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A Sextante é uma publicação dos alunos de Jornalismo para a disciplina de Jornalismo Impresso IV da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS.

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Sextante

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SEXTANTE

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TEMPO

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Sumário

editoriais 6

que nem a morte nos separe 8

o tempo de agora* 13

o relógio de ouro* 17

o nosso tempo é a vida 23

redução não é a solução 29

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luzes da morte*42

46 tempo bom, tempo ruim

quanto tempo falta?*52

54 seis anos em um conta gotas

62 sementes da sabedoria

68 as flores de plástico não morrem

75 heróis do tempo

* crônicas/contos

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Editoriais

Sei que não realizei um bom semestre pelos pa-drões estabelecidos. As

razões são várias. Algumas, facil-mente detectáveis. Outras, nem tanto. Da minha parte, antes de tudo, cansaço. Estou há 23 anos em sala de aula, ou melhor, 21, descontados os dois de mestrado. Devo ter faltado umas cinco vezes

por motivos de saúde. Nunca ocu-

pei cargos com funções burocrá-

ticas ou transferi minha atividade para um bolsista. Com o tempo descobri que a atividade acadêmi-ca, em grande parte, é um univer-so de repetições. Por mais que um

professor estude e se mantenha

atualizado, existe uma margem de

repetição da qual não tem como escapar. Não estou empurrando com a barriga como se costuma di-zer, mas existe uma carga de cansa-ço. Aliado a isso, ocorreram alguns problemas de ordem pessoal. Mes-mo tendo um bom plano de saúde, é um absurdo o que se gasta com os cuidados básicos com uma pessoa

que tenha tido um AVC, no caso a minha mãe. 

Não fui, portanto, capaz de transmitir suficiente entusiasmo. Não consegui fazer com que a tur-ma tivesse a exata noção da oportu-nidade que a disciplina, com a mi-nha orientação, possibilita. Uma oportunidade rara durante o cur-so. Inteira liberdade na escolha do tema, assim como na escolha das pautas e do enfoque da respectiva matéria. Absoluta liberdade na es-crita do texto. Em sala de aula sou apenas um ponto de referência. Procuro ter uma participação, em nível de igualdade, nos primeiros encontros de definição da publica-ção, fornecendo fontes, indicações de leitura, complementando um ou outro aspecto da pauta escolhi-da por cada aluno.

Isso do lado de cá. Do meu lado. Do lado de lá (alunos) veri-fico que, com algumas variáveis, é claro, existe uma tendência cada vez maior de um fazer burocrático. A revista Sextante é apenas mais

um “trabalhinho” dos tantos que cada aluno tem que realizar para chegar ao final do curso e obter o diploma. Existe, cada vez menos, algo essencial da prática do jorna-lismo: o espírito de trabalho cole-tivo. Nesta turma, estes e outros tantos fatores estiveram presentes. Um belo tema foi escolhido. Como professor-editor, digo que este não foi o imaginado. Esta Sextante não é a dos meus sonhos. Esta foi a Sex-tante possível.

Aos pouquíssimos que ainda se dispõem a me dar atenção, agra-deço. É sincero.

WLADYMIR UNGARETTI

A SEXTANTE POSSÍVEL

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A Sextante 2015/1 fala de um tema que está presente no nos-

so cotidiano, que dita a maneira como organizamos nosso dia, nos-sas relações... nossa vida: o tempo. Não gostaríamos de falar sobre esse tema da forma como ele tra-dicionalmente é abordado. Nossa proposta era apresentar “o tempo” a partir de perspectivas diferentes, buscando mostrar opiniões singu-lares sobre o assunto.

Todos os dias somos nocautea-

dos com diversos afazeres: compro-

missos acadêmicos, profissionais,

familiares e sociais. Dormimos pouco, reservamos menos tempo para o lazer e, sem nos darmos conta, somos nocauteados pelo fu-racão em que a rotina se transfor-mou atualmente. Para fugir dessa pressão temporal, vamos apren-dendo a burlar as regras desse in-dicador de passagem, adiando pos-síveis compromissos, acumulando responsabilidades e vivendo numa corda bamba entre dominarmos

ou sermos dominados pelo tempo. A cada momento, tendenciamos para um lado diferente. Como re-sultado, aproveitamos momentos de lazer e no final, nos rendemos as convenções que somos obrigados a cumprir.

Um semestre parece ser um longo período. Enquanto vemos meses e semanas à nossa frente, va-mos postergando o que temos para fazer, nos acomodando e procrasti-nando o máximo possível. No en-tanto, chega um momento em que nos damos conta de que os dias es-tão diminuindo, que o prazo para a entrega do trabalho da cadeira, tão distante no início do ano, está ba-tendo nos nossos pés, assim como a água na beira do mar.

Utilizando uma metáfora “praieira”, poderíamos dizer que no início estávamos sentados na areia, pegando sol, tomando cer-veja e comendo milho. Até deci-dirmos o tema central da revista, nos restavam apenas os sabugos e a nossa bebida já havia acabado.

Entre escolhas de pauta, discussões de como abordá-las e possíveis fon-tes, fomos nos encaminhando em direção ao mar. Com os atrasos e a baixa frequência nas aulas, a maré foi subindo e ganhando força. A um mês do prazo estipulado para a entrega das matérias, a água batia no calcanhar. No dia de apresentar o trabalho individual de cada um, o mar estava na cintura e foi pror-rogado o tempo para entregar a re-portagem. Entregamos o material para impressão na gráfica no dia 10 de julho, sendo desequilibrados pela força das ondas.

Hoje a revista está pronta. É o resultado do trabalho da turma de jornalismo 2012/2 e agregados. E mais do que isso, a revista pro-va a maneira como nos comporta-mos diante do tempo ou da forma como ele lida conosco.

É sobre o tempo. Faltou tempo. Foi a sextante possível.

COMISSÃO EDITORIAL

DESIQUILIBRADOS COM AS ONDAS DO MAR

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Era dia 31 de maio de 1969. O carro que levava o noivo para

a igreja capota em uma terra de areia na Vila Nova, em Porto Alegre. A madrinha teve um torci-colo, o padrinho rasgou a roupa e o noivo, aparentemente, só tinha um galo na testa. O casamento atrasou, mas aconteceu naquele mesmo dia. Parece enredo de no-vela, em que tudo acontece no dia do casamento, mas é um relato da vida real. Foi assim que começou a história de Laura Radde Mizerski, de 69 anos, e Vicente Mizerski, de 72 anos.

Eles estão casados há 46 anos

e nunca se separaram durante esse tempo. Sempre que ficaram longe um do outro foi por causa de problemas de saúde. Eles têm dois filhos, um de 44 e outro de 39 anos, e uma neta, que é filha do mais novo. O casal mora em uma casinha muito charmosa no bairro Belém Velho com o filho mais novo, que se separou recente-mente, e recebem a visita da neta a cada quinze dias.

A passagem do tempo nos relacionamentos é marcada por momentos tristes e felizes, tur-bulentos e tranquilos, difíceis e fáceis. Assim é a vida, e as relações fazem parte dela, logo refletem es-

sas fases. O começo de casamento para dona Laura e Vicente não foi nada fácil, foi preciso muito amor para seguir adiante.

NA SAÚDE E NA DOENÇA

Parecia que estava tudo bem com Vicente depois do acidente no dia do casamento, mas ele fi-cou com sequelas que só foi desco-brir mais tarde. Ele trabalhava na Santa Casa de Porto Alegre, mas recebeu uma proposta de emprego no Sanatório Belém, e nos exames médicos para assumir o novo pos-to foi diagnosticado um coágulo de sangue em seu pulmão. Ele pre-cisou ficar internado 6 meses no hospital para fazer um tratamento muito rigoroso.

Durante esse tempo, dona Laura ficou morando sozinha em uma casa de quatro peças, sem água encanada. Ela chegava, no fim da tarde, depois de um dia de trabalho, e ia puxar água do poço, com um balde, para lavar as roupas do Vicente. No outro dia, em seu intervalo de almoço, vol-tava para recolhê-las para que não molhassem no sereno. Na casa, também não havia banheiro, tinha apenas uma privada nos fundos

Que nem a morte nos separe

por Ludm

ila C

afara

te

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do pátio e o banho era de bacia. Dona Laura conta que tinha mui-to medo de ficar sozinha nessas situações: “Foram 6 meses muito longos para mim. Eu tinha medo até do vento, porque ele batia nas folhas de milho da plantação e fazia barulho. Daí, quando eu es-tava no lado de fora, voltando do banho, eu corria, abria a porta de casa, entrava e fechava ligeiro. Se eu não tivesse uma boa cabeça e amor, eu não tinha conseguido”.

Mas, a vida deles não foi feita só de dificuldades. Com paciência, compreensão e cumplicidade, o casal conseguiu passar pelos tem-

pos difíceis e construir a própria maneira de ser feliz. Para eles, a felicidade está nas coisas simples da vida. Com o passar dos anos, eles conseguiram aumentar a casa e mobiliá-la – já que quando ca-saram, tinham apenas o quarto e a cozinha, as outras peças estavam vazias – comprar uma geladeira e não precisar mais usar a da vizi-nha. Hoje, eles têm água encanada e banheiro, e acompanharam, jun-tos, a evolução do próprio bairro, que deixou de ser tão isolado e ganhou várias linhas de ônibus. “Não é uma grande viagem ou uma grande conquista que trará a

felicidade, se tu não estiver em paz internamente. Então, para mim, a felicidade vem de dentro. Eu sou feliz melhorando a minha casa, no meu conforto, tendo as minhas coisas, uma boa televisão para assistir e um som para ouvir. Eu nunca sai daqui e sou feliz assim”, relata dona Laura.

O SIM QUE FEZ REVOLU-ÇÃO

Dona Laura tem quatro ir-mãs e um irmão. Das mulheres é a mais nova e sempre foi a mais “peituda” para tomar as decisões

Laura e Vicente em sua casa em Porto Alegre

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da sua vida. Ela conta que foi a única que furou a orelha para colocar brinco, que usou lente de contato, que casou jovem e saiu de casa para tocar a própria vida.

O casamento foi um ato de revolução, também, pelas dife-renças religiosas das famílias. En-quanto a dela que era de origem alemã, seguia a religião protestan-te, a família de Vicente, por serem poloneses, era católica. Os pais de Laura receberam bem Vicente, mas a família dele não gostava da ideia, porque achavam que as re-ligiões não combinavam. Mesmo assim, eles casaram e estão juntos até hoje.

Mas, qual é o segredo dessa união tão duradoura? A base da relação para resistir a tantos mo-mentos difíceis foi a compreensão. Dona Laura explica que sempre que um “estourava”, o outro ficava mais calmo e não respondia às provocações, a fim de evitar brigas mais sérias. “Em primeiro lugar tem que haver o respeito, a con-fiança, o amor e a consideração para superar os problemas juntos. Muitas vezes, tu engole sapos, mas tu tem que saber lidar com isso. Pensa assim, tu engoliu hoje, mas amanhã pode ser o outro que vai estar engolindo”, conclui dona Laura, que revela ter o desejo de

chegar aos 50 anos de casada para comemorar, as sonhadas, bodas de ouro.

DA COMPREENSÃO À LIBER-DADE

Se a compreensão foi a fórmula de sucesso do relacionamento de dona Laura e de seu Vicente, a liberdade foi o que sempre comandou a relação do professor e doutorando de pro-cessos e manifestações culturais da Feevale, Walter Karwatzki e do engenheiro eletrônico, Cássio Maffazzioli.

Eles vivem juntos há 33 anos e se conheceram durante um con-certo de música clássica da OSPA, quando ainda estavam começan-do as suas carreiras profissionais. Por conselho da mãe de Walter, logo depois que completaram dois meses de namoro, o casal foi morar junto. Eles também nunca se separaram e às vezes que preci-saram ficar longe um do outro foi por causa de viagens de trabalho ou de férias individuais. O tempo juntos aprimorou a intimidade do casal, que já se conhece pelo olhar. Walter conta que se os dois estão em uma festa, dependendo do jeito que Cássio o olha, ele já sabe que é hora de ir embora, porque

entende que o companheiro está cansado, já que acordou às 4 da manhã para ir trabalhar. Esse é um benefício da passagem do tempo na relação, destacado por Walter.

Para os dois, um relaciona-mento só pode ser duradouro e bem sucedido, se houver liber-dade. Um dos ensinamentos do pai de Walter é que a liberdade une as pessoas, e ele levou isso para dentro da relação. “A liber-dade é importante, porque não adianta tu dizer ‘não vai’, que eu vou em pensamento, não adianta dizer ‘não me trai’, que eu transo contigo, pensando em outro. É melhor o cara ir lá descarregar e voltar para casa feliz, querendo o seu velho mesmo. Caso contrário, fica aquela coisa que não termina nunca, que fica no pensamento. Isso destrói uma relação”, opina o doutorando da Feevale.

É COMO RESPIRAR

Walter afirma que esse tem-po que está junto com o Cássio passou muito rápido, porque foi muito bom: “É como respirar. Ninguém anda na rua, pensando ‘estou respirando, não estou respi-rando, respira, não respira’, é algo natural. A passagem do tempo na nossa relação também é assim.

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Eu só me dou conta dos anos que passaram quando alguém me per-gunta”.

Como aguentam ficar juntos até hoje? Essa é a pergunta mais ouvida pelo casal, mas Walter sempre diz que não entrou na relação pensando nisso, e que es-tava aberto para receber o que de melhor havia em Cássio, e se sur-preendeu com o tamanho da bon-dade do companheiro. Ele conta que quando foram viver juntos, Cássio continuou pagando o pen-sionato onde morava no centro,

mesmo deixando o local, porque a senhora que administrava a casa não tinha dinheiro e ele era o úl-timo hóspede. Então, ele pagou o aluguel por mais dois anos, até o falecimento da senhora.

Para Walter, estar aberto para receber o outro é o segredo de qualquer relação, seja ela amorosa ou de amizade. É preciso esvaziar as coisas que não são úteis em si mesmo para ter espaço para receber a outra pessoa de forma sincera, explica o professor. Além disso, ele conta que o seu relacio-

namento com Cássio deu tão certo porque eles se completam: “Nós somos o oposto em todos os sentidos. Ele é super calmo e tranquilo, já eu sou o falador, o extrovertido, o vulcão. Ele im-plode e eu explo-do. Então, isso é muito legal, porque a relação fica mais equili-brada”.

O tempo passa, o sentimento muda

Borboletas no estômago, mãos que tremem, boca que seca, palavras que fogem ao encontrar AQUELA pessoa. A paixão leva as pessoas a terem essas sensações. Os apaixonados esquecem tudo, não se importam com horários e compromissos, desde que estejam perto do seu amor. Mas quanto tempo dura uma paixão? O que vem depois dela?

Não se sabe ao certo quanto tempo ela dura. Algumas pesqui-sas apontam dois meses, outras dois anos. Mas, com certeza, ela

Walter e Cássio de férias em Maceió, em 1983

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não dura para sempre e os casais que ficam juntos por muitos anos precisam lidar com as transforma-ções dos sentimentos. Para Walter, o desejo sexual muda, se no início só de olhar para a pessoa você já se excita e quer transar em qualquer lugar, com o tempo as coisas se amenizam e a excitação não é mais imediata, ela é resultado de um somatório de energias, de palavras e carícias. O sexo passa a rolar quando o ambiente é propício para isso. “Agora eu amo o Cássio, antes era uma paixão muito doida e desenfreada, porque ele é bonito, italiano, aquela coisa toda. Agora é amor, uma coisa mais serena”, conclui o professor.

Walter destaca que os pro-gramas de finais de semana tam-bém mudam. Se antes, eles iam para a balada todas as noites, hoje já preferem ir ao cinema ou jantar na casa de amigos, para vol-tar cedo, porque estão cansados da semana de trabalho que tiveram. “Enve-lhecer juntos é

importante. Porque a gente já foi jovem e sarado, com disposição, mas hoje o corpo mudou, a bar-riga cresceu. Mas, o que acontece com um, acontece com o outro, então é mais fácil aceitar esse pro-cesso de envelhecimento”, relata Walter.

Nas novelas, no cinema e no jornalismo, somos bombardeados com cenas do amor romântico, o príncipe e a princesa que são feli-zes para sempre. Mas, a vida não é assim. Relações muito sólidas e sérias não são, necessariamente, sinônimos de pai e mãe em casa com seus filhos. Elas podem ser de

diversas formas, como entre dois homens ou duas mulheres, algo que só foi aparecer na mídia re-centemente. Depois do casamen-to, nem tudo são rosas. Muitos casais passam por inúmeras difi-culdades depois de dizerem sim no altar da igreja. Mas, histórias de amor da periferia também não costumam ser retratadas, sem os estereótipos de sempre. Nem to-dos podem registrar a passagem do tempo de sua família com linha-gens de sucessão ao trono ou dão à luz a Georges e Charlottes, mas guardam o seu amor na memória de cada um que os conhece.

Walter e Cássio em 2015 em uma exposição de arte, em Porto Alegre

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Uma crônica sem pretensão sobre o futuro

DE AGORAo tempo

por Amanda Kaster

Dois homens, um com quase 70 anos e outro com cerca

de 18, entram correndo em um DeLorean. Eles digitam no painel uma data e o capacitor de fluxo faz sua mágica, alterando a lei de tempo-espaço e os transportan-do direto para o futuro. Lembra alguma coisa? Há exatos 30 anos o filme De Volta Para o Futuro 2 estreava, e a chegada dos dois no dia 21 de outubro de 2015, às 07:28 da manhã, deixou muita gente imaginando como seriam os próximos anos e que grandes novidades eles trariam. Não é pouca coisa: o filme antecipa um aumento do uso de tecnologia ro-bótica - ainda que não tenhamos passeadores de cachorros de metal

- a biometria como identificação pessoal, roupas inteligentes (sem casacos autoajustáveis!) e óculos com câmeras, hoje concebidos na forma do famoso Google Glass, foram imaginados por Bob Gale e Robert Zemeckis nos anos oitenta.

Hoje, olhando para o que foi produzido, é impossível não rir sobre a ideia que eles tinham sobre o que seriam os anos 2000. Car-ros voadores (sempre eles!), skates voadores, advogados robôs, roupas autossecáveis e (ainda bem que este falhou): Tubarão 19. Pode-se pensar que é absurda a ideia que tudo continuará em linha reta, crescente, com as mesmas bases e tecnologias, que apenas vão se atualizando de tempo em tempo. Mais surpreendente ainda, olhan-

do pra trás, é a falta da Internet no filme: não há nenhuma menção sobre algo nem parecido. E pode haver algo mais marcante na nossa realidade atual?

No primeiro filme, quando Marty volta para a formatura do colegial de seus pais, já se podia olhar com o tempo passado, trans-corrido. Basta rever seus arquivos e buscar referências engraçadinhas que entretém o espectador, numa caricatura de pontos-chave que possamos reconhecer e que cons-troem a narrativa de forma aceitá-vel. Colocando uma piada sobre um presidente aqui, outra sobre as roupas que se usava, as marcas “do momento” que seriam impen-sáveis de não serem reconhecidas por todos e um pouco mais. Re-

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Universal Pictures

conhecer os erros e acertos é fácil depois de ocorridos; o pulo do gato é saber de antemão.

O mogul da Apple e mode-lo yuppie Steve Jobs disse, em 2005 para os alunos de Stanford, que “só é possível ligar os pontos olhando para trás. Você tem que acreditar que os pontos se liga-rão de alguma forma no futuro” e continuar. O desafio é saber o que se vai encontrar quando se liga a máquina do tempo. Se soubéssemos, não precisaríamos fazê-lo, e se há alguma coisa que os filmes de viagem no tempo nos ensinaram é que não vale a pena mexer com o que já passou, já que as consequências para o futuro podem ser desastrosas. O que não nos impede de imaginar.

Na física, espaço e tempo não são conceitos separados: o espaço-tempo curvo é um conceito que

se usa para estudar a relatividade. Aquela única equação que lembra-mos - mais da cultura pop do que efetivamente das aulas do colégio – E=mc², nos diz que a velocidade do tempo é relativa, dependendo da posição do observador. O que importa não é o que se vê, mas quem vê e como o interpreta.

•••

Assim como Júlio Verne pre-viu a construção do submarino em 1869 em seu livro 20 mil léguas submarinas (ainda que já existis-sem protótipos, os submarinos como conhecemos só foram uti-lizados na primeira guerra mun-dial), Arthur C. Clarke escreveu no final dos anos 1960 sobre um curioso ‘notepad’ em 2001: Uma Odisséia no espaço, em que se poderia “ler todas as notícias do mundo em um objeto de tama-nho ‘foolscap’ (quase um A4),

que teria pequenos retângulos referentes a cada jornal, e que, ao tocar por cima do retângulo es-colhido, este se expandiria para a leitura, e em outro toque voltaria a ser apenas um ícone”. O radar, imaginado por Hugo Gernsback vinte anos antes de sua patente e a bomba atômica de H.G. Wells, em 1914, confirmam a mesma história: boa ficção científica vem do bom conhecimento científico.

O que não impede que, da mesma maneira, previsões furadas para o futuro são o que mais se vê por aí (ô Mãe Dináh!). O pró-prio Verne escreveu em um artigo que no ano de 2889 haveria uma alternativa para os impressos: um jornal falado para os assinantes, que, a partir de conversas interes-santes com repórteres, políticos e cientistas, saberiam as notícias do dia. Ele acertou um dos maiores inventos do século XX: a televisão.

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Caffeine Crew

Só errou por meros 969 anos de margem... coisa pouca. E como se esquecer da frase de Bill Gates: “640kB de memória devem ser bastantes para qualquer um”?

A questão é que, por mais bem informado que qualquer um esteja, não há como acertar sempre na previsão do futuro. O próximo salto de tecnologia pode vir a qualquer momento e nos pegar de surpresa. A internet começou como uma rede fechada, usada para fins militares na Guerra Fria. Ninguém poderia imaginar a proporção que tomou ou os usos para que hoje é utilizada. Pelo me-nos, ninguém adivinhou a distân-cia dos longínquos caminhos que o Nyan Cat percorreu. O que é certo, e se comprova a cada dia, é que estamos cada vez mais depen-

dentes da tecnologia. Conversas, mensagens, pagamento de contas, compras, pedidos de comida, en-tretenimento, informação: tudo na palma da mão. Fazemos duas, três coisas ou mais com a desculpa de economizar... tempo.

Mas e o que se faz com todo esse tempo que se economiza com as tarefas diárias mediadas pela tecnologia? Vejo poucas pessoas trabalhando menos que seus pais trabalhavam em sua idade, apesar dos grandes avanços que tivemos nos últimos anos. Tirar férias uma vez por ano é lei, mas é um luxo que poucos com mais de um emprego conseguem aproveitar satisfatoriamente. Tenho certeza de que você, caro leitor, ao ver o desenho dos Jetsons na tela pelas manhãs pensava: “que maravilha

ter um robô para fazer as tarefas da casa e um carro voador para me locomover por aí!”. Nada de mais, todos gostamos da ideia de alcançar novos lugares que nunca vimos antes. O que devemos nos perguntar é quais tipos de problemas esse novo futuro trará. Sim, não é só você nem é coisa da sua cabeça: o mundo está cada vez mais com-plexo. É o que diz o físico americano Yaneer Bar-Yam em seu artigo Complexity Rising de 1997. Se não está fácil pra você, não está pra

ninguém.

Até o governo dos Estados Unidos e o Banco Mundial pro-curaram o professor para ajudá-los a lidar com a complexidade dos sistemas de saúde, educação e ajuda humanitária mundial. A resposta de Bar-Yam para estas questões vêm fundamentalmente de dois pontos: primeiro, o au-mento de complexidade é gradual e está acontecendo há milênios. Com a nova conexão entre povos a humanidade seguiu ficando cada vez mais complexa, mais intrin-cada, mais especializada. Para dar conta disso, criou sistemas mais complexos de governo, hierarquia e de processos para atender estas necessidades. O segundo: é possí-vel lidar com a complexidade do mundo, desde que se analise dois

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Geoff B

loom

- Gigaw

att Grap

hics

pontos: a escala e a complexidade deste sistema. Não é preciso temer nem se desesperar na resolução de problemas, só é necessário investir mais... (adivinhem!) tempo.

•••Pensar muito adiante não é

com você? Problemas complexos, divisões de tarefas, hierarquia, tabelas, metas, prazos, deadlines... consegue entregar tudo na hora? Está sempre comparando seus re-sultados aos outros? Sempre atra-sado pra tudo? Pesquisa realizada pela Universidade de San Diego, conduzida pelo Dr. Jeff Conte, mostra que as pessoas não conse-guem atingir metas simplesmente porque não conseguem calcular de forma acurada quanto tempo as tarefas vão levar, chamada de falá-cia de planejamento. Este é apenas um dos indicativos de um tipo de personalidade, que é mais calmo e tranquilo e não costuma seguir regras rígidas, chamada no estudo de tipo “B”. A conclusão do estu-do é que diferentes personalidades têm experiências de tempo de forma diferente de outras. Como você encara e processa o seu tem-po é único. O seu tempo é seu, de mais ninguém.

Em 2002, o inglês Mick Tunnicliffe era mais um desses pais que sonham ver os filhos jogando por um grande time profissionalmente. Resolveu não só se dedicar a ajudar seu filho de

nove anos a se tornar profissional, mas também apostou um bom dinheiro nesta ideia. Ele foi a uma casa de apostas na Inglaterra e cravou: seu filho um dia vestiria a camisa do Manchester United em um jogo profissional. Apostou 100 libras (R$ 475), aceitando as chances de 100 para 1 impostas pelos apostadores. Dez anos após fazer a aposta, ficou 10 mil libras mais rico ao ver seu filho Ryan entrando como meia e substi-tuindo Rooney em um jogo pela Copa da Liga inglesa. Se o rapaz algum dia jogar pela seleção, já há outra aposta valendo 35 mil libras em seu nome. Isto é sorte? Fé? Mera probabi-lidade estatística? Talvez apenas uma visão baseada nos esforços e acreditar potencialidades do que pode vir, com uma dose de cara-de-pau.

E o que fazer com todas essas informações semi-úteis sobre o pas-sado que você leu aqui? Talvez seja apenas um pouqui-nho de entreteni-mento ou um ema-ranhado de nadas que te fez perder tempo. Mas ainda acha que o futuro

é apenas uma ideia distante, sem conexão com o agora? Peter Dru-cker, Chief Warlock do Wizenga-mot da Administração falou um dia: “A única coisa que sabemos sobre o futuro é que ele será di-ferente” e “A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo”. Agora, quais são suas previsões para o fu-turo? E para o seu futuro? E o que você está fazendo para que elas deem certo? No final do arco-íris pode haver ouro, ou nada. Aposte. Eu também não encontrei nenhu-ma resposta para estas perguntas, mas quando se trata de imaginar o futuro até lá, fico com os bons livros de ficção.

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O relógio de ouropor Matheus Rosa

Epígrafe: “Muitos dos melhores repórteres tiveram ‘espírito romântico’, mas que, fosse como fosse, sempre foram uns sujeitos articulados, que devoraram um número considerável ou absurdo de livros, muitos deles de

ficção básica, que deve abastecer todo mundo que trabalha com palavras.” Marcos Faerman

O jovem militar estava montado em seu cavalo marrom de

raça, vestindo sua melhor farda, com a espada na bainha de prata presa ao cinto, onde também es-tava o coldre da pistola. Ele nunca tivera tanto orgulho de ser um membro do pelotão de Benjamin Constant como naquela manhã, no dia 15 de novembro de 1889. E foi com um gesto imensamente apreciado que ele tirou o relógio de ouro do bolso.

O relógio recém-comprado era simplesmente o instrumento mais belo que possuía. De origem francesa, com todo o acabamento decorado, uma corrente de prata e ponteiros firmes com movimento preciso, o Militar sabia que aquele pequeno objeto viraria um símbo-lo do que se passava ali.

No Campo de Santana, de onde o pelotão estava próximo, alguns civis assistiam àquela mo-vimentação sem entender muito bem a importância do aconteci-mento. O Marechal Deodoro da

Fonseca se aproximava, também com seus subordinados, e não de-morou muito a ser aclamado pelos presentes, após seu grito magnífi-co:

- Viva a República!

E o movimento prosseguiu, despedindo os ministros, instau-rando o Governo Provisório e colocando Deodoro da Fonseca como líder dos Estados Unidos do Brasil. E foi com imenso orgulho da sua participação naquele evento que o jovem militar do relógio imaginou quantas e quantas vezes contaria aquele acontecimento aos seus filhos, e, se Deus permitisse, aos seus netos.

Mas Deus não permitiu.

Alguns anos mais tarde, em 1914, aquele jovem militar se-ria morto em uma briga de bar, quando sacou a pistola contra um homem que criticava a república e foi esfaqueado pelas costas por um dos amigos de seu adversário. Porém, o relógio de ouro e tudo o que ele representava já havia sido

passado ao seu filho, então com dez anos.

A família se mudou imedia-tamente para o Rio Grande do Sul. Lembrando sempre da histó-ria do pai, o garoto crescera com grande sentimento ufanista e foi com muito orgulho que também se tornou militar. E foi todo esse sentimento de amor ao país que o levou as urnas a favor de Getúlio Vargas em 1930.

Com a vitória de Júlio Prestes, nenhum dos apoiadores de Vargas esperava menos do que uma Re-volução.

- Meu pai... – contava o jo-vem nas conversas sobre o assunto. – Meu pai me ensinou que nunca se deve desistir de um ideal de justiça.

- Seu pai está morto há anos... – retrucavam.

- Mas ele viveu bastante pra deixar comigo o espírito de luta e de amor pelo Brasil! – com a mão no bolso, o jovem militar

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acariciava o relógio de ouro, objeto que sempre carregava. – E eu não vou deixar esses paulistas corruptos acabarem com nosso país!

E foi tudo isso que levou o jovem a se vo-luntariar para as tropas gaúchas revolucionárias. Com pouca experiência, o jovem nunca tinha par-ticipado de uma batalha antes do Combate de Quatiguá, na divisa entre o Paraná e São Paulo, no dia 12 de outubro. Che-gando à cidade por volta das seis e meia da manha, os sol-dados gaúchos pararam na estação ferroviária, onde alguns membros da Brigada Militar estavam acam-pados, depois de uma troca de tiros com as Tropas Paulistas.

- Qual a situação? – pergun-tou o líder do batalhão do jovem do relógio a um tenente da Briga-da Militar, que segurava um pano ensangüentado em cima do rosto.

- Parece que os Legalistas es-tão em maior número. Entramos em combate com uma patrulha não muito grande, mas temos informação de que há vários ca-minhões de soldados chegando à cidade.

O líder do batalhão se dirigiu a um sargento próximo e deu a ordem:

- Organize uma patrulha montada e vão averiguar quantos eles são, dependendo da situação entraremos em contato com o Co-ronel para pedir reforços.

- Sim senhor! – respondeu o sargento.

- Os outros fiquem prepa-rados para qualquer coisa! – ter-minou o líder do batalhão, se afastando dali enquanto colocava munição em seu revólver.

O jovem do relógio sentou-se escorado em uma parede, com seu rifle apoiado no ombro. A ansie-dade pela proximidade do comba-te estava aumentando. Tentando se acalmar, ele passou a acariciar o relógio no bolso, de olhos fecha-dos, imaginando seu pai ali, ao seu lado, pronto para a luta.

Algum tempo depois, na-quele mesmo dia, o jovem olha-va para o movimento preciso do relógio. Faltavam alguns minutos para as quatro da tarde. Ele ain-da lembrava-se do pai, das histó-rias que ele contava e do orgulho que possuía de ter participado da Proclamação da República.

BANG

Um tiro despertou-o do transe. Logo outro fora dado. Aquele era o anúncio do Com-bate.

- Legalistas! – gritou um sol-dado, correndo para trás de uma coluna segurando o rifle. Os soldados da patrulha montada adentraram a estação. Os tiros prosseguiam. O combate havia começado.

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- São muito numerosos! Estão cercando a estação. Vamos precisar de reforços! – disse o sargento, desmontando do cavalo, ao líder do batalhão.

- Você! – respondeu o líder, apontando outro sargento. – Con-tate imediatamente o Comandan-te e peça reforço! – e se dirigiu para uma janela de revólver em punho, começando a atirar assim que sua vista permitiu.

O jovem do relógio foi com os outros soldados para trás das colunas, segurando o rifle, porém tinha medo de começar a atirar junto com os outros, na maioria mais experientes. Ele se sentou com as costas na coluna e come-çou a respirar profundamente.

O tenente da Brigada Mili-tar que vira antes, agora com um enorme pedaço de atadura no ros-to passou correndo e sentou por perto, atrás de outra coluna.

- É sua primeira vez em com-bate? – perguntou, antes de se virar e atirar com o rifle.

- Sim. – disse o jovem do re-lógio, engatilhando o rifle.

- Bem, rapaz. Fique tranqüilo. Eu vou cuidar de você. Pra co-meçar, vou te ensinar as regras... Número um...

O rapaz se virou para o te-nente, esperando ele falar, mas ele gritou:

- ATIRA!

O jovem se assustou e se virou para o outro lado, atirando do pior jeito possível usando a coluna como cobertura. A batalha prosse-guiu. O líder do batalhão atirava apenas com uma mão, em tiros rápidos e precisos. Embora em número muito menor, a experiên-cia valeu aos Revolucionários que conseguiam resistir. Pouco depois das dez da noite, os combates ces-saram.

- Devem estar se preparan-do para mais um ataque. – disse o tenente da Brigada Militar. – Não baixe sua guarda.

O jovem do relógio pas-sara a maior parte do combate atirando atrás daquela coluna e correndo pela estação buscando munição. Estava absurdamente cansado.

O Comandante chegou com os reforços de madrugada. Me-tralhadoras foram armadas e o jovem do relógio foi colocado para operar uma delas. Ao amanhecer do dia 13 ele olhava novamente para o relógio. “Acho que meu pai teria orgulho de mim” pensava. Os tiros recomeçaram de maneira esparsa e logo foram se intensifi-cando. O combate recomeçara.

O jovem respirou fundo, guardou o relógio e começou a atirar com a metralhadora. Agora de maneira mais enérgica, o jo-vem se sentia totalmente imerso na batalha. O tenente da Brigada

Militar ainda estava ao leu lado e foi o primeiro a socorrê-lo quando fora baleado no ombro direito.

- Merda! – disse o tenente.

O jovem do relógio apertou o objeto com força no bolso. A dor era insuportável. Ele caiu atrás da metralhadora. Respirava mal. O tenente o arrastou para trás de uma coluna e arrancou o lado da farda onde a bala se alojara.

- Isso vai doer muito! – disse o tenente, enfiando os dedos na ferida, que parecia se abrir por todo o corpo do rapaz. A bala saiu junto com muito sangue. O te-nente cobriu aquilo com um pano e disse para o jovem pressionar o ferimento, coisa que fez ainda incrédulo com a dor. Seu compa-nheiro assumiu seu posto na me-tralhadora.

O ultimo impulso do rapaz foi olhar para o relógio antes de desmaiar.

O jovem foi levado para uma farmácia onde os feridos estavam sendo atendidos e posteriormente para um hospital. Ele sofreu ain-da vários dias com a infecção e a febre, que o fazia delirar e sonhar coisas horríveis, lembranças da batalha misturadas com a morte de seu pai.

Por fim, no dia 25, o rapaz acordou em um estado melhor, ainda com o ombro enfaixado,

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mas sem febre. Ele ia sobreviver. Alguns minu-tos depois, o tenente da Brigada Militar entrou no quarto e puxou uma cadeira.

- O que... O que aconteceu? – perguntou o jovem do relógio.

- Você levou um tiro. – respondeu o te-nente

- Ah...

- Teve sorte de ser no ombro...

- E... E a Revolução?

O tenente abriu um largo sorriso.

- Washington Luís foi deposto ontem. Uma junta vai entregar o poder ao Getúlio Vargas.

- Então nós...

- Sim, guri. Nós vencemos.

O rapaz olhou para o lado e viu o relógio de ouro pendurado pela corrente na guarda da cama. Ele sorriu largamente também.

- Nós vencemos... – repetiu o jovem soldado.

Além das lembranças, aquele combate comprometeu parte dos movimentos do braço direito do jovem, que teve que abandonar a carreira militar. Embora o período seguinte tenha sido conturbado politicamente, o sentimento na-

cionalista e de orgulho do jovem pode ser passado, junto com o relógio, ao seu filho, que nascera em 1942.

E foi ensinando tudo ao filho que os dois viram o fim da Era Vargas, a sua volta triunfal, sua trágica morte, os abusos financei-ros do Governo JK e a tensão en-volvendo a renúncia do Presidente Jânio Quadros, em 1961.

O filho não se tornara militar, e, como já estava há muito tempo longe dessa carreira, o pai também não aprovava a possibilidade dos militares assumirem o controle do país. Além disso, o vice-presi-dente, quem legalmente deveria assumir, era João Goulart, o maior descendente da política popular de Vargas. Naqueles dias, os dois às vezes passavam horas na frente do rádio, mudando rapidamente de estação, atrás de informações sobre os rumos da presidência do país.

- Esses idiotas não sabem o que falam dizendo que o Jango é comunista. – dizia o pai.

- É coisa dos americanos. – respondia o filho. – Estão muito paranóicos com essa coisa de co-munismo.

- No meu tempo a gente já tinha resolvido isso com bala!

- Duvido muito que vá todo mundo ficar parado...

•••

No dia 27 de agosto, falando através da Rádio Guaíba, o Gover-nador do Rio Grande do Sul Leo-nel Brizola convocou a população a resistir contra a oposição à posse de Jango. O filho levantou-se imediatamente da poltrona onde ouvia o rádio e avisou o pai:

- Eu vou lá! Agora! – e foi cor-rendo até a porta do apartamento.

- Espera! – gritou o pai. –

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Toma cuidado, viu guri? Pegou o relógio?

O rapaz só levantou a corren-te e mostrou que o relógio estava em seu bolso. O pai se sentiu mais tranqüilo. Ele sabia do quanto de história tinha naquele objeto e não ia impedir o filho de escrever a sua parte.

Embora a população tenha pegado em armas para resistir aos militares cujos objetivos eram matar Brizola, esses aderiram ao movimento e logo Jango assumiria o poder em um regime parlamen-tar, que seria derrubado em 1963. Naquele dia, na frente do Palácio do Piratini, o filho protestou e gritou de revolver na mão pela Legalidade, escrevendo sua parte da história. Naquele dia também ele conheceu a mãe de seu filho.

O pai morreria em 1962, ví-tima de um infarto pouco depois do nascimento do neto. Apesar da Campanha em 1961, os militares tomaram o poder em 1964. O filho não abandonara a luta que aprendera com o pai, sendo levado para interrogatório em 1968. En-tão com cinco anos, seu filho pas-sava horas na frente da porta do apartamento, esperando ela abrir e o pai entrar, pronto para um abra-ço. Porém isso jamais aconteceu.

A mãe passou o relógio e to-das as histórias que ele carregava ao filho. Com muito esforço, con-seguiu desconstruir a boa imagem que o garoto tinha pelo regime, coisa que aprendia na escola. Po-rém, a própria personalidade dele refletia seus antepassados e não foi nenhuma surpresa vê-lo fazendo cartazes e saindo para apoiar o Mo-

vimento Diretas Já em 1983.

A abertura política só se con-cretizou totalmente com a nova constituição em 1988. Em 1990, o garoto, com o relógio no bolso, ainda apoiaria o movimento dos Caras Pintadas, pelo impeachment do Presidente Fernando Collor. Em 1991, seu filho mais velho nasceria. Em 1993, uma filha.

• • •

Em 2008, com cabelos bran-cos, usando óculos, e com o relógio já há muito tempo parado, o pai decidira dá-lo ao primogênito. Em-bora algum esforço ou outro fosse feito para que o garoto herdasse os sentimentos patrióticos e a vonta-de de lutar pelos ideais, aquele pai sabia que esse seria o mais decisivo dos momentos para a continuação da tradição de família. Ele tinha na

mente as poucas me-mórias de seu próprio pai quando adentrou o quarto do garoto, que lia um gibi e ouvia heavy metal, deitado na cama.

- Filho. Precisamos conversar. – disse o pai.

- Pode falar, velho. – respondeu o garoto, sem tirar os olhos do gibi.

O pai sentou na cama do primogênito. Ia falar, mas percebeu que a música o atrapalharia.

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- Posso desligar a música?

- Precisa mesmo?

- Sim.

- Ok, então.

O pai apertou o pause do rádio e recomeçou a falar:

- Filho, eu não sei se você sabe, mas nós tivemos a sorte de ser de uma família muito, muito especial.

O garoto não desviara os olhos da página.

- E, durante muito tempo, eu venho pensando em como... – con-tinuou o pai, se interrompendo ao perceber que o garoto não estava pres-tando a menor atenção nele. – Larga essa porcaria e me escuta!

O pai arrancou a revista do filho e a jogou longe.

- Ei! eu tava lendo, Pai!

- Por isso mesmo eu tirei ela de você. Nós estamos tendo uma conver-sa séria, e você precisa prestar atenção!

- Fala então... – disse o garoto, com expressão de raiva.

- Filho. Nós somos uma família muito especial. Viemos de uma longa linhagem de patriotas e militantes que sempre estiveram presentes nas lutas por ideais de justiça nesse país. Nunca deixamos de responder a um chama-do para lutar pelo Brasil e mesmo nas situações mais difíceis nunca desisti-mos de ver um país melhor, um país mais humano.

O filho não disse nada.

- E toda essa história, tem um símbolo. – o pai tirou o relógio do bolso.

O filho olhou para aquele objeto durante algum tempo, imaginando o quanto valeria tal peça. Porém, ele nem sabia se o pai o daria mesmo e, mesmo que o fizesse, vender poderia deixar o garoto em uma situação ruim com o seu “velho”.

- Este pequeno relógio me acom-panhou durante vários protestos pela abertura política nos anos oitenta. Antes disso, ele pertenceu ao seu avô, que muito lutou também contra o Golpe Militar e depois contra o Regi-me deles. Nunca voltou de um inter-rogatório em 1968.

O pai parou pra lembrar do seu próprio pai, de quem tinha pouquís-simas lembranças e que demorara muito para perder as esperanças de encontrar vivo. Após um suspiro, ele continuou:

- Antes disso, pertenceu ao seu bisavô, que foi militar e lutou ao lado dos Revolucionários da Aliança Li-beral em 1930, quando eles levaram Getúlio Vargas ao poder. Seu bisavô foi baleado em uma batalha dessa Revolução. Ele sobreviveu por pouco. E claro, o seu tataravô. O homem que comprou o relógio e participou da Proclamação da República. Sem ele, nada disso teria sido possível. E é por isso que esse símbolo é tão im-portante. O relógio de ouro marca toda a história de luta e glória da nossa família.

O jovem até gostara da história, mas agora já estava começando a ficar entediado. O pai enrolara a corrente e colocou o relógio na mão do filho. Parecia ter se preparado muito para aquele momento. Por fim, o pai disse:

- E agora, filho, que eu devo dá-lo a você. É a sua vez de escrever essa história. E eu sei que você o fará com orgulho. Lembre-se de sempre levar para sua luta. Leve com você eu, seu avô, seu bisavô e seu tataravô. Sei que você não vai me decepcionar. – e sorriu. – Acho que já te atrapalhei demais.

O pai ligou a musica e saiu do quarto. O filho, deitado, pensou nas palavras do pai com certa increduli-dade. Teriam mesmo seus ancestrais tendo feito tudo isso? Segurando pela ponta da corrente, ele ergueu o ob-jeto e o deixou pendurado acima de sua cabeça, perto dos olhos. Embora bonito, o relógio não estava com o horário certo e havia dezenas de corte-zinhos e arranhões. Por fim, o garoto tirou a sua conclusão:

- Que coisa mais idiota! – disse, jogando o relógio no chão.

E se levantou, saindo do quarto.

Minutos depois, a irmã entraria ali a procura de um livro e encontraria o objeto jogado no ta-pete. Curiosa, ela o olharia nas mãos e logo o levaria para si, admirando a peça.

- Que coisa mais linda!

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Era final do verão. O sol já estava passando do seu pico. Havia uma brisa agradável, que ajudava a refrescar aquela tarde de sábado. Estou na entrada do meu prédio es-perando minha irmã chegar. Minha vizinha se aproxima, uma senhora de cabelos brancos que normalmente está sentada na calçada do edifício vendo o movimento da rua e con-versando com quem passa pelo por-tão. Ela me cumprimenta, como de costume, e comenta: “vou dar uma caminhada agora, porque no fim de semana o tempo demora muito para passar. Durante a semana a gente até arruma coisas para fazer, mas final de semana parece que não pas-sa...”. Fico sem reação, sorrio e ela se despede. Enquanto ela se distancia, sua voz ressoa na minha cabeça “fi-nal de semana demora muito para passar”... Não para mim!

o nosso tempo

É A VIDApor Cleunice Schlee

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O TEMPO PASSA MAIS RÁPI-DO?

A mulher do zelador do prédio, Santa Ca-tarina Visosa, divide

os dias na entrada do edifício com minha vizinha de cabelos brancos. Para ela, hoje o tempo passa mais depressa: “Antes não passava tão rápido. A gente esperava para pas-sar o ano. Agora, quando a gente vê, já está na metade de um. [...] As pessoas têm muitos compro-missos, estão sempre muito ocu-padas, nem dá tempo para pen-sar”. Com 80 anos de idade, ela complementa: “antigamente nem todo mundo trabalhava fora. Ago-ra, com emprego e casa, o tempo passa muito rápido”. A professora universitária aposentada Enir Reis, de 62 anos, concorda que o tempo acelerou nos últimos anos. “Acho

que a gente é contagiada pelo mundo que tem pressa”, conclui.

A sensação sobre a passagem do tempo é muito pessoal. Há vários fatores que podem dar a impressão das horas, dos dias, dos meses passarem mais rápido. O físico da USP Claudio Furukawa, em uma reportagem exibida pelo Jornal Hoje, disse que algumas questões aceleram a nossa per-cepção do tempo. “A quantidade de informações que a gente tem: internet, celular, televisão, rádio... São muitas informações e ativi-dades ao mesmo tempo, então, muitas vezes, não se dá conta de fazer todas as coisas que se queria durante o dia, então parece que falta tempo para você”, explica.

Trabalhar, estudar, se formar, sair de casa, casar, ter filhos, enve-lhecer. As escolhas e, consequen-

temente, as histórias individuais fazem com que o tempo seja único para cada um de nós. O engenhei-ro de computação, Leonardo Gal-ski, tem 25 anos e trabalha com suporte na SAP, em São Leopoldo. Ele morava em Porto Alegre com a mãe e optou por se mudar para ficar mais perto do emprego. Leo-nardo comenta que nesses dois anos e meio em que vive sozinho, o tempo parece estar mais depres-sa. “Os meses passam mais rapi-damente, sem eu nem perceber. Acredito que devido às atividades diárias como cozinhar, limpar e organizar a casa, fazer compras... toda essa responsabilidade, que toma tempo, está só em mim, e isso muda a minha percepção so-bre o tempo. Ele passa mais rápido quando se está sozinho fazendo algo que se gosta. Em momentos de tédio, sozinho, o tempo parece se ‘arrastar’”, conclui.

É na adolescência onde o tempo começa a parecer se apres-sar. Inicia-se o ensino médio, sur-gem as dúvidas de qual profissão seguir, as cobranças do vestibular e a pressão para decidir o futuro,

“Sair da rotina pode ser uma das coisas mais li-bertadoras que a gente pode fazer.”

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somando-se a isso todas as histó-rias, traumas e peculiaridades que esta fase apresenta. A estudante de 22 anos do 8º semestre de nutri-ção na UFCSPA, Janine Martins, diz ter a impressão de que possuía mais tempo livre na infância e na adolescência. “O que mais influenciava era que eu não tinha preocupações que exigem respon-sabilidade e que geram ‘um certo’ estresse”, comenta. Janine está atualmente em dois estágios: das 8h às 12h no Hospital Conceição e, à tarde, no Sport Club Interna-cional.

As preocupações aumentam com a entrada na vida adulta e o refúgio é voltar a fazer atividades que fazíamos quando criança, se-gundo a estudante de jornalismo da UFRGS Gabrielle Müller: “No fim das contas, quando resolvemos aproveitar o dia, fazemos coisas da infância como assistir Sessão da Tarde de edredom no sofá, comer pipoca doce, ir passear no shopping, etc.. como se fosse uma busca incessante por aquele tempo que tínhamos e que se foi, escor-rendo pelas nossas mãos, à medida que fomos crescendo e assumindo maiores responsabilidades”.

É POSSÍVEL MEDIR O TEM-PO?

Se o mundo tem pressa, as pessoas mais ainda. Têm-se mais

acesso a informação e faz-se muito mais coisas. Karina Agra, Relações Públicas e profissional autônoma, é mãe de 2 filhos e tem 36 anos. Para ela, o tempo continua no mesmo ritmo, pois sempre teve uma vida agitada e cheia de ati-vidades: “Desde muito cedo faço várias coisas ao mesmo tempo”.

Mas qual é o ritmo do tempo? O primeiro e óbvio apontamento seriam as badaladas do relógio: segundos, minutos, horas. No en-tanto, se refletirmos mais sobre o assunto, a pergunta se torna mais complexa e a resposta vai depen-der da rotina de cada um. Na maioria dos casos, o dia é dividido entre trabalhar, estudar e os mo-mentos de lazer.

Se pudessemos repartir por turnos a semana, a assistente de RH no Grupo JMT, Caroline Damasceno, de 21 anos, dividiria a rotina semanal entre trabalho durante o dia, e ficar em casa com a família e organizando a vida à noite. “No fim de semana, dedico meu sábado ao CLJ da Paróquia São Miguel Arcanjo e o domingo ao meu namorado e a minha fa-mília”, afirma ela, que se formou no final do ano passado em Ges-tão de Recursos Humanos. Apesar da pouca idade, Caroline deseja continuar estudando e gostaria de ter mais tempo para investir em si mesma: “Em cursos, lazer e

conhecimento para minha vida, porque isso ninguém pode tirar de mim”.

Se por um longo período os estudos ditam as atividades do nosso dia, quando chega a mater-nidade o foco acaba por voltar-se aos filhos, alterando a rotina da família. Karina Agra mudou o centro das suas ocupações há sete anos com o nascimento de Pedro José, e, quatro anos atrás, o ritmo acelerou com a chegada de sua filha Ana Maria. Karina trabalha em casa. Por este motivo, ocorrem diversas interferências na progra-mação cotidiana. “Em dias típicos, inicio meu dia cedo, arrumando as crianças para a escola e fazen-do o café da manhã. Começo a trabalhar antes das 9h e sigo até o horário do almoço. Prefiro atender os clientes fora no turno da tarde. Recebo as crianças pelas 6h da tar-de e já engato o modo mãe/dona de casa: brincadeira/jantar, banho, tema, oração e soninho dos filhos. Após adormecerem, tenho um tempo para as minhas coisas pes-soais”, exemplifica.

Além da maternidade, outro grande pico que altera a rotina hu-mana é a aposentadoria. A ex-pro-fessora da FURG Enir Reis, de 62 anos, sempre teve uma vida agi-tada. Se formou em Oceanografia na década de 70, fez doutorado na Inglaterra, coordenou o laborató-

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rio de pesca artesanal e o progra-ma de treinamento da ONU para profissionais do meio ambiente na FURG e viajou pelo mundo para participar de conferências e seminários sobre oceanografia. Enir tem um filho e se aposentou há 4 anos. Ela continua bem ativa e dedica seu tempo entre momen-tos de lazer e aproveitando os dois netos, de um e quatro anos: “Nos dias de semana faço academia, pilates e caminhada, cuido da casa, encontro com as amigas, vou às compras ou só olho as vitrines e vejo os netos. Nos finais de sema-na, janto com meus amigos, e, no domingo, almoço com a família.

Leio bastantes livros, revistas e jornais; vejo televisão; vou ao cinema; faço aulas de bor-dado - que pra mim é um de-safio - e planejo viagens”.

A octoge-nária Santa Ca-tarina diz que sempre preci-samos buscar a

felicidade. “Não importa quantas coisas a gente faça, nunca pode-mos deixar de nos divertir, senão a vida cai na rotina de só trabalhar e estudar. Tem que aproveitar a juventude, a mocidade, porque depois passa”, conclui.

Solução: mais horas em um dia?

O ser humano realiza várias atividades por dia. Trabalhar, estu-dar, cuidar dos filhos e/ou da casa são compromissos que, em geral, ocupam o centro das atenções humanas. Filmes, séries, livros, futebol, esportes, internet, celu-lar, vida social... Os momentos

de lazer, normalmente, ficam em segundo plano. Seria necessário então o dia ter mais do que 24 horas?

“Não. Acho que deveríamos saber gerir melhor nosso tempo, dando importância maior e de-signando mais tempo para aquilo que nos faz sentir melhores, seja o que for. Infelizmente somos en-golidos pela máquina e passamos a vida achando que o dia deveria ter mais horas, a semana mais dias e o ano mais semanas, quando na verdade nós que deveríamos de-sacelerar um pouco e curtir mais os minutos que temos para fazer aquilo que gostamos”, afirma a es-tudante de jornalismo da UFRGS, Gabrielle Müller.

Já Caroline Damasceno dis-corda: para ela, 24h não são sufi-cientes. “Na maioria das vezes não consigo concluir todas as minhas atividades em um dia”. Karina Agra concorda: “Só se [as horas] fossem exclusivas para dormir”, brinca.

O psicólogo Ari Rehfeld, em uma reportagem para o Jornal Hoje, explica que o homem, se quiser, pode modificar a sua re-

“Não importa quantas coisas a gente faça. o importante

é nunca deixar de se divertir.”

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lação com o tempo: “Ele é capaz de encompridar ou diminuir sua sensação de tempo. Se você for pro meio da mata, sem celular, o tempo vai mudar. Você começa a viver o tempo da natureza. O dia será diferente do que em uma grande cidade”.

MAS, AFINAL, O QUE É O TEMPO?

No dicionário, o termo “tem-po cronológico” se refere ao que é contado nos calendários, medido pelos relógios e pela passagem natural do tempo. No dia-a-dia, a palavra recebe uma definição mais filosófica e pessoal. O enge-nheiro de computação, Leonardo Galski, afirma que o tempo “É uma invenção do homem para ter uma falsa noção de que pode ter controle absoluto sobre sua vida, usando a desculpa de ser um mé-todo para organização pessoal”. Na mesma levada, o analista de suporte Anderson Stefanski conta que o tempo não é aquilo que vemos, mas algo que vivemos. “Dependemos constantemente dele, mas nem sempre sabemos aproveitá-lo bem”, diz o estudante

de 22 anos.

Com uma resposta mais emo-cional, Gabrielle Müller assegura que o tempo é a es-sência da vida: “É o que faz tudo se mo-ver e a vida ocorrer. [...] Acho que o tempo é a entidade fundamental da vida. É o que faz as coisas girarem e acontecerem para nós”. “É a consciência de estar e ser alguém no mundo. Acho que se eu ficasse em estado vegetati-vo, perderia essa consciência. O tempo deixaria de existir para mim” conclui Karina Agra.

Respostas pragmáticas, oti-mistas, filosóficas e pessoais. Po-demos concordar ou não com as definições temporais apresentadas aqui. O que o tempo representa para cada um de nós não pode ser medido, somente sentido: está no âmbito da percepção individual.

A maneira como lidamos com o tempo está intimamente ligada com a forma que vivemos. Pas-sam-se horas, semanas, meses, dé-

cadas fazendo diversas atividades ao longo do dia, do ano, da vida, em um ritmo acelerado, pressio-nado pela pressa, num mundo tensionado entre o normal e o caótico. Temos a impressão de que o tempo pode nos dominar, mas, na verdade, é o ser humano quem tem a capacidade de controlá-lo. A vida é o nosso tempo. E a morte, a vitória do tempo sobre nós.

“O reencontro é a vitória de um senti-mento sobre as imposições do tempo”

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O TEMPO

Sinto que chegas para me

assustar

Que passas sem que eu

nada faça

Não vejo, mas penso te

ver voar

Sinto se vivo e morro se

desisto

Amanhã, depois ou tal-

vez

A vida é nossa máquina

do tempo

Posso voltar ou me es-

quecer de vez

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por Juliano Marchant, Marcelo Carôllo de Oliveira e Marina Bitencourt

Se tem idade para ser bandido tem idade

pra ir pra cadeia.

E se fosse contigo ou com alguém da tua fa-mília? Aí tu ia querer que fosse preso, não é?

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São esses e outros argu-mentos que levam al-guns brasileiros a serem

a favor da redução da maioridade penal. Segundo eles, 2 (dois) anos a menos faria a sociedade brasileira melhor. Será? 24 me-ses salvariam os jovens ou nossas famílias? A verdade é que nosso sistema judiciário é falho, e o car-cerário mais ainda. Estar epreso não muda ninguém. Esconde o problema.

Atualmente, a maioridade penal no Brasil está definida como 18 anos, essa determinação consta no artigo 228 da Constituição Fe-deral que contém o seguinte texto:

“Art. 228. São penalmente

inimputáveis os menores de de-

zoito anos, sujeitos às normas da

legislação especial.”

Esse artigo será alterado caso o Projeto de Emenda Constitu-cional 171/93 seja aprovado no Congresso, excluindo a neces-sidade de “legislação especial”. Hoje a penalização de menores responsáveis por ato infracional é baseada no Estatuto da Criança e do Adolescente, dessa forma, ao invés de serem enviados a presí-dios comuns os jovens infratores cumprem penas em fundações de apoio, no Rio Grande do Sul estes

jovens são encaminhados à FASE.

A Fundação de Atendimen-to Socioeducativo foi criada em 2002 a partir da Lei Estadual nº 11.800, de 28 de maio de 2002 e do Decreto Estadual nº 41.664 – Estatuto Social, de 6 de junho de 2002, consolidando o processo de reordenamento institucional iniciado com o advento do Esta-tuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/90), o qual também provocou o fim da an-tiga Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem), criada em 1968. Segundo dados de março de 2015 da própria instituição, há no sis-tema FASE 1.180 jovens sob suas responsabilidade, sendo 1.137 do sexo masculino e 43 do sexo fe-

minino. Porto Alegre concentra o

maior número, com 51,69% dos jovens, os 48,31% restantes cum-prem medidas socioeducativas em unidades do interior do estado.

As unidades estão localizadas nas

cidades de Caxias do Sul, Novo

Hamburgo, Passo Fundo, Pelotas, Santa Maria, Santo Ângelo, São Leopoldo, e Uruguaiana .

Conhecer o sistema FASE mostra que há muito mais espi-nhos do que flores no caminho dos jovens infratores e que a há uma necessidade imensa de

olhar para esses jovens antes que cheguem às fundações de apoio. Dos mais de mil jovens que se en-contram sob medidas protetivas, apenas 9,92% chegou ao ensino médio, dos quais só 0,51% ao terceiro ano. A grande maioria, 80%, se quer concluiu o ensino fundamental.

Diante de tamanha vulnerabi-lidade conversamos com a psicó-loga Sandrali Bueno, que trabalha na FASE desde 1969 para saber se de fato a redução da maioridade é a solução para a segurança pública e saber como isso afetaria a vida dos jovens.

Com base no trabalho de-senvolvido na fundação, qual seria o impacto da redução da maioridade penal para a juven-tude, caso a PEC 171 seja a pro-vada?

Depende de que juventude estamos falando. Eu falo do ponto de vista de quem nunca viu ju-ventude rica e branca ser alvo de

qualquer sansão por ter cometido

delitos, ou atos infracionais. O máximo que presenciei foi enca-minhamento para clinica parti-cular para ser “tratado”. A lei no que diz respeito ao atendimento socio-educativo segue o mesmo “arbitrário cultural” que funda a

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sociedade brasileira, no conceito de Roberto da Matta, ou seja: ”você sabe com que está falando?”

O impacto continuará sendo o mesmo de 40 anos atrás. Crian-

ças e adolescentes pobres e pretos

sendo vítimas de uma sociedade hipócrita, racista e colonialista que finge cuidar de sua infância e juventude através de programas

falidos que só servem para reite-

rar os mesmos procedimentos do tempo da escravidão. Hoje temos procedimentos modernos, quebra de paradigma, mas o efeito na in-

fância e na juventude desassistida continua o mesmo e a violência estrutural mais violenta ainda por-que se institucionalizou.

Hoje os jovens são mais ví-timas do que causadores de vio-lência. Contudo, quem defende a redução acredita na melhora da segurança pública. Reduzir a idade penal aumentaria a se-gurança? Qual a consequência disso?

Todos os estudos e estatís-ticas pelo mundo a fora provam que rebaixamento de idade penal

não tem influência positiva para o desenvolvimento da sociedade, muito menos na questão da segu-rança. O problema é que quem é a favor analisa do ponto de vista da violência individual, ou seja: e se fosse uma filha tua, ou teu filho ou um parente que fosse morto por esses delinquentes? O que tu farias? Mas ninguém pergun-

ta ou responde o que fazer com

os milhares de jovens e crianças negras e pobres que são mortos pelo Estado, pela sociedade, pela falta de políticas públicas, pela violência estrutural, pelo racismo,

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pela intolerância. As consequên-cias são desastrosas, mas, no meu entendimento, há um projeto de privatização do sistema carcerário. Então, “quanto mais preso, me-lhor para o sistema!”.

Essa estatística tem cor e clas-se.

Seria possível afirmar que a juventude negra é a mais atingi-da pela PEC 171?

Sim é a juventude negra a mais atingida. E isso não é algo ao acaso. Aliás nada é ao acaso em se tratando da população negra. É só examinar com atenção e sagacida-de. Daqui há dez ou vinte anos a população brasileira será na gran-de maioria formada por idosos e crianças. Ou seja a juventude terá que estar preparada e muito bem preparada para suprir as necessi-dades tecnológicas para dar conta dessa demanda. Ora, se a popula-ção negra que é a maioria e se os jovens negros estão sendo dizimados o que vai sobrar? Quem irá para o mercado de trabalho cada vez mais escasso? É a lei cruel do capitalismo cujas entranhas e garras sufocam e matam as possibilidades de criar-se novas formas de produção e de desenvolvimento realmente sus-tentável do ponto de vista huma-nitário, cooperativo, solidário.

Na tentativa de barrar a aprovação da da PEC 171 e de esclarecer dúvidas sobre a responsabilização de jovens por atos infracionais ONGs, asso-ciações comunitárias e entidades construíram 18 razões para ser contra a redução da maioridade penal. O número é simbólico, pois faz referência a idade atual-mente para definira maioridade diante de ato infracional.

1°. PORQUE JÁ RESPONSA-BILIZAMOS ADOLESCENTES EM ATO INFRACIONAL

A partir dos 12 anos, qual-quer adolescente é responsabili-zado pelo ato cometido contra a lei. Essa responsabilização, executada por meio de medidas socioeducativas previstas no ECA.

2°. PORQUE A LEI JÁ EXISTE. RESTA SER CUMPRIDA!

O ECA prevê seis medidas educativas: advertência, obriga-ção de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liber-dade assistida, semiliberdade e internação. O adolescente pode ficar até 9 anos em medidas so-cioeducativas.

3°. PORQUE O ÍNDICE DE REINCIDÊNCIA NAS PRI-SÕES É DE 70%

As taxas de reincidência nas penitenciárias são de 70% enquanto no sistema socioedu-cativo estão abaixo de 20%.

4°. PORQUE O SISTEMA PRI-SIONAL BRASILEIRO NÃO SUPORTA MAIS PESSOAS

O Brasil tem a 4° maior população carcerária do mundo e um sistema prisional super-lotado com 500 mil presos. Nosso sistema penitenciário não tem cumprido sua função social de controle, reinserção e reeducação dos agentes da violência. Ao contrário, tem demonstrado ser uma “escola do crime”.

5°. PORQUE REDUZIR A MAIORIDADE PENAL NÃO REDUZ A VIOLÊNCIA

Dados do Unicef revelam a experiência mal sucedida dos EUA. Os jovens que cumpri-ram pena em penitenciárias voltaram a delinquir e de for-ma mais violenta. O resultado concreto para a sociedade foi o agravamento da violência.

18 RAZÕES PARA SER CONTRA A REDUÇÃO

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Ouvidos: é isso que os adolescentes marginalizados

querem e devem ser. Afinal, são os maiores afetados pelas medi-das. Para isso, fomos até a ONG Pequena Casa da Criança, na Vila Conceição, conhecer Fer-nando*.

Cabelos descoloridos, por baixo do boné virado para trás e “fã número um” da Mc Pocahontas. é essa a primeira impressão do Fernando que

conhecemos. Visitamos ele na

ONG Pequena Casa da Criança,

localizada na Vila Conceição.

Uma vez por semana Fernando sai do Partenon, onde mora, e cumpre um turno de medida socioeducativa na ONG. Quan-do perguntado sobre o que ele faz lá, ele diz “eu ajudo”.

A coordenadora* da Peque-na Casa da Criança explica que

ele ajuda nos serviços gerais,

como alcançar e carregar coisas,

organizar. E conta também que

não tem nenhum problema com Fernando. Aliás, com quase ne-nhum menor encaminhado pelo CREAS - Centro de Referência Especializado em Assistencia Social.

9°. PORQUE REDUZIR A MAIORIDADE PENAL É TRA-TAR O EFEITO, NÃO A CAU-SA!

A constituição brasileira assegura nos artigos 5º e 6º direitos fundamentais como educação, saúde, moradia, etc. Com muitos desses direitos negados, a probabilidade do envolvimento com o crime aumenta, sobretudo entre os jovens.O adolescente margina-lizado é fruto de um estado de injustiça social.

10°. PORQUE EDUCAR É ME-LHOR E MAIS EFICIENTE DO QUE PUNIR

As causas da violência e da desigualdade social não se resol-

verão com adoção de leis penais

mais severas. O processo exige

que sejam tomadas medidas

capazes de romper com a bana-

lização da violência e seu ciclo.

Ações no campo da educação podem diminuir da vulnerabili-dade de centenas de adolescen-tes ao crime e à violência.

11°. PORQUE REDUZIR A MAIORIDADE PENAL ISEN-TA O ESTADO DO COMPRO-MISSO COM A JUVENTUDE

6°. PORQUE FIXAR A MAIO-RIDADE PENAL EM 18 ANOS É TENDÊNCIA MUNDIAL

De uma lista de 54 países analisados, a maioria deles ado-ta a idade de responsabilidade penal absoluta aos 18 anos de idade, como é o caso brasileiro.

7°. PORQUE A FASE DE TRANSIÇÃO JUSTIFICA O TRATAMENTO DIFERENCIA-

DO

A definição do adolescen-te como a pessoa entre 12 e 18 anos incompletos implica a incidência de um sistema de justiça especializado para responder a infrações penais quando o autor trata-se de um adolescente.

8°. PORQUE AS LEIS NÃO PODEM SE PAUTAR NA EX-CEÇÃO

Os jovens infratores são a minoria, no entanto, é pen-sando neles que surgem as

propostas de redução da idade

penal. Cabe lembrar que a

exceção nunca pode pautar a

definição da política criminal e muito menos a adoção de leis, que devem ser universais e valer para todos.

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O CREAS é responsável pelo Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Li-berdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade. O Serviço tem por finalidade prover atenção socioassistencial e acom-panhamento a adolescentes e jo-vens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, determinadas judicialmente. É o

CREAS que encaminha à ONG

Pequena Casa da Criança os ado-lescentes a cumprir pena.

Pela ONG já passaram 12 menores infratores, e apenas um teve problemas e não conseguiu cumprir a medida. A instituição disponibiliza 10 vagas ao CREAS:

5 pela manhã e 5 pela tarde. As

infrações cometidas pelos menores

que passaram por lá são em geral produção e tráfico de drogas, fur-to, receptação dolosa. Quando a visitamos, somente Fernando es-tava inscrito, onde iria cumprir 8 semanas de serviço, comparecendo todas as quartas feiras pela manhã.

Encaminhamento para o mer-cado de trabalho pelo programa Jovem Aprendiz.

O jovem que participa do

programa trabalha 4 turnos por

semana, no turno inverso a escola,

O Brasil não aplica as po-

líticas necessárias para garantir às crianças, aos adolescentes e jovens o pleno exercício de seus direitos. o Que cria uma socie-dade desigual.

12°. PORQUE OS ADOLES-CENTES SÃO AS MAIORES VITIMAS, E NÃO OS PRINCI-PAIS AUTORES DA VIOLÊN-CIA

Os homicídios de crianças e adolescentes brasileiros cres-ceram vertiginosamente nas últimas décadas: 346% entre

1980 e 2010. De 1981 a 2010,

mais de 176 mil foram mortos e só em 2010, o número foi de 8.686 crianças e adolescentes assassinadas, ou seja, 24 POR DIA!

13°. PORQUE, NA PRÁTICA, A PEC 33/2012 É INVIÁVEL!!

A Proposta de Emenda Constitucional quer alterar os artigos 129 e 228 da Consti-tuição Federal. Assim os ado-lescentes continuarão sendo julgados nas varas Especiali-zadas Criminais da Infância e Juventude, mas se o Ministério Publico quiser poderá pedir para ‘desconsiderar inimpu-

tabilidade’, o juiz decidirá se

o adolescente tem capacidade

para responder por seus delitos.

Seriam necessários laudos psi-cológicos e perícia psiquiátrica diante das infrações. A PEC apenas delega ao juiz a respon-sabilidade de dizer se o adoles-cente deve ou não ser punido como um adulto.

14°. PORQUE REDUZIR A MAIORIDADE PENAL NÃO AFASTA CRIANÇAS E ADO-LESCENTES DO CRIME

A redução da maiorida-

de penal não visa a resolver o

problema da violência. Apenas

fingir que há “justiça”. Um au-

toengano coletivo quando, na

verdade, é apenas uma forma

de massacrar quem já é massa-crado.

15°. PORQUE AFRONTA LEIS BRASILEIRAS E ACORDOS INTERNACIONAIS

Vai contra a Constituição

Federal Brasileira, a Convenção

sobre os Direitos da Criança e

do Adolescente da Organização

das Nações Unidas (ONU) e a

Declaração Internacional dos

Direitos da Criança compro-

missos assinados pelo Brasil.

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e na sexta feira comparece a ONG para ter orientações profissionais e capacitação teórica e recebe meta-de de um salário mínimo. No final de dois anos de contrato, ganha um diploma de auxiliar adminis-trativo. Hoje em dia 50 jovens estão envolvidos neste projeto na ONG. Fulana* conta que um dos adolescentes infratores, após cumprir pena na ONG, entrou no projeto e está se dando “muito, muito bem” no emprego. Os jo-vens aprendizes podem ter ou não

cumprido uma pena, este projeto

é para capacitar adolescentes para o mercado de trabalho. Se algum adolescente foi condenado por algo, isso é indiferente na hora de conseguir trabalho por meio deste programa, pois essa informação não é passada. O adolescente con-ta no ambiente de trabalho se tiver vontade.

Fernando é um menino de poucas palavras. Enquanto con-versávamos e tirávamos fotos, me-xia em seus 4 anéis da mão esquer-da incessantemente. Falamos sobre a família, escola. Apesar de ter 16

anos, está no 6º ano do ensino fun-

damental. Mora com a mãe, padras-

to e irmão mais novo no bairro São José. Passeava com a irmã mais velha em um shopping de Porto Alegre quando tentou furtar um

16°. PORQUE PODER VO-

TAR NÃO TEM A VER COM

SER PRESO COM ADULTOS

O voto aos 16 anos é

opcional e não obrigatório,

direito adquirido pela juven-

tude. Ele pode votar aos 16,

mas não pode ser votado.

17°. PORQUE O BRASIL

ESTÁ DENTRO DOS PA-

DRÕES INTERNACIONAIS

Das 57 legislações analisa-

das pela ONU, 17% adotam

idade menor do que 18 anos

como critério para a definição

legal de adulto.

18°. PORQUE IMPORTAN-

TES ÓRGÃOS TÊM APON-

TADO QUE NÃO É UMA

BOA SOLUÇÃO.

O UNICEF expressa sua

posição contrária à redução

da idade penal. A Organiza-

ção dos Estados Americanos

(OEA) comprovou que há

mais jovens vítimas da crimi-

nalidade do que agentes dela.

fonte:https://18razoes.wordpress.com/18-razoes/

item de uma loja, mas foi pego pelo segurança. Diz “morri de vergonha”. Foi chamada a polícia, que o deteu e até sua irmã poder o buscar. “Meu maior medo era que minha irmã não fosse e eu ficasse ali” diz Fernando. Ao chegar em casa, aconteceu o que já esperava: sua mãe brigou com ele.

Esperou a decisão do juizado em casa, que durou cerca de 6

meses. Sobre a possibilidade de ir

para a FASE fala “morria de medo.

A gente as coisas horríveis que

acontece lá”. Mas não foi neces-sário, sua medida socioeducativa seria comparecer a Pequena Casa da Criança semanalmente. O que tu acha das prisões aqui no Brasil? Ah, são horríveis né. Hoje só pode ser preso quando se tem 18 anos ou mais, mas es-tão querendo baixar pra 16, tu é a favor disso? Acho que sim. Mas daí tu seria preso. É… acho que então só para os crimes mais graves, né. *Fernando é um pseudônimo dado para preservar a identidade do en-trevistado.

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ENTREVISTA – Vera Lúcia Deboni, 3º Juizado da Infância e da Juventude

Foram quarenta e dois votos a favor e dezessete contra. Assim, no dia 31 de março de 2015, a Comissão de Constituição e Jus-tiça (CCJ) da Câmara aprovava a admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional 171 (PEC 171), que reduz a maioridade pe-nal de 18 para 16 anos.

Agora, a PEC avança para uma série de sessões de discussão. Serão, ao todo, 40 encontros de uma comissão de deputados. Caso seja mais uma vez aprovada, a pro-posta seguirá seus trâmites entre o plenário e o Senado e pode chegar

até o Supremo Tribunal Federal — estágio final, onde a proposta poderá, aí, entrar em vigor.

Para esclarecer a constitucio-nalidade da PEC 171, a Sextante entrevistou a juíza Vera Lúcia Deboni, do 3º Juizado da Infância e da Juventude. A jurista é referên-cia nas questões que envolvem o Estatuto da Criança e do Adoles-cente.

Juridicamente, como está HOJE a questão do menor in-frator?

Hoje, o Brasil tem a maiori-dade penal fixada em 18 anos. Isso é decorrente de uma convenção da ONU, assinada pelo Brasil em

1989. A nossa constituição foi feita em 1988. O constituinte da época, já sabendo da intenção da ONU de criar a Convenção Inter-nacional dos Direitos da Criança, já colocou na Constituição Federal aquilo que o Brasil viria a assinar um ano depois. No artigo 228 do código, que repete a convenção, o Brasil faz uma opção política pela maioridade penal ser fixada aos 18 anos. As pessoas abaixo dessa idade, ficou definido, seriam regi-das por uma lei própria, o estatuto da criança e do adolescente e seus desdobramentos.

Essa lei pode ser alterada?

Nós temos outro argumen-to jurídico importante. O Brasil fez uma opção por Cláusulas Pétreas na sua constitui-ção, que são leis que não podem ser alteradas pelo legislador ordinário, pelo congres-so. Só podem ser alteradas

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por uma nova constituinte. Essas são as cláusulas que dizem respeito aos direitos humanos. Na medida em que nós temos direitos que estão reconhecidos como cláusulas pétreas, nós temos um argumento jurídico de que a redução atinge também uma cláusula pétrea.

A redução da maioridade, como seus defensores apontam, poderia representar ganho na questão da segurança pública?

No Brasil, nós temos hoje em torno de 23 mil adolescentes pri-vados de liberdade. Entre 12 e 21 anos. No sistema prisional adulto, nós temos em torno de 600 mil presos. A população carcerária adulta é infinitamente superior. Então este argumento de que a redução da maioridade penal trará uma sensação de segurança pú-blica é absolutamente falacioso. A segurança pública é muito mais do que isso.

E a PEC 171?

Existe a possibilidade legal que, uma vez aprovada esta emen-da, a 171 (ela é um estelionato tão grande que até o número dela é o crime do estelionato) seja

apreciada pelo STF, para decidir

sobre a sua constitucionalidade.

Atualmente, ela está longe disso.

Deve passar agora por 40 sessões

de discussão. Está na 18ª. Feita a

discussão, ela vai à Câmara de De-putados. Se aprovada, vai para o

Senado. Se aprovada, vai passar de

novo pela Constituição de Justiça

do Senado. No pior dos mun-

dos (que nós apostamos que não

aconteça), se houver aprovação da

PEC, ela pode sim ser discutida no STF.

O que acontece com o me-nor infrator hoje?

Se o ato é cometido entre os 12 anos completos e dos 18 anos

incompletos, o adolescente res-

ponde pelo crime que cometeu,

que aqui tem o nome de ato infra-

cional. Ele vai responder por duas

formas: se houver a prisão em

flagrante, ele vai ser imediatamen-

te apresentado ao promotor. O

promotor vai ouvir o adolescente,

já ciente da apuração policial, e, se o promotor compreender que este jovem apresenta grave amea-ça ou se for constatado que ele é reincidente, ele pode apresentar

acusação contra o jovem e pedir a sua internação provisória.

Quais são as penas que esse adolescente pode ser sentencia-do a cumprir?

São elas: a advertência; a re-paração do dano; a prestação de serviços à comunidade (até seis meses, com oito horas por sema-na) ou o acompanhamento em liberdade assistida (que tem prazo mínimo de seis meses e máximo de três anos).

Se o adolescente cumprir corretamente as medidas de meio aberto, o processo é arquivado. Se ele não cumprir, o processo segue. Aí, a vítima será ouvida. As teste-munhas serão ouvidas e vai haver a sentença. E é aí que ele pode ser internado em meio fechado.

Se o caso for de internação em meio fechado, a reclusão na FASE, qual a pena máxima pre-vista?

A medida não tem tempo fixo. Ela começa com a perspectiva de durar três anos, independente do crime. Em tese, se o adolescen-te for condenado por latrocínio, que é o crime mais grave, ou por

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roubo, ele terá como pena mínima três anos. Quem resolve quanto tempo ele vai ficar é o juiz que sentenciou, conforme o menor for apresentando melhora ou piora.

O que acontece se o adoles-cente for condenado ainda me-nor e, durante o cumprimento da pena, atingir a maioridade?

Se o adolescente condenado passar para a maioridade, ele segue

no sistema infracional. Ele nunca

será transferido para o sistema

prisional. Cumprirá a sua pena no

mesmo local, sem ser transferido

para um presídio, por exemplo.

Inclusive, temos em Porto Alegre uma unidade da FASE que é de jovens adultos, de adolescente que cometeram um delito antes dos 18 anos e que seguem cumprindo a sua pena depois dos 18 anos.

Que tipos de trabalhos são feitos na FASE visando a resso-cialização, educação e profissio-nalização do menor infrator?

A FASE ainda tem dificulda-des em garantir a profissionaliza-ção para os privados de liberdade. Hoje, nós temos em torno de 40% que estão em alguma for-mação profissionalizante. No Rio

Grande do Sul, entretanto, 100% estão na escola. Todas as unidades têm dentro delas uma escola que atende aos adolescentes privados da liberdade.

É correto se dizer que as

chances de ressocialização de um

menor infrator são muito maio-

res em uma unidade da FASE do

que em um presídio comum?

Vou te dar um exemplo:

tem esse adolescente, que havia

cometido uma infração e foi dire-cionado para a FASE. Durante o cumprimento da pena, ele atingiu

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a maioridade e, após os 18 anos, ainda dentro da unidade, se

envolveu em

uma confusão.

Agrediu um

colega. Como

já era maior de

idade na época

da agressão, foi

sentenciado a

30 dias em um presídio comum. Foi para o Cen-tral. Encontrei com ele hoje pela manhã e per-

guntei qual diferença ele havia

percebido entre os dois sistemas.

Ele me disse: “na FASE tem quem

olhe por nós. Quem chama a mãe

para fazer visita. Nos obrigam a estudar, nos dão curso. No Cen-tral não tem nem comida.

Como a senhora avalia o

sistema prisional brasileiro hoje?

Se o modelo é prender para garantir a segurança, não está

dando certo. O Brasil possui a 4ª

maior população carcerária do

mundo, sem ganhar em nada em

segurança pública. A população

carcerária cresce exponencialmente e a segurança pública não aumen-ta como reflexo disso. Estamos criando a vingança da população contra quem cometeu o crime.

O que representaria colocar um adolescente no sistema pri-sional?

Levar a população adolescente de 16 anos para esse sistema caó-

tico vai abandonar a ideia de que

nós podemos ainda tentar fazer alguma coisa por esses jovens.

Ninguém discute que o adolescen-

te tem plena consciência do crime

que faz. Ninguém está dizendo

que ele é um coitadinho. Só que

a perspectiva da política de estado

não pode parar de apostar nos

jovens. Se aceitarmos isso, estare-

mos aceitando que falimos como

sociedade. Como nação. Não po-

demos abrir mão da possibilidade

da reconstrução desse indivíduo.

O sistema prisional não garante educação, não garante nada. Sim-plesmente encarcera e conta prazo.

Como a senhora avalia o sistema de ensino praticado hoje no Brasil?

Temos um sistema de ensi-

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no que está muito distante do

tempo que o jovem está. Traba-

lhamos com a ideia de decorar

os fatos, e não de entender os

fatos. Isso não muda a vida de

ninguém. A nossa dívida com

o sistema educacional é criar

uma escola atrativa, que consiga

manter os jovens. Se não con-seguirmos isso, vai ser muito difícil garantir a permanência de um adolescente, principalmente de baixa renda, numa escola que não tem significado nenhum para ele.

Como educação de qua-lidade não é garantida pelo governo, é correto dizer que o Estatuto da Criança e do Adolescente não está sendo cumprido?

Na sua totalidade ele não

está sendo cumprido. O estatuto

está completando 25 anos. Ti-vemos um avanço imenso nesse tempo. Temos a possibilidade, por exemplo, de, através de um

processo, garantir saúde para

todos. Ah, o mas o SUS é muito

ruim, alguém pode dizer. Mas

ele existe. Antes de 1988 ele não

existia. Não tínhamos como

dizer que todas as crianças e

adolescentes tinham direito a saú-de. Isso, por si só, já é um ganho.

Aprendemos, como país, a olhar

para a faixa etária de crianças e

adolescentes como manda a cons-tituição: como prioridade absoluta

nos tratamentos. Temos uma lei que diz isso. Hoje, podemos obri-

gar o estado a dar.

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REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO CONGRESSO

Atualmente no congresso existem cinco projetos que visam

mudanças na forma como os jovens são responsabilizados pelos

crimes cometidos, a mais conhecida é a PEC 171/1993.

• Proposta de Emenda Constitucional - 171/1993

Autor: Deputado Benedito Domingos (PP-DF)

Altera a Constituição para reduzir a maioridade penal de 18

para 16 anos em todos os casos de crimes.

• Proposta de Emenda Constitucional - 33/2012

Autor: Senador Aloysio Nunes (PSDB-SP)

Altera a Constituição para reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos nos casos de crimes hediondos.

• Projeto de Lei - 5454/2013

Autor: Deputada Andreia Zito (PSDB-RJ) - a pedido do go-vernador de São Paulo Geraldo Alkmin (PSDB-SP) Muda o Estatuto da Criança e do Adolescente aumentando a pena máxima de reclusão de 3 para até 8 anos nos casos de cri-mes hediondos.

• Projeto de Lei do Senado - 219/2013 Autor: Senador Aécio Neves (PSDB-MG) Aumenta em até 3 vezes as penas para adultos que usem meno-res em crimes.

• Projeto de Lei do Senado - 333/2015

Autor: Senador José Serra (PSDB-SP) Aumenta o tempo de internação de jovens infratores dos atuais 3 para até 10 anos.

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Duas luzes vermelhas flutuando na esqui-na de ruas desertas.

À primeira vista parecia isso. Na terceira piscada, porém, tudo ficou nítido. Vestidas com aqueles con-juntos laranjas – calça comprida, camisa de manga curta – tudo muito largo no corpo, calçando uns sapatos pretos, meio quadra-

dos, carregavam, como se fosse um colar, uma luz vermelha, in-tensa, em formato de círculo, gru-dada ao pescoço. Varriam. Cada uma empunhava uma vassoura, que, a golpes lentos, arrastava os dejetos abandonados em direção à pá, que em seguida era direciona-da ao grande tonel amarelo, enfer-rujado nas extremidades.

Ele não conseguia ver a fisio-nomia delas. Era madrugada, já passava da uma hora, e a falta de iluminação pública dificultava o reconhecimento. Notara que eram corpulentas, moviam-se a passos curtos e gesticulavam muito. Pa-reciam contentes. As luzes, dedu-zira, eram para chamar a atenção e evitar alguma tragédia, propícia

LUZES por Gabriel Jesus Emmer Brum

MORTE de

Ilustrações: Carlos Eduardo Galon (Caju) [email protected]

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em uma noite em que, como diria Dalton, “em cada esquina desta cidade a morte pede carona”.

Assim que o veículo arran-cara, elas ficaram para trás e um vento frio passara a circular entre os vários lugares vagos, facilmente identificáveis pela luz hospitalar forte, proposital, que dificultava o sono dos poucos passageiros. Duas mulheres em um banco próximo à roleta, um rapaz muito alto, à esquerda delas - que sempre carre-ga uma pasta retangular enorme -, e meia dúzia de corpos cansados, cujas únicas forças restantes eram empregadas a deslizar os dedos em telas sensíveis ao toque, com-punham o público que o rodeava. Os mais próximos de si, à direita, duas fileiras à frente, burlavam o protocolo social espectralmente imposto ali. Falavam alto, forte. Um comemorava a goleada do vermelho; o outro buscava, per-dido na escassez de argumentos, perspectivas positivas em meio ao marasmo azul.

Enquanto isso, nas paredes dos prédios que passavam em sua janela, ele via o duelo de forças

se inverter. O vermelho, há mais de década no comando, escorria rumo ao chão, como a tinta das palavras raivosas cravadas naqueles rebocos.

Até que o ônibus parou. E ela apareceu.

Uma, duas, três. Aquela pal-ma aparecia e sumia rapidamente, e ela não sabia se avançava ou ficava parada. Com a faixa de se-

gurança estendida à sua frente e a

mão vermelha fixa no painel, re-solveu esperar. Formatou o corpo de modo a concentrar o peso na perna direita e observou o movi-mento ao seu redor.

“Calma! Ainda há tempo”, era o que ia e voltava da lateral de uma banca de revistas cinza, lo-calizada na calçada de onde viera.

Divertida com aquilo, apontava

em direção à frase, ao passo que

gritava para quem estava no ponto

de ônibus, tentando chamar-lhes a atenção. Não adiantava. Nunca dava certo. Quando falavam com ela, invariavelmente o papo seguia o roteiro do “por que comigo?”, “justo agora”. Uns perguntavam se

não tinha como dar um jeitinho, abrir uma exceção, mas paravam por aí; outros, no entanto, con-fundindo ficção e realidade, che-gavam ao extremo de – e ela achava engraçado quando se agarravam a esse tipo de coisa – falarem em xadrez, baralho, não sei o quê de cinema, como última chance.

Nesse momento, ela tentava explicar que, na verdade, não tinha poder algum de decisão. Que não era sua culpa. “Tipo o amor”, com-pletava, citando Cortázar: “como se se pudesse escolher no amor, como se amar não fosse um raio que que-bra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio”. Mais do que ninguém, era refém do acaso, es-pectadora dessa espécie de lançar de dados, desse jogo da amarelinha, em que cada um tem de conhecer o seu limite, saber aonde pisa.

O bonequinho verde apareceu e ela andou, ainda rindo. Riso sin-cero, que virou gargalhada, que foi se misturando com um soluço, que precedeu uma lágrima, seguida por outras várias que empaparam um cenho franzido – a esta altura já na segurança do outro lado da faixa.

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Oscilações de humor; ainda não se acostumara com isso. O reflexo da época, pensara. A aura do século.

Nessas horas era bom que não a vissem. Dois tapinhas nas bo-chechas, inspira, expira, olhinho pra cima. Pronto.

Recomposta, seguira rumo ao norte da cidade, local em que era bem recebida, onde sempre havia com quem conversar.

Marilyn Monroe. Era ela quem estava ali, ereta, jovial, ca-belos loiros curtinhos, o braço esquerdo esticado horizontalmen-

te e com o pescoço virado para a

direita, olhando-o. Ah, sim, era

ela. A moça do “Happy birthday,

Mr. President”. Iluminada, lá no topo do prédio de dois andares. Logo abaixo de sua mão, o nome do local – algo como “Casa dos atores”, que ele lera como amores, e achara graça, para logo em segui-da se sentir estúpido, o que o le-

vara a lembrar de outra estupidez,

responsável por ele estar em uma queda de braço imaginária com ela – não a Marilyn Monroe, mas sim, digamos, o seu amor.

Envolto na nostalgia da ma-drugada e impactado pelo olhar que ordenava-lhe: “Do it! Do it!”,

resolvera que acabaria com aque-la situação. Escreveria. Em casa, findaria com o silêncio. Ele sabia que ultimamente estava sendo difícil, que passava mais tempo se deslocando, por exemplo, do que com ela, mas ponderava, odiando ter de repetir o clichê que prega que a vida nem sempre é como se espera, que muitas vezes se tem de passar horas com quem não se gosta, fazendo coisas indesejadas, objetivando conseguir sobreviver e aproveitar algum instante, graças aos frutos dos sacrifícios, com al-guém realmente importante para, enfim, ter um pouco de alegria.

Isso. Começaria assim.

E diria também que, nessa rotina em que se reserva um es-paço ínfimo para ser feliz, não se pode desperdiçar energia com bobagens infantis, sem significa-do, em que muitas vezes nem se sabe o motivo de estarem fazendo aquilo, pois apenas agem, como se fossem os atores do prédio da Ma-rilyn interpretando personagens em busca de atenção.

Absorto na concatenação das ideias, só fora despertado quando soara um alarme de recebimento de mensagem. Após reconhecer onde estava, calculara que falta-vam pouco menos de 30 minutos

para descer. O fone de ouvido fora desenrolado, acoplado ao celular e encaixado nas orelhas. No visor do telefone, a indicação que Cassiano cantava o seu Castiçal. Enterran-do-se mais no assento, esticara as pernas, perdendo-se novamente em pensamentos, a espera do pon-to final.

Tudo estava excessivamente calmo por ali, e ela pensou que a viagem tinha sido à toa. Os pou-cos que circulavam pela avenida ladeada pela praça tomada de lixo e penetrada pela rua sem asfalto andavam a passos apressados. Sentada na escuridão de um dos bancos amarelos do balanço de estrutura azul, ela não dera tanta importância à chegada do car-ro com a dupla fardada, porém mudara de opinião ao focar a sua atenção nos dois.

Inicialmente dentro do auto-móvel, com os vidros baixos e os cotovelos no vão das janelas, en-caravam com o semblante fechado quem transitasse por ali. Depois

de algum tempo, foram para

frente do veículo, ficando lado a

lado, de braços cruzados. O últi-mo ônibus da noite, com todas as luzes internas ligadas, parara a cin-co metros dali, deixando os dois últimos passageiros. O alto que

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carregava uma pasta seguira em direção a ela, atravessando a praça, enquanto que o outro, de casaco e fone nas orelhas, fora em direção à rua de chão batido.

Como geralmente acontece nesses casos, tudo ocorrera de maneira muito rápida. Levantan-do-se do banco e indo em direção aos três, ela vira que, após o rapaz passar pela dupla, um o chamou, sendo imitado pelo colega, que repetira a ação mais duas vezes. Distraído, ele demorara a ouvir. A essa altura ao lado deles, ela acom-panhara de perto a sequência que iniciou com o rapaz se virando e movendo a mão ao bolso de onde saía o fio do seu fone e terminara com a ação da dupla.

A rajada tripla que cortou o silêncio da rua foi seguida por uma orquestra de latidos, inun-dando a madrugada até então pacata. Ao aproximar-se dele, ela perguntara:

- Posso ir contigo?

Iluminado pela luz vermelha que girava no topo do carro que partia, ela vira em seu rosto o sinal de positivo.

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TEMPO BOM, TEMPO RUIM

da mania à depressão: do êxtase ao inferno astral, muitas atitudes podem ser tomadas

* “Hoje estou me sentindo muito mal. sinto que sou um lixo, uma inútil. tenHo uma dor no peito

que parece sentimento de perda, mas eu não perdi nada, por enquanto. está doendo escrever. tudo

me dói, desde ir ao mercado, até trabalHar. tenHo vontade de cHorar o tempo inteiro. quero ficar

em um quarto escuro dormindo para não ter que viver. quero morrer a cada momento que pen-

so. meu futuro está abalado. acHo que não vou conseguir ser nada, fazer nada, eu sou nada.

preciso de ajuda, mas não sei por onde começar. preciso de remédio, mas quando penso nos efei-

tos colaterais que eles trazem, me desanimo. quero morrer, quero morrer, quero morrer. o que

que eu vou fazer da minHa vida meu deus? preciso de ajuda, socorro. ”

*estela comantto, 23 anos.

por Juliana Demarco

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TEMPO BOM, TEMPO RUIM

UM POUCO DE DIDATISMO

O relato acima pode-ria ser de qualquer pessoa que sofre

com o transtorno bipolar que, atualmente, acomete 8% da po-pulação em geral. No entanto, a fala é de Estela Comantto, 23 anos, que sofre com o transtorno bipolar desde a sua infância. A vida dedicada a tentar melhorar a sua vida diante da doença fez com Estela estudasse a fundo o que é e como se combate, ao menos se possível, o Transtorno Bipolar. Como ela mesma explica, o Trans-torno Bipolar é caracterizado por alterações de humor que se mani-festam como episódios depressivos alternando-se com episódios de euforia, em diversos graus de in-tensidade.

“O Transtorno Bipolar tipo I, que se caracteriza pela presença de episódios de depressão e de mania, ocorre em cerca de 1% da popula-ção. Considerando-se os quadros mais brandos do que hoje se de-nomina espectro bipolar, como o Transtorno Bipolar tipo II, caracterizado pela alternância de depressão e episódios mais leves de euforia - hipomania, a prevalência pode chegar a até 8% da popula-ção”, explica. Assim, estima-se que

cerca de 1,8 a 15 milhões de bra-sileiros sejam portadores do Trans-torno Bipolar, nas suas diferentes formas de apresentação. Estela está diagnosticada com hipomania, e afirma que o tempo de depressão que a acomete é muito mais inten-so do que os episódios de mania, os quais são corriqueiros e breves.

Dados da Organização Mun-dial da Saúde destacam que o Transtorno Bipolar acarreta inca-pacitação e grave sofrimento para os portadores e suas famílias. Estes dados evidenciaram que o Trans-torno Bipolar foi a sexta maior causa de incapacitação no mundo. Estimativas indicam que um por-tador que desenvolve os sintomas da doença aos 20 anos de idade, por exemplo, pode perder 14 anos de produtividade profissional se não tratado adequadamente. A época anterior à descoberta da doença representa uma vida ba-sicamente normal, com altos e baixos que são controláveis e, o mais importante, possuem moti-vos para tal. Logo que a doença é diagnosticada descobre-se que ficar muito mal ou muito bem não necessita de motivos. Apenas a manifestação da doença acarreta na mania ou na depressão.

Em relação aos fatores clínicos e sóciodemográficos associados ao

Transtorno Bipolar, o número de trabalhos indicativos das variáveis que levam os pacientes bipolares a apresentarem desajustamentos sociais ainda é escasso, entretanto os resultados são unânimes quanto à influência da gravidade da doen-ça, no desempenho no trabalho e no relacionamento interpessoal. Ainda segundo a Organização Mundial de Saúde, o Transtorno Bipolar ocupa o 9° lugar na lista das principais causas de disfun-ção global em indivíduos entre 15 e 44 anos.

Estela é uma menina jo-vem, mas já está aposentada por invalidez. Segundo ela, não é possível conviver em ambientes de trabalho sem que a doença se manifeste de forma invasiva e devastadora. “Quando tive meu primeiro trabalho, chorava todos os dias por ter de ver tantas pes-soas em minha volta. O barulho das coisas me irritava muito e eu cheguei à conclusão de que não iria mais aguentar aquilo. Fui internada em uma clínica psi-quiátrica com 19 anos e recebi eletrochoques, pois achavam que eu tinha esquizofrenia. Acabou que a minha bipolari-dade se agravou e agora eu vivo com uma pensão por invali-dez”, afirma.

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VENHA PARA MIM, QUERI-DA MORTE

Pacientes com transtorno bi-polar possuem, também, um risco maior de suicídio, quando com-parados à população geral. Em portadores de Transtorno Bipolar se observou um risco estimado de suicídio de 0,4% ao ano, cerca de 23 vezes maior do que as taxas ob-servadas na população geral, que são estimadas em 0,017%. Apesar de o suicídio ter uma alta frequên-cia em portadores de Transtorno Bipolar, muitos pacientes nunca tentaram suicídio, por isso acre-dita-se que possa haver subgrupos diferentes entre esses indivíduos. Felipe Rocha, 32 anos, tentou suicídio aos 30 anos. Ele tomou 50 comprimidos do remédio De-pakote, indicado para pessoas com epilepsia. “Queria morrer. O tem-po passava e a minha dor no peito de angústia sobre o futuro não passava. Peguei aqueles remédios e rezei a Deus para que ele me levas-se e eu pudesse descansar”, disse. Felipe não morreu, mas desenvol-veu distúrbios neurológicos que o acompanharão junto à sua bipola-ridade, para o resto de sua vida.

No entanto, a mortalidade dos portadores de Transtorno Bipolar é elevada, e o suicídio é a causa mais frequente de morte, principalmente entre os jovens.

Estima-se que até 50% dos porta-dores tentem o suicídio ao menos uma vez em suas vidas e 15% efe-tivamente o cometem. Também, doenças clínicas como obesidade, diabetes, e problemas cardiovas-culares são mais frequentes entre portadores de Transtorno Bipolar do que na população geral.

Comer ou não comer se torna ou uma fuga ou desagrado. Para alguns, a comida está associada a um tempo que se passa com o prazer de estar fazendo algo que satisfaz a solidão. Para outros, co-mer representa apenas uma forma de pelo menos conseguir energia para ir até o trabalho ou executar suas atividades “obrigatórias” du-rante o dia. Estela afirma que a comida sempre foi um refúgio das angústias por que passava quando estava com sintomas da bipolari-dade. “Comia feito uma louca e aquele momento era maravilhoso. Era como se fosse um episódio de mania, mas que não me fazia mal, a princípio”.

A associação com a dependên-cia de álcool e drogas não apenas é comum como agrava o curso e o prognóstico do Transtorno Bipo-lar, piora a adesão ao tratamento e aumenta em duas vezes o risco de suicídio. Mas para quem está na mania ou na depressão, tomar uma ou duas cervejas, injetar uma heroína ou cheirar uma cocaína

faz com que aquele tempo em que se está sob o efeito da droga seja menos insuportável, e também faz com que os sentimentos ruins de-sapareçam, pelo menos até o fim dos efeitos.

INFÂNCIA, ADOLESCÊNCIA E IDADE ADULTA INTER-ROMPIDAS

O início dos sintomas na infância e na adolescência é cada vez mais descrito e, em função de peculiaridades na apresentação clí-nica, é de difícil diagnóstico. Não raramente as crianças recebem ou-tros diagnósticos, o que retarda a instalação de um tratamento ade-quado. Isso tem consequências de-vastadoras, pois o comportamento suicida pode ocorrer em 25% dos adolescentes portadores de Trans-torno Bipolar. Uma criança que já apresenta a doença sofre ainda mais com os efeitos mentais que ela acomete. Júlia Silva, 14 anos, descreve momentos devastadores da doença enquanto ainda estava na escola. “Lembro-me de uma vez que eu não consegui fazer um trabalho para entregar e, no dia da entrega, minha mãe me obrigou a ir para a escola e explicar o por-quê eu não tinha feito o trabalho. Estava tão psicótica com a vergo-nha de não entregar aquilo que a minha vontade era de me atirar

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no meio dos carros ou tomar um tiro de bala perdida para não ter que enfrentar aquela situação. Eu tinha apenas 8 anos”.

Para termos uma noção da as-sociação do tempo para quem tem bipolaridade, estudos da National Institute Of Mental Health indi-cam que as pessoas que convivem com o Transtorno bipolar têm uma redução de 9,2 anos na ex-pectativa de vida, e como muitos, um em cada cinco pacientes com transtorno bipolar poderá chegar ao suicídio.

As causas do comportamento suicida são múltiplas e complexas. Embora a presença do Transtorno

Bipolar seja um fator importante, a existência dessa patologia por si não é suficiente para explicar completamente o comportamen-to suicida sem a interação com outros fatores, como presença de desesperança, impulsividade e agressividade. Karina Shivaggo, 52 anos, explica que reconhece clara-mente quando está entrando em um episódio de depressão. “Co-meço a ficar irritadiça. Tudo o que acontece ao meu redor me dá rai-va, tanto o latido do meu cachorro quanto ao barulho dos carros. Associo isto ao tempo passando sem fazer nada, apenas vendo tele-visão”. Karina se aposentou aos 50 anos por invalidez. Por causa da

doença, não tinha mais condições de assumir as responsabilidades do seu trabalho e tomou esta atitude. Para ela, ficar em casa é um alento para quem tem bipolaridade pois os compromissos do dia-a-dia agravam as manifestações da bipo-laridade. “Ficar em casa faz com que tenhamos controle do tempo em que ficamos doentes. Não gos-to de me lembrar de quando eu estava completamente senil, por causa da doença, e era obrigada a sair para trabalhar. Ter que olhar as pessoas nas ruas, gritando e sen-do felizes... aquilo me resgava por dentro pois ficava com inveja de quem conseguia viver a vida tran-quilamente”, afirma Karina.

UMA MENTE INQUIETA

Kay Redfield Jamison, 69 anos, é uma das referências bi-bliográfica quando o assunto é bipolaridade. O seu livro “Uma Mente Inquieta” é um extraor-dinário relato sobre a doença maníaco-depressiva, ou bipolari-dade. Nele estão contidas infor-mações técnicas e médicas sobre a doença, com linguagem direta e honesta. Honestidade. Por falar nesta palavra, ela explica que as pessoas que possuem bi-polaridade precisam ser honestas consigo mesmas e com os seus psicanalistas. “É preciso desaba-

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far, contar tudo desde o cotidiano até os nossos segredos mais maca-bros e sombrios”, diz. Kay revela em seu livro um extraordinário testemunho pessoal, sendo uma das poucas mulheres que exter-naram a sua própria luta, desde a adolescência, com a doença e de como ela moldou a sua vida. Ela nos leva a penetrar no território fascinante e perigoso dessa forma de loucura, um universo no qual um polo pode ser a terra sombria e sedutora dominada pela melan-colia, e o outro, um deserto de depressão e, com triste frequência, morte.

Kay Jamison sofreu seu pri-meiro ataque da doença maníaco-depressiva aos dezessete anos. No livro, pode-se acompanhar sua guerra contra a doença durante a faculdade, a pós-graduação, durante um apaixonado caso de amor e o desespero da perda ao longo dos episódios de violência, surtos de loucura e a tentativa de suicídio. Podemos vivenciar seu medo de renunciar às emoções, às animações.

“Quando são duas da manhã e se está maníaco, absorve-se tudo ao seu redor. Eu estava correndo. Não simplesmente correndo, mas correndo com velocidade e fúria, como um relâmpago a atravessar, de um lado para o outro, a minha casa. Procurando gastar energia

ilimitada, irrequieta, maníaca. Eu corria rápido, mas lentamente en-louquecia”.

Sendo uma profissional da saúde e bipolar, Kay Jamison se dedica à pesquisa e ao tratamento da doença mental e lida com esta mesma doença como paciente. Os preceitos, as dificuldades, as alegrias e as tristezas dessa pessoa brilhante arejam nossos conceitos sobre bipolaridade. Segundo ela, a doença afeta não somente os pa-cientes, mas também os familiares e os seus psiquiatras. Para aqueles que quiserem ler o seu livro, en-tenderão o sucesso de uma pro-fissional que venceu e conquistou renome justamente na área de seu transtorno psíquico. E estarão atentos para as potencialidades do ser humano, mesmo quando sua mente inquieta parece que vai dominá-lo.

AMOR DESTRUTIVOEntre tantas boletas tomadas

para regular o humor de um bipo-lar, não há remédio melhor que o amor, mas este sentimento, embo-ra seja de graça, custa muito caro. Um bipolar pode perder várias capacidades, mas o amor é intrín-seco ao ser humano. Ele pode até não reconhecer o amor, mas ele está sempre lá. Quando uma pes-

soa ama alguém o tempo torna-se relativo ao momento em que se fica com a pessoa amada. O difícil é associar este tempo ao tempo de mania e depressão, que oscilam a cada minuto, a cada segundo. Não é com uma palavra que o sentimento acaba pois o amor não obedece comandos. O amor é extremamente desobediente, assim como a mente de um bipo-lar. Quando um bipolar diz eu te amo, quem está falando é seu lado maníaco, pois, no lado depressivo, não se ama nada nem ninguém.

O parceiro de um bipolar padece todos os dias com revira-voltas de humor que perpassam a prostração e a raiva em segundos. A violência quase sempre está pre-sente, o que acaba por diminuir as chances de um bipolar em manter um relacionamento duradouro. “Não me condene pelo que eu não faço”. O bipolar não gosta de arrumar a casa, lavar a louça ou cuidar dos filhos como um exem-plar de pai ou mãe. O bipolar demora mais tempo para esquecer as palavras duras. É um cálculo matemático muito bem elaborado, pode confiar. O bipolar possui duas metades, uma é amor e a outra também, mesmo que se diga que não e mesmo quando nem se lembre, pois ele tem uma metade que é louca, mas a outra metade não é burra.

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A psiquiatra, professora e pes-quisadora do transtorno na Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Marcia Kauer Sant’Anna, afirma que o amor é um sentimento bastante complexo que varia muito de pessoa para pessoa. “Do ponto de vista mais técnico, podemos entender amor como a capacidade de formar vínculos afetivos. Não há razão para acreditarmos que a doença por si altere a essência do senti-mento ou a capacidade de formar vínculos. O que pode acontecer é uma dificuldade nos relaciona-mentos a dois e com familiares e amigos durante os episódios, seja pela apatia na depressão, seja pela euforia e irritabilidade, caracterís-ticas da mania. Com o controle dos episódios é possível estabelecer relacionamentos saudáveis e levar uma vida normal. ”

“Quanto mais conhecimento, não só o parceiro como também

o próprio paciente e toda sua família tiverem sobre a doença, melhor. Entender a doença, suas manifestações, e os sinais de que um episódio está se desencadean-do é fundamental. Dessa forma o parceiro ajuda no cuidado do paciente e se familiariza com a doença, assumindo um papel de apoio e compreensão. Pode ofere-cer ainda uma ajuda fundamental: identificar precocemente sinais de uma crise, evitando que ela ocorra com a busca do tratamento na fase mais inicial.”, conclui Marcia.

QUE FIQUE CLARO

A noção de doença mental na opinião pública é, em geral, muito confusa e pouco correta. Verifica-se uma tendência para considerar negativamente as pessoas que sofrem de doenças psiquiátricas e é frequente a ideia de que as doen-ças mentais são qualitativamente

diferentes das outras doenças. É muito comum imaginar que há uma doença mental única, atri-buindo às pessoas que tenham sofrido crises um prognóstico negativo de incurabilidade geral, aferido erradamente pelos casos de doentes mentais mais graves e crônicos. Por vezes o diagnóstico médico das diferentes doenças psiquiátricas não se faz na altura própria, por variadas razões, e isso acontece, com alguma frequência, na Doença Bipolar.

O conhecimento, mesmo que simplificado, das características da Doença Bipolar facilita o seu reconhecimento aos próprios que sofrem e aos outros, como os fa-miliares, possibilitando uma maior ajuda a muitas pessoas que carecem de um tratamento médico adequa-do e de uma solidária compreensão humana.

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Tempo: a duração dos fatos, o que deter-mina os momentos,

os períodos, as épocas, as horas, os dias, as semanas, os séculos...

Você se lembra há quanto tempo a sociedade é regida pelo tempo? Desde quando as coisas são feitas e pensadas de acordo com o tempo que levam? Eu não.

A sociedade contemporânea é marcada pela correria do dia-a-dia, com a ascensão da internet, das novas tecnologias e da vida regra-da pelo trabalho. Ou seja, a falta de tempo é um dos problemas da modernidade.

Pois é, o tempo é realmente uma das coisas mais importantes na nossa vida, mas nem sempre o tempo faz sentido.

Como nos 90 minutos mais importantes da vida de qualquer pessoa racional, onde o tempo é mais relativo do que a relatividade, onde tudo pode mudar definiti-vamente de “uma hora pra outra”, ou seja, o tempo de um jogo de futebol.

Sem delongas, para não per-dermos mais tempo, vamos direto ao ponto principal. Afinal, de que Q

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importa todo o resto da vida coti-diana, da tal correria do dia-a-dia quando aquele “maldito” juiz dá 5 minutos de acréscimo e teu time precisa segurar o resultado? Nada, óbvio.

22 jogadores, uma bola, milhares de pessoas no estádio e milhões acompanhando pelo rádio ou TV aqueles 90 minutos. Mas afinal a única coisa certa no fute-bol é que um jogo não é feito de 90 minutos.

Para quem está perdendo, tem muito menos, no máximo 70, todo mundo sabe. Como o tempo passa tão rápido?

Para quem está ganhando, são pelo menos 120 minutos, como que pode ainda faltar tanto tempo para acabar? APITA LOGO SEU JUÍZ!!!

Por isso, no futebol o resulta-do é diretamente proporcional ao tempo de jogo. Se meu time está vencendo pelo placar necessário,

como o tempo passa devagar. Já se

está perdendo e precisa de recupe-ração, é impressionante, não pode ser 40 do segundo tempo já!

E aquele 1 a 0 aos 5 minutos da primeira etapa? “Vamos pra

cima que dá pra fazer mais!”. E o mesmo 1 a 0 faltando apenas 5 minutos para o fim do jogo? “Se-gura!!! Fica atrás, não pode levar gol agora!”.

•••

E aquelas sensações impagá-veis de alegria quando teu goleiro é um mestre da catimba e ganha segundos preciosos em um simples tiro de meta. E aquele atacante que consegue ficar 1 minuto segu-rando o jogo com a bola na linha de fundo? Nesses momentos, tudo que tu precisa é de um apito, di-zendo que o tempo acabou.

Mas também tem o contrário, aquele maldito jogador do outro time que não bate nunca o lateral, fica segurando o tempo, como o juiz não vê que ele está fazendo cera?

Falando em tempo, o interva-lo da partida é um tempo à parte. Se está em casa, vai no banheiro, pega uma bebida, algo para comer, tudo isso em 5 minutos. Aí são 10 longos minutos de uma legitima eternidade.

Agora se tu está no estádio, saí antes pra não pegar fila no bar, ób-vio que todo mundo teve a mes-

ma ideia, pra tentar economizar tempo. Aí vai no banheiro, come alguma coisa, quando se dá por si, o jogo já está começando e tu ali, tentando pegar um refri.

Voltando a partida, segue a emoção, nada que está fora do estádio importa. O tempo passa, rápido para uns, lento para outros, mas no final das contas acaba. Não resta mais tempo para nada.

Os jogadores saem do grama-do, a torcida deixa o estádio, as transmissões vão se encerrando, e a única pergunta que fica é: Quan-to tempo falta para o próximo jogo?

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SEIS ANOS EM UM CONTA GOTASA luta de famílias que aguardam o retorno de seus familiares desaparecidos

por Bruno Teixeira

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No dia em que desa-pareceu, Ana Paula Moreno Germano,

23, cumpriu um ritual que man-tinha diariamente há quase dois anos. Antes de dirigir-se ao traba-lho, às 5h30, acordou, arrumou-se e entrou no quarto de sua mãe. Quase seis anos depois, Sandra Moreno ainda guarda em sua me-mória o último despertar que lhe foi proporcionado pela filha. “Ela beijou o meu rosto e disse: Mãe, até daqui a pouco”, lembra.

Todos os anos, mais de 200 mil pessoas desaparecem no Brasil. Esse número foi revelado em 1999, em pesquisa realizada pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), organização não governamental (ONG) que, na ocasião, contou com o auxilio do Ministério da Justiça para a apuração dos dados. Após 16 anos, essa con-tinua como a única pesquisa de abrangência nacional sobre casos de desaparecimento no país. Bancos de dados desatua-lizados, falha na comunicação entre departamentos de polícia de diferentes estados e a falta

de delegacias especializadas le-

vam famílias a buscar soluções

próprias para os casos.

A METADE QUE SE FOI

Residentes no município de Carapicuíba, região metropolita-na de São Paulo (SP), mãe e filha trabalhavam em uma empresa do ramo de transportes, localizada a cerca de dez quilômetros da sua casa, no bairro de Alphaville – na cidade de Barueri, SP. Ana Paula trabalhava no horário das 6h às 14h. Quando ia embora, encontrava Sandra, que iniciava o trabalho no turno da tarde. No entanto, naquele dia, três de outu-bro de 2009, Ana Paula não estava lá para receber a sua mãe. Quatro horas mais tarde, após inúmeras tentativas de contato por telefone e incessantes buscas pela cidade, Sandra deixou a delegacia com um boletim de ocorrência e a esperan-ça de rever sua filha. “Eu acredi-

tava que em 24, 48 ou 72 horas encontraria ela”, relatou.

Esse não foi o primeiro drama vivido por Sandra. Vinte e três anos antes, seu marido a abando-nara durante a gravidez. Fato que tornaria Ana Paula, a caçula entre um grupo de três filhos, ainda mais companheira de sua mãe, ao dividir com ela as alegrias e angús-tias desde sua gestação. Passados os anos, os laços se mantiveram fortes. Sandra lembra que, além dos encontros no ambiente de trabalho, a estudante de artes plás-ticas “ia pouco a festas” e “gostava de passar a maior parte do tempo livre em casa”. “Dos meus filhos, ela era a mais caseira. Por ser a ca-çula, também era a mais manho-sa, mais mimada”, revelou. “Ela

nunca gostou de sair. Se estivesse

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de folga, era fácil saber o que ela

estava fazendo: dormindo, jogada

no sofá assistindo a filmes, lendo

livros ou trancada no seu ateliê”.

As primeiras 72 horas se passaram. Lentamente, vieram as semanas, os meses e os anos, mas nenhuma resposta sobre o para-deiro de Ana Paula. Para Sandra, a ausência da filha foi como a perda de um pedaço de seu corpo. “Vi-sualize um ser humano partido ao meio de cima a baixo. Você con-segue imaginar se uma pessoa par-tida ao meio consegue sobreviver? Jamais! Eu penso que essa minha outra metade foi embora, deixou uma metade muito machucada, muito magoada, muito revoltada com o sistema”, desabafou. “Cada vez que eu acordo, digo que sou uma vingadora. Cada dia que eu acordo, tenho mais dor, mais sau-dade e assim eu vou. Parece que eu sou movida à ira, à raiva pela falta de apoio, pela falta de res-ponsabilidade do poder público,

pela falta de respostas, pelo desca-so, porque é isso que vivemos hoje em relação às famílias de pessoas desaparecidas. Eu diria pra ti que somos órfãos de pai e mãe nessa causa”, completou.

Com a busca pela filha, San-dra descobriu as dificuldades en-frentadas por milhares de famílias, que procuram o auxílio de órgãos oficiais para encontrar seus entes desaparecidos. Especialmente, fal-ta de políticas públicas específicas para esses casos, como a inexistên-cia de um banco de dados unifi-cado entre as polícias das 27 uni-dades da federação. Desse modo, somente as delegacias do estado de São Paulo foram notificadas sobre o desaparecimento de Ana Paula, por exemplo.

“Eu gostaria de poder com-putar em quantidade de volume ao encher uma caixa d’água de mil litros e dizer isso aqui são seis anos. E aí eu diria pra você se seis anos significam um reservatório

com mil litros de água, a quanti-dade do que foi feito cabe em um conta-gotas de medicamento. E com muita luta e muita briga para chegar nesse conta-gotas. Muita coisa não sai do papel porque não existe vontade política”, afirmou.

CADASTROS DESATUALIZA-DOS

Quando publicada, em 1999, a pesquisa realizada pelo MNDH revelou que cerca de 200 mil pes-soas desapareciam, anualmente, no Brasil. Desde então, os meios para obtenção de informações sobre o número de desaparecidos civis no país permanecem impreci-sos. Em 2009, dez anos após a pu-blicação do estudo, foi sancionada a Lei Federal nº 12.127 que criou o Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos. Em menos de um ano, o cadastro já estava disponível para consulta na internet, pelo endereço www.desa-parecidos.gov.br.

Desenvolvida pela Secretaria de Direitos Humanos da Presi-dência da República (SDH/PR) em parceria com o Ministério da Justiça e com o apoio da Rede Nacional de Identificação e Lo-calização de Crianças e Adoles-centes Desaparecidas (Redesap), a plataforma consiste em um

“Eu gostaria de poder computar e quantidade de volume ao encher uma

caixa d’água de mil litros e dizer isso aqui são seis anos. E aí eu diria pra

você se seis anos significam um reservatório com mil litros de água, a

quantidade do que foi feito cabe em um conta-gotas de medicamento. E

com muita luta e muita briga para chegar nesse conta-gotas. Muita coisa

não sai do papel porque não existe vontade política”, afirmou.

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banco de dados alimentado com informações sobre crianças e ado-lescentes desaparecidos. As bases ficam disponíveis à rede de dele-gacias de polícia civil integradas ao cadastro para apoio às ações de busca, localização e identificação de desaparecidos. O Cadastro Na-cional permite, também, aos civis consultar e incluir informações na página. Contudo, cinco anos após a sua implementação, o site abriga apenas 369 casos, divididos entre 19 estados mais o Distrito Fede-ral. O que significa que sete esta-dos, Acre, Amapá, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Roraima, Sergipe e Tocantins, não possuem desapa-recimentos registrados no cadastro oficial do governo.

Além de não registrar ne-nhum caso em sete estados, a pá-gina exibe números inexpressivos de desaparecimentos em outras unidades da federação. É o caso do Rio Grande do Sul (RS) com 17 cadastros no banco. Números do Departamento Estadual da Crian-ça e do Adolescente (Deca), ligado à Polícia Civil RS, divulgados pelo jornal Diário Gaúcho (DG), no último mês de janeiro, mostram que a situação é bem mais grave. Somente no ano de 2013, 1.123 menores desapareceram em Porto Alegre. Desses, 234 seguiram su-

midos naquele ano.

A defasagem na atualização dos dados sobre desaparecimentos não é exclusividade do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescen-tes. O problema afeta, também, outros departamentos e delegacias de polícia pelo país, como o caso da página da Polícia Civil RS na internet, responsável por divulgar imagens de crianças e adultos de-saparecidos. Dela constam apenas 42 menores e 69 adultos. Ainda, segundo a reportagem do DG, no ano passado foram efetuadas 1.891 ocorrências de desapareci-mentos em Porto Alegre.

NA POLÍTICA E NA PRÁTICA

Desde janeiro deste ano, o Es-tado do Rio Grande do Sul possui uma política sobre pessoas desapa-recidas. A Lei Estadual nº 14.682, projeto de autoria do ex-deputado Aldacir Oliboni (PT), institui a adoção de oito medidas de auxílio na prevenção, localização, aco-lhimento e assistência às pessoas desaparecidas e seus familiares. Sancionada pelo governador José Ivo Sartori (PMDB), a lei entrou em vigor a partir da data de sua publicação (22/1). Entre as provi-dências, estão previstas a formação de um cadastro único de pessoas desaparecidas no Rio Grande do

Sul, com um banco de dados de acesso livre na internet e a cria-ção de delegacias especializadas em desaparecimentos, dotadas de maiores investimentos nos setores de inteligência, que possibilitem aos familiares acesso a todas as etapas da ocorrência. No entanto, na prática, o pleno cumprimento dessa lei, por parte do próprio po-der público, ainda é algo distante. A Polícia Civil, responsável pelas investigações, carece de estrutu-ra para execução das medidas. Em Porto Alegre, cidade com a população estimada em cerca de 1 milhão e quinhentas mil pes-soas - segundo o censo 2014 do IBGE -, apenas uma delegacia tem atribuição para investigar desapa-recimentos. Somente entre os dias 1º de janeiro e 13 de abril deste ano, a 5ª Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) registrou 256 ocorrências desse tipo na cidade. Três agentes e uma viatura ficam designados às investigações. “O Rio Grande do Sul não possui uma delegacia especializada, e isso faz com que a investigação não seja tão específica ou direcionada como deveria ser”, destacou a titular da 5ª DHPP, delegada Jeiselaure Souza. “Aqui na delegacia, somente neste ano conseguimos montar uma equipe

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específica só com pessoas para atuar nisso. Porque a maior de-manda da delegacia de homicídios são os desaparecimentos. Nós temos que pesquisar, pedir quebra de dados telefônicos, temos que pedir cautelares, às vezes sair com os cães farejadores. É uma série de diligências que temos que fazer e acabamos com muita demanda. O ideal seria que evoluísse para a criação de uma delegacia”.

De acordo com a delegada, homens entre 18 e 30 anos são maioria dos casos. Jeiselaure também afirmou que não há di-ferenciação entre regiões da cida-de ou raças. Contudo, o tráfico de drogas é um dos principais fatores para a elevação das ocorrências de desaparecimentos de homens nessa faixa etária. “O perfil é heterogêneo. Muitos casos de pessoas com transtorno mental, e muitas ocorrências estão relacionadas ao envolvimento com o tráfico”, explicou. “Brigas na família, isso é frequente com os jovens. Nós temos pessoas que têm cinco ou seis casos de desaparecimento”, completou.

Já Ongs e outras instituições

apontam o tráfico de pessoas

como uma das maiores causas de

desaparecimentos no Brasil. Em 2013, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou relató-rio intitulado “Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira no Brasil”. O estudo revelou que, no período de 2005 a 2011, no mínimo 475 pessoas foram traficadas. A maioria são adolescentes ou mulheres de até 29 anos.

A delegada Jeiselaure sa-lienta que os familiares devem perder a cultura de esperar por mais de 24 horas para comunicar o desaparecimento. O registro não necessita de foto e pode ser feito em qualquer delegacia. Po-rém, como somente a 5ª DPHH possui atribuição para investi-gar esse tipo de caso, as demais delegacias precisam enviar as ocorrências para a delegacia competente. A consequência é o desperdício de um tempo valioso para apuração. “Em Porto Ale-gre, toda delegacia pode e deve registrar o desaparecimento. Elas

mandam para a minha delegacia

e isso, muitas vezes, leva mais de

uma semana para chegar aqui, o

que é muito tempo para começar

uma investigação de desapare-

cimento. Isso dificulta muito”,

relatou.

COMO FUNCIONAM AS IN-VESTIGAÇÕES EM PORTO ALEGRE

As ocorrências, principalmen-te registradas em outras delegacias, passam por um filtro preliminar. Primeiro, a família é contatada, pois, em alguns casos, o desapare-cido retorna ao lar. Caso isso não aconteça, são utilizadas redes aber-tas como o Facebook para pesqui-sa. Em uma segunda etapa, hos-pitais e necrotérios também são contatados. Se novamente houver negativa, medidas como o pedido de quebra do sigilo telefônico são adotadas. É o que ocorreu, por exemplo, nas investigações sobre o caso do taxista Luciano Juceli da Silva Jaime, desaparecido em Porto alegre, desde o dia 13 de abril deste ano. “Ele desapareceu, acharam o carro com a camiseta dele dentro. Nós pedimos a que-bra do sigilo telefônico. Por volta das quatro da manhã, o telefone dele faz um registro e depois não há mais sinal dessa pessoa”, expli-cou. “É algo que a gente começa a se preocupar muito e aí segue uma investigação peculiar, pois aqui é uma delegacia de homicídios, mas nos desaparecimentos não há um corpo que comprove que a pessoa morreu. Em desaparecimentos de pessoas, não temos nenhum indí-

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cio. Nós temos que trabalhar com todas as possibilidades”.

Quando a ocorrência é re-gistrada em uma cidade que não dispõe de uma delegacia com esse tipo de serviço, o nome do desa-parecido é registrado no sistema interno da polícia civil e difun-dido entre as delegacias de todo o Estado. “Quando tu registras que uma pessoa está desaparecida no sistema, o nome dela é regis-trado com uma tarja vermelha dizendo que ela está desaparecida. Aqui nós também mandamos um e-mail para o gabinete de inteli-gência, que informa por e-mail. Essa é uma forma que nós temos de integrar os dados. Outra coisa que fazemos é jogar a informação no site da polícia, que está bem desatualizado”, reconheceu.

DIVULGAÇÃO EM MÍDIAS ELETRÔNICAS

A utilização de mídias ele-trônicas para a divulgação do retrato de pessoas desaparecidas é um recurso muito utilizado por instituições voltadas ao auxílio de famílias que buscam por desa-parecidos. Entidades como Mães da Sé e Desaparecidos do Brasil também realizam levantamentos sobre números e possíveis causas, para publicação em seus canais

na internet. Em Porto Alegre, o Deca utiliza a mesma técnica para difundir os retratos, inclusive em televisores instalados no transporte coletivo da região central da cida-de. A prática oficializou-se com a sansão da Lei nº 14.683, também em 22 de janeiro de 2015, que instituiu a divul-gação de informa-ções sobre pessoas desaparecidas em mídias eletrônicas. De autoria do deputado Ennio Bacci (PDT), o texto prevê a veiculação dos retratos em emis-soras de televisão, rádio e em locais como estádios de futebol, cinemas e teatros. Apesar de, teoricamente, necessitar de me-nos recursos para sua aplicabilidade, é preciso que os bancos de dados da Polícia Civil estejam atuali-zados. Algo que ainda não é uma realidade. “Tem que vir de políti-

cas públicas. Principalmente para integrar em âmbito federal, tem que ter uma política do governo federal que integre as polícias, que crie um sistema para que esse cadastro (nacional) seja algo que qualquer um possa ir lá e alimen-tar esses dados. Não é uma coisa

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oficial. Então isso é uma coisa de políticas públicas, que é o que se tentou fazer aqui no Estado com essa lei: dotar os órgãos de elementos como acesso aos dados. É tudo muito trancado. Há coisas que tu tens que jogar e o sistema tem que conversar contigo, e nós não temos isso aqui», explicou.

“Para implementar a lei que o governador sancionou, ele precisa nos disponibilizar de recursos. Não adianta criar uma lei que, do ponto de vista formal, é muito bo-nita e não nos dar nenhum meio para implementar isso”, afirmou.

PROJETO DE LEI POPULAR

Sem sucesso na busca por sua filha, Sandra passou a procurar maneiras para mudar o sistema e facilitar os meios para obter infor-mações. Em 2012, três anos após o desaparecimento de Ana Paula, criou o projeto de lei de iniciativa popular Pela Pessoa Desaparecida no Brasil. Com 13 itens, o texto base propõe a criação de delega-cias especializadas em cidades com mais de 100.000 habitantes, um sistema integrado (de software) em todo o território nacional sobre pessoas desaparecidas, in-terligado com polícias federais, Interpol e fronteiras; assim como a viabilidade e funcionamento efe-

tivo do Sistema de Intercâmbio de Informação sobre Segurança do Mercosul (SISME) e que BOs (boletins de ocorrência) tenham validade como documen-to oficial para solicitação de redes de serviços móveis (celula-res) da pessoa desaparecida, consulta de pos-síveis movimen-tações bancárias e validade como documento ofi-cial para ques-tões trabalhistas e civis, como declaração de ausência, aban-dono de emprego e morte presumi-da.

A proposta precisa de um milhão de assinatu-ras para ser encaminhada ao Con-gresso Nacional. Para isso, Sandra utiliza o site: www.abaixoassina-dobrasil.com.br e redes sociais na

internet, como Facebook, Twiter e Instagram, além de um canal no YouTube, para divulgar o projeto. Nesses locais, também é possível encontrar o retrato de outras pes-soas desaparecidas. Apesar da di-

“Chegou um momento em que eles (a Justiça) não me

respeitavam como mãe. Perguntavam quem eu era,

como se eu, como mãe, não representasse nada”.

Sandra (esq) busca assinaturas para encami-

nhar projetos de lei ao congresso

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“As pessoas nos olham com cara de piedade. Ah, coitada! Nós não somos

coitadas, somos vítimas do sistema.”

vulgação, até o dia 1º de junho de 2015 - três anos após a abertura do abaixo-assinado, apenas 16.974 pessoas aderiram ao movimento.

Para Sandra, a baixa adesão tem uma simples explicação: a cultura de que o desaparecimento de um familiar é algo distante da realidade de uma família de classe média. “As pessoas acham que o problema está longe, que é outra realidade, coisa de novela. Pensam que só acontece com o fulano que vive no morro, que é pobre”, de-sabafou. “A sociedade ainda não se conscientizou do tamanho do problema. Ainda é preciso sentir a dor para saber que o problema existe”.

Uma das estratégias adotadas por Sandra para aproximar a so-ciedade da causa foi transformar as campanhas de divulgação em eventos culturais. Para a caminha-da alusiva ao Dia da Criança De-saparecida, 25 de maio, manifesta-ções artísticas como circo, grafite e maracatu ganharam a imagem de pessoas desaparecidas. “Meses atrás, fizemos grafites em muros com o retrato de pessoas desapa-recidas e, no final do ano passado,

houve uma exposição. No dia da

criança desaparecida, haverá uma caminhada e vamos fazer uma

grande intervenção artística, com maracatu, grafite, circo. Mas to-dos eles vão estar voltados para a causa”, contou. “As pessoas nos olham com cara de piedade. Ah coitada! Nós não somos coitadas, somos vítimas do sistema. Quan-do você pega a dor e olha cheia de lágrimas, você vai chorar também. Quando você pega a dor e pinta, dá vida, ela chama a atenção. Pre-cisamos fazer essa virada”.

“Dar vida à dor” ao invés de

chorar. Essa foi a estratégia adota-

da por Sandra em meio a seis anos

de buscas, passeatas, protestos,

frustrações e conquistas, que, para

ela, pingam como um conta-gotas em um reservatório de mil litros de água. Reservatório esse que só se esvaziará no dia em que Ana Paula voltar. “Se eu reencontrar a Ana Paula agora, acho que tudo o que eu não chorei, eu vou chorar. Eu não tenho nem palavras, ne-nhuma frase, além do meu abraço e do meu colo. Eu vou chorar muito. Tudo o que eu não chorei de raiva, eu vou chorar de felici-dade. Tudo o que eu não chorei porque tive que sair para procurar ela, o que eu chorei pelos “nãos” que eu ouvi, eu vou chorar de feli-cidade. Então, eu acho que só vou chorar”.

Sandra promove eventos culturais para promover a causa

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Ele vive em função do tempo das plantas, es-perando cada estação

do ano e a lua certa do mês. Isso tudo para a plantação e colheita de hortaliças e frutas. O agricultor familiar Salvador Rosa da Silva, Seu Dodô, deixou que o tempo da natureza lhe mostrasse quais eram as suas necessidades, desde a época certa para fazer as mudas de cada verdura, até o melhor período das

colheitas, que podem demorar

meses ou anos. E tudo isso tem um resultado: é o sucesso que faz na Feira Ecológica da Redenção.

Seu Dodô mora no Lami, no Sítio dos Herdeiros, que mesmo localizado na cidade de Porto Alegre é longe da região urbana, no extremo-sul. Para quem está acostumado a fazer rápidas viagens de ônibus no transporte público, pelas ruas da capital gaúcha, sur-preende-se ao saber que existem linhas que levam para tão longe,

mas que mesmo assim ainda estão dentro da mesma cidade. A che-gada, com a linha Lami/Beco da Vitória, leva bastante tempo. Em um dia sem trânsito, um pouco mais de uma hora, mas nos dias de semana, em horário de pico, a viagem pode chegar a duas horas.

O Sítio dos Herdeiros leva esse nome justamente pelo fato dessas terras serem uma herança do pai de Dodô, que foi dividida entre 8 irmãos, 18 hectares para

cada. É nesse lugar que Seu Dodô vive com sua esposa, Dona Vera Lucia, há mais de 35 anos, que é o tempo de casamento dos dois. Esse foi o lugar onde eles criaram os três filhos.

Fui para passar um dia no sítio dos Herdeiros e conhe-cer a rotina de um agricultor, e ver como esse cotidiano se reflete na passa-

SEMENTES da SABEDORIApor Suelem Freitas

Dodô espera em média 20 dias para as plantas começarem a crescer no viveiro

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verão, como por exemplo a al-face, pois com o calor os inse-tos acabam estragando a plan-ta. Além do mais, o agricultor economiza água ao deixar de produzir essa variedade por alguns meses, “se passa sem alface, mas não se passa sem água” Seu Dodô comenta.

Há mais de 15 anos Dodô decidiu parar de usar produtos químicos na sua produção. Ele fazia isso quan-do produzia para a CEASA (Centrais de Abastecimento de Porto Alegre), mas aos poucos decidiu entrar para a Feira Ecológica e mudar a sua forma de cultivar a horta e de per-ceber os alimentos que produzia e consumia, “por que tratar uma planta como um doente?”. Hoje, recebe também apoio da Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural).

A questão da ansiedade é o problema que ele vê no mundo atual, “as pessoas hoje estão so-frendo de ansiedade, as pessoas querem tudo ligeiro”, fala o agri-cultor, se referindo ao uso de agro-tóxicos. Produtos químicos usados em plantas podem acelerar o seu amadurecimento, mas Dodô ob-serva a questão da espera, “as plan-tas da horta precisam de tempo

para começar a crescer”. E ainda pensando na vantagem de plantar orgânicos, diz que uma delas é não

precisar mentir que não tem agro-

tóxico “hoje posso garantir que é

orgânico desde a semente, pois eu

mesmo preparo as mudas. Fiquei

consciente de que isso é um ali-mento.” E a garantia não é apenas para os clientes, mas também para a própria alimentação, que é mui-to mais saudável. Isso foi notável

no almoço que Vera preparou,

pois ali haviam vários dos legumes

da horta.

Seu Dodô mantém um vivei-ro de mudas. Algumas plantas pre-cisam ficar alguns dias nesse lugar,

que protege as mudas do sol forte e mantém umidade, para passarem pela primeira fase de seu desenvol-vimento, mas Dodô também faz plantio direto com outros vegetais.

A observação é um ponto muito importante na vida do agri-cultor. Ele afirma que é quando ele para, em silêncio, no meio da horta é que consegue se concen-trar, e pensar no que é necessário ser feito naquele lugar, “quem me ensinou isso tudo aqui foram as próprias plantas, que com o passar do tempo foram me mostrando o que queriam”, lembra o agricultor. Tudo isso em contraponto com a cidade, onde o tempo e as pessoas correm em outro ritmo, Dodô diz

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gem do tempo no campo. O casal costuma receber diversas visitas, tanto de amigos quanto de estu-dantes universitários, pesquisa-dores, grupos de crianças trazidos por escolas, fotógrafos e jornalistas para fins de pesquisa e trabalhos. Pelo fato de já estarem habitua-dos com a visitação, facilmente pude conhecer cada parte do sítio, acompanhada quase sempre por Seu Dodô.

“O campo passou a ser as-sociado a uma forma natural de vida - paz, inocência e virtudes

simples.”

O campo e a cidade, Ray-

mond Williams, 1989

A HORTA

A horta de Dodô recebe uma dedicação exclusiva. Esse é o lugar onde ele passa a maior tempo do seu dia. Todos os alimentos plan-tados ali são livres de agrotóxicos, e para mantê-la o agricultor usa de seus instintos: anda de pés des-calços na terra (mas, segundo ele, sempre olhando por onde pisa), faz uma observação minuciosa do crescimento das plantas e dos in-setos que passam pela horta e usa o silêncio, como forma de concen-tração, para perceber cada detalhe

do que acontece ao seu redor.

Na horta são cultivadas ver-duras e legumes. Entre elas estão variedades de alface, rúcula, chicó-ria, nabo, pimenta, cebola, batata, feijão, pepino mizuna, chingensai (essas últimas são hortaliças tipica-mente cultivadas no Japão), além do hibisco, que é uma flor. No sítio também há diversas árvores frutíferas carregadas de laranjas, ameixas, peras, caquis, abacates, carambolas, jabuticabas.

Dodô segue uma filosofia de não vender suas sementes. Apenas doa ou troca com outros produ-tores, ou ainda ganha de amigos e clientes da feira. Além disso, a maioria delas vem dos próprios frutos plantados pelo agricultor, que é adepto à Agroecologia. Muitas dessas pessoas vão para outros lugares do mundo e trazem sementes para ele, ”a pessoa vai lá no Japão e lembra de trazer uma semente para mim”, diz Dodô, ressaltando a importância das re-lações que constrói. O agricultor também afirma já ter começado uma plantação de tomates com uma só semente.

A rotina de Seu Dodô come-ça bem antes do sol nascer, pois acorda às 5 horas da manhã para cuidar da horta. Toma o primeiro

café da manhã logo depois que levanta e outro em torno das 8 horas. O hábito de acordar cedo começou quando seu Dodô ainda era criança, “levanto às 5 horas da manhã, pois eu era o primeiro a ser chamado, quando pequeno, para tirar o leite da vaca”. Desde então, esse hábito nunca mais se perdeu. Dodô diz que muitas vezes acorda até antes do desper-tador.

De manhã cedo, se ainda esti-ver muito escuro para trabalhar na roça o agricultor não perde tempo: fica preparando sementes em casa. Nos invernos rigorosos ele acorda no mesmo horário, mas arranja uma forma de espantar o frio: “quando está frio eu pego uma enxada e vou capinar”.

O hibisco é uma das plantas que Seu Dodô tem mais prestígio na horta. Ele já cultiva essa flor há muitos anos, e é dela que vêm muitas das geleias e pastas que Vera prepara para vender na Feira Ecológica, e ainda da planta se tem o chá que oferece diversos be-nefícios à saúde. Dodô explica que o hibisco é o plantado em agosto, colhido em março, abril, maio, até o frio se aproximar.

Também existe o cuidado de não plantar algumas hortaliças no

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que “na cidade, com todo o baru-lho, com toda a correria, não da-mos tempo para sentir o silêncio.”

Nessa observação ele já sabe até prever o tempo. Nesse outono de 2015 Dodô já percebeu que as formigas ainda não vieram para fazer o estoque de alimentos. Isso é um sinal de que o início do in-

verno não vai ser muito rigoroso.

Ele explica que os insetos costu-

mam vir nessa época para preparar a comida para não precisarem sair no inverno, e dessa forma preser-var a espécie. Afinal, nem só para comer a vegetação e atrapalhar na

produção que os insetos vêm para a horta, “tem vezes que a formiga ou o piolho de planta até ajudam, temos que aprender a viver com os bichos”, diz Dodô.

Ao longo do dia, Dodô vai para a horta e volta para casa em torno de 3 ou 4 vezes para se ali-mentar. Logo depois que anoitece ele volta para casa para descansar, mas não fica muito tempo parado. Ainda preenche esse tempo sepa-

rando a semente do hibisco para a

secagem, e então costuma ir dor-mir em torno das 20 horas.

“...há um contraste profun-

do impregnado de inúmeros sentimentos: contraste entre o que parece natureza virgem - a presença física de árvores, aves paisagens em movimento - e uma agricultura ativa, que na verdade produz boa parte da na-tureza.”

O campo e a cidade, Ray-

mond Williams, 1989

A CRIATIVIDADE SUSTENTÁ-VEL

No mundo em que vivemos, principalmente nos grandes cen-tros, estamos cheios de facilidades

à nossa volta. Por um lado isso é uma coisa muito boa, pois temos a chance de ocupar o nosso tempo com diversos outros afazeres, porém desapren-demos a fazer coisas simples do cotidiano, como colocar em prática a nossa criativida-de. É isso que Seu Dodô faz todos os dias.

A partir de

Variedades de batatas que Dodô planta

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nossas necessidades nos tornamos criativos. Seu Dodô conta que quando era criança ele mesmo que fazia seus brinquedos. Um dia uma cliente foi visitá-lo no sítio e disse que a horta parecia um brin-quedo para ele. Isso foi um estí-mulo para Dodô ter a ideia de fa-zer o Semeador: um instrumento criado pelo agricultor, feito a par-tir de um pote de plástico cheio de furinhos, com rodas nas laterais e um fio de ferro para o manuseio, que serve para facilitar no plantio de sementes que são muito peque-nas e difíceis de pegar com a mão. Assim, ele não precisa se abaixar além de facilitar o plantio semente na terra. Ele ainda afirma, “Se es-tragar eu vou saber arrumar, pois fui eu que inventei”.

Outra invenção parecida com o Semeador é o Socador de terra, que foi feito para deixar a terra bem junta depois do plantio. Como resultado, se economiza água, pois a terra fica mais unida, não deixando a umidade ir embo-ra rapidamente. Além disso, Dodô criou uma pia ambulante para fa-cilitar a higienização das mãos na Feira Ecológica,

Esses utensílios que Dodô cria são todos feitos de materiais reci-clados, que um dia perderam sua

função para alguma coisa, mas que agora podem ser usados de outras maneiras. Seu Dodô tem uma grande consciência ecológica, e para ele o lixo deveria deixar de se chamar “lixo”. Ele vê a necessida-de de mais coisas serem recicladas, pois além de estimularmos a nossa criatividade estaremos colaboran-do com o equilíbrio do planeta. O consumismo que percorre nossa sociedade estimula o descarte fácil de coisas que poderíamos estar reutilizando, “todo mundo quer comprar tudo e acaba jogando as coisas fora rapidamente”, afirma Dodô.

Uma das experiências do agri-cultor que também envolveu cria-tividade foi a participação do Dia da Alimentação, na Emater. O ele teve que fazer dois painéis que guarda até hoje em casa: um con-tando sua história como produtor rural (ali reuniu documentos, fo-tos e reportagens). O outro painel foi feito com sementes, pois Dodô quis falar sobre a importância da troca de sementes.

A sustentabilidade está com Dodô a cada coisa nova que surge em sua mente. Ele está a todo o tempo em sintonia com o mundo ao seu redor e as suas ações refle-tem a responsabilidade que ele

tem com a natureza.

“A “forma de vida” cam-pestre engloba diversas práticas (...) e sua organização varia da tribo ao feudo, do camponês e

pequeno arrendatário à comuna rural.”

O campo e a cidade, Ray-

mond Williams, 1989

A FEIRA

Há 15 anos Seu Dodô acorda às 3 horas da madrugada de sexta para sábado para ir até a região próxima ao centro de Porto Alegre montar sua barraca de hortifruti, na Feira Ecológica da Redenção. Além das verduras, legumes e fru-tas, também são vendidos doces e pastas caseiros que Vera faz em casa.

Existe um cuidado com rela-ção aos dias de colheita para a fei-ra, que acontece no sábado. Para chegarem fresquinhas as hortaliças são colhidas na sexta-feira; e as pimentas, que são um pouco mais resistentes ficam para o meio da semana.

Uma das coisas mais impor-tantes que Seu Dodô aprendeu, como um agricultor familiar e feirante, é a rotação de cultura, “as

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pessoas querem provar as varieda-des”, diz ele. O agricultor costuma levar sempre algo novo ou diferen-te para a feira, como diversos tipos da mesma hortaliça ou legume, pimentas (dedo-de-moça, biqui-nho, Jalapeño vermelha), batatas (inglesa, rosa, roxa).

Para Vera fazer os doces da feira, eles resolveram montar uma cozinha industrial, para que estivessem de acordo com as nor-mas da vigilância sanitária. A co-zinha antiga foi dividida para que tudo estivesse em ordem. Vera se mostrou muito satisfeita com o novo espaço.

As relações interpessoais têm um grande valor para Dodô, e é na Feira Ecológica o lugar onde essas amizades se intensificam. Ele considera que ao conhecer al-guém estamos aprendendo, e que é na conversa com as pessoas que trocamos os saberes, “as pessoas passam a ser uma família”, diz o agricultor. Ele gosta de conversar, mas tem também um grande apreço pela vida prática. Carrega a vivência como uma das princi-pais fontes de conhecimento. Ele adquiriu a notável sabedoria que tem hoje fazendo essas duas coi-sas: trocando ideias e plantando na horta.

A visita ao sítio do Seu Dodô e da Dona Vera foi um grande aprendizado. Ali, as coisas simples estão valorizadas: o contato com a natureza, o cuidado com as plan-tas, as relações interpessoais. Ver

o tempo de uma vida dedicado a uma coisa tão valiosa que é a nossa comida e, consequentemente, a nossa vida, também é um legado que não pode jamais se perder no tempo.

Semeador criado por Dodô

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O vinil é um meio de as pessoas se pre-sentearem.

O disco de vinil é como uma flor embrulhada em um cartão, cujo papel, mesmo estampando fotos, cores e nomes, já serviu de base para muitas declarações de amor.

Aquele pedaço de cartão 30 cm x 30 cm – com uma arte grá-fica desenvolvida cuidadosamente desde a capa até o encarte, que são finalizados através de um processo quase científico, envolvendo im-pressão e acabamento – foi, e ain-da é, destinado a muitas pessoas.

No terceiro andar da Galeria Chaves, um dos prédios veteranos da Rua dos Andradas, situada no centro histórico de Porto Alegre, existe um espaço dedicado a esses objetos, cujo valor está presente não só em sua materialidade, mas

também no conteúdo: as canções que pairam na imensidão do tem-po. Para os amantes dos discos, tanto clássicos como obsoletos – que podem se tornar descoberta fabulosas –, visitar a Tamba Dis-cos é como passear pela própria infância e juventude, ou mesmo

desvendar épocas que não foram vividas. Na pequena sala, há mi-lhares de álbuns pendurados nas paredes e dispostos nas prateleiras que já emocionaram muitas pes-soas e estão prestes a emocionar o próximo comprador ou o seu destinatário.

as flores de plástico não morrempor Amanda Gomes

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as flores de plástico não morrem

“Desde criança eu tenho fa-

miliariedade com a música, os

discos sempre estiveram à mi-

nha volta através da coleção

que era do meu pai.”

A loja Tamba Discos é um espaço que guarda diversas can-ções que marcaram décadas e ge-rações. Tristes ou alegres, algumas músicas têm o poder de acessar memórias e trazê-las à tona como um tufão, varrendo todos os pen-samentos que encontra pela fren-te e ativando apenas uma cena,

um gesto, um olhar, um sorriso,

um sentimento, uma vontade.

A música transgrede as regras do

tempo. Através de apenas uma

nota, pode-se reconhecer o que foi

a trilha sonora de uma história.

Se o arranjo inicial pode remeter

imediatamente ao todo que com-

põe a melodia responsável

por embalar uma fase da vida,

o refrão é capaz de deixar o

coração em frangalhos e os

olhos mareados, acelerando a

pulsação e fazendo-nos mer-

gulhar nas lembranças.

Michel Munhoz, de 37

anos, é mais do que o aten-

dente da Tamba Discos, que

vende LPs e CDs novos e, em

sua maior parte, usados. Ele

é amante e profundo enten-

dedor de música. Apaixonado

por rock in roll, o músico já

fez parte de bandas do gênero

e segue desenvolvendo tra-

balhos musicais em estúdio

para diversos fins. Por isso,

suas vidas pessoal e profissional

são atreladas à música. “A música,

além de fazer parte do meu tra-

balho aqui na loja, está presente

nas atividades que desenvolvo fora

daqui e que também geram parte

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da fonte do meu sustento”, explica Munhoz.

Há cinco anos, o músico conduz o empreendimento que frequentou na juventude durante a maior parte do tempo. Ele relata que, quando o dono da Tamba Discos estava precisando de al-guém que conhecesse a loja e as sutilezas que ela possui, logo surgiu seu interesse em ocupar vaga sugerida. “Isso era para ter durado cerca de seis meses, só para quebrar um galho, mas ain-da estou aqui”, vibra Munhoz. Enquanto seu colega de trabalho e proprietário do comércio vai em busca de vinis que possam ser revendidos por eles, o mú-sico preocupa-se em atender o público cativo do lugar e indicar os álbuns que se aproximam do gosto musical de cada um.

“A faixa etária que costuma procurar nossos produtos vai dos 20 aos 80 anos”. Assim como a idade dos clientes, os gêneros musicais procurados por eles

são abrangentes. Munhoz afir-

ma que, embora o forte da loja

sejam os álbuns de rock in roll e pop, os discos de música clássica, Música Popular Brasileira (MPB), jazz e orquestras também são re-quisitados.

Gravado em estúdio, com composições e interpretações dos músicos Caetano Veloso, Gal Costa, Gil-berto Gil, Nara Leão, Os Mutan-tes e Tom Zé; dos poetas José Car-los Capinam e Torquato Neto; e do maestro Rogério Duprat, o dis-co Tropicália ou Panis et Circenses foi lançado em julho de 1968. Símbolo máximo do que significou o movi-mento tropicalista, idealizado musi-

calmente por Caetano e Gil, a obra sintetiza as angústias e ambições da geração que viveu o final dos anos 1960 e início da década de 1970. Munhoz diz que relíquias como essa são raras de se ver no mercado

e, quando são encontradas, o preço é bastante alto (podendo ultrapassar R$ 100).

Munhoz relembra que várias pessoas já qui-seram comprar o álbum, mas ele sempre fez questão de ressaltar que não estava à venda. “Os conterrâ-neos do Daminhão Experiência, ou quem teve oportunidade de co-nhecer o trabalho dele, se virem o

“O disco que mais me pedem é

o Tropicália ou Panis et Circen-

ses, mas faz tempo que ele não

passa por aqui.”

“Antes de trabalhar na Tamba Dis-

cos, eu já frequentava esse lugar

há mais de 20 anos.”

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“O disco que eu considero um verda-

deiro patuá da loja é do Daminhão

Experiência.”

disco vão querer leva-lo”, decreta o músico. “Um cliente carioca, que chegou a conhecer o Daminhão, veio aqui na Tamba e contou sobre a história do artista, super interes-sado em comprar o LP, mas eu não vendi não”, ressalta Munhoz. De acordo com ele, o próprio Daminhão, um cantor e compositor carioca, teria gravado seu LP de modo artesanal em sua própria casa. “Se tu escu-tares esse disco, verás que ele tem muitas músicas experimentais”, alerta Munhoz. Segundo ele, o

O bilhete junto ao vinil demonstra a admiração do pessoal da loja

por Daminhão, que é considerado o “pai” da música experimental

mais curioso sobre Daminhão, que ainda é vivo, é que o artista começou a produzir seus próprios discos nos anos 1970, após se aposentar da Aeronáutica, e tocava

nas ruas de Botafogo. “Esse cara é uma lenda urbana do Rio de Ja-neiro”, revela Munhoz.

Para Munhoz, a sonoridade do vinil é

única. “O som do LP é analógico, não é como um compact disc, cuja sonoridade é totalmente esterili-zada e a reprodução parte de uma leitura binária. O vinil não, expe-rimenta escutar a intensidade dos graves, a musculatura do som, a

fricção do acetato da matéria viní-lica”, ele analisa. O músico ainda fala sobre a maneira adequada de se apreciar um vinil: “Como a agulha faz a reprodução do som pelo contato com o LP, através do sistema analógico, ela também capta sons externos, por isso o am-biente pode ajudar ou atrapalhar a escuta do ouvinte”. O método de gravação da voz e dos instru-mentos das canções no plástico do LP é um processo físico. Os sons ficam guardados nas ranhuras pelas quais passeia a agulha. “Os caminhos que a agulha percorre não é linear, ela oscila de nível, o próprio vinil balança à medida que ele gira e faz a música tocar”, reflete o músico ao descrever um objeto atemporal.

Conforme Munhoz, é isso que prende a atenção das pessoas e faz com que elas sintam neces-sidade de pegar o vinil na mão,

“Em primeiro plano, o que é mais

especial no vinil é a sua sonori-

dade.”

“Ler um encarte é como folhear

um livro.”

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examinar os detalhes das imagens, folhear o material, dar uma olhada na ficha técnica. É como ler um livro: ao manusear o disco a gente imagina as coisas, viaja ouvindo o álbum e ao mesmo tempo tem o contato com ele”.

Munhoz conta que alguns discos chegam até eles em estado deplorável. “Nós fazemos um tra-balho criterioso para receber LPs de boa qualidade. Não adianta o disco ser raro e seu estado de con-servação estar péssimo”, ele pondera.

Acompanhando o universo

das trocas que uma loja de artigos usados promove há bastante tem-po, Munhoz relembra al-gumas histórias curiosas de reme-tentes e destinatários que são eter-nizadas nas capas e nos encartes dos discos. “Quando fiz a leitura do texto, notei que a pessoa estava com o sentimento à flor da pele para dar aquele disco de presente,

mas não percebi se ela queria des-

fazer o relacionamento ou reatar,

porque o sentido das frases era dúbio”, nar-ra o músico. Ele conta que já vendeu esse LP, e, quando o cliente se interessou pelo mate-rial, ele fez questão de

mostrar a dedicatória, temeroso de que isso impedisse o negócio. “Daí o cara me disse: ‘Nossa! Eu vou levar esse disco, eu preciso levar esse disco’, e eu pensei: Poxa, que legal, ele leu e gostou”.

Para o músico, a graça das dedicatórias é que elas são encon-tradas de surpresa. “Eu não separo

“Eu lembro de um disco do

Zé Ramalho, que tinha uma

dedicatória enorme dentro,

com assinatura e data de

1978, mesmo ano de lança-

mento do LP.”

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os discos que têm dedicatória dos que não tem, e cada vez que a gente se depara com uma, a novi-dade é inevitável”.

Quando se está gravando e pro-duzindo, desenvolve-se um trabalho de registro. De acordo com Mu-nhoz, gravar um álbum é como fo-tografar: “O que é prensado e grava-do no disco, vai estar ali eternizado”. Segundo o músico, um vinil possui

“O disco é a passage do tempo.”

uma durabilidade muito grande. Ele afirma que as gravações de um CD, por exemplo, podem sumir em um período muito mais breve do que as de um LP. “O vinil tem essa atem-poralidade”, reitera ele.

Conforme Munhoz, ao fazer uma canção, o compositor pode tratar de um tema que deve ficar datado, como a ditadura militar no Brasil, ocorrida na década de 1960, por exemplo. “Tem vinis que possivelmente servem como objetos de pesquisa de determinada época, funcionando como um arquivo da

cultura”, explica ele.

Quando pergunto sobre a música que traz boas lembranças ao Munhoz, ele diz que essa per-gunta, feita dentro de uma loja de discos, é difícil de ser respondida. Concordo com ele, mas insisto que certamente existe uma letra que marcou uma fase da vida dele. Então, Munhoz posiciona uma das mãos no queixo e começa a olhar para a parede repleta de capas, até que encontra o álbum Ocean Rain, da banda inglesa Echo and the Bunnymen, de 1984.

Michel Munhoz com um dos seus discos favoritos

“Neste disco tem

uma música que

eu gosto muito e

me lembra esta

loja aqui há uns

20 anos, quando

eu entrei nela e

este disco estava

exposto. Na épo-

ca eu o comprei e

ainda ouço.”

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Apunhale um coração arrependido

Com o seu dedo favorito

Pinte o mundo inteiro de azul

E pare as suas lágrimas de remorso

Ouça o canto dos trogloditas

Boas notícias eles estão trazendo

Sete mares

Nadando-os tão bem

Contente de ver

A minha cara entre eles

Beijando o casco da tartaruga

Um desejo para

Um pouco de sensação mais fresca

Pertinência

Ou somente para sempre ajoelhar

Onde está o sentido no roubo

Sem a graça de ser ele

Sete mares

Nadando-os tão bem

Contente de ver

A minha cara entre eles

Beijando o casco da tartaruga

Queimando minhas pontes

E destruindo meus espelhos

Voltando para ver se você é covarde

Queimando as bruxas com mãe religiosa

Você baterá os fósforos e me banhando

Em jogos de água

Lavando rochas em baixo

Ensinado e amansado

A tempo com fluxo de lágrima

Sete mares

Nadando-os tão bem

Contente de ver

A minha cara entre eles

Beijando o casco da tartaruga

Sete mares

Nadando-os tão bem

Contente de ver

A minha cara entre eles

Beijando a tartaruga

Sete mares

Nadando-os tão bem

Contente de ver

A minha cara entre eles

Beijando o casco da tartaruga

SETE MARES (Seven Seas)

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Um dia é constituído de 24 horas, que convertidas resultam em 86.400 segun-dos. Desse tempo, espera-se que retire, no mínimo, 8 horas para dormir. Logo, as 16 horas que nos restam para são trabalhar, cuidar da vida pessoal e tratar de afazeres cotidianos da vida. Saber administrar o tempo não é fácil, e na era onde tudo corre sortudo mesmo é quem ousa dizer que tem tempo. Mas e quando tempo

torna-se o fator limite de quem trabalha?

Junior e Maurício não se conhecem. Um trabalha há 33 anos e outro há 19. Um é bombeiro e o outro enfermeiro. De comum entre os dois, apenas a escolha de profissões onde não existe tempo demarcado, aliás, é o tempo que coordena suas

profissões.

TEMPOheróis do por Gabriela Gil

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UMA NOVA VISÃO DO TEM-PO

Sargento Junior trabalha atualmente no Grupo de Busca e Salvamento

(GBS) de Porto Alegre. A motiva-ção que o fez entrar para o corpo de bombeiros partiu por incentivo de colegas, na época em que ainda estava no exército. Desde fevereiro de 1983, quando passou a fazer parte do corpo de bombeiros, o Sargento passou a ter uma nova relação com o tempo: “A gente trabalha num plantão de 24 horas, em condições de atender qualquer ocorrência nesse período. E na

medida do possível a gente fica preparado, sempre preparado es-perando a ocorrência que der”. É como um relógio que nunca para, onde os ponteiros podem ser der-radeiros, marcando o fim de uma vida ou a esperança de se salvar uma.

Ao longo dos 33 anos traba-lhando como bombeiro, coleciona histórias, mas uma em especial lhe foi marcante, uma ocorrência de desabamento no bairro Petrópolis: “O tempo que a gente chegou foi essencial para retirar o pessoal que estava soterrado numa obra que desabou. Como o atendimento

foi rápido, o deslocamento foi rá-pido, a gente conseguiu salvar os três que estavam soterrados”, ele relembra. Talvez alguns minutos a mais, alguma demora causada pelo trânsito, pelo tempo ou por mo-tivo de deslocamento, teria feito com que três vidas fossem perdi-das. “Essa me marcou bastante porque é gratificante pra gente quando conseguimos chegar no local da ocorrência e ajudar o pró-ximo que tá precisando. Marcou bastante pra mim, e todos os três foram conduzidos com vida para o HPS”, ele recorda.

Se o tempo é às vezes o salva-dor, pode se tornar o oponente quando se trata da questão do trânsito da cidade, que fica in-viável nos horários de pico: “As dificuldades que a gente enfrenta bastante é na questão do tempo, deslocamento entre a ocorrência e o local do sinistro. Essa é a nossa maior dificuldade”, afirma o Sar-gento.

Do tempo que fere, ao tempo que ajuda, resultando no tempo que confunde, todos esses anos trabalhando na corporação fize-ram com que o Sargento Junior alterasse sua percepção de tempo: “É uma questão de quase não conseguir diferenciar. Eu, por exemplo, durmo mal. Quanto

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estou em casa, qualquer barulho, qualquer movimento, eu já me acordo em consequência do ser-viço. Do meu próprio serviço de fazer meu plantão, fazer minhas 24 horas e ir embora, isso faz com que eu fique em alerta. Eu defi-nitivamente enxergo o tempo de uma forma diferente”.

As marcas que lhe foram dei-xadas com o tempo fizeram com que tivesse outra visão da vida, prevendo as possíveis futuras ocor-rências. Segundo o dicionário, o bombeiro é o “indivíduo que obser-va atentamente os atos de outrem”, e é na fala do Sargento que se ob-serva isso: “Não tenho um horário específico, mesmo eu estando de folga. Se a gente vê uma coisa que mais tarde possa gerar um aciden-te, uma ocorrência, falamos pra pessoa que tá diretamente ali ou vamos lá e chamamos atenção. Mesmo estando de folga. É com-plicado, a gente tem uma visão bem mais ampla, por causa da profissão, certamente”, ele conta.

Para o Sargento, as ocorrên-cias representam algo bom para ele. “Quando a gente sai é para a felicidade dos outros, na verdade. Porque é sempre para atender uma ocorrência. A gente consegue, na maioria das vezes ajudar quem tá precisando. Infelizmente tem que

sair, mas felizmente no sentido de que se tem alguém para ajudar. É assim que eu me sinto”, ele diz.

TUDO AO SEU TEMPO

Maurício Pimentel está na enfermagem há 19 anos, já foi auxiliar, técnico, fez faculdade e

se especializou em urgência. Já

trabalhou em hospitais, hospitais

psiquiátricos, mas foi somente na

emergência em que ele se encon-trou. A entrevista já começa na correria contra o relógioa, o enfer-meiro trabalha no HPS, dá aulas no SENAC RS e à noite trabalha no SAMU (Serviço de Atendi-mento Móvel de Emergência). O entusiasmo que exalta enquanto fala sobre o seu trabalho é trans-crito em suas palavras: “A gente trabalha na chuva, a gente traba-lha no frio, no calor, 40ºC naque-le macacão horrível, vai em cenas de violência, corre risco de trânsi-to todos os dias nesse trânsito ma-

luco que a gente tem na cidade. E a gente ganha, em termos de sa-lário, a mesma coisa que o colega que trabalha na emergência daqui, um segurança na portaria com ar condicionado que corre o risco mínimo de violência. Mas não como nós que vamos nos locais de tiroteio, em boca de tráfico, a gen-te tá junto com a polícia muitas vezes. Só que eu resumo trabalhar no SAMU da seguinte forma: é do ca-ra-lho. É muito legal. Pergunta pra qualquer um que tá no SAMU se quer sair, não sai, não querem sair, ninguém quer sair”.

Se a rotina dentro de um emprego é a comodidade com o tempo, isso não se apresenta no

SAMU. É a emoção, o correr con-

tra os minutos e contra o trânsito

que comanda seus socorristas. “O que é bom no SAMU é a rotina de não ter rotina. O fato de não ter uma rotina especifica, a adrenalina que se sente quando se sai daqui e vai para uma ocorrência sem saber

“Quando a gente sai é para a felicidade dos outros. Porque é sempre para atender uma ocorrência. A gente consegue, na maiorida das vezes, ajudar quem tá precisando. In-felizmente tem que sair, mas felizmente no sentido de que se tem alguém para ajudar”.

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exatamente o que a gente encon-tra, isso é muito legal. Por mais que a Central passe pelo rádio pra gente o atendimento que vamos fazer, nunca sabemos o que vamos encontrar lá. E isso é muito bom”, conta Maurício. Além disso, o tempo que passa trabalhando faz com que Maurício passe a conhe-cer todo mundo que trabalha nas emergências de outros hospitais, o que ele afirma ser algo bom: “A gente sempre vai nas emergências e procura ter boas relações, porque daqui a pouco eu posso precisar de algum colega de lá ou vice-versa. Muitas vezes a gente nem lembra o nome, mas sabe que lá tem o fu-lano. ‘Bá, tá lá no meu Facebook’; ‘Bá, to com um parente aí’, e isso é muito legal.”

Quando se está no plantão e não tem ocorrência, uma relação inversa com o tempo ocorre. “Só quando tá mais tranquilo que de-mora mais pra passar. Basicamente é isso, se a gente tá no plantão e não tem ocorrência, a gente fica aqui, dormindo, tomando chimar-rão”, conta Maurício. Mas toda essa tranquilidade que, às vezes, o tempo dentro da emergência pode apresentar, é necessário ter uma atenção particular. “Se chamam minha equipe, tem que levantar e sair correndo, sempre de pron-

tidão, na realidade, sempre de vigília. Se descansa, mas com o ouvido ligado sempre”, afirma o enfermeiro. E se alguém pensa que ficar 12 horas trabalhando pode ser algo vagaroso, definitivamente não é o que ocorre com Maurício:

“O tempo voa, o plantão de doze

horas passa muito rápido, até os

de 24 horas”. Ouso dizer que é o

amor pela sua profissão que faz com Maurício tenha outra pers-pectiva sobre o tempo.

Trabalhar numa profissão que tem como premissa o outro faz com que a enfermagem e o tempo

sejam coodependentes entre si. 60 segundos podem fazer toda e total diferença na vida de alguém, seja esse alguém um enfermeiro que está em serviço ou alguém que precisa ser socorrido. “Tem uma coisa muito peculiar desse traba-lho, principalmente no SAMU. Têm certos atendimentos que a gente faz na rua, em casa, enfim, aonde naquele momento, naquele segundo em que tu tá ali, se tu não tomar alguma atitude, a pes-soa morre em segundos, minutos”, conta Maurício. 30 segundos, 120 segundos, tudo importa. Segundo ele, “se alguma vítima de acidente

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de trânsito inconsciente de bar-riga pra cima vomita, se tu não pegar ela e virar de lado na hora, a pessoa morre afogada. Um sangra-mento, uma hemorragia, tu tem que te ligar de pegar um pano, botar ali e apertar senão a pessoa morre sangrando”.

Quando perguntado sobre as dificuldades da profissão, ele diz que não vê muitas. Logo dispara: “O que eu penso, o principal, é não descuidar da vida pessoal, isso eu acho muito importante”. Na era dos workaholics – pessoas que são viciadas em trabalhos -, onde tempo é dinheiro e cada vez se trabalha mais e se descansa menos, Maurício parece ir contra essa re-gra. “Por mais que eu curta e goste muito do que faço, eu não sou só trabalho. E muitos colegas enlou-quecem a médio prazo, a longo prazo, enlouquecem por não ter atividades fora do trabalho”, ele conta.

Trabalhar demais faz mal, podendo causar a Síndrome de Burnout, também conhecida como síndrome do esgotamento profissional, que resulta num es-gotamento físico e mental do pro-fissional. Trabalho em excesso não faz bem, aliás, como dizem, tudo tem o seu tempo, tem o tempo de trabalhar, tempo para descansar

e tempo para se divertir. “Eu não deixo de tomar minha ceva na Ci-dade Baixa, não deixo de acampar, curto muito blues e jazz, então eu tô sempre na noite. Como eu trabalho por escala, uma noite sim e duas não, às vezes é segunda de noite, terça de noite e o pessoal diz: ‘ah, vai sair na segunda?’. Mas são os meus horários e eles são bem diferentes”, diz Marcelo. Segundo ele, é essencial encontrar

um equilíbrio no tempo em que

se passa trabalhando, não são as horas que se trabalha na semana que faz de você um profissional excelente, acho mesmo que exce-lente é quem sabe administrar seu

tempo sem esquecer de viver. “Eu

acho que não pode jamais virar

em só trabalho. Não preciso andar sempre de terno e gravata e nem ser um cara sério para ser um bom profissional. Eu posso ser um bom profissional e curtir várias coisas, então acho que isso é fundamental

para o equilíbrio das coisas”, afir-ma ele.

Maurício sabe separar bem o seu tempo, valoriza suas folgas e além de enfermeiro e professor, ele também organiza grupos para acampar em ferrovias. “Quando eu tô de folga, eu tô de folga. A gente tem que ter as coisas que curte, por exemplo, quando estou curtindo um blues nos lugares em que eu gosto de ir, tomando uma ceva, ouvindo aquele som, é como se eu estivesse em outro mundo, em outro plano astral, então o tempo passa de forma diferente. Quando tô nos trilhos, o lugar é mágico, quando estou lá parece que a coisa é outra, eu nem lembro de tempo, nem lembro de nada”, conta Maurício.

A entrevista termina com Maurício saindo apressado. O tempo não para pra ele, nem para o Sargento Júnior, e muito menos para mim.

“Eu acho que não se pode jamais virar só em trabalho. Não preciso andar sempre de terno e gravata e nem ser um cara sério para ser um bom profissional. Eu posso ser um bom profissional e curtir várias coisas, então acho que isso é fundamental para o equilíbrio das coisas”.

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Expediente

Cleunice Schlee, Gabriela Gil, Flávio Bonfiglio e Victor Caprioli

COMISSÃO EDITORIAL

Flávio Bonfiglio

REVISÃO

Gabriela Gil e Jennifer Dutra

PROJETO GRÁFICO e diagramação

Wladymir Ungaretti

orientação

Nádia Alibio

capa

A Sextante é uma publicação dos alunos de Jornalismo para a disciplina de Jor-nalismo Impresso IV da Faculdade de Biblioteconomia e Comunição da UFRGS, ministrada pelo professor Wladymir Ungaretti. Esta edição foi produzida no primeiro semestre de 2015.

Tiragem: 700 exemplares

Impressão: Gráfica da UFRGS

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EQUIPE DE REPORTAGEM

Amanda Gomes [email protected]

Amanda Kaster [email protected]

Bruno Teixeira [email protected]

Cleunice Schlee [email protected]

Filipe Kunrath [email protected]

Gabriel Brum [email protected]

Gabriela Gil [email protected]

Juliana Demarco [email protected]

Ludmila Cafarate [email protected]

Marcelo Carôllo [email protected]

Marina Bitencourt [email protected]

Juliano Marchant [email protected]

Suelem Freitas [email protected]

Matheus Rosa [email protected]

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