seu pequeno sapatinho vermelho

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Seu pequeno sapatinho vermelho A xícara de café estava na mesa. O aroma tomava conta da sala. Mesmo com a porta escancarada, a fumaça quente e aconchegante formava um belo dueto com a luz. Em cima de minha mesa eu deixava uma foto do meu pai. Getulio. O herói dos quadrinhos de minha vida. Um herói que deixou como herança para seu filho sua pequena loja de sapatos. Ele concertava, fazia e seus pisantes enfeitavam a maioria dos bailes de gala da cidade. Meu sonho era ser alfaiate, mas a vida apenas me permitiu um pouco abaixo. Segui o rumo de meu pai, que veio a falecer quando eu ainda nem tinha dado a minha primeira costurada em um sapato qualquer. Foi um dia de chuva. Ele havia saído para comprar pão. Fiquei em casa cuidando de minha mãe que havia operado o baço. Senti-me entre a cruz e a espada pois a padaria ficava longe e meu pai estava ruim das cadeiras, lento como um cágado.

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Page 1: Seu pequeno sapatinho vermelho

Seu pequeno

sapatinho vermelho

A xícara de café estava na mesa. O aroma tomava

conta da sala. Mesmo com a porta escancarada, a

fumaça quente e aconchegante formava um belo

dueto com a luz. Em cima de minha mesa eu

deixava uma foto do meu pai. Getulio. O herói dos

quadrinhos de minha vida. Um herói que deixou

como herança para seu filho sua pequena loja de

sapatos. Ele concertava, fazia e seus pisantes

enfeitavam a maioria dos bailes de gala da cidade.

Meu sonho era ser alfaiate, mas a vida apenas me

permitiu um pouco abaixo. Segui o rumo de meu

pai, que veio a falecer quando eu ainda nem tinha

dado a minha primeira costurada em um sapato

qualquer.

Foi um dia de chuva. Ele havia saído para comprar

pão. Fiquei em casa cuidando de minha mãe que

havia operado o baço. Senti-me entre a cruz e a

espada pois a padaria ficava longe e meu pai

estava ruim das cadeiras, lento como um cágado.

Page 2: Seu pequeno sapatinho vermelho

A noite se esvaiu e a vermelhidão da madrugada

tomou conta dos céus. Ele não havia chegado. A

chuva torrencial como nunca. O telefone tocou.

Era da policia. Meu pai havia sido encontrado

estirado ao chão com o pescoço deslocado após

um motoqueiro o atropelar e não dar socorro. Foi

um tiro no meu coração de nuvem. Mas como

havia prometido à ele: segui sua profissão e tentei

manter a fama do seu Bazar.

Doze anos depois um primo que morava na capital

fez uma visita. Ricardo era o filho mais rico da

família. Sua humildade era tão de ouro quanto sua

herança. Ainda bem. Ele acabou por patrocinar

minha pequena loja e fez a marca crescer como

um feijão no algodão. Passamos a ter clientes mais

assíduos. As vendas eram tão constantes que mal

entregávamos um pedido e outros três já estavam

em nossa bancada. Tive de contratar empregados.

Antes era apenas um pequeno cubículo

enturmado em todos os cantos pelos sapatos.

Precisaríamos de ao menos um prédio de dois

andares. Providenciamos. Precisávamos também

de uma modelo para nossos produtos. Pedi a um

amigo editor gráfico para fazer um cartaz

chamativo para colar na porta do estabelecimento.

Page 3: Seu pequeno sapatinho vermelho

Queria que minha sala ficasse na entrada. Adorava

a receptividade e entregar meu sorriso aos

clientes. Não me desfiz da mesa que meu pai

arquitetou junto de meu avô. Era madeira cara.

Nunca me falou de onde. Quando perguntava ele

resmungava e mandava eu parar com frescuras.

Montei tudo como antigamente. A foto do meu

velhinho na quina, principalmente. Abrimos a nova

loja em Março. Em Abril já éramos estouro de

vendas. Incrivelmente. Mas nada de encontrarmos

a modelo.

Um dia fiquei até mais tarde para terminar o

serviço de uma madame da Vila Berline. Ela

pagaria caro, o que fez com que engordasse meus

olhos com os zeros no cheque que ela deixou. Já

era tarde da noite. As nuvens já estavam rosadas e

o céu azul poluía-se em negro. Estava de cabeça

baixa. Namorava o vai e vem da linha preta de

costura. Meu silêncio apaixonante foi

interrompido por uma mulher. Ela já chegou

despejando um par de sapatos vermelhos em

minha mesa. Nem se deu a honraria de se

apresentar. Ela tinha um rosto inexpressivo. Seu

olhar parecia descolorido, os sentimentos

pareciam ter saído a passeio. Suas roupas eram

largadas. Assim como seu cabelo, que diga-se de

Page 4: Seu pequeno sapatinho vermelho

passagem parecia uma cachoeira de lisos e negros

fios que faziam ponte para olhos cor de jabuticaba.

Mas eram jabuticabas sem brilho. Sem contar um

pingente estacionado entre as montanhas dos

seus seios. A moça interrompeu o meu devaneio.

- Quanto fica para arrumar esses sapatos?

- O que está acontecendo com eles?

- Ele descosturou em boas partes e queria dar uma

refinada no seu brilho e na tonalidade.

- A uma primeira analise eu apenas te cobraria que

se assentasse.

- Obrigada, odeio ficar em pé. – disse assentando-

se de uma forma não muito elegante.

- Que mal lhe pergunte, moça que não sei o nome,

você trabalha com o quê?

- Atualmente eu só estudo, alias, finjo, está tudo

muito chato. Os livros são meu travesseiro. E a

propósito: meu nome é Renata, moço que não sei

o nome.

- Daniel, prazer. – disse esticando a mão para

cumprimentá-la. – Você chegou a ler o anuncio

que estava ali na porta?

Page 5: Seu pequeno sapatinho vermelho

- Sobre vocês estarem procurando por uma

modelo?

- Esse mesmo.

- Sim. Por acaso você está achando que eu tenho

capacidade para isso? Eu acho que não.

- Quando você entrou eu imaginei que era para se

candidatar. Por mim o cargo é seu. Estamos há

quase dois meses procurando e sem sucesso.

Precisamos agilizar o serviço. A agência de moda

que fechou conosco quer ver logo nossos sapatos

em suas estampas e nas próximas revistas.

- Estou muito indecisa ultimamente. Não sei se

aceito esse trabalho. Porém por outro lado eu

acho que seria uma boa. Não tenho saído com

minhas amigas, a minha vida está um porre.

- Garanto que se aceitar nossa oferta o que não vai

faltar é agitação em sua vida.

- Mas vai ser assim? Eu chego e já ganho o cargo?

E se outras mulheres mais lindas que eu

aparecerem?

- Se te escolhi, é porque valorizei sua beleza.

Mesmo com esse olhar sem vibração. Precisamos

Page 6: Seu pequeno sapatinho vermelho

de alguém o quanto antes. Estamos fechados

então, Renata?

- Fechados. – disse apertando minha mão e sem

nem ter piscado um segundo durante a entrevista.

Imaginei que ela pudesse estar acesa demais ou

então muito atenta ao que dizia.

Preferi entregar a caneta e o contrato para que ela

assinasse. Ela teria que vir diariamente à loja para

que fizéssemos as medidas e analisássemos qual

seria o tom de sapato que mesclasse com seu

corpo cor de chocolate.

O que mais me entristecia era o cheiro de

desanimo que Renata exalava. Ela parecia não ter

conhecimento da sua má vontade, mesmo isso

soando como um paradoxo. Aliás, ela era um

paradoxo. Não conseguia decifrá-la em nossa

convivência. Mas o que me chamava atenção era

sua simplicidade e sorriso fácil. Aquela parede

branca que refletia luz entre seus lábios carnudos

estremecia minhas pernas. Como chefe, tinha de

me manter autêntico e ético. Não poderia flertar

com aquele pequeno bombom dentro das nossas

condições de trabalho, mesmo tendo ciência do

longo tempo sem ser apertado por um abraço

feito uma camisa de força. Minha boca parecia

Page 7: Seu pequeno sapatinho vermelho

uma caverna dominada por teias de aranha. Sentia

saudades de ter alguém para mim. Ter lábios para

vasculhar e degustar nos momentos que sentisse

fome de amor.

Renata salientou sobre seus sapatos vermelhos

que enrolava para concertar. Me cobrava direto

por eles pois de alguma forma eles representavam

muito para ela. O fiz em pouco tempo para

satisfazer a Cinderela. Mas cobrei que algum dia

sentássemos para tomar um café e ela me

contasse a história daquele sapato.

Com o passar dos dias Renata se mostrava mais

presa a idéia de ser nossa modelo, entretanto eu

observava que ela não saía. Ela se isolava do

mundo. A beleza dela ficava escondida nos

escombros dos sapatos. Talvez o plano dela me

contar sua história seria tão complicado quanto

um Cubo de Rubik. Houve uma sexta-feira em que

ela ficou na loja até mais tarde escorada num

canto abraçada aos joelhos e balançando seu

sapato vermelho. Os olhos pareciam em outra

dimensão, em outro mundo que ela parecia querer

visitar sem sair do lugar. Mas sem sucesso. Evitei

retirá-la do seu momento e apenas encostei minha

cabeça na parede e a apreciei de longe. Havia

Page 8: Seu pequeno sapatinho vermelho

alguma história tão forte quanto suas pálpebras

que custavam se fechar. Eu precisava saber sobre

aquilo. Pensei em pedi-la para chegar mais cedo

sem avisar que seria para conversarmos. Qualquer

presença dos outros funcionários poderia acanhá-

la e as verdades ficariam presas naquele

reservatório misterioso.

Na manhã de uma quinta-feira, onde o dia estava

tão cinza quanto os olhos de Renata, cheguei mais

cedo e aguardei por ela. Ela demorou chegar,

assim como fez em toda semana abusando dos

atrasos. Relevei.

- Que estranho, a loja está abandonada hoje. Bom

dia, Daniel.

- Bom dia, Renata. Sim, está abandonada porque

eu pedi aos rapazes para chegarem mais tarde e

queria que você chegasse mais cedo. Precisamos

conversar. Assente-se.

- Já sei, estou demitida? Eu já imaginava. – disse se

levantando e praticamente não dando a mínima e

não demonstrando ressentimento qualquer.

- Não, de maneira alguma. Eu fiquei curioso para

saber a história desse sapato vermelho que você

não larga de jeito nenhum.

Page 9: Seu pequeno sapatinho vermelho

- Que história? Ah, sim, a história. Olha, não sei.

Talvez seja tediosa demais. Você não vai querer

saber. Deixa para lá.

- Se esquematizei essa manhã só para isso, eu

imagino que meu interesse seja enorme. Conte-

me. Estou a ouvidos.

- Ajeite-se porque a história é um pouco longa.

“Em minha casa moram eu, minhas duas irmãs e

meu pai. Minha mãe faleceu quando esteve

prestes a ter minha 3ª irmã. Não suportou o parto

dias após a difícil cirurgia. Idem para o pequeno

anjo que nem conheceu as cores do mundo.

Crescemos sendo donas de nossas

responsabilidades. Minha irmã mais velha diz que

o coração de meu pai era tão macio quanto uma

maria-mole, mas depois da morte de minha mãe

aquele pequeno doce se petrificou. Era difícil vê-lo

sorrir. Ele tinha minha mãe como um abajur para

iluminar em horas escuras. Nos momentos em que

ele fugia de si e deixava a raiva imperar por ter de

espantar os namoricos de minha irmã, minha mãe

se responsabilizava por ser o amaciante daquele

velho ciumento. Acabou que crescemos em meio a

depressão de meu pai e sem termos o pedestal de

força para guiarmos nossas vidas.“

Page 10: Seu pequeno sapatinho vermelho

“Por sorte minhas irmãs mais velhas eram sóbrias

com o mundo e souberam lidar com o fato de que

a morte de minha mãe não significava o

extermínio de nossos futuros. Betânia, a mais

velha, completou o ensino médio e tentou um

concurso público na prefeitura da cidade.

Conseguiu. Mas era pouco tanto para sustentá-la

quanto para sustentar a todos nós. Principalmente

meu pai que já adormecia nos braços da

depressão. Betânia felizmente nasceu com uma

voz maravilhosa e foi convidada para fazer parte

de um grupo de cantores que se apresentavam às

terças e quintas por toda a cidade e retiravam um

bom dinheiro com os espetáculos. Ela

praticamente não vivia em casa, mas era um

sacrifício ponderável. Poliana, a irmã do meio, era

tão preguiçosa quanto um pingo de chuva

escorrendo da ponta até a raiz de uma sequoia. A

única coisa que se importava era em cuidar do

meu pai, praticar seu boliche e vender produtos

cosméticos na porta de nossa casa. Por ainda ser

nova ela não podia concorrer no mercado de

trabalho. Mas o pouco que retirava mensalmente

já era suficiente para bons sacos de arroz.”

“Mas o problema que persistiu em minha família

foi de minhas irmãs terem encontrado o outro

Page 11: Seu pequeno sapatinho vermelho

pedaço de suas laranjas e de certa forma terem

me abandonado inexperiente em minha vida. Eu

acabei crescendo isolada e sem ninguém para

dizer no canto de meus ouvidos o que era certo e

o que era errado. Passei a ser uma espectadora do

meu pai deitado em sua cama o dia todo

encarando o infinito branco do teto com os olhos

paralisados. A escuridão do quarto lambia meus

pesadelos e fazia eu me sentir mais presa à

vontade de não viver. Isso se intensificou ainda

mais quando Betânia agarrou as malas e se mudou

para Joinville com seu marido sem deixar nenhum

cartão postal. Porém Poliana encontrou seu pote

de ouro no fim do arco-íris. Por ser uma ótima

jogadora de boliche, ela encantou os olhos de

treinadores da cidade e foi convidada para um

evento internacional. Lá ela foi bronze, mas voltou

com o ouro que se chama George. Dono de um

parque aquático e de uma creche que atende

apenas a crianças portadoras de necessidades

especiais. Ele era o seu parceiro de time e

acabaram se apaixonando quando George deixou

o ultimo pino para Poliana realizar o strike, tudo

isso numa visão mais romântica da coisa. Mas

felizmente ela ficou na cidade. Não abandonou sua

irmã e seu pai. Sabia que precisávamos uns dos

Page 12: Seu pequeno sapatinho vermelho

outros. George passou a nos ajudar

financeiramente.”

“Com o passar dos anos Poliana teve sua primeira

filha e eu ainda nem havia estreado meu primeiro

namoro. Convivi durante muitos anos com a

solidão e não consegui desatar nossa aliança.

Busquei refúgio no meu esporte favorito: tirar

fotos. Meus olhos detalhistas me fizeram ser das

coisas que o mundo ignora. Não saía e nem me

entregava aos braços de ninguém. Me isolava no

aconchego de meus flashs. Minha rotina era

estudar de manhã, ajudar minha irmã no almoço e

alimentar meu pai que já respirava com ajuda de

aparelhos e tinha o corpo sucumbido pelo

derrame. À tarde eu dava uma escapulida e ia

visitar meu lugar favorito na cidade. Fica num

bairro isolado num morro inclinado e desgastante

aos pés. Lá fica um vasto campo povoado por uma

belíssima vista que acampava minha alma solitária.

Às vezes apareciam alguns bichinhos para colorir o

espaço e eu não perdia tempo e os eternizava em

minhas fotos. Mas minhas visitas se tornaram tão

rotineiras, que num dia percebi o que parecia ser

uma pequena corda brilhante indo em direção ao

mato. Decidi pegá-la.”

Page 13: Seu pequeno sapatinho vermelho

“A corda estava agarrada a alguma coisa um pouco

pesada. Puxei mais forte. Para minha surpresa,

veio junto dela uma caixa. Abri. Lá dentro havia

um par de sapatos vermelhos. Dentro de um deles

havia um bilhete. “Aceita sair comigo e usar esses

lindos sapatos?”, dizia. Na hora me assustei. Olhei

ao redor. Não havia ninguém. Quando fiz o

movimento para colocar a caixa no chão, uma voz

bem calma sussurrou em minhas costas.

- O que achou do meu presente?

- Me desculpa, mas quem é você?

- Digamos que sou o cara que lhe deu um

sapatinho vermelho.

- Você está me assustando.

- Calma, princesa. Para falar a verdade eu trabalho

ali ao lado. Sou jardineiro e amigo dessas

florzinhas e desse gramado. Vi que a senhorita

frequenta esse lugar diariamente. Queria conhecer

a mais nova amiga de minhas amigas.

- Pra falar a verdade aqui é meu santuário de paz.

Mas eu nunca o vi por aqui.

Page 14: Seu pequeno sapatinho vermelho

- Eu sempre estive aqui. Talvez seja porque você

ama o que faz e se isola do mundo ao redor.

- É mais ou menos isso. – disse olhando para o

horizonte.

- Mas você não respondeu a pergunta do meu

bilhete, querida fotógrafa.

- Talvez num outro dia eu te responda. E no dia

que responder eu talvez leve essa caixa, gostei

desses sapatos e parecem caros. – disse saindo e

entregando para o rapaz que nem procurei saber o

nome.

Fiquei intrigada e ao mesmo tempo assustada.

Parecia que ele era algum tipo de perseguidor e

estava esperando alguma oportunidade para dar o

bote. Surgiu do nada oferecendo sapatos

vermelhos e ainda de quebra me chamou para

sair. Bizarro. Mas para minha surpresa não havia

nada de bizarro ali. Depois daquele dia ele passou

a conversar mais comigo. Colhia algumas plantas e

flores e me entregava. Citava músicas com letras

de agarrar na mente. Sem contar que transmitia a

ótima imagem de ser um cara bem romântico, só

que não muito clichê. Acabou que num dia eu

Page 15: Seu pequeno sapatinho vermelho

perguntei pela caixa e a levei para casa. Aceitei o

convite.”

“Não sentia vontade de sair, mas Juliano prometeu

me levar a um lugar surpreendente e eu não podia

recusar. Combinamos de nos encontrar num

domingo à tarde. Ele me pediu para que esperasse

na estação de trem que dali iríamos até onde havia

prometido. Ele não remediou em se vestir bem.

Nem parecia aquele Juliano todo abarrotado de

terra e com cheirinho de grama molhada. Disse

que amava camisa xadrez e nesse dia usava uma

com azul, preto e branco embaralhados. Quem o

visse pensaria que ele me acompanhava até uma

quadrilha. Juliano pediu permissão para pegar em

minha mão e me guiar até o lugar até então

misterioso. Para minha surpresa era ali onde

combinamos de nos encontrar. Juliano deu três

batidas na porta da estação de trem e um senhor a

abriu. Lá dentro parecíamos estar visitando

alguma estação de Londres. Cores mais cinzas, o

trem estacionado e bem encerado em suas

camadas pintadas de vermelho. No saguão um

jovem rapaz nos esperava. Ele se vestia mais ou

menos como Charles Chaplin, mas sem a

maquiagem no rosto e ele falava. E como falava.

Pediu para que assentássemos num pequeno

Page 16: Seu pequeno sapatinho vermelho

banco e acompanhássemos sua apresentação. Foi

uma das coisas mais lindas que pude acompanhar.

Ele e mais duas moças que surgiram de trás dos

vagões apresentaram uma peça romântica e leram

algumas poesias para nós. Há tempos não ria e

sentia tanta felicidade em minha vida. Até sugeri a

Juliano que congelasse aquele momento para toda

eternidade. Depois que se apresentaram, saímos

da estação e Juliano me levou até meu santuário

de paz. Ainda não entendia o motivo, mas quando

chegamos lá ele novamente retirou uma caixa do

meio dos arbustos. Pediu para que eu a abrisse. Lá

dentro havia um coração feito de cartolina

vermelha mas cortado exatamente no centro o

dividindo em duas partes. Juliano pegou uma e

disse:

- Renata, aceita ser minha outra parte?

Engoli em seco e esbocei pequenas lágrimas, mas

não fraquejei na resposta.

- Sim, eu aceito. – disse pegando a outra parte,

colando junto à dele e lhe dando um beijo.

Depois daquela noite iniciamos um romance

intenso. Juliano passou a ser o reflexo de luz na

escuridão de minha alma. Nosso amor vencia a

Page 17: Seu pequeno sapatinho vermelho

intensidade da difícil rotina e amassava como se

fosse uma folha de papel qualquer tipo de

decepção. Foram longos três anos seguindo essa

maré que nos guiava até os céus. Eu vivia num

planeta da felicidade e queria que destruíssem a

nave que pudesse me levar de volta àquela terra

que vivia. Mas nunca na minha vida eu imaginaria

que um ditado pudesse fazer tanto sentido: “nem

tudo na vida são flores”. Juliano desapareceu sem

informar para a família, os amigos e

principalmente para mim. Acabei me perdendo de

mim mesma e qualquer navalha que aparecesse

eu já queria espetá-la em meu coração de balão.

As minhas lágrimas salgavam meu rosto e os

cantos de minha casa eram minha moradia. A

única coisa que me importava era saber quando e

como Juliano reapareceria. Eu frequentava todos

os dias meu santuário de paz para ver se ele

aparecia. Mas nunca o fazia. Sete meses depois eu

me rendi ao golpe massacrante da vida e já não

aguentava olhar mais para aqueles sapatos

vermelhos. Numa histeria os peguei e lancei forte

contra a parede. Chutei como se fosse uma bola

de futebol americano. Arremessei contra o fogão

aceso e o mordi feito um osso. Quando me

controlei, vi que nada daquilo valia a pena. Nada

daquilo traria Juliano de volta. E aquele pequeno

Page 18: Seu pequeno sapatinho vermelho

sapato era a única parte dele que ainda restava

comigo.

“Por isso vim até aqui para concertá-lo. Concertar

um pedaço do meu coração. Concertar a pequena

memória e pequena parte que ainda resta de

Juliano em mim.”

Uma história que criou uma barragem no rio das

minhas palavras. A partir daquele momento eu

comecei a entender um pouquinho daquele lindo

vaso vazio que era Renata. Mas por incrível que

pareça, depois de toda uma forte história ela não

chorou e não mostrou sentimento. Fechou um

pouco as pálpebras e perguntou se poderia ir para

seu recinto experimentar alguns modelitos novos.

Ainda que me faltasse alguma reação ou algo para

confortá-la, decidi que era melhor deixá-la ir.

Todavia eu precisava reanimar aquele coração

murcho. Escolhi sugerir que a levasse em casa. No

caminho poderíamos conversar e quem sabe eu

ver de perto todo esse cenário fúnebre que ela

contou.

A casa de Renata não ficava muito longe. Segundo

me descreveu, ela tinha uma bela fachada na porta

de entrada. Flores lindas plantadas por Juliano.

Dois pequenos pés de coqueiros davam o ar de

Page 19: Seu pequeno sapatinho vermelho

praia na entrada. E também havia uma escada

infestada de cristais brancos e brilhantes. Não

seria difícil reconhecê-la. Durante boa parte do

caminho Renata encarava o chão e preferia o

silêncio. Eu também. Mas decidi iniciar a conversa.

- Eu queria mesmo era saber algo que pudesse

preencher esse vazio que há em você, Renata.

- Não adianta, esse vazio já tomou conta de mim.

- Imagino então que você precise de outra coisa

para tomar conta de você.

- Que outra coisa?

- Um alguém. Sei que nessa vida é difícil

esquecermos quem já amamos, mas só

conseguimos seguir em frente substituindo o

passado.

- Que nada. Não tenho capacidade para isso.

- Se teve capacidade para enfrentar toda essa

dificuldade, encontrar um novo amor será a coisa

mais fácil desse mundo.

- Aos olhos dos homens sim, aos meus não.

Page 20: Seu pequeno sapatinho vermelho

- Desde quando começamos a trabalhar eu já te

entendia como um grande desafio, sabia, Renata?

- Eu? Um desafio? Como assim?

- Você parece uma colcha de retalhos de

decepções que nunca encontrou alguém para

tentar recosturá-la.

- Para falar a verdade eu acho que convivi demais

com o meu pai e absorvi o medo da perda. Poderia

encontrar um amor, mas perdê-lo e ficar como ele

não é lá o melhor plano de vida.

- O medo da perda só nos tira as chances de ser

felizes. Você deveria tentar ser mais feliz. Procurar

uma razão para levantar e sentir o prazer de ver a

vida pelos olhos do seu amor.

- Eu já me cansei. Eu não quero saber de mais

nada. Eu sou isso: uma confusão de pensamentos

e sentimentos. - disse enquanto parava para

apontar sua casa. – É ali, ó.

Quando chegamos vi que ela errou bruscamente

na descrição. Não tinha nada a ver com a casa que

ela havia me detalhado. Era um casebre simples.

Telhas de amianto e sem jardim na entrada.

Parecia ter no máximo dois cômodos.

Page 21: Seu pequeno sapatinho vermelho

- Tem certeza que é essa, Renata?

- Tenho. Vamos.

Ao chegar à porta, Renata subiu no passeio e me

encarou com aqueles olhos sem brio. Minhas

espinhas se congelaram pois ela parecia preceder

alguma ação desvairada, sem pensamento ou

razão do que estava fazendo. Ela me abraçou

forte. Disse no canto de meus ouvidos que

adorava o jeito que eu a fazia bem e dizia palavras

que a confortavam. Logo depois ela segurou forte

no meu rosto e me deu um beijo prolongado. Mas

atrás de mim ouvi fortes passos na rua e

movimentos bruscos que pareciam uma calça em

movimento furioso. Um rapaz com os olhos tão

negros quanto o céu à noite e um semblante

assustador de fúria partiu para cima de mim.

Tentou me acertar com um soco e felizmente eu

consegui desviar.

- O que você está fazendo com a minha

namorada? – disse ele.

Era Juliano. Até então sumido e que por pura

ironia e safadeza do destino apareceu bem no

ímpeto de uma ação impensada de Renata.

Minhas pernas tremiam. Minha pele ficou branca

Page 22: Seu pequeno sapatinho vermelho

como neve. Meus lábios se secaram e eu me

engasgava com palavras que não saiam. Por sorte

algumas conseguiram pular de minha boca

estarrecida.

- Mas você não havia sumido? Por que apareceu

assim do nada? Aqui? E agora?

- Eu? Sumido? Do que você está falando, seu

babaca?

- Renata me contou sobre o romance de vocês e

sobre como você havia sumido sem dar notícias e

desapareceu há mais de um ano.

- Eu nunca sumi. Sempre estive aqui. Essas

desculpas não vão me fazer não encher sua cara

de porrada. – disse vindo em minha direção

babando como um cão enraivecido.

Sem entender nada e vítima de uma grande cilada,

pensei em sair correndo e entregar meu destino à

Deus. Mas no início da rua apareceu uma mulher

bufando. Havia subido correndo até onde

estávamos. Ela gritou o nome de Renata. Era

Poliana. Ela interrompeu nossa discussão.

- Calma, rapazes. Eu sei o que está acontecendo

aqui. Não precisa brigar. O que todo mundo não

Page 23: Seu pequeno sapatinho vermelho

sabe é que na verdade minha irmã sofre de uma

doença. Ela é esquizofrênica.

Boquiabertos, eu e Juliano dividimos a incrível

descoberta com um diálogo silencioso entre

nossos olhares.

- Há tempos eu já desconfiava disso, só não tinha

muita certeza. Tive de contratar um psicólogo e

também detetive para analisar o comportamento

de minha irmã. Recomendei que ele tentasse um

emprego em sua loja e começasse a análise.

- Como ele se chama? – disse com os olhos

arregalados.

- Rogério.

- Sim, o Rogério. O rapaz que trabalhava como

alfaiate de Renata. Por isso ele nunca desgrudava

de perto dela. – disse em tom de Sherlock Holmes,

mas nem tanto.

- Uma hora o estágio dela iria piorar. A gente só

estava esperando que ela tomasse uma atitude

grave provida pela doença. Ainda bem que cheguei

a tempo aqui.

Page 24: Seu pequeno sapatinho vermelho

- Então quer dizer que toda a história que ela me

contou do romance com Juliano não existiu? –

disse tentando livrar minha barra com ele.

- Não sei o que ela contou, mas imagino que não.

Essa casa aqui era onde morávamos antes de meu

pai morrer. Nos mudamos há alguns anos. E

Renata conheceu Juliano quando nos mudamos

para nossa nova casa e ele era um de nossos

vizinhos.

Imaginei que essa poderia ser a casa que Renata

me descreveu no início. Mas precisava saber de

quem era aquela que estávamos perto.

- De quem é essa casa então, Poliana?

- De minha mãe. Deve estar deitada pois ela sofreu

de um derrame gravíssimo há alguns meses.

Torcendo para ela não ter acordado com todo esse

nosso falatório.

Depois dessa informação parecia que haviam

pregado uma bomba-relógio em minha mente e

ela estivesse prestes a explodir. Mas o que mais

me chamou atenção foi como que Renata

desconectou todos os fatos que vivia em sua vida.

O quadro dela era realmente preocupante. Não

obstante a história do romance entre Juliano e ela

Page 25: Seu pequeno sapatinho vermelho

ainda era um mistério. Ele, ainda em fúria, saiu em

disparada e não quis ouvir nossas conversas.

Evitando a fadiga, deixei para investigar os fatos

restantes no outro dia. Antes de ir para casa tomei

um copo de água com açúcar gentilmente

oferecido por Poliana. Minhas mãos ainda estavam

trêmulas e agitavam o copo sem necessidade de

colher. Me despedi das meninas. Pedi a Poliana

que cuidasse bem de Renata e entreguei meu

cartão a ela para que me ligasse dando notícias

quando ela melhorasse. Renata estava totalmente

entregue ao mundo em seu subconsciente. Nem

respondia a nossas perguntas direito. Dei tchau

mesmo assim.

No outro dia procurei pelo número de Rogério em

minha agenda. Queria pedir a ele o endereço da

casa de Renata. Por sorte ele atendeu e me

concedeu sem problemas, mesmo ainda estando

em divida comigo pois teria de arrumar um novo

alfaiate. Terminei meus afazeres e fechei a loja.

Tomei rumo à casa de Renata.

Ela era exatamente como Renata havia me

descrevido. Linda aos olhos de quem via de fora. E

para minha surpresa, bem em frente à casa ficava

o gramado que ela citava com bastante ênfase.

Page 26: Seu pequeno sapatinho vermelho

Mas ainda sim faltava algo que deixasse bem

esclarecido o romance entre os dois. A paz

daquele lugar era tão contagiante que acabei me

assentando no gramado verde e encarei a tarde se

rendendo ao poder da noite. Quando desviei meu

olhar para alguns arbustos, vi o que parecia ser

uma pequena caixa jogada. Não pensei em outra

coisa a não ser ir até lá e ver o que também

poderia ser mais uma evidência da história de

Renata. Peguei. Abri. Dentro dela havia um

bilhete: “Aceita sair comigo e usar esse lindo

pingente?”.

Pingente? Me perguntei na hora. Mas não eram os

sapatos vermelhos? Abaixo do bilhete encontrei o

coração de cartolina vermelha. Não estava cortado

ao meio como ela havia me dito. O virei e nele

havia um recado escrito: “É da cor de meus

sapatos, mas pelo menos com esse você pode ficar.

Beijos de sua maior admiradora. Renata. Daniel

<3”. Minha boca se congelou aberta. O pulso no

meu coração seguiu o ritmo de uma escola de

samba. Mas sabia que aquilo apenas era meu

passaporte para a zona da amizade. Escutei

alguém bater à porta da casa de Renata. Era

Juliano. Poliana atendeu. Me escondi e observei.

Juliano retirou algo da mochila que carregava. Era

Page 27: Seu pequeno sapatinho vermelho

uma caixa. A abriu. O objeto estava dentro de um

plástico. Eram os sapatos vermelhos. As únicas

palavras que consegui ouvir de Juliano eram:

- Está aqui os sapatos. Peguei na loja que Renata

estava trabalhando, – provavelmente ele foi em

uma hora que eu não estava –, esconda. Não deixe

que a Renata o use. E não deixe que ela tente

novamente fingir e assumir ser a antiga dona

deles. A esquizofrenia poderá não servir mais de

desculpa.”

Quando ele se retirou andei em direção à rua de

trevas. Por pouco um amor platônico não me

cegou ao que parecia ser a prova de um trágico

acontecimento do passado e nem me fez parte

daquilo tudo.

Tiago Peçanha.