sextante 2013.1 - independência

68

Upload: gabriela-sanseverino

Post on 23-Mar-2016

312 views

Category:

Documents


43 download

DESCRIPTION

A Sextante "Independência" nasceu no rebuliço. Na construção de um novo cenário. Pautas deixaram de ser revisadas em certos momentos porque os editores não podiam ficar em casa alheios ao que acontecia nas ruas do país. Repórteres desrespeitaram prazos pois estavam construindo uma nova perspectiva de participação do povo. Os alunos do Ungaretti, os feitores da Sextante, os discentes da UFRGS, os estudantes do Brasil sabiam que o seu lugar era o asfalto. A revista surgiu junto com novos paradigmas. Rogamos, apenas, que o cheiro de gás lacrimogêneo - inalado em abundância pela maioria de nós - não esteja mais pairando por aí quando tu estiveres lendo essa revista. ogamos, apenas, que o cheiro de gás lacrimogêneo - inalado em abundância pela maioria de nós - não esteja mais pairando por aí quando tu estiveres lendo essa revista. Que teus olhos lacrimejem e a respiração falte, não pela repressão policial, mas pelo prazer e emoção de compartilhar desse trabalho!

TRANSCRIPT

Page 1: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante

Independência

2013.1

Page 2: Sextante 2013.1 - Independência

SUMÁRIOEDITORIAIS4

MANIFESTAÇÕESEnsaio Fotográfico

6

DE CABEÇA PARA BAIXO 12Wladymir Ungaretti

POEMAS13Camila Maccari

MAIS VOZES Por um Brasil Plural e DemocráticoJéssica Trisch

14

COOJORNALUm jornal para jornalistas 20Thamiriz Amado

JORNALISMO INDEPENDENTE 25Gabrielle Calegari

BOLiVROS27Paola de Oliveira

MUITO ALÉM DA TORRE DE MARFIM32Igor Porto

CAMALEÕES37Arthur Viana

AS DIFERENÇAS QUE NOS APROXIMAM 41Thays Cruz

FALTA DE AR48Caio Semensato

Entrevista com RONALDO LEMOS51Bruna Antunes, Douglas Freitas e Melissa Schröder

A FESTA ALHEIA tradução do conto de Liliane Heker 59Gustavo Duarte

RESPEITÁVEL PÚBLICO 64Priscila Daniel

FILME, CEVA E BRASIL 70Pedro Veloso

O JEITO GAÚCHO INDEPENDENTE DE SERJúlia Endress

74

FUTEBOL DE VÁRZEA longe da fama e ao alcance de todos81

Iaremas Soares

A INDEPENDÊNCIA DE FINANÇAS NA HABILIDADE DO FUTEBOL 86

Fernanda Fassina

QUANDO TUDO SE RESUME A COLHER A DOR90Rafaela Pechansky

AS PRIMEIRAS FEMINISTAS GAÚCHAS93Taís Castro

CRUZANDO A ÁFRICA NOS ANOS 1920, AOS 72 ANOS

97

Isabel Waquil

DEIXE-SE SURPREENDER Aline Bernardes102

QUANDO O MUNDO CAUSA A DEPENDÊNCIA DO SORRISO ALHEIO

107

Douglas Freitas

HISTÓRIA, LUXO E LEMBRANÇAS A família Torelly e os casarões da avenida Independência

117

Priscila Mengue

AVENIDA INDEPENDÊNCIAEnsaio Fotográfico Fotos de Bruna Antunes

123

EXPEDIENTE 132

Page 3: Sextante 2013.1 - Independência

Por uma pedagogia libertária

Paulo Freire, em uma das últimas vezes que esteve em nossa cidade, na Usina do Gasô-metro, dizia que um bom professor na vi-

rada do século (está-vamos na passagem do

século XX para o XXI) não deveria ter a pretensão de

ensinar nada a seus alunos. Que um bom professor era aquele que passava pistas, ro-teiros, caminhos e possibilidades; e que cada aluno, de acordo com sua respectiva enciclopédia, se apropriaria do “conhecimento” necessário. Dizia ele, também, em outra fala e em algum outro momento, que conhecer era um ato de afetividade. Que só aprendemos o que nos toca o coração, aquilo que representa uma desco-berta. Acrescento a estas noções que o contrário disso é a decoreba burocrática. Minhas experiências, nos úl-

EDITORIAIS timos anos, na coordenação do jornal 3x4 e da revista Sextante, só tem-me possibilitado a confirmação de tais ideias.

Pois esta turma me permitiu realizar um semestre com esta qualidade. Uma atividade absolutamente de sentido libertador. Por isso mesmo, a revista realizada tem o “rosto” destes jornalistas. Com uma das carac-terísticas essenciais da profissão: o trabalho de equipe com um sentido de um “fazer jornalístico” coletivo. A ninguém da turma foi imposto nada. Cada um teve a participação que se sentiu capaz e mobilizado. Minhas interferências foram da mais absoluta sutileza. Fiz-me, propositadamente, um professor não professoral.

Todo este espírito e estes parâmetros balizadores do semestre estão presentes nesse exemplar desta Sex-tante que, por essas razões, pode ser colocada entre as melhores já realizadas. Mais uma vez, só tenho a agra-decer este convívio de aprendizado fraterno com estes novos jornalistas.

Wladymir Ungaretti

Cada trabalhador deveria se armar e se

preparar fisicamente para lutar. Assim defen-

dia Carlos Marighella em busca da independência do

povo contra o regime militar no Brasil. No começo dos anos 90, a banda paulista Planet Hemp usou a música e o discurso da legalização da ma-conha para ver até onde a liberdade ia logo após uma ditadura. Gandhi deu, literalmente, a cara a tapa pela paz e a independência de seu país. Malcon X bradou que a violência era uma metodologia de transformação e não uma barbárie gratuita. A luta pela independência sempre foi diversificada - de acordo com cada corrente ideológica, momento histórico e condições de manifes-tação. Cada grupo, coletivo, guerrilha tem a sua forma de batalhar pelos seus direitos. Hoje as facetas da inde-pendência seguem sendo múltiplas, e é isso que expo-mos na Sextante 2013/1. Da viajante que encontrou sua liberdade em trilhas pela África ao livreiro caminhante que percorre Porto Alegre trabalhando. Do processo de democratização da cultura à luta pela independência de um país através da participação do povo pela Internet.

Hora de falar da sextante Além das lindas pautas, da diversidade de assuntos e

formatos - fotos, contos, poemas - a revista vem car-regada de sentimento. De tesão! A Sextante "Indepen-dência" nasceu no rebuliço. Na construção de um novo cenário. Pautas deixaram de ser revisadas em certos momentos porque os editores não podiam ficar em casa alheios ao que acontecia nas ruas do país. Repórteres desrespeitaram prazos pois estavam construindo uma nova perspectiva de participação do povo. Os alunos do Ungaretti, os feitores da Sextante, os discentes da UFR-GS, os estudantes do Brasil sabiam que o seu lugar era o asfalto. A revista surgiu junto com novos paradigmas. Não sabemos o que será do Brasil, da Turquia, da Gré-cia, do mundo quando a Sextante for distribuída, alguns meses depois do junho de 2013, quando as marchas ex-plodiram por todo o país e a publicação foi finalizada. Rogamos, apenas, que o cheiro de gás lacrimogêneo - inalado em abundância pela maioria de nós - não este-ja mais pairando por aí quando tu estiveres lendo essa revista. Que teus olhos lacrimejem e a respiração falte, não pela repressão policial, mas pelo prazer e emoção de compartilhar desse trabalho!

Comissão Editorial

Page 4: Sextante 2013.1 - Independência

Foto de Daniela Figueiredo

Foto de Ariel Fagundes

Foto de Michel Cortez

Foto de Yamini Benites

Belo Horizonte

Porto Alegre

Porto Alegre

Page 5: Sextante 2013.1 - Independência

Foto

de

Ita P

rischt

Foto de Ramiro Furquim

Foto de Rafael Chervanski

Porto Alegre

Brasilia

Port

o Ale

gre

Page 6: Sextante 2013.1 - Independência

Foto de Ramiro Furquim

Foto de Ramiro Furquim

Foto de Yamini Benites

Porto Alegre

Porto Alegre

Porto Alegre

Page 7: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 12

nósNosso

nós nóNosso

Nossos Desatando

MaccariPoemas

Camila

cabeçapara Por Wladymir Ungaretti

De

Precisamos virar o mundo de cabeça para baixo. A vida está nos esperando em sucessivas rebeliões. Pelas árvores, pelos animais, tarifas justas para o transporte coletivo, contra as desocupações arbitrárias e contra a sujeira e o lixo do sistema. Menos lixo já é uma rebe-lião. Sim, contra este mundo de embalagens do nada. A vida está nos esperando em praças não privatizadas. Nas montanhas e nos rios não poluídos. A vida está nos esperando. Só depende de nós.

Então, analise o mundo em volta e assuma a rebelião contra as forças que atuam em sentido contrário à sua busca por qualidade de vida. No jogo de cartas marca-das do sistema quase nenhuma diferença faz suas posi-ções na política real. Árvores serão derrubadas em qual-quer governo. Tarifas serão aumentadas em qualquer governo. O "Capital" é o Deus que manda em todos eles.

Acreditem, existe uma bru-

tal diferença entre vida e sobrevivência. As perguntas que temos que fazer é quanta coisa real-mente viva há em nossas vidas? Só descobriremos em sucessivas e lúdicas rebeliões, liberando nos-sa energia destrutiva e erótica nas ruas, vanda-lizando. Passamos muito tempo em lugares que são necrotérios. Lugares criados pelo sistema para nos aprisionar. Com todo o "desenvolvimento" ain-da é na rua que o verda-deiro jogo é jogado. Que venham novas e renova-das manifestações.

Os zapatistas dizem que o poder teme a força das máscaras. Noticiários televisivos destacaram que nas manifestações dos últimos tempos, os “vândalos” es-condiam o rosto. O aparelho policial estava "enferruja-do". Fazia tempo que não distribuía umas porradas para o espetáculo da mídia corporativa. O sistema precisa de "paz, organização e disciplina" para o trabalho. O van-dalismo dos protestos é um resgate, mesmo que mo-mentâneo, de nosso estado natural: soltos, leves, livres e criativos na destruição.

Não aceitemos sermos escravizados pelo trabalho e por um sistema de transporte caro que só acentua este "vai-e-vem" que nos coloca em circulação no mundo das mercadorias. Agora, nós podemos ser o espetáculo. Um espetáculo que não interessa ao sistema.

Vândalos do mundo, uni-vos!!!!!

de

Foto de Ramiro Furqyun

baixo

Page 8: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 15

Por Jéssica Trisch

No Brasil, a chamada mídia tradicional (rádio, tv, jornal, revista) lidera a comunicação e a informação que chega ao público. Algumas poucas redes e vozes con-trolam muitos desses veículos existentes no país. Para se ter uma ideia, segundo o projeto Donos da Mí-dia, no Brasil existem quase 9,5 mil veículos de comunicação, mas a maioria é contro-lada direta ou indiretamente por uma das cinco maiores empresas privadas: Rede Globo, Bandeirantes, SBT, Re-cord e Rede TV!.

Mesmo com o crescimento ex-pressivo das mídias digitais, essas empresas continuam sendo as mais procuradas nas novas plataformas. O site globo.com, por exemplo, é o sexto mais acessado no território na-cional, segundo atualização de março de 2013 da ferramenta Google Analytics. Esse é um fenômeno já observado pelos par-ticipantes do Coletivo de Comunicação Catarse. “A grande parte da população se forma nos grandes veí-culos, inclusive os que acessam a internet. Os mesmo veículos que eles assistem, ouvem ou leem, são os que eles procuram online”, afirma Jefferson Pinheiro, um dos fundadores da cooperativa.

Para consolidar uma democracia tão jovem como é a do Brasil, a diversidade de discursos é fundamental. No entanto, não é o que vem acontecendo. As vozes alternativas que existem no país não chegam à grande massa da população. São caladas pelas dificuldades fi-nanceiras e pela criminalização de qualquer discurso que tente ir contra o sistema hegemônico. A regula-mentação dos meios de comunicação social, que pode-

ria ser uma solução, esbarra na falta de vontade polí-tica da maioria dos governantes e no apelo distorcido da grande mídia que costuma associar regulamentação à censura. Mesmo entre os diferentes conglomerados

midiáticos do país, os interesses são muito seme-lhantes: o lucro vem antes da informação de

qualidade. Como resume o editor do jornal Jornalismo B, Alexandre Haubrich, “são

as mesmas ideias, só com CNPJs dife-rentes”.

O jornalismo independente, livre, alternativo, contra-hegemônico, ou qualquer outra denominação que dê conta do tipo de informação que foge dos interesses estruturados e

priorizados pelo sistema em que vi-vemos, vem ganhando força. Princi-

palmente nos últimos acontecimentos de efervescência social que o Brasil tem vi-

vido com os protestos contra o aumento das passagens do transporte público. Ao mesmo tem-

po em que ficou clara a cobertura tendenciosa da mídia tradicional e dos “barões” da informação, foram cres-cendo os relatos e coberturas colaborativas, de veículos independentes e de pessoas sem vínculo com o jorna-lismo. A partir desse espaço, os movimentos sociais pu-deram colocar sua pauta em evidência e conseguiram uma virada no tratamento que os veículos conservado-res vinham dando para o assunto. Mesmo assim, ainda falta uma longa caminhada para que outras demandas populares sejam abordadas na grande mídia, como ex-plica o editor e repórter do portal Sul21, Igor Natusch, “a mídia independente tem tido um papel importante em fazer o questionamento, em apontar a necessidade,

Mais vozespor um Brasil plural

e democrático

Para consolidar uma democracia tão jovem como é a do Brasil, a

diversidade de discursos é fundamental.

Protesto contra o aumento das passagens em Porto Alegre, foto publicada no dia 20 de junho no portal Sul21 Foto de Ramiro Furquim

Page 9: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 16 Sextante 2013.1 17

mas ainda é limitada, é um processo em crescimento. Ela ainda não tem espaço em grande parte da popula-ção para abrir uma discussão desse porte”.

Mesmo com esse olhar focado nos movimentos so-ciais e nas demandas do povo, o jornalismo alternativo precisa lidar com a realidade em que está inserido. “Nós somos independentes de certas coisas, como de alguns interesses. Mas dependentes de outras tantas, como dinheiro para pagar a impressão e de tempo para fazer a matéria, por exemplo”, esclarece Jonas Lunardon, do Jornal Tabaré.

Democratizar a mídia para democratizar o Brasil

A Constituição de 1988 deixa claro a ne-cessidade de uma regulação posterior dos meios de comunicação. Mesmo com algumas normas nesse meio tempo, nada de muito concreto foi alcançado. Em 2009, um novo marco regulatório estava sendo discutido, mas foi esquecido e engavetado. O governo Dilma já anunciou que não será proposto nada novo para o setor nesse mandato. Para Natusch, esse é o trata-mento que a presidenta dá para todos os assuntos polê-micos. “É um governo de acomodação. Não no sentido de ‘estamos acomodados’, mas de que todos os interes-ses fiquem equilibrados, na balança, que não haja tanta área de confronto, porque o grande objetivo dela não é a mudança social é a manutenção de um crescimento econômico que ela acredita que a partir daí poderá ge-rar transformação social”, explica.

O editor do Sul21 ainda acredita que será preciso um movimento social para que esse assunto passe a ser tratado com a importância necessária, já que não é do interesse de quem detêm o poder mexer nesse tema. Porém, a regulamentação da mídia não é tão fácil de se compreender quanto a questão do aumento das passa-gens, por exemplo, o que pode dificultar a tentativa de trazer a população para esse debate. “É um contexto complexo para a maioria das pessoas. Elas não conse-guem entender qual é a vantagem de ter mais veículos de comunicação, mais plurais, mais espaço pra esse tipo de discussão. Para muitas pessoas esse ainda é um de-bate muito fora da sua realidade”, explica Natusch.

O jornalismo independente ainda não tem a abran-gência suficiente para colocar a regulação dos meios de comunicação na pauta nacional. Cabe a eles aproveitar as brechas de outros países para tratar do assunto. “Fe-lizmente a gente tem exemplos nos nossos vizinhos, Argentina, Venezuela, Bolívia, Equador e Uruguai, que avançam nesse sentido e são exemplos de luta e atua-ção. Eles trazem o debate. Mesmo que a grande mídia distorça a perspectiva real da situação, fale sempre em censura, em ditadura, pelo menos nasce a discussão”, salienta Haubrich.

Para a equipe do Jornal Tabaré, é preciso começar uma conversa sobre o assunto pelo mais fácil, como o

fato de que regular não é censura. “A discussão sobre a regulamentação ainda é rasa, mas necessária, pois mesmo as questões mais básicas ainda não estão cla-ras”, aponta Natascha Castro. “Quando tu esvazia cada vez mais a questão, que é o que o grande empresaria-do midiático faz em relação à regulamentação, pra tu ir contra isso tu vai ter que ir no nível mais básico de dis-cussão, porque só aí tu começa. Desconstruir a ideia de censura, apesar de raso, é muito importante. É a base para uma discussão maior”, complementa Lunardon,

também do Tabaré.O Coletivo Catarse acredita

que o principal ponto que pre-cisa ficar claro é que a regula-

mentação da mídia não é de forma nenhuma censura. Mas a normatização de questões fundamentais como a qualidade da in-formação e programação, pluralidade de discursos,

restrições a propriedade cruzada e a distribuição mais

igualitária de verbas públicas. “Regulamentar é proporcionar

que outras pessoas, outros movi-mentos, possam ocupar esses lugares

de massa é muito importante para a democracia”, fina-liza Jefferson Pinheiro.

O jornalismo é independente, mas o sistema é capitalista

Em levantamento realizado em setembro de 2012 pelo jornal Folha de São Paulo com base em dados da Secretaria de Comunicação Social da Pre-sidência da República, no governo da presidenta Dil-ma Rousseff havia sido in-vestido mais de 161 milhões de reais para publicidade em aproximadamente 3 mil veí-culos de comunicação no país. No entanto, apenas 10 veículos concentraram 70% desse valor, o equi-valente a R$ 111 milhões. A Globo Comunicações e Parti-cipações S.A. recebeu um terço do dinheiro, 52 milhões de reais. Essa realidade da distribuição de verbas públi-cas federais é semelhante ao que acontece no Rio Gran-de do Sul, e também em nível municipal. A explicação para isso é a escolha de veículos com maior audiência para maior visibilidade.

A desigualdade de distribuição de verbas públicas é um dos principais problemas para o jornalismo inde-pendente. “A principal dificuldade de atingir público é financeira, a questão das verbas, dos anúncios. É uma questão muito complexa. Financiar o jornalismo inde-pendente é um drama”, afirma Haubrich. A dificuldade se assemelha a uma batalha para o Coletivo Catarse. “Trabalhar com comunicação independente no Brasil de certa forma é quase como uma guerrilha, uma resis-tência”, compara Pinheiro.

Para o editor do Sul21 a lógica dos governos está errada. Não é bom para a democracia que os grandes sejam cada vez mais alimentados e os pequenos fiquem esperando as migalhas. “Qualquer um pre-cisa imensamente das verbas pú-blicas, se é importante para esses grandes veículos, que tem uma longa trajetória e credibilidade, imagina para nós que temos pou-co tempo de mercado, não rece-bemos dinheiro de assinatura”, reflete Natusch.

Para Natascha, a redistribui-ção de verbas deve ser pensada e proposta como algo a longo prazo. “Não pode ser uma be-nevolência hoje e daqui quatro anos não tem mais. Precisa ser uma política de estado, assim não seriam vulneráveis conforme as ideologias de cada governante”, ressalta. “Qual seria a utopia de um veículo de jornalismo: não ser patrocinado por ninguém, porque

qualquer pessoa que te dá dinheiro, é alguém a quem tu deve alguma coisa de certa forma. No Sul21 a gen-te tenta ao máximo separar redação e financeira, o que pra nós é muito importante. E tu fica preso a essa situa-

ção, porque dinheiro tem que entrar de algum lugar”, explica Natusch.

De qualquer forma, enquanto não se chega no jornalismo utópico citado acima, o debate é sobre quais publicidades aceitar. Todos os veí-culos afirmam debater muito sobre isso e não aceitam qualquer publicidade. “É preciso ter uma proximidade de mensagem entre o nos-so trabalho e o de quem está nos apoiando”,

aponta Têmis Nicolaidis, do Coletivo Catarse.

O papel da internet

A importância da internet e das redes sociais pode ser ilustrada com a disseminação de informações sobre os protestos contra o aumento da passagem. Talvez te-nha sido a primeira grande cobertura colaborativa no Brasil, em que diversos pontos de vista, relatos, fotos e críticas À grande imprensa se transformaram em um debate a nível nacional.

Para o jornalismo independente, essa ferramenta é fundamental também pela questão econômica. É fá-cil chegar a muitas pessoas gastando pouco ou quase nada. No entanto, é preciso atenção para que a abran-gência vá além. “A internet é fundamental, mas a gente tem que ter a noção de que a grande maioria da popula-ção não tem internet. É ignorância ter um projeto como o Tabaré e não usar essa ferramenta, só que em termos de alcance a gente tem que saber que é preciso uma profundidade a mais”, adverte Lunardon. O Jornal Taba-ré possui um blog, mas o carro chefe ainda é a versão

Cartum premiado três vezes em concursos da categoria na Turquia, Romênia e Porto

Alegre. publicado em 7 de janeiro no site do Coletivo Catarse.

Foto de Rafael Corrêa

O jornalismo independente ainda

não tem a abrangência suficiente para colocar a regulação dos meios de comunicação na pauta

nacional.

Mesmo na internet, as amarras do

público com as mídias tradicionais é visível.

ilustração da matéria “Regular não é censurar”

publicada na edição número 20 do Jornal Tabaré

Ilustração de Frederico Stumpf Demin

Page 10: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 18 Sextante 2013.1 19

impressa. Essa ideia de ir além da plataforma virtual é compartilhada com Haubrich. “Hoje não tem como fa-zer militância política sem internet, mas também não se faz só na internet”. O Jornalismo B começou como um blog e a versão impressa apareceu como um com-plemento que, segundo o editor, acaba chegando a um público diferente.

Mesmo na internet, as amarras do público com as mídias tradicionais é visível. “A internet tem uma rela-ção muito parecida com a grande mídia, a liberdade que eu tenho de escolher é mais ampla, muito maior do que de canais de televisão, por exemplo, mas ela é muito parecida porque se as pessoas não têm a informação de como se desvencilhar disso ou até mesmo o interesse, a capacidade cultural e educacional, não adianta nada a internet ter toda esse diversidade”, explica Marcelo de Sá, do Coletivo Catarse.

Para Natusch, ainda existe uma credibilidade maior das pessoas com o produto material, mas o Sul21 por enquanto é um portal de notícias apenas online. “Acho que a in-ternet, quanto mais ela cresce, mais pessoas acessam e podem acessar cada vez mais rápido e com mais freqüência. A tendência é que ela se torne a grande fonte de informa-ção, de certa forma ela já é. Eu não consigo imaginar uma pessoa espe-rando o que vai sair no jornal ama-nhã para saber os detalhes de um fato importante que acontece agora”.

A lógica serve também para a ideia de que uma pessoa não vai assinar um jor-nal ou uma revista antes de ter internet, por-

que a web proporciona muito mais que jornalismo. “A pessoa entra na internet sem pensar no jornalismo, mas de repente o jornalismo vai estar mais próximo dela a partir dessa plataforma. A internet ainda não é tão de-mocrática quanto poderia ser? Certamente não é, mas de todos os veículos existem atualmente é o que tem mais potencial democrático”, complementa Natusch.

Além da políticaO jornalismo independente é muitas vezes confun-

dido com militância política, mas na verdade vai muito além disso. O que esses veículos priorizam são as pes-soas, as demandas que surgem da comunidade e dos movimentos sociais. “Nem o coletivo, nem as pessoas que participam têm afinidade com nenhum partido. A

maioria já foi militante político, mas hoje se rela-ciona mesmo é com os movimentos sociais e

as causas da sociedade. Jornalismo inde-pendente não é sempre relacionado a

partidos de esquerda”, aponta Pinhei-ro. “Nosso trabalho é diferente, é o nosso olhar, é o nosso envolvimento, é intervir, é participar. É comunica-ção para transformar”, completa.

Segundo Natusch, o Sul21 foi mudando com o tempo. O que co-meçou como um portal para fazer

uma cobertura do cenário político, passou para a direção dos movimen-

tos sociais. “A gente vai direcionando o conteúdo não para agradar ao público, mas

tentando entender o sinal que o leitor nos dá de

Protesto contra o aumento da passagem em Porto Alegre, foto publicada no dia 28 de junho no blog Jornalismo B Notícias. Foto de Alexandre Haubrich

O jornalismo independente é muitas vezes confundido com militância política, mas

na verdade vai muito além disso.

áreas que estão carentes. Existem pessoas que não su-portam mais a cobertura de certos veículos de comuni-cação. Nem é tanto uma questão maquiavélica de fazer uma cobertura que elimine, é um cacoete comodista”, finaliza.

Para Haubrich, antes de oferecer uma alternativa para as pessoas, é preciso mostrar o que está errado. “Como elas vão se mexer para mudar a realidade que elas nem percebem que está errada. É preciso descons-truir uma ideia viciada, para construir uma nova”, explica.

Lunardon aponta a falta de conteúdo do jornalis-mo hoje em dia como o ponto de partida do jornalismo contra-hegemônico. A grande mídia esquece a função básica de informar as pessoas e passa a fornecer conte-údos vazios. “O jornalismo como é feito hoje em dia não é bom, o grande jornalismo exige uma falta de crítica, a

maioria das pessoas precisa ter falta de espírito crítico para que ele funcione”, ressalva.

A necessidade de um debate sobre o jornalismo que está sendo feito também é uma preocupação de Natus-ch. “O Sul21 tá fazendo jornalismo de uma forma séria, com uma linha editorial que é clara. Ninguém vai entrar no Sul21 e não saber que temos uma proximidade com os movimentos sociais. Mas é um jornalismo honesto, mais múltiplo possível, ouvindo o máximo de fontes, dando o máximo de elementos pro leitor. E parece que isso era algo que as pessoas estavam sentindo falta. Acho que deveria haver uma discussão de que tipo de jornalismo está sendo feito, que faz com que o Sul21, que é um veículo pequeno e que não faz nada de extra-ordinário, consiga essa abrangência, um veículo que se torna extraordinário por fazer jornalismo”, finaliza.

O Jornal Tabaré completou dois anos nas ruas. Nesse período mui-tas pessoas participaram da publi-cação, atualmente 16 pessoas par-ticipam da equipe, mas outros cola-boradores também ajudam a lançar a edição mensal e o conteúdo onli-ne. O grupo interdisciplinar conta com pessoas de diversas áreas. “Não é só jornalismo, tem arte, tem muitos outros elementos além dos textos que ampliam os significados, que também são informação”.

O Coletivo Catarse existe há 8 anos e é uma cooperativa que pro-duz todo tipo de material cultural e de comunicação social. Como ví-deo, texto, foto, publicidade e arte gráfica. Esses trabalhos são pró-prios e também em parceria com diversos setores da comunidade (Como eles costumam dizer: “não trabalhamos para, trabalhamos com”). Ao todo são 13 colaborado-res interdisciplinares organizados em forma de autogestão e econo-mia solidária.

O Sul21 faz jornalismo diário “através de um olhar diferenciado sobre grandes temas e da ressigni-ficação das mídias tradicionais”. O portal é veiculado exclusivamente na internet desde 2010. Todos os 10 jornalistas da equipe ganham salá-rio, tem carteira assinada e impos-tos recolhidos. Essas características dão ao site um caráter empresarial e parecido com os outros veículos de comunicação que conhecemos. O Sul21 tenta fazer a ponte entre o jornalismo empresarial e de conte-údo independente.

O Jornalismo B impresso surgiu em 2010 para complementar o trabalho que vinha sendo feito no blog desde 2007. A versão online nasceu como um trabalho para a faculdade e segue fa-zendo análises da mídia dominante. O jornal circula quinzenalmente e se pro-põe a mostrar pautas plurais e popula-res. O Jornalismo B conta com a colabo-ração de vários jornalistas, blogueiros e ativistas. O financiamento é feito de forma totalmente independente: “con-tamos com o apoio de quem acredita nas lutas que defendemos e quer tam-bém atuar em defesa da mídia inde-pendente”.

Page 11: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 21

Por Thamiriz Amado

Coojornalum jornal

de jornalistas

Coojornal era o nome de uma cooperativa de jorna-listas de Porto Alegre, e também de um jornal mensal que circulou nas bancas entre 1976 e 1982. O Coojornal é um daqueles jornais que tanto ouvimos falar, era um periódico corajoso que retratou um Brasil extrema-mente repressivo. Era um jornal alternativo que nasceu e morreu nos anos de ditadura. Ele era a resposta dos jornalistas gaúchos às limitações e constrangimentos criados pela censura aos órgãos de imprensa. Era um jornal feito inteiramente por jornalistas, um jornal que cumpria sua missão social de informar, de mostrar a re-alidade.

Rafael Guimaraens fez parte desta história, atuou como repórter, editor e secretário de redação do Coo-jornal. Ele nasceu em Porto Alegre em 1956 e é jornalis-ta profissional desde 1976. Conversamos em sua casa/escritório, e ele me recebeu em uma sala aconchegante

e abarrotada de livros, e me falou sobre seus anos no Coojornal, sobre o gênero alternativo, sobre jorna-lismo.

Thamiriz – O que era o Coojornal? Quando começaste a trabalhar nele?

Rafael – O Coojornal nasceu em 1974. Eu não acompanhei a fundação, entrei dois anos

depois. Me associei e em seguida fui trabalhar lá como arquivista. O Coojornal nasceu da ideia de

um grupo de jornalistas de perseguir um sonho de ter um jornal dos jornalistas. Toda a censura do perí-

odo afetava diretamente no nosso trabalho. O grupo que compunha o jornal era qualificado e inquieto, não se conformava com esta situação. Então, um grupo de jovens entre 20 e 30 anos resolveu perseguir o sonho. “Vamos nos organizar e realizar o nosso jornal”, era o pensamento. O presidente da cooperativa, José Anto-nio Vieira da Cunha, disse que havia uma cooperativa de jornalistas na Itália, em Milão, e ele achou a ideia inte-ressante. E começaram a se organizar nesse caminho. Onde não houvesse patrões. Então isso foi feito, uma coisa absolutamente nova, não existia nenhuma co-operativa de jornalistas no Brasil. Foi feito o estatuto, foi criada a organização com a ideia de que primeiro se estabeleceria uma estrutura. Se buscaria fazer jornais para empresas, cooperativas, sindicatos, entidades da sociedade civil. A cooperativa faria o boletim destes jor-nais pra conseguir criar uma base financeira através da qual pudesse realizar o jornal. Esse foi o preceito, fazer o jornal sonhado dos jornalistas, que não tivesse influ-ência do poderio econômico sobre a função do jorna-lista, que é informar bem o seu público. O trabalho do profissional iria ser feito sem nenhuma interferência, iria tratar o fato em si com todas as suas causas, conse-

quências e circunstâncias. Isso é que uniu este grupo e fez nascer a cooperativa dos jornalistas, o Coojornal.

Thamiriz – Como era fazer jornalismo em plena ditadura militar?

Rafael – Fazer jornalismo na dita-dura era uma coisa muito restritiva por-que havia várias formas de censura. Em alguns casos havia censura prévia, que era a presença de um censor dentro da redação, e o censor lia as matérias, ris-cava, “essa aqui não pode”, ele dizia, daí proibia. Esse era o caso mais caricato e real da forma como a ditadura tratava a questão da censura à imprensa. Havia também os telefonemas. Ligavam lá da

Rafael Guimaraens

“Esse foi o preceito, fazer o jornal sonhado dos jornalistas,

que não tivesse influência do poderio econômico sobre a função do jornalista, essa missão social que é informar bem o seu público. O trabalho do jornalista

iria ser feito sem nenhuma interferência, iria tratar o fato em si com todas as suas causas, consequências e circunstâncias. Isso é que uniu este grupo e fez nascer

a cooperativa dos jornalistas, o Coojornal”, disse Rafael

Guimaraens.

Page 12: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 22 Sextante 2013.1 23

Polícia Federal dizendo que tal assunto não podia ser abordado, muitas vezes até a redação desconhecia aquele assunto. Telefonemas, bilhetes, telegra-mas, “esse assunto não pode ser tratado, esse assunto não pode ser tratado”. Enfim, isso era uma coisa frequente nas redações. E ha-via, o que é pior que tudo, a autocensura, a censura feita dentro da redação, pelos donos de jornais, jornalistas que tinham cargo de chefia. Antes que chegasse um telefonema, eles já sabiam. Já estava in-corporada essa postura de que “não va-mos tratar, não vamos nos incomodar” já no pressuposto que seria censurado e que o jornal teria problemas. Eu não cheguei a trabalhar em uma redação convencional, já fui trabalhar numa cooperativa que era uma outra forma de tratar essas coisas, mas, sabíamos e era uma frustração muito grande para as pessoas que es-tavam na redação e que tinham uma noção da função social do jornalista.

Thamiriz – Tu foi preso durante a ditadura por publicar relatórios?

Rafael - Em 1979 chegou, para o pessoal do Coo-jornal, uma documentação. Eram relatórios confiden-ciais do exército sobre ações de combate à guerrilha. Eram dois casos: um era uma ação de combate a um foco de guerrilha no Vale da Ribeira, em São Paulo, onde havia um grupo guerrilheiro se organizando. O relatório é uma coisa de filme, porque os guerrilheiros fogem do cerco do exército, capturam uma patrulha do exército, botam as roupas dos militares e atravessam o cerco. O outro relatório diz respeito à morte do principal

líder da luta armada no Brasil, o capitão Carlos Lamarca, líder guerrilheiro da Ação de Libertação Nacional, que era um dos grupos mais fortes da luta armada no Bra-sil. O relatório mostra como houve o cerco e a morte do Lamarca. Foi no interior da Bahia, ele estava sozinho, o grupo dele já tinha se esfacelado. Então, nós tivemos uma discussão muito grande dentro do jornal, “publica-mos ou não publicamos”. Enfim, já tinha um processo de abertura no país que a gente achou que comportava publicar esses relatórios e que não haveria uma reação muito grande do governo, do exército. Então, publica-mos. Houve uma repercussão muito grande e fomos condenados pela publicação desses relatórios. Primei-ro, o Ministério do Exército disse que eram falsos e de-pois admitiram que eram verdadeiros, mas que eram confidenciais, e, portanto, não poderiam ser publica-dos. Então fomos presos e condenados a seis meses de prisão. Cumprimos um mês. Éramos quatro jornalistas: Osmar Trindade, Elmar Bones, Rosvita Saueressig e eu. Depois disso houve uma pressão muito grande sobre o jornal, muitos clientes se afastaram. Nos prejudicamos financeiramente, e isso, junto com outros fatores, levou ao fechamento da cooperativa.

Thamiriz – Que outros fatores levaram ao fim do Coojornal?

Rafael – Nós éramos organizados, tínhamos uma direção, um controle administrativo, chegamos

a ter 300 associados e du-rante o melhor período, uns

100 jornalistas pelo menos conseguiam trabalhar na Coo-

perativa. Trabalhando fixamente como era meu caso, ou fazendo freelan-

cer. Os relatórios publicados e a pressão que o Coojornal sofreu foram fatores decisivos para o fim do periódico. Mas houve outros fatores, por exemplo, a cooperativa nos primeiros anos teve bastante aceitação do jornal, enfim, compramos um parque gráfico que não chegava até a impressora, o processo de impressão tinha muitas fases. Hoje, é tudo muito tranquilo, mas antes tinha que fazer a fotocomposição, o fotolito. Então compramos um parque gráfico que tinha fotocomposição e fotolito, e foi um financiamento muito grande, porque era um material muito caro. A cooperativa se endividou. Então quando houve a pressão política sobre o jornal, já não houve condições de pagar esse financiamento, as dívi-das foram rolando, era um período de inflação muito alta. Também houve problemas internos e administra-tivos, que apressaram o final da cooperativa. Mas sem dúvida essas coisas seriam contornadas. Se não houves-se essa pressão, essas ameaças, eu acho que a coopera-tiva, teria sobrevivido... Quanto tempo, não sei.

Thamiriz – Vocês fizeram um livro sobre o Coojornal. Qual a importância deste registro para as outras gerações de jornalistas?

Rafael – O fechamento foi muito melancólico, foi triste. As pessoas foram saindo e foi ficando um pe-queno grupo. Virou aquele paciente terminal, que os parentes vão deixando de visitar. Durante muito tem-po ficou sem se falar da cooperativa. O assunto surgia na universidade, com professores que viveram esse período e acharam importante contar para os alunos.

Houve uma experiência de ir às aulas e falar, mas era o máximo que se ti-

nha. Alguns entre nós, sempre tiveram a ideia de resgatar a

história do Coojornal. Uma experiência tão importan-te não pode ficar sem um registro adequado. Então o Osmar Trindade, que foi o último presidente da cooperativa, começou a

conversar com as pessoas, “vamos fazer um projeto”,

ele dizia. Primeiro era um do-cumentário, um filme, um livro,

até que o projeto foi se adequan-do, porque tudo isso precisa de grana.

Mas daí o Trindade morreu, tudo deu uma recuada, mas o fato de termos a Editora Libretos colaborou, fizemos um projeto de incentivo à cultura. Então temos o livro e um DVD, ainda queremos a digitalização da coleção, que foi a única coisa que não conseguimos fazer. O livro foi super bem aceito, tanto que a primeira edição esgo-tou rápido, estamos na segunda edição e ela também já esta bem avançada. Nós cumprimos esta meta de trazer de volta, colocar pra discussão e ajudar a manter viva a questão da reportagem.

Thamiriz – O que movimenta um jornalista a fazer um jornal alternativo? Quais são as dificuldades de fazer um jornal alternativo hoje?

Rafael – Em uma situação de estabilidade como a que a gente vive hoje, um jornalista que tenha uma vi-são mais crítica da sua profissão, que não esteja satisfei-to com o modo como se faz jornalismo, é esse jornalista que se dispõe ao alternativo. Os jornais possuem notí-cias que são filtradas por uma série de interesses que não meramente o trabalho jornalístico em si. Como, por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): os jornais sempre vão se posicionar con-tra, e alguns jornalistas vão incorporar que é assim que se tem que falar do assunto. As pessoas que têm uma

visão mais crítica, não aceitam este tipo de coisa. Essa liberdade de imprensa pela qual nós tanto lutamos, vi-rou uma liberdade de empresa. Isso é que faz com que alguns jornalistas procurem o alternativo. A dificuldade de se fazer um jornal alternativo está nos custos, o al-ternativo acontece, muitas vezes, por meio dos blogs, por meio da internet, até porque fazer um jornal é caro, tem que imprimir, distribuir, botar na banca, então, a in-ternet é um caminho.

Thamiriz – Como tu vê o jornalismo feito hoje, tu acha que a ditadura deixou uma herança de autocensura nas gerações posteriores?

Rafael – O fundamental é o jornalista ter uma no-ção do seu papel social. Nós temos que nos questionar o porquê de ser jornalista, ele tem que saber que tem uma função a cumprir na sociedade. As pessoas formam sua opinião a partir do que elas leem então quando um jornalista trata de um fato jornalístico, ele esta sendo os olhos da população pra aquela coisa. Ele tem que ter a consciência clara de que é um representante da socie-dade, isto é uma responsabilidade muito grande. Não se deve fazer uma matéria de qualquer jeito, deixar-se influenciar pelas primeiras impressões ou não relacionar os fatos. Eu acho que é a questão da função social. Por-que as censuras, elas existem nos jornais, e aí sim, a par-tir do momento em que o jornalista adquire consciência do seu papel, daí entra a questão da censura. Aí ele pode perceber o ambiente em que está, como ele vai contor-nar a censura, como ele vai disputar a notícia, como é que ele vai vender uma pauta bacana. Porque esse é o papel do jornalista, “olha tenho um assunto aqui que eu acho que vale uma matéria”, tem que convencer o edi-tor de que a matéria é relevante. Acho que o que pre-cede isso é o questionamento do porque ser jornalista.

Thamiriz – Na tua opinião, qual rumo que o jornalismo tá tomando agora?

Rafael – Antes as fontes de informação eram só Jornal Nacional, Zero Hora e O Globo. Mas hoje já existe uma enorme quantidade de fontes alternativas. Há uma variedade de formas para se informar além dos jornais convencionais. As redes sociais são instrumentos im-portantes, são atores de questionamento dos meios de comunicação de mobilização. E mesmo com a internet não tendo toda a sua potencialidade, afinal, nem todos têm acesso, ela é um meio de emitir e absorver várias opiniões, o que deixa a manipulação dos grandes veí-culos mais evidente. Os jornais têm que retomar sua importância na sociedade, os jornais passaram a ser instrumentos de disputa política e não de informação.

Fazer jornalismo na ditadura era uma coisa

muito restritiva porque havia várias formas de censura.

O fundamental é o jornalista ter uma noção

do seu papel social.

Page 13: Sextante 2013.1 - Independência

Se quer iam tanto

E então se foram devorandopedaPedaço

porço

Carne com molho

Por fimRestaram duas bocas

Que se perderamNum

beijo saciado

Por Gabrielle Calegari

JornalismoIndependente

Page 14: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 26

Previsões acerca do fim do livro tem sido constan-tes e trágicas desde o surgimento da internet e, mais precisamente, dos novos formatos eletrônicos. Leitores e escritores vêm lamentando o fim do formato tradicio-nal antes mesmo dele acontecer.

Não é isso, porém, que os números têm mostrado – só em 2012 foram vendidos mais de 470 milhões de exemplares, 7% a mais que em 2011. Proporcionalmen-te ao número de habitantes, é claro que o índice ainda é pequeno – como se cada brasileiro tivesse comprado, em média, 2,4 novos livros.

“É uma pena a gente não poder comer livros”, diz Liesel Meminger, personagem de A Menina que Rouba-va Livros, de Markus Zusak. Talvez o cenário da litera-tura fosse diferente se o livro não fosse tão caro. Num mercado que gira mais de R$ 6,2 bilhões por ano, estan-do o Brasil em nono lugar no ranking do faturamento editorial, ainda se fala, e muito, que o brasileiro não lê.

O que vemos na prática, em livrarias e nos sites, são as mesmas editoras, as mesmas distribuidoras, e os mesmos títulos. Livros com estrutura, histórias e estilos parecidos, que visivelmente se enquadram dentro de um formato pré-estabelecido que tem como objetivo o lucro das editoras. Esse formato pronto, que poda a liberdade do escritor, vem aumentando o leque de au-tores que publicam seus livros de forma independente, ou em formatos e plataformas alternativas.

Do ponto de vista acadêmico, a literatura indepen-dente inclui, principalmente, todos os livros que não são os chamados cânones – a lista sagrada de clássicos, ou o que seria leitura obrigatória para se conhecer e estudar a literatura, mundial, nacional ou regional. Já do ponto de vista comercial e editorial, refere-se a todo produto que não é publicado visando ao lucro imediato.

A Cidade dos Cataventos

Como aspirantes a escritores, muitos não possuem condições de pagar nem pela distribuição, nem pela divulgação, e acabam fazendo isso por conta própria. Enviar livros por correio e divulgar nas redes sociais foram táticas adotadas por Leonardo Holderbaum, 23 anos, que realizou o sonho de publicar seu primeiro li-vro de poesias. Sem encontrar lugar dentro das grandes editoras, ele buscou recursos próprios para pagar a im-pressão de mil exemplares de A Cidade dos Cataventos. Ele mesmo o distribui em livrarias de bairro, em Porto Alegre, e envia aos amigos e conhecidos interessados por Sedex.

As editoras buscam sempre garantias de sucesso de vendas – como um autor já renomado ou conhecido, ou uma história dentro de determinado formato que já se saiba que tem grandes chances de venda. Aliado a uma boa distribuição nacional, com destaque nas lojas físi-cas e virtuais, muitos desses livros estão destinados a virarem best-sellers.

Escritores, normalmente aqueles iniciantes, ou que não se encaixam dentro de políticas editoriais, vem bus-cado cada vez mais as chamadas editoras independen-

tes, nas quais é possível o próprio autor arcar com os custos da produção e até mesmo da distribuição de seus livros. Alguns pacotes, inclusive, prometem a divulga-ção do livro e tentam conseguir resenhas em blogs, re-vistas e jornais.

Projetos para distribuição gratuita de livros, princi-palmente para públicos mais carentes, têm se tornado mais populares. Um deles é o Projeto Livrar, que se pro-põe a distribuir obras durante os shows do rapper MC Marechal e reúne doadores de livros, patrocinadores e voluntários. Passando por diversas cidades do país, o Livrar busca aumentar o acervo em bibliotecas comuni-tárias e incentivar o hábito da leitura.

Buscando a independência da forma

Na literatura, a busca pela estética (ou forma) ideal vem trazendo mudanças e adaptações conforme mo-das, suportes e tendências ao longo dos séculos. A eter-na busca pelo belo é vista pelas constantes inovações das técnicas e dos fundamentos artísticos. Inovar, em literatura, é mais do que criar situações, histórias e per-sonagens novos. Por isso a procura por novas formas de se contar essas mesmas histórias.

Na chamada “era digital”, o uso do formato ele-trônico vai além dos e-books e PDFs. A literatura digital, porém, é mais do que a simples digitalização de livros já existentes – ela requer outro olhar, outra estética, outra forma, o que tornaria impossível sua publicação no papel. Enquanto o produto livro requer um formato pré-estabelecido, impresso em papel e encadernado, na literatura digital vemos Projetos Literários, obras que utilizam elementos típicos do mundo on-line, como o hipertexto, efeitos visuais, sonoros, animações, sem limitações físicas e com múltiplas plataformas, pois o produto trabalho não é apenas a palavra escrita.

Há uma tendência de que, nessas novas obras di-gitais, as narrativas ganhem novos significados e ele-mentos. Além disso, o autor trabalha a interação com o leitor, finais múltiplos, textos colaborativos, possibi-lidades que não existiam no formato tradicional e fixo do livro.

Publicando na internet, o escritor busca, também, uma independência editorial total, visto que não depen-de de uma editora para a publicação, e a hospedagem de sites em alguns domínios na internet é gratuita, as-sim como o acesso aos conteúdos.

O site www.literaturadigital.com.br reúne obras de autores como Marcelo Spalding, Mauren Kayna e Sa-mir Mesquita. Utilizando sons, cores e interação, eles apresentam contos, mini-contos e até mesmo contos animados. Sem querer substituir o livro tradicional, os autores propõem uma melhor utilização do tempo gas-to on-line, pois com poucos minutos é possível “consu-mir cultura”.

E, não importa o formato ou a distribuição, como di-ria J. D. Salinger, em O Apanhador no Campo de Centeio, “bom mesmo é o livro que, quando a gente acaba de ler, fica querendo ser um grande amigo do autor”.

Por Paola

de Oliveira

Bolivros

Page 15: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 28 Sextante 2013.1 29

Sexta-feira, fim de tarde. Com a barba cer-rada, sobrancelhas grossas, cabelos brancos e olhos que sorriem, Bolívar Gomes de Almei-da é livreiro e professor de história. Chapéu para se proteger do frio, calça e casaco je-ans, meias sociais e sandália, ele é uma fi-gura simples. Me encontra ainda na reda-ção da Assembleia Legislativa, onde faço estágio. “Paola, posso usar teu computador para fazer uma prova para meus alunos?”, pergunta. “É claro”, respondo. Dou lugar e

presto atenção na prova de história que será aplicada aos alunos de 8ª série da Escola Es-

tadual de Ensino Fundamental Tancredo Neves, que fica na Zona Sul da cidade. A prova é sobre

capitalismo, socialismo e outras questões relacio-nadas à América Latina. “E tu acredita que tem alu-

no que erra essas perguntas simples? Eu quero que eles tirem nota boa, faço provas fáceis, pode olhar”. Nunca tinha visto um professor fazer prova em toda a minha

vida. Realmente, o Bolívar que-ria que os alunos fossem bem. Feita a prova, vamos conversar no Solar dos Câmara, dentro da Assembleia mesmo, lugar que poucas pessoas conhecem.

Nascido em Maquiné, que na época pertencia ao Distri-to de Osório, mudou-se para a Capital com 19 anos. Não havia perspectiva de trabalho para ele e os quatro irmãos na pequena cidade. Ficou um ano por aqui e foi chamado num concurso em Osório. Trabalhou durante mais um ano lá e retornou a Porto Alegre para prestar vestibular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pas-sou em Ciências Sociais e co-meçou então seu processo de politização. Em 1972, auge da repressão e ditadura no gover-no Médici, Bolívar militava no Movimento Popular, que é um movimento não instituciona-lizado, comunitário. Em 1975, integrou o Movimento Demo-crático Brasileiro (MDB), opo-sitor ao regime militar de 1964. Em 1978 cursou dois meses de Direito na Pontifícia Universi-dade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mas o dinheiro era curto e não prosseguiu. Não concluiu o curso de Ciências So-ciais na UFRGS, nem o de Di-reito na PUCRS, mas em 1986 voltou aos estudos, iniciou o curso de História na Faculdade Porto-Alegrense (FAPA).

Sempre acompanhado da mochila jeans azul meio surra-da, sacolas plásticas e de pano, Bolívar vende livros em Porto Alegre desde 1983. “Agora eu ando com pouca coisa. Naquela época eu andava com três sa-colas, era que nem um camelo”, conta rindo. No início, trabalhava apenas com livros políticos, marxistas, de história, economia e sociologia. Ao longo do tempo, transitando pela Assembleia Legislativa, Câmara Muni-cipal e outros lugares públicos onde houvesse alguém interessado, recebia encomendas de romances, poesias e até livros infantis. A gama de assuntos foi se amplian-do, porém, o critério sempre continuou o mesmo: a qualidade.

Ao longo de 30 anos não foi apenas o cabelo que branqueou, muitas coisas mudaram na vida do livrei-ro. Contudo, quanto a essa questão, prefere continuar

priorizando a qualidade dos livros que vende. “Muitas vezes me encomendavam um livro que eu achava que era uma porcaria e eu preferia não vender, mas eu di-zia para a pessoa: ‘olha, isso é uma porcaria, há nessa área tais outros autores’. Bem, essa é a minha maneira de proceder, não vi ainda motivo para modificar”. Evi-dentemente que se uma pessoa o conhece hoje, não terá a mesma confiança de alguém que o conhece há anos. Mas na medida em que a pessoa passa a confiar nas suas sugestões, ele faz questão de alimentá-la com coisas boas. E o que há de bom não é somente o que foi escrito hoje, nem somente aqueles livros de sucesso.

“Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de uma pirueta

antes de iniciá-la, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre

que estar vivo exige um esforço muito maior do que o simples acto de respirar.

Estejamos vivos, então” - Pablo Neruda

Foto de Paola Oliveira

Foto de Paola Olieira

Page 16: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 30 Sextante 2013.1 31

Existem obras universais, livros que foram escritos há séculos e ainda cumprem sua função.

Bolívar nem sempre foi um livreiro caminhante. De 1991 a 1996 abriu a primeira livraria da rua General Câmara, a rua da ladeira. Depois, mudou-se para a rua José Bonifácio, onde funcionou por mais um ano. E durante os seis anos em que teve estabe-lecimento fixo, prezava a programação cultural que acontecia todas as sextas-feiras, das 19h até às 21 horas. Palestras, rodas de poesia, leituras dramáticas, apresentações de artistas, exibições de filmes e documentários faziam parte das noites culturais. Mesmo com livra-ria, nunca ficou dependente de uma de-terminada editora ou distribuidora. “Entre os profissionais que comercializam livros, a grande maioria simplesmente vende. Então, eu, sinceramente, faço uma distinção entre o comerciante de livros e o livreiro. O livreiro é aquele que não se limita a vender, ele lê também. Em outras profissões também há uma hierarquia, em cada profissão os que são dela, tu sabe muito bem do que eu estou falando. Ninguém vai confundir um advogado que é um simples rábula, com certos profissionais que honram a profissão. Isso há em todas as profissões”.

“Cada profissão tem os seus Pelés, os seus Garrinchas e os seus cabeças de bagre, não é?”

Lamentavelmente, como diz Bolívar, os cabeças de bagre são a esmagadora maioria. Todos os dias há um esforço para que o número de leitores aumente, no entanto, para ele, não há a ilusão de que simplesmente o hábito da leitura vá modificar muita coisa, é preciso saber que tipo de leitura as pessoas fazem. “A leitura de jornal não informa, os jornais não informam, os jornais num país capitalista formam um determinado modo de ver o mundo, segundo o interesse dos donos desses jor-nais, essa é a função. A função não é informar, a função é formar um determinado modo de ver o mundo”.

Quando pergunto se o público era grande quando fazia as programações culturais, Bolívar faz algumas ponderações. É preciso considerar o empobrecimento da vida cultural, sobretudo a partir do desencanto com a política, e quando diz isso, explica, não está fazendo coro ao discurso da mídia hegemônica. Refere-se à de-sagregação da antiga União Soviética e todas as conse-quências geradas, dentre elas, uma profunda despoliti-zação, uma falta de sentido para a vida das pessoas, que pode ser observado na juventude hoje.

“As pessoas vivem sem ter sentido, ou melhor, isso é vida?” Ele questiona. Há muitos sintomas disso, desde coisas aparentemente mínimas, como a cachorrização da vida humana. “O que eu quero dizer com isso? As pessoas valorizando cachorros e não prestando atenção nos humanos que morrem de fome. Alguém ouvindo

essas palavras poderá dizer, o velho Bolívar virou de-magogo? Claro que eu tô fazendo até uma brincadeira, mas o que acontece, é que quando eu entro num ônibus, às vezes tem uma pessoa aleijada, uma mulher no oita-vo mês de gravidez, uma pessoa com 80 anos, alguém

cheio de pacotes. E jovens, que vão pra UFRGS e pra PUC, não levantam para dar lugar. Isso me

diz o quê? Que há uma profunda falta de sentido na vida dessas criaturas”.

Esse não é mais um discurso saudo-sista, não há ilusão. Ele está no mesmo lugar de antes, acreditando nas mesmas coisas, obviamente se adaptando aos novos tempos. No entanto, a perspecti-

va não se perdeu, o desejo de um mundo melhor permanece.

Bolívar é integrante do Circuito Cultural Arte entre Povos, projeto que teve início em 2010

e funciona no Sudeste do Brasil: no norte do Estado do Rio de Janeiro, sul do Espírito Santo e Zona da Mata Mi-neira. O Circuito procura levar todas as manifestações culturais possíveis, organizando exposições de obras de arte, feiras de livros, oficinas, mesas-redondas, espetá-culos, balé, dança e teatro, articulando artistas, escrito-res e oficineiros estrangeiros, promovendo a integração cultural.

Em 2011 e 2012, visitou treze cidades nos três esta-dos e pôde verificar o mesmo comportamento homogê-neo de metrópoles como São Paulo, Porto Alegre e Reci-fe. As pessoas se comportam, tanto em cidades grandes como em cidades pequenas, se há um grupo com mais de cinco pessoas, como se estivessem num auditório de um programa de televisão. Os mesmo gestos, os mes-mos gritos, os mesmos movimentos. “O que isso nos diz, se não uma imensa manipulação? E não tem nada a ver com teoria da conspiração como alguns imbecis que não lêem, não refletem, simplesmente se limitam a re-petir chavões fazem”. Nos programas de rádio e de tele-visão, assim como nos jornais, existem pessoas compro-metidas a manter e alimentar essa pobreza de espírito.

Esse comportamento é mera casualidade? Onde está a dignidade das pessoas? Onde está aquilo que faz com que cada ser humano seja um ser único, como em essência somos?

“Nossa essência está abafada”“Dessa forma manipulada e que se expressa de um

modo muito parecido, quase todo mundo se comporta da mesma maneira. Todo guri quer ter um boné, quer ter um tênis de marca, tem que ter uma camiseta que esteja escrito em inglês e assim sucessivamente. Nos Estados Unidos, mais do que em todos os lugares, não há liberdade. No entanto, o discurso é em cima dessa palavra. Existe somente a palavra e não o exercício dela. Aqui também podemos verificar esse discurso vazio que se esparrama de lá para cá. A cultura hegemônica foi importada, foi imposta. Temos nossos representantes máximos, como a RBS, mas não só ela. É necessário fa-

zer um contraponto. E é esse contraponto, essa luta que representa liberdade”, diz Bolívar.

“A melhor maneira de ser livre é ser culto”Essa frase é de José Martí, político, pensador, jorna-

lista, filósofo e poeta cubano, criador do Partido Revo-lucionário Cubano. “Alguém que não tem conhecimen-to, um ignorante, como ele vai ser livre? De que jeito? Como ele vai optar?”, questiona. O que dizia para os filhos, já adultos, repete para os alunos. “Mantenham a independência, PENSEM, utilizem aquilo que nos di-ferencia das demais espécies. Nenhuma outra espécie tem um cérebro como o nosso, nenhuma outra espécie faz história como nós fazemos. Então vamos valorizar isso. Cada um de nós só tem uma vida, vamos valorizar isso. Isso é o central para cada ser humano”.

Dando aula para adolescentes, Bolívar consegue detectar que, dentro do caos, algumas daquelas criatu-ras almejam coisas diferentes. Mas estão de tal modo envolvidas na mediocridade, que não têm condições de formular um pensamento diferente além do reinante. Contudo, lá são crianças e adolescentes. “Então seria

exigir demais que eles tivessem um pensamento ela-borado, uma postura diante do mundo. Isso só se exi-ge numa sociedade saudável. No entanto, se nós, que somos privilegiados, politizados e com a oportunidade que poucas pessoas têm de cursar o ensino superior, acharmos que o central para nós é comprar o carro do ano? Que empobrecimento, que empobrecimento!”

Veja como são as coisas, é claro que se alguém qui-ser comprar carro, compre, faça o que quiser da sua vida. Mas quando temos a possibilidade de refletir como queremos gastar nosso dinheiro, quando nos são oferecidas alternativas, é pouco provável que houvesse tantos compradores. É preciso que haja escolha, opção, independência. É preciso refletir, politizar a gurizada que cresce engolindo discursos de uma sociedade do-ente. É preciso que as referências para nossas vidas se-jam da nossa própria cultura.

Bolívar é eloquente e fala com paixão de seus ide-ais. Nosso tempo de conversa passa tão rápido que só percebo porque já escureceu. O telefone dele toca. É al-guém lembrando que o happy hour está de pé, é aniver-sário de uma amiga. Vou desligando o gravador, guar-dando as coisas. Já tomei muito do seu tempo, afinal, é sexta-feira, fim de tarde.

os cabeças de bagre são

a esmagadora maioria

Foto de Paola Oliveira

Page 17: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 32 Sextante 2013.1 33

Por Igor Porto

Muito alémda torre de

marfim

Dois casos, uma introdução

O que é literatura independente? É um rótulo vasto, né? Todo mundo conhece alguém. O tiozinho que escre-ve sobre o sexo dos canibais e vende seus livros pela rua, o bróder que escreve contos e publica nas webs. "Litera-tura independente é toda aquela que escapa das gran-des editoras ou do esquema editorial", diria alguém. O artista mesmo banca o seu trabalho.

Até aí, tudo bem. Como aconteceu com diversos produtos culturais ao longo dos anos, o esquema que as editoras aplicam foi se esgotando. Surgiu a necessi-dade de democratizar o meio em algum ponto da his-tória. Aqui no Brasil, o lance todo começou na década de 1970, com a geração mimeógrafo e tudo mais. Um grupo de jovens publicando uma versão mais barata e dando a cara a tapa, vendendo seu trabalho. Com a in-ternet, a coisa ficou mais simples ainda, é possível pu-blicar a custo zero (um computador com rede é só o que basta) e ainda vender diretamente ao leitor, para um público que pode vir de qualquer parte do mundo.

Sem motivo mais para se submeter a deadlines apertados, acordos abusivos e à mediocridade de al-guns editores, certo? Mais ou menos. As editoras têm menos força hoje em dia, mais ainda controlam o mer-cado, principalmente em relação aos pontos de distri-buição.

Bancar a produção é o suficiente para considerar uma obra independente? Dá para se falar ou em uma literatura que é financeiramente autossuficiente, o ar-tista mesmo banca o seu trabalho, ou em uma literatura que pode abordar novos temas, formas e discursos. O grande problema do primeiro é definir até que ponto existe uma emancipação real. Quando o autor, livre das editoras, tem que buscar retorno no próprio mercado, seja nas ruas, ou buscando espaços novos de distribui-ção, ou um patrocínio privado, ou um edital do gover-no, ou arcar com o prejuízo. Quer dizer, até que ponto uma arte é livre do dinheiro. A segunda definição já é mais ampla e mais produtiva, como escapando dos

grandes temas, do academicismo e do cânone pode se formar

uma literatura que seja realmente alternativa e

experimental. A premissa aqui

é de que há algo de fundamentalmente diferente em publi-car por conta pró-pria. Que o modo de produção - por ficar

distante do mainstre-am hegemônico, tem

o potencial para gerar o novo. Existe um espaço a ser conquistado. O mercado editorial, nos tempos da auto-ajuda, ainda não comeu tudo, ainda não satisfaz todas as inquietações do artista contemporâneo. Acredito que o caminho da literatura independente passa por aí, em todo sistema cultural tem sempre aqueles que estão à margem e trazem o novo. É por uma literatura com “l” minúsculo mesmo.

Por isso, apresentarei dois casos (sim, cases, cho-rem): tem uma entrevista com o Daniel Galera, que fala sobre a Livros do Mal, editora que ele fundou nas épo-cas de Fabico, e com o Coletivo Ornitorrinco, gurizada lá do Rio que faz um zine online há dois anos já. Issae divirtão-se.

CASO UM: Galera no festivalAcho que pelo menos 68 por cento das pessoas len-

do esse texto sabem quem é Daniel Galera. Isso porque o cara era da Fabico, se formou em Publicidade e, inclu-sive, esses dias mesmo, deu as caras por aqui na aber-tura do Concurso Literário. Mas, para quem não sabe: Daniel é escri-tor e tradutor, tem quatro romances publicados, um livro de contos e uma HQ. Um de seus livros, Até o dia em que o cão morreu, de 2003, foi adaptado para o cinema em 2007. E ele figura na lista dos vinte melhores escritores jovens na lista da re-vista Granta.

Feita essa introdu-ção, devo dizer que o gran-de motivo da minha entrevista com ele, foi o fato de ele ter funda- d o uma editora independente junto com mais dois amigos lá pelo começo dos anos 00s. A Livros do Mal começou com o intuito de publicar o pessoal que escrevia e não conseguia achar caminhos para ver seu trabalho em papel. Conseguiram um financiamento pequeno pelo Funproarte e começaram a editar tudo por conta e ven-der, aqui e ali, nas livrarias de Porto Alegre e São Paulo. Durou pouco tempo, mas foi através dela que Daniel publicou seus dois primeiros livros. O primeiro deles, Dentes Guardados, pode ser conferido ainda no site da finada editora.

No dia em que escolhi para entrevistar o Galera, tava rolando uma mesa-redonda na Festipoa Literária em maio. O evento sucedeu bem, com a presença do Altair Martins, que é uma figura, e mediação da Luciana Thomé, da Não-Editora (outro projeto massa). Quando a palestra abriu para perguntas, uma cara perguntou sobre a Fabico e o Daniel falou bastante sobre a época. Tudo terminado fomos à entrevista.

A premissa aqui é de que há algo de fundamentalmente

diferente em publicar por conta própria.

“Na época eu nem tinha muita certeza de que

a literatura poderia me sustentar”

Daniel Galera

Page 18: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 34 Sextante 2013.1 35

E eis o que ele me disse:

- "Eu queria poder publicar meu próprio trabalho. E foi essa vontade que me fez fundar a Livros do Mal. Na época eu nem tinha muita certeza de que a literatura poderia me sustentar"

-"Foi bastante importante na minha trajetória. Me deu visibilidade. E eu também podia escrever com bas-tante liberdade. Mas, ao mesmo tempo, hoje em dia eu não sinto que tenha mudado tanto"

-"O papel da literatura independente hoje em dia é o mesmo que sempre foi. Um lugar para quem não foi publicado ainda, escrever e ganhar seu espaço"

-"A Internet mudou muitas coisas. Eu sou de uma geração que começou a perceber as possibilidades des-se novo meio. Que tinha um público ali, que era um es-paço barato fácil de usar". Nesse tópico vale dar um salto para um novo parágrafo.

Outro correlato do nosso assunto que Daniel parti-cipou foi o CardosOnline, fanzine mandado por e-mail entre uma queda e outra da conexão discada de 1997 a 2001. Fundado pelo André Czarnobai, o Cardoso, nas paredes desse prédio aqui daonde eu escrevo agora. Com colunistas fixos e vários colaboradores, o COL fez história. E foi bem importante pelo que foi dito ali em cima, ocupou um espaço de literatura (e jornalismo) que não era bem ocupado até então no Brasil. Publicado de graça, para uma lista, dava ainda a possibilidade de tro-cas de experiência entre autor e leitor, ou muitas vezes o autor era o leitor. "Muita gente passou de consumidor a produtor por causa do zine". E isso nos leva ao próxi-mo caso.

CASO DOIS: Ornitorrincos na lagoa

O COL foi um lance grande. Não ficou restrito às pa-redes da Fabico ou aqui em Porto Alegre. "Teve um mo-mento em que a gente já estava com 4.000 assinantes", me disse o Galera (embora, um rápida googleada me diga que esse número foi bem maior). Entre esses assi-nantes, muita gente de fora do estado e do círculo dos guris. Era natural que com o tempo iniciativas parecidas

surgissem em outros lugares do país. Um desses herdeiros do COL

é o zine Ornitorrinco. Eles têm base no Rio de Janei-

ro, com edição de Gabriel Pardal. Gabriel é um cara loiro, bem magrinho, de cabelos assanhados. As olheiras pesadas dão lu-

gar a uns olhos tranqui-los, indiferentes. Ele me

conta como tudo começou:

-Eu sentia falta lá no Rio dos meus amigos, que es-tavam escrevendo todos juntos, e de poder conversar sobre o que a gente estava escrevendo.

Mas é interrompido:

-Não, Pardal, explica. É porque você é da Bahia e você tinha lá uns amigos que escreviam junto - Maria Rezende, a outra integrante do grupo que combinou de falar comigo durante a passagem deles por Porto Alegre. Maria é uma poetiza, morena, bem alta e sim-pática.

O que Pardal esquecia de explicar é que ele é baiano, trabalhava com artes em Salvador. Lá participa de um grupo de pessoas que gostava de escrever junto. Escre-ver junto como em criação coletiva, atribuindo um as-pecto social ao negócio todo. Nada de pessoas isoladas trancadas no quarto. A troca de ideias era fundamental para eles. Quando chegou no Rio, resolveu importar a experiência. E lá por 2011, surgiu o Ornitorrinco.

Chamou pessoas de diversas áreas. Músicos, fotó-grafos, jornalistas, dramaturgos. “Mas que tinham no texto o centro de sua criação”. A ideia era escrever quinzenalmente em formato livre sobre um tema em comum, proposto pelo editor. No início era para ser um tro-ço impresso. Cada um dos integrantes indicaria 10 ami-gos que iriam receber por correio o jornalzito. Só que depois de algumas edições esse modelo começou a ficar inviável, por razões financeiras. Decidiram pelo online. A partir de então era só mandar um e-mail com o assunto "OS ALQUIMISTAS ESTÃO CHEGANDO" para receber o zine quinzenalmente na caixa de entrada. Hoje os textos são postados quase que diariamente no site.

Os temas escolhidos por Pardal podem ser algo mui-to concreto, um assunto da moda, o dia da semana ou nada disso. Temas abertos, que devem ser interpreta-dos livremente por quem escreve, em forma de poesia, conto, ensaio, crônica ou qualquer outro tipo de texto. "Mas às vezes é legal reparar também nessa desunida-de. A partir do mesmo tema, um escreve sobre futebol, o outro escreve uma história de amor. Tudo passa por esse ponto de partida que o Pardal deu para a gente. Eu acho isso surpreendente", diz Maria. Nesse sentido dá para dizer que o nome, escolhido meio a esmo, bem se adapta a essa filosofia inclusiva do grupo:

-O nome Ornitorrinco tem um motivo. É engraçado, né? – reflete Pardal - A gente cria a coisa e, depois com o passar do tempo, que a gente vai entendendo. Como casa esse nome com o que a gente faz? Esse animal es-tranho, mamífero com bico de pato, ovíparo que vive debaixo da água, e é um animal só.

Logo veio a vontade de subir aos palcos e dessa urgência surgiu a performance República Ornitorrinco que eu deixo eles explicarem:

PARDAL - O República foi uma ideia que eu tive um tempo depois. Eu sentia que o público ficava muito dis-tante de nós, então resolvemos fazer o Ornitorrinco ao vivo. A gente abre como se fosse nossa sala de reda-ção, em que se discutem as pautas e os temas só que abrindo a possibilidade para que o público participe. Surgiu a oportunidade durante a ocupação do Teatro Ipanema, lá no Rio. A gente simula uma sala de reda-ção incluindo o público e discute assuntos aleatórios.

Assim como o Galera, o pessoal do Ornitorrico não demorou muito para encontrar sucesso entre as edito-ras grandes. Tanto Pardal quanto Maria têm seus traba-lhos "solos" publicados. O livro do coletivo saiu esse ano e conta com 20 edições selecionadas do zine.

***

Eu cheguei nos caras meio por acaso. Que é para ver como a gente fica sabendo pouco das coisas que acon-tecem por aí. Tanta informação e tão pouco que a gente cata...Enfim, rendeu.

Eu cheguei no hotel que eles estavam na Loureiro, esperei uns três minutos até que eles chegaram vindos da Cidade Baixa. "Deviam estar almoçando". Cumpri-mentos, cumprimentos. O Pardal me pergunta se eu quero um café. Eu não sou de negar café. Sentamos, Maria e eu, numa mesinha esperando. Quando ele che-ga com o café, derruba tudo sobre a mesa. Damos umas risa-das, os três. Um paninho. Eu tenho todas essas perguntas prepa-radas e agora te-nho que fazer assunto.

“OS ALQUIMISTAS ESTÃO CHEGANDO”

Temas abertos, que devem ser interpretados livremente por quem escreve

-Cês conhecem o CardosOnline?

-Claro!, ela responde mostrando empolgação

-Cara, eu era assinante do CardosOnline, inclusive. Eu tinha mais ou menos quatorze

anos na época. Foi uma grande referência para nós - diz ele, ainda limpando a mesa.

Eles devem responder essa questão o tempo todo.

Page 19: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 37

Por Arthur Viana

Camaleões

Meu vô sentou no sofáMeu vô era o sofáNão lembro do sofáE nem só do meu vô

Meu vô só saiu do sofáNo dia em que voou

Então não tinha mais sofáPorque também

Não tinha mais vô

Meu vô sentou no sofá

Não lembro do sofáE nem só do meu vô

Page 20: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 38 Sextante 2013.1 39

Porto Alegre, 18h. Horário de pique. Protásio Alves em obras, carros enfileirados, buzinas, filas. Engrava-tados vociferam contra o trânsito, estudantes e traba-lhadores se espremem em ônibus lotados. Passinho à frente, por favor. A impressão é que não se tem espaço pra mais nada – no ônibus, na cidade, no universo em constante expansão. Pedestres praticamente correm na ânsia de chegar em casa, com pressa para fugir da rua. Não se tem calma nem tempo pra recuperar o fôle-go. Para que eu quero descer.

Sem nenhum compromisso, Celso Gama, 50 anos, acorda.

Enquanto a cidade se enerva e para, Celso, alheio ao drama de seus conterrâneos, mesmo que quase atropelado por eles, se espreguiça, calmamente. Coça a barba branca por fazer. As mãos estão sujas e os ca-belos, amassados, mas o narcisismo passa longe. Seus olhos azuis acinzentados analisam a rua, dando especial atenção para o carrinho de supermercado que descansa ao seu lado. Ali, junto com caixas de papelão e roupas gastas, estão depositados todos os pertences de Celso. Com certo alívio, ele vê que tudo parece estar em seu lugar. Nem todo acordar é assim – ainda mais cedo, sua cuia de chimarrão, presente recente, havia sumido.

As roupas remendadas protegem do frio, apesar de ser verdade que, com o passar dos anos, o inverno já não assusta. Certa vez Celso ouviu, e aprendeu, que o

segredo é não pegar muito sol durante o dia, pra não esquentar demais e ficar gelado de noite. Com algum esforço, ele se endireita sobre o colchão rasgado, fura-do e usado. Não está com fome. Lembra novamente, com pesar, da cuia de chimarrão, desaparecida desde o início da tarde. Um mate seria bem-vindo. Ainda pesa-roso, Celso se estica, na ânsia de alcançar sua cadeira de rodas. Quer se mexer. Porto Alegre continua a passar por ele, ocupada demais para olhar para o lado. Os pou-cos que olham, não veem. Quando os dedos raspam o descanso para os pés e Celso ainda não consegue puxar a cadeira, olha em volta. Pede ajuda para um jovem que passa. Mas, a exemplo da maioria, ele apenas passa. “Não tenho nada, tio. Tô com pressa”.

Do outro lado da parede grossa, pintada de verme-lho, Isabel já está de pé. De sobrenome Bittencourt e com 57 anos, ela alimenta seus cachorros, Max e Tufão – no-meados em homenagem aos personagens de uma recente novela da maior cadeia de televisão do país. Fã desses seriados, ela não perdeu um episódio sequer de Avenida Brasil no seu aparelho 20 po-legadas, adquirido em uma pequena loja dos arredores, após uma longa

negociação com o dono do estabelecimento. O parce-lamento dos vinte reais em quatro vezes já foi quitado.

No momento, a televisão está desligada. O barulho dos carros trafegando pelo viaduto Tiradentes, que liga a Mariante à Silva Só, passando sobre a Protásio Alves, atrapalha. Ela senta em uma cadeira, pensativa. Gos-taria de colocar a mesa – duas caixas de papelão vira-das, enfeitadas com uma toalha - e preparar panquecas hoje, mas os vizinhos andam muito folgados. Estão se acostumando com a mordomia. Não, hoje a comida ia ser simples.

Celso dá a volta na parede grossa, pintada de verme-lho, e chama Isabel. Ele não pode se aproximar porque o piso é de paralelepípedos virados para cima, inacessí-veis para um cadeirante (e desconfortáveis para qual-quer um). Quer saber se a vizinha teve notícias da cuia de chimarrão. Para sua infelicidade, Isabel não sabia de nada, e ainda fica um pouco braba. Ela que havia dado a cuia de presente para Celso no dia anterior.

Vizinhos de longa data – compartilham o endereço sob o viaduto Tiradentes há uma década –, a relação entre os dois é de camaradagem. Isabel gosta disso. Morando há trinta anos nas ruas de Porto Alegre, sabe como poucos que as vielas da cidade podem ser traiço-eiras. Nos dias de hoje, então, é preciso ter ainda mais cuidado e dormir com os olhos abertos. Muita coisa

Porto Alegre continua a passar por

ele, ocupada demais para olhar para o lado.

Os poucos que olham, não veem.

Foto de Arthur Viana

mudou e são tempos perigosos. Por isso ela valoriza as boas companhias. Quando Isabel visita a mãe, na aveni-da Vicente Monteggia, zona sul, é Celso quem cuida dos pertences dela que ficam ali. Certa vez, Isabel confiou em uns bêbados que acabaram por beber todo o dinhei-ro que receberam pelo serviço e, quando acordaram do porre, quase tudo havia sumido. Não, o melhor é deixar os amigos como responsáveis, mesmo. Celso não se im-porta. Como ele próprio diz, aqui, um cuida do outro.

Apesar da parceria de hoje, os caminhos que os leva-ram a dividir as agruras cotidianas foram bem diferen-tes. Na verdade, Isabel e Celso pouco falam sobre como pararam nas ruas. Agora, para eles, isso não importa. O que vale é o dia de hoje, a refeição no prato, o cobertor rasgado sobre o corpo para proteger do sereno. Isabel cita um problema sério de saúde. Celso, que trabalhava na construção civil em São Paulo (ele é paulistano) e no Mato Grosso antes de vir para Porto Alegre atuar na área, fala de um acidente de trabalho que tirou a mobilidade de suas pernas. Im-possibilitado de trabalhar e caminhar,

Foto de Arthur Viana

Vizinhos de longa data – compartilham o endereço

sob o viaduto Tiradentes há uma década –, a relação entre

os dois é de camaradagem.

Page 21: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 40 Sextante 2013.1 41

perdeu o emprego, a esposa e, logo, a autoestima. O destino foi a rua.

Antes de se estabelecer sob o viaduto Tiradentes, vagou por muitos lugares. Mas não é ali que pretende ficar. O sonho é conseguir uma casa. O dinheiro para tal investimento viria do trabalho com artesanato, no qual diz possuir extrema habilidade. Não sabe bem como conseguir a matéria-prima para seus trabalhos,

pois, por mais que alguns materiais possam ser recolhidos dos lixos

e reciclados, Celso também precisaria de colas especiais, entre outros artigos mais. Já pensou em pedir auxílio para a Assistência Social, mas desistiu, pelo menos por enquanto. O

governo nunca o ajudou. Sua

outra esperança é o auxílio da irmã,

que vive em São Paulo. Responsável por alguns bens na capital paulista, ela poderia transferir dinheiro para o irmão em Porto Alegre. Mas Celso já ouviu, e aprendeu, que o segre-do é não pegar muito sol durante o dia, pra não esquentar demais e ficar gelado de noite; então ele deixa um pouco de lado esses pensamentos. Queria mesmo era achar sua cuia de chimarrão.

Isabel também pensa em sair da rua, ainda mais com a fácil alternativa de voltar a morar com a mãe. No entanto, toda vez que faz uma visita mais longa, de três ou quatro dias, a caixa de fósforos lotada de gente e de cachorros começa a in-comodar e apertar de tal forma que ela sempre retorna para a rua. Ar livre e espaço. Ela também planeja finan-ciar um imóvel para si, por meio do Minha Casa, Minha Vida – o que seria possível com seus ganhos com o Bolsa Família. Mas, tendo que ajudar a filha com duas crian-ças, uma delas ainda bem pequena, o benefício encolhe que nem gaita, e pouco sobra para a própria Isabel. Por enquanto, então, ela investe na casa em que já está e a qual divide com seus dois outros filhos, Max e Tufão – o viaduto Tiradentes.

A comida diária, das pessoas e dos cachorros, vem, em sua maioria, por meio de doações. Algumas boas almas que enxergam os camaleões camuflados no cin-za sujo da rua. Após as refeições, tudo que Celso quer é ficar em paz. Se alguém quer beber, que o faça longe. Quer fumar, que vá para outro lugar. Quer conversar sobre o mundo, que converse, mas não com ele. Por vezes, posiciona sua cadeira de rodas mais próxima ao cruzamento de carros, olhando a cidade que insiste em não olhar para ele. Abre a bíblia e lê um trecho aleató-rio. Celso, muito religioso, não frequenta mais a igreja. A fé, ele me disse, leva no coração.

Outro dia, outro horário.

Uma marcha invade o centro da cidade, clamando por revolução. Milhares de pessoas se enfileiram e, om-bro a ombro, marcham. O destino é a praça dos pode-res. As forças policiais, armadas até os dentes, já estão aglomeradas ali, protegendo a ordem estabelecida, sem entender que outra ordem não significa desordem. Cavalgando imponentes animais, sabres em punho, a cavalaria policial aparece e atropela tudo o que vê pela frente, covardemente. A revolução bate em retirada, mas se espalha pelas ruas adjacentes, pela cidade, por tudo. Enquanto isso, os quatro homens deitados na es-

quina da praça em colchões finos, tapados com cobertas re-

mendadas, viram e, silen-ciosamente, sem que

ninguém perceba, voltam a dormir.

Enquanto isso, os quatro homens deitados na esquina da praça em

colchões finos, tapados com cobertas remendadas, viram e, silenciosamente, sem que ninguém perceba, voltam a

dormir.

O sonho é conseguir uma

casa.

Por Thays Cruz

diferenças As queaproximam nos

Page 22: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 42 Sextante 2013.1 43

Estávamos no “Rumo Norte”, lugar onde não era preciso

ver, ouvir ou falar, apenas sentir.

Foi lá que reen-contrei Luís. Nem alto, nem baixo, com seu sobre-tudo preto impo-nente. Não era para parecer su-perior a qualquer

um, mas para se sentir ele mesmo.

Sempre que vi Luís de Medeiros, ele pa-

recia meio carrancudo, com cara de mau, todo de

preto e seu tom de Heavy Me-tal na voz, que mostrava bem o seu estilo. No entanto, quem se aproxima dele, percebe o quanto brincalhão e amistoso ele pode ser.

Ele me contou a história que começou há 22 anos (alguns acham que faz mais tempo). No dia 8 de feve-reiro, nasceu. Não era para ser naquele dia, mesmo as-sim, ele e seu irmão gêmeo chegaram ao mundo. Por serem prematuros, houve complicações. Apenas Luís está para contar a história. A visão subnormal, ou bai-xa visão, aconteceu depois que ele foi exposto a uma quantidade maior do que a necessária de oxigênio na incubadora. Sem a vendagem correta dos olhos, as reti-nas, ainda não formadas completamente, foram afeta-das. A retinopatia (deslocamento da retina) fez com que ele não visse mais o mundo da mesma forma: apenas um percentual de sua realidade.

A deficiência visual faz com que o técnico em infor-mática e professor tenha que se aproximar mais que

qualquer um para ver. Durante suas aulas, os alunos, que também têm alguma deficiência, não se importam com o contato mais do que próximo para as explica-ções. “O melhor professor”, é assim que a classe define o Luís. Com paciência e seu tom irônico ele toca a aula.

Sua carreira começou bem cedo. Luís conta que ga-nhou com sete anos o primeiro computador e “aos 12 ele já estava desmontado”. Então os amigos começa-ram a incentivá-lo a trabalhar com isso. Foi assim que se tornou autônomo e se envolveucom tudo que fosse da informática. A mesma tecnologia que o auxilia em momentos em que só sua visão não é capaz de informar o que se passa. Um dos instrumentos básicos que Luís utiliza é a câmera do celular como lupa, ou o navega-dor GPS. Ele comenta que não saberia como ter tanta autonomia há 20 anos, por exemplo. As facilidades tec-nológicas, para ele são grandes facilitadores, como para qualquer pessoa com deficiência visual. É a profissão que lhe abre novas oportunidades de ser independente. Ele acredita que esse ramo facilita na busca por empre-go e por ter acesso a recursos que fazem dele uma pes-soa mais autônoma.

A independência é a característica que define Luís, para ele mesmo. “Em casa, 90% das coisas que eu faço são normais, e os outros 10% eu recorro à tecnologia”. Ele descreve que sua rotina é permeada por facilitadores que ele busca, como a leitura de livros digitais ampliados. A lupa ou os óculos especiais foram abandonados, pois “não faziam diferença alguma”, e sua deficiência não po-deria ser corrigida por lentes. Ele chegou a usar por um tempo o recurso que ainda está em funcionamento para as pessoas com baixa visão, mas decidiu encarar com seus próprios olhos qualquer dificuldade de leitura.

Para pegar um ônibus, tarefa comum a todos que enxergam com facilidade, Luís relata sua artimanha: “Eu meio que tenho checkpoints, para vir ao centro, por exemplo, eu sei que todos os ônibus que eu pegar vão ter ponto final aqui, ou eu sei que o ônibus que passa em tal lugar vai me levar aonde eu quero”. Ele fala que se pegar algum veículo errado, desce e pega outro, já que não paga passagem e para ele isso não seria pro-blema. Outro recurso é a diferenciação do coletivo pela logomarca, já que para ele, são mais visíveis do que a identificação da linha.

Sem privilégios, a vida escolar de Luís de Medeiros foi marcada pelo auxílio de seus amigos. Ele estudou

e m escolas que tinham apoio pedagógico a crianças com deficiência visual, mas sempre estava na sala de aula, com os alunos ditos “normais”. O técnico afirma

que essa é a parte mais complicada, não para ele, mas para os colegas que precisavam s e r os olhos dele, se desdobrando em suas t a - refas e na ajuda ao vizinho de classe. A n e - cessidade básica de Luís era apenas sa-ber o que estava no quadro, para isso contou

sempre com a disposição de alguém. O único obstáculo foi quando, na universi-

d a de, ele não tinha mais a ajuda do parceiro a o lado. Para ele, faltava um atendimento

voltado às pessoas com deficiência na graduação, já que o professor não pode

dar uma atenção especial, e o colega está mais envolvido com o seu trabalho. Esse

f o i um dos motivos que acabou levando Luís a sair do curso superior.

A nova empreitada agora é deixar d e ser apenas o Luís, para ser Professor, que

ajudará seus alunos a ser cidadãos ple-nos. Durante a manhã, a aula é dedicada

à turma de deficientes físicos, à tarde, aos d e dificuldades mentais. Há dois anos, Luís

chegou ao “Rumo Norte”, instituição fi-lantrópico-religiosa que capacita pro-

fes- sores e alunos com deficiência. É a troca que enriquece muito mais essa relação de

iguais.É em sua aula que acompanho que

não há diferença alguma. Mesmo que al-guém ache, a deficiência física não in-fluencia na formação da turma. A lição

d o dia era a planilha de Excel, a classe já ha-v i a avançado pelos processos do Word e do

Paint. Em sua sala de aula, Luís não se-gue o estereótipo de um professor. Parece u m colega que compartilha as piadas, e o

quanto “era bom o vinho que ele tomou h á uns dias”. Era esse mesmo Luís que eu

lembrava, em meio às broncas por não s a - ber fazer as operações do Windows, ria e

brincava comigo.

O Norte à vista de todos

A sede do “Rumo Norte” foi o ponto de encontro, o lugar em que eu poderia explorar, conhecer novas pessoas, cada um com sua limitação, motora, auditi-va, intelectual ou visual, mas nada que impedisse de ver como alguém igual a mim. Incrivelmente, todos se confundiam, de maneira que eu sempre fiquei na dúvida se a pessoa com a qual estava falando realmente tinha deficiência. Ana Lúcia, a auxiliar de limpeza passava, eu falava com ela, gesticulava, não sabia realmente qual deficiência ela tinha, ou se tinha. Descobri depois, com

Todos somos iguais em nossas diferenças

A atenção na aula se mistura com a cumplicidade de querer uma maior inclusão na

sociedade

Foto de Thays Cruz

Para ensinar, mais do que uma dificuldade de visão, nada melhor do que a aproximação do outro como

um igual.e

Foto de Thays Cruz

Page 23: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 44 Sextante 2013.1 45

um certo ar humorístico por quem me disse, que ela era surda.

Na coordenação, fui informada das coisas que a instituição fornecia a seus frequentadores. Dona Iralda, a respon-sável pelo “Rumo Norte”, ficou elencan-do quem poderia ser o alvo para a en-trevista, mas na minha conclusão, com todos os exemplos, não teria ninguém que não fosse verdadeiramente inde-pendente naquele espaço.

A ação filantrópica do “Rumo Norte” acolhe desde 2002 quem apresenta al-guma limitação, capacitando e auxilian-do os integrantes das oficinas. O proje-to é mantido pela Sociedade Literária e Caritativa Santo Agostinho, das irmãs Escolares de Nossa Senhora. A institui-ção foi pioneira na habilitação de alunos e profissionais com deficiência, sempre com o objetivo de valorizar aluno e ofi-cineiro. É ali que as pessoas retomam sua vida depois da limitação, novamen-te se sentem capazes e voltam a ter sua independência.

A ONG habilita física, mental e pro-fissionalmente os deficientes por meio das oficinas oferecidas. Lá, eles não pagam para usufruir das atividades. Apenas passam por triagem de docu-mentos, e são iniciados em cursos como informática avançada, música, Libras, preparação para concurso, língua ingle-sa, entre tantos. O Braille e a Libras são oferecidas também a quem tem envol-vimento profissional, ou familiar com pessoas de deficiência auditiva e visual.

Eu estava envolvida, entre baru-

lhos de bengalas tateando o chão, a sirene que tocava nos intervalos, ou o silencio incrivelmente barulhento da aula de Libras. Fui parar na aula do professor Júnior.

Naquela sala, pessoas que ficaram cegas há pouco

tempo começam a se integrar novamente. Aprender a ler e escrever de uma forma muito diferente da que nos acostumamos nas séries iniciais. Confesso que fiquei um tanto confusa com as expressões: “o V é o R invertido, o Q é menos o seis”. Todos esses recursos faziam, pela recordação, os alunos aprenderem o novo alfabeto. Jú-nior enfatiza que os deficientes visuais usam muito da memória para suas tarefas. Nesse momento, vi que só uma aluna tinha alguma folha de anotação. Os outros, em seus rostos, faziam expressão de apelo à lembrança, para saber como seriam as letras acentuadas na escrita por relevo.

O Júnior, que tem 40 anos, há 11 ministra aulas, que no “Rumo Norte” são de Braille e Telemarketing. Ele se

divide em dois empregos e as lições da graduação em Letras. Cego desde a infância, ele tem a desenvoltura de qualquer professor, explicando a matéria difícil da matemática dos pontos na escrita feita pela reglete e o pulsão. A reglete ajuda a selecionar onde marcar cada ponto para formar as letras em Braille, e o pulsão faz o furo no papel. Ele conta que sempre arruma tempo, seja para o lazer ou para trabalho. E nos momentos de estu-do, chega a ler mais de 400 páginas por semana.

Os instrumentos de escrita e leitura dos deficientes visuais são ainda caros e difíceis de encontrar. Júnior conta que são lugares como a Associação de Cegos do Rio Grande do Sul, ou o próprio “Rumo Norte”, que ofe-recem o material. Com esses instrumentos é possível escrever manualmente. O processo é feito ao contrário

da leitura: fura-se da esquerda para a direita, e lê-se no mesmo sentido que a grafia comum.

Em toda nossa conversa, o assunto que insistia em vir à tona era da aceitação pessoal. Tanto mestre como alunos, diziam que a fórmula da independência passa pela consciência das limitações da pessoa com deficiên-cia, e a auto-estima ajuda muito nesse dia-a-dia.

Na sala de aula, todos tinham família, andavam so-zinhos para fazer suas tarefas, impunham sua respon-sabilidade e liberdade às pessoas. As tarefas diárias não são tão difíceis. No caso de Júnior, o curso de atividades diárias (CAD) teria adiantado, se ele tivesse mais talento nas atividades do lar. Mas, ele garante que “sabe se virar sozinho”.

A aula acabou, e seu José chegou para a aula indi-vidual.

Ele conta que sentiu muita dificuldade em sair de volta às ruas, há três anos tinha ficado cego, e a famí-lia insistia em não ter confiança em deixá-lo sozinho. A esposa, apenas há quatro meses tinha parado de ir buscá-lo nas aulas de Braille. Ele se queixou muito, de ter perdido sua independência, e tê-la que reconquistar aos poucos. “As pessoas custam a pegar confiança na gente”, confessa.

O professor Júnior apresenta, na aula que começa, o projeto “5 Sentidos”, da Faculdade de Arquitetura da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul. Nele, a audio-descrição faz com que os deficientes visuais imaginem os pontos turísticos de Porto Alegre assim como são. Jú-nior conta que, na exposição, os visitantes podem tocar e

mapear as reproduções em gesso de rostos famosos de esportistas gaúchos, como o judoca João Derly. A sensibi-lidade do cego está muito acima das pessoas “normais”, ressalta o educador, o que justifica o nome “5 sentidos”.

Na aula de Braille, pude confirmar a máxima que permeia a suscetibilidade das pessoas com deficiência visual. Assim que me apresento, elas começam a contar as perspectivas que traçam na mente quando conhe-cem alguém. Surpreendi-me quando começaram a me descrever, como me “viam”. Pena que eu não era como elas me imaginavam. Apenas soube que quando Júnior pensava em meu nome, ele era escrito em azul.

Direi que seu sorriso me vale mais que qualquer dança

O que dizer de Flávia Cruz? Tão acolhedora quanto sua casa. Nos 4 cômodos de quase 80 metros quadra-dos, a sua risada e conversa amistosa se espalham. Lá, o fogão e a pia são pequenos, capazes de encantar a qualquer criança com um mundo de seu tamanho. As adaptações foram feitas para Flávia, sobre duas rodas, da cadeira que lhe substituiu as pernas. Desde os três meses de idade, ela não se locomove como os outros. Antes de sua família poder comprar uma cadeira adap-tada, ela arrastava pela casa um acento comum. Assim, não deixava de fazer suas tarefas domésticas.

O sorriso e o bom humor, característicos dessa mu-lher de 64 anos, fez com que as pessoas sempre sim-

Mesmo quem não enxerga, tem no colorido o reflexo da alegria da aceitação de si

Foto de Thays Cruz

Foto de Thays Cruz

Junior não se limita em suas atividades, eu não pensaria em receber dele uma folha cortada com as próprias mãos do professor, uma tarefa comum para ele.

Foto de Thays Cruz

Page 24: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 46

patizassem com ela, mesmo que a achassem diferen-te. Ela conta que sempre que alguém a ficava olhando constantemente, recebia um sorriso em troca, e logo desarmava qualquer preconceito. Foi assim que ela rompeu as barreiras do estranhamento e começou a se integrar com a sociedade.

Como filha mais velha, a mãe lhe impôs a responsa-bilidade de ajudar a cuidar dos irmãos e dos afazeres da casa. Na família, ninguém subestimava o potencial de Flávia. A poliomielite não abateu em nenhum momento a força de vontade e as atividades já exercidas por ela.

Flávia conta que a mãe teve bastante trabalho, na época, porque há 60 anos não se tinha muito conheci-mento sobre a doença. Dona Maria Olívia Cruz conduzia Flávia em um carrinho construído especialmente para ela e, antes de tomar o bonde, deixava-o na casa de um vizinho, e lá ia com a filha para onde quer que fosse.

A dona de casa, ocupação atual, não frequentou es-cola. Na época não havia nenhum mecanismo de aces-sibilidade e inclusão. Ela foi aprendendo o que precisava aos poucos, também com os irmãos que iam à aula. Mas a pouca instrução não lhe impediu que tivesse consci-ência de sua condição e direitos. Sempre se engajou e lutou pela causa das pessoas com deficiência.

Ela trabalhou desde os anos 2000 na coordenado-ria da Prefeitura de Porto Alegre para demandas das pessoas com deficiência na capital. Flávia organizava eventos dentro da instituição pública para esclare-cer e confraternizar com as pessoas com deficiência (PCD’S). Esteve presente nas mudanças que garan-tiram a liberdade de ir e vir dos deficientes, como os elevadores nos ônibus adaptados, a sinaleira sonora e a calçada cidadã, com relevos táteis que guiam os cegos.

Sua locomoção mudou completamente depois que comprou a cadeira motorizada. A “moto”, como ela chama, é o veículo que carrega a independência dos afazeres da cadeirante. “A cadeira motorizada, para mim, é como um carro”, afirma, resumindo o que foi não precisar mais do marido para empurrá-la e acom-panhá-la nas suas saídas regulares.

É casada há 23 anos com Dorvalino e não tem filhos. Na época, os familiares mais distantes não acreditavam que o casamento duraria mais do que seis meses. Mas o marido, antes seminarista franciscano, largou o semi-nário e resolveu empreitar os obstáculos junto à Flávia, e hoje, ela pode resumir o matrimônio “como a liberta-ção das pessoas com deficiência”.

O que é ser os olhos de alguémNunca tinha antes conduzido alguém cego pela rua.

Não foi por falta de vontade, apenas por uma questão de não saber como fazê-lo.

Eu estava no grupo dos profissionais do “Rumo Nor-te”, quatro deles, cegos. Em frente à sede, no número 130 da Rua Praça Parobé, conversávamos e riamos ao lado do coração do centro, o Mercado Público. As ben-galas, no entanto, não passaram despercebidas. Achei estranho, mais ainda, havia pessoas que nos olhavam com um tom de estranhamento. Eu era um deles agora, ninguém estava preocupado se um de nós enxergava. Só não sei o que queriam de nós, que ficássemos num canto, reclamando da vida, por alguns não verem como todos os outros?

No caminho para o restaurante, coube a mim, inex-periente, conduzir Júnior. O primeiro momento foi a po-sição dos braços. Já tinha ideia de que devemos ofere-cer o apoio ao cego, e não sair puxando a pessoa. Todos com quem eu conversei acusaram que os que querem ajudar não sabem, eles tem que explicar, mas mesmo assim não confiam plenamente, é difícil se deixar levar por um desconhecido.

Ele foi caminhando ao meu lado, no meu passo lento. Agora, era eu quem ditava o ritmo e o caminho. Fiquei pensando, como seria ruim para mim, delegar a alguém a forma de eu caminhar. As pessoas, todas emaranhadas nas calçadas do centro, quase não da-vam espaço para eu andar com Júnior. Passávamos por

buracos, degraus e mais degraus: nunca tinha repara-do antes, que tínhamos que passar por tantos degraus apenas para atravessar a rua! Tentava avisar, toda vez que eles apareciam, narrando nosso caminho. Mas mi-nha atenção não se fixava por tudo que passávamos. Ainda bem que Júnior não deixava de estar com ouvi-dos e bengala atentos a tudo. Os deficientes visuais são obrigados a ter muita cautela. O problema é caminhar entre os barulhos de um grande centro, ou como me contaram, em um dia de chuva, no qual todos os sons ficam “abafados” e se confundem com os carros.

Chegando ao nosso destino, mais uma dificuldade. O lugar tinha rampa, mas também, ao lado, um degrau, por onde passaríamos? Decidi pelo declive, seria melhor para passar, pois o obstáculo não seria tão alto quanto a outra opção. Mas não foi tão fácil, mais uma vez, as pessoas se aglomeravam na porta, tínhamos que con-tar com a licença de cada um. Passamos para a parte mais difícil, a escada, em um estilo caracol estreita. Jú-nior precisou subir sozinho, achei que assim teria mais segurança.

Nas três quadras que percorremos, passamos por muito mais dificuldades do que eu pensava possíveis. Talvez fosse pela minha inexperiência, ou muito mais pela falta de segurança em se andar pelo passeio pú-blico. Não sei se me acostumaria, diferente daqueles com quem passei o dia, que em cada oportunidade vão se adaptando, sem perder sua postura forte e o rumo certo.

Paro em frente ao espelhoQue não significa nadaBato três vezes, ação sem nexo- quem é¿Pergunta a imagem- não seiRespondo- sou euDiz ela-somos nósDigoSomos¿-não somosDissemos, eu e meu reflexo.

Page 25: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 49

Por Caio Semensato

Falta de ar

A sinaleira fechou. Carlinhos desengata seu Chevet-te 1986 e para lentamente. Era uma tarde de janeiro, os termômetros de Porto Alegre beiravam os 40 graus. Ele tinha a sensação de que a cidade derreteria a qualquer momento, tal qual o queijo cheddar do cheese bacon que lhe servira de almoço horas antes. Sentia-se mal aquele dia. Não só pelo calor, do qual o porto-alegrense já se acostumara, mas também por uma intensa falta de ar que lhe assolava desde que saíra da corretora de seguros onde trabalhava.

No escritório, era exigido o uso de terno e gravata. Ele detestava aquele traje. Sentia-se preso , além de o deixar parecido com um pinguim devido a sua baixa es-tatura. Seu chefe dizia: - O paletó transmite credibilidade ao cliente! Carlinhos pensou várias vezes em abandonar o emprego. Detestava trabalhar trancado entre quatro paredes, mas ainda faltavam dezoito prestações das ro-das aro dezessete que havia comprado para “turbinar” seu Chevette.

Tão logo saiu do escritório, desfez-se do paletó, afrouxou a gravata e abriu alguns botões de sua camisa.

Nada disso foi suficiente para aliviar a terrível falta de ar que sentia, agravada pelo morma-ço que subia do asfalto da cidade. Ele sabia o motivo da sua angústia. Sabia como acabar com aquele sofrimento, mas lhe faltava co-ragem. Não que Carlinhos fosse um covarde.

Não se tratava disso.

O que lhe apavorava era o que os outros pensariam se tomasse tão drástica atitude. Entrou no carro e seguiu em direção ao Partenon.

Parado na sinaleira olhou ao re-dor. Não havia ninguém. Era o momento perfeito para to-mar uma atitude. Jamais saberiam o que ele havia feito. Quando se prepa-rava para executar o pla-no, encosta ao seu lado um enorme carro impor-tado, daqueles que até o nome é complicado de pronunciar. Aquele veículo provavelmente custaria mais dinheiro do que ele seria capaz de juntar em toda sua vida traba-lhando na corretora. Os vidros estavam fechados e ao volante uma distinta senhora que vestia um leve casa-co. Por vezes parecia sentir um pouco de frio, em seu mundo particular de eternos dezenove graus.

Carlinhos se desesperou. Aquela mulher, com um ar de superioridade, parecia não tirar os olhos dele. Ele não estava com uma aparência agradável. Transpirava muito, e estava exausto devido ao calor e ao descomu-nal esforço que fazia para que o ar chegasse aos

pulmões. Ela lhe causou certa inveja. Entre o delírio e a lucidez, devido ao pouco oxigênio que lhe chegava ao cérebro, prometeu a si

mesmo nunca mais reclamar do inverno em sua página no Facebook.

Os pensamentos ficavam cada vez mais desconexos. A lembrança do Facebook o re-

meteu a uma imagem que, mais cedo, ha-via compartilhado da fanpage Conselhos

de Clarice. Ele compartilhava muitas imagens desta fanpage. Não era fã de Clarice Lispector e muitas vezes mal lia as mensagens que compartilhava. O seu principal objetivo era impres-sionar suas amigas virtuais e tentar descolar alguma peguete. Entre-tanto, a imagem de hoje lhe des-pertara especial atenção. Tratava-se de uma foto “esfumaçada” da autora com a seguinte frase entre aspas: “Sob que condições o ho-mem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? E que valor tem eles? Obstruíram ou promoveram até agora o cres-cimento do homem? São indí-cios de miséria, empobreci-mento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade de vida, sua cora-gem, sua certeza, seu futu-ro? - Clarice Lispector”.

A sinaleira fechou.

Page 26: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 50

Estranhamente, a citação o lembrou as aulas de fi-losofia do ensino médio. Esforçou-se para recordar o nome do professor: - Ah! Era Máximo. Ele falava muito sobre um tal de Nietzsche. Delirante, voltou a se con-centrar na frase da imagem. Nunca entendera por que era preciso estudar filosofia. Que diferença aquilo faria na sua vida. De repente, tudo fez sentido. Carlinhos re-cobrou a consciência e pensou: - Clarice está certa. Não posso submeter minha vontade ao julgo dos outros. Preci-so agir por mim. Dane-se o que entendem por certo e erra-do. A mulher ao lado já não lhe era mais impedimento.

Ela não sabia, mas estava prestes a presenciar uma cena dantesca que, provavelmente, lhe tiraria o sono por alguns dias. Carlinhos estava decidido. Nada lhe im-pediria. Tudo do que ele precisava estava bem ali, em sua mão direita. Com o dedo indicador em riste, levou a mão até o nariz e penetrou sua narina. Permaneceu assim por algum tempo, fazendo movimentos circula-res com o dedo, em busca daquilo que lhe obstruía as vias respiratórias. Quando encontrou, não teve dúvidas. Com precisão cirúrgica, sacou o corpo estranho que há algum tempo lhe assolava as entranhas.

Era um “tatu” descomunal. Tinha exatamente o mesmo diâmetro da sua narina. Carlinhos chegou a sentir uma espécie de orgulho, como aquele que sente o pai pelo filho. Mas ele havia compreendido. Embora tenha sido gerado por ele, e por algum tempo tenha habitado seu organismo, aquele objeto não fazia parte da sua essência. A mulher agora ex-pressava uma cara de repulsa, e foi possível ver, por trás do vidro escurecido, seus lábios pronun-ciarem: - RELAXADO! Ele já não se importava. Apontou sua mão para a mulher ao lado e num movimento brusco, escorregou o dedo indicador sob o polegar, arremessando o projétil direta-mente no vidro do carro importado, que ali aderiu de forma impressionante. Pela primeira vez em horas, Car-linhos respirava sem impedimentos.

A sinaleira abriu, ele encheu os pulmões de ar e ar-rancou o carro com violência. Os pneus que cobriam as rodas dezessete deixaram marcas pelo asfalto quente. A mulher, em estado de choque, ficou imóvel. Ele sorria, deleitando-se com o ar que entrava pela janela direta-mente para o seu nariz desobstruído. Ele sentiu-se leve. Sentiu-se livre, deixando para trás todo aquele peso que lhe tirava a felicidade. Eufórico, Carlinhos pensou que talvez devesse comprar um livro da Clarice e, quem sabe, um dia lê-lo.

A sinaleira abriu.

Ronaldo Lemos

Entrevista com

Bruna Antunes

Melissa SchröderPor

Douglas Freitas

Page 27: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 52 Sextante 2013.1 53

Em 1976, ano em que nasceu Ronaldo Lemos, a in-ternet dava seus primeiros passos. Mal sabia o paulis-ta que um dia a web mudaria o jeito dele e do mundo de pensar a disponibilização de conteúdos, as rela-ções sociais e até a própria democracia. Aos 37 anos, Lemos é considerado um dos maiores pensadores do século 21. Principal nome latinoamericano no Creative Commons, é também diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas e fundador do site Overmundo. Na conversa com a Sextante, Ronal-do Lemos fala sobre a democratização de conteúdo, pirataria, Marco Civil na internet, redes sociais e de que maneira o Creative Commons colabora com a dis-tribuição de conhecimento. Ele ressalta a importância de ver a internet como uma nova ferramenta de opinião pública, que tem se mostrado cada vez mais ativa, prin-cipalmente no cenário de protestos pelo qual o Brasil vem passando.

Sextante: Como iniciou sua atuação com o tema propriedade intelectual e quando foi que esse trabalho se vinculou com a Internet?

Ronaldo Lemos: Minha carreira começou como advogado e professor em São Paulo. Durante a década de 90, trabalhei como advogado no setor de telecomu-nicações ao mesmo tempo em que ensinava sociologia jurídica na Faculdade de Direito da USP. O curto-circui-to entre a prática profissional em telecomunicação e a sociologia me levou imediatamente para a questão da internet. Já em 1995, dava para perceber que ela traria um impacto enorme para o direito e mudaria comple-tamente a forma como as pessoas se relacionam. E com isso as formas de trabalho, de relacionamento, a criatividade e as oportunidades de desenvolvimento. O primeiro curso sobre direito da internet que organizei

foi em 1998, em parceria com a Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), criada pelo Carlos Ari Sundfeld em São Paulo. A partir daí a questão da internet e da propriedade intelectual passou a integrar o meu traba-lho, tanto como advogado quanto como professor.

Sextante: Como foi o convite para integrar o Creative Commons? Quais têm sido os principais desafios?

Ronaldo Lemos: No começo dos anos 2000, fui estudar na universidade de Harvard justamente para poder trabalhar com o Berkman Center for Internet & Society, um dos centros mais importantes do mundo sobre os impactos sociais da internet. Lá conheci boa parte dos grandes nomes que trabalham com a questão da propriedade intelectual, com quem tenho a satisfa-ção de trabalhar até hoje. Naquele momento começa-vam a aparecer as ideias que levariam à criação do Cre-ative Commons. Voltei ao Brasil no fim de 2002, para ser um dos fundadores da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. A ideia era justamente criar um centro semelhante ao Berkman Center no Bra-sil. Um ano depois, fui, então, convidado para liderar o projeto Creative Commons no Brasil.

Sextante: Como foram os primeiros passos para a implantação da licença no Brasil? Nessa época, você teve alguma participação?

Ronaldo Lemos: Liderei o projeto Creative Com-mons no Brasil desde o início. A partir de 2003, criamos um time para trabalhar na adaptação das licenças ao direito brasileiro. Foi um trabalho que levou mais de um ano e teve a participação de vários interlocutores, des-de o Gilberto Gil, que acabava de assumir o Ministério da Cultura, até advogados tradicionais da área de pro-priedade intelectual. Houve o lançamento do Creative Commons no Brasil, que aconteceu em 2004, em Porto Alegre, com a presença de mais de 2 mil pessoas. Foi feito até um documentário sobre o lançamento, que

está disponível na internet. O lançamento contou com a presença de pessoas que foram interlocutoras do pro-jeto, como o Marcelo Tas, André Midani, Cláudio Prado, dentre outros. E, é claro, houve um memorável show do Gil logo após o evento, também em Porto Alegre.

Sextante: Os brasileiros entendem o Creative Commons? Qual o nível de envolvimento do nosso país em comparação com o uso da licença no resto do mundo?

Ronaldo Lemos: O Brasil foi o terceiro país do mundo a ter as licenças Creative Commons oficialmente lançadas, logo após o Japão e a Finlândia. Isso é um sinal muito importante. Hoje as licenças estão em mais de 80 países e são adotadas pela UNESCO, pelo Banco Mun-dial, pela Wikipedia e por iniciativas educacionais como a Khan Academy. A chegada do Creative Commons no Brasil produziu um impacto profundo. Mudou comple-tamente o debate sobre direitos autorais e propriedade intelectual no Brasil. Andou junto com o surgimento de toda uma nova geração de artistas que ganharam voz por causa da internet. E, sobretudo, mostrou de forma prática como a internet potencializa muitas das nossas vocações de colaborar, de remixar, de inventar formas novas de criatividade e de agir em rede. Em 2014, o projeto vai completar 10 anos de lançamento no país, e continua forte. Hoje o Creative Commons é muito utilizado, além da cultura, também na educação, nos chamados REAs (Recursos Educacionais Abertos). Um exemplo é a prefeitura de São Paulo, que licenciou to-dos os materiais educacionais utilizados na rede pública em Creative Commons.

Sextante: O Creative Commons beneficia a democratização do conhecimento? Não só na distribuição, mas também na produção?

Ronaldo Lemos: O Creative Commons faz parte hoje da infraestrutura para a colaboração na internet. É só pensar na Wikipedia. Sem o Creative Commons ela seria impossível. É por causa das licenças que as pessoas podem adicionar e revisar os materiais da en-ciclopédia. Se não houvesse a licença, seria necessário pedir autorização para cada um dos autores que contri-buíram anteriormente, o que seria inviável. Além disso, o Creative Commons está presente em inúmeros proje-tos colaborativos em plataformas como o Kickstarter. Vale lembrar também do Overmundo, site do qual fui um dos fundadores, junto com Hermano Vianna, que integrou as licenças no seu DNA. Em síntese, o Creative Commons funciona como a base legal para quem quer criar e utilizar modelos colaborativos na internet.

Foto de Bruna Antunes

Documentário de lançamento: http://archive.org/details/

CreativeCommons CreativeCommonsBrasil

Page 28: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 54 Sextante 2013.1 55

Sextante: A licença é vantajosa para produtores de conteúdo? É igual para bandas aspirantes, artistas da periferia e músicos já consagrados?

Ronaldo Lemos: O uso da licença Creative Com-mons é sempre voluntário. Cada artista ou criador deve decidir se ela atende ao seu objetivo de divulgação da obra. Para muitos artistas e criadores, a licença é van-tajosa, na medida em que permite criar formas muito mais sofisticadas de interação com o público, permitin-do remixes e a distribuição viral feita de forma legali-zada da obra. O Creative Commons é usado tanto por artistas consagrados quanto por iniciantes. No âmbito dos consagrados, Radiohead, Snoop Dog, Nine Inch Nails, Beastie Boys e muitos outros usaram as licenças. Há um enorme universo de novos artistas, em todos os gêneros, que também usam a licença.

Sextante: Como a legislação brasileira lida com o direito autoral? Nossas leis são atrasadas a nível mundial?

Ronaldo Lemos: A lei de direitos autorais brasilei-ra, aprovada em 1998, acabou não resolvendo uma sé-rie de problemas. Por exemplo, a palavra "internet" nem aparece na lei. É curioso que na mesma época a questão

da internet já estava sendo tratada nos EUA e na Eu-ropa. Mas, aqui, o assunto foi deixado de lado. É uma pena. A mudança rápida que os EUA fizeram no direito autoral para tratar da internet gerou anos de sólida inovação. O You-tube, Facebook, Twitter e todas as redes sociais surgiram por causa dessa agilidade. Como no Brasil isso não aconteceu, as regras continuam inadequadas ou incertas. Duas falhas em es-pecial chamam a atenção na lei brasileira. A primeira é a falta de regulamentação do ECAD. Em todos os países do mundo, repito, todos, existe algum ór-gão administrativo que regula ECADs locais. A lei de 1998 omi-tiu essa questão, o que vem gerando graves distorções, ao ponto do ECAD ter sido condenado por formação de cartel e abuso de poder dominante pelo CADE. A outra falha é a necessidade de equilibrar o capítulo das cha-madas "exceções e limitações" ao direito autoral, que hoje é mal redigido e desequilibrado.

Sextante: Como um dos criadores do Marco Civil da Internet, qual a importância da

regulamentação da rede?

Ronaldo Lemos: A impor-tância é extraordinária. A in-ternet faz parte da infraestru-tura do país. É tão importante quanto as estradas e os portos. Apesar disso, o Brasil deixou de lado essa questão. Só tratou da internet como problema de po-lícia. Tanto que a lei de crimes na internet foi aprovada antes do Marco Civil, rompendo um acordo que havia sido feito com a sociedade de que ambas se-riam aprovadas juntas. O Marco

Civil cria os pilares para proteger o usuário contra abu-sos ao mesmo tempo em que promove a inovação e o empreendedorismo na rede. É uma pena que ele esteja chegando tão tarde, já que poderia estar gerando efei-tos positivos para o desenvolvimento do país há muito

ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição

É o que leva a grana! O ECAD realiza a arrecadação e a distribuição de direitos autorais decorrentes da execução públi-ca de músicas nacionais e estrangeiras. É administrado por nove associações de música e foi instituído pela Lei Federal nº 5.988/73 e mantido pela atual Lei de Direi-tos Autorais brasileira.

CADE - Conselho Administrativo

de Defesa EconômicaÉ aquele que administra

as questões envolvendo con-corrência. Ele orienta, fiscali-za, previne e apura abusos do poder econômico.

Fotos de Bruna Antunes

Page 29: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 56 Sextante 2013.1 57

tempo. Por exemplo, há alguns meses o Brasil perdeu a instalação de um DataCenter de uma grande empre-sa de tecnologia no país, um investimento de mais de US$150 milhões. O DataCenter foi instalado no Chile e a razão é justamente a inadequação das leis brasileiras para permitir esse tipo de atividade. Hoje, o empreen-dedor brasileiro, ou mesmo o estrangeiro, é prejudicado pela ausência do Marco Civil, que resolveria o problema.

Sextante: Qual a sua visão sobre os grupos midiáticos brasileiros? Eles influenciam de alguma forma nos trâmites de implantação do Marco Civil?

Ronaldo Lemos: A sociedade brasileira como um todo, incluindo os grupos de mídia, apoiam o texto atu-al do Marco Civil que está no Congresso. Esse apoio foi costurado depois de várias negociações e é algo concre-to. O governo também já sinalizou que apoia o texto, bem como empresas da internet. Até o criador da web, Tim Berners-Lee, apoiou publicamente o projeto na sua visita ao Brasil agora em maio de 2013. Atualmente, o único setor que é contra o projeto é o setor das empre-sas de telecomunicações.

Sextante: Quais os caminhos possíveis e razoáveis para que a pirataria seja extinta? O Creative Commons pode ajudar nesse processo?

Ronaldo Lemos: O combate à pirataria vai ser vencido no campo econômico e não no campo da re-pressão. A melhor forma de combater a pirataria é oferecendo produtos e serviços a preços que sejam

compatíveis com os níveis de renda do país. Nos EUA, há anos tem ocorrido o declínio do compartilhamento de arquivos, substituído por serviços como o Netflix, que em troca de uma assinatura mensal permite que o cliente assista livremente ao conteúdo audiovisual do seu catálogo. A questão é que no Brasil muitos desses serviços digitais ainda são oferecidos a preços que são incompatíveis com a renda do brasileiro. Por exemplo, uma música no iTunes no Brasil custa o mesmo que uma música no iTunes dos EUA. Só que a renda do brasileiro é quatro vezes menor. Com isso esses serviços não vão se popularizar. A pirataria só vai ser vencida quando a lei da oferta e da demanda for levada a sério e os preços se tornarem compatíveis com o nível econômico do país.

Sextante: Qual a sua opinião sobre a situação do compartilhamento em países como a França, onde o P2P é criminalizado?

Ronaldo Lemos: A França está mudando sua polí-tica com relação ao compartilhamento de arquivos por P2P. A entidade represssora, chamada HADOPI, está sendo revista e seu orçamento foi reduzido neste ano. A conclusão é que o modelo não funciona sozinho. O plano de combate à pirataria na França envolvia duas partes: repressão e criação de alternativas legais a pre-ços compatíveis com o mercado. A parte da repressão caminhou a passos largos. Já a parte da criação de alter-nativas foi deixada de lado pelo governo francês. Esse é um erro comum, inclusive no Brasil.

Sextante: Qual sua opinião sobre as redes sociais?

Ronaldo Lemos: As redes sociais têm de ser vistas sempre com um olhar crítico . É inegável a sua impor-tância e como elas mudaram totalmente a esfera pú-blica no Brasil e no mundo. No entanto, são muitas as questões que geram preocupação. Por exemplo, a pro-teção à privacidade, a forma como os dados dos usuá-rios são repassados a terceiros, as modificações unilate-rais dos termos de uso sem qualquer aviso prévio. Isso sem falar no crescente uso das redes sociais para fins militares, como na proposta da lei chamada CISPA, que dá acesso privilegiado aos dados das redes sociais para o governo dos EUA.

Sextante: Qual o potencial da Internet em relação ao que é utilizado hoje pela maioria dos internautas?

Ronaldo Lemos: Redes sociais como o Facebook têm absorvido cada vez mais atenção, dificultan-do a vida de projetos que habitam foram dele. Como diz um grande amigo, o Facebook é como se o condomínio fechado tomasse con-ta da cidade. Mas a internet é uma rede que evolui em alta velocidade e essa é sua característica princi-pal. Ela está evoluindo agora para se tornar uma rede móvel, que vai existir cada vez mais, principalmen-te nos celulares, tablets, óculos e tecnologias "pervasivas", embarca-das diretamente nos objetos físicos no mundo. Essa é a característica da internet que precisa ser preser-vada: sua permanente abertura, neutralidade e maleabilidade, que são valores centrais da rede. En-quanto esses valores forem preser-vados, a inovação fica em primeiro plano e tudo que está na rede pode mudar rapidamente.

Sextante: Qual a importância das redes sociais nos protestos que acontecem hoje no Brasil?

Marco Civil da Internet Tramita na Câmara dos Deputa-

dos, desde 2011, o Projeto de Lei nº 2126/2011, que tem por objetivo regular o uso da Internet no Brasil. Em uma pers-pectiva de garantias de direitos e limita-ção de deveres, o texto trata de temas como neutralidade da rede, privacidade, identificação dos usuários, retenção de dados, função social da rede e respon-sabilidade civil de usuários e provedores. Para ler na íntegra, acesse: www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=517255

P2P - Peer-to-peer Do inglês par-a-par, de pessoa para pes-

soa, ou simplesmente ponto-a-ponto, é uma arquitetura de rede onde cada ponto funciona tanto como cliente quanto como servidor, permitindo o compartilhamento de serviços e dados sem a necessidade de um servidor central. Uma rede P2P pode ser usada para compartilhar músicas, vídeos, imagens, dados ou qualquer outro conteú-do em formato digital. Napster, Soulseek, eMule, Gnutella, Kazaa e Torrent são exem-plos de serviços P2P.Tramita na Câmara dos Deputados, desde 2011, o Projeto de Lei nº 2126/2011, que tem por objetivo regular o uso da Internet no Brasil. Em uma pers-pectiva de garantias de direitos e limitação de deveres, o texto trata de temas como neutralidade da rede, privacidade, identifi-cação dos usuários, retenção de dados, fun-ção social da rede e responsabilidade civil de usuários e provedores.

Ronaldo Lemos: A importância é enorme. Todas as demandas que estão em pauta agora já estavam pre-sentes na rede há muito tempo. A questão é que foram sumariamente ignoradas. A internet, na visão do gover-no, parecia ser algo à parte, uma mídia que podia ser ig-norada. Só que as pessoas foram às ruas, demonstrando que por trás de cada perfil, de cada demanda expressa pela rede, havia uma pessoa. Isso deixa muito claro uma nova forma de opinião pública expandida no Brasil. Da mesma forma que a mídia tradicional pauta a discussão política em Brasília, a internet passa ter também essa proeminência. Os protestos mostram justamente o mo-mento em que ficou claro que demandas que surgem online não podem mais ser ignoradas.

Foto de Bruna Antunes

Page 30: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 58

Sextante: Os protestos podem acarretar alguma mudança direta na democracia ou na forma de lidar com a participação popular — uma valorização das intervenções feitas pela rede, por exemplo?

Ronaldo Lemos: Certamente. A tecnologia é uma ferramenta importante para dar efi ciência a várias das agendas públicas que estão sendo demandadas. Por exemplo, hoje é possível implantar e aprofundar as ex-

periências de orçamento participativo a partir de ferra-mentas tecnológicas. Basta vontade política para isso. A tecnologia pode contribuir enormemente na efi ciên-cia dos serviços públicos. É só pensar no caso do Chile, em que hoje é possível abrir uma nova empresa em um dia, pela internet e a custo zero, enquanto no Brasil isso leva mais de 110 dias e custa 2 mil reais. A evidência per-feita de como a tecnologia pode revolucionar o serviço público é o imposto de renda, que no Brasil é totalmen-te efi ciente e digital. Por que a mesma efi ciência aplica-da na hora de coletar impostos não pode ser aplicada também para outros serviços públicos, ou mesmo para dar mais transparência a outros processos públicos?

As licenças e ferramentas Creative Commons são uma forma simples e padronizada para conceder per-missões de direitos de autor ao seu trabalho criativo, dentro dos limites da lei de direitos autorais. As licenças ajudam criadores a manterem seus direitos autorais, permitindo que outros copiem, distribuam e façam al-guns usos da obra - usos esses, decididos pelo autor. Cada licença também garante o crédito pelas obras, funcionando em todo o mundo e com duração enquan-to vigorarem os direitos autorais.

Três camadas de licença

Licenças públicas de direitos autorais incorporam um único e inovador desenho de três camadas. Cada licença começa com uma ferramenta jurídica tradicio-nal, a primeira camada, chamada Código Legal. Como a maioria dos criadores não domina essa linguagem, as licenças também possuem um formato de mais fá-cil leitura, a segunda camada, chamada Licença Sim-plifi cada, que resume e expressa alguns dos termos e condições mais importantes. A camada fi nal desempe-nha um enorme papel na criação, cópia, descoberta e distribuição das obras. Facilitando a busca na web por

conteúdos com licença Creative Commons, é fornecida essa versão da licença em um formato que os sistemas de software e ferramentas de busca entendam.

Como usar Creative Commons

Acessando o creativecommons.org, mas é necessá-rio fazer algumas escolhas tendo em mente o site onde a obra estará publicada. A primeira delas é "eu quero permitir o uso comercial da minha obra ou não?". Logo depois, "eu quero permitir trabalhos derivados da mi-nha obra ou não?". Se um autor decide permitir obras derivadas da sua, ele também pode optar por exigir que qualquer pessoa que usa o trabalho – os licenciados – torne esse novo trabalho disponível sob os termos da mesma licença. Finalmente, o autor decide qual será a jurisdição da sua licença, que pode ser nacional (esco-lhendo o país de sua validade) ou internacional. Além dessas escolhas, também é recomendável que o autor preencha dados referentes a obra. São eles: título da obra, nome do autor, link, fonte, formato e marca da licença. Ao fi m do processo, basta copiar o código da licença e colar em um lugar visível do site que contenha a obra.

Por GustavoDuarte

A festade Liliana Heker

alheia traduçãodo conto

Page 31: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 60 Sextante 2013.1 61

Mal chegou, foi à cozinha para ver se estava ali o macaco. Estava. E isso a tranquilizou: não teria gostado nem um pouco de ter de dar razão à mãe. Macaco em um aniversário?, lhe tinha dito, por favor! Você é uma que acredita em todas as bobagens que dizem. Estava irritada, mas não pelo macaco, pensou a moça: era por causa do aniversário.

— Não gosto que esteja indo — havia lhe dito — É uma festa para ricos.

— Os ricos também vão ao céu — disse a moça, que aprendia religião no colégio.

— Que céu que nada — disse a mãe — O que acon-tece é que você, minha fi lhinha, é cheia da presunção.

O jeito de falar da mãe não agradava a moça: ela ti-nha nove anos e era das melhores alunas da turma.

— Eu vou ir porque fui convidada — disse — E fui convidada porque Luciana é minha amiga. E ponto fi nal.

— Ah, sim, sua amiga — disse a mãe. Fez uma pausa — Escuta, Rosaura, — disse por fi m — essa aí não é sua amiga. Sabe o que você é para todos eles? Você é a fi lha

da doméstica, nada mais.Rosaura piscou com energia,

não ia chorar.— Cala a boca — gritou —

O que sabe você sobre ser amiga.

Ela ia quase todas as tardes à casa de Luciana, e juntas faziam os temas en-quanto a mãe de Rosaura fa-

xinava. Tomavam leite na co-zinha e contavam-se segredos.

Rosaura gostava muito de tudo o que tinha nessa casa. E gostava

também das pessoas.— Eu vou ir porque vai ser a festa mais linda do mun-

do. A Luciana me disse que vai ser. Vai vir um mágico e vai ter ainda um macaco.

A mãe voltou-se para olhá-la bem e apoiou vaidosa-mente as mãos no quadril.

— Macaco em um aniversário? — disse — Por favor! Você é uma que acredita em todas as bobagens que di-zem.

Rosaura ofendeu-se muito. Além disso, não lhe pa-recia correto sua mãe acusar as pessoas de mentirosas só porque eram ricas. Ela também queria ser rica (ou quer). Se um dia fosse viver em um lindo palácio, sua mãe não ia querer ir também? Ficou muito triste. Queria ir a essa festa mais que tudo no mundo.

— Se eu não for, me mato — murmurou, quase sem mover os lábios.

E não sabia se tinha sido ouvida, mas o certo é que na manhã da festa descobriu que a mãe lhe tinha pas-sado o vestido de Natal. E à tarde, depois de lhe lavar a cabeça, lavou-lhe o cabelo com vinagre de maçã para que fi casse bem brilhante. Antes de sair, Rosaura viu-se no espelho, de vestido branco e cabelo brilhante, e se achou linda.

Dona Inês também pareceu notar. Ao vê-la entrar, lhe disse:

— Como está linda hoje, Rosaura.Ela, com as mãos, balançou ligeiramente a saia pas-

sada: entrou na festa com passo fi rme. Cumprimentou Luciana e perguntou do macaco. Luciana fez cara de conspiradora e aproximou a cara da orelha de Rosaura.

— Está na cozinha — sussurrou — Mas não diz pra ninguém porque é segredo.

Rosaura quis verifi car. Em segredo entrou na co-zinha e o viu. Estava meditando em sua jaula. Era tão engraçado que a menina esteve um bom tempo olhan-do, e depois, de quando em quando, ela abandonava a festa às escondidas e ia vê-lo. Somente ela tinha per-missão para entrar na cozinha. Dona Inês lhe tinha dito: “Você pode, mas ninguém mais. São muito agitados, é capaz de quebrarem algo”. Ro-saura, em compensação, não quebrou nada. Nem mesmo teve problemas com a jarra de suco de laranja quando a levou da co-zinha à sala de jantar. Segurou com cui-dado e sem deixar cair uma gota. Foi o que disse dona Inês: “Acha que consegue levar essa jarra tão gran-de?”. E claro que conseguia: não era de se queixar como as outras. Como aquela menina loira com um coque no ca-belo. Ao ver Rosaura, a menina com o coque lhe disse:

— E você, quem é?— Sou amiga de

Luciana — disse Rosaura.

— Não — dis-se a menina de coque —, você não é amiga de Luciana porque eu sou prima dela e conheço todas as suas amigas. E você eu não conheço.

— Não importa — disse Rosaura —. Eu venho todas as tardes com minha mãe e fazemos os temas jun-tas.

— Você e sua mãe fa-zem os temas juntas? — disse a menina de coque, com um risi-nho.

— Eu e Luciana fazemos os temas juntas — disse Ro-saura, muito séria.

A menina de coque deu de ombros.— Isso não é ser amiga — disse — Vai ao colégio com

ela?— Não.— Então, de onde a conhece? — disse a menina de

coque, que começava a fi car impaciente.Rosaura lembrava muito bem as pala-

vras da mãe. Respirou fundo.— Sou a fi lha da empregada

— disse.A mãe lhe tinha dito bem

claro: se alguém perguntar, você diz que é a fi lha da em-pregada, e pronto. Também havia dito que precisava acrescentar: e com muita honra. Mas Rosaura pensou

que nunca em sua vida diria algo assim.

— Como assim empregada? — disse a menina de coque — Ela

vende coisas em uma loja?— Não — disse Rosaura com raiva —, minha mãe

não vende nada, fi que sabendo.— Então, como que é empregada? — disse a menina

de coque.Mas nesse momento se aproximou dona Inês fa-

zendo shh shh, e pediu à Rosaura ajuda para servir os cachorros-quentes, já que ela conhecia a casa melhor que ninguém.

— Viu — disse Rosaura para a menina de coque, e, com ninguém olhando, lhe chutou no tornozelo.

Afora a menina de coque, gostou de todas as crian-ças. A que mais gostava era Luciana, com sua coroa de ouro; em seguida vinham os rapazes. Rosaura ganhou a corrida dos sacos e em outro jogo ninguém a pode pe-gar. Quando se dividiram em grupos para jogar charada, todos os rapazes pediram aos gritos que ela entrasse em seu grupo. Rosaura achou que nunca havia sido tão feliz na vida.

Mas o melhor estava por vir. O melhor veio depois que Luciana apagou as velas. Primeiro, a torta: dona Inês lhe pediu que a ajudasse a servir a torta, e Rosaura se divertiu muito porque todos se aproximaram dizen-do “eu”, “eu”. Rosaura se lembrou de uma história em que havia uma rainha que tinha o direito de vida e morte sobre os súditos. Havia gostado realmente disso de ter direito sobre a vida e a morte. Para Luciana e para os meninos deu os maiores pedaços, e para a menina de coque uma fatiazinha de dar lástima.

Depois da torta veio o mágico. Era magrinho e tinha uma capa vermelha. Um mágico de verdade: desatava lenços com um único sopro e passava uma argola por outra sendo que não tinham aberturas. Adivinhava car-tas, e o macaco era seu ajudante. Era esquisito e cha-mava o macaco de parceiro. “Vamos ver, parceiro”, ele dizia, “vire uma carta”. “Não fuja, parceiro, estamos em horário de trabalho”.

O último truque era o mais emocionante. Um me-nino deveria pegar o macaco nos braços e o mágico o faria desaparecer.

— Quem? O menino? — gritaram todos.— Não. O macaco — gritou o mágico.Rosaura pensou que essa era a festa mais divertida

do mundo.O mágico chamou um gordinho, mas o gordinho se

assustou e deixou cair o macaco. O mágico o levantou com muito cuidado, lhe disse algo em segredo, e o ma-caco fez que sim com a cabeça.

— Não precisa ter tanto medo, meu caro — disse o mágico ao gordinho.

— Quem tem medo — disse o gordinho.O mágico voltou a cabeça para um lado e outro

como se estivesse checando se não havia espiões.— Cagão — disse — Vai sentar, meu caro.Depois foi olhando, uma a uma, a cara de todos. Pal-

pitava o coração de Rosaura.— Vamos ver, a de olhos de amora — disse o mágico.

E todos viram como apontava para ela.Não teve medo. Nem com o macaco aos braços,

nem quando o mágico fez desaparecer o macaco, nem ao fi nal, quando o mágico fez ondular sua capa verme-lha sobre os cabelos de Rosaura e disse as palavras má-gicas... e o macaco apareceu outra vez ali, muito alegre, entre seus braços. Todos aplaudiram com energia. E an-tes que Rosaura voltasse a se sentar, o mágico lhe disse:

— Muito obrigado, senhorita condessa.Isso a agradou tanto que um pouco depois, quando

a mãe veio buscá-la, foi a primeira coisa que lhe contou.— Eu ajudei o mágico e ele me disse: “muito obriga-

do, senhorita condessa”.Foi bastante estranho já que até esse momento

Rosaura havia acreditado estar irritada com a mãe. Du-rante todo o tempo havia pensado que ia lhe dizer: “Viu que não era mentira sobre o macaco”. Mas não. Estava alegre ao lhe contar do mágico.

A mãe lhe deu um cascudo e disse:— Olhem a condessa.Mas se via que também estava alegre.E agora estavam as duas no hall, pois um momento

antes dona Inês, muito sorridente, havia dito: “esperem um pouquinho”.

Então a mãe pareceu preocupada.Que foi? perguntou à Rosaura.Que foi o quê? — disse Ro-

saura— Ela foi buscar a lem-brancinha para os que saem.

Apontou para o gordi-nho e para uma menina de tranças, que também esperavam no hall ao lado de suas mães. E lhe expli-cou como era isso de lem-branças. Sabia bem porque tinha observado os outros saírem. Quando uma menina ia embora, dona Inês lhe dava uma pulseira. Quando ia um meni-

Que céu que nada

Ilustração de Gisele Lins

Mas o melhor estava por vir

Depois da torta veio o mágico

Page 32: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 62

no, dava um ioiô. Rosaura gostava mais do ioiô porque tinha chispas, mas isso ela não disse à mãe. Era capaz de lhe dizer: “Então, por que não lhe pede o ioiô, sua tonta?”. Sua mãe era assim. Rosaura não tinha vontade de explicar que tinha vergonha de ser diferente. Em vez, lhe disse:

— Eu fui a melhor da festa.E não falou mais porque dona Inês acabava de entrar

no hall com uma bolsa azul e outra rosa.Primeiro foi até o gordinho, lhe deu um ioiô que ha-

via tirado da bolsa azul, e o gordinho se foi com sua mãe. Depois foi até a menina de tranças, lhe deu uma pulseira que havia tirado da bolsa rosa, e a menina de tranças se foi com a mãe.

Depois se aproximou de Rosaura e da mãe. Tinha um sorriso largo, que agradou Rosaura. Dona Inês olhou para ela, olhou para a mãe e disse algo que encheu Rosau-ra de orgulho. Disse:

— Que filha que você tem, Herminia.Por um momento, Rosaura achou que ia

receber as duas lembranças: a pulseira e o ioiô. Quando dona Inês fez um gesto de que ia buscar algo, ela começou a adiantar o bra-ço. Mas não completou o movimento.

Porque dona Inês não buscou nada na bolsa azul nem na rosa. Buscou algo na carteira.

Na mão apareceram duas notas.— Isso você ganhou da maneira certa — disse esten-

dendo a mão — Obrigada por tudo, querida.Agora Rosaura estava com os braços muito rígidos,

colados ao corpo e sentiu que a mão da mãe se apoia-va sobre seu ombro. Instintivamente se apertou contra o corpo da mãe. Nada mais. Salvo o olhar. O olhar frio, fixo na cara de dona Inês.

Dona Inês, imóvel, continuava com a mão estendi-da. Como se não conseguisse retirá-la. Como se a menor perturbação pudesse arruinar esse delicado equilíbrio.

A gota pingava

Da tristeza da sedeEnchia o poço

Pingava Pingava

Pingando Pingando

Não para de cairMaria chorava essa lágrima Sem gosto, sem voz, sem rostoÁgua pura e cristalinaE passava o dia pingando

Como se a menor perturbação pudesse arruinar

esse delicado equilíbrio.

Page 33: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 64 Sextante 2013.1 65

Por PriscilaDaniel

Respeitável Público

Independência e teatro - lhes apresento minha pauta. Pois bem, “teatro

independente”, me foquei no início. No começo da apuração percebi o equívoco: que teatro independente eu busco, que

não o teatro em si?

Compreende-se, portanto que o teatro, na própria medida em que permanece encerrado em sua linguagem, em que fica em correlação consigo mesmo, deve romper com a atualidade; que seu objetivo não é resolver confli-tos sociais ou psicológicos e servir de campo de batalha para paixões morais, mas expressar objetivamente verda-

des secretas, trazer à luz do dia através de gestos ativos a parte de verdade refugiada sob as formas em seus

encontros com o Devir.Disse isso Antonin Artaud (O Teatro e Seu Du-

plo, 1935), um dos componentes do teatro do absurdo, corrente teatral que unia teatrólogos diferentes entre si, mas que trabalhavam a ir-realidade da realidade. Teatro é liberdade, é absurdo, é lógico. É independente. Fui atrás de nichos de encenação na capital dos gaú-chos, buscando o teatro, dependente de sua independência intrínseca.

Foi com um “boa tarde” ressoante que Feliciano Falcão atendeu meu telefonema. Foram semanas tentando agendar o encon-tro, que acabou acontecendo na noite de

uma quinta-feira, numa brecha de sua agen-da cheia de compromissos e viagens. Numa

mesinha afastada de uma cafeteria na rodovi-ária de Porto Alegre, regido por um sotaque que

mistura o nordestino com o carioca, ele me contou um resumo de sua vida e de seu trabalho como ator

e empreendedor de seu próprio espetáculo. Falcão é personagem marcante de Porto Alegre. Apesar de ser recifense, criou raízes na capital gaúcha e por aqui fez sua vida. Com um chapéu de pele de coelho simulando o rabo de um gato, um saco de pano e um apito, ele é mais conhecido, claro, como o Homem do Gato.

“A rua pra mim hoje é sinônimo de status. Antes era sinônimo de sobrevivência”, conclui. O Homem do Gato nasceu na rua, cresceu nas calçadas e fez sucesso com os transeuntes. Atualmente, os espetáculos nas vias pú-blicas não são tão frequentes, pois a agenda de eventos, feiras e festas ocupa grande parte de sua vida profissio-nal. “Hoje sou contratado por grandes eventos, grandes

Feliciano Falcão: o Homem Gato

Page 34: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 66 Sextante 2013.1 67

empresas, prefeituras, mas isso tudo é consequência do sucesso da rua”, completa o artista que encontra ao ar livre a expressão do seu trabalho.

Foi com o teatro que Feliciano transformou o núme-ro do gato. Quando ainda trabalhava com números de mágica, foi fazer show em uma feira no Rio de Janeiro e encontrou um homem imitando um gato dentro de uma caixa e vendendo o apito que produzia. “Um nú-mero sensacional”, pensou. Conversou com o homem, propôs-se como ajudante e, em pouco tempo, já estava batendo recordes de vendas. “Um sucesso avassalador. Havia o apito à venda, mas a ideia do teatro não existia. Foi uma coisa que eu criei”, orgulha-se com a voz infla-da. Nas apresentações, as reações eram variadas: “uns achavam um louco, outros um doido, mas no fim era um ator. E isso começou a gerar muitos elogios e eu decidi largar tudo e me transformar em um ator”, conta Feli-ciano, que se profissionalizou no Rio de Janeiro.

A liberdade da rua permite que ele faça seus horá-rios, seu texto, sua interpretação. “Tem toda a liberda-de, porque não tem um diretor que diz faz isso ou faz aquilo. No caso, quando você fala na rua, o artista in-dependente tem que ter muito cuidado com o que faz, porque se não ele não tem público.” A independência dos artistas de rua está ligada ao ‘termômetro’ do pú-blico. Pode colocar (quase) tudo o que quiser no espetá-culo, desde que tenha qualidade e pessoas para assistir.

O número apresentado por Feliciano não é apenas “o gato”. Em um espetáculo de uma hora, ele faz 10min da encenação do felino e o restante é preenchido com piadas, interação e humor. “Na verdade, o número do gato não é gato nenhum. Tem corrupto dentro do saco, ali tem fome, ali tem lobes, ali tem maus políticos, aquele gato que berra tem ‘n’ conotações”, explica o ar-tista, que está sempre lendo, se informando e buscando novas referências para mudar o show e mantê-lo atual.

Não basta apenas ser um bom artista, para viver da arte, é preciso saber empreender e produzir seu próprio espetáculo como uma fonte de renda. Pequenos grupos ou artistas independentes vivem geralmente de editais,

eventos e festivais; é preciso tempo de estrada e reco-

nhecimento para con-quistar um grande

patrocínio. Feli-ciano é um dos poucos artistas que conseguiu viver do traba-lho na rua. “O artista de rua que deu certo”,

como gosta de se definir.

Nas mãos da imaginação

A imaginação e a criação permitidas dentro de cena liberam o público a participar de uma série de outras re-alidades inventadas e encenadas pelos artistas. “Acho que uma boa obra de arte não precisa ter uma função especifica, tem que mobilizar de alguma forma a ima-ginação e a emoção de quem a aprecia. Por isso, os re-sultados que provoca são múltiplos”, comenta Paulo Bonardi, membro da Caixa de Elefante, grupo de teatro de bonecos criado há 12 anos.

“É dia de festa de cores no céu papagaio, pandorga amores ao léo quem olha e não cansa é quem sonha, talvez um sonho de voltar a ser outra vez uma criança...”

A infância de muitos de nós passou permeada pelos fantoches, bonecos, fantasias que transformavam as tardes, as apresentações, mais alegres. A arte transves-tida de boneca exala uma dramaturgia que é cercada pelos valores mais mágicos; as mãos por trás do boneco permitem ao artista a liberdade de uma encenação re-pleta de fantasia. “O boneco possui um poder metafó-rico enorme e é capaz de realizar coisas incríveis, que parecem fazer parte de um mundo onírico. Ele pode voar, multiplicar-se, reduzir ou aumentar seu tamanho, explodir”, explora Bonardi.

“A Caixa do Elefante Teatro de Bonecos, a exemplo desses enormes paquidermes, tem percorrido o mundo com seus espetáculos, transportando, em suas baga-gens, toneladas de poesia e divertimento que perma-necerão na memória de uma geração inteira”, explica o texto de boas-vindas no site da companhia, que figura ao lado de uma ilustração de Ganesh, o deus do suces-so. Encantados pelos paquidermes de tromba longa, o grupo se inspirou nos elefantes para batizar e trazer um norte para seu teatro.

Na criação dos espetáculos, roteiros e histórias, o grupo se apóia na autonomia criativa, na liberdade de criação de personagens e enredos, com foco na mensa-gem que deve ser passada ao público. Porém, aliada à autonomia, estão também as restrições e viabilidade do projeto. “Essa autonomia caminha sempre junto com a produção, e pensamos muito na viabilidade dos proje-tos também em relação a uma demanda de mercado, custos e circulação. Acho que a arte independente deve ser muito bem planejada para obter os resultados espe-rados”, explica o diretor.

A história do grupo, com direito a muitas apresen-tações nas ruas, enriqueceu a bagagem volumosa que a equipe construiu ao longo dos anos de estrada. A rela-ção do contato direto com o público, é muito diferente da explorada em palcos ou teatros fechados. Rafa Cam-bará, que trabalhou com o Caixa de Elefante durante 14 anos, explica que na rua não há a proteção do palco ou da “quarta parede”, que separa o público do artista. Se o artista está fraco cenicamente, vai ser desmonta-

do pelo público. “A rua te desvela, na rua tu vai ver se o ator ou a atriz tem café no bule. A rua é que mostra o verdadeiro trabalho do ator. Porque ali eu tô fazendo um personagem eu tô na frente das pessoas. Na rua tu não tem máscara, tem que estar muito firme no que tu faz”, argumenta.

Mosaico de ideiasCriado no Caixa de Elefante, Rafa Cambará é atu-

almente integrante do Grupo Mosaico Cultural. Partiu há quatro anos para criar sua própria companhia e to-car seus projetos, se “independizar”. Sair de um grupo consolidado e referência nacional foi uma escolha difí-cil, mas necessária para os membros do Mosaico, que

queriam explorar novas linguagens e apostar em novos desafios.

“O sentimento de começar uma história do zero é o pânico e o êxtase, em simultâneo. Porque ao mesmo tempo tu és livre, ‘velho, faz o que tu quer, não precisa mais pergun-

tar nada pra ninguém, é como tu acha que é. Vai! É

tudo contigo’. Mas isso é meio assustador. Foi um pâni-co e um êxtase nas mesmas proporções, mas o êxtase acabou sendo infinitamente maior.”

No primeiro ano do grupo Mosaico Cultural, Rafa e os outros três integrantes investiram dinheiro e energia na construção de uma casa/sede, que Cambará mostra com o orgulho de quem fez aquilo se concretizar. Na sede, há espaço para ensaios, estúdio de som e lugar para guardar as ferramentas e peças do figurino e cená-rio. Um espaço montado para dar suporte à produtora cultural, que além dos espetáculos tem uma banda – a Capitão Rodrigo -, oferece oficinas de montagem de bonecos, teatro de objetos e outros temas. É um gru-po versátil, que transita pela arte com a experiência de quem trabalhou com isso durante toda a vida. Rafa é filho de produtora cultural e já nasceu no mundo das artes e dos espetáculos. Sem educação formal em tea-tro, ele aprendeu o que sabe na vida, atuando e fazendo arte. Dos seus 30 anos de vida, 18 ele passou envolvido no meio teatral.

Ele explica que o processo criativo de um espetá-culo passa primeiro pela definição da mensagem que o grupo quer passar ao público. A partir disso, é criada a história, o roteiro, os personagens. Na montagem das apresentações, a fronteira entre as artes é rompida. Rafa conta que a proposta é utilizar do vídeo, dos ob-jetos, da poesia e de outras formas de expressão para

“É dia de festa de cores no céu papagaio,

pandorga amores ao léo quem olha e não cansa

é quem sonha, talvez um sonho de voltar a ser

outra vez uma criança...”E o teatro, como arte

independente, depende das outras

artes.

Grupo mosaico Cultural: Rafa Cambará, Ju Cambará, Nando Cambará e Dida Ortiz (produtora). Foto de joão Dullius

Page 35: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 68 Sextante 2013.1 69

enriquecer o número e passar a men-sagem com qualidade. “Cada arte tem um diferencial, uma coisa para te ajudar em algum lado. E eu vou usar todas para a solução cênica”, explica. O teatro, como arte independente, depende das outras artes.

Para Rafa, a adequação do teatro às circunstâncias, de público e co-merciais, fazem parte da vida de um artista. “Se vem um cliente pedindo um espetáculo de uma determinada maneira, sobre determinada temá-tica, a gente é livre pra criar dentro daquele tema, mas a gente não tá li-vre. Então, acontece. Eu posso fazer o seguinte: penso os valores, o que eu quero trabalhar dentro daquele tema. É livre, mas não é livre. É um parado-xo, e onde tiver paradoxo é bom”, re-flete. É o que Feliciano Falcão chama de ética com o cliente: “você adapta seu show às circunstâncias. Se eu faço um show para crianças, eu não posso ter a mesma carga de humor que eu coloco para um adulto. Se eu faço um show patrocinado por uma empresa, eu tenho que ter um carinho por essa empresa que me patrocina, que eu chamaria mais de ética, tem que ter um pouco de ética. Isso é um ganho de status. Você não pode ser indepen-dente e não ter dinheiro. O patrocínio é um ganho financeiro”, ressalta o artista, que considera que é possível exercer a arte dentro de certos limites impostos pelos clientes.

Porém, o que nenhum dos artis-tas abandona em sua arte é: ela não pode ser alheia. “A arte é a única coi-sa capaz de transformar o mundo em que a gente vive no lugar que a gente precisa pra viver”, resume Cambará, que trabalha as temáticas e os valores de seu espetáculo sempre atento aos valores humanos e à mensagem que deseja passar ao público. Dentro da mensagem, do processo criativo de-senvolvido no teatro, estão agentes ativos de mudança dentro de uma so-ciedade. Um papel de transformação e reflexão que a arte assume para si como ninguém, e que pode e deve ser muito explorada pelos artistas, seja no teatro de rua, em encenações no palco, em um teatro de bonecos re-pleto de fantasias ou na história de um cordel, contada e cantada com música e poesia.

Foto de João Dullius

Foto de Claudio Etges

Foto de João Dullius

Companhia Caixa de elefante, fundada em 1991 Foto de Claudio Etges

Page 36: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 70 Sextante 2013.1 71

Por Pedro Veloso

Filmes,ceva e Brasil

As aventuras de Pedro Veloso (sim sou eu, to falando de mim

mesmo na 3ª pessoa agora) pelo cinema independente

mundial!!

Prólogo

Era sexta-feira, umas 16h de algum dia do começo de maio. Em um bar em frente à praça Marechal Deodoro, uma turma de alunos da PUC produzia um filme. Ou melhor, um episódio de uma série que servia como trabalho de conclusão do curso de Produção Audiovisual da Famecos.

Era o último final de semana de filmagens, e, claro, tirando as lindas e poderosas câmeras que são patrimô-nio da faculdade, tudo era bancado pelos alunos. Tipo a gente nos trabalhos da Fabico mas ao invés de só pre-parar um PPT e escrever um texto pra uma revista, eles tinham que ver locação, produzir, ver figurinos e tudo mais aquilo que um filme deve ter e do próprio bolso. Sabe cinema independente?

Quando cheguei no set, tinha uma menina choran-do. Mas não estavam gravando nenhuma cena. Ela era responsável pela direção de arte do episódio, e parece que tinha dado alguma treta com um esmalte. Essa foi só uma das “cenas” que eu presenciei naquele dia.

A série tratava de um casal que se reencontrava de-pois de anos, e naquele dia iria ser gravada uma cena em que os dois iriam até um bar pra beber. Coisa sim-ples, que a gente faz todo dia. Você fez semana passa-da com aquele boy lixo, eu queria estar fazendo agora. Mas quando se filma, qualquer coisa pode ficar compli-cadíssima, pois exige gravar de vários ângulos, ter con-tinuidade, e que nenhuma reunião de velhinhas esteja acontecendo no mesmo lugar – coisa que aconteceu de verdade no dia.

Depois filmar umas 4 vezes a mesma cena do casal chegando ao bar, agora era hora de gravar eles senta-dinhos numa mesa. Porém um problema: já era tarde e a atriz tinha que ir embora. “Nossa que estrelinha”

eu podia ter julgado, mas na verdade ela estava ali de brother da galera, sem receber nadinha pra trabalhar na produção. E tinha que ir pra aula, vejam que dedicada. Os próprios alunos iriam levar ela de carro depois que a cena acabasse.

Mas, sem tempo, sem atriz, exige-se um plano b. O que era pra ser uma cena mais demorada, com diálo-gos, quem sabe uma DR, viraram rápidos takes dos dois enchendo a cara. Mas sem diálogos, sem DR, sem nada, e com o menino que cuidava do som já sabendo que te-ria que chamar os atores pra dublar tudo depois.

E assim eles terminaram o trampo. Por ali pelo me-nos, já que pelas 20h iriam todos se reunir novamente (inclusive a atriz depois da aula) para filmarem mais ce-

nas, agora na escadaria da Borges. Não acompanhei essa gravação, mas desejei do fundo do meu co-

ração boa sorte pra todos.

CRÉDITOS INICIAIS

Quando eu fui pra Londres trazer umas muambas para o Brasil, eu aprovei-tei pra assistir a um festival de filmes inde-

pendentes quase do outro lado do mundo (sim eu sei que tem aqui também). Lá fui eu,

pesquisar no Google, dar attending no evento do Facebook e anotar o endereço do bar aonde

aconteceria.O Shortfilm Festival é um evento que rolava em toda

a última segunda-feira do mês. Era a 3ª edição e não ha-veria grandes prêmios em dinheiro ou coisas do tipo. Toda edição acontecia no Troubadour, um bar que fica-va embaixo de um café-pub-restaurante. Era um lugar que talvez a Smic não mantivesse aberto por aqui, mas onde a pint – um copão de meio litro de cerveja - custa-va umas 4 libras.

Era o meu segundo dia e deu um medo no coração pelo fato do bar ser um pouco fora do centro. Claro que eu me perdi e fui parar no outro lado, atravessando uma avenida que lembrava Cachoeirinha. Mas dei meia volta e consegui chegar no local na horinha de começar.

Pontulamente o criador e apresentador do festival Tom Whelehan já estava lá no palco dando as boas vin-das e explicando como ia funcionar a parada. Era um cara de uns 60 e poucos anos, de cabelos grisalhos, que em seu perfil no Vimeo (tipo um Youtube indie) se apre-senta como um ator profissional, escritor e produtor. Uma evolução da pessoa-veículo, porque ele criou seu próprio festival pra apresentar.

Seriam 12 filmes, ou melhor “shortfilms”. Todos com menos de 5 minutos e de cineastas novos e indepen-dentes, que o Tom achava pela internet ou então que mandavam o material pra ele. Essas eram as exigências pra participar. Todo mundo ainda recebia uma cédu-la pra votar em qual filme tinha gostado mais. O mais “gostado” seria o vencedor da noite. Enquanto isso todo mundo ganhava uma pipoquinha, afinal, estáva-mos no “cinema”.

Sabe cinema independente?

Page 37: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 72 Sextante 2013.1 73

O primeiro filme exibido no telão foi The Life Draw-ning, que mostrava pessoas desenhando uma silhueta de uma bailarina em uma tela, com uma trilha sonora de violinos. Enquanto eu formulava do que se tratava o filme, PUM, ele acaba. Tinha exatos 59 segundos. Real-mente esse negócio de Short Film funciona, pensei.

Os três filminhos que se seguiram foram A Cup Of Tea, que mostrava a preparação de um chá; Musafir, que contava toda a vida de um Indiano, e Basement, um cli-pe mucho surtado que misturava música eletrônica com uns efeitos de fotografia. Todos curtíssimos e com mui-to uso da trilha, praticamente sem diálogos. Nenhum deles parecia muito caro, tampouco muito barato Eram ideias simples, porém caprichadas. Spoiler: os outros 8 filmes também eram assim. (nossa, nem eu tô acredi-tando que escrevi esse paragrafo, chora Rubens Edwald Filho).

Após quatro filmes, um intervalo. E a regra era clara: aproveitem pra fazer networking, dizia o Tom.

Depois de uns 15 minutos de pausa pra incremen-tar seu mailing, a segunda rodada começou. John Fun Fare, era sobre um cara que enchia a cara numa noite. Algo que todos fazemos em algum dia da semana, disse o Tom, agora no modo comediante. Wax mostrava um cara lavando um carro esportivo, enquanto um menino africano morria dentro. Acho que era uma critica social ou algo do tipo.

Já tínhamos assistido metade dos filmes, e o sétimo Keloid, na verdade era um trailer do que era pra ser um filme baseado em um artigo cientifico sobre o que vai acontecer quando a raça humana acabar e só sobrarem as máquinas. Não entendi o porquê do trailer, talvez o

filme esteja participando de um projeto catarse. O pró-ximo, 030, vou confessar que não lembro. Mas acho que diz muito sobre a relevância de qualquer coisa, o fato de que alguém que estava lá justamente pra escrever sobre não lembrar do que se trata. Ou talvez diga muito sobre as capacidades da pessoa que estava lá pra escre-ver.

Mais um intervalo, mais networking. Voltamos já.

REVIRAVOLTA NA TRAMA: É DO BRAZIL ZIL

Nessa altura eu já estava na 2ª Pint, e um velhinho que estava do meu lado já veio puxando um assunto. E como todo bom velhinho em qualquer lugar do mundo, puxou o celular pra me mostrar alguma coisa. Mas ao invés de netinhos, eram de um show que ele tinha feito, ali mesmo no Troubadour. Era um cantor de uma banda de Jazz. Terminamos o papo e ele arrancou uma folha do caderninho com o endereço do seu Myspace.

A nova amizade, e a 2ª ceva em andamento já co-meçaram a me dar coragem para o grande desafio da noite: falar com o Tom. Não por mim, claro, eu pensava, mas pelo bem maior dessa reportagem. Enquanto en-saiava o que ia falar, começava a 3ª e última rodada de filminhos.

O nono curta era Pepperdine Method, que simulava uma experiência com ácido – só que com mais drama-ticidade e música Techno. Em seguida veio The Helium adventure, que mais parecia um clipe da Taylor Swift, inclusive a trilha. Nele um cara hipster de calça colada e

coturninho seguia uma “caça ao tesouro” de balões de gás hélio. No final ele encontrava uma menina que co-locava uma aliança em seu dedo. Ownnn o amor é lindo né (mentira, todos que leram meu texto na 3x4 sabem que não é, vamos nos ater à mitologia de textos).

O penúltimo se chamava Creep, e eu quase chorei quando Tom avisou que aquele veio diretamente do Brasil. Inclusive, quando ele falou isso teve uma galera fez uma ola, sérião. O vídeo era um mix de outros tra-balhos do publicitário paulista Fernando Sanches, de comerciais a clipes da banda Mombojó que ele dirigiu. Tudo com a trilha de Creep do Radiohead, mas com uma versão diferente, menos adolescente loser dos anos 90 e mais animada.

Enfim, a saideira do Short Film, foi Puggums, uma animação com um menino órfão como protagonista. Apesar da vibe Maria do Bairro, ele tinha uma mensa-gem de superação, daquelas “vai dar tudo certo irmão”, já que no final o órfão encontra um lugar pra ficar e tudo fica bem.

Enfim, mais um intervalo antes do resultado, e minha hora tinha chegado: ia falar com o Tom. Não dava pra fugir mais. Já estava bem mais corajoso (2ª pint finalizada) e agora até tinha um assunto, né, “hi i’m from Bra-zil”. Esperei uma brecha do networking (pessoas-veiculo-apresentadoras tam-bém tem um mailing a cuidar) e me apresentei. Ele achou o máximo que eu era do Brazil e me apresentou os outros brasileiros que estavam por lá, incluindo o fotógrafo do evento que me cedeu a foto da matéria – também sei fazer networking, né galera.

Conversei rápido com ele e pergun-tei qual era afinal a vantagem em ganhar o Shortfilm. Ele respondeu: “Primeiramen-te, respeito dos outros, né”, melhor resposta, grande comediante esse Tom, me liga, vamos sair no Brasil.

Ele já ia voltar pro palco e eu sentei com meus, ago-ra, novos amigos, tínhamos muito assunto. Quem diria que eu, pessoa loser que se perdeu, passei a popular do Bar com vários amigos. né.

CLIMAX FINAL, RESOLUÇÃO DO CONFLITO DOS PERSONAGENS

A “diretora” do The Helium Adventure estaria lá para uma sessão de perguntas e respostas. Mal devia ter uns 20 anos, a guriazinha contou que gastou umas 50 libras (uns 180 reais) na produção do filme, sendo que comprou os direitos de utilização da música por 5 libras em um site especifico pra isso, e o resto gastou com os balões. E claro, obrigou os amigos a participar do res-to. Então conclui que cinema independente é isso: um monte de gente trabalhando sem ganhar dinheiro al-gum hahaha.

Finalmente chegou o momento de conhecer o gran-de vencedor da 3ª edição do Short Film Night, eleito pela ~~audiência. E rufem os tambores: Helium Adven-ture. O Tom apresentou naquele clima de “eu já sabia”, afinal o filme era muito bonitinho mesmo. A menina voltou ao palco, recebeu o troféu e agradeceu.

Como em uma comédia romântica ruim, assistimos à vitória do amor. Em um filme independente de verdade aquilo não aconteceria, pensei. E o Brasil, assim como em todas as edições do Oscar, acabou não levando o ShortFilm Night também. Talvez na próxima última se-gunda-feira do mês.

Sou uma mãe pra vocês e reuni alguns do curtas que consegui

achar no vimeo vimeo.com/album/2441623

Foto de felipe gonçalves

Page 38: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 74 Sextante 2013.1 75

O jeito gaúcho

independente de ser

Por Júlia Endress

Há mais de um século, Blau Nunes surgia na lite-ratura gaúcha. O velho peão e guerreiro, protagonista dos Contos Gauchescos de Simões Lopes Neto, é ca-racterizado como portador de um conjunto de valores que expressa a imagem do gaúcho criada pela tradição coletiva: grandeza, hospitalidade, amizade, confiança, audácia e perspicácia. Nas narrativas em que o herói é o gaúcho e o anti-herói é o forasteiro, um período crucial da história do Rio Grande do Sul é apresentado. O fa-moso personagem contador de causos é assim descrito pelo autor: “Genuíno tipo – o crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeri-dade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dota-do de uma memória de rara nitidez brilhando através da imaginosa e encantadora loquacidade servida e florea-da pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco”.

Já em um novo milênio, é de se esperar que a figura do gaúcho tenha mudado. Hoje, a tradição gaúcha se-

gue viva, mas cada vez mais as pessoas buscam adaptá-la a seu próprio jeito, misturando-a a outros estilos, rit-mos, cores e sabores. Nossas principais características são as mesmas, mas estão sendo expressadas de outra forma.

“Me agrada ser dessa terra, cantar as coisas do pago”

É fim de maio, uma noite fria. No palco do Dhomba, em Porto Alegre, Pirisca Grecco se prepara para mais uma edição do Clube da Esquila. No projeto, a Compar-sa Elétrica – banda de Pirisca (guitarra e vocal), Duca Duarte (baixo), Paulinho Goulart (gaita), Rafael Bisogno (bateria) e Texo Cabral (flauta) – se reúne com artistas de diversos estilos, como Tonho Crocco, Humberto Ges-singer, Sergio Rojas e os grupos Tambo do Bando e Erva

A Comparsa Elétrica em mais um Clube da Esquila. Foto de júlia Endress.

Page 39: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 76 Sextante 2013.1 77

Buena. Dessa vez, o convidado é o Clube do Samba, de Santa Maria. Amigos, fãs e curiosos já circulam pelo bar.

Pouco depois de passar o som, Pirisca me explica que este projeto foi construído para celebrar a música e servir de ponto de encontro entre costumes e ritmos. “O espírito do Clube da Esquila é trazer gente nova para os shows, abraçar outros sons e fazer com que o cara pilchado conviva com o cara tatuado porque a nossa cultura não precisa ser lugar de apenas uma tribo. Tem que ser um lugar para curtir, ser feliz, ver os amigos – e amigos a gente não escolhe pelas roupas que usam, e sim pelo que são”, declara. De acordo com o músico, o nome surgiu de um trocadilho com o Clube da Esquina, grande movimento musical que aconteceu em Minas Gerais, na década de 60. “O Clube da Esquina foi genial e deixou marcas profundas em muitos ouvidos e cora-ções”, comenta. Do movimento mineiro ficaram nomes como Milton Nascimento, Lô Borges e o 14 Bis. Já o Clube da Esquila, da Comparsa Elétrica, ainda é um mo-

vimento em construção, cuja principal marca é a apro-ximação. “O lance é juntar o cara tatuado com o outro lado, todos os estilos, e isso é um sonho. A gente sabe que o nosso movimento é de uma época e será estuda-do daqui a uns anos. Isso aqui vai servir para a história do nosso folclore – eu acredito muito nisso”, afirma.

Assim como nas narrativas de Blau Nunes, Pirisca é um gaúcho herói. O cantor, músico e compositor leva o Rio Grande em sua essência e conta histórias por meio de sua música. No entanto, Pirisca vive a tradição liber-to dos padrões estabelecidos e do jeito gaúcho descrito nos contos. “Eu acho que o artista tem a obrigação de ser útil, de ser transformador. Então, acho que está na hora de a gente ouvir o que os outros estão fazendo e aproximar tudo. O nosso Estado e a nossa cultura são muito maiores do que um só estilo”, considera.

Pirisca canta um jeito gaúcho generoso de ser, que está no violão, em cada fio de bigode, no aperto de mão, no amargo do mate, no afago do catri, na poesia e

na canção. Esse jeito acompanha a his-

tória do artista. Ele nasceu em Uruguaiana, em 1971, no final de semana que a cidade recebia a primeira edi-

ção da Califórnia da Canção, um

dos principais festi-vais de música do Rio

Grande do Sul. A infância envolvida pela nova fase da

cultura gaúcha motivou as escolhas de Pirisca. “Eu ve-nho de uma família extremamente ligada à música e a minha infância foi embalada pelos LPs da Califórnia. Eu cresci vendo ídolos como César Passarinho, Leopoldo Rassier e Victor Hugo cantarem na minha cidade, no palco de um festival tão importante. Isso forjou o meu gosto musical, o meu desejo de fazer música e de, um dia, também subir naquele palco”, conta. De quando era criança, ele também recorda, saudoso, da gaita do avô e das invernadas mirins do CTG Sinuelo do Pago e do FEGART (que hoje é ENART – Encontro de Arte e Tradição). “A gente crescia nesse universo, e sempre teve uma comunidade, uma agremiação a que repre-sentar”, pontua.

Na adolescência, Pirisca vivenciou outras experiên-cias musicais. No começo da década de 90, estudando Arquitetura e morando em São Leopoldo, ele cantava nos karaokês da cidade. Certo dia, a convite do amigo Beleza, começou a se apresentar em bares tocando cover de Legião Urbana, Barão Vermelho, Lulu Santos, Djavan, Chico Buarque, Gilberto Gil, entre outros. O pri-meiro show remunerado ocorreu no dia 17 de dezembro de 1992, data que marca o início da carreira profissional. A partir de então, a vontade de ser músico falou mais alto. Ele abandonou a faculdade e seguiu seu coração.

Durante cerca de 10 anos Pirisca seguiu fazendo shows de covers de outros artistas. Foi no início dos anos dois mil que surgiu a oportunidade de participar de festivais. “Eu fiquei tentando entrar nos festivais por bastante tempo. Enquanto não dava, eu seguia me aperfeiçoando, até que um dia deu certo”, diz. Em uma década, o músico já conquistou diversos prêmios. Entre eles, foi vencedor da Coxilha Nativista, do Musicanto, da Moenda da Canção e, por três vezes, da Califórnia da Canção – aquele que ele sonhava em subir no palco.

Influenciado pelos festivais, o artista os considera extremamente importantes para a descoberta de novos talentos e para que as futuras gerações cresçam com re-ferências da sua terra. “A gente crescia com a bomba-cha e a gaita. Hoje a criançada só ouve outros sons, com outros sotaques e usando outras indumentárias. Então, a gente vai perdendo a batalha, vai tomando uma gole-ada cultural, e isso nos deixa tristes”, diz. Segundo artis-ta, é preciso que a juventude tenha referência das coisas do estado, e não somente daquilo que vem de fora.

Mesmo preocupado com os laços entre os jovens e a tradição gaúcha, Pirisca não se fecha a outras cul-turas. Pelo contrário, encontra nelas uma forma de di-vulgar a sua. “Eu escuto e respeito tudo, mas escolho aquilo que ficará na minha vida. Eu tenho uma raiz, um cordão umbilical, algo que mudou meu gosto, e isso tá sempre comigo. Eu também tenho filhos pequenos que precisam dessa mesma referência. Eles precisam saber nosso hino, conhecer quem a gente é. Assim, depois, já adultos, eles vão poder fazer suas escolhas sabendo que o gaúcho tem uma identidade – mesmo que estejamos ficando bastante sem identidade”, declara.

Pirisca ressalta que também é importante os fes-tivais não se fecharem a pequenos grupos e a um de-terminado tipo de música. “Atualmente, a música de festival é calma, muito introspectiva, sem lugar para bateria ou improvisação. Até o tipo de cantar é diferen-te. E acho que querem fazer uma música campeã nesse formato, mas a gente perde muito com isso”, lamenta. Conforme o artista, a música tem que ser espontânea, pois, ao mostrar sua verdade, ela se mostra por inteira.

“ADELANTE, COMPARSA!”

Na mistura de estilos que embalam sua carreira, Pi-risca revela ser fã de Djavan, figura que considera um gênio da composição e com incrível suavidade na voz. Ele diz que suas influências mudam a cada dia. “Eu sou muito curioso, escuto muita música, e quando uma música me toca não tem isso de escolher por gênero ou estilo, simplesmente é música”, garante. Outro ído-lo de Pirisca é o guitarrista argentino Luis Salinas. “Eu gosto muito do Salinas e dessa coisa latina que ele tem, esse jeito de fazer um som moderno, mas com pé no folclore”, fala. Segundo ele, Salinas é uma das grandes influências da Comparsa Elétrica, que busca justamen-te fazer música autenticamente gaúcha, mas sempre experimentando novas possibilidades. “A gente faz um som gaúcho, somos uma banda regional, mas namora-mos o rock, o jazz e as valsas francesas. A gente está sempre flertando com outros rit- mos do mundo”, descreve. O grande desafio da ban-da é não seguir um repertório sempre igual. “A gente vai navegando pelo público, vendo o que ele nos pede e vai tentando conquistá-lo – e quando a gente consegue é tri bom! A gen-te faz tudo sem fórmula e com mui-to coração”, descreve.

Pirisca representa a música gaúcha e busca aproximá-la de outros estilos para manter a tradição. Foto de Pedro Tesch.

“Surgiu a necessidade de montar um grupo para tocar

junto, com uma mesma filosofia de trabalho e o mesmo

comportamento”

música autenticamente gaúcha, mas sempre

experimentando novas possibilidades

Page 40: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 78 Sextante 2013.1 79

A Comparsa Elétrica foi formada na medida em que o êxito nos festivais foi sendo alcançado e, além de con-correrem aos prêmios que destacam as melhores can-ções apresentadas nesses eventos, os músicos começa-ram a ser chamados para fazer shows. “Surgiu a neces-sidade de montar um grupo para tocar junto, com uma mesma filosofia de trabalho e o mesmo comportamen-to”, explica. O nome da banda é o título do quinto álbum de Pirisca. Antes dele, O que sou e o que pareço, Compas-so Taipero, Muchas Gracias e Bem de Bem ajudam a con-

solidar o nome do músico. O último CD, Clube da Esquila, já se encaixa em outra proposta do artista: o sonho de ficar conhecido como o vocalista da Comparsa Elétrica.

A aproximação com artistas de outros estilos abre novas portas e amplia o público da banda. Segundo Pi-risca, a cada edição do Clube da Esquila, há um público diferente. “Eu acho que a gente conta muito com a boa

vontade das pessoas que ainda não conhecem a música gaúcha e vem aqui conhecê-la. Então, isso tudo é con-vite para que todo mundo venha fazer um test drive no ouvido, ver se o som da banda lhe cai bem”, afirma.

O talento de Pirisca também pode ser conferido em filmes. Ele assina a trilha sonora do filme Senhores da Guerra, de Tabajara Ruas. “A gente já tinha trabalhado para o autor em outras ocasiões, mas, dessa vez, eu pedi para fazer a trilha de dentro do set e pude acompa-nhar desde a criação dos personagens até a gravação.

Serão cinco músicas cantadas durante o filme, que são dos personagens principais. As letras são do poeta Luiz Coronel e as canções são minhas”, esclarece. A integra-ção também proporcionou que Pirisca e Duca Duarte atuassem no longa. A parceria com Tabajara Ruas e Luiz Coronel são comemoradas pelo artista, que vê novas possibilidades de expandir a música gaúcha.

No segundo semestre deste ano, Pirisca também lança um disco chamado Brilho dos Olhos, com músi-cas de Apparicio Silva Rillo. “O disco foi um pedido da família dele e a prefeitura de São Borja financiou. Esse trabalho é uma grande honra para mim”, diz. O músico também considera o CD especial por marcar uma nova etapa em sua descoberta da forma como gosta de can-tar. “Eu passei 10 anos cantando música dos outros, ten-tando cantar parecido com os outros. Por isso, eu acho que continuo descobrindo como minha voz funciona melhor, qual o melhor tom. Nesse CD do Rillo eu estou cantando bem diferente, vejo que venho evoluindo e me encontrando como cantor”, vibra.

“Elétrica milonga na minha guitarra, firmando a tradição e o que ela me fala”

O tradicionalismo gaúcho é um movimento cívi-co-cultural que valoriza e preserva as tradições gauchescas do Estado. Foi criado no final do século XIX - antes de Blau Nunes tornar-se personagem símbolo do gaúcho -, e se-gue regulamentos. Independente de re-gras, Pirisca vê tradicionalismo como movimento enfraquecido. Ele consi-dera a palavra muito forte e diz que não é de brigar por tradição. “Eu acho que tem que haver equilíbrio nisso tudo. O meu parque de diversões na infância era o CTG Sinuelo do Pago, meus aniversários de criança foram ali, meu primeiro namoro também, era um centro de convivência. Hoje não é mais as-sim. Muitos CTGs estão abandonados, e isso é lamentável”, comenta.

A tradição fechada, que impõe limites e regras, pode estar mesmo perdendo espaço. Em seu dia a dia, as pessoas vão encontrando formas de segui-la de acor-do com seu próprio jeito gaúcho de ser. “Eu acho que a gente tem que estar aberto, tem que negociar e evoluir, se não também cria antipatia”, pondera Pirisca. Genero-so como é, o músico vê o gaúcho como um povo hospi-taleiro, que está sempre esperando os amigos (seja com o chimarrão ou com o churrasco), com um sorriso largo e um abraço apertado. “A tradição que a gente tem que cultivar é essa: a da hospitalidade, do fio de bigode, do ser amoroso que o gaúcho é. A tradição não pode ser fixada na cor ou no tamanho de um lenço porque maior que o tamanho de um lenço é um tamanho de um abra-ço”, considera.

Responsável por aproximar culturas e estilos, Pirisca diz que não é pela pilcha ou pelo sotaque se que apre-cia alguém. “A arte é infinita, por isso a gente tem que se abrir para a espontaneidade, para que as pessoas experimentem, caso contrário a gente prejudica o que é cultura gaúcha de verdade”, acredita. Com esse pen-samento, a Comparsa Elétrica busca mostrar a correta tradição gaúcha a outros públicos e, quem sabe, cativá-

los. “Se a gente conseguir fazer com que a gurizada veja a gente e nos tenha como referência também, a gente vai conseguir expandir a nossa cultura e vai mostrar que a arte está em si e que cada um pode ser como quiser. Isso vai ser muito mais bonito para o Rio Grande do Sul”, completa Pirisca.

Do movimento tradicionalista e da caracterização do gaúcho de Simões Lopes Neto ficam o amor ao Rio Grande do Sul e as boas qualidades do seu povo, visto que mais importante que regras e definições de como ser, é fazer com que a cultura gaúcha permaneça viva. Atualmente, o gaúcho já não é, nem precisa ser, tão fe-chado e com tantas normas para vivenciar os aspectos da sua cultura. A bombacha, a alpargata e a boina já se combinam com outras indumentárias. A música típica já se misturou com outros estilos. Em um mesmo local, há espaço para os gaúchos de pilcha e para os gaúchos com outras pilchas.

Está na hora de a Comparsa Elétrica subir ao palco: o show vai começar. Na plateia, há

os de bombacha e os de chapéu branco. A noite aproxima a

música gaúcha e o samba, e o público, que canta e

dança, gosta do que vê. Que as guitarras e os cavaquinhos si-gam firmando a nos-sa tradição – e que ela siga servindo de modelo a toda terra.

Recentemente, Pirisca participou de um show de Rodrigo Tavares, ex-integrante da Fresno (Credito Pedro Tesch)

o gaúcho já não é, nem precisa ser, tão fechado e com tantas

normas para vivenciar os aspectos da sua cultura

Page 41: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 80 Sextante 2013.1 81

João era um meninoQue não era meninoPorque ninguém O havia dito para serEra cachorro e pássaroEra pai e mãeAvô e avóAluno e professorE princesa e sapoÀs vezes, João era ratoJoão era o que sentiaE sentia diferenteA cada dia

Por Iarema Soares

Futebol de Várzea

Longe da fama e ao alcance de todos

Page 42: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 82 Sextante 2013.1 83

Mesmo sem cadeiras marcadas para torcedores ou

salários milionários para técnicos ou jogadores, o futebol de várzea

ainda arrebanha público e praticantes

Foto de Iarema Soares

As ruas asfaltadas, com casas de famílias de classe média, gradativamente dão lu-gar a vias estreitas de chão batido e algumas sem acostamento. O Presídio Central de Porto Alegre, um boteco e residências simples desenham o en-torno do campo, esburacado e com esparsos tufos de capim. Nesse pedaço de terra cercado por gra-des, que muitos me confessaram ser um dos me-lhores gramados da várzea porto-alegrense, trei-nam os atletas do Esporte Clube 12 Horas, fundado

em 2001, no bairro Partenon, mais especificamente no Campo da Tuca. O time tem equipes nas mais diver-sas categorias, desde o infantil até o veterano, e ganhou, ao longo dos anos, competições regionais, municipais e estaduais de várzea. O atual técnico e coordenador das

categorias de base do clube afirma: “Tenho nome de craque”.

Rivelino Gonçalves, popularmente conhecido como Lito, tem 44 anos e se

dedica, desde os 10, ao futebol. Começou como varzeano e conquistou uma vaga como la-

teral direito no Sport Club Internacional aos 19 anos. A rotina de atleta profissional sobrecarregou o corpo e, principalmente, o joelho, que teve o me-nisco rompido. Após a lesão, ele vestiu a camisa do Cruzeiro do Morro Santana por mais dois anos, na esperança de novamente subir aos times princi-pais. A oportunidade de voltar aos grandes clubes não apareceu, ele desistiu e optou por passar o que

havia aprendido sobre futebol ao longo dos anos a outras pessoas.

“Comecei minha carreira como técnico de uma equipe feminina da Restinga, depois fui treinar o Pinheiros, na zona leste de Porto Alegre. Atuei também na região metropolitana, em Cachoei-rinha e em Alvorada, mas sempre com equipes de base, dos cinco aos 18 anos”, afirma Lito, que garante ter trabalhado em mais de 20 times dife-rentes. Nesse meio tempo, um tio, que trabalhava como roupeiro do Clube Atlético Mineiro, conse-guiu arranjar um teste para ele se tornar treinador do time feminino do clube. A inflexibilidade do pa-trão do local onde trabalhava impediu que a via-

gem se concretizasse e a chance de se tornar técni-co profissional apenas tangenciou a realidade. Lito sempre conciliou o futebol com alguma outra ati-vidade que pudesse bancar a própria subsistência e hoje não é diferente. Além de ministrar os trei-nos, a partir das 18h, trabalha como oficineiro de artes plásticas em uma creche e vende pequenos quadros pintados em azulejos de parede.

Antes de entrar para o 12 horas, ele tinha seu próprio time, o Coríntias. “Lá, eu lidava sozinho com 120 crianças. Quando tínhamos jogo fora do Campo da Tuca, a comunidade sempre me ajuda-va disponibilizando carros para levar os meninos e também com dinheiro para alimentação ou con-

Rivelino Gonçalves, Lito, coordenador das categorias de base e treinador do 12 Horas. Foto de Iarema Soares.

Page 43: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 84 Sextante 2013.1 85

dução, quando não havia van para levá-los até o local do jogo”. Em abril deste ano, o time do Lito se desfez e passou a integrar o 12 Horas, que até o momento, só tinha equipe adulta. Ele afirma que com a fusão dos dois clubes “tudo virou uma gran-de família” e que agora há um suporte estrutural maior, como coletes, bolas e um micro-ônibus. Es-sas aquisições foram possíveis por meio da quantia repassada pela Secretaria Municipal de Esporte e Lazer e também pelos recursos angariados com os bailes funk que são promovidos pelos administra-dores do time. Apesar disso, ele ressalta: “Eu faço isso aqui mais por amor do que por qualquer outro motivo. A verdadeira gratificação que eu recebo é ver essa gurizada jogar e participar das compe-tições. Na várzea, só permanece aquele que tem amor ao futebol e são poucos os que persistem”.

O mesmo tipo de pensamento tem Enilson Narvaz, de 57 anos, que assim como boa parte dos técnicos, teve sua experiência nos gramados. Narvaz fez parte das categorias de base do Grê-mio Football Portoalegrense por seis anos. Em um dos jogos dos quais participou, quebrou a perna e abandonou a atuação dentro das quatro linhas para coordenar o time à beira delas. Anos depois, formou-se em Educação Física e junto com outro amigo resolveu criar uma escolinha de futebol na Lomba do Pinheiro, que mais tarde, quando se transformou em time, passou a se chamar Asso-ciação Esporte Clube 11 Garotos. O trabalho de-senvolvido junto às 87 crianças é voluntário, mas não por isso os treinamentos não são levados a sério. Os fundadores, que paralelo a essa atividade têm seus respectivos empregos, revezam entre si

os dias em que comparecem ao centro de cultura da Lomba do Pinheiro, onde ocorrem os treinos, já que o 11 Garotos não tem uma sede própria. “A gente procura atender meninos e meninas de 8 a 17 anos, que por algum motivo, estão à margem da sociedade. Propomos a realização de atividades, como o futebol e recreação. Nós queremos tirar esses guris e gurias das ruas”.

A torcida

Não são somente os clubes que estão na di-visão de elite do futebol brasileiro ou os grandes clássicos mundiais, como Barcelona e Real Madri, que movimentam aglomerados. Qualquer pessoa que se identifique como torcedor de um time fica ansioso, vai até o estádio ou campinho do bairro e comemora quando um gol, de letra ou de canela, é marcado. A capacidade de arrastar pessoas, que esse esporte traz arraigado, foi presenciada em uma manhã de sábado quando ocorria um jogo entre o 12 Horas e o 11 Garotos. Moradores da re-dondeza que passavam despretensiosamente em frente ao local do jogo, paravam, olhavam um pou-co e, alguns minutos depois, arrumavam uma po-sição mais confortável para assistir ao restante da partida. Cerca de 60 pessoas estavam de pé vendo o jogo, já que não havia arquibancada. Lito olha ao redor e fala enquanto rabisca em um papel. “Hoje não é final ainda, por isso, tem pou-ca gente. Em dia de decisão, vem muito mais e a torcida empurra o time, pega jun-to mesmo, tu precisa ver”.

Malabarismos

Em ruas que concen-tram um razoável aglome-rado de crianças, não é raro vê-las chutando uma bola (ob-jeto que muitas vezes é substitu-ído por uma latinha de refrigerante amassada) e encontrar nas extremidades dessa mesma rua chinelos fazendo as vezes de tra-ve. Para jogar futebol é preciso muito pouco; para formar e manter um time são necessários recursos. Essa é a maior dificuldade encontrada por quem faz várzea. “Nós tiramos do próprio bolso, faze-mos malabarismo para poder comprar o uniforme e oferecer lanche para as crianças”. Comumente, essas equipes estão localizadas em comunidades

carentes, por isso, outras problemáticas também são recorrentes. “Os menores que frequentam a associação são muito carentes e, geralmente, vêm de uma família desestruturada com pais presidiá-rios ou dependentes químicos. Aqui eles têm aces-so ao lazer e nós, os treinadores, tentamos desviá-los desses caminhos alternativos e arriscados de ganhar a vida”, afirma Enilson Narvaz, fundador, técnico e, como ele mesmo diz, faz tudo da Asso-ciação Esporte Clube 11 Garotos.

Façanhas

Ao longo dos mais de 30 anos de dedicação ao futebol, Lito Gonçalves realizou algumas proezas. Projetou meninos da várzea para a Segunda Di-visão do Campeonato Gaúcho e, recentemente, fez com que outros 10 fossem jogar na Itália e na Rússia. “Quero vê-los bem, quero que eles deem certo no futebol”, tanto que foi fechado um acor-do com o ex-jogador (Jesus) Christian, que atuou na dupla Grenal. “Conversamos para ele vir aqui, acompanhar os jogos, vai que um deles emplaca. Aí, já viu, né. Mais uma façanha do Lito” diz entre sorrisos o coordenador das categorias de base do Esporte Clube 12 Horas. “Eu procuro lançar novos jogadores, mas não é isso o que motiva o meu tra-

balho, afinal, muitos dos que fizeram parte das equipes que eu treinei não segui-

ram carreira, mas estão aí, são pais de família e trabalhadores. Eu

só quero formar cidadãos de bem”.

Em meio a altos e baixos, técnicos, jogadores e torce-dores, movidos pelo amor ao esporte bretão, enfren-tam os campos esburacados

de um futebol de pouca fama. A várzea insiste em sobreviver

às inúmeras dificuldades impos-tas diariamente em busca de um

pouco de diversão e de um futuro mais esperançoso aos seus praticantes.

Enilson Narvaz, co-fundador e treinador do 11 Garotos. Foto de Iarema Soares.

A várzea insiste em sobreviver às inúmeras dificuldades impostas

diariamente em busca de um pouco de diversão e de um futuro

mais esperançoso aos seus praticantes.

Page 44: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 86 Sextante 2013.1 87

Um milhão de re-ais na poupança, um

carro zero quilôme-tro na garagem e uma mansão. Ou, simplesmente, conseguir sus-tentar uma vida confortável e, de acordo com suas prioridades, pagar as contas

e poder usar o restante do salário

com viagens, com-pras ou lazer. Muitos

consideram essas as face-tas de um indivíduo financei-

ramente independente. Porém, não é exatamente, e só isso. Entenderemos o termo aqui, segundo definição do professor e especialista em ad-ministração da Faculdade São Lucas, Clébio Billiany de Matos, como a capacidade de viver um padrão de vida desejado sem depender de dinheiro gerado por ativida-de que não lhe dê extremo prazer e proporcione tempo ocioso na medida esperada. Dito resumidamente, ser fi-nanceiramente independente é também viver melhor e não ter estresses cotidianos.

Antigamente, nas sociedades mais tradicionais, com pouca ou nenhuma incidência de mobilidade social e econômica, era comum que os filhos seguissem a profis-são dos pais. Se o avô e o pai haviam sido médicos, ele cursaria medicina; se haviam sido advogados, o filho en-tão cursaria direito, por exemplo. Hoje em dia, as pesso-as são muito mais autônomas, geralmente escolhendo o curso da universidade por aquilo que mais dá prazer. A escolha norteará anos de trabalho, nada mais correto do que optar pelo que realmente gostaria de passar a vida fazendo. Mas não são todas as profissões que podem proporcionar a sonhada independência financeira.

Segundo o artigo “Como conquistar a independência financeira”, veiculada no blog da Faculdade São Lucas, para que uma pessoa de fato a alcance é necessário mais do que viver de seus próprios rendimentos. É fundamen-tal que esse indivíduo tenha a liberdade de trabalhar ex-clusivamente com o que gosta e, ainda, que seu salário seja maior que seu trabalho. Talvez nenhuma profissão nos remeta mais a esse conceito que a de jogadores de futebol.

Salários astronômicos, passando de R$ 500, R$ 600 mil por mês em times brasileiros, até milhões pagos no exterior. Rotina de treinos e jogos regadas a festas e vida glamorosa. Mas não são todos os que um dia sonharam em viver dos rendimentos da bola que conquistam tal vida de rei. Dentre equipes pequenas, e até clubes gran-des, são incontáveis os números daqueles que ainda esperam pela grande chance de se destacar no meio e deslanchar como novos Neymar.

Em busca de um sonho. Em busca da sonhada independência financeira

Os ponteiros do relógio marcam 5h45, o despertador toca. Guto acorda e vai para o aeroporto. Desde muito cedo esse se tornou um episódio rotineiro na vida do volante do Resende, que, decidido a correr atrás de um sonho, deixou para trás o conforto da casa dos pais, a cidade onde cresceu e a companhia dos amigos. Agora, sempre que há uma parada no calendário de jogos, Guto deixa o Rio de Janeiro para voar para a casa.

Ainda era criança quando se despediu dos pais pela primeira vez para morar longe e ir atrás daquilo que sem-pre quis: ser jogador de futebol. O sonho de ter seu tra-balho reconhecido e defender um grande clube perpas-sa o desejo de ter uma vida confortável, financeiramen-te falando, fazendo aquilo que mais gosta. Contrariando as convenções, Guto é focado e não deixa dispersões atrapalharem a rotina no clube. Há muito tempo tem cuidado da alimentação e mantido preparo físico para as competições, mesmo nas férias ou nas folgas. Ainda assim, o salário não chega aos seis dígitos almejados.

Nascido em 5 de fevereiro de 1992, Guto começou sua caminhada na difícil carreira de jogador de futebol na Escolinha do Guarani, em Venâncio Aires, com ape-nas sete anos. Foi em 2002, quando participava da Copa Internacional de Flores da Cunha, no município homô-nimo, na região nordeste do estado do Rio Grande do Sul, que foi descoberto por um olheiro do Sport Club Internacional. O time pelo qual atuava, o Rui Barbosa, ganhou a grande final em cima da equipe colorada, o que lhe rendeu o convite para iniciar a carreira em um dos maiores clubes do sul do país. Por dois anos, per-correu uma distância de aproximadamente 130 km da cidade natal até a capital do estado, onde treinava toda segunda, quarta e sexta-feira. Aos treze anos, quando os treinos passaram a ser diários, resolveu que era hora de se mudar para mais perto do sonho. Com mais três meninos da base e auxiliados pela mãe de um deles, alu-garam um apartamento em Porto Alegre. Guto perma-neceu no Internacional até 2007.

Devido à proibição de assinatura de contratos com garotos menores de 16 anos, Guto recebia, nos primei-ros anos da carreira, o equivalente ao que gastava com as passagens de ida e volta para casa. Surgida a oportuni-dade de voltar para mais perto da cidade natal no ano de 2008, o volante aceitou a proposta do Estrela Futebol Clu-be, onde permaneceu durante uma temporada. No ano seguinte, 2009, surgiu o interesse do Cerâmica Atlético Clube, de Gravataí. Guto novamente deixava a proximida-de do lar para se matricular na quarta escola em sete anos e ir morar no alojamento do clube. Foi nesse período ain-da, que chamou a atenção de empresários. Assessorado primeiramente por um carioca, logo depois de chegar ao Cerâmica, uma nova dupla de empreendedores no ramo da bola assinou contrato com o atleta e o auxiliou, e con-tinua auxiliando, nas transações posteriores.

Mas não são todos os que um dia sonharam em viver

dos rendimentos da bola que conquistam tal vida de rei.

de finanças na habilidade do futebol

A independência

Por Fernanda Fassina

Page 45: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 88 Sextante 2013.1 89

Sua estréia como jogador profissional aconteceu no time da região metropolitana na metade do ano de 2010. Despontando como uma das promessas da base, junto com a equipe formada em 2011, Guto conquistou seu primeiro título profissional, Campeão da Segundona Gaúcha. Mais uma vez, chamou a atenção de um gran-de clube. O Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense tentou o empréstimo do jogador, que não foi liberado pelo time de Gravataí. Permanecendo até o fim do contrato, em agosto de 2012 assinou com o tricolor de Porto Alegre. No time sub-19 do Grêmio, Guto foi campeão da Copa FGF, promovida pela Federação Gaúcha de Futebol.

No início desse ano, deixou o Rio Grande do Sul para defender o alvinegro Resende, do Rio de Janeiro, no Campeonato Carioca. “Lá as chances de aparecer e ser contratado por um clube maior aumentam. No Rio, são quatro grandes clubes e os menores jogam Campeonato Brasileiro série B, C ou D; enquanto no sul são só dois grandes clubes, e os menores dificilmente participam de alguma competição no segundo semestre. Geralmente, depois da disputa do Gauchão, os jogadores desses ti-mes são emprestados”, explica Guto. A visibilidade do Resende cresceu com o bom aproveitamento do time no Carioca desse ano, o que favorece os jogadores da equipe. Na Copa do Brasil, Guto foi o responsável por garantir o jogo de volta contra o Cruzeiro Esporte Clube. No jogo disputado em Volta Redonda, com mando de campo do time carioca, Guto entrou em campo aos 15 minutos do segundo tempo quando o placar de 2 a 0 para a raposa mineira ia eliminando o Resende. Aos 30 minutos, um chute de fora da área, desviado no zagueiro Léo, enganou o goleiro Fábio e manteve o alvinegro vivo na competição.

Agora, o atleta se prepara para a próxima disputa e planeja o futuro: “Quero mostrar o meu futebol, que-ro que me vejam e que as oportunidades apareçam. O

projeto é ganhar um bom salário, guardar as reservas e continuar jogando até os 30, 35 anos. Depois é apo-sentadoria e administrar o que foi conquistado. Não sei fazer outra coisa. Minha vida é o futebol. Eu adoro o que faço. Foi isso que escolhi pra mim, sei como é difícil, mas eu vou atrás, é o que quero”.

Acostumados com as notícias de transações milio-nárias, como foi a do atacante Neymar pelo Barcelona, por exemplo, não nos damos conta do quão difícil é ser independente financeiramente até na profissão que me-nos exige conhecimento teórico e mais preza pela téc-nica e habilidade desenvolvidas. Exatos 158 milhões de reais foi o que o time catalão desembolsou por Neymar, nascido em 5 de fevereiro de 1992, assim como Guto. A festa de apresentação do atacante brasileiro levou 55 mil pessoas ao estádio para ver seus primeiros toques na bola estrangeira. O número superou recordes de gran-des craques europeus.

A data de nascimento é de craque, a fome pela bola, também. Guto espera acertar com algum time estran-geiro. Como já aconteceram propostas, o foco do joga-dor é trabalhar com empenho para que as recompensas cheguem. Segundo diversas definições encontradas em livros e na internet, a receita para se tornar indepen-dente financeiramente inclui principalmente uma meta e a demarcação de objetivos a serem alcançados. E isso o atleta demonstra ter.

Foto do Arquivo Pessoal por Mirela Putrich

A receita para se tornar independente financeiramente inclui principalmente uma meta e a demarcação de objetivos a

serem alcançados. E isso o atleta demonstra ter.

Não faz sentidoO sentido

que o polícia faz

Page 46: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 90 Sextante 2013.1 91

Quando tudo se

a dorresumea colher Por

Rafaela Pechansky

Quando entrei na vila Mario Quintana eu já sabia, mais ou menos, o que me esperava. Tinha marcado o encontro com a Jenifer há uns dias e tinha noção de que não havia muito o que perguntar. Eu não havia prepa-rado uma pauta: acontece que Jenifer Dutra era a pau-ta. O meu trabalho era ouvir a história da moça bonita, jovem, de pele morena e de feições miúdas, que havia sido vítima de violência doméstica. Durante anos, ela apanhou, sofreu torturas físicas e psicológicas e amou. Amou o seu agressor e se sentiu dependente dele, numa relação que combinava sentimentos mistos: a história que viveu com Diego deixou memórias, cicatrizes e um filho, o Christopher, hoje com sete anos. Procurei a Jeni-fer para tentar compreender o porquê de ela ter demo-rado tanto tempo para dar um basta às humilhações e às agressões. A verdadeira dependência que ela sentia em relação aos seus agressores (sim, mais de um) pode ser relacionada, talvez, à Síndrome de Estocolmo, na qual a pessoa presa em cativeiro desenvolve um sen-timento de condescendência protetora em relação ao seu algoz.

Eu entro na casa de Jenifer, tiro o casaco, recoloco o casaco; a manhã estava gelada. Jenifer está de short e blusa - “não sinto frio”, diz ela. As roupas curtas expõem as incontáveis tatuagens espalhadas pelo peito, braços e pernas. A cozinha/sala é pequena e acolhedora. Ela passa um café e me avisa que o Chris está dormindo no único outro cômodo; mãe e filho dividem a mesma cama. “Bom no inverno”, comento. Ela sorri, mas não muito: Jenifer é de poucos sorrisos. A sua história come-ça em Cachoeirinha, onde nasceu. Filha única, era mui-to estudiosa quando pequena e obediente aos pais. Eis que, em viagens a Porto Alegre, para visitar parentes, conheceu Diego. Ela, com 13 anos; ele, com 19. Ela se apaixonou, engravidou e casou. Ela, uma criança, em suas palavras “muito, muito inocente ainda”; ele, al-guém que “machucava e muito”. Quando Jenifer engra-vidou, Diego se mudou para a sua casa. O convívio não durou muito, logo ele arranjou a mudança para Porto Alegre. Ela comenta que ele se sentia preso junto aos sogros, que não sabiam do seu temperamento explosi-vo. Ou seja: morar em Porto Alegre significava liberda-de. Os abusos, que já ocorriam enquanto Jenifer estava grávida, eram constantes e duraram cinco anos.

“Passei o inferno nas mãos dele”, diz Jenifer. Os tapas e socos deixavam olhos roxos e vinham acom-

panhados de xingamentos como “lixo” e comentários do tipo

“ninguém vai te querer com filho pequeno, mãe solteira

em vila é que nem prosti-tuta”. Ela tinha 15 anos e acreditava nele. Acredi-tava também quando ele vinha, horas depois, cho-rando e se desculpando,

falando que nunca, nunca mais, aquilo ia se repetir.

Que ela era tudo pra ele. Que ele não ia sobreviver sem

ela. Eram momentos emanando ódio alternados por momentos de endeusamento: mensagens repletas de significados desconexos.

Sobre as memórias daquele tempo, Jenifer recor-da a vez em que ele apareceu na lanchonete Habib’s, onde ela trabalhava na cozinha. Diego apareceu no bar e começou a pedir bebidas e mais bebidas alcoólicas do cardápio. Jenifer disse que, primeiramente, temeu que ele fizesse uma cena em seu ambiente de traba-lho. Depois, lembrou que tinha um longo percurso pela avenida Goethe até a parada de ônibus. “Tive medo que ele me jogasse na frente de um carro”. O pior não aconteceu, mas, ao fim do expediente, Jenifer percor-reu o trajeto levando socos de Diego, completamente bêbado. Jenifer conta que ele tinha delírios de que ela estaria traindo ele ou tivesse planos de deixá-lo. “É quando ele me falava que, caso eu saísse de casa, ele me mataria. ‘Vai ficar comigo ou não vai fi-car com mais ninguém’, ele dizia”.

Pergunto, meio relu-tante, sobre a sua pior lembrança; me sinto instantaneamente mal por pedir para que ela re-lembre a memória em voz alta e logo explico que ela não precisa contar nada que não quiser. Ela não parece se abalar mui-to (aliás, ela parece ser do tipo que não se abala com nada: a sua fala é caracterizada por um discurso articu-lado, de voz dura). Jenifer narra, então, sobre a vez em que ele a atingiu com um sofá de três lugares. Caída no chão da cozinha, Jenifer lembra da expressão de Chris, que estava parado à porta do quarto, em choque. Mãe sorriu para o filho, na época com cinco anos, tentando esconder seu sofrimento: era o pior momento de sua vida. O episódio resultou em uma costela quebrada e, no hospital, tratando dos ferimentos, Jenifer sabia que era o momento de denunciá-lo. Na época, ela traba-lhava como diarista e sua chefe a levou até uma de-legada mulher. “Fez toda a diferença”, diz ela, que já havia entrado em contato com policiais que não leva-vam o assunto a sério; ela chegou a ouvir comentários do tipo “ah, mas elas sempre voltam pra eles; no fim, não adianta prender os caras”. Com a iminente prisão, a família de Diego arranjou uma viagem para Curitiba às pressas. Não era a última vez que Jenifer ia se inco-modar com ele, mas Diego sabia que ela não toleraria mais abusos: aquela denúncia representava a separa-ção oficial dos dois.

Como se não bastasse ter enfrentado tudo o que enfrentou, Jenifer se envolveu, não muito tempo de-pois, com Maicon (ou Dimi), um tatuador, que também a agredia. Acho que ela percebeu meu espanto (COMO ela foi se envolver com outro tipo horrível?) porque se apressou em explicar que Dimi sofria de síndrome do pânico e depressão – como se a doença justificasse os

Passei o inferno

nas mãos dele

“Vai ficar comigo ou não vai ficar com

mais ninguém”, ele dizia

Page 47: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 92 Sextante 2013.1 93

atos violentos, que duraram seis meses. O ápice foi quando Dimi a enforcou por cerca de quinze segundos, deixando Jenifer semi inconsciente. O estopim da briga havia sido a vontade dele de vender os móveis recém adquiridos para comprar crack. Enquanto lidava com os objetos arremessados por Dimi, Jenifer tinha de conci-liar as crises de Diego, exilado em Curitiba. O ex-marido sentia ciúmes do tatuador e ligava quase todos os dias. A perseguição durou outros dois anos, com ameaças constantes; o maior medo de Jenifer era que ele colo-casse fogo na casa.

A triste história se encaminha, porém, para um final feliz. Jenifer começou a namorar, recentemente, o Lu-cian (“um fofo!”, ela exclama), estudante de educação física da UFRGS. Os dois se conheceram por intermédio de amigos em comum no Facebook. Ele é rapper: foi através de uma canção que o pedido de namoro foi feito (e me conta isso meio rindo, de uma maneira tão leve, como se a ingenuidade daquela menina de 13 anos não estivesse totalmente perdida afinal de contas). Os pla-nos para o futuro incluem cursar uma faculdade e sair da vila onde mora. A prioridade no momento, porém, é ajudar o Chris, que tem demonstrado um comporta-mento agressivo na escola.

Antes de ir embora, peço para ver as tatuagens mais de perto. Leio os dizeres “quem é de verdade sabe quem é de mentira” – muito sugestivo – abaixo do pes-coço. Ela se empolga ao falar de sua paixão por Charlie Brown Jr. e conta, meio emocionada, que ficou enlutada por uma semana após a morte do cantor Chorão, voca-lista da banda. Na perna, com marcas de queimadura, ela tem o personagem de um desenho infantil - talvez em uma tentativa de conciliar o resultado do ato cruel com uma representação inocente.

Despeço-me de Chris (que, a essa altura, já havia acordado e se encontrava sentado ao meu lado, aten-tamente analisando eu anotar alguns dados no meu caderninho) e Jenifer me leva até a entrada da vila. Ela me dá um abraço forte e diz que não precisa mudar os nomes da matéria (eu tinha comentado logo na chega-da que poderia criar codinomes, se ela fosse se sentir mais à vontade), pois não tem vergonha de sua histó-ria. Acabo falando, de forma menos controlada do que gostaria, que ela não deveria sentir vergonha, mas, sim, revolta, ódio, repulsa. Ela me olha de forma vaga; pa-rece não entender exatamente o que digo. “Sou o que sou hoje porque enfrentei o que enfrentei”, resume ela, abrindo um meio sorriso resignado.

Por Taís Castro

primeiras feministas gaúchas

As

Page 48: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 94 Sextante 2013.1 95

O Movimento Feminista é uma ação política que luta pela participação e representação igualitária de homens e mulheres. Desde os primeiros passos do mo-vimento, no começo do século XIX, muitas conquistas já foram alcançadas, dentre as quais estão o direito à regulamentação do traba-lho feminino, à equiparação sala-rial entre gêneros, ao voto e ao divórcio – reivindicação antiga. Em setembro de 2006, en-trou em vigor a Lei Maria da Penha, fazendo com que as penas por violência contra a mulher deixem de ser pagas com cestas básicas e mul-tas, e passem a ser tratadas como crime de grande poten-cial ofensivo.

Ao longo dos anos, muitas mulheres se destacaram por exer-cerem um papel de grande importân-cia à época, sejam jornalistas, estanciei-ras, poetas ou ativistas do próprio Movimento Feminis-ta. Na área intelectual, o Rio Grande do Sul foi pioneiro, e, durante a Guerra dos Farrapos (1835 – 1845), o estado teve cinco intelectuais de destaque.

As histórias dessas mulheres estão diretamente relacionadas com o início do Movimento Feminista. A primeira escritora, a primeira jornalista, duas importan-tes poetas e a primeira mulher a traduzir uma obra com pensamentos feministas foram fundamentais para que houvesse uma mudança de percepção sobre o papel da mulher na sociedade. Se hoje ainda não existe uma real igualdade de direitos, é importante conhecer as mulhe-res que foram precursoras do movimento para que seja possível dar continuidade à luta.

Maria Clemência da Silveira Sampaio

A primeira escritora do Rio Grande do Sul nasceu em Rio Grande em 1789. Solteira, adotou muitas crianças carentes. Recitou seus Versos Heróicos no baile de acla-mação de D. Pedro I em Rio Grande e, no ano seguinte, foram editados no Rio de Janeiro (porque na Província

ainda não havia imprensa). Os versos eram exaltações à nova casa imperial brasileira

e ao casal soberano Pedro e Carolina, e ocupam um lugar pioneiro

na história da literatu-ra sul rio-grandense.

Em 1823, passou a fazer parte do

grupo de po-etas da inde-p e n d ê n c i a . A escritora expunha as riquezas do país e tam-

bém o que estava faltando, inclusive chamando aten-ção para seu potencial econômico e clamando recursos ao imperador “para o bem-estar da província e de seus amados filhos”. A poetisa morreu no ano de 1862.

se o Rio Grande [...] é fértil em terreno,

doce em clima,Abundante de matas, rios, montes,

De searas, e vinhas, e de gados, essas riquezas naturais precisam de fomento, e de cuidado; se os densos bosquesOferecem vegetais mui proveito-sos, precisam

De conhecidos ser, de ser prova-dos;

se as montanhas diversos minerais,

Abundância de gemas, e metais, [...] para ter uso querem ser buscados; [...]

(trecho de “Versos Heróicos”)

Maria Josefa Barreto Pereira Pinto

Primeira jornalista mulher do Brasil, Maria Josefa nasceu em 1787, em Rio Pardo. Trabalhou, no ano de 1833, no jornal porto-alegrense Idade de Ouro, do gra-mático português Manoel dos Passos Figueiroa. Em janeiro de 1833, fundou e redigiu o semanário Belona irada contra os sectários de Momo (Belona = deusa guer-reira; Momo = Bento Gonçalves). A jornalista era lega-lista e, inclusive, fazia sátiras contra os farroupilhas. Seu jornal durou ape-nas até janeiro de 1834 e hoje não existe mais nenhum exemplar conservado. Morreu sozinha em 1837 de causas desconhecidas – os filhos estavam mortos e o ma-rido havia sumido.

Delfina Benigna da Cunha

Nasceu em São José do Norte no ano de 1791. Com menos de dois anos de vida, ficou cega por con-trair varíola. Mesmo assim, aos 12 anos começou a escrever versos, e, em 1836, foi pen-sionada pelo Império pelo livro Bons serviços de guerra prestados. Sua poesia era dedicada a exaltar a família imperial. Quando os farroupilhas invadiram Porto Ale-gre (1836-37), Delfina se exilou no Rio de Janeiro. Em 1838, o livro contou com duas reedições, com o nome de Poesias oferecidas às senhoras brasileiras, acrescido de uma glosa (tipo de poema) de repúdio a Bento Gon-çalves, chefe farroupilha:

Maldição te seja dada Bento infeliz, desvairado,No Brasil e em toda parteSeja teu nome odiado.

Além desses, publicou mais quatro livros: Tributo de gratidão (1842), Florilégio da infância (1842), Selecta brasileira (1846) e Coleção de várias poesias (1846) (de-dicadas à Imperatriz viúva). É considerada a precursora do Romantismo no Brasil. Morreu aos 65 anos no Rio de Janeiro.

Ana Euridice Eufrosina de Barandas

Poeta, cronista e novelista, Ana de Barandas nasceu em Porto Alegre, em 1806, com o nome de Ana da Fon-seca Barandas. Euridice e Eufrosina são nomes que ela acrescentou depois, em função de sua cultura clássica – que também pode ser observada em parte da sua obra.

Expressava ideias avançadas para o século XIX, apesar de ter crescido

em família extremamente con-servadora. Em 1843, divorciou-

se sem direito a novo casamen-to, passando, então, a gerir os bens e edu-car as filhas. Publicou, em 1845, o livro Ramalhetes ou flores escolhidas

no jardim da imagina-ção. Os relatos de Ana

de Barandas são, acima de tudo, denúncias sociais

sobre a condição da mulher e os horrores da Guerra dos Farrapos. Em 1990, o livro foi reeditado e passou a se chamar apenas O Ramalhete.

Nísia Floresta

Nísia Floresta foi a única dessas intelectuais que não nasceu no Rio Grande do Sul. A jornalista, poeta, ro-mancista e, acima de tudo, feminista nasceu na cidade de Papari, no Rio Grande do Norte, em 1810. Casou-se aos 13 anos com Manuel Alexandre Seabra de Mello, de quem se separou meio ano depois. Em 1832, refez a vida com o advogado Manoel Augusto Faria Rocha. Vieram para Porto Alegre em 1832, com a mãe e a irmã de Nísia, mais a filha do casal. No ano seguinte, o marido faleceu. Nísia Floresta fundou uma escola em Porto Alegre, que funcionou de 1834 a 1837, quando a jornalista se exilou no Rio de Janeiro por causa da Revolução Farroupilha. Manteve lá o Colégio Augusto por 17 anos. Mudou-se para a França em 1856, quando se aproximou de filó-

sofos como Auguste Comte. Após colaborar em diver-sos jornais brasileiros, publicou o que seria seu primeiro passo em direção ao Movimento Feminista: Direitos das mulheres e injustiças dos homens, que era uma tradução livre (e adaptada ao contexto brasileiro) da obra da fe-minista inglesa Mary Wollstonecraft. As reivindicações eram por direito ao estudo e direito ao trabalho. Nísia Floresta ainda publicou muitos livros e foram escritos também diversos trabalhos a seu respeito. A feminista morreu em 1885 de pneumonia.

Por que [os homens] se interes-sam em nos separar das ciências a que temos tanto direito como eles, se-não pelo temor de que partilhemos com eles, ou mesmo os exceda-mos na administração dos cargos públicos, que quase sempre tão ver-gonhosamente desempenham?

(Trecho de “Direitos das mulhe-res e injustiças dos homens”).

Todas as informa-ções a respeito dessas mulheres pioneiras são resultados de pesqui-sas da historiadora Hilda Flores, que é uma grande estudio-sa da temática de gênero. Suas publi-cações permitiram maior visibilidade e impulsionaram novos estudos sobre o impor-tante papel intelectual das mulheres no período da Guerra dos Farrapos.

O Movimento Feminista é uma ação política que luta pela

participação e representação igualitária de homens e

mulheres.

Ilustrações Gisele Lins

Page 49: Sextante 2013.1 - Independência

nós corremos o mesmo ritmo

rasguei o calendário

joguei o relógio fora

parei de ser contrário

corro com o tempo agora

e com surpresa percebi

Por Isabel Waquil

Cruzando a África nos anos 1920, aos 72 anos

Page 50: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 98 Sextante 2013.1 99

No início do século passado, Mina Nadine Ryff atra-vessou 5 mil quilômetros em cinco meses, partindo do coração da Nigéria rumo à costa do Senegal, para voltar à Suíça, sua terra natal, depois de 4 anos longe de casa. Mina nasceu em 1855, não tinha filhos, não era casada, e pouco se sabe sobre o que a levou para a África. Mas o fato é que, gozando de independência dos padrões sociais do início do século, ela pôde realizar essa via-gem nos moldes como poucas mulheres com mais de 70 anos fizeram: de camelo, barco, cavalo, carro e trem.

Tudo foi relatado e, posteriormente, publicado em forma de artigo no jornal suíço Der Bund, em julho de 1928. Foi apenas recentemente que se descobriu a tra-dução para o inglês do diário feita por Marcelle Walser, sobrinha de Mina. Os trechos que ilustram esse texto fazem parte de uma descrição crua da África povoada pela presença imperialista e que, ainda assim, impres-sionava pela beleza exuberante dos limites subsaaria-nos. A narrativa de Mina começa em 1926, na cidade de Kano, na Nigéria, onde ela permaneceu por quatro anos antes de iniciar sua jornada.

A verdadeira Kano, a cidade dos nativos, onde não é permitida a residência de nenhum branco, é cercada por 24 quilômetros de muros de areia, com 13 portões que são fechados às 8 horas da noite e abertos às 6 horas da manhã. Em uma grande e profunda lagoa, é possível encontrar crocodilos. Um deles foi morto, afundou e sua carcaça, depois de 5 dias, apareceu e foi trazida até nós por crianças! Kano é um importante centro de negócios, onde caravanas do Norte, Oeste e Leste se unem. (..) O principal evento, durante a minha estadia em Kano, foi a visita do Príncipe de Gales, en-tre 18 e 20 de abril de 1925. Trinta e quatro chefes com seus ministros e mais de 30 mil cavaleiros chegaram à cidade. Entre eles, estavam representantes de tribos que só tinham se encontrado em campos de batalha. O outro grande evento que ocorreu enquanto eu estava em Kano foi a aterrissagem bem sucedida de três pi-lotos que voaram do Cairo até Cartum - a primeira vez que a viagem foi realizada por via aérea.

Decidida então a retornar para Berna, sua cidade na-tal, Mina conta que começou a organizar a viagem de volta para a Europa. Juntou sacos de dormir, ferramen-tas de acampamento, utensílios de cozinha e convidou Biga, que já trabalhava com ela em Kano, para acom-panhá-la em um trajeto que propositalmente cruzava o interior do continente africano. Ele havia nascido em Niamey, cidade que estava no itinerário, e assim pode-ria rever a família que deixou ainda jovem quando partiu para tentar a vida em Kano. Com um carro emprestado, a dupla seguiu rumo a Maradi, na fronteira com a colô-nia francesa.

Em Maradi, eu conheci um jovem espanhol que, du-rante os últimos dois meses, esperou por uma oportu-nidade de viajar para Gao, no Níger, para visitar seu pai. Ele quer muito ir comigo até chegar a Gao. Pela manhã, nós dois fomos até o comandante. De seu es-critório, eu telefonei para Zinder - até agora a capital da colônia francesa. Tinham-me dito que há um ser-viço regular de Zinder para Niamey de carro. No en-tanto, eu só descobri agora que há um transporte de pessoal e arquivos para Niamey, que vai se tornar a capital do território francês e que por três meses, pelo

menos, não haverá espaço disponível no carro para os passageiros. Além disso, a gasolina é escassa. Bem, rapidamente, eu decido continuar a viagem no lombo de um camelo.

Guiando-se por postes de telégrafo, o grupo seguiu a camelo pelo interior árido do Niger. Mina relata que, na maioria das vezes, eles ficavam em acampamentos deixados por outros itinerantes no caminho. Os chefes de tribos, quando não avisados da passagem dos viajan-tes, vinham ao encontro da caravana verificar o que eles precisavam. Ao alcançar Madoua, o grupo conseguiu novos animais e guia para o restante da viagem. Tam-bém passou a acompanhá-los um Tuareg, que percorre-ria o mesmo caminho com seus subordinados.

De acordo com o diário, em dezembro de 1926, eles chegaram a Dosso, onde Biga reencontrou Saidou, seu grande amigo e rei da tribo de Djerma. Eles mantiveram o contato por cartas enviadas através de caravanas que passavam entre Djerma e Kano, conservando a amiza-de à distância durante anos. Jermakoy Saidou havia lu-tado na Primeira Guerra Mundial pela França, ganhan-do a medalha da Legion d’honneur que, segundo Mina, era exibida orgulhosamente na vestimenta branca.

Trajeto percorrido por Mina (Arte Caio Schenini)

“Nº one: Diary of my aunt Mina translated from the German”. Caderno de Marcelle Walser, sobrinha de Mina, no qual se encontra a tradução de 14 páginas do relato da viagem.

Page 51: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 100 Sextante 2013.1 101

que o futuro tem guardado para o Sudão, ainda está

comigo, embora eu tenha testemunhado apenas o seu início.

Chegando a Segou, ela despediu-se do gru-po que a acompanhava, permanecendo apenas

Biga ao seu lado. Juntos, partiram para Bamako de

carro e, de lá, Mina foi de trem até Dakar, capital do

Senegal, na costa oeste afri-cana. Nas últimas linhas do diá-

rio, ela descreve o adeus a Biga, fiel companheiro de viagem, e a paisagem

que, ao contrário da aridez do interior, mostrava a terra cada vez mais cultivada à medida que o trem se aproximava da costa.

Do Senegal, aonde chegou no dia 10 de abril de 1927, supõe-se que Mina tenha voltado à Suíça, ainda que a narrativa encerre antes de ela contar o trajeto pelo oceano. Terminou assim, sem vestígios do que vi-ria a seguir, a descrição de uma jornada que contrastou a liberdade das escolhas de uma viajante inusitada com uma época em que a África ainda estava longe de trilhar o caminho para reconquistar a independência que lhe fora tomada.

Em 2012, descobri que Mina Nadine Ryff era irmã do meu tata-ravô, Jean Rodol-phe Ryff.

Estávamos nos aproximando de nosso objetivo. Passamos perto de quartéis, de onde vieram cantos alegres! Tarde da noite, sob o luar e após 29 dias na estrada, incluindo oito dias de descanso, chegamos a Niamey em boa forma. Na viagem, tínhamos visto a vida selvagem: aqui e ali, vimos gazelas e javalis. Vi-mos muitas aves belas. Agora, nosso Biga chegou em casa! No início da manhã, ele foi encontrar sua famí-lia. Ele encontrou sua mãe e trouxe-a até mim. Ela ex-pressou sua alegria ao ver seu filho novamente.

Uma vez em Niamey, Mina arranjou, junto ao admi-nistrador britânico, um barco que a levaria para o norte, em direção à cidade de Gao. Por 20 dias, o barco seria a casa dela, do capitão senegalês e de uma tripulação de dez africanos.

Na maioria das vezes, não estamos no próprio rio, mas em suas ramificações. Às vezes, parece que estamos flutuando sobre um prado, já que a grama

cresce e fica acima da água. Assim, por quilômetros, deslizamos através do mais belo campo de lírios de água (lótus). Aqui, o rio tem milhas de largura. O curso é muito tranquilo. Ao meio-dia, o grupo faz um descanso e um momento de ceia. Normalmen-te, pode ser encontrado abrigo noturno em algum acampamento erguido para o uso de itinerantes. Eu continuo a bordo; escuto o murmúrio da água e, por vezes, o alto relincho dos hipopótamos e o uivo dos chacais.

E assim vamos nós, passando por novas aldeias, com mulheres em vestidos azuis e crianças nuas. As-sim por diante, de barco. Em um lugar baldio vemos, empoleirados em pequenas colunas, crânios de ele-fantes. Já não há mais elefantes vivos.

No dia 23 de janeiro, ela descreve a chegada a Gao, onde era esperado um barco a vapor que a levaria mais adiante. O barco, entretanto, já havia partido e voltaria apenas na próxima época de chuvas. Mina e Biga acaba-ram ficando um mês em Gao à espera de um transporte.

Passaram por vilarejos como Diafarabe, onde um

aeroporto foi construído para escoar a produção local, que

fez Mina indagar sobre o futuro da África que, naquela altura,

estava incrustada pela presença europeia

Entre as descrições da rotina na ci-dade, que incluíam a convivência de Tuaregs, Peuhls, Songhai, Kuntas e Berberes, Mina relata um acontecimento inusitado que presenciou:

Foi a chegada de dois via-jantes, o casal R. de Viena. Um clube em Nova Iorque co-locou um prêmio a ser alcan-çado por alguém que, dentro de seis anos e a pé, cubra 80.000 quilômetros e visite 27 países, fazendo tudo isso sem gastar um centavo do seu próprio bolso. Dez ho-mens aceitaram o desafio e começaram a viagem. Em Gao, apenas quatro ainda esta-vam na corrida. Um dos concorrentes foi assassinado na Anatólia (ou Ásia Menor). Outro foi morto a tiros na Síria. O próprio R. foi ferido no pulso, mas escapou de sangrar até a morte graças aos cuidados que recebeu de um oficial francês. Até, agora ele visitou 21 países.

Passado mais de um mês, ela decidiu retomar a via-gem de barco. Uma nova equipe a acompanhou desta vez.

25 de fevereiro: deixamos Gao. Nós paramos em Bourem, onde o rio Níger faz uma grande volta. A sua posição é muito vantajosa, pois é a saída do Saa-ra. Aqui, as rochas se elevam e ficam acima da água, tornando-se o refúgio das aves da região. Então, no-vamente, o rio se estreita e, de novo, alarga-se tre-mendamente. As margens são pantanosas, mas o rio em si é um gigantesco espelho. Muitas vezes, os peixes saltam fora da água em um arco alto. O primeiro dia do Ramadã é observado por Biga. Ele jejua do nascer ao pôr do sol - sem comida, nem líquido, mas mastiga tabaco que, é claro, ele cospe sabiamente.

Em Kabara, porto de Timbuktu, ela relata que o gru-po precisou deixar o barco e seguir a viagem a cavalo, em meio a trilhas de chacais. No percurso, ao sul do de-serto do Saara, circularam o Lago Débo e passaram por vilarejos como Diafarabe, onde um aeroporto foi cons-truído para escoar a produção local, e Ké-Massina, que fez Mina indagar sobre o futuro da África que, naquela altura, estava incrustada pela presença europeia:

A chegada de uma máquina de dragagem gigante era esperada. Mais tarde, foi-me dito que esta máqui-na foi a primeira de seu tipo na França, bem como no Sudão. Em um dia, ela funciona com a ajuda de 60 ho-mens, o que, de outra forma, iria requerer os esforços de 1000 operários e isto em uma superfície de 1000 a 1200 metros quadrados. Aqui, graças àqueles que tra-balham nestes projetos gigantescos, foi iniciado algo que, quando terminado, irá alterar a aparência e o destino de todo o país, e irá eliminar a fome do Sudão francês. Este sentimento, quase de espanto, sobre o

Reportagem de Mina Ryff sobre sua viagem pela África publicada na revista semanal "Der kleine Bund", parte do jornal suíço Der Bund, em 22 de julho de 1928. A reportagem de seis páginas narra a viagem da Nigéria ao Senegal feita por Mina nos anos 1920.

Terminou assim, sem vestígios do que viria a seguir,

a descrição de uma jornada que contrastou a liberdade das

escolhas de uma viajante inusitada com uma época em que a África ainda estava longe de trilhar o caminho para reconquistar a independência que lhe fora

tomada.

Agradecimentos: Jacqueline

Petitpierre-Bauer e Janet Brennan

Page 52: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 103

gócio com agências sem ter certeza de que aquele é o valor mais em conta. Como uma boa usuária de Internet procura preços, informações e dicas sobre a cidade que visitará. Das opções de passeios até distância entre o aeroporto e o hotel. Ela acredita que, mesmo que se es-colha a opção mais cômoda, ou seja, viajar por agência, não é justificativa suficiente para não procurar saber um pouco mais sobre o destino futuro.

Apesar das divergências, Rosângela tem planos de viajar na companhia de Giuliano testando ao mesmo tempo a maneira que cada um deles opta por conhecer um lugar.

― Acho que ele ainda tem muito a desmistificar so-bre o meu modo de viajar. Adoraria que passássemos um final de semana na Serra, e se déssemos certo como companheiros de viagem, poderíamos ir a Macchu Pic-chu, lugar que nós dois temos muita vontade de conhe-cer – planeja a aposentada.

Seguem agora três histórias de viajantes que, as-sim como Giuliano, optam por fazer as malas e des-bravar lugares diferentes do mundo de forma inde-pendente. Dando chance ao acaso eles revelam as

aventuras de quem escolheu viajar seguindo os próprios roteiros e de acordo apenas com a

própria vontade.

No hay plataIntercâmbio de um ano na Aus-

trália, passagens por Camboja, Vietnã e Tailândia, mochilão pela América Latina e pela Europa. Pode

até parecer que são poucos destinos se você não souber que foi uma es-

tudante de Direito de apenas 24 anos que esteve em tantos lugares. Stefanie

Na casa dos Griffante, olhar o calendário já no co-meço do ano à procura dos feriados é uma prática bem comum. Aproveitar qualquer folga para viajar, mesmo que seja até ali na Serra Gaúcha, é meta o ano todo. A aposentada Rosângela, 52 anos, e o filho desenvolvedor de software Giuliano, 28, costumam trocar dicas sobre os destinos que um ou outro já visitou.

A parceria dos dois quando o assunto é viagens termina aqui. Além de nunca terem embarcado juntos para nenhum destino, eles têm ideias diferentes sobre o modo de viajar. Enquanto a mãe costuma aproveitar pacotes de agências de turismo ou de compras coleti-vas, o filho compra passagens aéreas e reserva hospe-dagem totalmente por conta.

Giuliano, assim como a maioria dos outros viajantes independentes, crê que viajar por agência, além de res-tringir as opções de passeios, é a alternativa mais cara. A visita a uma vinícola em Santiago, no Chile, exempli-fica bem:

― As agências de lá cobravam 150 reais por pessoa para o passeio. Achei muito caro e resolvi ir por conta. Com transporte público e a entrada na vinícola não gas-tei nem 10 dólares ― lembra.

Rosângela não tira a razão do filho, mas acredita que depois de certa idade alguns confortos valem o preço. Por exemplo, em destinos internacionais ela se vê obrigada a pagar por um guia que fale português, já que não é fluen-te em outra língua. A aposentada também defende a ideia de que destinos de difícil acesso devem ser visitados utilizando as agências como intermediárias, como o Pan-tanal no Mato Grosso, por exemplo.

Ainda que procure pelos pacotes de viagem, Rosângela hoje não fecha ne-

Deixe-sesurpreender

Por Aline

Bernardes

Stefanie no Salar de Uyuni, na Bolívia, o maior deserto de sal do mundo.

Aventuras de quem escolheu viajar seguindo os próprios roteiros e de acordo

apenas com a própria vontade

Page 53: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 104 Sextante 2013.1 105

Henning foi incentivada desde cedo pela mãe a fazer as malas e a descobrir tudo o que o mundo tinha a lhe oferecer.

Depois dos planos de um intercâmbio envolvendo trabalho voluntário na Angola terem dado errado, Ste-fanie destinou então o dinheiro que havia guardado para outra viagem. Dessa vez, para a América Latina. O planejamento se resumia à companhia, a amiga Renata Teixeira, e o primeiro e o último destino, Peru e Uruguai respectivamente. De mochila nas costas as duas embar-caram para Lima para uma viagem de dois meses.

Entre um destino e outro Stefanie aprendeu diver-sas gírias locais, e que tentava utilizar, sem sucesso, no país seguinte. Apenas uma frase foi compreendida em todos os lugares: “no hay plata”. Sempre em busca de hospedagens e comida baratíssimas, nada foi dito tan-tas vezes pela estudante. Seguindo essa mesma ideia de economia, é que diversos percursos foram feitos a pé ou usando o meio de transporte mais barato. As mais improváveis, loucas e divertidas histórias surgiram a partir dessa decisão.

O caminho até Macchu Picchu reservou surpresas. Passar a véspera de Natal em uma cidade com todo o comércio local fechado, debaixo de chuva, na compa-nhia de um vira-lata solitário e de muito bebida. Serem surpreendidas pelo trem que se aproximava enquanto descansavam e tiravam fotos nos... trilhos! Em Cuzco, uma louca noite de Ano Novo, regada a muito trago e diversão. Em Lima, a partir da amizade que fizeram com outros brasileiros, parar na casa de um jogador de futebol peruano. Ainda na capital peruana, passear de carro com um astro das telenovelas locais.

Mas nem só de improbabilidades e loucuras se fez o mochilão. Durante algumas dias Stefanie e Renata per-maneceram em um retiro espiritual xamânico. Seguin-do a lógica da troca de experiências, cada um contribuía da melhor forma que pudesse, cozinhando para todos, por exemplo. O “abuelo”, espécie de líder do retiro, aju-

da a comunidade local com o valor em dinheiro que os viajantes deixam ao final da estadia.

Utilizando hostels nas maiores cidades, hospeda-jes – quartinho dos fundos com banheiro privativo, que muitas famílias constroem para alugar a turistas ― e campings, elas percorrerram Peru, Bolívia, Chile, Argen-tina e Uruguai. Amaram as pequenas cidades do Peru e da Bolívia, acharam Santiago extremamente turístico e absurdamente caro e, em Punta Del Este só pararam no Monumento Ao Afogado para fazer fotos e satisfazer o desejo dos pais.

Apesar de todos os contratempos ocorridos durante a viagem, Stefanie defende a ideia de viajar por conta e sem grandes planejamentos:

― Dar chance para o azar e sair do roteiro turísti-co é o que te faz amar o lugar que tu visita. Não são os pontos turísticos, é um lugarzinho que tu descobre sem querer e as pessoas que tu conhece que te fazem amar um país. Muitas vezes é preciso se perder para encon-trar o lugar de verdade, na essência ― reflete a viajante.

An rud is annamh is iontach

Chegar durante a noite em Barcelona e bater de porta em porta procurando um lugar para pernoitar. Se perder em uma pequena cidade da Irlanda. Esses con-tratempos só acontecem com quem viaja por conta e sem planejamento. Mas ter surgido a oportunidade de ir até Barcelona porque as passagens aéreas estavam surpreendentemente baratas e, aquela pequena cidade da Irlanda acabar sendo um dos lugares mais encanta-dores em que já esteve, são surpresas que também só acontecem com quem decidiu colocar a mochila nas costas e... simplesmente partir.

Essas e outras situações aconteceram durante a viagem que a estudante de pós-graduação em Direitos

Humanos, Paula Teixeira, 22 anos, fez pela Europa. No intuito de aprimorar o inglês, ela viajou por dois meses pelo continente, mas apenas seguindo o que sentia do momento: se queria ver o mar, se deslocava até o litoral, se aquela cidade parecia ter mais a oferecer, então per-manecia por mais alguns dias.

A ideia sobre o que é viajar desse modo veio a partir de um provérbio irlandês, lido pela primeira vez em uma embalagem de açúcar: “an rud is annamh is iontach”. Significa algo entre “a coisa mais rara e surpreendente” e “o que é raro é maravilhoso” em gaélico, idioma nati-vo da Irlanda.

O inesperado, o raro e o surpreendente estiveram bem presentes em situações vividas pela estudante. An-dando por Roma de tênis durante uma tempestade de neve, a meia congelou no pé. Foram preciso horas com o pé de molho até que ele descongelasse. Percorrer todo o interior da Irlanda com um mapa em gaélico e no final do trajeto, quando finalmente decide pedir infor-mação para um irlandês, ouvir como resposta “moça, seu mapa está em uma língua que eu não falo, alemão”.

Paula acredita que conhecer os pontos altamente turísticos é importante, mas não essencial. Ela defen-de a ideia de que certos lugares só devem ser visitados se houver real interesse, e não porque são ou deveriam ser paradas obrigatórias. O importante é fazer o que te fascina:

― Eu não subi na Torre Eiffel e não entrei no Vati-cano, mas fui ao museu da Anne Frank, e chorei muito. O que eu menos gosto de ver são os pontos altamente turísticos. Gosto de caminhar pela cidade e, sem querer, ver eles. Em Roma eu estava caminhando e, de repente, vi o Coliseu. Valeu muito mais do que se eu tivesse ido até lá para vê-lo porque me surpreendi ― recorda.

Paula passou pela Inglaterra, Irlanda, Itália, Espa-nha, França, Bélgica e Holanda. As justificativas para viajar sem pressa, escolhendo o próximo destino guiado apenas pela vontade do momento é que o surpreenden-te e o inesperado tornam tudo mais convidativo.

Em pouco mais de um mês ela concluirá a pós-graduação em Coimbra, Portugal. O mundo todo ain-da aguarda para ser explorado, mas a ideia sobre qual será o próximo destino surge sem hesitar: Porto Alegre. Serão tempos de redescobertas sobre o que é estar em casa.

Hvala

Sempre que sonhava com uma grande viagem, o bi-ólogo Hugo Duarte, 25 anos, pensava na Grécia. Quan-do finalmente surgiu a oportunidade de concretizá-la, ao lado do namorado Alessandro Soler, jornalista, 34 anos, ele escolheu esticar a viagem para outros países da Europa. Consultou agências de turismo, mas como nenhum pacote oferecia ao mesmo tempo todos os destinos que gostaria de visitar, planejou e executou toda a viagem por conta.

Com os roteiros já definidos, as passagens com-pradas e os hotéis reservados, a intenção de Hugo e Alessandro era a de conhecer quatorze cidades em oito países. Como o tempo de viagem era curto em relação à quantidade de destinos, a pesquisa para saber exata-mente que locais conhecer foi parte fundamental do processo:

― Planejar a viagem foi uma parte deliciosa, parece que de alguma forma a gente já está viajando. Aprendi

Paula no Cliffs of Moher, Irlanda, conjunto de penhasco de mais de 300 milhões de anos.

Hugo em Stonehenge, círculo de pedras da Idade do Bronze da Inglaterra

Page 54: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 106

muito sobre a história dos lugares que queria conhecer, e ainda não corri o risco de ficar sem saber o que visitar quando cheguei ao lugar ― ressalta o biólogo.

Mas mesmo com todos os detalhes previamente planejados, a viagem trouxe surpresas. O encanto de Hugo por todas as cidades e pessoas que conheceu na Croácia transcendeu tudo aquilo que já havia lido so-bre o país. Desde a charmosa capital, Zagreb, em que é possível perceber os vestígios do período socialista, até Dubrovink, uma cidade rodeada por muralhas no Mar Adriático. Nada mais sensato que, “hvala”, “obrigada” em croata, palavra ensinada a ele por uma simpática se-nhora local, tenha um significado especial.

Mas o inesperado mesmo ficou no caminho entre a Croácia e a Grécia. Diante das dificuldades de ir di-reto de um país para o outro, eles precisaram passar por outros três: Bósnia, Montenegro e Albânia. So-mente atravessaram a Bósnia, sem parada nenhuma, exceto para serem revistados. Em Montenegro, a pobreza em relação aos outros países da Região Bal-cânica e a falta de habilidade dos montenegrinos em

Hospedagens Alternativas Hospedagem está longe de ser somente estadia em

hotéis ou pousadas. Aqueles que estão acostumados a viajar de modo independente buscam formas alternati-vas e que, geralmente, têm preços mais em conta.

Hostel: Oferecem preços mais em conta porque os quartos e os banheiros costumam ser compartilha-dos. Com a proposta de servir de espaço de intercâmbio cultural, os hostels geralmente possuem outras áreas de uso comum, desde cozinha e sala de televisão até pis-cina, em alguns casos. Existem dezenas de sites para reserva no mundo todo: www.hihostels.com, www.hos-tels.com, www.hostelbookers.com e www.hostelworld.com.

Wimdu: Com o slogan de “travel like a local” o site intermedeia a busca por hospedagem dos viajantes e a disponibilidade de quarto na casa de pessoas dispostas a recebê-las. Com um anfitrião da própria cidade, é pos-sível conhecer de perto os costumes do lugar que está sendo visitado, diz o site. Se a intenção for somente aproveitar os preços, também é possível alugar aparta-mentos. São mais de 150 mil alojamentos disponíveis: www.wimdu.com.br

Airbnb: Nem sempre sinônimo de baixos preços, o site ganhou fama mundial porque, além do aluguel de quartos e apartamentos em lugares privilegiados e

receber turistas chamou atenção. Em Tirana, capital da Albânia, se surpreenderam positivamente com a liberdade das mulheres em um país muçulmano. Foi lá também que saborearam a melhor cerveja local de toda a viagem.

A tão esperada Grécia não deixou a desejar. Da visi-ta ao Museu da Acrópole, em Atenas, até os cantinhos descobertos para mergulho na Ilha de Mykonos, supe-raram as expectativas. Sem falar na experiência liberta-dora de ir pela primeira vez em uma praia de nudismo. Hugo não tem dúvidas de que a Grécia fará parte do ro-teiro de uma próxima viagem à Europa.

Durante 23 dias, Hugo e Alessandro visitaram In-glaterra, Croácia, Montenegro, Albânia, Grécia, Itália e França. Eles já começaram a pensar nas próximas férias, ir a Portugal e a Espanha, ou então uma viagem de car-ro pela Argentina, de Buenos Aires até a Patagônia. O destino ainda pode ser incerto, mas o modo de viagem, não. Será feita de forma independente, escolhendo para visitar as cidades mais atrativas e, claro, de forma econômica.

disputados, é possível se hospedar em... barcos e casas na árvore! Assim como o Wimdu, é possível se hospedar com ou sem anfitrião local. Com ofertas de diferentes estilos e preços o Airbnb está presente em mais de 34 mil cidades do mundo. www.airbnb.com.br

Couchsurfing: Segue a mesma proposta de ter um anfitrião no destino, mas nessa modalidade o lugar para dormir pode ser simplesmente um sofá e o custo, é zero. A proposta é que os usuários desfrutem do siste-ma tanto como anfitriões quanto como surfers (convi-dados). O site já possui mais de seis milhões de pessoas cadastradas. www.couchsurfing.org

EasyQuarto: É voltada para quem tem quarto para dividir ou está em busca de um. Apesar de ser dire-cionado para pessoas que estão procurando “começar a vida” sem os pais, pode ser útil para quem for perma-necer durante uma longa estadia em determinada cida-de. Oferece quartos apenas no Brasil. www.easyquarto.com.br

HomeExchange: Para aqueles que estiverem in-teressados em passar uma temporada em apenas um mesmo destino, por esse sistema é possível trocar de casa com outra pessoa. É preciso pagar uma taxa para anunciar o imóvel no site e pesquisar se há alguém in-teressado em trocar de casa no mesmo período. Há milhares de opções para América do Norte e Europa. www.homeexchange.com

Por DouglasFreitas

Quandoo mundocausa adependênciasorrisodoalheio

Page 55: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 108 Sextante 2013.1 109

A cubana Yolaine Rivas me fez prometer que algum dia eu voltaria para buscá-la e iría lhe apresentar o Brasil que ela via nas novelas. Seis meses depois de minha passagem por Cuba, ainda recebo seus e-mails com perguntas de como é Bogotá, o que os brasileiros gostam de comer ou o quão quente é a areia de Varadero. Varadero é uma das praias mais lindas do mun-do, a apenas 120 quilômetros de Havana, mas sua areia nunca sentiu a maciez dos pés de Yo-laine. Conhecer o calor dos cubanos, a violên-cia das barras-bravas colombianas e a paixão inexplicável dos chavistas foram experiências que ainda incendeiam reflexões constantes e perturbadoras dentro de mim. 2012 me libertou - ou me prendeu em conflitos difíceis de vencer.

Nunca mais fui ao Tutti Giorni, bar que virou a onda do momento e simbolismo da ocupação da rua, destino certeiro das minhas terças à noite pós-viagem. Na última que estive por lá, à beira do laguinho da Ponte dos Açoria-nos, confessei, chapado de maconha, para um dos amigos mais próximos, que o suicídio seria o desfecho da minha morte. Cara de espanto seguida de mil questionamentos. Só respondi que não sabia quando, mas que me parecia tão claro. A sobriedade do dia seguinte que tudo apaga ou a sensibilidade do amigo não trouxe-ram o assunto à tona novamente.

La Ola Bolivariana ao pé do monte Ávila

"Afinal, o Hugo Chávez é bom ou mau?" Quando voltei da Venezuela, essa foi a pergun-ta que mais me fizeram. Na noite daquele 5 de março, ao escutar no rádio, sentado em algum ônibus de Porto Alegre, a notícia da morte de Chávez, essa pergunta feita por amigos e toda a minha trajetória naquele país voltaram com tudo! Muita coisa me marcou durante todo es-ses três meses que vivi em Caracas, mas sempre destaco três momentos.

Certa vez, captando entrevistas nas ruas, fiz uma pergunta sincera, ainda tentando entender a paixão fervorosa dos venezuelanos pelo pre-sidente. "Por que vota por Chávez?" A senhora com seus 60 anos, sem expressar nenhum sorri-so, me respondeu convicta: "Porque não quero voltar a ser invisível". Essa frase me martelou durante toda a estada na Venezuela. Não voltar a ser invisível. Em outra ocasião, devido à mi-nha camiseta que estampava os olhos do presi-dente, outra senhora puxou papo em uma lan-cheria. Também perguntei o motivo de escolher Hugo Chávez. "Antes do comandante chegar ao poder, eu passava fome. O povo engolia comida

de cachorro. Hoje, meu filho está na universidade", dis-se. Fui aprendendo aos poucos o que significava a figu-ra daquele homem para o país inteiro. Acompanhando todos os discursos da campanha - todos mesmo, sem exceção -, entendi um pouco do sentimento que Chávez nutria pelo seu povo e uma das minhas maiores inquie-tações - o longo tempo na presidência (seriam 20 anos se cumprisse todo o mandato atual) - foi tendo suspei-tas de resposta. Ter o poder nas mãos seduz, a vaidade faz com que a permanência seja a única possibilidade. Analisando todas as frases e principalmente a paixão com que se expressava, percebi que Chávez queria se-guir sendo presidente para manter o poder em suas mãos, sim. O que parecia é que El Comandante sentia que, se um dia saísse do Miraflores, o povo venezuelano estava desamparado, sem alguém que lutasse por eles, fizesse com que deixassem de comer carne de cachorro e colocasse seus filhos na universidade. E isso foi defen-dido por 54% da população, em outubro de 2012.

No dia 7 de outubro, dia da última vitória de Chá-vez, vivi um dos maiores acontecimentos da minha vida: a comemoração da eleição no Palácio Miraflores.

O centro de Caracas tomado por milhares de pessoas, aquele mar vermelho, com motos raivosas de felicida-de para tudo que é lado. Em meio a toda aquela festa, uma amiga brasileira olhou para mim e tascou o tercei-ro momento que nunca esquecerei. "Em 2002, durante o golpe, o povo desceu dos morros a pé para defender seu presidente. Hoje, desce de moto para comemorar". É claro que os venezuelanos ainda precisam de mais. No entanto, nos últimos anos, o que não faltou foi esperan-ça. Esperança baseada no real, que era possível mudar - como realmente foi.

Com certeza os fatores políticos venezuelanos dei-xaram um legado grande na minha memória. O que se vê por lá é realmente uma luta de classes, com ódio dos dois lados. Impressiona! Por outro lado, Puerto Frances sempre será a prainha do meu coração. El Maní Es Así é o legítimo cenário de filme caribenho. Negros bonitos pingando de suor exibindo a malemolência no ritmo da salsa, explodindo nos altos falantes à noite toda. E, por fim, me entristece saber que somente voltando à Vene-zuela poderei desfrutar das deliciosas arepas, espécie de tortilha de milho recheada com diversos sabores.

Durante a campanha presidencial, por todos os locais que Chávez passava arrastava multidões. Na foto, a população do Estado de Arágua, a quatro dias das eleições de sete de outubro de 2012.

Foto da Imprensa presidencial venezuelana.

Em evento com mais de 10 mil jovens, Chávez mostra seu vigor mesmo afetado pelo câncer que lhe mataria meses depois. Dei a sorte de estar ali pertinho dele, em um dos momentos mais significativos da minha vida.

foto da Imprensa presidencial venezuelana.

Page 56: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 110 Sextante 2013.1 111

Quando voltei, me sugeriram buscar ajuda. Depois de meses lutando e relutando com a ideia, tentando me ajudar numa terapia autogestioná-ria, me liguei que aquilo só estava aumentando a turbulência. Era eu saindo de mim para analisar situações que, na verdade, nem sabia o que esta-va acontecendo . Buscava explicações sem antes saber o que se passava realmente. A ponto de ex-plodir e comprometer tudo o que prezo de vida nos meus dias, fui atrás da palavra amiga - da cara impassível me olhando por uma hora por semana.

Logo que cheguei, cho-rei. Há anos que, basea-

do nos livros de Pedro Juan Gutierrez, sonha-va com o Malecón e todo aquele cenário inusitado que se apre-sentava naquele mo-mento. Era um sonho,

estava em Havana, Cuba. Os varais colori-

dos, os carros soviéticos, o rosto de Che, a safadeza

das jineteras, a malandragem do verdadeiro malandro. Foram 15 dias de san-gue criollo, período que me ajudou a buscar uma palavra que representasse aquele povo: românti-co. Fiquei hospedado na Residencia Costillar del Rocinante, hotel para os estudantes cubanos e in-ternacionais inscritos no Instituto de Jornalismo José Martí. Não estava fazendo nenhum curso, mas tive a sorte de ser aceito simultaneamente à presença de uma turma internacional. Ali conheci nicaraguenses, haitianos, argentinos, mexicanos. E, claro, cubanos.

No segundo dia em Havana, fui convidado pe-los colegas de Residencia para conhecer Varade-ro, umas das praias mais famosas do mundo. Os estudantes internacionais organizaram uma ex-cursão em que iríamos pagar uma pequena quan-tia para custear o transporte, um almoço e tam-bém a passagem dos colegas cubanos. Muitos ali, apesar de viver a menos de 100 quilômetros do litoral do Golfo do México, nunca tinham pisado na areia branca de Varadero. Era o caso de Yolaine Rivas, que, pelo menos até o final da minha es-tada em Cuba, desconhecia o gosto da água do mar. Embora (ou devido) o histórico de viagens restrito, queria conhecer o Brasil, queria conhe-cer o mundo - desejo comum a muitos cubanos. E eu era um dos caminhos para isso. Yolaine era recepcionista da Residenci a. Nas madrugadas em que minha chegada bêbado coincidia com a sua jornada, me seduzia. Um dia sucumbi. Entre uma carícia e outra, me fez prometer que iríamos constituir uma família em minha terra natal. Atra-vés do casamento com um gringo, os cubanos buscam a independência.

Os truques do destino interromperam os desejos de Yolaine e restringiu nosso contato posterior a e-mails es-paçados em que conto um pouco das coisas que conheci. A sede de mundo da cubana, os passos calmos dos jorna-listas em Varadero, a maneira insistente que os ambulan-tes te oferecem charutos a preços mais baixos pelas ruas de Havana. Romantismo. Sentar no Malecón e admirar as ondas batendo na pedra vale o dia. Desconsiderando o juízo de valor desse cenário, o certo é que a ausência de computadores, de smartphone s, da concorrência diária do mundo capitalista criava relações interessantes. Os pedintes de Havana representam uma nova categoria. O interesse em cada palavra é nítido, assim como o zelo em cada atitude. Ao mesmo tempo que esperam trocados para o leite ou para a maconha, os cubanos aproveitam para fazer tu se apaixonar ainda mais pelo país. Naquele lugar, cada qual busca adicionais devido a insuficiência

do salário oficial: o médico desvia remédios; o esportista olímpico vende o abrigo no mercado negro; os operários roubam charuto das fábricas; as prostitutas (famosas "ji-neteras") encantam pela simpatia. Dá-se um jeito!

Difícil imaginar quem nunca tenha flertado com o suicídio. De um selinho à transa mais envolvente. Do "como se sentiriam se eu me matasse?" à sensação horrível de que estar ali parado perplexo poderia ine-xistir se tu tivesse pulado. E por frações de segundo distinguir o ato de pular do de ficar parado parecia im-possível. Uma roleta russa de duas opções. Tudo isso parece certo egoísmo. Covardia. E é! Mas às vezes a atitude deve ser pensada exclusivamente nas conse-quências que isso vai causar a nós. Ignorando como vai respingar nos outros. Somente pensar em como isso pode nos beneficiar. Ou nos salvar.

Da espera constante no Malecón aos uniformes escolares, o romantismo está por tudo. Foto de Douglas Freitas.

Pelas ruas da Guatemala, além dos 22 dialetos,

a vestimenta é um símbolo de expressão da cultura maia

Foto de Douglas Freitas.

Logo que cheguei, chorei.

Page 57: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 112 Sextante 2013.1 113

Cores de Guatemala, cores (ainda mais diversas que as de Frida Khalo)

À beira do do lago Atitlán, o mais profundo da Amé-rica Central e um dos mais bonitos do mundo, com três vulcões (Tolimán, Atitlán e San Pedro) e doze povos nas margens, tudo que senti foi minha cama tremer e, ver o desespero tomar conta de mim. Fui rápido para o pátio e vi algumas pessoas correndo pelas trilhas arbo-rizadas de San Marcos de la Laguna. Algumas crianças me olharam rindo do meu desentendimento e gritaram, entre uma passada e outra, "um temblor, solo um tem-blorzito, señor". Só depois descobri que o terremoto de magnitude de 7.4 na Escala Richter tinha matado 45 e deixado mais de 150 feridos a apenas 200 quilômetros de distância da onde eu estava. O pequeno temblor aca-bou sendo o marco de um sacode na mochilada. Coinci-dentemente, foi após a passada pelo Lago Atitlán que me desliguei de Porto Alegre.

A proximidade de uma nova época era vista pelas ruas da Guatemala, 21 de dezembro estava próximo.

A profecia maia dominou o mundo em 2012. Naquele país, a cultura dessa civilização nunca deixou de estar presente. Além das vestimentas, o país fala 23 idiomas, sendo um o espanhol e o restante dialetos maias. Du-rante minha visita a Tikal, maior reduto da antiga civi-lização, minha percepção de vida mudou. Observar os templos com mais de 70 metros de altura e imaginar uma população estimada em mais de 100 mil habitantes me pegaram de jeito. Tikal tem muito de sensacional. As centenas de estruturas megalomaníacas que ilus-travam o mapa que eu carregava foram construídas a quase dois mil anos atrás (exatamente de 200 d.C a 850 d.C) são apenas uma parcela do que existe no Parque Nacional de Tikal. O resto ainda segue soterrado - por falta de investimento em pesquisa por parte do gover-no e por interesse em manter parte da cultura oculta. Antes de partir para a maior cidade maia da história, passei pelo fenômeno natural mais espetacular que co-nheci. Semuc Champey é a primeira coisa que descrevo quando me perguntam o que foi o mais bacana da via-gem. Imaginem um rio, situado em um verde vale, que desaparece. A corrente de água entra em uma caverna, interrompe seu curso e some. Daquele ponto, surgem

seis piscinas naturais cristalinas das águas que escor-rem das montanhas. Logo que acaba as dimensões da última piscina (cor de esmeralda), o rio verte da terra e volta a seguir seu curso.

Aquilo tudo me impressionava. Como uma par-cela da humanidade alimentou uma cultura tão rica e construiu forticações como a de Tikal? Quantos Semuc Champey deve existir pela Ásia ou pela África? Tudo isso no mundo e eu preocupado com a carreira que ia seguir até meus 30 anos? No convívio dos guatemaltecos com os típicos trajes coloridos, questionei minhas priorida-des e resignifiquei a vida. De que adianta dias planifica-dos e passos bem regulados (porém incertos) em Porto Alegre se o mundo está lá fora?

"Mas, caro Douglitas, do que adianta o mundo es-tar lá fora se tu não está dentro de ti mesmo?" Já me vi várias vezes analisando minha ações. E isso me assus-ta e me confunde. Saio de mim e enxergo claramente a cena de eu conversando com o conhecido e repudio mi-nha antipatia. "Olha como essa palavra cai mal aí. Vê como essa tua interrupção fez ele virar a cara? Tu é um idiota, não entende? Sempre age querendo ser melhor que os outros, mas no fundo queria achar a fórmula da humildade". A carreira eu deixei de lado. Não é o que importa. Importa é eu me achar. E, depois de me encontrar, buscar o mundo novamente. Ou me acertar com a ajuda do mundo novo.

Com los Millos por Bogotá

- Se cruzamos com torcedores do Santa Fé ou Na-cional, eu peleio também?

- Tu não! Tu fotografa para ver como a gente bate. Se forem muitos, aí sim tu ajuda – me intimou, dando risadas, Erick, integrante da Blue Rain, umas das duas barrabravas do Millonarios.

- Mas vocês não têm amigos dessas torcidas, sei lá, nunca estudaram juntos, algo assim?

- A gente não faz amizade, nosso círculo social, bra-sileiro, é o Millos. Quanto mais se estuda juntos, mais canivetes a gente tem.

Nessa parte eu já estava rindo junto, abraçando e prometendo aniquilar com os adversários do Millona-rios (eu não sei dar um soco em saco de areia). Porém, algumas horas antes, eu quase estive do outro lado, segurei o medo e inventei a mentira mais dolorosa da minha vida para poder tranquilizar tudo.

Sai às pressas da Guatemala e cheguei a uma Bogo-tá desconhecida - nem guias nem sites de mochileiros tinham sido desbravados antes de pisar em solo colom-biano. Por sede de vangloreios e curiosidade jornalís-tica, coloquei minha vida em risco assim que cheguei. Na capital da Colômbia, tinha a missão de cobrir o jogo Grêmio e Millonários pela Sulaméricana 2012 para o site Impedimento. A tarefa consistia em dois textos, um re-latando o jogo e outro prévio com o ambiental da cida-de. O deadline para o final do dia da aterrizagem fez eu

Tríplice coroa da hicha do Millos: pedra de cocaína, símbolo da seleção colombiana e escudo do Millonários. Foto de Douglas Freitas.

O resto da cocaína na

narina, os cuchillos à mostra. Algo de pior poderia

ter passado comigo nessa serigrafia e ninguém ficaria

sabendo. Foto de

Douglas Freitas

Page 58: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 114 Sextante 2013.1 115

me aventurar até o famoso estádio Nemesio Camacho El Campín atrás de uma história.

Na tarde da quarta-feira, pré-jogo entre Milionários e Grêmio, ZZEUZZ seguia a rotina do seu sustento: vender ingressos, adesivos da torcida Blue Rain e ca-misetas da equipe colombiana. Desde os 10 anos de

idade, dedicava sua vida à barrabrava do Millos. Atu-almente, com 23 anos, é um dos líderes da hin-chada de Bogotá. Ele e muitos outros cambistas se concentravam a duas quadras do El Campín. A aglomeração para venda de entradas contras-

tava com a volta do estádio vazia. Somente funcio-nários preparando as imediações para receber a

multidão azul nesta quinta-feira e alguns tor-cedores da outra barrabrava, a Comando Azul, finalizando os preparativos para um grande

mosaico com a sigla CDLM (Club Deportista Los Millonarios), que tomou todas as arquibanca-das da parte norte.

Abordei Daniel, outro cambista e também membro da Blue Rain, e disse que era jornalis-ta brasileiro. Quis saber como eles estavam se preparando para a partida. ZZEUZZ foi chama-

do. Cúmplices, muito respeitosos, escutaram e propuseram o seu negócio. Dependendo da

informação, eu teria que pagar. Um jor-nalista argentino acompanhou a Blue Rain em alguns jogos no começo de 2012 e, por isso, desembolsou 200 mil pesos, um pouco mais de 100 dólares. Depois de algum tempo de conversa,

não dei o que pediram, mas tive que mentir. Eles só me convidaram para visitar

a sede da barrabrava quando disse que torcia para o Internacional, rival máxi-

mo do meu clube do coração.Estudante de Segurança Industrial,

ZZEUZZ ganha grana se virando com a venda de artigos do Millonarios. Em

geral, vivia para o Millos. Daniel, igual. Não estuda e não trabalha, quando

se vê mal de grana, deixa a barra um pouco de lado e

arranja um emprego de vendedor. “Conheço

muita gente, sem emprego eu não fico”, me disse. A sede da Blue Rain fica na La Cande-laria, região mais antiga de Bogo-tá, centro da ci-

dade, onde tudo acontece. Dentro

do ônibus e pelas ruas da cidade, me

bombardeavam de perguntas sobre as torci-

das do Brasil. Em loja qualquer, ZZEUZZ avistou uma camiseta lendária do Millos, era o manto de 1987, mo-mento glorioso na história do time, em que conquista-ram o Campeonato Colombiano pela penúltima vez. A última foi em 88. Desde lá, jejum total, não amenizado pela conquista da Copa Merconorte em 2001 e pela con-quista da Copa da Colômbia em 2011. Caminhando pelo centro de Bogotá, não sabia o que esperar da sede e ain-da receava ser assaltado por aqueles dois, afinal, estava rumando a um destino desconhecido quando nem sabia onde estava meu hostel. E ninguém sabia que eu esta-va ali. Por fim, entramos em uma serigrafia, onde só se vendiam produtos do Millonarios. Era a sede da La Pa-síon Millonarenxe, uma das 27 partes da barra: “A Blue Rain nasceu há 20 anos, em 1992, de uma separação do Comando Azul. Hoje, essas 27 partes da Blue se ajudam, vendem coisas, trabalham da maneira que podem para melhorar a barrabrava do Millos”. A LPMIXE, sigla de La Pasión, vende adesivos, serigrafias, camisetas. Erick, um dos que estavam trabalhando no local, contou que no último jogo contra o Guarani, do Paraguai, na segun-da fase da Sul-Americana, vendeu 200 adesivos a 1 luca (1000 pesos colombianos).

No trajeto até ali, Daniel parou para comprar maco-nha em La Candelaria, centro histórico da cidade. Per-guntei se todo mundo se drogava nas barras. “Sim, a grande maioria”. O consumo não é surpreendente, mas chama a atenção a quantidade e a glorificação que fa-zem dos narcotraficantes, que têm participação direta na história do Millonarios Futebol Clube. Gonzalo Ro-driguez Gancha, “El Mejicano”, narcotraficante colom-biano na década de 80, era um dos grandes do Cartel de Medellín e acionista do clube de Bogotá. É também um rosto comum nos trapos da hinchada azul e nas tatuagens pelo corpo dos torcedores. A grana que os traficantes investiram nos ti-mes fez com que a Colômbia concorresse com o Mercado Europeu e trouxesse muita gente boa para jogar aqui, como, no caso do Millonarios, Gilberto Funes, Goycochea, entre outros. Esse investimento de Gancha é, segundo ZZEUZZ e Daniel, o combustível direto dos títulos nacionais de 87 e 88.

Na sede da torcida, Erick e Camilo pro-duziam serigrafias para vender no jogo daquele noite. Uma das artes nas cami-setas, que vendem a 20 mil pesos, é a do argentino Funes, el Búfalo, que marcou os gols 3999 e 4000 da história do Millonarios. Durante todo o tempo, a pauta da conversa eram as brigas entre torcidas, com cada um relatan-do os casos mais marcantes de sua trajetória como hincha. Daniel e ZZEUZZ levam cica-trizes nas mãos e nos braços, causados pelos cuchillos (pequenas facas e canivetes). Também levam seus cuchillos nos bolsos e nas pochetes. Antigamente, os torcedores do Independiente de Santa Fé eram o alvo principal. Hoje, as duas hin-chadas possuem um código de não agres-são. Quem infringir está preso. Mas isso

não impede nada, segundo eles. Se cruzar com os do Independiente, o pau pega. “E tu, brasileiro, tem que estar com a câmera na mão para fotografar a fuga das garças (assim são chamados os torcedores do Santa Fé, por correrem demais)“, intimou Erick. Atualmente, o maior adversário de peleias é a torcida do Atlético Nacional, única que concorre com a do Millonarios em termos de público. Depois de mostrarem cicatrizes e fotos com facas, o destino era o centrão de Bogotá: o jogo da seleção estava por começar. ZZEUZZ ficou pelo caminho, precisava apresentar um trabalho na univer-sidade. Perguntei o que Camilo e Erick faziam. Camilo toca a serigrafia e Erick faz parrilladas, mas no momen-to está desempregado. Da mesma forma que ZZEUZZ e Daniel, vivem para o Millonarios.

Durante a partida entre as seleções de Brasil e Co-lômbia, festejamos juntos os gols. ZZEUZZ saiu da aula

e voltou para encontrar os amigos. Na despedida, perguntei como ia ser

a partida entre Grêmio e Millo-nários. “Nada de especial. Se

fizemos três gols no Palmei-ras, vai ser fácil seguir ago-ra”, respondeu. Nâo foi fá-cil, mas venceram! Aquele dia o Millonarios meteu 3x1 no time brasileiro. E, como

me adiantou, amanheceram comemorando em Santa Fé (a

Farrapos de Bogotá), com muitas cervejas, mulheres e cocaína.

"A alegria só é real compartilhada". A frase final do "Na Natureza Selvagem" martelava constantemente. Os dias que vivi sozinho na imensidão me sacudiram. Uma das pal-pitações mais latentes foi a relativização do agradável. Ter conhecido Cuba, viver um tempo em Caracas, estar desbravando a Guatemala, tudo é tão lindo, tão ir à es-sência, me conhecer. Porém, seria, no míni-mo, o dobro de sorrisos com uma companhia. Repudio à rotina em Porto Alegre, o desconhe-cido me encanta. Arrisco dizer que desbravar o mundo ao lado de alguém que eu amo é a maior felici-dade que eu possa sentir na vida um dia. A solidão aca-ba ensinando, e aprendi na marra. Qualquer contato, qualquer conversa, qualquer carinho, qualquer sorriso foram superfaturados. Era ótimo ter alguém ao lado. Como um amigo me disse, qualquer troca de informa-ções com um desconhecido na rua é quase motivo de abraço, tamanha a alegria. Clara Nunes canta que "a saudade é felicidade para quem sabe amar". À distân-cia, recebi lições de como amar de verdade.

Acumular milhas abre sorrisos, mas voltar é uma alegria constante. Porto Alegre me recebeu cheia de novidades nada novas. Tudo se transforma, mas nada muda. Durante um tempo, meu único compromisso era marcar cervejas com amigos, distribuir abraços e beijos.

E, como me adiantou, amanheceram comemorando

em Santa Fé (a Farrapos de Bogotá), com muita cerveja,

mulheres e cocaína.

A vagabundagem imperava bancada pelo suor deixado no exterior. Para quem mirava de longe, eu era o Ernes-to depois de uma piada de Alberto Granado. No fundo, a pequenez do mundo me sufocava aos pouquinhos, sem ninguém notar. Voltei para o Brasil com saudades do mundo.

Depois do mundo, o que me resta?

Já abri um cofre simbólico para financiar o passo seguinte. Em 2016, a intenção é caminhar meio ano, no mínimo, pelo Oriente. É o que ferve nas vísceras. Por trás disso, palpita forte a ideia de largar tudo para abrir um café na esquina de casa com a mulher amada ou lançar mais uma publicação romântica com o melhor amigo.

A escala é relativa, cada mapa só necessita de um norte para ser. A minha bússola estaria des-norteada sem o magnetismo do sorriso alheio.

Que o momento certo se atrase!

A alegria só é real

compartilhada.

Depois do mundo,

o que me resta?

Que o momento certo se atrase!

Page 59: Sextante 2013.1 - Independência

em algum maldito lugar

eu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um monte

eu to correndo um monteeu to correndo um monteeu to correndo um montequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longe

querendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longequerendo chegar longe

da ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegar

em algum maldito lugarda ideia de ter que chegar

em algum maldito lugarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegar

da ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegarda ideia de ter que chegar

em algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugarem algum maldito lugar

Por PriscilaMengue

História,luxo elembrançasA família Torelly e os casarões da Avenida

Independência

Page 60: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 118 Sextante 2013.1 119

"Um pouco surpreso viu que o filme não era bem 'Cleópatra, a rainha de César'. Havia algum

engano. Procurava observar a reação dos que se encontravam por perto, mas todos permaneciam

impassíveis. [...] Passava a ficha técnica sobre um fundo de um grande casarão de belas grades de ferro,

uma escada dupla que terminava na porta de entra-da, de madeira lavrada, quatro janelões de vidro trabalhados, dois de cada lado, a janela do sótão, um jardim florido. Por alguns momentos ele ficou

surpreso, reconhecendo cada grade, cada pilastra, as escadarias, todos os detalhes da casa da In-

dependência, que tapou o rosto com as mãos, apertou as fontes em desespero, aquela era a sua casa, a casa-grande do velho Quirino Borba Mortágua, o casarão onde Dona Eu-dóxia imperava com mãos de ferro. De re-

pente o nome do filme: 'Uma estranha vida' e quando os letreiros acabaram ele viu um meni-

no descer correndo a escadaria da frente, seguido logo de outro, pouquinha coisa mais velho, uma negra abriu a janela e gritou. [...] Suando, trê-mulo, meio tonto, confuso Camilo reconheceu-se naquele menino que fugia do outro, reconhe-

ceu no outro o seu irmão Aníbal, a casa era a sua, a negra velha era Siá Nora que seguia as ordens da

mãe Eudóxia ao pé da letra".("Camilo Mortágua", de Josué Guimarães)

Como no romance de Josué Guimarães, ela se referia ao local como "o casarão". Mais do que uma sim-ples referência ao local onde viveu durante 18 anos e frequentou quase que diariamente durante outras dé-cadas mais, o termo era uma espécie de síntese saudo-sista das memórias da juventude. E ia ainda um pouco além, "casarão" era praticamente um sinônimo de fa-mília, como se resumisse todo o amor que ela recebeu e partilhou com seus avós, pais, irmãos e amigos. "Todo

mundo fala do Casarão, é uma coisa muito presente, por incrível que pareça. Passaram-se os anos, e eu ainda lembro muito dele, mas eu vou te contar...".

Em meio a tantas mudanças estruturais na cidade, motivadas em parte pela Copa do Mundo, a mansão histórica localizada na Avenida Independência, número 453, não é mais a residência de uma das mais impor-tantes famílias porto-alegrenses do início do século XX. Desde os anos 90, a Casa Torelly abriga a Secretaria Municipal de Cultura. Em sua frente não passa mais o bonde, nem pessoas a cavalo, mas milhares de veículos. Segundo o historiador Sérgio da Costa Franco (autor de obras como Porto Alegre: guia histórico), a avenida começou a crescer expansivamente após a implanta-ção do transporte público, no caso, do bonde. Agora o contraste é evidente na movimentação das imediações, que é tamanha que resultou em uma decisão curiosa da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC): ao lado da Praça Júlio de Castilhos, o acesso que liga a Rua 24 de Outubro à avenida terá mão inglesa, para que motoristas (de veículos leves) possam ingressar na Rua Mostardeiro sem precisar fazer retorno. Criada como ponto de ligação à Aldeia dos Anjos (Gravataí), a via se tornou um ponto de acumulação do tráfego (principal-mente na hora do rush).

As mudanças não se restringem ao trânsito: po-lêmica antiga na cidade, o início do tombamento de prédios históricos não foi suficiente para salvar muitas construções. Por falta de cuidados, intensionais ou não, residências do início do século XX e do XIX deram lugar a estacionamentos, garagens e novos prédios, muitas vezes carentes do charme de seus antecessores. Há também as mudanças sociais, bastante presentes na fala de Elizabeth Bastos Duarte, neta de Firmino Torelly, o mais ilustre proprietário da mansão que hoje tem o seu nome.

Décadas após deixar o Casarão, Elizabeth lembra-se com carinho do local onde residiu do nascimento até os

18 anos. Construído no final do século XIX - para servir de moradia para o então Comandante do Terceiro Exér-cito, de acordo com as histórias da família - , a casa foi comprada por Firmino Torelly na primeira década do sé-culo seguinte. Por lá, o dirigente do Partido Libertador e figura importante da política gaúcha (apesar de nunca ter exercido cargo eletivo) criou doze filhos, oito deles frutos do primeiro casamento, com Albertina. Tempos após perder a esposa para uma doença contagiosa (pos-sivelmente varíola ou febre espanhola), o aristocrata se casou com Ernestina, com quem teve quatro filhas. Todas saíram de casa quando arranjaram marido, mas uma aguentou pouco tempo. Um ano após se casar com o capixaba João Batista Vieira Bastos, a caçula Lety re-tornou com o esposo para o Casarão, onde permaneceu até os anos 80 e criou seis filhos, dentre eles Elizabeth.

Filha primogênita, a hoje professora de semiótica na Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria diz, entre risos, que sempre foi a "neta preferida", apesar de não ter sido a primeira. Até o falecimento da avó, aos sete anos, ela dividia o leito com a familiar, que a enchia de mimos. Elizabeth lembra também de uma repreensão da avó, que mar-cou a sua infância. Quando tinha seis ou sete anos, ela permitiu que a menina realizasse um de seus maiores sonhos: sentar-se à mesa juntamente com os adultos em um almoço de domingo. Tradicionais, as refeições reuniam todo o clã envolta, exceto as crianças que eram

alimentadas na copa. Ao ter a sua grande chance, a jovenzinha falhou. "Achei um máximo, sentei lá no final da mesa, na pontinha, daí comi, comi, quando terminei, eu disse 'Ah, tô cheia'. Daí a minha vó me olhou assim, saímos eu e ela da mesa e ela disse uma coisa que eu nunca esqueci: 'Como estás cheia? Uma moça nunca come até ficar cheia e quando come tem a dignidade de não confessar", ri. "Eu nun-ca me esqueci disso", complementa.

A lembrança desse dia é uma das mais for-tes memórias da convivência com a avó, assim como o doce de leite "ao mesmo tempo escu-ro e transparente" que ela fazia. "Até hoje eu sonho com ele", completa. Logo após perder a avó - o avô morreu quatro anos antes -, Eli-zabeth começou a frequentar constantemen-te o sótão da casa. Com um misto de curiosidade e gosto pela transgressão, ela passava horas a ler as obras guardadas no recinto. Tratavam-se de livros que, por algum motivo, não ficavam nos escritórios. Grande parte deles eram obras que integravam a lis-ta do Index (proibidos pela Igreja Católica), tais como trabalhos de Gustav Flaubert e Victor Hugo. Sua mãe, muito religiosa, sempre implicava e reclamava para não mexer nas obras, o que só aumentava o interesse da garota. Até os 17 anos, o sótão foi seu local favorito

A Casa Torelly sedia a Secretaria Municipal de Cultura desde os anos 90 Foto de Priscila Mengue.

Page 61: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 120 Sextante 2013.1 121

na casa. Diante disso, a opção pelo curso de Letras faz muito sentido.

As lembranças não estão restritas, no entanto, a esses momentos. Grande parte de sua infância e juven-tude foram vividas no Casarão. Elizabeth estudava no Bom Conselho e frequentava estabelecimentos da re-gião, mas a maior parte de seu tempo era vivido dentro de casa, onde promovia reuniões dançantes e brincava com os amigos e primos. Apesar de não residirem no lo-cal, os demais netos de Firmino passavam os dias por lá, especialmente os que viviam nos sobrados laterais, que também pertenciam ao avô. Mas nem com todos foi assim. Neto do primeiro casamento de Firmino, Nes-tor Torelly Martins é filho de Albertina, falecida pouco tempo após o seu nascimento. Segundo ele, enquanto o avô esteve vivo, as idas ao casarão eram frequentes. Depois, as relações entre as famílias do primeiro e do segundo casamento do avô ficaram mais distantes. Da-quela noite ele tem poucas lembranças, pois foi impedi-do de assistir ao funeral. No entanto, recorda que houve uma grande movimentação na rua, atraindo dezenas de pessoas.

Após a morte dos avós, os pais de Elizabeth com-praram a residência dos demais herdeiros. E por lá Lety residiu até meados de 1980, quando decidiu fazer um acordo com a Prefeitura, em que trocou o Casarão por títulos imobiliários. Anos antes, seu marido já havia dei-xado a residência, após se divorciar. Segundo Elizabeth, a mãe tinha uma ligação muito grande com o prédio,

tanto que periodicamente o visitava. Só abandonou o hábito aos 87 anos, quando passou a utilizar cadeira de rodas para se locomover. "E, de certa forma, ela conse-guiu transmitir esse amor pelo Casarão para gente. Ela só se desfez da casa porque não tinha mais como man-tê-la, pois sentia muita falta de lá", acrescenta a filha.

Nem todo o espaço original da mansão foi conser-vado, pois terrenos anexos e parte do quintal foram comercializados. "O Casarão era uma chácara no meio da Independência, ia até a Vasco da Gama (Irmão José Otão) e tinha uma saída para a Barros Cassal. Naquela época, tinha cavalos, pomar, galinheiro, até uma ca-bra!", lamenta Elizabeth. O quintal agora se restringe a um pequeno pátio, que abriga uma área com churras-queira e mesa, usufruídos de forma eventual. O restan-te do antigo terreno é ocupado por construções, inclu-sive uma quadra de futsal e uma piscina pertencentes a um condomínio. Segundo Nestor, que é arquiteto e já lançou um livro sobre o Solar Lopo Gonçalves, o prédio tinha um estilo neoclássico de província. Trata-se de uma variação menos elaborada da arquitetura que era moda no Rio de Janeiro durante o século XIX, até mea-dos dos anos 1870. Algumas características em comum eram a grande quantidade de andares (com a presença de porões e sótãos) e a ornamentação do espaço com detalhes tipicamente clássicos ou renascentistas, como o anjo que fica sobre a Casa Torelly.

Com quatro andares, o Casarão abrigava cerca de 10 criados, que cuidavam das crianças, cozinhavam, lim-

pavam, arrumavam e o que mais fosse necessário. De uma forma "quase feudal", como denomina Elizabeth, os empregados eram estabelecidos em alas no antepiso e seguiam regras de convivência, como utilizar um ba-nheiro exclusivo. além de seguir estritamente as ordens dos patrões. "A minha vó acordava de manhã, tocava uma campainha que tinha em cima da cama dela e dava as ordens", comenta Elizabeth. Todavia, de forma para-doxal, a senhora também tinha uma relação um pouco maternal com as jovens - que geralmente eram trazidas de Torres, onde a família veraneava. Quando as empre-gadas apareciam com pretendentes, a patroa ia direta-mente falar com eles "A minha vó, de forma muito séria, olhava para os rapazes e perguntava: 'Quais são as suas intenções?. Para ela, o casamento era o evento mais im-portante da vida de uma mulher", relembra.

Além das três saídas para a rua, o Casarão tinha por-tas secretas que se conectavam às casas laterais, que também eram do avô. Havia ainda um alçapão, que descia para o antepiso. Dizem que amigos de Firmino fugiram de prisões decretadas por Getúlio Vargas por meio dessas passagens secretas. Ao todo eram quatro andares: o sótão, o térreo (onde ficavam todos os quar-tos da família, a sala de recepção, o banheiro e a cozi-nha), o antepiso (onde ficavam os empregados e outras peças) e o porão (que tinha umas janelas e gradezinhas que davam para a rua, pelos quais vendedores, como o de lenha, entregavam encomendas).

Em meio a tantos cômodos e segredos, investigar o Casarão era uma das brincadeiras preferidas das crian-ças. Elizabeth, os irmãos e os primos mexiam nos ar-mários e gavetas espalhados por todos os cantos, ves-tiam-se com roupas de adultos e fantasiavam-se. Certo dia, encontraram um cofre. Depois de muito mexer, mesmo sem saber a senha, conseguiram abrir o objeto, para desespero da mãe. As jóias que o artefato guarda-va pertenceram à primeira esposa de Firmino e foram guardadas porque todos tinham medo de pegar a do-ença que a matou. "A minha mãe ficou apavorada, dizia 'Não toque, não toque, largue isso'.", relembra. Nestor também comenta que o avô tinha um riquíssimo acervo fotográfico, que registrava diversos eventos históricos, como a Revolução Liberalista, o qual teve destino incer-to, além de uma das mais importantes coleções de mo-edas brasileiras raras.

O mobiliário da casa reunia móveis e objetos feitos sob encomenda ou comprados no exterior, como o con-junto de porcelana francesa que ela guarda em casa e os talheres de prata grafados com o nome do bisavô Horácio, hoje emoldurados e expostos na parede. Após a venda do Casarão, os móveis foram distribuídos entre familiares. A maioria foi disposta nos dois apartamen-tos que a mãe adquiriu para viver junto com os filhos mais novos. Elizabeth optou por ficar apenas com dois móveis: uma mesa utilizada como escrivaninha e uma peça com um grande espelho horizontal e algumas

O Casarão fica em frente a outra residência histórica, a Casa Godoy Foto de Priscila Mengue.

Os lustres são um dos poucos resquícios da decoração original Foto de Priscila Mengue.

Page 62: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 122

gavetas. No entanto, os dois móveis mais re-presentativos do avô foram vendidos para um antiquário que, tempos depois, fechou. Eram poltronas altas de madeiras, com um design que lembrava quase tronos reais, atrás eram

dispostos detalhes com madrepérolas e um me-dalhão com as inicias FT.

Sempre cheio, o Casarão era um ponto de encon-tro da alta sociedade da época. Proprietários de outra

construção histórica, os Godoy sempre os visitavam, assim como Leda Collor (filha do ex-ministro Lin-dolfo Collor, mãe do ex-presidente e melhor amiga de Lety) e outras tantas famílias tradicionais. Se-manalmente, eram promovidos saraus e rodas de

chorinho e samba que, com o tempo e, segundo Eli-zabeth, a chegada da televisão, escassearam

até findar. Além disso, a porta de entrada estava sempre aberta, era "comum" que co-nhecidos passassem por lá, tomassem um café na entrada (onde sempre tinha uma

chaleira pronta) e fossem embora. "Tempos depois, elas encontravam os meus avós ou os

meus pais e diziam: 'Olha, eu passei aí ontem, mas não tinha ninguém'. Que dizer, é uma coisa que não existe mais", relembra.

A ligação com o Casarão não está presente somente em lembranças. Logo na entrada da

casa de Elizabeth, há um moldura com um pôs-ter da Casa Firmino Torelly. Ao explicar aspectos da

casa, vira e mexe ela se levantava do sofá e ia até o quadro mostrar onde ficava o cômodo a que ela se referia. Na parede oposta, estão expostas

fotos dos avós e da infância na casa, sem contar as outras tantas fotografias guardadas no armário.

Dentre elas, destaca-se a da reinauguração do Casarão, em que Elizabeth discursou juntamente do então pre-feito (Tarso Genro). Apesar de ter participado do even-to, ela não costuma ir ao Casarão. "Quando eu entro, eu me perturbo um pouco", trata-se, afinal, de muitas lembranças reunidas ao mesmo tempo que há um es-tranhamento do interior agora repleto de um mobiliá-rio burocrático, que se distingue de forma evidente em meio aos lustres e detalhes arquitetônicos.

Já Nestor costuma frequentar mais o Casarão, não exatamente por opção. Como membro do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico Cultural, ele se deslo-ca para lá uma vez por semana para participar das reuni-ões. Assim como a prima, ele acredita que o tempo que frequentou o Casarão influiu, de certa forma, em sua escolha profissional. Talvez o olhar do menino que ia vi-sitar o avô em uma mansão antiga tenha permanecido nos momentos em que escolheu estudar prédios anti-gos da Capital. Ele, no entanto, lamenta o uso ostensivo do prédio pela Secretaria. Isso porque a grande quanti-dade de frequentadores e os inúmeros aparelhos de ar condicionado, dentre outros fatores, contribuem para a degradação do piso, da pintura e outras características importantes do local. Segundo Nestor, a melhor opção seria implantar um centro cultural no prédio, apesar de estar descaracterizado sem a mobília original.

Quando jovem, Elizabeth queria mo-rar em um prédio moderno, assim como as colegas. A consciência da relevância do local onde vi-veu surgiu apenas anos depois. Não é à toa, que, nos períodos em que residiu na Capital, sempre permaneceu muito próxima do prédio. Após se divorciar, decidiu mudar-se para um dos dois apartamentos da mãe - que seria alugado, pois todos os filhos se casaram e saíram de casa - localizados na Rua André Puente, a alguns metros do Casarão.

Não só nas lembranças a casa se mostra pre-sente. Para Elizabeth, ter morado na casa Torelly foi um fator importante na sua vida. "Eu acho que eu trouxe uma coisa importante do Casarão, que é a forma em que eu me posto no mundo, sem desistir ou me inferiorizar". Mais do que isso, o prédio da Independência, número 453, é uma re-ferência frequente na memória da neta preferida de Firmino e Ernestina. "Até hoje, quando eu estou muito preocupada, muito angustiada com alguma coisa, eu durmo e sonho que estou no Casarão. daí eu começo a procurar e descubro portas se-cretas. Quer dizer, eu descubro soluções para os meus problemas quando vasculho as mi-nhas memórias do Casarão", finaliza.

AntunesFotos

Brunade

Page 63: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 124 Sextante 2013.1 125

Page 64: Sextante 2013.1 - Independência
Page 65: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 128 Sextante 2013.1 129

Page 66: Sextante 2013.1 - Independência

Sextante 2013.1 130 Sextante 2013.1 131

Page 67: Sextante 2013.1 - Independência

Aline Bernardes - [email protected] Viana - [email protected] Antunes - [email protected] Semensato - [email protected] Maccari - [email protected] Freitas - [email protected] Fassina - [email protected] Sanseverino - [email protected] Calegari - [email protected] Duarte - [email protected] Soares - [email protected] Porto - [email protected]

Redação

Comissão EditorialAline BernardesBruna AntunesDouglas FreitasPaola de OliveiraPriscila Daniel

Projeto Gráfico e diagramaçãoGabriela Sanseverino

Professor responsávelWladymir Ungaretti

EXPEDIENTEIsabel Waquil - [email protected]éssica Trisch - [email protected]úlia Endress - [email protected] Schröder - [email protected] de Oliveira - [email protected] Veloso - [email protected] Daniel - [email protected] Mengue - [email protected] Pechansky - [email protected] Castro - [email protected] Amado - [email protected] Cruz - [email protected] Ungaretti - [email protected]

Page 68: Sextante 2013.1 - Independência

eu caiocomo um raioque na verdade

não cai

quem conta a verdadesobre a qualeu construo

minha realidade?