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Teóricos e currículos: por entre linhas de pensamentos e de políticas
SEU HUMBERTO E AMIGOS
Paulo Sgarbi1
Nascido em Santiago do Chile em 14 de setembro de 1928,
Humberto Maturana Romesín começou a estudar medicina na
Universidade do Chile em 1948 e, em 1954, seguiu para a
University College of London para estudar anatomia e
neurofisiologia graças a uma bolsa da Fundação Rockefeller.
Em 1959 obteve o doutorado em Biologia pela Universidade
Harvard, nos Estados Unidos.
De sua vasta obra, destacaremos apenas alguns escritos que
nos possibilitam, para além da Biologia, caminhar pelas linhas
de pensamentos e de políticas relacionadas a questões educacionais, ressalvando que, de
todos os estudos realizados por Seu Humberto, de uma forma ou de outra, podemos
perceber sua postura diante dessas questões.
�o início, a autopoiesis.
“A árvore do conhecimento – as bases biológicas do
conhecimento humano”, escrito em parceria com Francisco
Varela [ao lado], é publicado em 1984. No prefácio deste livro
[edição de 1995 da Palas Athenas], Humberto Mariotti [que traduziu o
original em espanhol com Lia Diskin] diz:
O ponto de partida desta obra é surpreendentemente simples: a vida é um
processo de conhecimento; assim, se o objetivo é compreendê-la, é necessário entender como os seres vivos conhecem o mundo. Eis o que
Humberto Maturana e Francisco Varela chamam de biologia da cognição.
Esta referência feita por Mariotti já nos possibilita compreender um pouco como Seu
Humberto e Seu Francisco compreendem o conhecimento e, a partir dessa compreensão,
como se pode pensar, por exemplo, na educação, numa noção de currículo,
principalmente ao tomarmos em conta que, para ele, essa reflexão sobre como
1 Professor adjunto da Faculdade de Educação da Uerj/ProPEd; coordenador do grupo de pesquisa Linguagens
desenhadas e educação; integrante do GT Currículo da ANPEd.
http://www.flickr.com/photos/papagallis/ with/3637741865/
http://www.sibetrans.com/
trans/trans9/varela.jpg
conhecemos o mundo vale tanto para o senso comum quanto para o conhecimento
científico. De pronto, um ponto fundamental da biologia da cognição – que traz,
fortemente, uma maneira de pensar currículo – é o entrelaçamento entre disciplinas [em
especial a biologia, a sociologia, a antropologia, a epistemologia [filosofia da ciência] e a ética [filosofia da
moral]]. Por isso, compreendo, em Maturana [e Varela], posturas coerentes com princípios
mais do que propostas ou concepções curriculares, o que, efetivamente, não fazem
diretamente.
É importante frisar que sua maneira de compreender conhecimento [e de,
consequentemente, compreender o mundo] se opõe à postura representacional que caracteriza a
cultura [e os processos educativos e curriculares] de boa parte do mundo ainda hoje. Neste
sentido, sintonizemos com as duas principais vertentes do pensamento de Seu Humberto
e Seu Francisco sobre o conhecimento, o que fazemos, ainda, pelas palavras de Mariotti
[no prefácio citado acima]:
O centro da argumentação de Maturana e Varela é constituído por duas vertentes. A primeira [...] sustenta que o conhecimento não se limita ao processamento de informações oriundas de um mundo anterior à experiência do observador, o qual se apropria dele para fragmentá-lo e explorá-lo. A segunda grande linha afirma que os seres vivos são autônomos, isto é, autoprodutores – capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver. A autonomia dos seres vivos é uma alternativa à posição representacionistas. Por serem autônomos, eles não podem se limitar a receber passivamente informações e comandos vindos de fora. Não “funcionam” unicamente segundo instruções externas. Conclui-se, então, que se os considerarmos isoladamente eles são autônomos. Mas se os virmos em seu relacionamento com o meio, torna-se claro que dependem de recursos externos para viver. Desse modo, autonomia e dependência deixam de ser opostos inconciliáveis: uma complementa a outra. Uma constrói a outra e por ela é construída, numa dinâmica circular.
Pronto! Seu Humberto e Seu Francisco apimentam a discussão do conhecimento. Mais
do que isso, temperam a discussão mostrando que “viver e conhecer são mecanismos
vitais, [que] conhecemos porque somos seres vivos[,] e isso é parte dessa condição[, e que]
conhecer é condição de vida na manutenção da interação ou acoplamentos integrativos
com os outros indivíduos e com o meio.” [RABELO, 1998, p. 08 – prefácio de Emoções e
linguagem na educação e na política].
Seu Humberto [assim como outros cientistas, [Descartes pode ser um exemplo]] define os seres vivos
como máquinas, mas que, diferentemente dos aparelhos mecânicos comuns, têm a
capacidade de se autoproduzirem, inaugurando a noção de autopoiese. Pensar o
conhecimento a partir dessa noção só é possível se entendemos cada vivente
como sistema fechado, auto-organizado e auto-organizável. Para Seu Humberto, os
seres vivos não são definidos apenas por sua organização complexa [que pode ser
encontrada em máquinas não-vivas], mas sim por seus processos de autoconservação, que são
garantidos pela cognição. A organização dos seres vivos é sua própria autopoiese, mas o
que a desencadeia é a relação ser vivo/meio/ser vivo. É por meio da percepção do meio
e de mecanismos de regulação interna que os seres vivos se adaptam ao meio e também
adaptam o meio a si com o objetivo de se conservarem vivos. Ao modificar suas
estruturas para responder às influências ambientais, o organismo vivo modifica seu
presente e também seu devir, ou seja, aprende. Isso quer dizer que não é possível
determinar quais as ações subsequentes num processo autopoiético, mas é possível
saber que o vivo age e re-age diante das
circunstâncias, já que vai organizando seu conhecer a
partir do próprio ato de viver.
A situação especial de conhecer como se conhece é tradicionalmente elusiva em nossa cultura ocidental, centrada na ação, e não na reflexão. [...] Talvez uma das razões por que se evita tocar nas bases do nosso conhecer é a sensação um pouco vertiginosa causada pela circularidade de se utilizar o instrumento de análise para analisar o instrumento de análise – é
como pretender que um olho veja a si mesmo. A Figura 7 [ao
lado], um desenho do artista holandês M. C. Escher, representa nitidamente tal vertigem por meio das mãos que se desenham mutuamente, de modo que se desconhece a origem do processo: qual das mãos é a "verdadeira"? (MATURANA; VARELA, 1995, p. 67)
A noção de conhecimento que Seu
Humberto e seu cúmplice [no bom sentido,
claro] trazem não cabe na noção de
representação na medida em que o mundo
[e o conhecimento dele] não precede a nossa
experiência, não é anterior à nossa
experiência. Por isso, na lógica do “é
preciso ver para crer” [em que os currículos
[latíssimo sensu] são o lócus onde as “coisas” são
colocadas para serem acreditadas], o mundo está
dado a priori e o conhecimento é concebido
como um fenômeno baseado em representações mentais que fazemos do mundo. Nessa
Eu estava negando a noção de representação no momento em que comecei a encarar o sistema nervoso como um sistema fechado. A noção de representação para mim se acaba no momento em que me dou conta de que a atividade da retina não pode estar correlacionada com as características do estímulo: o que posso correlacionar com a retina é o nome dado à cor. Portanto, a cor, a experiência cromática, deixa de ser uma representação do mundo, passa a ser uma configuração do mundo. A representação é um comentário do observador sobre a correlação entre organismo e circunstância. Sempre que eu encarar um sistema em congruência com sua circunstância e olhar a correlação entre sistema e circunstância, eu posso falar do operar do sistema como se ele operasse como uma representação de sua circunstância. Isto é possível porque existe uma congruência entre organismo e circunstância. Mas a congruência não se funda na representação e sim em uma coderiva, tem fundamento na história do sistema. (MATURANA, 1997, p. 36)
concepção, homem e mundo estão separados, assim como, em termos epistemológicos,
estão separados sujeito e objeto; o mundo é uma fonte de recursos a serem extraídos em
busca de benefícios, descartando-se, em massa, os subprodutos desse processo de
extração, descarte esse que se estendeu às pessoas produzindo a exclusão social,
marcadamente na África e na América Latina.
Também no início, a lógica.
Heinz von Foerster [1996, p. 71] pensa, com Seu Humberto [e um outro seu parceiro, Sammy
Frenk [MATURANA, H. R. and FRENK, S. Unidirectional movement and horizontal edge detectors in pigeon retina. Science
142: 977-979, 1963.]], que é preciso “crer para ver”:
Aqui, devo mencionar os trabalhos realizados por dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Sammy Frenk, nos campos da neuroanatomia e da neurofisiologia. Em sua investigação sobre as trajetórias visuais, eles demonstraram a existência de fibras centrífugas, que se originam na porção central do cérebro e se dirigem à retina, distribuindo-se ao longo desta de tal modo que exercem o controle sobre o que a retina vê. Por conseguinte, a retina está sujeita a um controle central e é por isso que
devemos crer para ver.
De pronto, podemos pensar que a
lógica de primeiramente ver para, depois, crer [que caracteriza boa parte do pensamento
científico chamado moderno] não é única e não é, também, unânime, mesmo que
hegemônica. Essa outra lógica [pontua von Foerster] é resultado de pesquisa nos campos da
neuroanatomia e da neurofisiologia em que os pesquisadores chilenos buscam mostrar
“a dinâmica fechada do sistema nervoso e como a visão surge no domínio de relação do
organismo e não no operar do sistema nervoso” [SEU HUMBERTO, 1997, p. 77] para
responder à pergunta “o que é ver?”.
Sem adentrar a pormenores da contribuição desta constatação para o conhecimento
científico, quero enfatizar o que essa “nova” lógica traz para um pensar a educação. Se
temos como paradigma “ver para crer”, aprender significa dominar os sistemas de
representação com que o conhecimento é “descrito”, ou seja, o homem descobre as
coisas e as representa através de um sistema de códigos que preexiste aos significados.
Se, no entanto, como nos mostra Seu Humberto e seu amigo Varela [1995, p. 67],
não vemos o "espaço" do mundo – vivemos nosso campo visual. Não vemos as "cores" do mundo – vivemos nosso espaço cromático. Sem dúvida [...] habitamos um mundo. Mas, ao examinarmos mais de perto como chegamos a conhecer esse mundo, sempre descobriremos que não podemos separar nossa história de ações – biológicas e sociais – de como ele nos
von Foerster – http://dinamico2.unibg.it/silfs/
SILFS2010/eng/Heinz_von_Foerste.jpg
parece ser. É algo tão óbvio e próximo de nós que fica muito difícil percebê-lo.,
o mundo não é representado pela linguagem, pois,
na base de tudo o que diremos está essa constante consciência de que o fenômeno do conhecer não pode ser equiparado à existência de "fatos" ou objetos lá fora, que podemos captar e armazenar na cabeça. A experiência de qualquer coisa "lá fora" é validada de modo especial pela estrutura humana, que toma possível "a coisa" que surge na descrição. (id., p. 68)
De outra forma, como coloca Seu Heinz [1996, p. 66],
se alguém inventa algo, então é a linguagem o que cria o mundo; se, em troca, alguém pensa que descobriu algo, a linguagem não é mais do que uma imagem, uma representação do mundo. Acredito ter podido demonstrar-lhes com isto é que a linguagem que gera o mundo e não o mundo que é representado pela linguagem.
Esta outra lógica [me parece [rsrsrs]] dá uma mexida considerável tanto na compreensão do
que seja conhecimento como no processo de conhecer, de aprender, e me foi
fundamental, para essa outra compreensão, o jogo que Seu Heinz faz entre “descobrir” e
“inventar”. A discussão que Seu Humberto faz “das explicações” e, mais
especificamente, “das explicações científicas” mostra um mundo que não pode ser
representado com exatidão, pois o conhecimento
[científico?] não é um espelho da natureza, mas se
funda em noções como contexto, presença do
observador, imprevisibilidade, complexidade,
incerteza, alternância.
Sendo o conhecimento é construído pelo sujeito
que conhece dentro de sua estrutura biológica [e
social, cultural] através de sua interação com o meio,
tudo isto acontece dentro da linguagem, que é entendida como uma forma de estar no
mundo, como uma “coordenação de coordenação de comportamentos”. E é nesta
interação, dentro de um consenso, que os significados de cada coisa são construídos. Os
significados não existem a priori, mas são construídos nesta interação linguística. E esta
é uma das características básicas do ser humano.
�o início do início, a linguagem
As explicações científicas têm validade porque têm a ver com as coerências operacionais da experiência no suceder do viver do observador, e é por isso que a ciência tem poder. As explicações científicas são proposições gerativas apresentadas no contexto da satisfação do critério de validação das explicações científicas. O critério de validação das explicações científicas faz referência exclusivamente às coerências operacionais do observador na configuração de um espaço de ações no qual certas operações do observador no âmbito experiencial devem ser satisfeitas.(MATURANA, 1998, p. 55)
Seu Humberto nos revela a linguagem como a origem do humano [1998, p. 18-ss]. A
linguagem “não se dá no corpo como um conjunto de regras, mas sim no fluir de
coordenações consensuais de condutas” [id., p. 27]. Não se trata, portanto, de um “sistema
de operações com símbolos abstratos na comunicação”, pois “os símbolos não
preexistem à linguagem, mas surgem depois dela e
nela como distinções feitas por um observador”
[2001, p. 131].
Colocando os devidos parênteses na objetividade e
entendendo que “uma afirmação cognitiva é
convite para [o leitor] entrar num certo domínio de
coerências operacionais, e de que aquele que a faz
sabe que existem outras afirmações cognitivas
igualmente legítimas, em outros domínios de
realidade, que o outro pode preferir” [MATURANA,
1998, p. 58], quero pensar sobre “o linguajar”
[Maturana utiliza o termo “linguajar” e não “linguagem”, reconceitualizando esta noção, enfatizando seu
caráter de atividade, de comportamento e evitando, assim, a associação com uma “faculdade” própria da
espécie, como tradicionalmente se faz. (Nota 1 da 3ª reimpressão (2002) de Emoções e linguagem na
educação e na política, 1998, p. 21.)], como prefere Seu Humberto, pois acentua a recorrência
de interações entre duas ou mais pessoas.
Trazendo a conversa mais para o domínio da educação e retomando a noção de
aceitabilidade e os critérios de validação das explicações científica, lembro que “o
conhecimento é constituído por um observador como uma capacidade operacional que
ele ou ela atribui a um sistema vivo, que pode ser ele ou ela própria, ao aceitar suas
ações como adequadas num domínio cognitivo especificado nessa atribuição.”
[MATURANA, 2001, p. 127]. Pensando currículo a partir dessas falas do Seu Humberto,
penso ser fundamental refletir sobre o determinismo cognitivo que tem caracterizado os
conceitos de currículo ao longo da educação, na medida em que supomos que os
conhecimentos têm sentido fora da experiência do observador.
Tenho aprendido [no processo de formação institucionalizado] que as formulações discursivas
que apresentam os conhecimentos científicos são plenamente objetivas, pois trazem
sentidos que existem a priori e que são representados de maneira “neutra” pelos
cientistas. Observem, no entanto [2001, p. 132-133] que
A linguagem acontece quando duas ou mais pessoas em interações recorrentes operam através de suas interações numa rede de coordenações cruzadas, recursivas, consensuais de coordenações consensuais de ações, e que tudo o que nós seres humanos fazemos, fazemos em nossa operação em tal rede como diferentes maneiras de nela funcionar. Ou seja, afirmo que nós, seres humanos, existimos como tais na linguagem, e tudo o que fazemos como seres humanos fazemos como diferentes maneiras de funcionar na linguagem. Além disso, afirmo também que a linguagem, como um fenômeno biológico, em sua origem filogenética e em sua constituição ontogenética, é uma operação num domínio de coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações que surgiu como um resultado da coexistência íntima em coordenações de ações na linhagem de primatas bípedes à qual pertencemos, e que tem que ser estabilizada novamente em cada criança durante sua co-ontogenia com os adultos com os quais ele ou ela cresce. (MATURANA, 2001, p. 130-131)
a ciência é uma atividade humana. Portanto, qualquer ação que nós cientistas realizamos ao fazer ciência tem validade e significado, como qualquer outra atividade humana, apenas no contexto de coexistência humana no qual surge. Todas as atividades humanas são operações na linguagem, e como tais elas ocorrem como coordenações de coordenações consensuais de ações que acontecem em domínios de ações especificados e definidos por uma emoção fundamental. A emoção fundamental que especifica o domínio de ações no qual a ciência acontece como uma atividade humana é a curiosidade, sob a forma do desejo ou paixão pelo explicar.
É muito diferente [pelo menos para mim] pensar a educação [e nela, mais especificamente, os
processos de aprendizagem e os currículos] não a partir da ciência como um sistema de
verdade, que, como tal, é colocada como “irrefutável”, mas sim pela compreensão de
que
o que constitui a ciência como um tipo particular de explicação é o critério de validação que nós cientistas usamos, explícita ou implicitamente, para aceitarmos nossas explicações como explicações científicas ao praticarmos a ciência sob a paixão do explicar. (id., ib., p. 133)
Para além das muitas conceituaçõesnomeações que têm circulado nos estudos sobre as
questões curriculares [currículo oculto (Jackson, 1968) ou currículo não-escrito (Dreeben, citado por
Jackson, 1996) – até as ausências de conteúdos ou experiências expressas em termos como currículo nulo
[...] pré-ativo e interativo (Jackson, 1968); como fato e como prática (Young e Whitty, 1977); oficial,
percebido, operacional e experencial (Godlad, 1979); prescrito, apresentado, moldado, em ação e
realizado (Gimeno Sacristán, 1988); pré-ativo e ativo (Goodson, 1995). [MACEDO, 2006, p. 101]], os
currículos não se têm baseado em atividades significativas que levam cada pessoa a
refletir sobre suas atividades e sobre sua comunidade, pois é essa reflexão, segundo Seu
Humberto, que nos conduzirá ao conhecimento de nosso mundo e à participação efetiva
em sua constante criação e re-criação.
Para além da prescrição, essa noção de currículo é indissociável do que poderíamos
chamar uma proposta do Seu Humberto para a educação, que é definida como um
processo em que os alunos estão inseridos em seu meio e convivem entre si e, nessa
convivência, transformam-se espontaneamente e influenciam na transformação do meio
em que estão inseridos e dos outros indivíduos desse meio, na busca de congruência
entre o ser que se educa e seu meio num desenvolvimento permanente e recíproco.
Coerente com sua crença de que viver é conhecer, aprender, Seu Humberto [1968, p. 61]
mostra que “o viver [e eu acentuo, como evidência temática, a educação] transcorre
constitutivamente como uma história de mudanças estruturais na qual se conserva a
congruência entre o ser vivo e o meio, e na qual, por conseguinte, o meio muda junto
com o organismo que nele está.”
Apenas quero chamar a atenção dos possíveis leitores deste texto que a complexidade e
a inseparabilidade dos constitutivos do pensamento de Seu Humberto me levaram [como
o levaram também, nos seus escritos] a transformar em partes um texto que deveria vir bem
mais misturado. Mas confesso a minha total incompetência de trazer essa mistura de
uma forma que as relações pudessem ficar claras. Limite moderno de escrever que tento
[a maioria das vezes em vão] superar.
De pronto, me antecipo em apontar minha incompetência quando, nos subtítulos, jogo
com a palavra início para [inicialmente feito muito sem pensar antes] atribuir uma
lógica hierárquica que, certamente, está em mim e não na maneira de pensar do Seu
Humberto e seus parceiroscúmplices. Mas essa foi a maneira que encontrei de dizer-me,
também, parceirocúmplice de Seu Humberto. Daí,
no início do início do início, a emoção.
Em sua trajetória de estudos, Seu Humberto tem provocado reflexões substantivas sobre
algumas afirmações aceitas pelo senso comum e pelos cientistas, como, por exemplo,
esta questão de os seres humanos serem essencialmente racionais e estabelecendo essa
premissa como elemento que distingue os seres humanos das demais espécies animais.
Ao contrário, o pensador chileno mostra que são as emoções as regentes de nossas
ações. Nas suas palavras [1998, 15-16],
tomemos como exemplo a seguinte situação: ao chegar ao escritório, uma pessoa fala que pensa em pedir aumento de salário ao chefe, e a secretária amiga diz: “– Não peça nada hoje porque ele está com raiva e não vai lhe dar nada.” O que a secretária disse não é, por acaso, um indício de que ela sabe que uma pessoa com raiva só pode atuar de uma certa forma, não porque esteja restringida de uma maneira absoluta, mas porque está num domínio no qual só são possíveis certas ações e não outras? Assim, dizemos também que as coisas ditas com raiva têm um poder, um valor ou uma respeitabilidade diferente daquelas ditas na serenidade e no equilíbrio. Por quê? Não porque uma coisa dita com raiva seja menos racional que uma dita na serenidade, mas porque sua racionalidade se funda em premissas básicas distintas, aceitas a priori, fundada numa perspectiva de preferências que a raiva define. Todo sistema racional se constitui no operar com premissas previamente aceitas, a partir de uma certa emoção.
As emoções, para Seu Humberto “não são o que correntemente chamamos de
sentimento, [mas sim] disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes
domínios de ação.” [id., ib., p. 15]. A partir dessa linha de pensamento, Seu Humberto nos
mostra que as nossas teorias e concepções que formam os nossos sistemas racionais são
determinadas por nossas disposições emocionais, pois todo sistema racional tem por
base a aceitação a priori de premissas fundamentais, e essa aceitação acontece porque
as pessoas gostam delas a partir de suas preferências.
Essa compreensão traz avessos muito sérios ao que correntemente se concebia, por
exemplo, a competição como principal mola propulsora da evolução dos seres vivos. Ao
definir competição como um fenômeno cultural humano de negação, derrota e
destruição do outro, Seu Humberto afirma que esse evento inexiste no mundo natural,
uma vez que a sobrevivência de um indivíduo ou de uma espécie não depende da
destruição do outro. “Os seres vivos não humanos não competem, fluem entre si e com
outros em congruência recíproca, ao conservar sua autopoiese e sua correspondência
com um meio que inclui a presença de outros, ao invés de negá-los.” [id., ib., p. 21]
Tenho especial apreço quando Seu Humberto, ao dizer do propósito do livro “A árvore
do conhecimento” [1995, p. 264], nos faz um alerta:
Descartar o amor como fundamento biológico do social, assim como as implicações éticas do amor, seria negar tudo o que nossa história de seres vivos, de mais de três bilhões e meio de idade, nos legou. Não prestar atenção no fato de que todo conhecer é fazer, não ver a identidade entre ação e conhecimento, não ver que todo ato humano, ao construir o mundo pelo linguajar, tem um caráter ético porque se dá no domínio social, equivale a não se permitir ver que as maçãs despencam ao chão. Agir assim, sabendo que sabemos, seria um auto-engano e uma negação intencional. Para nós, portanto, este livro tem não apenas o propósito de ser uma pesquisa científica, mas também o de nos oferecer uma compreensão do ser humano na dinâmica social e nos libertar de uma cegueira fundamental: a de não nos darmos conta de que só temos o mundo que criamos com o outro, e que só o amor nos permite criar esse mundo em comum. Se conseguimos seduzir o leitor a fazer essa reflexão, o livro cumpriu seu segundo objetivo.
Agora, um [pseudo]fim [espero].
Fim porque preciso definir, num tempo acadêmico totalmente humano, um artefato
texto “acabado” para ser apreciado por meus pares e, quem sabe, ímpares também.
Pseudo porque penso e desejo que o debate que procuro trazer não se acaba, mas apenas
continua, pois algumas reflexões já foram feitas antes deste texto e outras farão após ele,
a partir dele ou não. Por isso, espero.
Escritos de-sobre Seu Humberto com os quais dialoguei
FOERSTER, Heinz Von. Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In
SCHNITMAN, Dora Fried (org.). ovos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1996.
MACEDO, Elizabeth. Currículo: política, cultura e poder. Currículo sem Fronteiras, v.6,
n.2, pp.98-113, Jul/Dez 2006.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento – as bases
biológicas do conhecimento humano. Prefácio de Humberto Muriotti. São Paulo: Palas
Athenas, 2001.
MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2001.
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento – as bases
biológicas do conhecimento humano. Prefácio de Rolf Behncke C. Campinas: Ed. Psy,
1995.