, por

exemplo, apenas a projeção do vídeo foi apresentada na Bienal VentoSul de

Curitiba, em 2009, e na Galeria Paolo Curti em Milão, em 2009/2010.

Sheba Chhachhi

Water Diviner, 2008 Frames do vídeo apresentado durante a exposição

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A obra da artista possui uma densidade de elementos caros à cultura indiana –

permeada por uma espiritualidade religiosa profunda –, ao mesmo tempo que

desdobra questões que envolvem tanto o Oriente quanto o Ocidente, como as

relações históricas e metafóricas que permeiam os seres humanos e a natureza,

propagando-se na mitologia-poética, do religioso até o mercantil. Essas relações

modificam-se constantemente devido aos efeitos da globalização e da ruptura da

memória pessoal e coletiva e suas consequências são apontadas constantemente

no trabalho de Chhachhi com o auxílio de símbolos da própria cultura. Um desses

símbolos é representado através das águas que remetem ao rio Yamuna2, um dos

sete principais rios sagrados e mais poluídos do norte da Índia, afluente do rio

Gange, medindo 1.370km de comprimento. Mas foi devido a sua carga mitológica

que a artista o elegeu como fonte de suas discussões na prática artística, pois na

Índia cada rio cada lago, cada montanha é repositório de algum conto de mitologia

divina (MEHTA, 1998, p. 31).

Segundo seu próprio relato, o rio Yamuna representa Yamuna Devi, deusa e mãe de

milhões de devotos e responsável pela purificação. A demasiada quantidade de

textos e práticas rituais para a sua adoração revelam uma filosofia que proporciona a

união do feminino com a natureza. O rio considerado como mãe carrega consigo a

possibilidade de suportar tudo em seus braços, através do sacrifício. Assim, a

teologia feminina da água e da natureza funciona paradoxalmente. Se por um lado,

o ato de sacralização da natureza pode desmaterializar a divindade, por outro, ao

evocar uma unidade com o rio, cria-se uma experiência de uma integração do

ecossistema para cada indivíduo que, muitas vezes, reduz as crenças religiosas a

um ritual mecânico no qual adoração e destruição constituem uma mesma prática.

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Sheba Chhachhi

Water Diviner, 2008 Instalação com vídeo, livros, caixa de luz, luz e água

Vista da instalação Coleção da artista

Outro paradoxo: a integração ser humano/natureza, espiritual/religioso,

natureza/mercado através de rituais pode se chocar com a complexidade

manifestada pela Índia, principalmente quando a falta de homogeneidade já se

tornou uma característica determinante. De acordo com a escritora indiana Gita

Mehta, em seu livro Escadas e serpentes: um olhar sobre a Índia moderna, a Índia é

a soma de um milhão de mundos rodeados por oceanos em três lados, e pelo

imenso Himalaia ao norte (MEHTA, 1998, p. 29). O governo indiano aponta

oficialmente dezessete línguas indianas principais, através das quais os assuntos

públicos podem ser tratados, e mais de quatrocentas outras línguas, tanto escritas

quanto orais. Cada língua possui sua literatura antiga e contemporânea. Sem falar

na variedade religiosa: hinduístas, cristãos, muçulmanos, jainistas, parses, judeus,

budistas, sikhs [...] (MEHTA, 1998, p. 31). Outro símbolo presente na vídeo-

instalação é a figura do elefante – considerado tanto um símbolo religioso quanto um

símbolo de poder – mas que representa aqui a fragilidade determinada pela falta de

integração entre ser humano, espiritualidade e natureza. Enquanto símbolo religioso,

o elefante é considerado um animal sagrado que traz sabedoria e encontra-se

presente na representação de Ganesh – também conhecido por Ganesha –, o deus

hindu da proteção, com sua cabeça de elefante (MEHTA, 1998, p. 32).

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Assim como acontece com todas as outras formas externas nas

quais o Hinduísmo representa deus, no sentido da aparência

pessoal de Brahman (também chamada de Ishvara, o Senhor), a

figura de Ganesha é também um arquétipo cheio de múltiplos

sentidos e simbolismo que expressa um estado de perfeição assim

como os meios de obtê-la. Ganesha, de facto, é o símbolo daquele

que descobriu a Divindade dentro de si mesmo. Ganesha é o som

primordial, OM, do qual todos os hinos nasceram. Quando Shakti

(Energia) e Shiva (Matéria) se encontram, ambos o Som (Ganesha)

e a Luz (Skanda) nascem. Ele representa o perfeito equilíbrio entre

força e bondade, poder e beleza. Ele também simboliza as

capacidades discriminativas que provê a habilidade de perceber a

distinção entre verdade e ilusão, o real e o irreal. (ZINGARA, 2011)3

Já como símbolo de poder, a imagem do elefante era utilizada como adorno atrás de

imensos portões de uma fortaleza denominada de Velho Forte. Os antigos ainda

agregavam a cor vermelha ao elefante, e diziam que um elefante vermelho de costas

à porta de entrada, não permitiria que energia negativa nenhuma se aproximasse

(ZINGARA, 2011). Ela também serve como amuleto para atrair boa sorte.

Em uma entrevista intitulada A River of Memories (2012), a artista declarou que,

para ela, na obra Water Diviner, o elefante estava tentando trazer as pessoas para a

memória central, o prazer da água e para uma metáfora sobre a memória cultural -

através das memórias pessoal e coletiva. Mais que isso, o trabalho proporciona uma

reflexão sobre o problema do rio Yamuna: um problema ecológico enfrentando por

diversos outros rios do planeta, porém com uma diferença: aponta a necessidade de

olhar novamente para uma cultura espiritual que se perdeu no meio de tantas

práticas e rituais mecânicos.

Black Waters Will Burn e o paradoxo ecológico

A poluição do rio Yamuna é um fator determinante para pensar a obra de Sheba

Chhacchi. Segundo a artista, ela tem feito trabalhos sobre o Yamuna desde 2005.

As diversas maneiras utilizadas para abordar a problemática do rio encontram-se

presentes no discurso da artista e em outros trabalhos elaborados após a realização de

Water Diviner. Um exemplo é a obra Black Waters Will Burn (2011) resultante da

participação de Sheba no projeto intitulado Yamuna-Elbe Public Art, realizado entre

2011 e 2012. O projeto, construído de forma colaborativa entre a Alemanha e a Índia,

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propôs um diálogo a partir das relações possíveis com os rios Elbe, em Hamburgo, e

Yamuna, em Nova Délhi, bem como o estímulo da consciência sobre a importância

desses rios como entidades urbanas. Com a participação de artistas convidados de

ambos os países – como por exemplo, Sheba Chhacchi e Jochen Lempert Petzet – o

projeto consolidou-se através da produção de obras de arte pública nas margens dos

dois rios citados. Ou seja, cada artista conceituou uma obra que destaca questões

importantes relacionadas aos rios – fossem elas ecológicas, socioculturais ou religiosas.

Apesar dos rios serem de natureza e cultura distintas, ambos estão ameaçados pela

exploração oriunda do contínuo processo globalizante.

Sheba Chhacchi Black Waters Will Burn, 2011

Projeto Art Públic Yamuna-Elbe http://www.yamuna-elbe.de

Em Black Waters Will Burn (fig. 3), é possível observar uma instalação site-specific

que ocupa tanto as margens do rio quanto ele próprio. Nas margens do Yamuna, os

espectadores devem caminhar através de um texto sagrado formado por trechos do

hino Yamunashtak (fig. 4), o qual descreve a figura do rio como uma forma feminina

sensual, um eco da beleza. O hino exalta a Deusa Yamuna Devi que é representada

na natureza na figura do rio. Escrito há séculos o hino faz parte dos inúmeros textos

sagrados da crença hinduísta. Como já foi mencionado na leitura da obra Water

Diviner, o rio exalta a natureza feminina, mas se anteriormente a obra trata da

mulher enquanto figura materna, agora, o feminino apresenta-se vinculado à

sensualidade. Ou seja, essa sensualidade, também desdobrada pelo texto sagrado,

aproxima-se da imagem das ninfas tão recorrente ao longo da história da arte.

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Sheba Chhacchi

Black Waters Will Burn, 2011 Projeto Art Públic Yamuna-Elbe

http://www.yamuna-elbe.de

Na mesma direção dos escritos a serem percorridos, porém sobre o rio – como pode

ser observado na imagem acima – encontra-se uma forma de grandes proporções

que assemelha-se ao quadril e as pernas estilizadas de uma mulher. Essa forma

está envolta em ataduras brancas que encobrem feridas latentes. Quando anoitece,

a figura – que representa o feminino – e parte do rio são tomados pela projeção de

uma contínua chama vermelha, a qual alude à combustão. Como se as águas

negras e poluídas do rio estivessem em chamas juntamente com a forma feminina

que ali mora. Chamas que podemos observar na figura 5.

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Sheba Chhacchi

Black Waters Will Burn, 2011 Projeto Art Públic Yamuna-Elbe

http://www.yamuna-elbe.de

As chamas referem-se às consequências de uma poluição desenfreada causada

pelo homem em tempos de urbanização e industrialização. Porém, cabe aqui uma

reflexão que demonstra o paradoxo dessas feridas. Enquanto o trabalho de Sheba

Chhachhi simboliza a ferida da natureza realizada pelo homem, esse mesmo

homem sofre as consequências de sua ação, pois na Índia secas recorrentes afetam

moradores de comunidades ribeirinhas enquanto nas grandes metrópoles como

Nova Délhi a poluição de rios como o Yamuna tornam-se recorrentes. Na atualidade

a escassez de água já traz vários migrantes às cidades que passam a se

estabelecer em moradas e empregos degradantes, em longo prazo é possível

vislumbrar a falta de água se tornar um problema urbano. As narrativas de migrantes

são apresentadas no texto de MEHTA (1998) que relata a conversa da autora com

pessoas que trabalhavam em um lixão de Nova Délhi. Pode-se acompanhar a

argumentação de uma dessas pessoas, uma mulher migrante que só vieram para a

cidade depois de sete anos consecutivos de seca obrigarem seu marido a vender a

terra da família a um agiota (MEHTA 1998,p.42).

O texto sagrado do trabalho de Sheba Chhachhi tem a característica física de uma

trincheira (como vemos na fig. 6), feita com sacos de areia que se agrupam dando

forma essa estrutura tão utilizada para a proteção e esconderijo do corpo durante as

guerras. A trincheira também aproxima-se de uma passarela onde se pode andar e

ver os escritos do hino a Yamuna Devi, logo abaixo dos pés pintado sobre os sacos

de areia. De pé em cima da passarela pode-se olhar para a linha do horizonte

formada pelo diálogo entre o rio e a paisagem da cidade de Délhi. O rio de águas

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negras e poluídas constrói uma aproximação clara com a paisagem que lhe cerca de

indústrias cuspindo um cinza que toma conta do ar. Assim os antagonismos entre o

sagrado e o descaso, o mito modernizante e a decadência social apresentam-se ao

espectador através da paisagem real e poética da obra. Abre-se a possibilidade de

contemplar e refletir sobre a paisagem que se descola rapidamente do ideal

romântico da unidade entre deus, natureza e homem.

Sheba Chhacchi Black Waters Will Burn, 2011

Projeto Art Públic Yamuna-Elbe http://www.yamuna-elbe.de

Sheba Chhacchi por um novo ponto de vista

Assim como Sheba Chhachhi, outros artistas transcrevem em suas poéticas culturas

de seus lugares. Culturas que cruzam-se e mesclam-se com tantas outras e deixam

evidente o trânsito existente nas fronteiras culturais e artísticas. No presente texto

busca-se fazer uma tradução do trabalho de Sheba Chhacchi. O conceito de

tradução encontra aporte na argumentação feita por Canclini, na qual essa é

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apresentada como uma possível visão do outro e por isso torna-se sempre

deficiente, cambaleante, mas que deve-se correr o risco de ser feita.

As traduções linguísticas e interculturais oferecem duas experiências, segundo Ricoeur: quando logramos passar um significado de uma língua a outras, experimentamos a ‘hospitalidade lingüística’; ‘o prazer de habitar a língua do outro’ e de ‘receber na própria casa a palavra do estrangeiro’ (Ricoeur, 2005: 28); porém ao reconhecer o que é intraduzível compreendemos que a diferença entre línguas e entre culturas é insuperável, vivemos a distância entre o próprio e o estranho. Tentar a tradução é fazer a experiência da heterogeneidade radical e portanto da impossibilidade de lograr uma equivalência perfeita entre uma língua e outra. Contudo, existem pessoas multilíngües, intérpretes e tradutores. Quem realiza estes trabalhos sabe que não existe tradução perfeita, porém não renunciam ao desejo de conhecer o diferente e buscar uma equivalência que não é uma identidade. Ainda quem são perfeitamente bilíngües sabem que não podem dizer de modo idêntico em distintos idiomas, porém encontram valor em dizê-lo de outro modo. (CANCLINI, 2007, p.157)

A possibilidade de traduzir o outro, não pretende repetir ou decifrar o significado

original, mas tenta compreender um modo que não copie sua origem. Ao olhar para

o trabalho de Sheba Chhachhi sabe-se da impossibilidade de reproduzir seus

sentidos e as relações que lhe são tão intrínsecas como a própria mística hindu.

Portanto propõe-se uma tradução desse outro enquanto um olhar paralelo sobre a

obra, sem buscar traduzir o intraduzível, mas na busca por compreender o diferente.

Notas 1 A dicotomia de tempos se deu através da necessidade de Sheba Chhachhi produzir um trabalho que fundisse

os indícios do que existiu na construção - e que encontram-se presentes e visíveis aos transeuntes - com a sua atual funcionalidade, ou seja, a de abrigar a Delhi Public Library. São alguns deles: a placa ao lado de fora dizendo Swimming Pool dividindo espaço com outra mais acima dizendo Delhi Public Library ou as cadeiras queradas, os colchões apodrecendo e livros armazenados no espaço onde costumava estar a piscina, etc.. 2 Símbolo do desastre ecológico. 3 Disponível em: http://portaisdooriente.blogspot.com.br/2011/06/animais-sagrados.html

Referências

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Page 14: SHEBA CHHACHHI E A NATUREZA DO SAGRADO - anpap.org.branpap.org.br/anais/2015/simposios/s7/vanessa_costa_da_rosa_lucia... · desdobra questões que envolvem tanto o Oriente quanto

3292 SHEBA CHHACHHI E A NATUREZA DO SAGRADO Lúcia Helena Fidelis Bahia, Vanessa Costa da Rosa / PPGAV – Universidade do Estado de Santa Catarina Simpósio 7 – Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões

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Lúcia Helena Fidelis Bahia

Mestranda em Artes Visuais na linha de Teoria e História da Arte na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bacharel em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, 2013). Vanessa Costa da Rosa Mestranda em Artes Visuais na linha de Teoria e História da Arte na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). É especialista em História da Arte (2013) e graduada em Artes Visuais (2011) pela Universidade da região de Joinville.