serviço público federal do pará curso de mestrado em...
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Servio Pblico Federal do Par
Universidade Federal do Par
Instituto de Letra e Comunicao
Curso de Mestrado em Letras
SUANI TRINDADE CORRA
DE O AVRENTO DE MOLIRE A MO DE VACA DOS PALHAOS
TROVADORES:
O TEXTO TEATRAL EM PROCESSO
Belm
2011
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SUANI TRINDADE CORRA
DE O AVARENTO DE MOLIRE A O MO DE VACA DOS
PALHAOS TROVADORES:
O TEXTO TEATRAL EM PROCESSO
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em Letras da
Universidade Federal do Par, como requisito
para a obteno do ttulo de Mestre em Letras
Estudos Literrios.
Orientadora:
Prof.a Dr.
a Lilia Silvestre Chaves
Belm
2011
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Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
Biblioteca do ILC/ UFPA-Belm-PA
______________________________________________
Corra, Suani Trindade, 1982-
De o avarento de Molire a o mo de vaca dos Palhaos Trovadores : o texto teatral em
processo / Suani Trindade Corra ; orientadora, Lilia Silvestre Chaves. --- 2011.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Par, Instituto de Letras e
Comunicao, Programa de Ps-Graduao em Letras, Belm, 2011.
1. Teatro brasileiro Belm (PA) Crtica e interpretao. 2. Teatro (Literatura). 3.
Representao teatral . I. Ttulo.
CDD-22. ed. 792.0982115
____________________________________________________
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2
SUANI TRINDADE CORRA
DE O AVARENTO DE MOLIRE A O MO DE VACA DOS
PALHAOS TROVADORES: O TEXTO
TEATRAL EM PROCESSO
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da
Universidade Federal do Par, como requisito para a obteno do ttulo de Mestre em Letras
Estudos Literrios.
Banca Examinadora:
___________________________________
Prof. Dr. Lilia Silvestre Chaves
Orientadora - MLetras/UFPA
___________________________________
Prof. Dr. Valria Augusti
Examinador - MLetras/UFPA
____________________________________
Prof. Dr. Wladilene de Sousa Lima
Examinador MArtes/Teatro - ICA/UFPA
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Para meus pais, Carlos e Creuza.
Para Gabriel e Feijo (Marcelo), pelo
companheirismo, incentivo, amor e
pacincia.
Para os Palhaos Trovadores.
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AGRADECIMENTOS
Universidade Federal do Par (UFPA), pela acolhida e pela oportunidade de
realizao deste curso, e aos professores do Mestrado, pelas importantes contribuies no
decorrer do curso. Assim como CAPES, pela bolsa.
ma directrice Lilia Silvestre Chaves por todo ensinamento, amizade,
companheirismo, poesia, incentivo e pacincia no decorrer deste trabalho. E por ter trilhado
comigo os caminhos da pesquisa, desde a graduao.
Aos meus pais, Carlos e Creuza, por incentivarem meus estudos, mesmo nos
momentos de dificuldades. Agradeo principalmente minha me, por ter sido a me-av do
Gabriel em muitos momentos em que estive ausente.
Aos meus irmos, Andr e Glaucia, pelo incentivo e apoio ao estudo. E em
especial, minha irm Suelen, a minha alma gmea, pelo amor e ombro amigo, e por trilhar
junto comigo estes caminhos, mesmo que distncia.
Ao meu amado Feijo (Marcelo), pelo companheirismo, ombro amigo, pela
pacincia, por ter me incentivado a fazer o teste de seleo do mestrado, e por me fazer
compreender que sonhos so possveis, basta acreditar, trabalhar e lutar para que eles sejam
concretizados.
Ao meu filho Gabriel, por sorrir e perdoar, mesmo sem saber, os inmeros
momentos de ausncia e impacincia.
Aos meus companheiros de mtier, os Palhaos Trovadores, pelos anos de
ensinamentos, de descobertas, de palhaadas, principalmente Alessandra, Snia e Rosana,
por responderem as minhas perguntinhas e AM, pelo ombro amigo e por ter criado e
fomentado o seu blog. Em especial, ao meu diretor, Marton Maus, que tambm me
incentivou a fazer o teste de seleo do mestrado e por todo ensinamento ao longo dos anos.
Andrea Flores, atriz/palhaa que participou como convidada de O mo de
vaca, por tambm ter criado e fomentado um blog.
s amigas do grupo de estudo Leituras s quintas, Ldia e Maria de Ftima,
pelo convvio, amizade, risos e compartilhamento de ideias ao longo das orientaes
coletivas. Em especial Melissa, a nossa querida Mel, um tesouro recheado de boas
vibraes, de amizade, de companheirismo, de incentivo e de puro rock.
Josy, Edimara, Waldete e Maria das Neves, amigas do Mestrado, por todo
apoio, riso e incentivo.
Leide, amiga desde a poca da graduao, por toda a fora e risadas.
Selma Bustamante, Clayton Nobre, Henrique da Paz e Lenine Alencar por
colaborarem nesta dissertao.
Aos meus professores e amigos do teatro, em especial Wlad Lima, por
alimentar minha fome ciberespacial.
Ao pblico que colaborou com a montagem dos Palhaos Trovadores, portanto,
colaboraram com esta pesquisa.
todos aqueles que direta e indiretamente contriburam para o
desenvolvimento desta pesquisa e para a concretizao de um ideal.
Merci! Obrigada!
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Senhoras e senhores vamos cantar,
A alegria aqui j vai comear,
Trazemos sonhos, risos e diverso,
Cantem a nossa cano.
Palhaos Trovadores estamos aqui,
A grande lona azul do cu vai se abrir,
Um grande espetculo vai comear
ento vamos todos cantar...
la, la, la...
Trazemos sonhos, risos e diverso,
Msicas, palhaos, para vocs.
Um novo espetculo, vai comear
O circo acabou de chegar
A festa j vai comear
O circo acabou de chegar
A pea j vai comear!
O mo de vaca - Palhaos Trovadores (msica
de abertura do espetculo)
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RESUMO
A presente pesquisa apresenta uma leitura e um estudo de O avarento do dramaturgo francs
Molire, na montagem teatral O mo de vaca, concebida pelo grupo Palhaos Trovadores,
com doze anos de atuao na cidade de Belm do Par. Para isso, parte-se primeiro de um
panorama da poca de Molire e da sociedade para a qual escreveu suas comdias,
focalizando, em seguida na dissertao, os caminhos pelos quais passou o grupo de palhaos
na adaptao e montagem da pea de Molire, cuja proposta de realizao fundamentou-se
nos princpios do Processo Colaborativo, um novo modo de criao que se instaurou no
Brasil, por volta dos anos 1990. Esse tipo de processo surge da necessidade de um novo
contrato entre os criadores na busca da horizontalidade nas relaes criativas (PAVIS, 2007,
p.253). Assim, a montagem do grupo seguiu, em ensaios fechados, abertos e veiculados no
ciberespao, permitindo o dilogo mais estreito entre atores, diretor e pblico/internautas,
tornando a montagem uma criao pblica e coletiva. importante ressaltar que os Palhaos
Trovadores procuraram fazer um trabalho de adaptao do texto a partir das suas prprias
necessidades, na busca de inovao e manuteno de suas pesquisas com a linguagem do
palhao e dos folguedos populares.
Palavras-chave: Texto teatral. Molire. Palhaos Trovadores. Processo colaborativo.
Adaptao. Montagem.
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RSUM
Cette recherche prsente la lecture et ltude de Lavare, de Molire, dans la mise-en-scne O
mo de vaca, ralis par le Palhaos Trovadores, avec douze ans d'actuation Belm dans
ltat de Par. Le but avec la thse, cest de rvler les moyens du texte de thtre dans un
processus de montage, dont la proposition de la ralisation de ce montage a t fonde sur le
processus de collaboration, un nouveau type de cration qui s'est dveloppe au Brsil,
environ le dcennie 90. Ce type de processus dcoule de la ncessit d'un nouveau contrat
entre les crateurs la recherche de l'horizontalit dans les rapports de cration (Pavis,
2007, p. 253). Ainsi, le groupe a suivi dans son montage lors des rptitions fermes, ouvertes
et vhiculs dans le cyberespace, en permettant un dialogue plus troit entre les acteurs,
metteur en scne et public / internautes, ce qui rend le montage d'une cration collective et
publique. Cest important dire que les Palhaos Trovadores ont fait un travail dadaptation du
texte partir de leurs propres besoins, la poursuite de l'innovation et maintenance de leurs
recherches bases sur le langage du clown e des manifestations populaires.
Mots-cls : Texte de thtre. Molire. Palhaos Trovadores. Processus de Collaboration.
Adaptation. Mise-en-scne.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1: Primeira pancada 17
Figura 2: Segunda pancada 18
Figuras 3 e 4: Terceira pancada 18
Figura 5: Molire jouant Csar dans La Mort de Pompi de Henri Thiriat 33
Figura 6: Assinaturas dos comediantes da Illustre Thtre 35
Figura 7: cena de O avarento no Coquetel Molire 46
Figura 8: cena de Dom Juan no Coquetel Molire 46
Figura 9: cena de Tartufo no Coquetel Molire 47
Figura 10: cena de O burgus Fidalgo no Coquetel Molire 47
Figura 11: Baio de Dois em Coquetel Molire 49
Figura 12: Cartaz da pea 50
Figura 13: cena de As mulheres de Molire 50
Figura 14: Elenco de As mulheres de Molire 51
Figuras 15 e 16: Programa do espetculo 51
Figura 17: matria no jornal O Liberal. 1978 53
Figura 18: Vitria Rgia. Em cena, os palhaos Neguinha, Presuntinho e
Feijo
56
Figura 19: Logo do grupo. Criao: Jaime Bibas 56
Figura 20: Apresentao de O hipocondraco: Palhaos Trovadores
chamando o pblico da Praa da Repblica
57
Figura 21: O hipocondraco dos Palhaos Trovadores. Teatro Maria Sylvia
Nunes. 2007
58
Figura 22: cadeira de Argan. O hipocondraco no Teatro Waldemar
Henrique. 2006
60
Figura 23: Os pecadores empurram enormes sacos de dinheiro. Por Gustav
Dor
63
Figura 24: Harpagon e seu amado e querido cofre 89
Figura 25: primeira leitura de O avarento. Maro de 2009 96
Figura 26: Atriz Snia Alo (de branco), em sua euforia ao ler as falas de
Harpagon, provoca o riso do ator Marcelo David (Feijo)
96
Figuras 27, 28 e 29: Atriz Snia Alo na leitura de O avarento: IV, 7 97
Figura 30: os atores Adriano Furtado e Andra Flores lendo o texto 99
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Figura 31: grupo discutindo os resumos 104
Figuras 32 e 33: grupos trabalhando nos cortes, modificaes do texto 107
Figura 34: Supresso de falas 107
Figura 35: adaptao de O avarento durante os ensaios. 113
Figura 36: os bonecos entram em cena em O mo de vaca 115
Figura 37: Anbal Pacha, o cengrafo-figurinista-colaborador. 118
Figura 38: pgina inicial do blog Sem avarice 120
Figura 39: pgina inicial da Rede Teatro da Floresta 123
Figura 40: pgina inicial do blog Black Brex 125
Figura 41: postagem, 13 maio 2009 - blog Black Brex 127
Figura 42: pgina inicial do blog Bilazinha da mame 128
Figura 43: postagem 29 set. 2009 blog Bilazinha da mame 129
Figura 44: comentrio da atriz Andra Flores. 06 nov. 2009. Blog Black
Brex
131
Figura 45: comentrio do diretor Marton Maus. 27 abr. 2009. Blog Black
Brex
131
Figura 46: comentrio de Telma Monteiro. 1 dez. 2009. Blog Bilazinha da
mame
132
Figura 47: Pgina da enquete na comunidade dos Palhaos Trovadores no
Orkut
133
Figura 48: pgina inicial do blog Poisis na net.com 134
Figura 49: bancos-cenrios dispostos aleatoriamente no anfiteatro da Praa
da Repblica
138
Figura 50: Palhaos Trovadores em ensaio aberto na Praa da Repblica 143
Figura 51: Bar, Geninho, Neguinha e Bromlia (da esquerda direita) e
cena de movimentao entre os bancos-cenrios
145
Figura 52: Mrio (em destaque, de blusa vermelha), o colaborador do ensaio
de O mo de vaca na Semana Francfona da UFPA
147
Figuras 53 e 54: Plnio, o espectAtor do ensaio de O mo de vaca. Semana
Francfona da UFPA. 2009
148
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SUMRIO
OS PRIMEIROS RASTROS, TRAOS (consideraes iniciais) 12
1 Primeira pancada: O tempo e o riso de Molire 20/21
1.1 A Frana no sculo XVII 21
1.1.1 Ideias classicistas 24
1.1.2 Tendncias artsticas: o barroco, o preciosismo e o burlesco 27
1.1.3 Divertimentos, festas e espetculos: o Teatro 28
1.2 Molire, o palhao que fazia rir o Sol 32
1.2.1 A escolha pela arte de fazer rir 34
1.2.2 Rpidos olhares sobre o riso e a comicidade 42
1.3 O riso de Molire em outro tempo 45
1.3.1 Alguns grupos do Norte do Brasil 46
Baio de Dois: Coquetel Molire 46
Cia. Visse e Versa de Ao Cnica: As mulheres de Molire 49
Cena Aberta: Jorge Dandin 51
Gruta: Tartufo 53
1.3.2 O grupo dos Palhaos Trovadores 55
O hipocondraco 57
O mo de vaca 60
2 Segunda pancada: Lavarice et lavare 61/62
2.1 O avarento de Molire 65
2.1.1 Os percursos da pea 67
2.1.2 A avareza e outros temas da obra 70
avareza 70
A obedincia filial 75
O amor (os jovens casais apaixonados) 76
2.1.3 Petit portrait dos personagens 80
2.1.4 Aes ou ideias presentes em cada cena 84
3 Terceira pancada: O texto teatral em processo: O mo de vaca dos
Palhaos Trovadores
91/92
3.1 O processo com o texto entre o texto e a cena 95
3.1.1 Primeiras leituras 95
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11
3.1.2 Tarefas 100
Canovaccio 100
Resumos 103
3.1.3 Cortes e adaptaes do texto 105
Nomes dos personagens 108
Cortes de cenas inteiras e de personagem 109
Mudanas no texto 109
3.2 Anbal Pacha, o cengrafo-figurinista-colaborador 118
3.3 Sem avarice - entre o grupo e o pblico 120
3.3.1 O processo no ciberespao 121
Os blogs 123
a) Atores 123
b) A recepo dos internautas 130
3.3.2 O processo no anfiteatro da Praa da Repblica 136
Espaos de ensaio 137
As atitudes dos atores 139
O pblico e as suas colaboraes 143
a) Pblico da Praa da Repblica 144
b) Pblico da Escola de Teatro e Dana da UFPA 146
c) Pblico de alunos da Semana Francfona da UFPA 147
LTIMOS RASTROS, TRAOS... PASSOS AINDA NO DADOS
(consideraes finais)
150
REFERNCIAS 154
ANEXOS 160
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12
OS PRIMEIROS RASTROS, TRAOS (consideraes iniciais)
Wuo1 (apud BURNIER, 2009) diz que o clown a colherinha que mexe com o
desejo da gente. Essa colherinha comeou a fazer parte do meu universo, mexendo,
transformando, instigando o meu olhar sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre mim mesma, a
partir de 2002. Na poca, soube que o grupo Palhaos Trovadores, dirigido por Marton
Maus2, iria ministrar uma oficina de clown, de palhao. Como eu desejava vivenciar tudo
que pudesse em termos de linguagens teatrais, acabei me inscrevendo. Fiz a oficina, com
durao de dois meses, e vivenciei a arte do palhao e a do acrobata. Ali se revelou a minha
palhaa de codinome Aurora Augusta (o segundo nome veio tempos depois). No ano
seguinte, em maio de 2003, recebi um convite feito pelo prprio Marton Maus para ser
estagiria do grupo, sendo efetivada em julho do mesmo ano. Desde ento, sou integrante dos
Palhaos Trovadores, grupo pioneiro na arte da linguagem do palhao em Belm do Par e
com doze anos de estrada.
No pensava em trabalhar com o cmico. Como disse, minha inteno era, de uma
maneira despretensiosa, cursar a oficina, pois toda e qualquer linguagem teatral que
acrescentasse algo ao meu conhecimento, eu fazia, estudava. Mas o risvel, o palhao, me
absorveu de tal forma que participar desse universo, me revela a cada dia um encantamento e
um envolvimento no mundo ldico do jogo do palhao. Nesses oito anos de trabalho com os
Palhaos Trovadores, sempre procurei pesquisar sobre a tcnica do clown desenvolvendo
principalmente o papel de atriz/palhaa (acrobata e malabarista), para que a Aurora Augusta
cresa cada vez mais.
Desde que entrei para o universo do teatro, confesso que no havia em mim a
preocupao em fazer uma universidade. J havia tentado algumas vezes, para cursos que hoje
em dia sei que no possuem qualquer relao comigo (Pedagogia, Fisoterapia, Engenharia
Florestal), porm o que queria mesmo era viver somente de teatro, queria fazer teatro. E eu
no imaginava a possibilidade de viver e fazer teatro, academicamente falando.
Em 2005 prestei vestibular e passei na Universidade Federal do Par (UFPA), para o
curso de Licenciatura Plena em Letras com habilitao em Lngua Francesa. Oui, je suis
diplome en franais! [Risos]. Eu nunca havia feito um curso de lngua estrangeira (s no
1 Professora nas Universidades So Judas Tadeu/SP e Metrocamp/Campinas; professora colaboradora do
IEL/UNICAMP; Atriz, Clown e Diretora Teatral. 2 Na poca, eu fazia o Curso de Formao de Ator na Escola de Teatro e Dana da UFPA (ETDUFPA), onde
Marton Maus era meu professor. Formei-me em 2003.
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ensino mdio que tive aula de ingls e espanhol, mais voltados para a prtica da leitura). A
referncia que tinha da lngua Francesa eram as msicas que minha me sempre ouviu, como
Ne me quitte pas, La vie en rose, Aline, alm de ouvir alguns amigos pronunciando um merci,
um chrie, por exemplo ou ao estudar teatrlogos como Artaud e assistir ao renomado Cirque
du Soleil. Acredito que tive um bom desempenho no curso de Letras. Gostei de todas as
disciplinas, entretanto, as aulas que me enchiam os olhos eram as de Literatura,
principalmente a de Teatro Francfono. Eu no poderia encontrar, em um curso de Letras,
atividades de teatro enquanto espetculo de representao corporal, porm um outro tipo de
estudo me foi apresentado: o estudo do teatro enquanto texto: leitura, interpretao e anlise.
Eis que meu olhar mais acadmico comeou a surgir. Entendi que essa interpretao literria
precedia e fortalecia a interpretao teatral qual, enquanto palhaa-atriz e, portanto,
tambm intrprete de um texto eu costumava me dedicar.
Logo, ao elaborar meu Trabalho de Concluso de Curso (TCC), em 2008, enveredei
pelos caminhos da Literatura, percorrendo as veredas do teatro. No foi possvel a fuga.
[Risos]. Meu TCC, intitulado Palhaos Trovadores et Molire: La construction dun
personnage fminin [Palhaos Trovadores e Molire: a construo de uma personagem
feminina], discorreu sobre a construo da personagem Anglique pela minha palhaa Aurora
Augusta, na montagem que os Palhaos Trovadores fizeram de O hipocondraco, espetculo
estreado em 2006, uma adaptao de O doente imaginrio de Molire. Esse trabalho contou
com a orientao da Prof. Dr. Lilia Silvestre Chaves.
A ideia para esta dissertao de Mestrado em Letras - Estudos Literrios da UFPA
De O avarento de Molire a O mo de vaca dos Palhaos Trovadores: o texto teatral em
processo , de certa forma, teve seu primeiro passo no meu TCC, em 2008. Portanto,
seguindo o percurso at agora trilhado por mim, no Teatro e nas Letras, este trabalho um
estudo sobre a obra O avarento, tambm de Molire, e sobre a adaptao para a pea O mo
de vaca, adaptada e montada pelos Palhaos Trovadores e que estreou em 2010 , revelando
os caminhos que um texto teatral percorre em um processo de montagem, ainda mais quando
os atores que o devoram so palhaos. O palhao subversivo; no se fecha ou no se
limita s fronteiras de um texto preestabelecido, amarrado, fechado, por isso trabalha com
roteiros e improvisaes (como os canevas usados na Commedia dellArte). Entretanto, na
busca incessante por novos desafios, o grupo decidiu embrenhar-se nos textos cmicos
clssicos, levando para o palco e para a rua - a genialidade de um autor da Frana do sculo
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XVII, adaptando suas peas para o mundo clownesco e para o pblico de um pedao do Brasil
(Belm do Par) no sculo XXI.
Sendo assim, em 2006 o grupo montou O hipocondraco e em 2009 O mo de vaca.
A realizao da montagem de O avarento pelos Palhaos Trovadores3 cujo processo o
principal objetivo deste trabalho , fundamentou-se nos princpios do Processo Colaborativo,
um novo modo de criao que se instaurou no Brasil, por volta dos anos 1990. Esse tipo de
processo surge da necessidade de um novo contrato entre os criadores na busca da
horizontalidade nas relaes criativas (PAVIS, 2007, p.253), ou seja, a necessidade de uma
espcie de abolio das hierarquias, tanto em relao adaptao do texto, quanto funo do
diretor, na montagem da pea. Na realidade, h uma primazia pela busca do trabalho do ator:
a partir dele, do que ele prope que o espetculo vai ganhando forma.
O processo colaborativo teve sua origem na Criao Coletiva4, uma forma de criao
que surgiu nas dcadas de 1960 e 1970. A criatividade do indivduo exercida em grupo, e
estabelecida, segundo Pavis (2007, p.78), a fim de vencer a tirania do autor e do encenador
que tendem a concentrar todos os poderes e a tomar as decises estticas e ideolgicas. Ou
seja, o autor (representado pelo texto) e o encenador deixam de ser as peas centrais do
processo, que se torna uma criao em grupo, baseada em mltiplas interferncias, e o
espetculo passa a ter a assinatura de todos os envolvidos.
Nesta dissertao posso dizer que lano meu olhar de pesquisadora sobre um duplo
objeto, o texto literrio e a encenao: primeiro, a pea de Molire, enquanto texto literrio,
que li primeiramente em francs, e que depois, junto com os meus companheiros do grupo,
reli em portugus (na traduo de Bandeira Duarte, 1996), estudando-a e adaptando-a para
uma representao cujos intrpretes so palhaos; segundo, a descrio da experincia durante
o(s) processo(s) da montagem em si.
3A proposta de montagem faz parte do projeto de pesquisa de Doutorado em Artes Cnicas (Doutorado
Interestadual Universidade Federal da Bahia (UFBA) e UFPA) do diretor do grupo, Marton Maus a realizao
de um experimento cnico, de forma aberta, num processo amplo de colaborao em que at mesmo o pblico
participa da criao, da seu ttulo: Criao Pblica. Poder-se-ia dizer que minha dissertao um complemento
dessa sua pesquisa, mas meu enfoque ser dado ao texto teatral em processo, como descreverei adiante. 4 O Dicionrio do Teatro Brasileiro (2006) aponta que a criao coletiva na Europa, esteve associada a
encenadores (entre eles o ingls Peter Brook, um dos encenadores mais respeitados do mundo. Seus trabalhos
tm-se distinguido nas reas artsticas do teatro, do cinema, da pera.) que propuseram novas formas de atuao,
cujas apresentaes se realizavam em salas no-convencionais. Nos Estados Unidos h uma busca de contato
direto com o pblico, com abordagens da sociedade contempornea. Com os grupos brasileiros, a exemplo do
TUCA e o PO e CIRCO, houve uma busca pela improvisao dos atores, concentrada em suas prprias
vivncias, fazendo com que os espetculos tivessem longa durao.
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Trabalhar com um assunto com o qual tenho intimidade e que vivencio h mais de
oito anos, no uma tarefa muito fcil, no que diz respeito ao distanciamento aconselhado em
um trabalho cientfico. Como distanciar-se de um objeto a ser estudado, analisado, do qual
voc parte integrante? Entretanto, essa aproximao com o objeto permite um olhar mais
apurado. Assim, segui como uma artista-pesquisadora: distanciada nos momentos mais
tericos, acabo surgindo como sujeito presente, nas descries das minhas experincias
enquanto componente do grupo. A inteno a de dar um passo a mais na tentativa de traar
um percurso e de registrar mais um fazer artstico dos Palhaos Trovadores.
Com relao s trilhas metodolgicas, este trabalho se cruza com os caminhos da
Histria em geral e, de certa maneira, os da sociologia da literatura, ao relacionar a obra de
Molire com a sociedade de sua poca (e, rapidamente, ao mostrar a tentativa de traz-lo para
a poca atual, em outra sociedade de outra cultura). Quanto aos rpidos olhares sobre a
comicidade e o riso, trilhei pelas ideias de tericos como Bergson, Propp e Bakthin. No que
diz respeito ao processo de adaptao e montagem (e s em relao a ele, no em relao
criao do texto), busquei ideias nas pginas da crtica gentica de Ceclia Almeida Salles em
seu Gesto Inacabado: processo de criao artstica (1998), abordagem que se preocupa com
o processo de criao da obra de arte, suas etapas de desenvolvimento, levando em
considerao o resultado final como mais uma etapa diante das inmeras que o antecederam.
Foram feitas pesquisas em arquivos a fim de procurar traos de um passado em que Molire
foi encenado nesta regio do Brasil, e foram criados novos arquivos com fotos, vdeos, e-
mails e blogs para documentar os rastros processuais da montagem dos Palhaos
Trovadores (alm, claro, de recorrer, por vezes, minha memria).
Em relao estrutura, o presente trabalho est dividido em trs captulos, que
metaforicamente seguem as trs pancadas que costumam anteceder, em um teatro, a
apresentao do espetculo. Antes de comentar a diviso do trabalho, penso ser necessria
uma breve explicao do uso das pancadas, no teatro e na dissertao.
A expresso pancada coup surgiu com Molire (Frana, sculo XVII). Naquela
poca, a plateia francesa era bastante barulhenta e agitada e, no intuito de acalm-la, Molire
batia vrias vezes no cho com um basto de madeira o batelier. O uso das pancadas
surgiu tambm por conta do fazer teatral do perodo. No Palcio de Versalhes, residncia de
Luis XIV e local onde as apresentaes eram realizadas, no havia a diviso, que hoje temos,
entre o palco e a plateia.
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As famosas pancadas de Molire surgiram em funo das especificidades
do fazer teatral no perodo. As apresentaes eram realizadas no Palcio de
Versalhes, residncia do rei Luiz XIV e sua corte, em um ambiente no qual
no havia diviso rgida entre palco e plateia. Era apenas um amplo salo do
palcio, no uma sala de espetculos. Como a corte era ruidosa e no havia
iluminao eltrica naquela poca, o modo encontrado de marcar o incio do
espetculo foi atravs de rudos pancadas no cho para fazer silncio
(MOSTAO apud PERES, 2009).
As pancadas disseminaram-se pelas outras cortes da Europa. Mais tarde, com a
iluminao eltrica, os momentos anteriores ao espetculo comearam a ser marcados pelo
uso de campainhas e com o escurecimento da sala. O uso das pancadas ou campainhas,
tambm denominadas sinais, toques, campas, tornou-se uma conveno no que tange os
espetculos apresentados nas salas fechadas, nos teatros5. O espectador habituado a ir ao
teatro sabe que, ao soar a terceira campainha, dever manter-se em silncio e atento, pois o
espetculo ir comear.
Ocorreu-me fazer, aqui, um paralelo entre a marcao desses momentos que
antecedem uma apresentao e a diviso dos captulos de um trabalho acadmico, utilizando
uma expresso criada por Molire, j que estou trabalhando com a obra deste dramaturgo.
evidente que em uma dissertao no se chega apresentao da pea
propriamente dita (ser preciso que o leitor, se a colherinha de Wuo mexer no seu desejo,
procure saber das apresentaes que os Palhaos Trovadores costumam fazer pela cidade de
Belm, e v assistir ao espetculo O mo de vaca). Aqui se estuda o que precede o espetculo
em si: a exposio histrico-terica, a anlise da pea, a descrio e os comentrios do
processo de adaptao do texto e de montagem da pea. As pancadas que, no teatro,
marcam o tempo em que se espera a abertura das cortinas anunciam, aqui, os ttulos dos
captulos, as etapas do trabalho.
Portanto, eis a diviso dos meus captulos:
5Mas, saindo da sala fechada do teatro, h espetculos que so apresentados, encenados nas ruas, nas praas
(Teatro de Rua). Nessas apresentaes, no se costumam ouvir campainhas ou quaisquer sinais. Existem outras
convenes que so prprias desse fazer teatral, como um aquecimento diante do pblico ou a arrumao do
espao. Porm, h casos em que o espetculo j comea invadindo o espao, a rua, sem aviso prvio.
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Figura 1: Primeira pancada.
Fonte: Acervo da autora deste trabalho.
Primeira pancada. Mais ou menos uma hora antes de iniciar o espetculo. Os
palhaos iniciam seus rituais: colocam os figurinos dos personagens; pancake para
embranquecer seus rostos; lpis preto para ajudar a delinear as sobrancelhas; quem me
empresta um batom vermelho?, grita um palhao; as sombras do o retoque final, colorindo
os olhares trovadorescos. O pblico, j em seus lugares, ou ainda entrando na sala ou no
anfiteatro, sabe que ainda precisar esperar algum tempo, mas que os preparativos esto
acontecendo nos bastidores.
Na dissertao, aps a Primeira pancada, hora de situar o leitor. Mostra-se O
tempo e o riso de Molire, primeiro em um panorama dos acontecimentos histrico-artsticos
do sculo XVII, para entender a sociedade em que Molire viveu e para a qual escreveu seu
teatro. Depois de situar o leitor no contexto histrico da Frana no sculo XVII com seus
ideias classicistas e tendncias artsticas , e de passar rapidamente pelos escritores trgicos
da poca, Molire entra em cena: focalizam-se os percursos de sua vida teatral e sua escolha
pela arte de fazer rir inovando na forma de escrever e de fazer comdias, inspirando-se na
Commedia dellArte e na farsa francesa. Ainda nesse momento, feita uma curta retrospectiva
de adaptaes e representaes de peas de Molire provocando o riso de um pblico de outro
continente, mais de trs sculos depois da morte do cmico francs portanto em um
contexto temporal e cultural diferentes de sua poca.
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Figura 2: Segunda pancada.
Fonte: Acervo da autora deste trabalho.
Segunda pancada. A palhaada chega ao anfiteatro da Praa da Repblica. Alguns
espectadores j esto l, sentados, esperando o incio do espetculo. Eles distribuem os bancos
pelo anfiteatro, arrumando-os na ordem estabelecida embaixo de cada banco h um nmero.
Prendem um fio, um barbante de uma rvore a outra: est pronto o varal. Material cnico e
instrumentos so dispostos tambm em seus devidos lugares. O anfiteatro est transformado.
O pblico observa a arrumao do palco.
Na dissertao, aps a Segunda pancada, apresenta-se Lavarice et lavare. A pea
O avarento estudada, primeiro no que diz respeito ao tema da avareza, aliando Molire a
outros autores, anteriores e posteriores a ele, que tambm abordaram o tema da usria, e
mostrando os costumes da poca clssica e o pensamento e as lies de Molire; depois,
traa-se o esboo de uma anlise, em que temas, perfis dos personagens e aes ou ideias
presentes na obra so apresentados.
Figuras 3 e 4: Terceira pancada.
Fonte: Acervo da autora deste trabalho.
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19
Terceira pancada. Os palhaos recuam para trs do cenrio. Colocam-se em crculo.
Hora de aquecer a voz e o corpo: respirao diafragmtica, vocalizes, trechos de canes;
alongamento das pernas, mos, cabea e coluna, saltos para expandir a energia. Aquecidos, os
palhaos abaixam a cabea e colocam seus narizes. Do-se as mos. O diretor diz: agora,
brinquem, relaxem, joguem com a plateia e com vocs mesmos. E entoam o seu grito de
guerra: Palhaos Trovadores oeoeoe !
E o espetculo vai comear. O pblico faz silncio e se concentra no palco.
Na dissertao, a Terceira pancada. Abrem-se as cortinas dos bastidores para
mostrar O texto teatral em processo: O mo de vaca dos Palhaos Trovadores. o
momento da descrio do processo de montagem o ponto principal deste estudo. Busca-se a
tessitura, a adaptao, o trabalho do texto. Na realidade, trata-se de um relato de experincia,
que conta as fases de um processo, em que, percorreremos as primeiras leituras, tentamos
resolver as tarefas estabelecidas pelo diretor e, principalmente, os cortes e as adaptaes
realizados por todos ns, Palhaos Trovadores, da pea O avarento de Molire. Alm disso,
mostra-se como se configurou esse processo colaborativo entre os participantes do grupo com
o pblico, por meio do uso de blogs e de redes sociais e durante ensaios abertos realizados na
Praa da Repblica, mas tambm na Escola de Teatro e Dana da Universidade Federal do
Par (ETDUFPA) e no estacionamento do Pavilho Bsico da UFPA (campus do Guam).
Evo!
Merda!
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Primeira pancada
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O TEMPO E O RISO DE MOLIRE
A misso da comdia representar, em geral, todos
os defeitos do homem e, em particular, dos homens
de nosso tempo.
Molire
A carreira de Molire parece construir-se em torno de uma ambio fundamental:
compor uma obra cmica que responda s suas prprias aspiraes culturais e morais e
tambm s do seu tempo. Para aprofundar essa afirmao, preciso refletir a respeito da dupla
significao do riso molieresco: que importncia ele tem na relao estabelecida pelo autor
entre a obra e o mundo? Que lugar o riso ocupa na viso do homem e da sociedade da poca
em que Molire criou suas comdias? na Histria que buscaremos respostas a essas
questes, antes de falarmos do texto teatral em si. Portanto, para entender o universo de
Molire, apresentaremos um panorama dos acontecimentos histrico-artsticos do sculo
XVII.
1.1 A Frana no sculo XVII
Laube de Louis XIV (1635-65) voit se lever la
premire grande promotion dartistes: Pascal,
Bossuet, Molire, La Fontaine. La deuxime
promotion occupe lre du Roi-Soleil (1665-80).
Enfin, dans la dernire partie du rgne de Louis
XIV (1680-1715) se dveloppe un drame de
conscience et dhorizons nouveaux.6
V.-L. Saulnier
O sculo XVII literrio inscreve-se, na Frana, entre as mortes de Henrique IV e a de
Lus XIV, ou seja, de 1610 a 1715. Entre essas datas, a vida na Frana mudou, as
mentalidades se desenvolveram e grandes obras se fizeram conhecer no mundo europeu.
impossvel no notar o enlace entre os acontecimentos polticos e as criaes literrias e
artsticas no sculo do Classicismo e de Lus XIV: havia uma relao evidente entre o
movimento que conduziu ao triunfo do Classicismo e aquele que assegurou o estabelecimento
da monarquia absoluta.
6 A aurora de Lus XVI (1635-65) v elevar-se a primeira grande promoo de artistas: Pascal, Bossuet,
Molire, La Fontaine. A segunda promoo ocupa a era do Rei-Sol (1665-80). Enfim, na ltima parte do reino de
Lus XIV (1680-1715) desenvolve-se um drama de conscincia e novos horizontes (traduo nossa).
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A Histria da Frana, mais da metade do meio sculo que seguiu o assassinato de
Henrique IV (1610), marcada por perodos de graves problemas polticos. Um dos primeiros
conflitos sofridos pela Frana foi a chamada Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), uma srie
de guerras que diversas naes europeias travaram entre si por questes religiosas, dinsticas,
territoriais e comerciais.
Nesse perodo, como os reis que herdavam o trono eram extremamente jovens, o pas
atravessou perodos de regncia e de grande influncia dos primeiros ministros sobre o poder
real. Assim, o sculo XVII compreende os reinados de Marie de Mdicis, de Lus XIII e a
dominao do cardeal Richelieu, de Ana da ustria e o poder de Mazarin e, por fim, o de Lus
XIV, tout seul [sozinho]: com as ideias de Richelieu, que mostrou um gnio poltico e
intransigente e as de Mazarin, com sua diplomacia insinuante, a Frana chega, com Lus XIV
ao estabelecimento de uma monarquia absoluta.
Lus XIII (1601-1643) tinha nove anos quando seu pai Henrique IV foi assassinado em
1610. Sua me, Marie de Mdicis assumiu a regncia, mas afastada do poder pelo filho.
Lus XIII reinou sobre a Frana, com a colaborao preciosa de seu primeiro ministro o
cardeal Richelieu, que promoveu uma forte aproximao da Igreja Catlica com o Estado,
inclusive financeiramente, conseguindo apoio irrestrito da Igreja aos seus ensejos, e lutou
ativamente pela Contra-Reforma. Alm disso, o ministro foi um dos maiores responsveis
pela consolidao do poder centralizado nas mos da monarquia absolutista, tendo enfrentado
fortes conflitos contra os nobres herdeiros dos privilgios feudais, que queriam seus antigos
direitos.
Quando seu pai morreu, em 1643, Lus XIV tinha quatro anos e meio. Uma nova
regncia enfraquece o poder real, principalmente durante a Fronde (1648-1653), verdadeira
guerra civil entre o poder real e os grupos sociais que desejavam participar do poder (nobres e
magistrados superiores do Parlamento de Paris). O cardeal Mazarin, primeiro ministro da
rainha-me Ana da ustria, assegurou a regncia e a vitria da monarquia. Os franceses,
cansados da desordem da guerra, desejavam um rei que mantivesse a paz. Mas somente com a
morte de Mazarin, Lus XIV assumiu o poder e declarou que governaria sozinho, sem
primeiro ministro. O reino de Lus XIV marcou a centralizao extrema do poder real, o
apogeu da construo secular de um absolutismo real. Lus XIV desenvolveu, portanto a
monarquia absoluta de direito divino, reinando sobre a corte e sobre a Frana, considerando-
se como responsvel diante de Deus, e reconhecido como um dos dspotas esclarecidos da
histria do mundo. Tendo sido preparado desde sua infncia por Mazarin para exercer o
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poder, suas ideias absolutistas podem ser resumidas por sua clebre frase: ltat cest moi [O
estado sou eu]. Escolheu como emblema o sol, o smbolo de ordem e de regularidade. Com
Lus XIV, a Frana foi regida com ordem e autoridade. Os privilgios do clero e do
Parlamento tornaram-se bastante restritos e a nobreza foi domesticada para a corte, onde
sua maior preocupao era a de se fazer notar pelo rei.
Em termos religiosos, o rei fortificou o catolicismo como religio de Estado, fixando
os seus dogmas. Ele estabeleceu ainda uma luta severa contra os calvinistas e a igreja
anglicana se fortificar depois, graas aos esforos de Bossuet7, bispo e telogo francs
(1627-1704). Em 1685, o rei aboliu o dito de Nantes8, o que causou uma grande evaso de
capital, levado pelos protestantes que deixaram o pas. Sua poltica estrangeira implicou
numerosas aventuras militares na Frana, como a guerra contra os Pases-Baixos e a sucesso
da Espanha. Seu objetivo era fazer com que o territrio francs se expandisse, assegurando
sua hegemonia na Europa.
Luis XIV, desconfiando dos grandes, favoreceu o crescimento da burguesia e
vigiou a nobreza. Quebra o poder dos nobres de modo consciente e consequente,
preenchendo todos os cargos importantes com burgueses e deixando aos aristocratas apenas a
carreira militar. Fora-os a viverem constantemente sob seus olhos na Corte (RNAI, 1981,
p. 9)9. Alm disso, em seu reinado, foi fixada a legislao das boas maneiras, cuja etiqueta,
a polidez, o bom tom eram considerados virtudes essenciais aos honntes gens [pessoas de
bem], nos corredores dos sales reais. Relata-se que Lus XIV gastava dinheiro de forma
desordenada, despendendo vastas somas de dinheiro para financiar seus hbitos e festas
esplndidas na Corte Real. Isso poderia ser considerado tambm uma estratgia para ocupar,
divertir e distrair os aristocratas, para que eles no pensassem em repetir uma guerra como a
7 Bossuet foi um dos primeiros a defender a teoria do absolutismo poltico, criando o argumento de que o
governo era divino e que os reis recebiam seu poder diretamente de Deus. Escreveu A poltica tirada da Sagrada
Escritura (1709 publicao pstuma), na qual ele defende a origem divina do poder real: Deus delegava o
poder poltico aos monarcas, dando-lhes autoridade ilimitada e incontestvel. O exemplo de governante que se
serviu das ideias de Bossuet foi o prprio Lus XIV (JACQUES, s.d.). 8 O dito de Nantes foi um documento histrico assinado em Nantes a 13 de Abril de 1598 pelo rei da Frana
Henrique IV. O dito concedia aos huguenotes a garantia de tolerncia aps 36 anos de perseguio e massacres
por todo o pas, com destaque para o Massacre da noite de So Bartolomeu de 1572.Com este dito ficava
estipulado que a confisso catlica permanecia a religio oficial do Estado mas era agora oferecida aos
calvinistas franceses a liberdade de praticarem o seu prprio culto. 87 anos mais tarde, a intolerncia religiosa
estaria de volta. A 23 de Outubro de 1685, o rei Luis XIV da Frana revogaria o dito de Nantes com o dito de
Fontainebleau contrariando a vontade do Papa Inocncio XI e da Cria Romana. Os huguenotes voltariam a ser perseguidos e muitos deles fugiriam para o estrangeiro: para a Prssia, para os EUA e frica do Sul (DITO,
s.d.). 9 Conferncias proferidas por Paulo Rnai em 1973, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, por ocasio do
tricentenrio de morte de Molire.
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Fronde. Da as festas sucederem-se cada vez mais esplndidas e vertiginosas (RNAI,
1981, p. 9).
No incio de seu reinado, o jovem Lus XIV quis primeiro transformar o Louvre,
mas, a partir de 1682, fez de Versalhes sua residncia principal. No quis, entretanto, que a
capital sofresse com sua ausncia e Paris era continuamente embelezada na escala da
grandeza do reino, para usar uma expresso de Jacques Wilhelm, autor de Paris no tempo do
Rei Sol (1988).
Alm de gastar em melhorias no antigo Palcio do Louvre e, principalmente, no
Palcio de Versalhes, o Rei-Sol patrocinava as artes. O prestgio cultural do seu reinado
explica-se pelo exerccio do mecenato, favorecendo, com a proteo real, muitos artistas,
entre os quais os dramaturgos Molire e Racine, o poeta e historiador Boileau, o compositor
Lully, os arquitetos Le Brun e Le Ntre. Tambm o poeta e fabulista La Fontaine, o filsofo
Blaise Pascal, a epistolar Madame de Svign, o moralista La Bruyre ou o memorialista
Saint-Simon, que eram mais independentes, emprestam seu nome para o apogeu histrico do
classicismo francs. Sob o reino de Luis XIV, a Frana adquiriu uma preeminncia europeia
econmica, poltica e militar, e seu prestgio com sua lngua falada pelas elites e em todas as
cortes da Europa permite, como sabemos, falar do sculo de Luis XIV como o Grande
Sculo, no modelo dos sculos de Pricles e de Augusto.
1.1.1 Ideias classicistas
Nestes primeiros anos do sculo XVII, foi importante a influncia do Humanismo,
filosofia que coloca o homem como centro de qualquer discusso, atribuindo a maior
importncia dignidade, s aspiraes e capacidades humanas, particularmente a razo, e
contrapondo-se a um ideal sobrenatural ou a uma autoridade superior. O humanismo teria
surgido com a obra De la sagesse (1606) de Pierre Charon. Segundo Tournand (1970, p. 12),
essa obra no seria mais do que um balano moral dos Essais (1572) de Montaigne,
apresentado em um quadro resolutamente cristo e disposto em forma de tratado.
Nessa obra, Charron proclama que a nica causa do todos os males do homem seria o
fato de no conhecer a si mesmo e que o vcio fundamental do esprito humano seria o
orgulho e a presuno, defeitos que fazem com que o homem se torne um inimigo da
sabedoria e da razo. Com esse esprito humanista, o homem perceber-se-ia um ser capaz e
importante para agir no mundo. Assim, o comportamento humano estaria baseado no
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antropocentrismo, sendo dotado de um "livre arbtrio", isto , capacidade de deciso sobre a
prpria vida, a qual no seria mais determinada por Deus (teocentrismo). Logo, o homem
estaria caminhando a uma posio mais racionalista. E os humanistas acreditavam que, se os
homens orientassem as suas aes pela razo, poderiam melhorar a si prprios e a sociedade:
[...] assim, a maior doena da mente a ignorncia... de si mesmo (CHARRON apud
TOURNAND, 1970, p.13). Portanto, os homens necessitam conhecer a si mesmos. Para
Montaigne, o verdadeiro objeto da literatura a anlise e a pintura do homem. Podemos
considerar, portanto, que o classicismo est intimamente relacionado com o humanismo, em
que esttica e tica esto unidas.
Ren Descartes, matemtico e filsofo francs (1596-1650), considerado um dos
pensadores mais importantes e influentes da Histria do Pensamento Ocidental, inspirando
seus contemporneos e vrias geraes de filsofos posteriores. A partir de Descartes
inaugurou-se o racionalismo e tambm o Classicismo. Em 1637, Descartes publica o Discurso
do Mtodo que define, essencialmente, o papel da razo na pesquisa cientfica e em 1649, o
Tratado das paixes, que celebra a liberdade humana e mostrar a importncia da vontade em
prol da razo, que permite sabedoria de governar seus instintos para o bem da alma.
Tratando-se do esprito clssico, Tournand diz que:
Todo o classicismo, efetivamente, repousa sobre a ideia que existe
uma verdade, uma perfeio absoluta, que esta verdade ou esta
perfeio vlida para todos os homens em todos os tempos, [...] e
que todos os homens podem alcan-la desde que se conformem
rgida disciplina da razo (1970, p.26, traduo nossa).
Logo, o homem clssico deseja alcanar, por seus prprios meios, a perfeio. E isto
seria observado na literatura. No sculo XVII, a vida intelectual tem ao seu dispor novas
condies desde a inveno da imprensa, no sculo XV, a produo dos livros vinha se
modificando. A lngua francesa foi, cada vez mais, usada para a difuso das ideias. Malherbe
(1555-1628) foi considerado o precursor da escola clssica, por iniciar a elaborao de uma
doutrina clssica nos primeiros anos da literatura francesa seiscentista. Contra a literatura do
sculo precedente, engajou-se em prol de uma purificao da lngua francesa e de uma
reforma na tcnica do verso, recomendando a clareza e a preciso de estilo aos escritores.
Seus poemas foram marcados por traos de um equilbrio entre a riqueza verbal do
Renascimento e a estrita ordenana do Classicismo nascente: seu ensinamento, feito de
lgica e de clareza, se imps pouco a pouco e restaurou, aps as audcias do sculo XVI, uma
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disciplina de expresso que teria todo seu valor nas grandes obras do classicismo (CASTEX,
1979, p. 153).
Com relao purificao da lngua francesa, Malherbe pretendeu retirar as palavras
estrangeiras, compostas ou derivadas, os arcasmos, os latinismos, os termos tcnicos,
adotadas durante o sculo XVI. Ele recomendou aos escritores um estilo simples e claro, pois
seria a nica maneira de se exprimir razo. Assim, condenava os pleonasmos, as metforas
inexatas ou muito prolongadas.
Ainda no que tange lngua, surge a Academia Francesa, em 1635: um grupo de
escritores reunia-se para discutir sobre a arte literria, sob a proteo do cardeal Richelieu. A
academia tinha como objetivo uma consagrao oficial dos trabalhos relativos lngua
francesa e dar arte literria uma extrema dignidade. Richelieu encarregou-a de redigir
obras tericas que retratassem a lngua francesa, como dicionrio, gramtica, retrica e
potica, entretanto, somente o dicionrio foi concludo e isto no fim do sculo XVII.
As liberdades de atitude, de linguagem e de esprito, se disciplinam.
Malherbe e a Academia depuram a lngua, dando nitidez s expresses,
desembaraando-a das palavras estrangeiras, apresentado-a com a clareza e a
elegncia que constituem o verdadeiro universalismo de um idioma.
quando se estabelece a diferena entre o mau e o bom uso dos termos, que
Vaugelas, em suas Remarques sur la langue franaise, de 1647, define
como: a maneira mais pura de falar, partida da corte, conforme a mais pura
maneira de escrever dos autores contemporneos (DUARTE, 1944, p. 12).
Modificaram-se tambm as ideias e a religio. Uma nova viso do universo foi trazida
por Copernico (morto em 1543) e Galileu (1564-1642) no sculo XVII j se sabia que a
terra era apenas mais um planeta do sistema solar. Questionavam-se as ideias antigas e
impunham-se novas ideias sobre uma nova cincia e uma nova filosofia. Uma corrente maior
do pensamento o racionalismo, do qual Ren Descartes lanou as primeiras bases.
Pascal (1623-1662), como Descartes, pertence histria do pensamente cientfico do
sculo XVII; ele conhece todos os aspectos do pensamento "libertino", porque a cincia
moderna tinha laos estreitos com os pensamentos "alternativos. No entanto, matemtico e
fsico, Pascal soube delinear a rea especfica onde reina a razo, embora distinto, segundo
ele, da ordem superior e incomensurvel onde reina a graa (as trs ordens existentes,
segundo ele, so a ordem da natureza; a ordem da razo; a ordem da graa).
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Aos seus olhos, ento, no pode haver uma cincia natural, cujas verdades so firmes,
mas parciais, e cujo campo tcnico e eficiente, mas esta cincia no tem nada a ver com o
domnio da moralidade, e ainda menos com o da salvao.
So os tratados propriamente cientficos de Pascal (Essai pour les coniques, 1640,
Expriences nouvelles touchant le vide, 1647) que inauguram realmente o uso da lngua
francesa como lngua cientfica e algumas de suas obras (Prface au Trait du vide - 1651, e
De lesprit gomtrique -1657) so importantes no que concerne o estilo e o pensamento.
Alm disso, a segunda seo do texto de 1657, sobre a arte da persuaso, oferece uma
reflexo fundamental sobre a natureza do trabalho da verdadeira retrica, que zomba do
simples, do ingnuo, do natural.
Tambm, quanto noo de vida devota no sculo XVII, sculo marcado pelo
triunfo da espiritualidade da Contra-Reforma (Corneille traduziu a lImitation de Jsus-
Christ), Pascal entra na literatura no sentido de ter decidido escrever em francs para
sustentar o debate diante do pblico des honntes gens [das pessoas de bem].
1.1.2 Tendncias artsticas: o barroco, o preciosismo e o burlesco
Apesar das regras clssicas s quais a arte comeara a ser submetida, alguns
escritores defendiam o direito liberdade da inspirao na criao. A tirania clssica
combatida, por exemplo, por Thophile de Viau (1590-1626), que se deixa inebriar pelos
enlaces da sensibilidade e dos jogos de imaginao, sendo considerado um adversrio de
Malherbe, por defender os direitos da livre inspirao. Thophile de Viau foi um poeta
barroco. A arte barroca , primeiramente, uma arte do movimento, do deslocamento no espao
e no tempo, a que estariam relacionadas tambm as variaes da alma humana. Como arte do
movimento, da instabilidade e da metamorfose, o barroco utilizou todos os recursos que
permitem dar uma representao visual das ideias e das realidades abstratas. Dessa maneira, o
barroco considerado uma arte das imagens e cultiva o reflexo, a iluso, o artifcio estranho,
o enigma e a mentira (TOURNAND, 1970). A criao barroca ainda lana mo da mistura,
unindo o trivial ao precioso, prima pelo exagero, acredita na inspirao e celebra a natureza, o
sonho, o mistrio e a noite, em suma, a chama do que vai ser o romantismo, dois sculos
depois.
Durante muito tempo os escritores barrocos foram considerados como irregulares ou
atrasados, alm de serem vistos como estranhos elaborao de um ideal clssico. Eram
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tratados com descaso e acusados de no possurem bom gosto. Na realidade, o barroco nada
mais era seno uma oposio ao gosto clssico, pois se caracterizava pela exuberncia da
imaginao e do estilo, contrastando com a razo e a estrita ordenana clssica. Contudo, para
Tournand (1970, p. 48), na Frana no houve propriamente escola barroca: Em nossa
literatura, o barroco no teve nem centro nem limite, um clima moral e esttico que nuana
as obras mais diversas. O que existiu foi um esprito barroco que aparece nas escolhas de
assuntos e na maneira como eles so tratados.
Considerado como ponto extremo ou mesmo como uma deformao do barroco, o
preciosismo tambm toma conta da literatura seiscentista. O preciosismo seria uma vontade
de se distinguir e de escapar de tudo que a vida comporta de comum para todos os homens,
isto , de vulgar: [...] Este ideal potico somente a expresso e a consequncia de uma
concepo de vida moral, mundana, esttica, onde se misturam elementos diversos, de
ordem histrica ou de ordem intelectual (TOURNAND, 1970, p. 63). Na realidade, o esprito
precioso j foi visto em outras pocas, como no perodo da cortesia medieval, em que o
esprito corts inspira a literatura galante e herica. Contudo, alm de exaltar o herosmo e o
amor, o preciosismo procurar estabelecer a elegncia nos costumes, nos hbitos da sociedade
da poca, alm de fixar as regras da politesse [polidez].
Em termos de linguagem, houve uma espcie de repulsa ao uso da lngua comum. O
preciosismo de linguagem cultivava os exageros, os galanteios, os advrbios de modo, alm
da recorrncia ao uso das metforas e perfrases. Mas o excesso de idealismo precioso teve
uma reao. Nascido na Espanha e na Itlia, o burlesco entrou em cena na Frana entre 1640 e
1660. Os escritores burlescos apresentam um estilo grosseiro e aventuras vulgares. Seus
personagens so homens comuns que, ao brigarem, se do socos e pontaps. Na epopeia
burlesca, pardias picas e a bufonaria se opem ao preciosismo. O bufo nasce do contraste
entre a nobreza de condio e de carter de personagens histricos ou lendrios que so
colocados em cenas em aes ridculas. o caso das obras de Scarron (1610-1660), que
apresentam o burlesco e o realismo.
1.1.3 Divertimentos, festas e espetculos: o Teatro
Havia muito divertimento no reino de Lus XIV, no apenas na corte, mas na cidade,
nas ruas, nos cabars e cafs. Os espetculos levados a essa vida noturna nas tavernas ou
cabars, representavam importante papel no sculo XVII, em Paris. Outra atrao eram as
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feiras, de onde surgiram os cafs, geralmente localizadas nos limites urbanos. Nelas tambm
havia uma espcie de hierarquia social. A feira de Saint-Germain, por exemplo, era
frequentada por um pblico mais elegante. A feira de Saint-Laurent, que funcionava nos dois
meses seguidos Festa de So Loureno, atraa pessoas de todas as condies (o povo invadia
a feira durante o dia e as pessoas de qualit [qualidade] apareciam, com suas carruagens,
apenas noite). Nas feiras, todos os tipos de pequenos espetculos recreativos eram
oferecidos aos visitantes. Marionetes de um metro de altura representavam peras
(WILHELM, 1988, p. 153). Tudo era vendido nas barracas, e as mulheres mais finas, usando
mscaras o que simbolizava uma grande aventura , se faziam acompanhar de seus
admiradores que lhes compravam presentes delicados, feitos pelos artesos de Paris.
Para divertir o povo, tambm havia festas pblicas, principalmente no incio do
reinado do Rei-Sol: O povo se deleita com o espetculo. Por esse meio prendemos seu
esprito e seu corao, algumas vezes mais firmemente do que com recompensas e favores,
escreve Lus XIV nas Instructions au dauphin (WILHELM, 1988, p. 155). A festa mais
comemorada era a de So Joo, com muitos fogos de artifcio.
Mas o espetculo mais festejado dessa poca foi o teatro. O sculo XVII francs
considerado o sculo do teatro. Acontecimento literrio e artstico, uma representao
dramtica tambm uma cerimnia, um rito social, prolongamento da corte ou dos sales
(LAGARDE & MICHARD, 1970, p. 89). Por isso, a literatura clssica e, por extenso, a vida
social, encontraram no teatro sua maneira de expresso favorita.
Entretanto, mesmo com toda sua supremacia e efervescncia, a cena teatral no sculo
XVII no deixou de vivenciar o embate existente entre os antigos e modernos10
: as peas
teatrais ora poderiam apresentar o registro da ordem e da tradio ora registro da liberdade e
da renovao. Segundo Costa (2009), a dissonncia dessa cena teatral seiscentista se d no
incio do sculo: inegvel que j em incios do sculo, sobretudo entre os anos de 1625 e
1631, eclode o confronto teatral entre partidrios dos antigos e partidrios dos modernos,
entre aqueles que convencionalmente denominamos regulares e irregulares (p. 63)11
. E
10
Desde o incio do sculo XVII, os signos do esprito moderno j apareciam, o que provocaria, partir de 1687,
uma importante querela literria: a Querela dos Antigos e dos Modernos. Intelectuais franceses pertencentes
Academia de Letras debateram, por vezes asperamente, se deviam exaltar o rei Luis XIV, recorrendo s citaes
dos clssicos do mundo greco-romano ou se deveriam inspirar-se em obras mais prximas, da histria do
cristianismo ou do presente. Esta discusso abriu caminho para a crescente valorizao do Moderno, cujos
escritores reivindicaram a liberdade total de suas inspiraes, opondo-se ao Antigo. 11
Esta autora discute os prefcios dos textos teatrais, os quais foram importantes ferramentas de crtica teatral, j
que se dedicaram construo de uma teoria do gnero teatral. Ela aponta que, entre 1627 a 1631, a cena da
-
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complementa afirmando que esses encontros e confrontos so observados como operadores a
reger toda a produo literria do sculo XVII francs, momento em que a diversidade das
solicitaes formais pressiona o cnone (COSTA, 2009, p. 63-64).
Sendo assim, alguns autores dramticos no incio do sculo XVII mostram-se
contrrios e hostis s regras que entravavam a liberdade de inspirao. Eles, s vezes, ignoram
as regras das trs unidades e a separao dos gneros, preveem o uso de vrios cenrios,
misturam o trgico com o cmico. Houve os que mantiveram os preceitos clssicos.
Est-se diante de dois partidos bem definidos: de um lado, aquele que
proclama a perspectiva hedonista da arte teatral e a esttica da diversidade e
da liberdade princpios barrocos; de outro lado, aquele que privilegia a
dico teatral sustentada pela regra das trs unidades (tempo, ao, lugar) -
preceitos clssicos. Cumpre ento dizer que barroco e classicismo se se
quiser empregar termos anacrnicos coexistem ao longo de todo o sculo
XVII, em um cenrio que loca, lado a lado, liberdade e regra, espetculo e
ordem (COSTA, 2009, p.64-65).
Nesse contexto, teremos no lado dos que se diziam Antigos, os nomes de Alexandre
Hardy e Jean Chapelin, sendo que para este no deveria haver diferena entre a coisa imitada
e aquele que imita; alm disso, ele considerava as regras como norteadoras do fazer teatral,
mais especificamente, da tragdia; no lado dos Modernos, os nomes destacados so de Honor
dUrf, Franois Ogier, Andr Mareschal, Du Ryer e Auvray. Costa (2009, p. 66) afirma que,
com as intervenes desses modernos, o sculo XVII no deixou de torcer o pescoo desse
grande fantasma chamado verso alexandrino, de ridicularizar a norma do bom gosto e de jogar
no limbo quase que todas as regras.
A independncia e a fantasia que caracterizam essencialmente a literatura barroca
desenvolveram-se sobre a cena dramtica desde o fim do sculo XVI at meados de 1640 do
sculo XVII. Assim, entram em voga dois novos gneros dramticos: a tragicomdia e a
pastoral. A tragicomdia, uma tragdia com desfecho feliz, carrega os sinais da modernidade
barroca, pois se atribui uma maior liberdade de composio. bastante movimentada, com
temas modernos e romanescos. Pyrame et Thisb (1621) de Thophile de Viau so exemplos
desse gnero.
Os Modernos, contrariamente aos Antigos, procedem pois ao encmio da
tragicomdia, pois que a consideram nico gnero capaz de proporcionar,
em razo de sua mistura de sublime e de grotesco [...]. de elegncia e de
trivialidade, de refinamento e de banalidade, a to desejada varietas e, mais,
crtica francesa estava agitada com a publicao de uma srie de prefcios que delimitavam perfeitamente o que
era dos Antigos e o que era dos Modernos.
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capaz de corresponder ao gosto, costumes e usos do sculo (COSTA, 2009,
p. 71, grifo da autora).
J a pastoral, imitada dos italianos, uma pea de teatro encenada com um cenrio
buclico, tendo os pastores como personagens e o amor como preocupao essencial.
Pierre Corneille (1606-1684) escreveu, primeiramente, peas cmicas como Mlite;
La Place Royale; Illusion Comique, em que o romanesco e o barroco se misturam. Entretanto,
foram as peas trgicas que tiveram um maior sucesso, principalmente Le Cid (1636), em que
h a exaltao da liberdade do homem, que coloca sua vontade ao servio de um orgulhoso
ideal de glria pessoal. Le Cid marca um momento chave na carreira de Corneille. uma obra
que apresenta toda a juventude, marcada pelo idealismo romanesco e pela diversidade de tons:
o calor lrico, a grandeza pica, que se misturam com uma piedade trgica. Contm, alm
disso, uma importante novidade: Corneille penetra nas almas de seus personagens a fim de
aprofundar o jogo complexo de sentimentos e paixes. Com isso, o dramaturgo introduz a
verdade das pinturas das caractersticas dos personagens que ser o mrito principal da
tragdia francesa no sculo XVII. Corneille ainda escreveu outras tragdias: Horace, Cinna,
Polyceute. O teatro corneliano apresentar a fatalidade que imperava nas tragdias antigas.
Contudo, em suas tragdias, o heri o prprio responsvel por seu destino. Encontraremos
tambm a inverossimilhana como princpio fundamental de sua arte, porm ele lhe dar um
ar de autenticidade, graas a uma hbil utilizao da histria, driblando a vigilncia dos
censores da poca.
Com relao linguagem,
Corneille, exaltando a grandeza humana, devia procurar uma
linguagem medida de seus heris; assim se explica o tom solene e
mesmo pomposo que ele os dava. Ao mesmo tempo, ele quis traduzir
os profundos sentimentos que eles tinham: ternura, entusiasmo,
ansiedade; e ele recorreu para isso aos recursos da poesia. Eloquncia
e lirismo, energia e efuso, tais so os dois aspectos principais de sua
arte (CASTEX,1979, p.198, traduo nossa).
Jean Racine (1639-1699) ilustrou a frmula antiga da tragdia, representando o
homem acometido pelo destino. Ele criou seus personagens de forma miservel, sem fora
para lutar contra as paixes desenfreadas, que causam a perda do homem. A primeira tragdia
escrita por Racine foi La Thbade (A tebada 1664) que, apesar de no ser o carro-chefe do
autor, j revelava a crueldade implacvel de seu gnio, pois mostrava a rivalidade entre os
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irmos Etocles e Polinice de maneira intensamente trgica. Entretanto, ser com
Andromaque (1667), a tragdia dos amores contrariados, que Racine ir triunfar como um dos
maiores autores trgicos franceses. Segundo alguns historiadores, a doutrina clssica
elaborada entre 1620 e 1660 encontrou sua perfeio na tragdia de Racine, pois ele
apresentava fidelidade absoluta s regras, principalmente a das trs unidades: lugar, tempo e
ao. Porm, tratando-se dos espectadores de suas peas, dizia: [...] A principal regra de
satisfazer e de tocar: todas as outras so feitas para alcanar esta primeira (RACINE apud
LAGARDE & MICHARD, 1970, p. 286). Ou seja, os espectadores deveriam consultar,
primeiramente, seu prprio corao e no as regras. Mas importante salientar que a
satisfao de que fala Racine est intimamente ligada ao trgico, por isso ele procurou revelar
a piedade e o terror, criando entre atores e pblico um sentimento de ansiedade e angstia.
Praticamente, todas as peas de Racine so inspiradas nos modelos antigos, contudo
ele buscou apropriar-se daquilo que serviria melhor s suas tragdias. Alm disso, respeitava
as caractersticas de um personagem e os hbitos de um povo e de uma poca.
Se Corneille e Racine insistiram no trgico, Molire dramaturgo, diretor de teatro e
ator escreveu apenas comdias. Preocupava-se em divertir, em representar e em fazer
representar, para sobreviver e assegurar a continuidade da sua troupe. Tratava-se, sobretudo,
de levar ao palco espetculos que agradassem ao rei e sua corte.
1.2 Molire, o palhao que fazia rir o Sol
Castigat ridendo mores.
Santeul
As comdias de Molire sempre foram assunto controverso. Vivo, o autor teve que
lutar para defender a arte de fazer rir, ao representar peas cmicas. Hoje, mais de trs sculos
depois de sua morte, ainda alvo de discordncia. Para P. Bnichou, em Morales du Grand
Sicle, (1948), por exemplo, o teatro de Molire pleno de uma sabedoria quase dcil, pela
aceitao da ordem estabelecida, enquanto que, para J. Cairncross, em Molire bourgeois et
libertin (1963), o autor de Don Juan ( Dom Juan) e Lavare (O avarento)12
, era um libertino
puro.
12
Acerca das peas de Molire citadas neste trabalho, colocaremos os ttulos em francs, seguidos, se necessrio,
da traduo, apenas na primeira vez em que so mencionados. Depois, os mesmos viro em portugus.
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A comdia, como a entendemos hoje, surge com Molire, que a liga para sempre ao
riso (antes ela era considerada como um gnero alegre, no qual, entretanto, o riso era
facultativo). E esse riso que ele provoca nos espectadores, ele o usa para criticar sem piedade
os valores fundamentais da sociedade do sculo XVII. A verdade que Molire, na comdia,
considerado sem rival.
Suas comdias contm pois a verdadeira potica do gnero; nelas somente
que se pode esperar descobrir alguns segredos deste gnio que se faz
igualmente sentir no jogos de Sganarelle, e nas inspiraes do Misantropo;
nelas que se encontra o sculo inteiro, a corte e a cidade, os vcios e os
ridculos, as coisas e os homens. Tambm no se pode esperar conhecer
Molire, se no se estudar o tempo em que ele viveu, os livros em que se
abeberou, sua sociedade, sua vida, suas paixes, tudo o que emocionou seu
corao, esclareceu seu esprito, inspirou seu gnio (MARTIN, 1824, p. 1,
traduo nossa).
Em toda sua carreira de dramaturgo, Molire aperfeioou a frmula do riso. E o que
encontrou foi uma nova forma de fazer teatro, explorando temas nas suas peas que
contrariavam o governo e que faziam duras crticas aristocracia.
Figura 5: Molire jouant Csar dans La Mort de Pompi de Henri Thiriat.
Gravure de Nicolas Mignard datant du dix-neuvime sicle
Fonte : http://artsalive.ca/fr/thf/histoire/auteurs.html#moliere
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1.2.1 A escolha pela arte de fazer rir
Par le miracle de son rire et par la verve qui
emporte son style, il transfigure en joie le spectacle
des laideurs humaines.13
P.-G. Castex
Jean-Baptiste Poquelin, ou Molire, nasceu em Paris em 1622. Faleceu em 1673,
exercendo um de seus ofcios o de ator -, ou seja, estava no palco, representando, pela
quarta vez, o personagem Argan, o hipocondraco de Le malade imaginaire (O doente
imaginrio-1673).
Na infncia, como filho e neto de tapeceiros, Molire foi educado para herdar a
profisso, aprendendo a ler e a escrever apenas o necessrio para exerc-la. Mas ele tinha um
av que tinha paixo pela comdia e levava frequentemente o pequeno Poquelin, ao Hotel de
Bourgogne14
.
O pai, que temia que esse prazer distrasse o filho de seu ofcio, perguntou
ao av porque ele levava sempre seu neto ao espetculo. Voc tem vontade,
disse-lhe um pouco indignado, de fazer dele um comdien [ator]? Quisera
Deus, respondeu-lhe o av, que ele fosse to bom ator quanto Bellerose (um
famoso ator daquele tempo)! Esta resposta tocou o jovem; e sem que tivesse
inclinao determinada, ela provocou nele um desgosto pela profisso de
tapeceiro, imaginando que, j que seu av sonhava que ele pudesse ser ator,
ele poderia aspirar a qualquer coisa mais do que a profisso de seu pai
(GRIMAREST, 1824, p. xxv).15
Estudou no colgio dos jesutas. Ao acabar seus estudos, ainda precisou exercer a
profisso por algum tempo, e, com dezenove anos, viajou com a corte de Lus XIII. Foi uma
viagem memorvel. Molire pode ver Richelieu, em seu leito de morte, Toujours auprs du
roi, Molire fut tmoin de limprudence du favori, du despotisme du ministre, et de la
faiblesse du matre. Ce furent-l ses premires tudes du coeur humain [Sempre junto do rei,
Molire foi testemunha da imprudncia do favorito, do despotismo do ministro, e da fraqueza
do mestre. Foram esses os seus primeiros estudos do corao humano] (GRIMAREST, 1824,
p. xxix).
13
Pelo milagre de seu riso e pela veia que inflama seu estilo, ele transfigura em alegria o espetculo das feiras
humanas (traduo nossa). 14
Um dos teatros existentes na poca, que gozava da proteo real. O outro era o Teatro de Marais, de carter
mais popular. 15
J.-L. Gallois, sieur de Grimarest. Um dos mais antigos bigrafos de Molire, autor de uma Vie de M. de
Molire, lanada em 1705.
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Teria Molire, como conta Grimarest (1824), realmente tido lies com Scaramouche,
como alguns relatos revelam, j que era espectador assduo dos palcos do Pont-Neuf (onde se
apresentava o famoso ator italiano, vindo para a Frana a convite de Mazarin)? Ainda
segundo Grimarest (1824), naquele tempo era comum os amigos se reunirem para representar
peas de teatro entre si. Assim, alguns burgueses de Paris, entre eles Molire, formaram uma
troupe e, depois de muita diverso, resolveram tirar proveito de suas representaes e se
estabeleceram no jeu de paume de la Croix-Blanche, no faubourg Saint-Germain. Foi ento
que Molire adotou esse nome, pelo qual ficou para sempre conhecido, nunca tendo revelado
as razes dessa escolha. Contudo, segundo Duarte (1944), Molire optou por trocar de nome
ao fazer-se comediante, para no desmoralizar a famlia burguesa.
Ele fundou, portanto, com Madeleine Bjart e seus irmos (Joseph Bjart e
Genevive Bjart), em 30 de junho de 1643, um grupo de teatro, a que deu o nome de Illustre
Thtre. Vrios comediantes, amigos de Molire, faziam parte da troupe: Denis Beys,
Germain Clrin, Nicolas Bonenfant (Croisac), Georges Pinel (La Couture), Magdeleine
Malingre e Catherine Des Urlis. Assim, liga-se a famlia Bjart, tornando-se diretor da
companhia.
Figura 6: Assinaturas dos comediantes da Illustre Thtre.
Fonte:
Entretanto, a Illustre Thetre sofreu com a rivalidade de dois teatros permanentes, o
Hotel de Bourgogne e o Teatro de Marais, que exerciam uma espcie de monoplio em Paris,
monoplio que a recm-fundada companhia no teve meios de quebrar. Poucos meses
bastaram para levar o jovem priso por dvidas (RNAI, 1981, p.10).
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Molire aprendeu seu ofcio ao curso de longas temporadas na provncia16
. Foi durante
esse perodo, por volta de 1653, que ele estreou como autor, ao apresentar a pea Ltourdi
(O surpreso), em Lyon. Anos depois, quando voltou e se instalou definitivamente em Paris, no
final de 1658, Molire encontrou uma situao cultural particularmente complexa e
interessante. A sociedade, em suas elites, promovera os valores da elegncia, de beleza e de
pudor que fundaram uma nova civilidade. Por volta de 1630, triunfou uma espcie de segundo
Renascimento. Mais do que nunca eram exigidos, na literatura, os valores de ordem, clareza e
decoro, que se fortaleceram at os anos 1660.
Quase desaparecida desde o fim do Renascimento, a comdia tardou a encontrar seu
rumo, dividida entre as sutilezas sentimentais e delicadas mas praticamente sem comicidade
e as grosserias vulgares da Commedia dellArte e da farsa, essas ltimas muito ao gosto do
povo. Esse o dilema de Molire, o que vai orientar toda a sua criao: a obra de Molire ser
uma ilustrao e, s vezes, uma defesa da comdia que ele quer renovar, uma comdia ao
gosto do seu tempo, que tocasse tanto o pblico exigente e refinado quanto o povo. Ou seja,
segundo Truchet (1992), uma comdia da qual os homens de bem pudessem rir sem ferir a
elegncia, a inteligncia e o decoro.
A troupe de Molire s se tornou conhecida quando, ao voltar Paris, obteve a
proteo de Monsieur (como era chamado o irmo do rei, Philippe dOrlans). Molire e seu
grupo tiveram a honra de representar, em 24 de outubro de 1658, na Sala dos Guardas do
antigo Louvre, diante do Rei-Sol e de sua corte, Nicomde (1658), de Corneille, e Le docteur
amoureux (O mdico apaixonado), uma farsa bem do gosto italiano. E como o rei apreciou a
pea cmica, destinou uma penso para a troupe, que pde, a partir de ento, partilhar a sala
do Petit Bourbon. A representao foi to apreciada, tambm, porque havia algum tempo s
se apresentavam peas srias no Hotel de Bourgogne; o prazer das pequenas comdias tinha
se perdido. Seu sucesso garantiu-lhe a proteo do rei Lus XIV, porm suscitou a hostilidade
de autores invejosos, principalmente por ele ridicularizar os hbitos da poca.
Os atores da troupe de Molire comearam, pois, a representar na cidade de Paris.
Apresentaram, em 1658, O surpreso, no qual Molire preocupou-se em entrelaar a
teatralidade (a referncia ao texto escrito) com a mtrica, e em explorar a musicalidade da
16
Passou treze anos percorrendo cidades francesas. Fundiu a Illustre Thtre com outra companhia, a qual era
sustentada por um mecenas. Assim, esse novo grupo passa-se a ser chamada de Companhia do Sr. Prncipe de
Condi, e conservou esse nome at o prncipe se converter religio e criar um horror sagrado ao teatro.
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lngua, tendendo para a cano Foi a partir dessas experincias que nascer em Molire o
projeto da comdie-ballet (BASCHERA, 1998, p. 38).
Entende-se que, como as outras artes, o teatro francs no reinado de Luis XIV s pode
ser concebido na sua relao com a Corte, tendo sua evoluo diretamente ligada
centralizao do poder real e ao esplendor do reino. A corte queria distrair-se e os artistas
faziam o que podiam para agradar os nobres. Se o rei e os cortesos apreciavam acima de
tudo a msica e a dana, Molire oferecia-lhes msica e dana. Misturava-as aos textos das
comdias que escrevia e dirigia, mesmo no interior dos atos e das cenas e no apenas nos
intermdios (O doente imaginrio, por exemplo, tem como subttulo: comdia misturada com
msica e danas).
preciso lembrar que Molire o instigador deste gnero que no teria
continuidade (trata-se de misturar partes cantadas e danadas comdia).
Para isso, ele se associou em um primeiro momento, a colaborao de Lully
e de Beauchamp. Em seguida, Lully, desenvolvendo a pera na Frana, ser
substitudo por Charpentier. O doente imaginrio , portanto, uma comdia-
bal realizada pelo trio Molire, Charpentier e Beauchamp em 1673. O
subttulo exato dessa comdia no comdia-bal, mas comdia
misturada de msica e de danas. Isto porque ela constituda de trs atos
(segundo a diviso tradicional da comdia) entrecortados de intermdios
cantados e danados (FARRIER, 2010, traduo nossa).
Em 1659, ao encenar a farsa Les prcieuses ridicules (As preciosas ridculas), pea
que traz uma stira das mulheres pedantes que, desejando escapar do que consideram a
vulgaridade da vida cotidiana, caem na sofisticao ridcula, Molire obtm grande sucesso.
Dessa maneira, o dramaturgo foi garantindo a estima do pblico e a proteo do rei Lus XIV.
Este ano, 1661, aquele em que Lus XIV comea a governar. quando o
intendente Fouquet organiza em sua honra uma festa ferica em Versalhes,
para a qual o nosso autor escreve Os importunos. O prprio rei digna-se
sugerir ao autor acrescentar uma cena a essa comdia, composta de uma
sucesso de retratos e episdios. E no ano seguinte d uma expresso
tangvel de sua aprovao, concedendo a Molire uma penso, depois de
assistir Escola das Mulheres, a primeira de suas obras-primas (RNAI,
1981, p.11).
Molire teve fortes influncias da Commedia dellArte, gnero teatral italiano do
sculo XV, que tinha um carter extremamente popular. O elemento principal era a
interpretao e a improvisao dos atores. No existia texto, somente um canevas, um roteiro,
ao contrrio do teatro feito na Corte, cujo texto era escrito pelos dramaturgos e declamados
pelos atores.
-
38
A Commedia dellArte era uma arte da palavra falada (BASCHERA, 1998, p. 14),
uma comdia do imprevisto, que exercia total fascinao sobre o pblico, pois no se opunha
inveno de um texto que precedia o espetculo, mas era contra a fixao desse texto por
meio da escrita. Eram textos recitados, no impressos. Dessa forma, os espectadores no
podiam nunca prever a continuao da pea que assistiam, os textos eram sempre outros, ou
melhor, eles no existiam concretamente. A Commedia dellArte absorveu as caractersticas
da comdia latina17
: intriga com uma certa unidade temtica e tipologias de personagens
determinados, como criados indiscretos, velhos enganados, cortess etc. Os atores de profisso
praticavam a comdia sobre seus tablados populares, em oposio comdia literria, onde se exercia,
em vo, o zelo dos amadores nas academias de Florena ou de Bologna. Mas o princpio fundamental
era a improvisao. Um teatro que no tinha texto nem autor: a companhia inventava o seu dilogo
sobre um tema escolhido.
Outra influncia do teatro de Molire foi a farsa popular francesa. Essa farsa
consistia de pequenas cenas realistas em que apareciam tipos populares, como o marido
ciumento, a mulher astuciosa, o senhor estpido, entre outros. As cenas eram, geralmente,
apresentadas nas feiras. La jalousie du Barbouill18
(O cime do lambuzado - s.d.) uma pea
de Molire que ilustra tais caractersticas.
Alm disso, Molire foi o primeiro autor de teatro a se preocupar com as questes
sociais (inclusive inovou, ao colocar mulheres no palco). Criticou os hbitos e a rotina da
sociedade de seu tempo, com criao de tipos ou de situaes ridculas, o que lhe valeu, em
toda sua vida de teatro, inmeros ataques dos grandes da poca. Aliava a comdia de
costumes stira social, cuja pintura das personagens completava-se com a crtica da atitude
interesseira de uma nobreza em runas, e do pedantismo e do materialismo dos burgueses.
Em As preciosas ridculas e A Escola dos Maridos, Molire no se limitou
mais a aclimatar a farsa, nem a afrancesar a commedia dellarte, nem a
simplesmente imitar os antigos; mudando de rumo entrou no terreno da
crtica dos costumes e recorreu, alm de ao humor, stira (RNAI, 1981,
p.21).
17
A comdia latina (Roma, 240-160 a.C.) no composta de atos e cenas. Distingue-se uma alternncia entre
partes cantadas (Canticum) e partes dialogadas (Diverbium). Ela escrita em versos, sendo que existe um tipo de
versos para as partes cantadas e outro tipo de versos para as partes escritas, alm de ser acompanhada de danas.
Este lado musical explica sua popularidade. Ela est associada aos nomes de Plauto e Terncio. 18
Comdia que conta a histria de um marido ciumento que no permite que sua esposa, infiel, entre em sua
casa, pois ela voltou tarde. Ela, que astuciosa, se faz de morta, e, no momento em que ele, o marido, sai para
v-la, ela entra rapidamente na casa, deixando-o do lado de fora.
-
39
Os comportamentos humanos aparecem em um contexto social determinado, sempre
subordinado a uma atmosfera cmica. Algumas de suas comdias de costumes mais famosas
so, alm das que j foram citadas: Les femmes savantes (As sabichonas - 1662), em que
Molire critica o pedantismo, e Lcole des femmes (A escola das mulheres - 1662), em que
questiona a maneira pela qual as jovens eram educadas. O dramaturgo foi tambm mestre nas
chamadas comdias de personagem, que focalizam um determinado esteretipo pintando a
alma humana , como por exemplo, os falsos sbios e em particular os mdicos, em O doente
imaginrio; os falsos devotos e os ingenuamente crdulos, em Tartuffe (Tartufo - 1664); o
exagero de um preconceito ou mania, em Le misanthrope (O misantropo - 1666); a avareza,
em Lavare (O avarento -1668).
Enfim, Molire criava suas peas com uma prodigiosa eficcia, pois seu jogo cmico
apresenta ainda hoje variedade e dinamismo. Ele se afasta da farsa comum, inventando novos
tipos de comdias. Em seus textos, a concepo da comdia moral est sempre em crise: seu
teatro se desenrola para alm do bem e do mal, em um domnio em que as normas sociais e
morais esto sempre surgindo (BASCHERA, 1998).
Seus personagens principais, geralmente, no pertencem grande nobreza, e sim
revelam, frequentemente, caractersticas da burguesia ou da pequena nobreza, ainda que
Molire escrevesse para a elite, pour les grands [para os grandes] e o sucesso de seu teatro
fosse primeiro determinado pela aprovao desse pblico. Alis, na poca, o prprio pblico
burgus moldava seu gosto seguindo o gosto dos nobres (BENICHOU, 1948).
No entanto, Molire era contra a ideia clssica de que a tragdia retratava homens
melhores e destinava-se a um pblico de elite e de que a comdia punha em cena homens
piores e era feita apenas para um pblico popular. Ele no admitia o pensamento de a
tragdia superior comdia porque vai muito mais fundo e envolve antes as grandes
emoes, piedade e terror, do que as emoes inferiores do divertimento e do escrnio
(DUBOS apud CARLSON, 1997, p. 138). Nesse ponto, pode-se considerar que Molire e
Shakespeare irmanam-se na histria da arte de representar. Ambos se emancipam das prticas
correntes na sua poca e ambos renovam o teatro do seu tempo.
Sempre norteado pelo desejo de renovar a comdia, nos prefcios de suas peas e
mesmo nos textos teatrais, Molire lutava pelo reconhecimento da comdia como obra
elevada. Ele defendia a o gnero cmico; insistia na concepo da representao do ator e
na dificuldade de escrever peas cmicas: cest une trange entreprise que de vouloir faire
-
40
rire les honntes gens19
[ um empreendimento estranho querer fazer as pessoas de bem
rirem]. Diz ainda, nesse mesmo texto, que bem mais tranquilo se apoiar em grandes
sentimentos, desafiar em versos a Fortuna, acusar os Destinos, e dizer injrias aos Deuses, do
que entrar como preciso no ridculo dos homens e de tornar agradveis no teatro os defeitos
de todo mundo.
No Premier placet prsent au roi sur la comdie du Tartuffe [Primeira petio
apresentado ao rei sobre a comdia do Tartufo], Molire explica:
Senhor,
Sendo dever da comdia corrigir os homens ao mesmo tempo em que os
diverte, acredito que, no emprego em que me encontro, no tinha nada de
melhor a fazer seno atacar por meio de pinturas ridculas os vcios de meu
sculo, e, como a hipocrisia, sem dvida, um dos mais em uso, dos mais
incmodos e dos mais perigosos, eu tive, Senhor, o pensamento de que eu
no faria um pequeno servio a todos as pessoas de bem do vosso reino, se
eu fizesse uma comdia para desacreditar os hipcritas e expusesse aos olhos
de todos, como preciso, todas as caretas estudadas dessas pessoas que so
exageradamente de bem, todas as espertezas disfaradas desses falsos
moedeiros da devoo, que querem enganar os homens com um zelo fingido
e uma caridade sofstica (traduo nossa).
Tanto a comdia quanto a tragdia tinham, para ele, um alcance edificante,
moralizante20
. O objetivo da comdia , segundo Molire, a que traduzia para o francs a
frmula de Santeul (citada na epgrafe deste captulo) corrigir os vcios dos homens
divertindo-os. As pessoas no se importam de serem ms, porm no querem parecer
ridculas, dizia ainda Molire, e exagerando a farsa, gnero que cultivou por muito tempo, o
dramaturgo e comediante fazia parecer ridculo os vcios humanos. Ora, atacar pelo ridculo
os vcios do tempo conceder ao riso e comdia uma funo moral. No sculo XVIII,
Voltaire afirmava que a finalidade da comdia, como a da tragdia, sempre moral e
didtica (CARLSON, 1997, p. 142).
Portanto, diferentemente de Corneille, Molire desejava mostrar o homem, seus
vcios, seus ridculos, apreendidos de seu ambiente e de si mesmo.
Molire abandona o heri para fixar o homem. humanidade ideal de
Corneille, ope uma humanidade real, nos seus vcios e nos seus ridculos.
[...] Procura imprimir comdia uma dignidade superior, fazendo rivalizar
sua matria com a utilizada pela tragdia. Na aparncia, suas melhores
19
Escreveu em La Critique de lcole des femmes 1663 (A Crtica escola das mulheres). 20
A pintura das aes ridculas algo que j est prescrito em Aristteles, em sua Potica.
-
41
obras valem-se do vcio e do ridculo, com o objetivo de provocarem o riso;
seu substrato, porm, a tragicidade da condio humana, apreendida na
observa