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Sete por Sete – contos e crônicas Paulo de Poty 1

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Sete por Sete – contos e crônicas Paulo de Poty

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Sete por Sete – contos e crônicas Paulo de Poty

SeteporSete

Paulo de Poty

Este e-book foi produzido para ser distribuído de forma gratuita.Fica totalmente proibida a venda integral ou parcia do trabalho.

Todos os direitos reservados.

Outros trabalhos do autor, links:http://www.paulo.depoty.nom.brhttp://paulodepoty.blogspot.com

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Sete por Sete – contos e crônicas Paulo de Poty

Índice

Apresentação 04Contos

1. Para cada qual o seu quinhão 062. Rio memória 093. A prece 124. A casa de Levi 135. Dionísio contra o tempo 156. O lago 177. Um dia quente 19

Crônicas1. Ser, o verbo 222. O feixe e o peixe 233. Meu trabalho 254. A espera de um milagre 265. Um relance 276. Crônica de um homem encasulado 297. Sem novidade 30

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Apresentação

No creo en las brujas, pero que ellas hay, hay. E partindo deste princípio latino, foi escolhido o título deste trabalho. O sétimo dia é dedicado ao descanso e muito provavelmente seja o dia do ocioso, e como tal, decidi agrupar os textos em conjunto de sete sob dois gêneros: contos e crônicas.

Sete é o número da intuição e para os que acreditam, a intuição vem de Deus. Não não, não sou profeta, sou poeta. Não vais encontrar aqui nada tão revelador. Cito tal mérito acreditando que ele cabe à todos que se proprõe expor-se, deixando suas vergonhas à mostra. Grafitar em papel as fantasias e delírios próprios de todos nós é, antes de competência propriamente dita com as palavras, gesto desavergonhado.

E sem vergonha nenhuma vou tentando me apropriar da aura mística que cerca o número sete. Se são sete as cores do arco-íris, são sete as notas musicais e sete são os espíritos de Deus, faço em sete textos cada gênero meu. Não esqueço, é claro, que sete também é conta de mentiroso...mas, quem disse que sempre falamos a verdade.

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Contos

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Para cada qual o seu quinhão(Janeiro, 2008)

Já passava de meio-dia e a tarde seguia quente; A carroça já estava bem cheia de material. Tinha na sua maior parte papelão, mas iam também latinha de cerveja e refrigerante e garrafa pet. Quinzé foi para escola de manhã e à tarde se juntava ao pai para catar as sobras na Cidade Alta. Carroceiro como o pai, o menino já sentia o peso da responsabilidade do sustento da casa. Embora os estudos não se perdessem de vista, nem dele, nem de seu Damião, seu pai. Depois de queimar as pestanas nos cadernos, queimava a moleira no sol.

– Benção, pai.

– Deus lhe abençoe – diz seu Damião passando a mão em sua cabeça.Quinzé já estava virando homem. As barbas azulando na cara, logo

logo tinha que começar a tirar. Desde de pequeno todos o chamavam assim, Quinzé – para desgosto de sua mãe. A mulher o batizou na Igreja da Matriz com um nome tão bonito, nome do avó materno do menino: Joaquim José. Mas não tinha jeito não, o povo só chamava de Quinzé, e assim ficou.

– Vamo ficar aqui nesse pé de castanhola um pouquinho meu fi, tá

quente demais. A gente começa já a catar – seu Damião estava ofegante.Pararam a carroça na sombra para dar descanço aos três: seu Damião,

Quinzé e o burrico. Na família eram em cinco. Seu Damião e dona Rita tiveram três filhos, sendo o menino Quinzé o mais velho. Esse aí era doido por bolacha e quando se sentaram no meio-fio da calçada, o menino tira de sua mochila surrada - “Ó, que eu trouxe” - um pacote de bolacha.

– Vixi Maria, que eu tava era com fome – seu Damião enche a mão.E debaixo daquela pé de castanhola a vida da cidade passava sob

aquele sol de rachar. Os que podiam mais passavam em carros com ar condicionado, e os que podiam menos se abrigavam nas sombras das árvores. Quinzé puxou do bolso da mochila um livrinho e meteu na cara – “que isso menino?” - quis saber seu Damião; “É estória de cordel” - responde Quinzé com um ar de graça.

– Se é de piada, conte ai para mim que não sei lê – seu Damião cutuca as costelas do filho.

– Não é piada não pai, é a estória de um guaxinim. É assim....

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O cantador do cordel narra a estória, que jura ser verdadeira, de um guaxinim sabido. Esse tal bicho atazanava a vida de um coronel sisudo, que tinha sua propriedade lá pros lados de Monte Alegre. Uma fazenda grande com muito gado, roça de todo tipo e um aviário repleto de penosas. Era conhecido por não fazer caridade nem para salvar a alma das mãos do capeta. Na missa só aparecia quando era de corpo presente ou de sétimo dia de alguma personalidade que lhe rendesse algum ganho político. Ignorante, só quem era – o povo lhe dava bom-dia, ele perguntava, porque?

Pois bem, esse tal guaxinim começou a sumir com as galinhas do dito coronel. Vixi que o homem ficou doido. Descomungou o animal, conferiu-lhe ao capeta a paternidade, botou seus capangas todos para procurar o bicho e dar vim na vida do infeliz; Nada. Correram a propriedade toda, entraram nas terras dos vizinhos, com ou sem permissão, e não encontraram paradeiro do bicho. Foi da vez que o coronel infezado disse, “eu mermo vou matar esse descomungado, ele vai ver”; Aprontou-se; Montou guarda dias e dias na porta do aviário. Não foi um nem dois dias que ficou vigilante de noite e dormindo durante o dia, não; Foram para lá de dez dias e nada do bicho aparecer. Aquilo só fazia o homem ficar mais irado.

Até que o dia chegou. O coronel sentiu o sangue ferver quando viu o bicho se esgueirando mansinho pela cerca dos fundos. O danado olhava para um lado e para o outro, como se já imaginasse o perigo rodando. Apoiou-se nas patas de trás e cheira o ar, “ahhh...” - suspirava o guaxinim. O coronel deixou o ladrão se aproximar, pois não queria errar o disparo, tinha que ser certeiro no tiro e acabar com a vida do marginal. O bicho parecia um gato aprotando o bote. Lento se chegou na porta do aviário e quando estava para passar por um buraco na grade o coronel disparou sua espingarda. O coronel não era só ruim de natureza, era ruim de mira também.

O guaxinim correu para se safar, mas o coronel foi atrás do delinqüente. O bicho partiu pelo mato a dentro com o coronel em seu encalço; E pegue tiro, pegue tiro, e pegue errar, pegue errar, até que o bicho se metou numa pedreira antiga. Um serrote já todo recortado da extração de granito parece que servia de esconderijo do danado. E numa reentrânsia e outra o bicho ficou encurralado, sem saída e acuo-se. O coronel esbaforido da carreira, carregou a espinguarda e mirou bem na cabeça do guaxinim. Seu ódio era tanto que até falar com o bicho ele

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falou.– Olhe aqui seu safado, isso é para nunca mais vim mexer no que é

dos outros. Andou tirando o que é meu, agora vou tirar sua vida.

Quinzé parou a leitura para coçar o nariz.– Vamo hôme, como ficou esse caso, o coronel matou o bicho? - seu

Damião estava aperriado.– Calma agora é que vem o bom – tranqüilizou Quinzé.O bicho acuado e sem saída, apoio-se nas patas de trás e bem devagar

foi levantando as patas em rendição. E para surpresa do coronel, mirou-o com seus olhos negros e tristes quase chorando e disse:

“Porque me julgas meu senhor?

Se nada de tão mal fiz à ti.

Dizes que roubei o que era teu,

Confesso que não entendi,

Pois o homem não é possuidor,

Mas sim pastorador,

Das coisas que lhe deu

O pai Nosso Senhor”

O coronel nessa hora ficou mudo; Nunca soube que guaxinim falava. Baixou a arma e deu meia volta, crente que um milagre presenciara; Benzou-se e voltou correndo para casa, celou seu cavalo e a galope foi parar na Matriz. Entrou e se ajoelhou aos pés da Virgem Mãe e da Cruz, suando feito chaleira quente, jurando eternamente não maltratar jamais um ser vivente.

– Eu acredito que seja verdade sim. Não duvido das coisas de Deus – diz seu Damião fazendo o sinal da cruz.

– É só uma estória pai; Mas verdade seja dita que cada um tem seu

quinhão aqui na terra – arremata Quinzé.Levantam-se batendo a areia das bundas tocam o burrico. Ainda havia

muito trabalho até o fim do dia, catando as sobras dos outros. Varrendo dos olhos de muitos seus excessos e desperdícios.

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Rio Memória(São Paulo, 10/01/05)

Saudade é uma palavra que só se traduz em versos. Na poesia a saudade é capaz de transpor o tempo e o espaço.

Lia saindo da sombra do interior da Candelária, ofusca-se com o sol em seus olhos. Debaixo de um azul imaculado, o calor de Fevereiro ardia a capital fluminense. O centro do Rio de Janeiro era novo de novo. As antigas ruas de paralelepípedos, os postes de iluminação à gás, paredes e monumentos sem as marcas de tribos urbanas. Todas as construções eram de uma novidade saudosa. Mergulhado no silêncio que pairava nas ruas próximas a catedral, ninguém a transitar por lá. Nem o canto dos beneditinos se ouvia do Mosteiro de São Bento.

Abraçando o sol, Lia atravessa a praça. Com um novo frescor na pele, segue numa lenta caminhada pela Rua Primeiro de Março. Com todas as janelas e portas fechadas a sua volta, ela contemplava o vazio de uma via sem volta. Aos poucos, aflorando do silêncio, ela percebe uma música cadenciada. Estava próxima à Rua do Ouvidor. A música se intensificava e junto com ela uma vibração de reconhecimento fazia seu coração se animar. Uma vontade de ver de novo, de dançar de novo, de brincar de novo.

A cidade na esquina da Rua do Ouvidor, antes silenciosa e vazia, abre-se numa apoteose. Vindos do Paço uma turba alegre vai transmutando o silêncio em festa. As janelas antes fechadas, abrem-se saudando a música que passa na rua (seria choro ou samba?). Das janelas escancaradas rostos mascarados aparecem - era o rancho carnavalesco.

Lia revive as alegrias de tempos passados e seu coração lhe aperta o peito. Uma multidão numa profusão de felicidade descendo a rua do Ouvidor contagiava tudo ao redor. Eram muitos rostos - muitos conhecidos, muitos anônimos. Da música que ouvia reconheceu Ernesto Joaquim cantando “Pelo Telefone” e “Donga”. Nobres, plebeus e índios Tamoios se misturavam. Lia vê no meio da multidão sombras do passado - Men de Sá acompanhando Dona Leopoldina e Dom Pedro II. O filho de Carlota Joaquina, apaixonado pela arte da fotografia, conduz uma câmera pendurada no pescoço registrando tudo numa eternidade presente.

No enquadramento da lente do Imperador, Chiquinha Gonzaga sorria

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cantando o “Abre Alas” ao lado de Noel Rosa. De mãos dadas com uma baiana, Cartola e Nelson Cavaquinho cantam para a mulata sambar. O Bando de Tangarás avança sem Noel que ficou para trás. Pixinguinha tocava acompanhando Coelho Neto em “Cidade Maravilhosa”. Bem atrás deles vinham Leila Diniz de abraços dados com Renato Russo instigando o povo para a revolução. Não a revolução contra franceses nem a garrafadas, mas a revolução da alegria.

O cheiro da lança perfume toma conta do ambiente. Uma chuva de confetes e serpentinas alcançavam os cabelos de Lia. Os que caíam no chão voltavam soprados pela brisa para acima dos telhados.

Cortejado por um cordão de pastorinhas vinha o profeta Gentileza distribuindo flores e sorrisos. A palavra profetizada no meio do povo bendizia o amor; Um bêbado, amparado pelo equilibrista, lutava para ficar de pé e não perder a festa. Estes dois quase derrubam Vinícius e Tom que esperavam a garota de Ipanema passar.

Lia estava fascinada com o colorido das fantasias. Arlequins e pierrôs pajeavam as belas columbinas; Anjos, demônios e orixás evoluíam no meio dos foliões; Moças e rapazes passavam cantando e puxaram quem estivesse ao redor; Uma mão estendeu-se, Lia viu seu pai lhe sorrir – “não fica aí parada, vem brincar com a gente”. O velho sambista do morro arrasta a filha para o meio da folia e juntos giravam, riam e dançavam.

As janelas permaneciam abertas. De uma delas Lia viu o pernambucano Manuel Bandeira com um caderninho na mão dando testemunho do carnaval que se emoldurava a sua frente. Em outra, Machado de Assis estava mais contemplativo. Espectadores da cultura e cotidiano registrando em sua arte os costumes do carioca.

O Rio de Janeiro na saudade de Lia era a cidade da alegria. A alegria do Carnaval permanece eterna onde tempo e espaço não existem. Pessoas amadas e que há tanto tempo ela não via estavam lá também. A eterna capital do Brasil resplandecendo numa manhã de Domingo de calor e carnaval, fez Lia rejuvenescer. Sentia-se livre e feliz. Os dias tristes de doença acabaram.

Enquanto estava na Candelária orando pela sua querida cidade, o coração de Lia parou. Pedia a São Sebastião que intercedesse ao Senhor piedade aos seus filhos mais carentes. Seu povo que desce das favelas para realizar o maior espetáculo do mundo na Marquês de Sapucaí é o mesmo

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que morre nas mãos da violência das ruas asfaltadas de hoje.Lia, negra velha e lutadora, viveu até o último dia animada pela fé

em Nossa Senhora da Penha. Desejava que sua cidade um dia acordasse num lindo dia de carnaval. Neste dia não haveriam ricos nem pobres, negros ou brancos – só haveriam gente; A casa de branco era de todas as cores, que felizes e amados, cantando as belezas do lugar, fizeram germinar entre o mar e a montanha a urbe da alegria; E do alto, o Senhor de abraços abertos vela dia e noite a cidade maravilhosa.

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A prece(Janeiro, 2008)

Enquanto seu espírito ladrava em seus ouvidos angústias e tédio, a rua já silenciava sobre o sossego dos que zelam pela rotina. Ressoavam vozes distantes, talvez uivos, talvez gemidos, e ele escaneava as janelas do prédio da frente, com todas as luzes apagadas. Rodou a cabeça sobre o pescoço para aliviar a tensão, como se quisesse que a brisa da noite lhe cortasse sob o queixo; “ah, misericórdia”.

A brisa soprou e não foi feliz em seu intento; Ele sai da varanda, vai até sua pequena estante conservada do pó e das traças, e os olhos agora escaneam os títulos. Procurava um livro de poesias e haviam vários. Uma coleção de loucos atormentados, onde misturavam-se fantasmas e viv'almas, todos ali à disposição, sem distinção de suas naturezas, prontos para lhe servir; Seus dedos resgataram alguns do sepulcro de madeira de lei; Os olhos escanearam as palavras, os versos, as rimas, as páginas; Um após outro, os poemas vão empilhando-se na mente e no chão como uma coluna de sete palmos; Apesar de todas as imagens primorosamente cantadas pelos mestres, habilidosos e resignados na construção de sonhos, a imagem mais nítida ainda era aquele silêncio; Seguiu vagando à deriva naquele nada, tentando não sossobrar nos seus próprios pensamentos; Suas preces eram em vão; Cada poema ao qual se agarrava era levado para o fundo junto com ele.

Guardou os livros novamente em seus lugares e lhes pediu perdão; Não intencionou profaná-los no adiantado da hora. Já que ele não tinha paz ao menos deixasse que os outros a desfrutasse, sossegados. E ele ficou ali como náufrago do tempo, como aquele que procura por toda parte uma razão sequer que o convença de que os dias não são iguais, e que num dia desses, em meio a uma prece, algum milagre poderia realmente acontecer.

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A Casa de Levi(São Paulo, 10/03/2005)

Vaguei pelo mundo à procura de quem pudesse responder às perguntas lançadas à rosa dos ventos. Quantos mares ainda hei de navegar até encontrar um porto, um lar?

Sentado nesta areia branca, contemplando a paciência das vagas do mar, procuro relembrar as palavras que no passado animaram o coração do homem. Eu era um faminto desnorteado na escuridão do silêncio, com fome e medo de conhecer a verdade.

Batendo em muitas portas seguia meu caminho procurando o verbo que viesse dar sentido a amargura, ao desespero e à falta de amor.

Mastiguei o fel de minha vida, açoitei a minha própria carne. Uma busca inútil de felicidade condicionada em tudo que não fosse eu. Inglória odisséia que os anos transformaram em medo.

Ruas de pedra e dor; Saindo da areia da praia continuei vagando pelo mundo e vendo outros famintos que, como eu, procuravam a felicidade em vis prazeres: o êxtase da falsa felicidade como prenúncio da vã realidade; Eu era a humanidade perdida em si mesma, cega na luz do néon, surda às palavras de amor e muda diante de sua própria imagem - minha própria imagem; Reflexo do homem que mora nas calçadas e becos urbanos, preso ao vício da carne, corrompido e sem ética.

Só que um dia bati a Tua porta. Quando cheguei a porta já estava destrancada. Fui convidado para entrar e dissestes que assim sua casa sempre esteve – já estava a minha espera. Fui entrando e reconhecendo o lugar. Era de uma beleza não pronunciável e de um encanto irrecusável; Aquela casa era meu porto.

Em suas palavras voltei ao passado e naveguei no mar ao redor do mundo. Durante a viagem Tu falastes da simplicidade do amor e mostrastes meu reflexo nestas águas calmas e limpas. Minha imagem estava tranqüila e feliz; O mundo que me mostrastes continuava igual, os mesmos becos e as mesmas ruas de pedra. Era o mesmo mundo, mas ao final da viagem eu mudei. Não espero mais que o mundo me faça feliz. A minha felicidade eu construo a cada dia. A minha felicidade é de dentro para fora.

E sempre que volto a esta praia e sinto esta areia lembro de Ti.

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Estou saciado e feliz, já não sinto tanta fome. Ouvindo o som das vagas do mar, ouço as palavras do peregrino que nasceu na casa de Levi, que semeou os ventos com palavras de amor e deixou a porta de sua casa destrancada para que qualquer um possa entrar.

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Dionísio contra o tempo(São Paulo, 23/01/05)

Ao calor de uma fogueira estalavam gravetos verdes; Nela aqueciam-se o passado e o presente, que caminharam juntos um longo traço de vida nas veredas desses sertões. Procuravam e esperavam um futuro que nunca chegava. O moço e o velho Dionísio descansavam contemplando as sombras dos mandacarus que, ao redor, bruxuleavam ante a luz da fogo.

O velho Dionísio já cansado de andar, olha para o seu passado ainda moço, vê nele a culpa de sua solidão e seu desterro:

- “Cruzando as veredas desse sertão

Tendo o sol e a lua por companhia

Tratei de selar meu coração,

Ó cego passado que me traia

Vaguei só pelo cascalho da estrada

Cada curva era a porta de novo estirão,

A covardia me vendava os olhos

Cada vez que o amor me tocava o coração

Tu, jovem passado maldito

Condenou-me por anos aflito,

Fugi, então, de um presente bendito

Quiçá medo de um futuro desdito”

E o jovem Dionísio despertando de sua letargia, revira o baú das lembranças que arrastava por onde fosse – a cada ano mais pesado; Recolhe para ti seus momentos nessa memória, e guardo aqui o presente que tu, presente ancião, teimas em esquecer:

- “Lealdade conferi ao teu coração

Covardia que dizes, é a fuga do amor

Diria prudência, pois tem maior valor

Não ser pássaro preso em alçapão

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Querias tu quedar-se aprisionado?

Ou criar raízes ao lado da paixão?

De quem seria então o seu coração,

Se desgraça assim tivesse se confirmado?

Querias ter perdido o horizonte da estrada?

Dedicar anos de tua vida a outrem?

Se tivesses um dia ao amor se rendido

Não haveria no seu coração nada restado”

Dionísio velho vivia sim, vivia um presente infeliz ladedo à solidão. Velho e sozinho foi sua paga pelo medo de correr os riscos do amor. No passado se negou a amar todas as vezes que esse pomo lhe foi presenteado ao coração; Conservou o prazer egoísta da liberdade ilusória, abrindo e fechando porteiras sem nunca ter paragem; Tinha um pesado baú de lembranças e aventuras para arrastar agora, mas ninguém com quem compartilhar seu peso; Vivera todo tipo de experiência: conheceu todo tipo de gente e dinheiro nunca lhe faltou para o necessário. Embora destemido aventureiro, nunca ousou cruzar a linha da paixão; Tremia diante dos olhos quentes, o ferrão do amor.

Agora, jogando terra em mais uma fogueira apaga a labareda que lhe aquecia, por hora; Os fantasmas que lhe rodeavam desaparecem em gritaria. Só não se apagam as lembranças de um passado efêmero e dos amores não vividos.

- “O nada em meu coração é que restou

Maldita prudência da covardia

Rasgar o peito e abrir-se à paixão deveria

Errando o coração encontrou prazeres fúteis

Deixei de amar com leveza e doçura

Cheio de doces lembranças hoje ele estaria

Juventude do passado o tempo levou

O longínquo horizonte hoje está próximo

À solidão, a covardia me condenou”

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O lago(Janeiro, 2008)

Preciso voltar à tona antes que perca meus sentidos. Nesse azul amplo e cristalino inundado de silêncio fico ouvindo o ritmo abafado das batidas de um coração e mergulho cada vez mais fundo. E enquanto meu corpo submerso desce, meus ouvidos sentem a pressão; Ainda não vejo o leito lá embaixo – apenas o nada e o sentir de espectros que me observam ademais das sombras.

Ainda tenho fôlego para nadar até a superfície e voltar a segurança do pier. Agora lembro quando estava lá; Observava a refração da luz que se perdia infinitamente para o fundo, sem medo e em linha reta. Meus pensamentos mergulhavam na sedução daquela luz que se precipitava para o desconhecido, sem desvios, sem hesitação, ávida de vontade. Aquele reflexo me fez lembrar, minha mãe e eu, ainda menininha, ela prendendo os lindos cabelos para não molhá-los, dizendo com zelo: “cuidado Marié, fique nadando no rasinho, que é mais seguro”; Se houvesse lembrado de minha mãe antes do mergulho, talvez não fosse hipnotizada pela beleza daquele plácido lago – afogo-me nele.

É engraçado que neste instante que sou mulher, esqueço a conduta que sempre me preservou dos perigos. Por tantas vezes banhei-me em outros lagos, serenos e belos como este, mas sempre me mantive nas partes rasas, na superficialidade segura das águas, até este dia; Caminhei pelo pier até o ponto mais avançado e de lá inclinei-me para ver o meu próprio reflexo. O tempo havia passado rápido demais e no meu rosto nem mais um sinal da menininha insegura e frágil que fui. Vi, ainda ofuscada com lembranças, se espalhando em águas azuis, a beleza sedutora daquele lago, e percebi de alguma forma que não sei, que havia reciprocidade nesse encantamento, como se ele desejasse conhecer as profundezas de minha alma tanto quanto eu desejava me perder em sua imensidão. - “Marié, és bela e não sei de ti nada além de teus lindos olhos e os beijos que deitei aos

teus pés”, disse-me a luz refrada nas águas; Então mergulhei.Sinto minha alma completamente abraçada pela paz e pelo prazer de

ser absorvida por algo novo. É como se eu fizesse parte daquele todo e vice-versa, como se tudo aquilo que eu ainda não conhecia fizesse parte

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de mim. Mas é preciso voltar à tona agora antes que eu perca os sentidos; Ainda não tenho certeza se esse lago tem fundo ou seu leito jaz sob os domínios eternos de Plutão; Preciso voltar à superfície para tomar fôlego; Deixo as sombras para depois, antes que eu perca a lucidez, pois por maior que seja meu amor e meu desejo de descobrir o que se esconde dos meus olhos, é preciso resgardar o meu particular do todo. E vejo agora a luz do sol sobre minha cabeça, na tona d'água, mas antes de emergir ouço um lamento vindo do fundo, uma batida ritmada e abafada que julguei ser um coração, como se eu tivesse deixado algum sentimento de partida.

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Um dia quente(Dezembro, 2007)

A semana inteira passou e para todos os dias fui testemunha de manhãs de sol e tardes quentes. Para um mulher solteira e beirando os 60 anos, dias como esses só pioram os calores. Sessenta anos e parece que ainda ontem gozava dos meus vinte anos e peitos duros, que agora flácidos preciso massagiar todos os dias à procura dos tais caroços; Maldita doença.

Então chega o Sábado e chove; Chega o Sábado, então feira. Banca por banca arrastando meu carrinho e segurando um guarda-chuva, torna a tarefa ainda mais chata. “Olha a beterraba, dona Santa, tá novinha...”, “é aqui, é aqui que tá barato dona Santa, alface novinha....vamo levar”; Essa gente grita demais, se eu quero beterraba, eu compro beterraba, se não quero não adianta berrar. Ou será que eu deveria também ter berrado mais na vida? Ter sido menos santa? Talvez não estivesse só. Talvez meu apartamento fosse de dois quartos, com uma cozinha grande para receber os netos e filhos e uma cama de casal com um marido velho e doente para cuidar. Sei lá, acho que ser santa é ter família para dar conta.

E a chuvinha vai caindo e molhando meus peitos. Guarda-chuva de merda, não guarda nada. Já tenho quase tudo comprado só falta chuchu, onde fica? Ah, lá na banca do seu Toco...seu Toco, nunca soube porque chamam ele assim. “Tá tudo novinho dona Santa, pode escolher...”; É, vou escolher. Ao menos isto eu posso escolher. Sempre escolhendo as verduras, as roupas para vestir, os livros para ler, minha mãe sempre dizia que eu ia ficar cega de tanto ler. “Porque não vai ao baile com suas irmãs? Vê se arruma um marido”. Nunca ouvia direito, aquilo ao final parecia um alarido. O problema é que nunca me escolheram, nunca fizeram a opção por mim. “Aqui está, seu Toco, meio quilo de chuchu”. As vezes aquele ditado que diz que, “quem fala o que quer, ouve o que não quer”, é a mais pura verdade. Enquanto separava o pagamento do chuchu, me ocorreu sanar minha curiosidade fútil e saber o porque daquele apelido. “Seu Toco, porque esse apelido que lhe deram?”. O homem no alge de seus 50 anos, aparentemente, com aquela camisa aberta que dava para ver que mais

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parecia um macaco do que gente, pegou nos seus bagos e com a mão bem cheia e sem cerimônia disse “não sei não dona Santa, o povo fala demais”.

Aquele homem deveria ter vergonha de fazer uma pilhéria de tão mau-gosto com uma senhora, deveria ser preso. Fiquei muda, sem palavras e com o dinheiro na mão. Tem coisas na nossa vida que demoram tanto acontecer; Olhei para seu Toco e disse meio sem pensar, “seu Toco acho que não vou levar esse chuchu não, ele tá meio sem graça”; “O que vai ser então dona Santa?”; Olhei para o safado que ainda segura os bagos e disse, “vê pra mim meio quilo de cenoura, mas dessas ai, bem grossas”.

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Crônicas

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Ser, o verbo(Dezembro, 2007)

Sou um homem; Poderia dizer também, sou latino-americano, brasileiro, potiguar, natalense. Nas mais diversas formas possíveis de adjetivação poderia eu dizer, sou caucasiano, magro e calvo; Ou fugindo dessas qualidades físicas e políticas, eu poderia simplesmente dizer, sou um homem, sou poeta. E é essa a armadilha do verbo; E esse verbo que é tão intenso e invasivo, tão secreto e misterioso, até para o próprio indivíduo, nos prende na arapuca da busca da auto-definição.

As colunas do templo da Acrópole quardam seus mistérios milenares, suas histórias cravadas no mármore, mas estão lá, límpidas à luz do sol, e o artista com sua genialidade pode descrevê-la, o cientista vasculha suas frestas e conta a história; As células urticantes da água-viva, pençonhentas e letais, invisíveis aos olhos de suas vítimas estão lá – melhor não tocadas, são reais, e mostram de forma clara e dolor o que são; Mas o que dizer da alma do homem? - Por mais fundo que seja o buraco escarafunchado na sua alma, por mais eloqüente seja a retórica, mais nebuloso se torna o ser. E vamos por ai, sou isto, sou aquilo, não sou isto, nem aquilo; Mas somos o que afinal? Quantos adjetivos, locuções adjetivas, frases, odes e apologias geniais serão o bastante para atingir o cerne da questão? Será que Hamlet é o temos então?

Então este poeta dando-se a licensa de ser simplista pode dizer que é administrador de empresas formado pela Universidade do RN, pós-graduado em logística empresarial pelo Mackenzie, e morador do mundo. São Paulo e Natal são para este, Meca e Jerusalém, quardadas as devidas proporções, mas são meus berços de vida. Sou um homem em fuga do pragmatismo que cercou minha vida profissional e que cercam ainda, sem dúvida, muitas de minhas ações. Faço da minha poesia uma redenção da alma, um elixir de viver, uma boia de salva-vidas, e ela vai me levando à deriva nesse mar ilusionário que teimamos em chamar de realidade.

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O feixe e o peixe(Dezembro, 2007)

Os momentos raros em que o silêncio invade os cantos desse meu mundo particular, são particularmente produtivos em devaneios e lembranças. Neste trinta e um de dezembro, em particular, fui encharcado pela música de Lenine e veio a lembrança de um comportamento inocente na minha infância; Deixada lá para trás, enterrada em algum lugar da dunas de Pitangui ou pairando sobre os arrecifes de pedras que separa esta da praia de Graçandu, eu e minha trupe pescávamos ao cair de tardes de baixa-mar e eu, ingenuamente, acreditava que podia controlar o comportamento dos peixinhos e fazê-los cair em meu anzol - eles caiam; E Lenine diz: “às vezes acho que sai dos teus olhos o feixe do raio que controla a onde cerebral do peixe”.

Hoje a rua está vivendo aquele clima típico de virada de ano; Uma calma anormal nessa metrôpole que não pára; Ruas enfeitadas e palco para shows, a celebração está no ar. Vamos somando aí todas as populações do mundo cristão que, para os que aí fazem parte, acreditam de fato que o mundo todo compartilha do mesmo clima – e Lenine diz: “nenhuma rede é maior que o mar, nem quando ultrapassa o tamanho da terra”; O que tem de tão especial nessa data, além de marcar um dia num calendário válido para parte do mundo? - Talvez seja aí que entra nossa onda cerebral para controlar os peixes.

Não há de fato nenhuma mudança iminete além da virada da folhinha do calendário; Não será nada além de como acrescentar uma casa decimal num número, ou somar simplesmente mais um e igualar a dois mil e oito, ou zerar o relógio à meia-noite (mas qual meia-noite, de São Paulo ou Sydnei? – lá já é ano novo); Os peixes deste lado do mundo vão permanecer na mediocridade do seu mundo de consumo, caindo em muitos anzóis, pois há algo mais poderoso controlando suas vidas; Os judeus e mulçumanos também têm suas datas em que somam seus anos em seus calendários e caem também em anzóis do fundamentalismo e do poder.

Se eu ainda tivesse lá, nos arrecifes de Pitangui, estaria controlando os peixinhos a caírem em meu anzol, inocentemente; Nosso poder de controlar os peixes seria muito maior e mais lindamente digno,

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se fosse alinhado numa rede do tamanho da terra, em que todos caissem nela, que todos focassem suas ondas cerebrais no bem comum e felicidade geral da humanidade; Até lá, vou pescando minhas lembranças – e Lenine cantando: “eu caio na rede, não tem quem não caia”.

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Meu trabalho(Dezembro, 2007)

Na alvorada de todos os dias, pássaros de todos os matizes repetem as cantigas que aprenderam no perder da evolução, despertando o preguiçoso, anunciando mais um sol. O que dizer deles? São trabalhadores? Ninguém percebeu ainda sua importância? Então deixem os pássaros cantarem e voarem, e enchamos as estações; Ônibus, trens, metrôs e caminhões, nos levam aos escritórios, fábricas, lojas e canaviais. Não dá tempo para ouvir poesia.

Não produzo pão, não sei capinar a terra, nem cozinhar feijão. Fico aqui nesse ócio, a fazer versos e ler, ler, ler. Não produzo nada não. Não sei vender carros, jóias, roupas ou relógios, talvez as flores eu consiga vender; Seria mais honesto comigo mesmo, se tenho alguma beleza para oferecer. E o dinheiro? Vem ou não? Meu trabalho não produz nada não.

Esses dias passam a perder de vista, e a medonha ganância graça nas nossas entranhas. Sou trabalhador sim, mas de obra enfadonha. Os peões, os capitães e os soldados todos, fazem o ouro brotar de qualquer lugar, não importa quem vai pagar, nem o que vai custar, tem que produzir, tem que “prosperar”. E eu fico aqui, no meu trabalho sem nada gerar. Seria eu trabalhador? Há quem vá duvidar. Deixem para lá o cantador, vamos encher os bolsos dos capitães. A ordem não pode perder, senão a ordem desordena aí.... aí vocês vão ver.

Não há passáros cantadores na minha casa, nem árvores que os abrigue. Fico então a imaginar a cantoria que eles fazem por aí. Quanto aos outros trabalhores não posso ignorá-los, tenho aos montes ao meu lado; Angustiados, desesperançados e cansados de engordar o gado dos patrões. E com eles fico solidário, pois também não guardo nada para mim nesse trabalhar de todo dia, uma vez que meu trabalho é para agradar a alma dos outros.

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A espera de um milagre(Dezembro, 2007)

Quem desce a Hermes da Fonseca em direção ao Centro de Natal, um pouco antes de chegar à Escola Doméstica, depara-se com uma escultura fenomenal em frente a um casarão: um anjo azul colossal; Presumo que ele seja de concreto. Orna a via concedendo a todos os transeuntes e motoristas um momento de contemplação. E embora de concreto, não é real.

Acho que é uma afirmação exagerada, até, estender a tanta gente essa impressão tão particularmente minha, pois há muito conservo uma adoração por essa figura mitológica, que muito antes dos cristãos, antes dos hebreus, os gregos já idealizaram Ícaro (será que Dédalo foi o primeiro anjo caído?); Uma figura que, de longe, é a forma mais bela que um dia foi imaginada pelo homem; Divindade e humanidade coexistindo num mesmo ser: pudor e sensualidade, vida e morte, prazer e medo.

O semáforo abriu e eu fui no fluxo, mas o colosso não saiu de lá - que bobo que ele é; Ah, se eu fosse um anjo daqueles não ficaria ali acumulando fuligem de carro e cagada de passarinho, eu ia voar - para que ter asas? - Eu sairia do chão e sobre as dunas iria revoar; Pegaria carona no vento como a jangada faz no mar; Deixaria o povo ver as maravilhas da fé; Mas ele fica lá, inerte. Invejo os antigos que assistiram as maravilhas diante dos olhos: viram o mar abrir em colunas de vento; viram leite e mel brotarem de pedras; viram muralhas ruirem ao som de trombetas; viram água transmutar em vinho e o Homem caminhar sobre as águas.

Hoje não vemos maravilhas acontecerem, até parece que depois que a Rosa nasceu em Roma, os céus deixaram de deitar sobre nós os seus encantos. Somos alvejados por balas à esmo, somos estrupados à esmo, somos roubados e saqueados à esmo, e os anjos ficam lá, inertes, como se nós não precisássemos, nem merecéssemos seus milagres. E as vezes imagino que o divino prefere assim, ficar quieto “fingindo-se de árvore”, assistindo a nos destruirmos.

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Um relance(São Paulo, 28/06/05)

O que se passa pelo lado de fora das janelas dos ônibus, pode muito bem ser ignorado – fatos comuns. E assim, ignorando o que nos rodeia, desperdiçamos muitas vezes a oportunidade de observar com mais cuidado as nuances de coisas que acontecem ao nosso redor. Foi numa dessas oportunidades que vi a vovó na calçada. Não sei seu nome; Pensei em chamá-la de vó Breda, pois era esse o nome da loja onde ela estava parada bem em frente ao ponto de ônibus. Trazia, como companhia de caminhada, preso numa guia, seu cachorrinho de pêlo castanho. A vó trajava a desarmonia: um vestido rosa com estampa de flores azuis, um gorro verde e listras amarelas (era uma manhã fria) e chinelos pretos abrigando pés vestidos com meias do Mickey (ou Mine, não sei direito – culpa da miopia). A janela do ônibus emoldurava aquela figura que transgredia de simplicidade.

Num curto momento, num relance, observei aquela velhinha simpática que cumprimentava a todos que por ela passavam. Vó Breda oferecia a cada um seu largo sorriso, na sua despretensiosa generosidade; Aquele sorriso trazia uma luminosidade impressionante. Nítida era a transformação nos rostos das pessoas saudadas por aquela mulher que carregava, pelo menos, 80 anos em seus ombros. Era afável e, apesar da idade, irradiava vitalidade. O ônibus deu partida e se afastou. Talvez tenha sido a primeira e também a última vez que vi a vó Breda; Talvez é tudo - é só isso que tenho dela agora; Talvez aquele dia tenha sido seu último dia; Talvez seu corpo cansado já tenha vivido o bastante.

Da calçada, seu sorriso era de despedida - mas fui eu quem acenou um adeus da janela. Passei então a procurar nela os vestígios. Tentei ver naquela mulher as marcas das amarguras e tristezas da vida. Na poesia de sua pele enrugada precisava encontrar o sofrimento de toda uma vida. Algum vestígio de rancor, de frustração ou arrependimento, mas nada. Ela era linda, alegre e estava bem viva. Será que era casada ou viúva? Será que tinha filhos, netos e bisnetos? O que sei de vó Breda? Será que ela era sábia? Ou apenas feliz? Será que vó Breda sorria por acumular em seus ombros, muito mais à comemorar do que eu já acumulara de meu até aquele

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dia? Que certeza tenho do meu futuro? Fiquei intrigado com ela; De onde vinha a simplicidade transformadora daquele sorriso? Não sei nada de vó Breda. Tenho apenas meus dons imaginativos sobre os medos e incertezas de alguém que espera viver muito, mas não sabe muito bem para que. E fico com a lembrança guardada de vó Breda e seu cachorrinho de pêlo castanho: uma festa de cores e sorriso.

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Crônica de um homem encasulado(São Paulo – Março/2007)

Os poetas surgem de casulos. Ficam lá, abrigados das inteperes da vida maturando seus pensamentos, seus sentimentos, suas vontades, verdades e mentiras. Nascem de forma bruta e disforme, pençonhentos e rebeldes. Eu sou uma dessas lagartas feias e asquerosas, que rastejam e devoram folhas.

É preciso nutrir o coração de versos, palavras e fantasias. Hoje me sinto uma lagarta gorda e nutrida de poesia, pronta para romper o casulo da insegurança e abrir as asas para a aventura de viver em cores mais vivas. Meus versos estavam cristalizados na minha alma como grãos de sal que surgem e tomam forma ao passo que o sol draga a água da salina. Não estou pronto plenamente, como nunca estarei. Estou firme e seguro de meu desejo de ser reconhecido e ter meus versos identificados por outras lagartas famintas de poesia.

O mais importante nesse momento é criar uma conexão com outras verdades semelhantes, outra vidas, outras pessoas, que se reconheçam em minhas palavras e que possam até dizer quem eu sou. E isto acaba se transformando na grande verdade. O poeta espera que o outro possa dizer quem ele é, o que ele representa. Uma interpretação ecoada na percepção do leitor que traduz ao seu bel prazer as verdades e mentiras "versificadas".

É hora de voar, de navegar e sair para vida. As minhas impressões digitais são minhas palavras, e elas são o registro de uma vida de muitos sonhos e frustações.

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Sem novidade(Janeiro, 2008)

Quando o sol lança seus primeiro raios sobre os colossos de São Paulo, é por que já queimou as areias de Natal muito antes. Latitudes diferentes dentro do mesmo fuso horário é o motivo deste fenômeno. Lembro disto toda as vezes quando abro os olhos, pois ele me chamando, “hôme acorde, tá passando das nove”. Desconsiderando as diferenças físicas evidentes dentre essas cidades, fico lembrando agora muito mais de suas similaridades, afinal existe um fato muito mais contundente entre elas do que os acidentes geográficos, que é o acidente Brasil; Para escrever a gente sempre procura alguma novidade, então fico aqui quebrando a cabeça para descobrir uma, seja aqui em Sampa ou nas areias de minha terra – novidade está difícil.

Fujo muito deste gênero, pois sinto dificuldade mesmo de converter as palavras. Prefiro ler minha amiga Zélia Freire que basta passear seus dedos pelos mestres para nos brindar com seus textos, fica lá escondida do sol; Ou mesmo José Correia que garimpando da trivialidade diária nos oferece suas palavras bem cosidas; Ou Yasmine Lemos e a delicadeza de seus poemas; Mas eu vou para rua, preciso do movimento. Camiseta, jeans, tênis e rua. E pegue sol na cabeça, e pegue café na goela, mas novidade está difícil. O que você assiste na rua? Pedinte, carroceiro de papelão, carros e carros, ônibus lotados, gente apressada....seja aqui, em Natal ou qualquer outro lugar desse país, as cenas são as mesmas; Novidade está difícil.

Vamos, pegue o jornal para ler as notícias. Ahh, como se fosse fácil. Vamos ler sobre os desabrigados da última chuva, seus prantos, seus desesperos, suas misérias; Vamos ler sobre os congestionamentos e transtornos do trânsito, o caos, os desperdícios, os atropelamentos; Vamos ler sobre os assaltos aos bancos, aos motoristas, ou o suicídio de um assaltante encurralado; Não, não, vamos ler sobre as propriedades invadidas por movimentos agrágrios e urbanos; Melhor, vamos ler sobre a vida fútil das celebridades que nos contam empolgadas sobre suas últimas compras e viagens, como se aquilo fosse a realização sublime de toda uma vida, e que a esmagadora maioria nunca terá acesso, mas quer saber; Está

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difícil trazer uma novidade aos leitores; Pois é tudo velho, tudo manjado, tudo caduco e sem solução (que Deus vos abençoe, pobres jornalistas).

Saiu à rua e é tudo igual. As pessoas correndo para ganhar dinheiro para pagar a prestação do carro e o aluguel, pessoas pedindo em todas as esquinas, ou querendo ti vender algo que você não precisa – o consumo, o consumo. O Viaduto do Chá vem chegando e logo vem à cabeça o histórico de suicídios deste cenário, que agora já não dá mídia, pois recentemente vi um homem que se atirou de lá e nem um comentário sequer na TV, que tanto gosta de sangue (quem sabe esse homem também não cansou de esperar por novidades?). Valhei-me loucos poetas, quando cantam paraxodos deitados em areias de praias sob forma de sereias; Novidades enchendo museus impregnando nossos narizes de mofo novo; Seus delírios sempre tão bem-vindos e necessários para colorir esse cinza que teima em fazer parte de nosso dia-a-dia tão repleto de vazio e velharia.

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