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REVISTA HISTORIA Y SOCIEDAD NO. 12, MEDELLÍN, NOVIEMBRE 2006, PP. 107-131 Serviços e mercês de vassalos da América Portuguesa Ronald Raminelli* Resumo No período filipino (1580-1640) muitos vassalos da América portuguesa enviaram relatos aos monarcas castelhanos sobre seus feitos militares e ai acrescentavam descrições da fabulosa riqueza do Brasil. Os escritos procuravam tanto valorizar a bravura dos conquistadores lusitanos e respaldar seus pedidos de mercê quanto viabilizar o governo a distância por meio de inventários da natureza. Durante a União Ibérica, ao rogar por mercês, os vassalos do Brasil deveriam concorrer com conquistadores, militares, mineiros e comerciantes de todo império espanhol. Oriundos da periferia, esses súditos brasílicos deveriam demonstrar o quanto as terras defendidas por suas bravuras eram relevantes. Sem esses subsídios, acreditavam que seus serviços não seriam alvo de recompensas. Por isso, tornava-se conveniente descrever as plantas, os animais, a fertilidade do solo e as fabulosas reservas de metais preciosos ainda escondidas na natureza. Palavras chave: União Ibérica, Brasil S. XVII, América portuguesa, Imperio Portugués, Período filipino, vassalos, mercê. Abstract During the philipin period (1580-1640) many vassals of the Portuguese America sent reports to the Spanish Kings about their military facts and Artículo recibido el 13 de junio de 2006 y aprobado el 15 de septiembre de 2006. * Historiador y Profesor adjunto IV de la Universidad Federal Fluminense.

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REVISTA HISTORIA Y SOCIEDAD NO. 12, MEDELLÍN, NOVIEMBRE 2006, PP. 107-131

Ronald Raminelli 107

Serviços e mercês de vassalos da AméricaPortuguesa

Ronald Raminelli*

Resumo

No período filipino (1580-1640) muitos vassalos da América portuguesaenviaram relatos aos monarcas castelhanos sobre seus feitos militares e aiacrescentavam descrições da fabulosa riqueza do Brasil. Os escritosprocuravam tanto valorizar a bravura dos conquistadores lusitanos erespaldar seus pedidos de mercê quanto viabilizar o governo a distância pormeio de inventários da natureza. Durante a União Ibérica, ao rogar por mercês,os vassalos do Brasil deveriam concorrer com conquistadores, militares,mineiros e comerciantes de todo império espanhol. Oriundos da periferia,esses súditos brasílicos deveriam demonstrar o quanto as terras defendidaspor suas bravuras eram relevantes. Sem esses subsídios, acreditavam queseus serviços não seriam alvo de recompensas. Por isso, tornava-seconveniente descrever as plantas, os animais, a fertilidade do solo e asfabulosas reservas de metais preciosos ainda escondidas na natureza.

Palavras chave: União Ibérica, Brasil S. XVII, América portuguesa, ImperioPortugués, Período filipino, vassalos, mercê.

Abstract

During the philipin period (1580-1640) many vassals of the PortugueseAmerica sent reports to the Spanish Kings about their military facts and

♣ Artículo recibido el 13 de junio de 2006 y aprobado el 15 de septiembre de 2006.

* Historiador y Profesor adjunto IV de la Universidad Federal Fluminense.

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therefore incremented the descriptions of Brazil’s fabulous wealth. Thewritings procured to value the braveness of the Lusitan conquerors as wellas to endorse their demands for grace to make possible the distancegovernment through nature’s inventories. During the Iberic Union, whenbegging for graces, the Brazil’s vassals should converge with conquerors,soldiers, miners and merchants from all the Spanish Empire. Coming from theperiphery, brazilian vassals should demonstrate how the lands defendedtrough their braveness were important. Without the economic help, theirservices would not be worthy of rewards. Therefore it became convenient todescribe the plants, the animals, the fertility of the soil and the fabulousprecious metals reserves hidden in the nature.

Keywords: Iberic Union, Brazil XVII century, Portuguese America, PortugueseEmpire, Philipin period, vassals, grace.

de mercadores portugueses quanto àtradição das comunidades conquistadasou aliadas.

1 Embora as possessões se

mantivessem interligadas à metrópole,não existia, até o século XIX, umaconstituição colonial unificada. Oimpério ultramarino, enfim, significavaconexão de pontos dispersos, laços quemultiplicaram, entrelaçaram ouextinguiram-se ao longo do tempo.

Para manter a unidade, a monarquiaestabelecia, nas possessões, ora umgoverno tradicional e formal, inspiradonos modelos administrativos do reino,como os concelhos e as capitanias-donatarias; ora recorria a controlesmenos institucionalizados, mais frouxoscomo fortalezas, feitorias, protetoradose vassalagem. Os entraves financeirose populacionais originaram um conjun-to heterogêneo, descentralizado, forma-do por núcleos políticos relativamenteautônomos. Os portugueses do além-mar não se firmavam apenas nas áreascom estrutura militar e administrativa

O império marítimo portuguêsintegrava pontos dispersos nas quatropartes do mundo. Eram fortalezas,feitorias e pequenas terras delimitadaspor oceanos. Contando com populaçãodiminuta, a Coroa deveria arquitetarmeios de manter vastas áreas sob con-trole, valendo-se de estratégias paracompensar as longas distâncias entreLisboa e as possessões apartadas. Adescontinuidade geográfica era parti-cular no Estado da Índia, quecompreendia conquistas e descobertasno imenso litoral entre Moçambique eMacau. Essas possessões formavamredes, unidades interligadas pelacirculação de bens, pessoas einstituições. O domínio espacial eramenos relevante, quando comparado àcirculação mercantil e ao controle ma-rítimo. Nas localidades, por vezes, aorganização jurídica, política e adminis-trativa adaptava-se tanto aos interesses

1 Luís Filipe Thomaz, De Ceuta a Timor, Lisboa,

Difel, 1994, pp. 207-210.

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formal. O império ainda reunia comu-nidades lusitanas amplamenteautônomas, apesar de adotar asinstituições civis do reino, como osmercadores de São Tomé no leste daÍndia e em Macau. Existiam-se, igual-mente, indivíduos que adquiriram terras,vilas ou jurisdição sobre povoadosestabelecidos fora do império formal,como os afro-portugueses “muzungos”da Zambésia, os paulistas no interior daAmérica Portuguesa, os mercenáriosem guerra em Burma e Sião. Nesserol constavam também os portuguesescasados e residentes fora da jurisdiçãoportuguesa, que recusavam asinstituições civis da pátria e não seincorporavam ao domínio imperial. Valeainda incluir os missionários, as comu-nidades cristãs e as elitesaportuguesadas, como a do reino doCongo.

2 Enfim, a presença lusa nos

continentes longe esteve de umaregularidade, o império estava emconstrução, e por isso torna-seinteressante entender, ao menos emparte, sua dinâmica centralizadora.Para tanto, recorro aos laços entre osoberano e alguns súditos radicados na

América Portuguesa como ponto departida para pensar a dinâmica dessasconexões entre os séculos XVI e XVII.

Mesmo com projeto de colonizaçãoagrícola, por muito tempo, o Brasiltambém interligou-se à metrópole deforma fragmentada, era arquipélago.

3

Em princípio, a presença lusa nãopromoveu controle extensivo doespaço. Compartimentado entre o lito-ral e o sertão, os domínios portuguesesse resumiam a poucos núcleos nasproximidades do mar e rios, queatuavam como ilhas, enquanto aimensidão de terras permanecia quasealheia ao processo da conquista. Nemmesmo o governo geral, instituído em1549, reverteu a tendência centrífuga,permitindo que a mais prósperacapitania, Pernambuco, mantivesse,tempos depois, vínculos mais fortes comLisboa, ao invés de aliar-se ao centroadministrativo em Salvador. Os conflitose a frágil integração entre os núcleosexplicavam os entraves à centralizaçãopolítica que ainda se atrofiava com gue-rras externas e internas. Ao menciona-do descompasso, acrescentava-se adiversidade de nações que inviabilizavauma legislação unificada para os povosdas conquistas.

Ai havia moradores brancos prove-nientes do reino ou nascidos na Améri-ca, reinóis e mazombos (brasileiros);cristãos velhos e novos; mestiços di-versos; índios escravos e livres, tupis emuitos tapuias; negros forros eescravos. Os reinóis cristãos velhosestavam mais aptos a assumir cargose receber privilégios, enquanto os

2 Malyn Newitt, “Formal and informal Empire in

the History of Portuguese Expansion”, em:Portuguese Studies (17), 2001, pp. 1-21. AntónioManuel de Hespanha e Maria Catarina Santos,“Os poderes num império oceânico”, em: Históriade Portugal. O Antigo Regime, v. 4, Dir. JoséMattoso, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, pp.395-413.3 Sobre o tema ver: John Russell-Wood, “Centro

e periferia no mundo luso-brasileiro, 1500-1808”,em: Revista Brasileira de História (36), v. 18,1998.

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escravos eram, depois dos mestiços eforros, os mais periféricos em relaçãoao poder central. A coroa relutava emconceder altos cargos públicos apessoas com “sangue impuro” pelaorigem negra, indígena ou judaica.

4 A

diversidade étnica e social tornavaainda mais difícil a administração colo-nial, situação que se agravava devido àinexistência de um corpo de leis espe-cífico para a possessão. As OrdenaçõesManuelinas e Filipinas foram igualmen-te aplicadas na América com auxílio de“leis extravagantes”. Criadas para oreino, essas leis nem sempre eramadequadas à heterogeneidade socialvigente no ultramar. Se as distâncias,os inúmeros grupos e conflitos eramcomo forças centrífugas, havia, porém,elementos que atuavam como imãs,atraindo para o centro pontos distantesda periferia.

5

O comércio e a agriculturaconstituíam fatores indispensáveis aofuncionamento da grande rede coman-dada pelos portugueses. Os diversospontos integravam-se pela circulaçãode mercadorias, homens e instituições.Oriundos dos domínios ultramarinos, opau-brasil e a cana-de-açúcar ativavama economia metropolitana eimpulsionavam a interdependência en-tre as áreas americanas e Lisboa. Apartir de fins do século XVI, o tráficode escravos ainda ativava conexõesentre as costas da África e América,como bem demonstraram Boxer eAlencastro.

6 O comércio fomentava a

construção de vilas e fortalezas,indispensáveis à defesa do território. Em1530, o plano de colonização do Brasilpretendia, ao mesmo tempo, proteger asterras contra as investidas estrangeirase inserir a possessão no comércio inter-nacional, a partir da produção de cana-de-açúcar. Ao longo do quinhentos, per-cebe-se que a inserção de novas áreascoloniais obedecia a mesma lógica, aintegração comercial. As capitanias deSão Vicente, Pernambuco e Bahiaficaram mais próximas da metrópole pormeio do açúcar. O produto atraíainvestimentos, reinóis, comerciantes eescravos, promovia a construção defazendas, vilas, fortificações, igrejas,reproduzindo nos trópicos as instituiçõesportuguesas.

4 Sobre a heterogeneidade da sociedade colonial,

ver: C.R. Boxer, Relações raciais no ImpérioColonial Português, Rio de Janeiro, Civilização,Brasileira, 1967; Maria L. Tucci Carneiro,Preconceito racial no Brasil Colonial, São Paulo,Brasiliense, 1983; Stuart B. Schwartz, “Theformation of a Colonial Identidy in Brazil”, em:Nicholas Canny and Anthony pagden (editores),Colonial Identity in the Atlantic World, Princeton,Princeton University Press, 1987, pp. 15-50.5 Sobre os conceitos de centro e periferia ver:

Edward Shils, Center and Peripheries; essays inmacrosociology, Chicago, The University ofChicago Press, 1975; Jack P. Greene“Transatlantic Colonisation and the redefinitionof Empire in the Early Modern Era”, em:Negociated Empires; centers and peripheries inthe Americas, London, Routledge, 2002, pp. 267-282.

6 C.R. Boxer, Salvador de Sá e a luta pelo Brasil

e Angola, São Paulo, Companhia Editora Nacional,1983; Luiz Felipe Alencastro, O trato dos viventes,São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

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No entanto, a agricultura e aextração de pau-brasil não eram asúnicas potencialidades da conquista.Havia ainda muitas áreas férteis e re-cursos a serem descobertos ao longodo litoral e no interior dos sertões. Paramanter o monarca informado, osvassalos percorriam a costa e as terras,realizavam descobertas e, logo,comunicavam ao centro os resultadosdo empreendimento. Os primeiros es-critos narravam a surpreendentefertilidade do solo, indicavam aexistência de minas, mapeavam os riosnavegáveis, descreviam os habitantes,as plantas e os animais. Essas notíciaseram, aqui e ali, formas de manter asredes em funcionamento, de incremen-tar os laços entre Lisboa ou Madri e aAmérica. As viagens, enfim,promoviam estreitamento entre mundosapartados. Nos diários, os vassalosrecriavam a natureza e os feitos portu-guesas no ultramar e os conduziam aPortugal ou a Castela, no tempo daunião das Coroas. Eram por meio depapéis que o monarca tomavaconhecimento das terras, traçavaestratégias para posse e efetivaexploração. Os escritos tambémdenunciavam os desmandos dos pode-res locais, os contrabandos e as práticascontrárias aos interesses da RealFazenda. Se essas notícias eramindispensáveis aos empreendimentosultramarinos, os vassalos, sobretudo ossúditos letrados, almejavam privilégiosque atuavam como recompensa paraas viagens exploratórias e as notíciasreunidas.

As trocas entre vassalos e o sobe-rano permitem entender, em uma outraperspectiva, os vínculos entre o centroe as periferias. Por meio de inventários,crônicas e mapas, o mundo colonial eracodificado e transformado em papelpara ser enviado ao núcleo administra-tivo. No passado, esses registrosviabilizavam o domínio de terras distan-tes, enquanto hoje permitem refletirsobre a dinâmica da “centralidade”. Asteias informativas dentro do impérioforjavam-se aos moldes da sociedadedo Antigo Regime, seguiam a mesmalógica hierárquica, a mesma busca deprivilégios e distinções. Como qualquerserviço prestado à realeza, oconhecimento era parte de uma troca,de um negócio entre o rei e seussúditos. Virtude própria dos soberanos,a liberalidade era mecanismo de recom-pensa. Esses vassalos, por sua vez,radicavam-se no ultramar, nas franjasdo império, e produziam conhecimentoindispensável à manutenção do domínio;ao mesmo tempo, criavam elos com orei e sua administração, viabilizando ogoverno a distância. Afinal, produzirconhecimento era forma de estar nocentro e desfrutar de privilégios própriosda corte. Mas o mundo colonial trans-formado e transportado em papel nãointeressava apenas à Coroa. Vice-reise governadores também recebiamserviços de subordinados e viabilizavamcargos e mercês, concedidos pelo rei.Eram, enfim, intermediários entre osmoradores das conquistas e o rei. Comoo comércio e a agricultura, administra-dores, moradores e viajantes ativavamtambém os laços entre as partes do

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império, alimentavam a rede,conectavam os pontos distantes sobcontrole dos portugueses. Esses agen-tes eram indispensáveis ao processo degovernar as possessões, poisinterligavam terras e gentes do império,promoviam os negócios e efetivavama liberalidade régia.

Feitos e mercês no Brasil

Desde Pero Vaz de Caminha, a ló-gica da recompensa perpassa boa par-te da trajetória dos exploradores daconquista. Ao final da famosa carta dodescobrimento, o escrivão refere-se apedido de mercê: “Pois que, Senhor, écerto que assim, neste cargo que levo,como em outra qualquer coisa, que deVosso serviço for, Vossa Alteza há deser, por mim, muito bem servida. A Elapeço que, para me fazer singular mercê,mande vir da Ilha de São Tomé, Jorgede Osório, meu genro, o que d’Elareceberei em muita mercê”.

7 Não era

a primeira vez que a família Caminhasolicitava ao rei cargos e favores. Opai do escrivão, Vasco Fernandes deCaminha, solicitou a D. Afonso V anomeação do filho para substituí-lo nocargo de mestre balança da cidade doPorto, depois de seu falecimento. Osoberano acatou o pedido e concedeuao cavaleiro da casa real, Pero Vaz deCaminha, a mencionada mercê. Emcarta régia de 1496, ano da morte do

pai, D. Manuel I confirmou suanomeação. Caminha, porém, nãodesfrutou da função por muito tempo,pois, em 1500, partiu rumo à Índia, comoescrivão da esquadra de ÁlvaresCabral. À época, o escrivão era senhorde 50 anos, e, talvez, idoso paratamanha aventura. No entanto, poderiaservir ao soberano em troca de favo-res, mesmo que tivesse de enfrentarmares tenebrosos para resolver proble-mas familiares.

A descoberta de terras eraoportunidade de escrever ao rei.Esmerando-se nos detalhes, descreveua experiência, “aquilo que via”, atravessia, as praias e os povos. Em for-ma de diário, tinha a responsabilidadede traduzir ao soberano osacontecimentos, desde os primeiros“sinais da terra” a cerimônias religio-sas que asseguravam aos cristãos aposse do território. Os homens de beiçosfurados e nus certamenteabandonariam seus costumes paraabraçar o cristianismo, enquanto o soloforneceria os metais necessários aocomércio oriental. Além de riquezas, acarta ainda fornecia subsídios paracomprovar, junto aos soberanos deCastela, o controle sobre as novas con-quistas. Afinal, o relato demonstravaque as descobertas localizavam-se den-tro dos limites impostos pelo Tratadode Tordesilhas. Tão logo as notíciaschegaram a Lisboa, D. Manuelescreveu aos reis católicos, tomandoposse da Terra de Santa Cruz.

Executado o esmerado serviço,Caminha solicitou ao rei mais uma

7 A carta de Pero Vaz de Caminha, Estudo crítico,

paleográfico-diplomático de José Augusto VazValente, São Paulo, Museu Paulista-USP, 1975, p.194.

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mercê que pretendia atenuar os dile-mas da filha. Ao deixar a cidade doPorto, o escrivão abandonava sua es-posa e filha, senhoras que teriam desobreviver sem apoio de seus maridos.Sua filha, Isabel de Caminha, casara-se com Jorge de Osório, que, por co-meter delitos, estava como degredadoem São Tomé. Na carta dodescobrimento, o escrivão solicitava aosoberano perdão e retorno do genro.Afinal, ele, senhor idoso, abandonara afamília para aventurar-se na Índia,deixando netos e mulheres desampa-radas. Sem conhecer a sorte do genro,Pero Vaz de Caminha faleceu em 16de dezembro de 1500. Para recompen-sar os serviços prestados e atenuar amorte do chefe de família, D. Manuelconcedeu ao neto, Rodrigo de Osório,o cargo de mestre da balança da cidadedo Porto. Durante muitos anos, osCaminha desempenharam a mesmafunção, pois D. João III nomeou outroneto, que, em homenagem, também sechamava Pero Vaz de Caminha.

8

Com a descoberta, os portuguesespromoveram, de forma incipiente,viagens de exploração e comércio paranomear, mapear e localizar reservas depau-brasil ao longo da costa. Antes de1530, porém, não se produziram escri-tos que ampliassem os conhecimentospara muito além da carta de Caminha.Sem ouro ou especiarias, a conquistaera de pouca monta, razão do descui-

do. O soberano investia esforços na rotainaugurada por Vasco da Gama,enquanto a Terra de Santa Cruzpermanecia como reserva de madeiracorante, explorada tanto por portugue-ses quanto por franceses. Além dacartografia, os portugueses pouco sededicavam a descobrir e a descreveras grandezas do Brasil. No reinado deD. João III estabeleceu-se, de fato,uma política de ocupação das novasterras que se iniciava com a expediçãode Martim Afonso de Sousa ao litoralamericano. Após 1530, devido àsincessantes investidas francesas, o so-berano iniciou efetivamente acolonização do Brasil, como bemlembrou, saudoso, Gabriel Soares deSousa. A expedição assentou padrõese, em princípio, garantiu a posse deextenso litoral entre o Amazonas e orio da Prata e, em seguida, estabeleceunúcleos de povoamento cominstituições administrativas. Expulsoufranceses de reservas de pau-brasil nonordeste, protegeu a “costa do ouro eprata”, território ao sul, onde fundou avila de São Vicente, em ilha do litoral, euma outra, a nove léguas no sertão,chamada Piratininga.

Durante essa jornada, entre 1531 e1532, o escrivão Pero Lopes de Sousaproduziu um cuidadoso diário que, aoretornar a Lisboa, cederia a D. JoãoIII, para informar-lhe dosacontecimentos.

9 Os registros eram

8 José Augusto Vaz Valente, “Pero Vaz de

Caminha”, em: A carta de Pero Vaz... pp. 40-47.

9 Pero Lopes de Sousa, Diário da navegação,

Prefácio de Teixeira da Mota, Lisboa, AgênciaGeral do Ultramar, 1968.

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imprescindíveis ao trabalho dos cartó-grafos, pois localizavam e nomeavamilhas, baías e costas, mediam distâncias,descreviam o clima e as gentes encon-tradas, além de indicar paragens ondese poderiam refazer os estoques deágua e mantimento da frota. Os infor-mes eram indispensáveis aos navegan-tes que continuariam a proteger o lito-ral das investidas francesas. O diárioainda trazia notícias precisas das co-munidades radicadas no litoral, desta-cando vínculos entre os ameríndios eos “invasores”. Lopes de Sousa erairmão de Martim Afonso de Sousa eprimo-irmão de D. Antônio de Ataíde,conde de Castanheiro, membro doConselho Real e muito próximo ao rei.Estudou na Universidade de Coimbra,aventurou-se em expedições guarda-costas no litoral atlântico e, em segui-da, percorreu a costa brasílica naexpedição de Cristóvão Jacques, entre1526 e 1528. Em nome do rei português,auxiliou os espanhóis ao comandar anau enviada a Tunes contra os infiéis.Como capitão-mor de armada,deslocou-se para Goa, em 1539.Combateu em Safim juntamente comTomé de Sousa e, por todos essesserviços prestados, recebeu comodoação uma capitania no Brasil, dividi-da em três quinhões: Santo Amaro,Sant’Ana e Itamaracá. Seus escritos,serviços e valentia, enfim, resultaramna posse de terras, privilégio que era oreconhecimento dos feitos ofertados aosoberano. Na verdade, servir a coroaconstituía um modo de vida para dife-rentes estratos da sociedade lusitana.Parte da sobrevivência material, o

oferecimento de préstimos eracondição para pedir mercê, como for-ma de compensação. O justo prêmioimpulsionava súditos e vassalos a pro-mover guerras contra os infiéis, des-bravar e descobrir terras, tomando no-tas para demonstrar ao soberano oquanto batalhou em favor damanutenção e expansão de seusdomínios. Pero Lopes de Sousa, porém,não tomou posse da capitania no Bra-sil, talvez devido ao falecimento pre-maturo, em 1539, durante a viagem deretorno da Ásia, em naufrágio na altu-ra de Madagascar.

Por volta de 1570, a saga dosprimeiros portugueses na Américaganhou registros que narravam os feitosde Cabral e dos irmãos Sousa,descreviam a exploração de pau-brasil,a cultura da cana, a construção de vilase engenhos. Dedicado ao mui alto esereníssimo príncipe dom Henrique,Cardeal e Infante de Portugal, o “Tra-tado da Terra do Brasil” de Pero deMagalhães Gandavo concedia, porcerto, informações valiosas da históriae geografia da nova possessão lusa.Seus préstimos, frutos da pura atenção,contribuiriam para aumentar e conser-var, em perpétua paz, súditos evassalos, como o Cardeal sempredesejou. Para Gandavo, as notícias daterra divulgariam suas riquezas entreos pobres do reino que, na América,poderiam viver e cultivar a felicidade.Por essa razão, determinou-se a coligi-las com a deliberação de oferecer a SuaAlteza, a quem pediu humildemente queaceitasse, ficando ele satisfeito com

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tamanha mercê. O tratado, porém, nãoseria logo publicado, como fora a suaHistória da Província de Santa Cruz(1576). O mencionado tratado somenteteve impressão em Lisboa em 1826.

Quando comparado aos escritos deSoares de Sousa, o tratado e a históriademonstram, com nitidez, o acanhadoconhecimento do território. Emprincípio, considera-se que Gandavoesteve por aqui por pouco tempo,certamente não esteve em Pernambucoe em outras regiões de onde forneceupoucas e esparsas notícias. Mas hátambém a possibilidade de nunca terpisado em terras brasílicas. Devido àsua crônica, ele recebeu mercê, comoreconhecimento, talvez, de seu valorliterário e estratégico. Em agosto de1576, no mesmo ano da publicação dahistória dos feitos portugueses noAtlântico sul, foi nomeado provedor daFazenda da capitania de Salvador daBahia de Todos os Santos.

10

Seus escritos possuem mérito de di-vulgar, em breves notícias, a fertilidadee a abundância das novas terras. Depoisde publicadas, elas ganhariam fama eincentivariam os súditos pobres e des-amparados que as escolheriam para re-mediar os seus males. Para além daslavouras, o autor mencionou doisatrativos irrecusáveis e capazes de pro-

mover paz aos desvalidos do reino:metais e escravos. O aumento das vilascoloniais contaria com “terras viçosas”de onde surgiriam “grossas fazendas”e muita prosperidade. Do interior,porém, vinham informações daexistência de metais que estavaminexplorados devido à ausência de gen-te, ou mesmo devido à negligência demoradores que não se dispunham aotrabalho. Nessas paragens quaseparadisíacas, o labor seria atenuado,pois com poucos escravos os morado-res remediavam os sustentos: “Aspessoas que no Brasil querem viver,tanto que se fazem moradores da terra,por pobre que sejam, se cada umalcançar dois pares ou meia dúzia deescravos”, teriam seu sustento reme-diado. Dispondo de 10 cruzados, ossúditos poderiam adquirir um escravoque logo caçaria, plantaria e produziriamantimentos. Acumulariam riquezas eviveriam muito mais felizes do que seestivessem no reino; em terrasbrasílicas, “... nenhum pobre anda pe-las portas a pedir como neste Reino”.

11

Gandavo, enfim, esboçava propostadestinada a harmonizar dois mundos,entrelaçá-los, integrá-los para alcançara esperada felicidade. Os pobresdeslocar-se-iam para América ealiviariam a pobreza do reino. Assim,ao mesmo tempo, tomariam posseefetiva e explorariam as riquezas nati-vas. Não sem razão, o projeto recebeuo reconhecimento do infante, expresso

10 Diogo R. Curto, “Cultura escrita e prática de

identidade”, em: História da ExpansãoPortuguesa, v. 2, Dir. de Francisco Bethencourt eKirti Chaudhuri, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998,p. 487.

11 Pero de Magalhães Gandavo, Tratado Descritivo

do Brasil e História da Província de Santa Cruz,São Paulo/Belo Horizonte, Edusp/Ed. Itatiaia,1980, p. 44.

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na publicação da História daProvíncia de Santa Cruz e naconcessão de cargo.

Serviços aos Felipes deEspanha

A União Ibérica promoveu amodernização do sistema políticoportuguês, ao recorrer a reformas quealteraram tanto a comunicação políti-co-administrativa entre o rei e o reinoquanto as modalidades do exercício depoder. “No que toca especificamenteà história do Brasil, podemos dizer queesse foi momento em que o Brasil seintegrou plenamente no sistema impe-rial, suscitando um interesse crescentepor parte da metrópole”.

12 Desde 1603,

a organização jurídico e administrativado reino português e das terrasbrasílicas pautava-se nas OrdenaçõesFilipinas que, entre outras mudanças,instrumentalizava o governador–gerala fomentar a produção agrícola. Cominsistência, a burocracia determinava aconstrução de engenhos, o cumprimentorigoroso da lei de sesmaria a qualestipulava prazo para exploração dasterras doadas pela Coroa. Cuidou-seainda de fiscalizar, de maneira incisiva,o corte de madeiras e de incentivar aprodução de estatísticas civil, militar eeclesiástica do Estado do Brasil. Entreos dados coletados deveriam constaros “salários pagos, quantidade e

discriminação dos cargos e funções, areceita e a despesas da Fazenda Real,bem como o número de praças, forta-lezas e capitanias existentes”.

13

O governo dos Felipes, portanto,estimulou o fortalecimento dos laçosentre a metrópole e seus domínios, semdescuidar das possessões portuguesasna América. O incentivo não era ape-nas resultado do incremento daprodução agrícola e das baixas no Es-tado da Índia. O afã de promoverinventário do mundo colonial era umamarca do governo castelhano,responsável pela execução das Rela-ciones Geograficas nos Vice-reinosda Nova Espanha e do Peru. Certo daboa acolhida de seus escritos sobre oEstado do Brasil, o português radicadona Bahia, Gabriel Soares de Sousa,dirigiu-se à Corte de Felipe II com aintenção de informar-lhe das grande-zas brasílicas. Natural do Ribatejo,chegou à cidade de Salvador em 1569,durante viagem em direção à Índia. Aoconstatar as boas oportunidades deenriquecimento, decidiu ficar eempregar seus recursos na lavouracanavieira. Não se interessou apenaspor empreendimento agrícola, por muitotempo recolheu informações queseriam vitais para seus pleitos na Cor-te castelhana. .

Por quase duas décadas, GabrielSoares de Sousa residiu no Estado doBrasil e reuniu conhecimento digno denotas. Em Madri, durante a espera deum despacho, resolveu tirá-las a limpo,copiando-as em um caderno para

12 Guida Marques, “O Estado do Brasil na União

Ibérica”, em: Penélope (27), 2002, p. 8.13

Graça Salgado (coord.), Fiscais e meirinhos,Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, pp. 55-57.

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convir ao serviço de el rei NossoSenhor, Filipe II de Espanha. Em 1º demarço de 1587, ofertou o manuscrito aCristóvão de Moura que, certamente,enviaria a Sua Majestade. No reino,Soares de Sousa compadecia da poucanotícia que se tinha da grandeza eestranheza do Brasil. Para tanto,compôs cosmografia e descrição doEstado, revelando ainda informes dila-tados sobre terras e riquezas da Bahiade Todos os Santos. Não tencionava,porém, conceber uma história esmera-da no estilo, nem mesmo esperavalouvores pela escritura da breverelação. Em tempo de União Ibérica,procurava sensibilizar a realeza para aenorme fertilidade da terra. Denunciavaainda os descuidos dos reis passados,deixando desprotegido o imenso litoral,onde corsários poderiam estabelecer eassenhorear-se com uso de muipequena armada. Depois que o rei D.João III “passou desta vida para eter-na”, as novas descobertas estavammuito desamparadas. Antes, porém,com imenso cabedal, edificaram-semuitas cidades, vilas e fortificações.Contando com litoral de mil léguas, terrafértil, fresca e abastada emmantimentos, no Estado do Brasil eraviável edificar um grande império,informava ao soberano Gabriel Soares.

O abandono das novas terras nãoera por falta de providência de SuaMajestade, mas por carência de notícia,negligenciada por quem disso tinhaobrigação. Como leal súbito, GabrielSoares de Sousa declarou-seempenhado em contornar esses

entraves, fornecendo ao serviço realuma memória capaz de guiar osempreendimentos imperiais em terrasda América descoberta pelos lusitanos.Para dissertar sobre defesa, descreveuvilas e cidades da costa, demonstrandoo quanto estavam despreparadas para asinvestidas inimigas externas e internas. Nãoera despropósito, considerou o fiel súdito,alertar a el-rei para o desamparo em quese encontrava a cidade de Salvador. Eramister cercá-la “de muros e fortificar,como convém ao serviço e segurança dosmoradores dela; porque está arriscada aser saqueada de quatro corsários, que aforem cometer, por ser gente espalhadapor fora, e a cidade não ter onde se possadefender, até que a gente das fazendas eengenhos a possa vir socorrer”.

14 Por

certo, Soares de Sousa percebera nãosomente a fragilidade das fortificações,mas, sobretudo, o desempenho de vilas ecidades para manutenção do próprioterritório circunvizinho. Eram, portanto,alvos frágeis de corsários e invasores -como sucederia, mais tarde, com Salva-dor e Olinda nas guerras contra osflamengos. Do mesmo modo, muralhasprotegeriam as vilas de revoltas e comba-tes promovidos pelos ameríndios vindos dosertão. Ilhéus não contava comfortificações e enfrentava a “praga dosaimorés”. Antes contava comquatrocentos ou quinhentos vizinhos,mosteiro de São Bento e colégio daCompanhia de Jesus, mas enfrentavainvasões internas e despovoava-se

14 Gabriel Soares de Sousa, Tratado Descritivo do

Brasil em 1587, São Paulo, Companhia EditoraNacional, 1987, p. 40.

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rapidamente: “se despovoará de todo, eSua Majestade com instância não lhe va-ler”. Enfim a insistência do manuscrito emdescrever os povoados atuava como aler-ta para preservar a conquista lusa.

Não era coincidência que na mesmaoportunidade o colono solicitasse aconcessão de Felipe II para um grandeplano de desbravar e conquistar o inte-rior, em paragens localizadas além dorio São Francisco: “Eu El-Rei faço sa-ber aos que este alvará virem que,sendo eu informado quanto importa aoserviço de Deus e meu fazer-se odescobrimento do Rio de São Francis-co, parte do Brasil, a que ora envioGabriel Soares de Sousa por capitão-mor e governador dela; e querendocomo é razão fazer mercê às pessoasque me forem servir na dita empre-sa...”. O monarca acatava, assim, opedido e concedia-lhe títulos de capitão-mor e governador da conquista, direitode nomear cargos de justiça e fazenda.Contaria ainda com hábitos das Ordensde cavalaria e respectivas tenças,mercê de cavaleiros-fidalgos e apermissão de formar uma tropacomposta de mecânicos, mineiros,degredados ou não, e um grande nú-mero de índios, capazes de sustentar oempreendimento no sertão. A partir dedescobertas de ouro, prata e pedraspreciosas, Soares de Sousa planejavaseguir os rastro do irmão, João Coelhode Sousa, e apoderar-se de riquezas

escondidas longe das povoaçõeslitorâneas. Para levar a frente aempreitada, recorria às benesses deSua Majestade.

15 Com a demora do

despacho, resolveu colocar no papel aexperiência de quase vinte anos noEstado do Brasil, redigindo o que viriaa ser o Tratado Descritivo do Brasil,registro ainda hoje indispensável aoconhecimento do primeiro século dacolonização portuguesa.

O tratado é divido em duas partes:a primeira denominada de “RoteiroGeral da Costa Brasílica”; e a segundade “Memorial e Declaração das Gran-dezas da Bahia”. Iniciando-se com adescoberta do Brasil, ele mistura ele-mentos históricos, geográficos eetnográficos de diversos pontos do li-toral, do Amazonas ao rio da Prata,fornecendo subsídios valiosos para co-lonos e administradores. Provenientesda experiência, os escritos de Soaresde Sousa encantam pelo detalhe:mapeamento de nações indígenas, alia-das e rebeldes, rios e portos, engenhose lavouras diversas espalhadas pelo li-toral. Mas conhecimento precioso se-ria fornecido sobre a Bahia de Todosos Santos, onde se radicou e eraproprietário, senhor-de-engenho e deescravaria. Dividiu o memorial em vintepartes, abordando, sem dificuldades, ahistória e a geografia. Como os natu-ralistas, ele dissertou sobre os três rei-nos da natureza e, com muitapertinência, refletiu sobre as dádivasfornecidas pela criação divina, ou seja,plantas, animais e minerais. Denomi-nada de “bichos menores que têm asas

15 Instituto Histórico e Gegráfico Brasileiro

(IHGB), Arquivo 1.2.15, t. 1, pp. 76-79, 115 e174-182.

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e têm alguma semelhança de aves”,nem mesmo a entomologia brasílicaescapou a esse senhor-de-engenho, nafaina de comunicar ao rei, riquezas eestranhezas do Estado do Brasil. Omanuscrito ainda se destaca pelacapacidade de individualizar comunida-des indígenas, particularmente os tupisradicados no litoral, fornecendo porme-nores sobre casamentos, alimentação,guerras e ritos canibalescos.

Gabriel Soares não apenas entregoua D. Cristóvão de Moura descriçãopormenorizada das terras brasílicas. Naoportunidade recorreu novamente aseus apontamentos para denunciarprivilégios e desmandos cometidos pelaCompanhia de Jesus. Se inicialmenteeram benquistos pelos moradores,tempos depois a reputação dos jesuítasnão era das melhores, “ficaram os Pa-dres muito odiosos ao povo”. Com osfavores d’el-rei, os religiososconstruíram os colégios da Bahia,Pernambuco e Rio de Janeiro. Anual-mente, contavam com 4.500 cruzadosde renda provenientes de cofres reais,mais currais de vaca, propriedades ecinco aldeias de índios forros. Osprivilégios não eram bastante paraconter a sede de riquezas dos inacianos,comentava Gabriel Soares.Pressionavam fiéis para doar-lhesterras, estimulavam a fuga de escravosde propriedades vizinhas econtrariavam as ordens das autorida-des locais. Além das mencionadas irre-

gularidades, a catequese, razão paraatuar nos reais domínios, demonstrava-se inócua, pois os índios eram incapazesde “ conhecer que coisa é Deus, nemcrer nele...”

16

As denúncias de Gabriel Soares deSousa abordam os entraves ao empregoda mão-de-obra indígena nosempreendimentos coloniais. Sendo osjesuítas responsáveis pelosaldeamentos, os moradores ficavamdependentes dos padres para tocar aslavouras. As epidemias e as guerrasprovocaram no recôncavo baiano au-mento da mortalidade e escassez debraços para o cultivo de cana-de-açúcar, o que veio agravar a penúriade canavieiros e senhores de engenhos.Ao descrever os desmandos daCompanhia de Jesus, ele pretendiaalcançar o apoio das autoridades me-tropolitanas e solapar os privilégios dosinacianos no Brasil. Sem a interferênciados padres, os proprietários poderiamrecorrer à escravidão e ampliar suasatividades agrícolas. Percebe-se entãoque o vassalo d’el rei não pretendiaapenas expandir as áreas dacolonização para as bandas do SãoFrancisco, mas viabilizar braços paraexplorar a fertilidade da terra.

Se os ataques aos jesuítas nãoalcançaram o desfecho planejado, oprojeto de conquistar o sertão teve todoapoio do soberano. Os favores pleitea-dos foram, em grande parte, concedi-

16 Gabriel Soares de Sousa, “Capítulos que Gabriel

Soares de Sousa deu em Madrid ao Sr. D. Cristovamde Moura contra os padres da Companhia deJesus...”, Anais da Biblioteca Nacional (62), 1940,pp. 337-381.

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dos, em abril de 1591. O novo “capitão-mor e governador” partiu de Lisboa naurca flamenga denominada de GrifoDourado, conduzindo cerca de trezentose sessenta homens em direção à fozdo rio São Francisco. Em terra, seguiriao roteiro rumo às minas traçado peloirmão que encontrara a morte durantea jornada pelo sertão. O destino deSoares de Sousa não seria diferente.Na altura da enseada do Vazabarris, aembarcação naufragou, porém semfazer muitas vítimas. Os sobreviventeslogo passaram à Bahia. Depois de mon-tar expedição com apoio do governadorD. Francisco de Sousa, Gabriel Soaresseguiu rumo às suas terras, subindo pelamargem do rio Paraguaçú. Nopercurso, enfrentaram as cheias do rio,o frio e o nevoeiro da serra. Combalido,ele morreria sem encontrar as minas,desfrutar das tenças e mercês conce-bidas pelo soberano espanhol. O “Tra-tado descritivo do Brasil”, porém,permaneceu como manuscrito durantetodo o período colonial. Francisco Adol-fo de Varnhagen localizou dezenas deversões parciais em arquivos de Por-tugal, Brasil, Espanha e França, o quedemonstra o valor do memorial.

Para Soares de Sousa, nos reinosde Portugal e Castela havia escassasnotícias do Estado do Brasil, o queagravava o abandono e a debilidade dasfortificações. O inventário cosmográ-fico era, em princípio, recurso paraincentivar a colonização, mas tambémparte da estratégia destinar a obter oreal apoio para expandir seus domíniossobre o sertão. Esses entendimentos

entre soberanos e súditos letrados eramconstantes na Época Moderna, eramparte imprescindível do controle egerenciamento das possessões ultrama-rinas. Os memoriais estreitavam oslaços entre o centro e as várias perife-rias. Por vezes, viajantes eram previa-mente preparados para a tarefa deaproximar e fazer conhecer os limitese as potencialidades dos domínios.Esses súditos percorriam as fronteirasde imensos territórios, recolhendo ele-mentos da geografia, do mundo naturale das comunidades nativas. Teciam,enfim, as tramas do império, criavampossibilidades para intervenções e re-formas, fazendo chegar aos soberanosmundos distantes e realidades quasedesconhecidas. Nem sempre, esses vín-culos eram estreitados por enviados daCoroa, por vezes vassalos experientese treinados na escrita exerciam essafunção em troca de honras.

Gabriel Soares de Sousa conheciabem essas negociações, não sem razãoconfiou ao marquês de CasteloRodrigues o “Tratado Descritivo doBrasil” e as denúncias contra aCompanhia de Jesus. À época, iníciodo reinado de Felipe II em Portugal,inaugurava-se com a União Ibérica umapolítica de atração da nobreza portu-guesa para o quadro dinâmico daMonarquia Hispânica a partir da criaçãode casas titulares e concessão de váriosprivilégios.

17 Sem poder desfrutar das

17 Jean-Frédéric Schaub, Portugal na Monarquia

Hispânica, 1580-1640, Lisboa, Livro Horizonte,2001, pp. 45-48.

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mesmas honras, Soares de Sousapretendeu pleitear título de capitão-ge-neral e governador das terras a seremdescobertas no sertão.

D. Cristóvão de Moura, o mencio-nado marquês, era confidente e,decerto, o mais influente dos ministrosde Felipe II. Depois de Alcácer Quibir,com muita habilidade, participou comoembaixador do soberano de Castela,reunindo partidários da união das Coroasentre nobres portugueses. Proclamadorei nas Cortes de Tomar, Felipe II o fezvedor da fazenda, tornou-o membro doConselho de Portugal e ainda concedeu-lhe numerosas mercês e doações, bemcomo o título de marquês. Apesar deembrenhado nas franjas do império,Gabriel Soares de Sousa certamenteconhecia a influência de Moura naCorte madrilena. Recorreu ao seuprestígio para enviar ao rei notícias doBrasil que atuariam tanto como trunfopara engrandecer as terras, quanto ele-mento para fortalecer seus planos deconquista e comando do sertão do SãoFrancisco. A partir do episódio, torna-se mais evidente a relação entreprivilégios e produção do conhecimento.A existência de uma teia de informaçãoera capaz de tornar móvel o mundocolonial, reduzi-lo a questões básicas,traduzi-lo em relatórios, tratados e ma-pas, e conduzi-lo enfim em forma depapel para os centros europeus. Essasoperações eram vitais parasobrevivência da ordem colonial, paraconsolidação de laços entre centro eperiferias.

Conscientes da interdependência,súditos letrados se dispunham amobilizar mundos e narrar histórias emtroca de privilégios. À época, essasconexões não eram novidades, faziamparte da tradição ibérica. Soares deSousa e Diogo do Couto verterammuita tinta para denunciar osdescaminhos dos governos eesperavam a reação da monarquia paracoibir os abusos. Sem preocupar-se emtraçar a história dos portugueses naAmérica, em 1592, o licenciado Domin-gos de Abreu de Brito apresentou aFelipe II um “sumário”, com a intençãode revelar as contrariedades aosinteresses monárquicos dos dois ladosdo Atlântico sul. No Brasil e Angola,ele detectou práticas contrárias aosinteresses imperiais, perpetradas poroficiais e vassalos do rei. De sua vidapouco se sabe, apenas que recebeu aincumbência de promover uma possíveldevassa em Angola e Pernambucopara o aumento “do Estado e renda parasua Coroa”. Com tão valiosas notícias,pretendia “pedir as honras e mercês quepor seus serviços os conquistadoresmereciam”.

18

O fortalecimento da comunicaçãoentre mundos apartados tornou-se umaimportante característica do governofilipino, por isso, com toda propriedade,o historiador J. H. Elliott denominou a

18 Domingos Abreu de Brito, Um inquérito à vida

administrativa e económica de Angola e doBrasil, em fim do século XVI, Prefácio de AlfredoAlbuquerque Felner, Coimbra, ImprensaUniversitária, 1931, p. 29.

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Monarquia Hispânica de governmentby paper.

19 Nesse sentido, Abreu de

Brito pretendia fornecer notícias eestreitar os laços entre Madri e osrentáveis empreendimentos do Atlânticosul. O comércio do pau-brasil, à época,era monopólio régio, parte importantedos rendimentos da Coroa e produtoalvo de particular atenção. Em 1601, ogoverno de Castela procurou reunirinformações rigorosas sobre orendimento desse negócio, “e tentouigualmente averiguar até que pontoestavam a ser cumpridos os termos docontrato que regulava esse monopólio”.Nem sempre estavam disponíveis osíndices dessas transações,

20 razão para

Abreu de Brito percorrer as terrasbrasílicas, muito antes dos oficiais daCoroa, e oferecer ao monarca uminventário dos descontroles daarrecadação dos dízimos sobre ocomércio de cana-de-açúcar e extraçãode pau-brasil. Proveniente de Angola,ele chegou a Pernambuco, em abril de1591, durante o governo interino dobispo D. Antônio Barreiro, com a tarefade lançar devassa sobre a produção eo comércio da capitania dePernambuco.

Nos papéis enviados a Felipe II,Abreu de Brito calculou o dízimo sobrea produção açucareira e o número de

engenhos, avaliou ainda a criação degado, pescados e farinhas. O dízimo eraimposto de um décimo cobrado sobretoda a produção que, por princípio, eradestinado à Igreja. Arrecadado emnome do soberano, na condição degrão-mestre da Ordem de Cristo, oimposto era coletado pelo licitante quemaior lance oferecia no pregão anual.

21

O contrato do dízimo era concebido apartir de uma estimativa de produção,se a arrecadação fosse maior ou me-nor que o lance, ou melhor, que a esti-mativa, o lucro ou o prejuízo seria docontratador. Os cálculos de Abreu deBrito comprovaram, porém, o enormeganho do contratador, em detrimento darendas da Coroa. O açúcar era a basedas fraudes, pois a partir decomparação entre dízimo do açúcar,número de engenhos e produção anual(6.000 arrobas), ele constatou o enor-me prejuízo da fazenda real. Estadeveria receber cerca de 75.600 cru-zados somente com produçãoaçucareira. No entanto, a arrecadaçãode dízimo do açúcar, mantimentos,gados e demais produções alcançavama soma de apenas 28.500 cruzados,arrematados pelo mercador JoãoNunes, que à época foi fartamente de-nunciado, ao visitador do Santo Ofício,por onzenas, desrespeito ao crucifixo eviver amancebado.

22

19 A feliz expressão government by paper está

em: J.H. Elliott, Imperial Spain; 1469-1716,London, Penguin Books, 1990, p. 170.20

Guida Marques, Op. cit., p. 9.

21 Stuart Schwartz, Segredos internos, São Paulo,

Companhia das Letras, 1988, p. 154.22

Instituto dos Arquivos Nacionais Torre doTombo (IANTT), Inquisição de Lisboa, proc.1491 e 885.

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O sumário dirigido a Filipe II não seateve apenas à produção açucareira edenunciou o enorme contrabando depau-brasil. As transações ilícitasrealizavam-se em porto a uma légua doRecife. Embora houvesse inspeção,inúmeras mercadorias eram carregadase descarregadas ilegalmente, sobretudoquando as autoridades se ausentavam.Mas eram os oficiais de Sua Majestadeos grandes responsáveis por onerar areal fazenda. A partir de um dispositivolegal, os vassalos aumentavam seuslucros em detrimento dos cofres daCoroa. Os novos canaviais e engenhoseram isentos de impostos por dez anos.Oficiais da fazenda, justiça e Câmaraaproveitavam os benefícios de lei ecompravam roças e engenhos. Essaspropriedades não eram destinadas aocultivo e produção, serviam paraacobertar negócios escusos. Elescompravam ou produziam açúcar e, emseguida, enviavam-no à alfândega. Acarga, porém, era acompanhada decertidões que pertenciam a lavradoresou donos de engenhos recém instala-dos e, assim, ficavam livres e isentosde impostos.

23 Esses vassalos

enriqueciam e depauperavam as rendasreais.

Abreu de Brito forneceu igualmen-te notícias preciosas do reino de Angolaao relatar as guerras empreendidas nosgovernos de Paulo Dias e Luiz Serrão.Apesar de vassalo, o reino do Congoimpedia o avanço do tráfico, dificultava

os negócios de zimbo, a navegação e acirculação pelo interior. Com socorrode Lisboa, em pouco tempo, oscongoleses seriam controlados, ocaminho das minas estaria livre, osprincipais fidalgos e o rei de Angolaseriam subjugados, acreditava Abreu deBrito. Para melhor explorar tais reser-vas de prata, as serras de ouro de“Manapota”, a passagem paraMoçambique e a exaltação da santa fé,seriam necessários muitos fortes e unspoucos homens brancos queviabilizariam a integração do interiorafricano.

24 Para além de metais, por

serem muito povoadas, as terrasforneciam ainda infinidade de escravos.Esses conselhos e advertências, enfim,tinham a finalidade de amenizar osprejuízos da fazenda real e consolidara conquista de fabulosas riquezas. Fe-lipe II deveria, então, ser alertado so-bre os descaminhos arquitetados porseus próprios vassalos. Abreu de Britoincentivou, enfim, a integração entreMadri e as costas atlânticas, orientou osoberano como coibir abusos esubmeter súditos desleais em favor doengrandecimento da MonarquiaHispânica.

Mameluco, paulista ecavaleiro da Ordem de Cristo

Mais do que os papéis, as vitóriasbélicas e a expansão do império eramos meios mais seguros de entesourarméritos e mercês. Na América portu-

23 Domingos Abreu de Brito, Op. cit., p. 65. 24

Ibíd., p. 19.

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guesa, no seiscentos, as conquistasrumaram em direção ao oeste,sobretudo depois da expulsão dos fran-ceses da ilha de São Luís. O capitão-mor de Pernambuco, Alexandre Moura,tinha a tarefa de fundar uma novacapitania para deter os franceses queameaçavam o Amazonas. Oempreendimento, porém, ficou sob ocomando de Caldeira Castelo Brancoque recebera antes da partida o títulode capitão-mor. Comandava cento ecinqüenta homens e três embarcaçõese, em 1616, fundou o forte do Presépioe a cidade de Nossa Senhora de Belém,às margens do rio Guamá.

25 No

entanto, os avanços da colonizaçãoocorreram com mais rapidez na regiãoem torno de São Luís. Em 1618,desembarcaram aí perto de 300pessoas. Os imigrantes receberam suasléguas de terra e puderam desfrutar dafertilidade e grandeza da América. Asmoças donzelas logo se casaram etiveram vida próspera, o que eraimpossível no reino. Para consolidar aposse do Maranhão, os portuguesesdeveriam explorar seus recursos, cons-truir vilas e fortificações. Entre osaçorianos, encontrava-se Simão Estácioda Silveira, capitão da nau de JorgeLemos Bitencourt e autor de dois es-critos dedicados às capitanias do nor-te. A “Relação sumária das cousas doMaranhão” voltava-se aos pobres do

reino de Portugal e, como Gandavo,Silveira pretendia incentivar a migraçãopara as terras americanas. No interessede difundir a “Santa Fé Católica” e aconversão do gentio, Silveira aindaescreveu “Intentos da jornada do Pará”,onde procurava relatar as potencialida-des da terra e os recursos naturaisindispensáveis à manutenção dos mo-radores. Para estimular a imigração, nãobastava apenas enumerar frutas eraízes, mas a disposição dos nativospara auxiliar os moradores naexploração das glebas. Descreveu,então, as comunidades indígenas demodo a exaltar suas características: “Ogentio da terra é brioso, engenhoso etem algum polido mais que outro doBrasil muito fácil e tratável, que desejae procura nossa amizade...”

26 Além de

informar à Sua Majestade osdescobrimentos realizados ao norte daAmérica Portuguesa, Silveira buscavaapoio para o povoamento do Pará eMaranhão, empresa que “se requergrande cabedal de valia e de fazenda”.Mais uma vez, as informações sobreas novas conquistas antecediam os pe-didos de recursos e os pleitos ao mo-narca.

Com os avanços dos açorianos e ocrescimento da vila, instalou-se aCâmara de São Luís, onde Silveiraelegeu-se juiz. Ele não permaneceu

25 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU),

Conselho ultramarino, Requerimento, maço n. 3.Alexandre de Moura. Regimento que Alexandrede Moura deixou a Francisco Caldeira de CasteloBranco, Forte São Felipe, 22 de dezembro de 1615.

26 Simão Estácio da Silveira, “Intentos da jornada

do Pará, Lisboa, 21 de setembro de 1618”, em:Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio deJaneiro, v. 26, 361-66, 1905, pp. 361-366.

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muito tempo nesse lugar, pois em 1624estava novamente em Lisboa, ondepublicou, com a permissão do inquisi-dor geral, sua obra sobre as terras con-quistadas dos franceses, a “Relaçãosumária das coisas do Maranhão”.

27

Dois anos depois, em Madri, Silveiraescreveu ao monarca espanhol para,mais uma vez, oferecer serviços.Pretendia empregar seusconhecimentos sobre os riosamazônicos e abrir uma nova rota ma-rítima e fluvial entre o Peru e aEspanha. Esse trajeto diminuiria aviagem em quatro meses, tornandodesnecessária a travessia pelo Pana-má. “como platico en las cosas de lamar, que tengo mucha noticia de las delMarañon, como parece de mi relacio-ne q he impresso, me ofrezco por ser-vicio de Dios y de V. Magestad a abrirnuevo camino por un de los rios deMarañon...”

28

Infelizmente, não dispomos daresposta do monarca para o pedido deSilveira. Vale, porém, destacar que odesbravador do Maranhão escreveusobre as novas descobertas, teve otrabalho impresso e, tempos depois,solicitou ao rei permissão para encon-

trar rota entre as minas do Peru e osportos da Espanha. Em nenhum mo-mento, Silveira solicitou privilégios parasi, somente apoio do monarca para seusempreendimentos, tornando-se umtestemunho singular. Não pretendia, emprincípio, solicitar mercê pelo serviçode difundir notícias, incentivarpovoamento das conquistas e descobrircaminhos, como o fez Gabriel Soaresde Sousa. Nesse sentido, seus escritosao monarca também se diferem dos deBento Maciel Parente. Este conquis-tador participou ativamente daexpansão portuguesa na costa oeste,relatou ao soberano seus feitos ealcançou inúmeros privilégios. Nãorecebeu, porém, o hábito da Ordem deCristo, alcançado por seu filho depoisda morte do pai. Parente era reinol e,por longos anos, desbravador de terrasno Maranhão e Pará, enquanto seu filhoera mameluco, também chamado BentoMaciel Parente. Sem reunir serviços,o filho conseguiu o perdão do soberanopara seus defeitos, condição para ummameluco, paulista e bastardo alcançaro hábito da Ordem de Cristo.

Em 1619, o forte do Presépio sofreuenormes perdas com levantetupinambá, que foi debelado porJerônimo Fragoso de Albuquerque,capitão-mor do Pará, Pedro Teixeira eBento Maciel Parente. O últimorealizou feitos notáveis na Amazônia, ea guerra contra os ameríndios amoti-nados não seria sua primeira missão emterras brasílicas. Antes, Bento Macielpelejou contra os ingleses na costa dePernambuco, descobriu salitre na Bahia

27 Simão Estácio da Silveira, “Relação sumária

das coisas do Maranhão”, em: Cândido Mendes deAlmeida, Memórias para o extinto estado doMaranhão, v. II, Rio de Janeiro, livro PauloHindebrandt, 1874.28

Simão Estácio da Silveira, “Intentos da jornadado Pará...”, p. 99; Petição de Symão Estacio daSilveyra, [Madrid, 15 de junho de 1626], em:Revista do Instituto Histórico e GegraphicoBrasileiro, t. 83, 1919, pp. 91-99.

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e minas em São Paulo. Na conquistado Maranhão, atuou como capitão demar e guerra em companhia deAlexandre Moura e, por fim, lutou paraexpulsar corsários do Amazonas ecombater a rebeldia dos tupis. Depoisde pacificados, nos rios do Pará,mandou construir fortificações econsolidou a posse lusa sobre a entra-da do grande rio. Como recompensapelo serviço, em 1625, recebeu o hábi-to da Ordem de Santiago, comquinhentos réis de renda. Temposdepois, em sua defesa, escreveu a el-rei para requerer o hábito da Ordemde Cristo e cinqüenta mil réis de tença,pois seus serviços eram equiparados aosde “Fernando Cortéz” na NovaEspanha. E assim solicitava mercêcorrespondente “a lo mucho bien quetiene servido”. À época, era capitão-mor do Grão-Pará e apresentava aomonarca um memorial destinado a in-ventariar 36 anos de serviços no Esta-do do Brasil, onde atuou como soldado,capitão, sargento maior e capitão mor.

29

Bento Maciel Parente era natural deViana do Castelo. Nascido por volta de1584, não era moço quando pelejou nocosta do Brasil, entre 1618 e 1621.Depois de muito servir a el- rei, decidiuir à Corte de Madri para solicitar mercê,com apoio de D. Diogo de Castro e aprincesa Margarida, altos dignitários do

reino português na era filipina. Seuspleitos não foram logo atendidos; depoisde apresentar várias vezes os pedidos,recebeu carta de doação da capitaniado Cabo Norte em junho de 1637.

30

Antes, porém, recebera terras no Ama-zonas, foro de fidalgo com dois mil réisde moradia, com obrigação de servirem Pernambuco. Na mesma época dadoação da capitania, atuou comogovernador do Maranhão até a captu-ra holandesa de São Luís, em 1641. Aos75 anos, o velho Bento Maciel tornou-se prisioneiro e, ao ser conduzido aoRecife, faleceu.

31 D. João IV

assegurou ao seu filho natural, de nomeidêntico ao pai, a posse da capitania,mas o mesmo morreu sem geração.Sucedeu-o seu irmão, Vital MacielParente, que também não deixou des-cendente. Depois, segundo RodolfoGarcia, a capitania do Cabo Nortepermaneceu sem herdeiros e retornouà Coroa.

32

Por meio de guerras e notícias, osvassalos alcançavam os disputadosprivilégios. Eles prestavam serviços emtroca de recompensas, de prêmios, con-cedidos somente pelo rei. Para alcançaras benesses, eles deveriam recorrer aintermediários, homens de prestígio,próximos ou membros da Corte. Era

29 Bento Maciel Parente, “Memorial”, em:

Francisco Adolfo Varnhagen, História Geral doBrasil, v. 2, São Paulo, Ed. Itatiaia/Edusp, 1981,pp. 218-219.30

IANTT, Chancelaria de Felipe III, Doações,livro 34, ff. 2-5v.

31 José Honório Rodrigues, História da história

do Brasil, 1ª parte: Historiografia Colonial, SãoPaulo, Companhia Editora Nacional, 1979, pp.82-83.32

Rodolfo Garcia, Nota VIII, em: FranciscoAdolfo Varnhagen, Op. cit., v. 1, t. II, pp. 350-351.

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fundamental conhecer os canais quelevavam ao centro do poder, sem elesas negociações seriam quaseimpossíveis. Em busca de aliados,Gabriel Soares de Sousa e BentoMaciel Parente estabeleceram-se emMadri, como forma de divulgar seusfeitos e pleitear mercês. Esse trâmitenos permite entender, em boa parte, adinâmica da produção de conhecimentoe, sobretudo, avaliar os vínculos entreserviço, honra e centralização política.No entanto, muitos feitos não foramreconhecidos, apesar da valentia dosvassalos. Por isso, ao pleitear a recom-pensa de seus serviços, Bento MacielParente não se contentava em mencio-nar apenas os combates contra inva-sores e as investidas contra as rebeliõesindígenas, mas procurou descrever asriquezas do Maranhão, as potencialida-des da natureza capazes de comportarlavouras, minas e braços para tocar osempreendimentos.

Em Madri, entregou, ao soberano,petição e memorial que defendiam acatequese no Maranhão: a criação debispado e envio de religiosos para quese “conquiste o muito que ainda faltapor aqueles grandes rios”. O sustentodo bispo e demais ministros eclesiásti-cos proviria da “encomienda”, oumelhor, de tributos pagos pelosameríndios, como se fez logo depois daconquista nas Índias de Castela,lembrou Bento Maciel. Para justificara cobrança, ainda ponderou que todasas criaturas estavam obrigadas a dar aDeus e aos seus ministros o dízimo dosfrutos da terra. Em todas as repúblicas

políticas, e não somente entre os índios,os tributos eram estabelecidos para pre-miar os naturais, que com as armasconquistaram e defenderam os seusestados. Não era, portanto, inconve-niente tributar os índios dessa forma,concluiu Bento Maciel Parente. NasÍndias de Castela, os senhoresprotegiam, conservavam os índios ecuravam suas enfermidades. Ainda ostreinavam na guerra, “para que com assuas armas ajudem a defender a terrae a conquistar outras, e de todo sesegue aumento desta conquista, eserviço de Deus e de V.M.”.

33 Nessa

justificativa, Bento Maciel buscava con-fundir os tributos pagos à Igreja e aosconquistadores, pois os maranhensesdeveriam trabalhar para sustentar bispo,padres e demais moradores, viabilizandotanto a catequese quanto a manutençãoda posse. Os guerreiros portuguesesteriam seus feitos recompensados como trabalho indígena e estariamencarregados de proteger e ensinar osofícios da guerra. Assim, juntosdefenderiam e aumentariam osdomínios do soberano.

Em seus escritos, Bento MacielParente tornou a defesa e a doação deterras temas recorrentes, que secoadunavam com a necessidade de tri-

33 “Petição dirigida pelo capitão-mor Bento

Maciel Parente ao rei de Portugal D. Philippe IIIacompanhada de um memorial”, em: CandidoMendes de Almeida, Memória para História doextinto Estado do Maranhão, v. 2, Rio de Janeiro,Tip. de Paulo Hindebrandt, 1874, p. 36.

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butar os ameríndios. Na “Relação doEstado do Maranhão”, priorizou adebilidade das defesas; mencionouainda a fertilidade da terra e as poten-cialidades a serem exploradas pelosmoradores. A cidade de São Luísestava desprovida de fortificações; semmuralhas a cabeça do Estado cairianovamente sob jugo de invasores. Paraaumento da real fazenda e defesa, se-ria necessário povoar as terrasrecorrendo a incentivos. O soberanodaria poderes aos governadores pararepartir as glebas entre as pessoas quepedissem e quisessem ocupá-las.

34

“Encomienda” e distribuição de terrasfaziam, enfim, parte de um mesmoprojeto, destinado a ocupar o Maranhãoconforme a tradição hispânica, confor-me as primeiras experiênciascastelhanas de conquista e colonizaçãoda América. A estratégia beneficiavatantos os interesses dos conquistado-res, que ganhariam terras etrabalhadores, quanto a manutenção deconquistas.

Apesar de demonstrar interesse nacatequese, Parente tornou-se alvo degraves denúncias divulgadas pelo freiCristóval de Lisboa, primeiro custódioda Ordem dos Capucho e comissáriodo Santo Ofício no Maranhão. Devidoao excesso de trabalho nos engenhos eextensas viagens, o capitão-morimpedia os índios de cultivar suas terras

e produzir alimentos, provocando fomee inúmeras mortes nas comunidades.Em suas propriedades, nem mesmo odomingo, dia de descanso e dereverência à Igreja, era respeitado.Afrontava ainda os frades e a Igrejaao afirmar que reconhecia como supe-rior somente el-rei. Escândalo maiorprovocou quando se amancebou comvárias índias e permitia a existência de“uma Aldeia que estava junto do seuEngenho, [que] mais parecia mancebiadele, e de seus criados, que aldeiacristã...”

35 Nem por isso, Bento Maciel

deixou de ser recompensado pelosserviços, recebendo, entre outros, acapitania do Cabo Norte e o hábito decavaleiro da Ordem de Santiago. Atri-buto principal do monarca, a real justiça,por vezes, falhava, e as dádivas nãoestavam à altura dos serviços. A faltade insistência ou uma conjunturadesfavorável podiam provocar oesquecimento dos feitos.

Na década de 1630, realizou-se aimportante viagem de Pedro Teixeiraao rio Amazonas, sendo oredescobrimento de uma passagementre o oceano Atlântico e o Peru. Ajornada foi descrita pelo próprioTeixeira e pelo jesuíta Acuña queforneceram detalhes preciosos sobre orio: o curso, as ilhas, a fertilidade daterra, o clima e as várias entradas paraos rios. Desde então, os portugueses

34 Bento Maciel Parente, “Relação do Estado do

Maranhão feita por Bento Maciel Parente(1636)”, em: Anais da Biblioteca Nacional (26),1904, pp. 355-359.

35 Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de

reservados, Caixa Y, 2, 23. Carta do frei Cristóvãode Lisboa. Sessão I. 2 de outubro de 1626.

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iniciaram processo de ocupação davasta bacia amazônica. Em 17 deoutubro de 1637, iniciou-se essa gran-de viagem, composta por setenta sol-dados, mil e duzentos índios, embarca-dos em frota de mais de quarenta ca-noas de bom porte, segundo estimativasde Varnhagen. Em Quito, a audiênciaexpediu provisão geral que autorizavao retorno dos jesuítas Cristóbal Acuñae Andrés de Artiega na comitiva dePedro Teixeira. Durante a viagem deregresso ao Pará, iniciada em 16 defevereiro de 1639, Acuña reuniuinformações sobre o percurso, seushabitantes e riquezas. A partir dorelatório, se formularam estratégicaspara o controle militar do valeamazônico. Desde Orellana, aAmazônia despertava a curiosidade doseuropeus: lugar de mistérios, povoadopor mulheres guerreiras e cidades fa-bulosas. A grande viagem originou duasimportantes narrativas: Relazión delGeneral Pedro Tejeira de el rio delas Amazonas para el Sr. Presidente- descrição corográfica destinada àAudiência de Quito; e Nuevo descu-brimiento del gran rio de las Ama-zonas (1641) - relatório de Acuña.

36

Em 1641, a narrativa do jesuíta veioa público em Madri, mas logo a ediçãofoi suprimida. A nova conjuntura ibéri-

ca tornava o roteiro da viagem lesivoao império espanhol. Após aRestauração portuguesa, a corografiade Teixeira e o relatório do jesuítapermitiam tanto a descoberta das rique-zas amazônicas quanto o alcance doVice-reino do Peru. As fronteiras en-tre as conquistas portuguesa ecastelhana estavam, cada vez mais,tênues. A partir desse feito, iniciaram-se, então, as conquistas lusas dos rios,os descimentos de índios e aimplementação de novos núcleos depovoamento, sobretudo com a criaçãodo Estado do Maranhão e Pará. Poucodepois de regressar de tão árduaviagem, Teixeira exerceu o cargo decapitão-mor do Pará, durante 15 me-ses. Quando se preparava para retor-nar ao reino, faleceu em junho de 1641,sem receber privilégios à altura de seusfeitos.

Se Pedro Teixeira enfrentouconjuntura adversa a seus planos deascensão social, os Parentes nãosofreram desse mal. Em 1644, o filhohomônimo recebeu o hábito da Ordemde Cristo, processo de habilitação quedemonstra o enorme prestígio do paijunto aos poderes do centro, pois os“defeitos” tornaram irrelevantes fren-tes aos serviços prestados ao sobera-no.

37 A recompensa do monarca era

fruto dos prestimosos feitos do pai, quemorrera em 1642, sob o jugo dos ho-landeses do Recife. Em tempo de36

Biblioteca da Ajuda, livro 51, Volume 41,“Relación del general Pedro Tejeira del río de lasAmazonas para el Sr. Presidente”, São Franciscode Quito, 2 de janeiro de 1639; Cristóval Acuña,Novo descobrimento do Grande Rio dasAmazonas, Rio de Janeiro, Agir, 1994.

37 IANTT, Habilitações à Ordem de Cristo, maço

12, n. 85.

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Restauração, esse vassalo da fronteirae os serviços do pai tornaram irrele-vantes a mestiçagem e a origem hu-milde do suplicante. Essa conjuntura foifavorável para que o filho de BentoMaciel Parente alcançasse o título plei-teado, por tanto tempo, pelo pai. Esseepisódio nos permite entender comoregras tão rígidas como o defeitomecânico e a limpeza de sanguepossuíam no ultramar, sobretudo nasfranjas do império, um outro significa-do. A produção de lealdade em terrastão remotas era mais relevante do quea classificação social própria do reino.O estatuto de limpeza era pertinenteonde os vassalos disputavam honra,cargos e privilégios, menos importanteera fazer valer esse mesmo princípioem paragens quase vazias, distantes docentro e desprotegidas, dependentes dosangue e fazenda dos leais vassalos deSua Majestade, mesmo sendo eles hu-mildes e mestiços. Essas concessõeseram, por certo, indispensáveis àmanutenção das fronteiras imperiais.

A sentença proferida pela Secreta-ria das Mercês, em 2 de julho de 1644,concedeu a Bento Maciel Parente ohábito da Ordem Cristo. Por meio daportaria do padre Gaspar de FariaSeverim, de 5 de abril de 1643, mandou-se lançar o hábito e depois se fizeramas provanças, ou melhor, asinvestigações, de seus antepassados.Da parte de sua mãe e avós maternos,descobriu-se que eram naturais dacapitania de São Paulo, no Brasil, e ospaternos das vilas de Viana e Caminha,no reino. O avô paterno fora alfaiate e

seus avós maternos gentios do Brasil.Seu pai não se casou com sua mãe, queera de origem indígena. O agraciadoera, portanto, filho bastardo, mestiço,de origem humilde e mecânica. Mesmoassim a sentença lhe foi favorável: “Deque se dá conta a V. Majestade comogovernador da dita Ordem na forma demandar vir os serviços destes habitan-tes que estão nas fronteiras, e eles naSecretaria das Mercês para que sendomerecedores de S. Majestade dispen-sar-vos os defeitos referidos, o passafazer. Lisboa, 02 de julho de 1644”.

Para ser cavalheiro da Ordem deCristo, ordem militar de maior prestígioem Portugal, o suplicante não deveriater defeito mecânico, ou melhor, seuspaís e avós não poderiam desempenharfunções manuais; nem possuir sangueinfecto, seus antepassados deveriam sercristãos, sem procedência judia, mouraou de qualquer outra “raça”. Essesdefeitos, porém, foram perdoados pelorei, governador da Ordem de Cristo, porser o suplicante morador em localidaderemota do império. Por certo, o monar-ca perdoou suas faltas, baseado nosserviços prestados por seu pai, fielvassalo das fronteiras. Na verdade,pouco se sabe dos seus feitos, emboraseu pai tivesse apresentado ao monar-ca uma extensa lista de serviços. Aportaria da Secretaria das Mercês nospermite entender a debilidade dasforças que uniam as partes do impérioe a necessidade de reafirmar as aliançascom os súditos de áreas remotas. Aoperdoar esses graves impedimentos, orei reconhecia a fragilidade de sua posse

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sobre terras suscetíveis aos ataquesneerlandeses e espanhóis, em tempo deguerras e da fragilidade advinda com aRestauração. O governo à distânciatornava-se factível por meio doreconhecimento e da premiação dosserviços como os apresentados porBento Maciel Parente. Percebe-seentão uma interdependência entre ocentro e a periferia, pois se os conquis-tadores almejavam títulos e rendas, omonarca dependia de leais súditos paramanter as conquistas.

Os feitos militares eramindispensáveis ao monarca. Osvassalos atuavam tanto nos combatesaos invasores e índios rebelados quantono controle de tumultos promovidospelos próprios moradores. Nesse sen-tido, é compreensível a granderecorrência de pedidos de mercê porparte capitães como Maciel Parente,que descreviam seus empreendimentosbélicos como trunfo para solicitar ohábito da Ordem de Cristo. Até aRestauração, porém, era freqüente queos conquistadores aliassem seusserviços a escritos destinados a valori-zar as riquezas de sua região, e logo,seus serviços. Por isso, eles descreviama natureza, as comunidades indígenase a história da colonização. Os vassalosmencionavam ainda a defesa dosinteresses da Coroa para solicitar car-gos mais prestigiosos na administraçãoultramarina e títulos que atuavam naconsolidação de seus poderes locais.

Dispondo do reconhecimento do mo-narca, de título e cargos, eles teriammais chances de atuar nas Câmaras enas demais instâncias do poder local.

De fato, os privilégios faziam-nosmais poderosos que os demais mora-dores. De modo geral, os pleitos aomonarca partiam das elites locais, oumelhor, da “nobreza da terra”, queapesar de desfrutar de prestígio nas lo-calidades, nem sempre possuíam oreconhecimento da Coroa para seusfeitos e serviços. Os pedidos de mercêeram formas de alcançar o aval monár-quico que os tornava ainda mais pode-rosos nas respectivas capitanias.Capitães, vereadores e juizescertamente desfrutavam de prestígio,mas teriam ainda mais se pudessemexibir a insígnia da Ordem de Cristo oupudesse contar com o foro de Fidalgoda Casa Real. Esses títulos, por certo,não significavam apenas reconhecimentomonárquico de seus serviços, mas aconsolidação de seus privilégios nosdomínios ultramarinos. Eram ainda me-canismo de integração entre as elitesultramarinas e a administração metro-politana. Os pedidos de mercêdinamizavam e revitalizavam o pactoentre vassalos e a monarquia, pois osprimeiros reconheciam o centro comoforma de consolidação de sua ascensãosocial. Enfim, Bento Maciel Parente, opai, era vassalo da espada e da pena,recursos que lhe permitiram acumularhonra e prestígio.