sertÃo de preto”

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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS Centro de Ciências Sociais Aplicadas Departamento de Política e Ciências Sociais Curso de Graduação Bacharelado em Ciências Sociais "SERTÃO DE PRETO”: DINÂMICAS IDENTITÁRIAS E TERRITORIAIS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BURITI DO MEIO Montes Claros Novembro / 2013

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Page 1: SERTÃO DE PRETO”

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

Centro de Ciências Sociais Aplicadas

Departamento de Política e Ciências Sociais

Curso de Graduação Bacharelado em Ciências Sociais

"SERTÃO DE PRETO”:

DINÂMICAS IDENTITÁRIAS E TERRITORIAIS NA

COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BURITI DO MEIO

Montes Claros

Novembro / 2013

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2

Mauro Toledo Silva Rodrigues

"SERTÃO DE PRETO”:

DINÂMICAS IDENTITÁRIAS E TERRITORIAIS NA

COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BURITI DO MEIO

Monografia apresentada ao Departamento

de Política e Ciências Sociais como

exigência para obtenção do título de

Bacharel em Ciências Sociais com ênfase

em Antropologia

Orientadora: Profª. Dra. Andréa Maria

Narciso Rocha de Paula

Montes Claros

Novembro / 2013

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3

Mauro Toledo Silva Rodrigues

"SERTÃO DE PRETO”:

DINÂMICAS IDENTITÁRIAS E TERRITORIAIS NA

COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BURITI DO MEIO

Monografia apresentada ao Departamento de

Política e Ciências Sociais como exigência

para obtenção do título de Bacharel em

Ciências Sociais com ênfase em Antropologia

BANCA EXAMINADORA

__________________________________

Prof. Dr. Andrea Maria Narciso Rocha de

Paula / Unimontes - Orientadora

__________________________________

Prof. Ms. Felipe Teixeira Martins /

Unimontes

__________________________________

Prof. Dr. Isabel Cristina Brito / Unimontes

Montes Claros

Novembro / 2013

Page 4: SERTÃO DE PRETO”

4

As letras e a ciências só tomarão o seu verdadeiro lugar na obra do

desenvolvimento humano no dia em que, livres de toda a servidão

mercenária, forem exclusivamente cultivadas pelas que amam e para os

que amam.

Piotr Kropotkine

“O mais importante e bonito, do mundo, é isso: que as pessoas não são

sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre

mudando”

João G. Rosa

Page 5: SERTÃO DE PRETO”

5

Dedico este trabalho à todos os povos e comunidades

tradicionais que lutam diariamente para ter seus direitos

de reprodução símbólica e material da vida garantidos.

Page 6: SERTÃO DE PRETO”

6

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todas as pessoas que me acompanharam nesta jornada de

conhecimentos e vivências ao longo destes anos.

Começo pela gratidão à família, Mauro, Dinah, Luísa e Nando, com quem eu

convivi todos esses anos e pude aprender a maior lição que sei até hoje, a busca pela

felicidade plena junto ao Amor.

Gratidão a minha nova família, minha esposa Carol e meu amado filho Miguel,

que me entenderam e “seguraram a onda” nas barras mais pesadas que vieram”, além de

sempre estarem do meu lado nos momentos em que me senti exausto e sem esperanças.

Estas famílias não me deixaram desistir dos meus sonhos por mais estranhos e distantes

eles pudessem parecer, sempre me incentivando a ir atrás do que me faria realizado.

É com grande alegria que eu agradeço de coração, a minha amiga, mestre, mãe,

psicóloga e nas horas vagas, orientadora, Andréa Maria Narciso de Paula Rocha, por

todos os devaneios e loucuras pelos quais eu a fiz passar durante o período acadêmico.

Sou grato sua a sabedoria, compreensão, carinho e principalmente toda a paciência que

teve comigo e com meus trabalhos. Agradeço ao mestre Felipe, com o qual eu tive

várias vivências passando pela Rosa dos Ventos, ao litoral paulista, do rio São Francisco

às chuvas de Uberlândia, gratidão pelo companheirismo e pelos ensinamentos. Ao

mestre João Batista, gratidão pelo apoio nas empreitadas acadêmicas, pelo estímulo aos

estudos e aos sonhos assim como pelas transcendentais vivências sanfraciscanas.

Gratidão ao povo do Opará, que mesmo com pouco contato, a intenso

aprendizado vivido foi de extrema relevância para minha formação acadêmica e pessoal

Maristela, Alê, Brandão, Graça, Erikita, Fernanda e demais membros do grupo.

Ao povo do NIISA, gratidão pela paciência e pela contribuição para minha

formação, os professores, Isabel, Rômulo e Felissa, assim como os estudantes.

Aos meus amigos que me acompanharam desde o início nesses longos seis anos,

e hoje já se encontram em outras esferas acadêmicas, Lula, Deyvisson, Iza, Raíssa,

Renato, Fabricim, Marcelo dentre tantos outros que se espalham pelo mapa brasileiro.

Àos meus atuais companheiros de luta, gratidão pela companhia, pela consolo,

pelo choro, pela sorriso, pela cajubrina, e tantas outras coisas que tornaram nossa

experiência de faculdade ainda mais completa, Sérgio, Tuca (Artur), Bárbara, Thaís

Luz, Adinei, Joy (Joice), Edmar, Hamilton (Pan), Emily, Patrícia, Edina, Lalá, Céu no

nome destes agradeço a todos os demais que puderam estar comigo. Como disse um

amigo em seus agradecimentos, esse povo é Retunchado! Por último, mas não menos importante, gratidão aos quilombolas! Povo de luta e de fé

que me acolheram com os braços abertos prontos a me ajudarem com os materiais que fossem

necessários para a realização da pesquisa. No nome de Dona das Neves e sua família, agradeço

à toda a comunidade pelo compreensão e cooperação, pois sem vocês não a possível estar

passando por esta etapa tão importante em minha vida!

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7

SÚMARIO

RESUMO___________________________________________________________________8

LISTA DE FIGURAS________________________________________________________9

INTRODUÇÃO_____________________________________________________________10

Trajetória e metodologia_____________________________________________________11

Categoria Social: Sertão _____________________________________________________14

CAPÍTULO I

COMUNIDADES TRADICIONAIS: O QUILOMBO SAI DA HISTÓRIA__________20

Histórico de ocupação, Expropriação territorial e sistema produtivo ________________25

Nós matamos a mãe d’agua: O drama da falta de água na comunidade do rio

São Francisco______________________________________________________________31

A religião no quilombo_______________________________________________________33

O artesanato quilombola_____________________________________________________37

CAPÍTULO II

IDENTIDADES EM JOGO:

A DIVERSIDADE IDENTITÁRIA DOS NATIVOS DE BURITI DO MEIO_________41

Ser quilombola é lutar, ser quilombola é chorar, ser quilombola é dançar: A emergência do

sujeito de direito ____________________________________________________________42

Resistir e Afirmar: A análise do ritual da festa da abolição_________________________49

Simbiose de casas: O sujeito migrante _________________________________________61

COSIDERAÇÕES FINAIS: O sertão é de preto! _________________________________67

BIBLIOGRAFIA___________________________________________________________70

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RESUMO

Neste trabalho desenvolvo uma interpretação das dinâmicas identitárias e territoriais

entre os quilombolas da comunidade Buriti do Meio, município de São Francisco, no

norte de Minas Gerais. Através do estudo etnográfico foi possível observar o cotidiano,

os festejos, as celebrações de fé que demonstraram o “ jogo das identidades” presentes

nas esferas da vida das pessoas do lugar, assim como a modificação no sistema

produtivo devido ao histórico processo de expropriação das terras do quilombo. A luta

do sujeito de direito, a festa da abolição como afirmação e resistência e o trabalho que

obriga a partir mas para ficar são representações do ser quilombola.

PALAVRAS-CHAVE: Quilombo e quilombola, identidade, território, comunidade

tradicional, cultura, Norte de Minas Gerais

ABSTRACT

In this paper I develop an interpretation of identity and territorial dynamics between the

Maroons of Buriti do Meio, São Francisco, in northern Minas Gerais community. Through

ethnographic study was possible to observe the everyday life, festivities, celebrations of faith

who demonstrated the "game of identities" present in all spheres of life of local people, as well

as changes in the production system due to the historical process of expropriation of land the

maroon comunity. The struggle of the subject of law, the party of abolition as affirmation and

resistance and the work that requires to become effective but are representations of being

maroon.

KEY-WORDS: Maroon community and maroons, identity, territory, tradicional camunity,

North of Minas Gerais

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9

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 ................................................................................................................................13

FIGURA 2.................................................................................................................................21

FIGURA 3.................................................................................................................................27

FIGURA 4.................................................................................................................................38

FIGURA 5..................................................................................................................................39

FIGURA 6..................................................................................................................................43

FIGURA 7..................................................................................................................................51

FIGURA 8.................................................................................................................................53

FIGURA 9.................................................................................................................................55

FIGURA 10...............................................................................................................................58.

FIGURA 11................................................................................................................................61

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10

INTRODUÇÃO

A busca em conhecer os homens em sua essência desde o inicio da minha

construção acadêmica foi o combustível para minhas leituras, para a minha imersão em

grupos de pesquisa e em trabalhos de campo na área das ciências sociais, com ênfase em

antropologia e também na sociologia ambiental. Nesta travessia me deparo com alguns

eventos que tem a força simbólica de resignificar meus objetivos com as ciências sociais

e repensar o papel que almejo exercer e que direcionam minha jornada para o lugar em

que ocupo atualmente enquanto pesquisador de comunidades tradicionais no Sertão

norte mineiro.

O primeiro movimento que me projeta para esse caminho a ser trilhado com

orgulho e muito esforço é a entrada no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre

comunidades tradicionais do rio São Francisco – OPARÁ1, este sendo articulando em

primeira instancia pelo Prof. Dr. e poeta Carlos Rodrigues Brandão. Esse grupo se

articula em dois polos principais, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e na

Universidade Estadual de Montes Claros, este último sendo coordenado pela Profª. Drª.

Andrea Maria Narciso de Rocha Paula, orientadora deste trabalho monográfico.

Este grupo de pesquisas é um grupo permanente sendo institucionalizado via

CNPq e FAPEMIG, possui a dinâmica de projetos que ocorrem em simultaneidade. O

projeto do qual eu participo tem por título “Sujeito-Agente”2, projeto que visa a

capacitação de nativos de três comunidades tradicionais localizadas no norte de Minas

Gerais, com o intuito de devolver para essas pessoas a única coisa que podemos dar

enquanto pesquisadores, a própria técnica de pesquisa. Essa ideia foi pensada a partir da

contribuição dessas comunidades para com o universo acadêmico, abrindo suas vidas

para nós pesquisadores sem requisitarem nada em troca, antes pelo contrário, sempre

nos ajudando com aquilo que está no alcance dessas pessoas, sendo característico dessas

comunidades a reciprocidade. O projeto é guiado pela metodologia da pesquisa

1 Grupo reconhecido na Unimontes, FAPEMIG e no CNPq. Resolução 096/2011.

2 Sujeito agente pessoa sertão- Cepex- 271/2012.

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11

participante, na qual o pesquisador interage com seus sujeitos de pesquisa a fim de

construir e trocar conhecimentos a partir das demandas das próprias comunidades de

forma reciproca com os pesquisadores sem que haja a hierarquização que normalmente

acontece na pesquisa entre Pesquisador e pesquisado.

Para que a equipe de pesquisadores na qual eu estava incluído pudesse ser

treinada paraexecutar tal projeto foi necessário que nos deslocássemos de Montes

Claros, norte de minas para Poços, sul de minas, para um local que propiciasse uma

preparação para o início do projeto, o sítio da Rosa dos Ventos, local que é propriedade

do Brandão, mas que foi aberto ao público com uma proposta de imersões e vivencias

com práticas alternativas às vivenciadas pela sociedade moderna capitalista ocidental,

que presa pelo consumo de bens e mercantilização dos sujeitos.

A segunda parte da nossa pesquisa é o trabalho de campo em si, no estar na

comunidade e compreender como são as três comunidades: São Bento, localizada no

município de Buritizeiro, a Barra do Pacuí, no município de Ibiaí e a comunidade

quilombola de Buriti do meio, no município de São Francisco. A proposta da primeira

etapa é uma oficina inicial em cada comunidade, a oficina tendo a duração de três dias,

totalizando nove dias de viajem pelo Sertão nortemineiro. Esta segunda experiência é

mais um passo que me direciona ao meu locus de pesquisa, este sendo a comunidade

quilombola de Buriti do meio, para a qual eu fui designado a coordenação do trabalho

de campo do Sujeito-Agente. Com os contatos e interações que estabeleço com a

comunidade quilombola logo à seleciono como mundo social a ser explorado.

Page 12: SERTÃO DE PRETO”

12

Trajetória do pesquisador e metodologia de pesquisa

A minha imersão na comunidade de Buriti do Meio se iniciou no mês de março

de 2013, quando estive no quilombo para encontrar seus representantes e articular o

começo do projeto Sujeito-Agente, sendo uma oportunidade para dar o primeiro passo

de minha pesquisa ao interagir com algumas lideranças da comunidade e ter acesso livre

à comunidade. Desde então pude acompanhar a vida cotidiana da comunidade e suas

dinâmicas dentre várias idas e vindas ao longo do ano. Estas imersões se fazem

necessárias quando se tem por objetivo enxergar a constelação das relações sociais

presentes do quilombo, como também para que seja possível a compreensão dos sujeitos

nos aspectos mais profundos de sua cultura.

De acordo com Geertz(1989) cultura, se caracteriza enquanto uma teia de

significados tecidas pelos próprios sujeitos em questão, na qual estes se enredam em

suas interações com os outros. O mesmo autor entende a função do antropólogo

enquanto um tradutor de textos antigos, no qual estaremos defronte à um velho

manuscrito com caracteres desconhecido, sendo um exercício de interpretação árdua,

pois ao se encarar um texto com falhas em um dialeto estranho, faz-se necessário o

tempo do trabalho de campo, para que estes símbolos sejam identificadas e

interpretados.

No intuito de desvelar os significados da cultura local, a descrição densa é o

caminho que deve ser trilhada para que se possa desenhar a configuração e a estrutura

das relações sociais estabelecidas no contexto da pesquisa. A descrição densa enquanto

um mecanismo que possibilita a diferenciação de pequenos atos que possam se

assemelhar. Ao descrever um acontecimento em suas minúcias e nuances é possível

segundo Geertz(1989), identificar uma piscadela em seu significado, pois esta pode ser

um sintoma fisiológico, onde a pálpebra do individuo se contrai involuntariamente, mas

também pode representar a tentativa de uma interação social, caracterizada enquanto um

flerte. Portanto torna-se essencial para depreender os símbolos culturais em seus

significados locais, a descrição que possibilita uma real análise das relações que

ocorrem em um determinado contexto.

Page 13: SERTÃO DE PRETO”

13

Para realizar a descrição densa, algumasestratégias devem ser adotadas com o

intuito de conseguir uma interpretação em sincronia com a realidade trabalhada. Neste

sentido, o diário de campo ajuda o pesquisador a reter cada detalhe que lhe é permitido

ter acesso em um meio social. A entrevista com os sujeitos pesquisados é uma ponte

para o nível subjetivo do individuo, esta ferramenta deve sempre ser seguida de uma

atitude ética de pesquisa, onde os pesquisados devem estar cientes e compactuar com o

ato da gravação. A narrativa etnográfica se enriquece com registros de imagens que,

representam o cenário, no qual os acontecimentos vividos e as ações praticadas podem

ser apreendidas pelo leitor, que por sua vez estabelece conexões entre a narrativa escrita

e a imagem visual.

Figura 1 – Locais de memória

Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013

A riqueza do material fotográfico pode ser percebida ao proporcionar ao leitor a

visualização de paisagens e pessoas que interagem no momento em que esta foi

capturada. Na figura 1, vários membros da comunidade quilombola caminham com uma

equipe de pesquisadores para remontarem a história do quilombo em suas narrativas

Page 14: SERTÃO DE PRETO”

14

pessoais e através de locais existentes na memória coletiva e no plano material, como os

caminhos no qual a fotografia mostra.

Aspecto tão importante quanto as “técnicas” de pesquisa é o posicionamento do

pesquisador frente a uma realidade desconhecida. Ao interagir com as pessoas da

comunidade tive em mente o meu posicionamento enquanto um sujeito pesquisador que

esta em contato com outros sujeitos, por sua vez pesquisados. Pois, ao se entender a

importância da (co)operação dos sujeitos pesquisados, entende-se a possibilidade de

uma construção mútua. Bubber(2001), ao tratar da intersubjetividade expõe um tipo de

interação que ele denomina de interação Eu-Tu. Nesta interação os dois lados efetuam

uma troca reciproca, ao entender que tanto Eu quanto o Outro temos um nível de

subjetividade que se perde no devaneio, mas que deve ser respeitado, para que tanto um

lado quanto o outro possam ter acesso as partes mais profundas do ser humano.

Aspecto fundamental para a realização do meu trabalho etnográfico foi o contato

que me foi possível estabelecer com as pessoas da pesquisa a partir de uma visão

bubberiana, pois pude entrar em contato com muitas pessoas no quilombo de forma a

me enredar em suas vidas, mas a pessoa com a qual eu passei maior parte do tempo e

sendo uma grande informante foi Dona Maria das Neves. Essa negra, que tem 47 anos,

artesã, esposa e mão de sete filhos é uma das lideranças da comunidade de Buriti do

Meio. Sua vivacidade e perspicácia e pela luta com e em prol dos quilombolas de seu

lugar, a fazem uma referencia da comunidade que a indica sempre que os de fora

querem conhecer o quilombo. Dormi várias noites em sua, casa, comi várias vezes de

suas comida, e por várias tardes sentamos debaixo do pé de manga para que ela me

contasse antigas histórias deste povo de luta, portanto estabelecendo grande importância

para o enriquecimento do campo pesquisado.

Assim sendo, Oliveira(1996) retrata a importância que o oficio antropológico

requer de uma percepção aguçada do olhar, do ouvir e de escrever. A observação como

exposto acima se faz essencial para traçar um mapa das relações, lugares e pessoas. Em

um nível mais profundo, o ato de participar da observação garante acesso aos níveis de

entendimento que normalmente não se tem a partir de uma pura observação externa. A

teoria que nos acompanha no campo é a garantia de uma possibilidade de nossa própria

construção intelectual.

Como último aspecto metodológico utilizado, recorri à compreensão geertziana

do trabalho do antropólogo. Este autor compreende que a construção teórica apenas

ocorre, quando o pesquisador consegue fazer um “trânsito teórico” de “estar lá”, que

Page 15: SERTÃO DE PRETO”

15

significa estar presente com todas as capacidades cognitivas e sensoriais no campo de

pesquisa, e o “estar aqui”, que significa justamente a capacidade de reflexão teórica a

partir da experiência vivida no campo, movimento que se torna essencial para o trabalho

acadêmico.

Figura 2 – As recém-chegadas cercas do quilombo

Fonte: Acervo Opará, 2013

Page 16: SERTÃO DE PRETO”

16

Categoria Social: Sertão

Inicio minha discussão sobre o imaginário e região, com a intenção de expor a

interação desses dois, como estes se comunicam e se complementam a partir de

construções sociais. Seja na literatura, na história ou na sociologia, a região é um

construto que se constitui a partir de contribuições dadas por estas áreas.Encaixo essa

temática em meu trabalho para desvelar a construção do social do sertão, as influencias

dos intelectuais no prisma que enviesa nosso olhar, esta serve para contextualizar a

minha pesquisa que se se passa no Sertão mineiro, na bacia do médio São Francisco,

sendo possível representar a região e suas características.

Sertão é o signo que classifica regiões do interior do Brasil, é uma construção

feita à partir de um campo, que de acordo com Bourdieu(2003),é constituído por

relações de dominação, no qual sempre existe uma agencia hegemônica que subjuga

outras agências, em relação ao campo regional o que está em disputa é a própria

construção da realidade de um determinado espaço, pois a agencia hegemônica possui a

legitimidade do discurso, que de acordo com Foucault(2012) esse é uma ordem, tem o

poderes de normatizar as individualidades dentro de um mundus social. Sendo assim,

me proponho a fazer um excurso acerca de intelectuais que construíram no imaginário

social, como cita o Albuquerque Jr.(2001), o Sertão e suas representações, pois os

intelectuais possuem um lugar de fala que é legitimado pelo campo regional e

intelectual segundo Bourdieu(2003). Colocarei em evidencia autores como Euclides da

Cunha em sua obra “Sertões” que foi publicada no início do século XX e teve grande

repercussão no âmbito nacional, outro autor que constrói uma teoria para a busca da

essência brasileira com um tom saudosista é o Capistrano Abreu, assim como a obra de

Darcy Ribeiro em sua interpretação da cultura brasileira na brilhante obra “O povo

brasileiro”. Partindo de um entendimento segundo Albuquerque Jr.(2001) que esses

discursos intelectuais ( não somente os intelectuais mais artísticos e culturais também,

mas trabalharei aqui apenas com a academia) mais do que representar o real estes

instituem a realidade devido a hegemonia no campo científico da região.

Definir a região é pensa-la como um grupo de enunciados e imagens que se

repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes

épocas, com diferentes estilos e não pensa-la uma homogeneidade, uma

identidade presente na natureza. (ALBUQUERQUE JR. 2001, p. 25)

Page 17: SERTÃO DE PRETO”

17

Começo então a caracterização histórica da representação3 da região que se

identifica como Sertão brasileiro sendo que este recorte é feito para entender o contexto

no qual o quilombo de Buriti do meio está imbicado sendo a própria fundação do

quilombo, que a narrativa local remonta este em meados do século XVIII.

Um dos primeiros registros que é feito dessa região de maneira institucional,

ocorre no final do século XIX e se materializa no livro “Sertões” de Euclides da Cunha.

Este que teve a missão jornalística de cobrir uma batalha épica que acontecia no interior

do Brasil, tendo uma vivencia que marcaria os primeiros traços de uma antropologia

feita dentro de territórios tropicais. Euclides da Cunha teve uma formação cientificista

devido à sua formação na escola politécnica e na escola militar, que se caracteriza na

sua literatura como vestígios do pensamento positivista que enquadra sua leitura do

mundo social em que Canudos se constituía e resistia pelo comando de Antônio

conselheiro.

A obra é dividida em três partes: A terra, o homem e a luta. Sendo que me

privarei as duas primeiras divisões que são de interesse deste trabalho. Em sua primeira

parte há uma caracterização minuciosa e científica dos aspectos geográficos do Sertão

baiano aonde Canudos se localiza com uma impressão de lugar estranho de acordo com

Cunha(1901), pois este denomina a terra de ignota, escrevendo da seguinte maneira:

Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam aquele último

rio, está-se em pleno agreste, no dizer expressivo dos matutos:

arbúsculos quase sem pega sobre a terra escassa, enredados de

esgalhos de onde irrompem, solitários, cereus rígidos e salientes,

dando ao conjunto a aparência de uma margem de desertos. E o

facies daquele sertão inóspito vai-se esboçando, lenta e

impressionadoramente.(1901, pág. 7)

Percebe-se então a criação de determinadas representações sobre a realidade que

estarão presentes no âmbito do imaginário social, como o desolamento da região, a

vegetação esparsa e torta o reflexo da geografia nas pessoas que parecem se enrijecer

juntamente com a paisagem e o sol que parece castigar essas pessoas e seu lugar de

morada. Cunha(1901) exalta nesse contexto a mais uma característica marcante dessa

região que como os outros aspectos geográficos parecem marcar nas populações ali

presentes cicatrizes de seus efeitos, como é o caso da seca. Esta é vista como uma das

3 Utilizo este conceito baseado em Dürkheim(1977) na teoria de construção social da realidade

Page 18: SERTÃO DE PRETO”

18

principais características da região, que se difere bastante de regiões do litoral brasileiro,

com a presença da mata atlântica e da água.

A questão da água no sertão, ou da falta dela, representa uma construção que se

estenderá até os dias atuais e cabe fazer aqui uma consideração sobre a questão das

relações pessoais que ocorriam na região assim como a “construção” da seca. No

contexto de construção do Sertão, um dos principais traços que compunham a região era

a dominação pessoal que ocorria neste espaço geográfico. No período colonial brasileiro

que se inicia na “descoberta” e se estende até a chegada do Império, literalmente vindo

de Portugal, ocorrem relações sociais caracterizadas por Souza(2003), enquanto relação

de dominação pessoal. Pois em um local “inóspito” como aborda Euclides, a única

instituição que se fazia presente era a família, e dentro desta o homem, ou seja, o senhor

do engenho que por vez concentrava em si as reponsabilidades e poderes sociais,

formando um domínio patriarcal. Este modelo patriarcal se estendeu pelo século XVII e

XIX que possibilitou que se criasse com esse poderio, uma “indústria da seca”, como

elucida Darcy Ribeiro:

(...)Facilmente simulável numa enorme área de baixa pluviosidade natural,

quando para isso se associam os políticos, que, dessa forma, encontram

modos de servir sua clientela, os negociantes e os empreiteiros de obras que

passam a viver e a enriquecer da aplicação de fundos públicos de socorro e os

grandes criadores pleiteantes de novos açudes, valorizadores de suas terras e

que nada lhes custam. Apesar dos planos governamentais consignarem

sempre a destinação dos açudes à irrigação das terras para os cultivos de

subsistência, na forma de pequenas propriedades familiais, jamais um palmo

das terras beneficiadas foi desapropriada com esse objetivo, ficando as áreas

irrigáveis sob o domínio dos fazendeiros.” (1995, pág. 349)

Sendo esta realidade reproduzida na década de 50/60 do século XX na região

nortemineira pela SUDENE (Superintendencia de desenvolvimento do nordeste , que

foi instituída enquanto uma instituição para combater a seca na região, que foi

enquadrada no polígono da seca, dando continuidade à “indústria da seca” sob o

domínio do patriarcalismo.

Continuando a contribuição de Euclides da Cunha para o imaginário social do

sertão, este caracteriza de forma a estereotipar o homem dessa região que apresenta uma

determinada homogeneidade, a autor não afirma a possibilidade de homogeneidade de

raças, mas acredita que devido ao isolamento proporcionado à essas pessoas e seu saber-

fazer constituído como o oficio do vaqueiro, têm uma força homogeneizadora,

Page 19: SERTÃO DE PRETO”

19

Cunha(1901). Essa região e caracterizada a partir do próprio Antônio conselheiro como

recurso de fuga do Ceará, se refugia adentrando o Sertão.

Tais características desenhadas a partir do olhar do Euclides da Cunha, são

representadas também por Capistrano de Abreu que segundo Guillen (2002) procura

definir uma identidade brasileira ou brasilidade, pois o Sertão no período colonial era

considerado como o interior do Brasil, criando a dicotomia entre litoral x interior ou

litoral x Sertão. Sendo que o princípio que guia Capistrano é o alcance do Sertão,

associado ao interior, no plano nacional, sendo esse uma convergência das identidades

que constituíam o plano nacional. Em sua obra Capítulos da historia colonial. (1500 –

1800) Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil, Capistrano assim como Darcy

Ribeiro na obra “ O povo brasileiro” retrata a construção desse espaço pela expansão da

colônia portuguesa.

Com o estabelecimento da colônia portuguesa, sua expansão litorânea e o

aumento da população, Holanda (1979) identifica que as técnicas nativas de caça e

pesca já não consegue resolver a questão da alimentação, sendo necessário criar uma

nova estratégia para a colônia. Com essa preocupação em pauta Portugal decide enviar

de gado e cavalos de além-mar para terras brasileiras para que o problema da

alimentação fosse resolvido. Com a chegada do gado é necessário que se encontre locais

mais propícios para a criação deste do que a costa litorânea. Nessa perspectiva inicia-se

uma penetração pelos colonizadores quando pelo sertão através de rios como o São

Francisco que permite a navegação para o interior do sertão. Holanda(1997) coloca o

gado como uma opção estratégica de ocupação dessa região, pois ele era um alimento

que “se transportava”, eliminando uma grande dificuldade que os colonos tinham com a

logística de suas cargas e não só como alimento o couro que era retirado do gado era

fundamental para a reprodução dessa população se estabelecia no Sertão brasileiro

como cita Capistrano em passagem antológica que caracteriza a chamada “era do

couro”:

De couro era feita a porta das cabanas, o rude leito aplicado no chão

duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a

borracha para carregar água, o mocó ou alfoge para levar comida, a

mala para guardar roupas, a mochila para milhar cavalo, a peia para

prede-lo em viajem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa

de entrar no mato, o banguês para cortume ou para apurar sal; para os

açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas

de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco

para o nariz.” (ABREU, Capistrano. 1982)

Page 20: SERTÃO DE PRETO”

20

De acordo com Ribeiro (1979) o rebanho e seus vaqueiros avançavam

sertão adentro espalhando currais ao longo dos riachos que descobriam. Sendo que um

evento muito presente em tais expedições eram os encontros com etnias diferenciadas

de indígenas, com as mais complexas sociedades estabelecidas de forma completamente

estruturada e apresentando alta organização social. Sendo assim Ribeiro (1979) afirma

que as tribos que mantinham contato com os brancos, como os Timbíra da região sul do

maranhão que originalmente possuíam uma organização com cerca de 15 tribos teve seu

numero reduzido a apenas 4 tribos ao adentrarmos o século XX. Por outro lado índios

como os Xavantes da região central do Brasil se mostraram hostis em relação ao branco

evitando o contato e se refugiando em outras localizações longe dos pastos, o que

garantiu a sua sobrevivência ao longo dos séculos.

Outra população que se encontrava presente nessa região, não devido à sua

autoctonia mas sim a questões conjunturais, eram o negros advindos da África que se

refugiavam no interior do sertão como estratégia de fugir da colônia portuguesa e de sua

máquina escravagista, como expõe Costa(2008, p. 25)

A formação de quilombos em todas as colônias e países do Novo Mundo

constituiu-se em estratégia utilizada pelos africanos que, escravizados,

ansiavam por liberdade e, assim, instituíram alternativas ao sistema escravista

hegemônico e, então, vigente. O princípio subjacente à formação de

quilombo constituiu-se na busca de lugares de difícil acesso que propiciassem

o estabelecimento de barreiras estruturais, que tanto podiam ser naturais

quanto sociais. Os agrupamentos humanos aquilombados pretendiam, dessa

forma, impedir o contato do mundo branco e escravista com o mundo negro

vivendo em liberdade.

Entro aqui no ponto de formação do sertão que se converge com o locus de meus

estudos, pois a comunidade de Buriti do Meio em 2007 obteve o reconhecimento da

fundação Palmares4 e recebeu o título de comunidade remanescente de quilombo.

Sendo assim exploro a formação histórica da região do Norte de Minas contextualizar a

construção social da região do quilombo de Buriti do Meio, fazendo uma menção aqui

ao que Costa(2008) denominou de território negro da Jahyba, este que se constituiu no

Norte de Minas enquanto uma grande extensão de terras que abrigavam populações

negras aquilombadas, local de onde adveio o fundador de Buriti do Meio.

4 Fundação Cultural Palmares é um órgão vinculado ao Ministério da cultura, sendo este encarregado de

reconhecer as comunidades remanescentes de quilombo.

Page 21: SERTÃO DE PRETO”

21

Com as compreensão da imagética construída a partir de trabalhos acadêmicos

sobre a região, parto para a compreensão teórica sobre povos e comunidades

tradicionais, para ser o prisma no qual eu vejo a comunidade quilombola.

Figura 2 - Casa de Donas das Neves

Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013

CAPÍTULO I:

COMUNIDADES TRADICIONAIS NA ATUALIDADE

Page 22: SERTÃO DE PRETO”

22

Os estudos acerca das comunidades tradicionais se passam em uma perspectiva

da compreensão do rural e das ruralidades existentes neste. Em um contexto de

globalização onde a modernidade ocidental capitalista cada vez mais avanças sobre

qualquer modo de vida diferenciado que se coloque em frente ao seu desenvolvimento e

o oblitera, a busca por formas autenticas e históricas de reprodução da vida social

entram com grande força nas Ciências Sociais, que pretende estudar os traços diacríticos

de sociedades que vivem, de acordo com Brandão(2010), não em oposição aos centros

urbanos, mas em continuidade com a cidade, porém com formas específicas de

funcionamento.

Neste mesmo contexto há a emergência de identidades étnicas que se

posicionam enquanto subalternas, segundo Bhabha(1998), que entendem sua posição

desfavoravelmente abaixo da hegemonia, mas que se identificam com este local para

que seja uma referencia e uma alavanca para suas lutas e conquistas. No caso brasileiro

estes povos e comunidades tradicionais se encontravam como um empecilho ao

desenvolvimento, sendo caracterizados como povos atrasados e desprovidos de

racionalidades que permitiriam estes se desenvolverem por conta própria, ocupando um

lugar em que o sistema os impõe, enquanto desprivilegiados.

A trajetória atual dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil expressa

uma longa historicidade, por um lado, de dominação, descaso e exclusão e,

por outro lado, de busca de afirmação da condição humana pela (re)conquista

da liberdade, da autonomia e da humanidade própria pelo reconhecimento,

em sim, de cada singularidade e identidade coletiva. (COSTA: pág. 52, 2011)

Com as diversas identidades étnicas emergentes, trabalho aqui com os

quilombolas e seu histórico de violências e invisibilidade. As comunidades quilombolas

tiveram o reconhecimento de seus direitos incluídos na constituição de 1988 devido aos

movimentos sociais negros que se fizeram presentes na constituinte. Neste evento as

comunidades negras rurais foram contempladas com uma nova categorização de seus

modos de vida as comunidades remanescente de quilombo, porém O’Dwyer faz uma

consideração sobre essa categoria, antes histórica e agora antropológica:

(...) o texto constitucional não evoca apenas uma “identidade histórica” que

pode ser assumida e acionada na forma da lei. Segundo o texto, é preciso,

sobretudo, que esses sujeitos históricos presumíveis existam no presente e

Page 23: SERTÃO DE PRETO”

23

tenham como condição básica o fato de ocupar a terra que, por direito, deverá

ser em seu nome titulada (...) Assim, qualquer invocação do passado deve

corresponder a uma forma atual de existência de capaz de realizar-se a partir

de outros sistemas de relações que marcam seu lugar num universo social

determinado. (pág. 14, 2002)

Tendo em vista as condições históricas das comunidades quilombolas é

necessário seu entendimento enquanto uma comunidade que é dotada de conhecimentos

e práticas ancestrais e que se reproduzem também através das cidades, apesar de ser

muitas vezes prejudicada pela lógica urbana. Sendo assim entro no mundo social da

comunidade de Buriti do Meio, para compreender as dinâmicas socioculturais

pertencentes a esta, assim como seus traços diacríticos e suas representações.

Figura 4 – Pesquisadores e quilombolas andam pela comunidade

Fonte: Acervo Opará/2013

O quilombo sai da história

Page 24: SERTÃO DE PRETO”

24

Para acessar a comunidade de Buriti do Meio através de Montes Claros, caminho

que faço para chegar no quilombo, é necessário pegar rodovia BR-135 que é o acesso a

cidades como, Brasília de Minas, Luislândia e São Francisco. Sendo este último o

município no qual a comunidade quilombola está inserida. Durante o percurso é

possível observar a mudança geográfica, do terreno e da vegetação, que apesar de

Montes Claros se localizar no Norte de Minas assim como São Francisco e ambas se

caracterizarem com o bioma do cerrado, há uma diferenciações na vegetação e nos

relevos dentro da “depressão sanfransciscana”5. Neste espaço geográfico, Montes

Claros apresenta um cerrado com influências da mata seca6 e a região da cidade de São

Francisco para um cerrado característico da região do médio São Francisco. A primeira

vegetação tem características de árvores que variam de 15 à 25 metros e se apresentam

enquanto grande maioria de árvores retas com algumas emergente dentre as demais,

sendo esta paisagem influencia no cerrado da região montesclarence. Sendo assim, o

percurso, que apesar de transitar dentro da região nortemineira, atinge um cerrado

característico das vegetações baixas, de climas úmidos e subúmidos e de solo de baixa

fertilidade, sendo esta uma metáfora da diversidade cultural e étnica da região. Como

exemplo desta diversidade, ao passar pela cidade de Luislândia e entrar no distrito de

Vila do Morro, avista-se uma placa à esquerda com uma indicação da comunidade

quilombola de Buriti do Meio, sendo esta comunidade parte de uma rede de

comunidade que afirmam seu modo de vida e de reprodução social a partir de sua

identidade étnica, como os veredeiros, varzanteiros, geraizeiros, caatigueiros, dentre

outros povos e comunidades tradicionais que habitam a região nortemineira compondo

um mosaico étnico de riqueza cultural e ecológica infindáveis, o quilombo se torna um

terreno fértil para a identificação de traços de idiossincrasia característicos de povos

tradicionais.

Luislandia, São Francisco e Brasilia de Minas são municípios que circundam o

quilombo e fazem parte do circuito estratégico da reprodução da vida deste. Estas são

cidades de pequeno porte, mas que se configuram enquanto centros de comercio e

acesso de serviços e bens de consumo para a população quilombola, sendo

5 “Denominação das planícies que predominam nas margens do rio São Francisco e alcança os sopés dos

planaltos da serra do Espinhaço 6Sob a designação de mata seca estão incluídas as formações florestais no bioma Cerrado que não

possuem associação com cursos de água, caracterizadas por diversos níveis de quedas das folhas durante

a estação seca. A vegetação ocorre nos níveis de relevos que separam os fundos de vales, em locais

geralmente mais ricos em nutrientes. (EMBRAPA, 2007)

Page 25: SERTÃO DE PRETO”

25

caracterizadas pela economia baseada na prestação de serviços e agropecuária

(agricultura familiar, assim como a agroindústria). São municípios que historicamente

fizeram parte da vida da comunidade, onde eram e são locais de venda de produtos

agrícolas e do artesanato característico do quilombo. Antigamente, devido a dificuldade

de locomoção a cidade de Luislandia era mais acessada pelo quilombo, que naquele

tempo a conheciam como Jacu7, no relato de moradores é possível identificar essa

ligação.

Me lembro quando eu era menina e tinha que de sair aqui do Buriti à pé, com

o pote de barro na cabeça. Tinha que sair de manhã bem cedo, porque a

caminhada era longa e a gente tinha ainda que chegar pra feira e reza pra

vende os pote para não voltar com peso pra casa” (Flávia, Buriti do Meio,

2013)

Essa fala caracteriza a influencia das cidades na reprodução da vida da

comunidade, que ao entrarem em contato, não estão livres de influencias uma das

outras, estabelece-se uma relação de interação onde elementos da comunidade são

alterados assim como alteram, mas a primeira passa por maiores alterações devido ao

modelo de cidade englobar um padrão hegemônico que tende a ser reproduzido mais do

que reproduzir.

Seguindo a “rua” de terra ao sair da estrada que segue para São Francisco é

possível visualizar a desigualdade agrária que reflete uma apropriação de terra desde

1850 que remete a regularização fundiária que institui a propriedade privada. Dos dois

lados do percurso aparecem cercas e mais cercas que guardam dentro de si o pasto que

expropria o cerrado em muitos pontos e alimentam o imaginário do Sertão desabitado.

Ao se aproximar da área do quilombo abrem-se dois caminhos que levam para a

comunidade. O caminho da esquerda passa pela margem da comunidade, o caminho da

direita continua em uma larga estrada, que possibilita uma nova paisagem. Margeando a

comunidade é possível ver ao lado esquerdo o cerrado em um estado mais nativo, mais

preservado, mais denso, com árvores mais robustas e mais qualidades de plantas. Ao

voltar o olhar para a direita é possível ver um par de oposições que se configura com as

cercas (inexistentes do lado esquerdo) e novamente a fazenda que descaracteriza a

biodiversidade nativa, que coloca no lugar do cerrado denso, a mancha branca da

criação de gado em larga escala, e o pasto, que se perde em largura e comprimento,

7 Ave característica da região, mas que apresentava uma maior concentração na região atual de

Luislandia sendo uma referencia para a caça destas.

Page 26: SERTÃO DE PRETO”

26

outra metáfora ao paradoxo, ou melhor, a desigualdade de nossa dita moderna

sociedade. Continuando a mesma estrada, mais a frente, há uma entrada à esquerda,

com uma pequena placa identificando a direção ao centro da comunidade quilombola.

Atualmente a comunidade de Buriti do Meio possui cerca de 300 famílias8, que

literalmente se espalham de maneira espontânea e dispersa pelo território do quilombo,

as casas que encontramos são em sua maioria de alvenaria, com telhados de barro, mas

encontramos várias casas a base de adobe e enchimento. Estes contam com uma

estrutura que permite certa independência das cidades aqui antes citadas, contando com

duas escolas, uma estadual e outra municipal. A escola maior é a Escola Estadual

Fazenda Passagem Funda, que possui uma estrutura de várias salas de aula além de

refeitório, pátio coberto, secretarias, espaço de convivência e uma pequena horta nos

fundos da escola. Esta perpassa a educação e se torna um ambiente importante para a

socialização dos quilombolas, pois vários eventos ocorrem na mesma, como palestras,

celebrações dentre outros eventos. A comunidade possui também um PSF (posto de

saúde da família) que realiza consultas de rotina, com médicos e enfermeiros, tendo três

moradores da comunidade atuando como agentes de saúde, o que cria um maior vínculo

de informações dentro da comunidade, mas há também a dificuldade por parte dos

agentes de se locomoverem devido a falta de estrutura oferecida pelo PSF, pois os

agente tem que traçar as rotas à pé, percorrendo longas distancias devido ao caráter

habitacional de Buriti do Meio, que se configuram em pequenos aglomerados

espalhados em um grande território. Outras duas estruturas se configuram ao lado do

PSF, a associação de moradores de Buriti do Meio, responsável pela articulação o

reconhecimento da comunidade enquanto remanescente das comunidades de quilombo9,

e também o estação digital, espaço destinado a informatização dos moradores, assim

como acesso à internet com cursos e capacitações. Estas três estruturas ficam em um

mesmo lote, cercado por arame, que começam a compor o que seria o centro da

comunidade.

Histórico de ocupação, expropriação territorial e sistema produtivo

8 Este é um número aproximado dito pelos moradores devido à falta de um censo mais específico

9 Tratarei sobre o processo de certificação e suas implicações no decorrer do trabalho

Page 27: SERTÃO DE PRETO”

27

Um dos aspectos que caracteriza as comunidades remanescentes de quilombo é o

seu antepassado negro ligado aos períodos da escravidão e as estratégias de

sobrevivências que estes adotavam nesse período, no caso a fuga das senzalas para se

aquilombarem nas matas fechadas e em terrenos inóspitos, evitando assim o contato

com a sociedade escravocrata.

A narrativa dos moradores remonta a um primeiro negro que inicia o tronco

familiar da região10

de Buriti do Meio, denominado de Euzébio Gramacho, que chega

nestas regiões fugido do sistema exploratório colocado naquela época, como reafirma

Aguiar(2012, p. 31):

Na interpretação construída pelos moradores de Buriti do Meio é colocada

ênfase na imagem de Euzébio como alguém que sempre resistiu à escravidão

e que buscando liberdade e autonomia, tomou como estratégia de

viabilização de seus desejos, a fuga que lhe proporcionava liberdade. Fugindo

no trabalho das minas de Grão Mogol, Euzébio encontrou, com mais três

companheiros, refúgio no território de São Francisco onde instituiu, com a

participação de seu companheiro Modesto, o mundus social que, na

atualidade, articula seus descendentes na coletividade de Buriti do Meio. A

fuga de Euzébio e seus companheiros ocorre em meados do século XIX o que

fundamenta a informação dessa coletividade constituir-se um quilombo

histórico durante o período escravista da sociedade brasileira e, na atualidade,

um quilombo emergido como tal por ato constitucional.

Há uma versão da construção histórica de Buriti do Meio, construída pelos moradores

do quilombo a partir da memória coletiva, no qual foi possível ter acesso por meio das oficinas

proposta pelo Sujeito-Agente, na qual os quilombolas retomam o tronco familiar desta

comunidade histórica, esta fazendo parte da legitimação destes enquanto remanescentes de

comunidades de quilombo:

A história de Buriti do Meio segundo a entrevistada Maria das Neves

moradora da comunidade, se deu por meio de um negro que se refugiou do

estado da Bahia, passando por Grão Mogol-MG e chegou até aqui. A

primeira família foi formada através da união desse primeiro negro Eusébio

Gonçalves Gramacho com D. Manuela Francisca de Barros, estes

constituiram 7 filhos que casaram com mulheres de comunidades vizinhas já

existentes, daí a comunidade foi se multiplicando e mais ou menos no ano de

1937 existiam aproximadamente umas 32 famílias, os filhos dessas famílias

foram se casando primos com primos e formando novas famílias, essas eram

conhecidas pelos apelidos dos sobrenomes que eram divididos em oito, a

família “Pereira dos Santos” eram chamados de (bois), “Pereira do Rosário” e

“Luiz de Souza” eram chamados de (paú), “ Ferreira Damião” eram

chamados (gavião), “Francisco” eram chamados de (macaco), “ Gonçalves”,

“Silva” e “Oliveira” eram chamados de (gago).

Outra característica fundamental para entender o complexo que se forma em

Buriti do Meio é a expropriação territorial que ocorreu na área da comunidade, que de

10

Devido a presença de familiares do mesmo tronco de Buriti do Meio em Imbu cabeludo

Page 28: SERTÃO DE PRETO”

28

acordo com os relatos indicam que a inicial fazenda de Buriti do Meio possuía uma

dimensão de oitenta mil alqueires e atualmente a dimensão territorial da comunidade é

desconhecida justamente devido a tantas expropriações.

O histórico de regulamentações agrárias brasileiras se esbarra com a história das

minorias do Brasil, e com o histórico do quilombo, quando em 1850 é instituída a

propriedade privada através da lei de terras que acaba com a os sistema das sesmaria e

possibilita a compra de terras brasileira através de cartórios e instituições da igreja

católica. Contanto, essa lei era extremamente excludente, pois o Estado brasileiro, no

caso o Império, permitia o acesso às terras somente a homens que se encaixassem nas

categorias étnicas e econômicas ditas por este, ou seja, os índios, negros escravos ou

escravos alforriados foram impedidos de ter acesso à propriedade privada. Neste sentido

a história de Buriti do Meio, que tem seu território comprado por Euzébio das mãos de

uma fazendeira é impedido de ter sua terra documentada devido a esta lei.

Junto à lei de terras de 1850, há uma característica fundamental que contribui

para o processo de expropriação territorial, a questão do poder pessoal tão exercida

naquela época pelos latifundiários. De acordo com Holanda(1997), a sociedade

brasileira do século XVI ao XIX, se estrutura em torno das grandes propriedades rurais

com seus sistemas produtivos baseados na plantation de cana de açúcar e café. Neste

contexto a figura do senhor do engenho era dotado de poderes investidos por essa

estrutura. Como não havia cidades, a não ser pequenos aglomerados urbanos, todo a

estrutura social e econômica se organizava nas fazendas, todo o necessário para

consumo era feito na própria fazenda, assim como os diversos ofícios necessários para

garantir a reprodução das famílias, o que criava um monopólio que englobava não só os

serviçais, escravos e agregados, mas também toda a família do senhor de engenho, que

se posicionava submissa a este, lhe conferindo o poder pessoal sobre essas pessoas, pois

todos estavam atrelados ao patrão, que centralizava as reponsabilidades econômicas e

sociais em suas mãos. O que ocorre é que esta lógica se estende pelos séculos no mundo

rural, o que faz com que os quilombolas sejam submetidos às leis dos grandes

proprietários de terra, que estenderam seus territórios com a apropriação das terras

alheias. Segundo relato dos moradores, as apropriações eram feitas de várias maneiras,

seja pela grilagem das terras, ou mesmo pelas irregularidades no processo de

agrimensura das terras.

As consequências das expropriações territoriais vão além da diminuição dos

lotes hoje ocupados no quilombo, o sistema produtivo utilizado por eles é drasticamente

Page 29: SERTÃO DE PRETO”

29

afetado com essa nova configuração das terras. A apropriação da natureza na

comunidade quilombola devido a seus traços ancestrais, se reproduzem na lógica da

tradição oral. Tradição está que está ligado á um modo de reprodução de vida, baseado

em uma troca com o ambiente natural. Sendo que Dayrell(2000), considera o

entendimento de produção e cultura como fenômenos imbricados um ao outro, pois o

sistema produtivo de uma comunidade, ou seja, a forma que esta utiliza para se

apropriar dos recursos naturais disponíveis e os modos de vida, crenças e mitos desta

comunidade formam um todo simbiótico, que se comunica através de suas práticas

diárias. As práticas encontradas no quilombo são de uma agropecuária ancestral, que é

possível ter acesso a alguns vestígios, pois a expropriação territorial tem como

agravante o estrangulamento do sistema produtivo das comunidades, ou seja, muitos

locais onde se praticava a solta do gado11

, atualmente pertencem à fazendeiros,

impedindo os quilombolas de reproduzirem suas vidas de acordo com suas práticas

ancestrais. Em consequência das expropriações, os moradores da comunidade são

obrigados a alterarem seus meios de se reproduzirem pois o sistema produtivo que

funcionava de acordo com as terras disponíveis, teve que ser adaptado, prejudicando as

estratégias desse povo que remontam séculos de adaptação ao meio.

11

Segundo os antigos da comunidade, em tempos memoriais não haviam cercas, ou seja, a terra era coletiva, com uma lógica coletiva de plantio e de solta do gado, apenas com uma parcela individual onde se construía a casa.

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30

Figura 5 – Seo José trabalha artesanalmente o feijão catador

Fonte: Acervo do Opará/2013

Uma característica importante de se ressaltar em relação às forma de apropriação

da natureza, é o intercambio que os seres humanos estabelecem com esta. Esta análise

também se faz necessária para compreender as perdas sofridas por este povo, ao terem

que alterar suas maneiras de produção e reprodução da vida com a expropriação

territorial. A apropriação que os seres humanos fazem da natureza interfere diretamente

em sua visão de mundo e nas formas como a natureza é representada na cultura. Em

seus estudos sobre o trabalho humano em relação à apropriação dos recursos naturais,

Foster (2005), traz a consideração sobre a troca que o ser humano estabelece com o

ambiente natural, denominando esta de uma relação metabólica12

, ou um metabolismo.

Segundo o autor o metabolismo é balanceado e saudável nas formas ditas pre-

capitalistas de sociedades, à exemplo do quilombo antes das “cercas”, que no caso

representa os povos e comunidades tradicionais e suas práticas seculares, onde há uma

12

No sentido de troca orgânica, onde um organismo vivo troca fluídos de maneira constantes e sincrônica.

Page 31: SERTÃO DE PRETO”

31

troca mútua onde a resiliência é presente devido ao tipo de apropriação que se faz do

ambiente :

O trabalho é, antes de qualquer outra coisa, um processo entre o homem e a

natureza, um processo pelo qual o homem, através das suas próprias ações,

medeia, regula e controla o metabolismo entre ele e a natureza. Ele encara os

materiais da natureza como uma força da natureza. Ele põe em movimento as

forças naturais que pertencem ao seu próprio corpo, aos braços, pernas,

cabeça e mãos, a fim de apropriar os materiais da natureza de uma forma

adaptada às suas próprias necessidades. Através deste movimento, ele atua

sobre a natureza externa e a modifica, e assim simultaneamente altera sua

própria natureza.(FOSTER, p. 221, 2005)

O autor entende que o modo de produção capitalista insere nas sociedades não só

uma maneira diferente de apropriação da natureza, , mas também insere um elemento

canceroso que deteriora a relação que antes existia entre homem e natureza, relação que

era baseada na reciprocidade, tem sua lógica alterada para uma relação “racionalizada

com a natureza, que a transforma em objeto e mais do que isso em mercadoria. Esta

lógica afeta então a própria natureza dos homens, que passam a constituir culturas

baseadas na mercantilização das esferas da vida.

Atualmente o sistema produtivo do quilombo se baseia na agropecuária de

pequeno porte, onde os quilombolas possuem terras para cultivo e para a criação de

gado em pequenas parcelas de terra, onde a lógica coletiva já não está tão presente

quanto antigamente, remetendo à patologias do metabolismo homem/natureza em seus

aspectos produtivos. Junto da agricultura há o artesanato ancestral que se constitui

enquanto uma estratégia tanto de reprodução quanto de afirmação étnica na

comunidade.

A organização dos terrenos se divide de forma funcional, de maneira a respeitar

a terra e suas propriedades, em uma interação ensinada pelos antigos de compreensão

daquele recurso natural. A apropriação da natureza feita pelos antepassados na

comunidade, encaixa em uma lógica de troca mútua, de reciprocidade, onde o homem

toma da natureza aquilo que necessita, respeitando a lógica de produção da natureza

sem agredi-la para obter mais do que esta tem para oferecer, neste sentido há a

adaptação de uso de cada tipo específico de solo para determinada função.Sendo assim,

o terreno basicamente se divide em dois ou três espaços, o espaço do terreiro , o espaço

de cultivo, e em algumas propriedades o espaço da solta do gado. O espaço do terreiro é

utilizado para se fazer a moradia, nele se concentram algumas atividades agrícolas,

como a plantação de hortaliças e árvores frutíferas, há também a criação de animais de

Page 32: SERTÃO DE PRETO”

32

pequeno porte, como a galinha e o porco. O espaço de cultivo é caracterizado por ser

um terreno de baixa, onde há literalmente uma baixa na altitude no relevo, de acordo

com os moradores são lugares que já foram pântanos, ou então que passam perto de

alguma várzea. Esse solo se caracteriza por sua riqueza em nutrientes, se tornando

atrativo para o plantio de várias culturas como, mandioca, milho, feijão, cana-de-açucar,

entre outras. Nestes locais são utilizadas estratégias para não se esgotar as propriedades

do solo, no caso da comunidade se usa o rodízio de plantações, lembrando uma lógica

de reciprocidade para com a natureza, em uma visão que não escapa a resiliência. O

terceiro espaço, o local de solta do gado, se dá em algumas propriedades, pois nem

todos tem terras que possibilitem o espaçamento para se soltar o gado e quando são

existentes, se posicionam em locais onde o solo não é tão rico em nutrientes, ou seja a

terra não e boa para plantas, mas em compensação se faz um espaço ideal para a solta

do gado. Mesmo no contexto atual com a redução dos espaços ocupados pelo quilombo,

os moradores se apropriam dos recursos naturais que estão disponíveis de forma a

estabelecer uma relação harmoniosa com esta, procurando sempre a adaptação de

maneira a causar menor prejuízo para ambos os lados.

No quilombo de Buriti do Meio há poucas terras para se plantar e com o

estrangulamento do sistema produtivo ancestral da comunidade, os quilombolas são

forçados a utilizarem de estratégias que poderiam garantir sua reprodução, como é o

caso da migração sazonal. Em época de colheita de café e do corte da cana-de-açucar, é

de extremamente difícil ter contato com homens com mais de dezoito anos e menos de

trinta presentes em Buriti do Meio, quase sempre a resposta que se encontra ao procurar

alguma pessoa nessa faixa etária é: “Tá aqui não meu fio, foi trabalha fora, pras

firma”13

.

Portando o retrato do sistema produtivo de Buriti do Meio representa a

necessidade destas comunidades em se reproduzirem de acordo com suas

tradicionalidades, as mesmas são afetadas por uma lógica de produção que tem suas

ligações à outros símbolos que não os das tradições, criando assim um par de oposição

entre a agricultura familiar e a agroindústria, responsável pelas expropriações das

comunidades rurais. Pois o primeiro segue uma racionalidade de apropriação histórica

baseado nas tradições do contato com a natureza, enquanto o segundo utiliza de uma

racionalidade instrumental, voltada para o lucro.

13

Fala de D. das Neves, quilombola mão de cinco filhos, ao perguntar sobre o filho mais velho de 25 anos.

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33

Figura 6 – Área de “baixa”, onde ocorre o plantio das culturas como o

feijão.

Fonte: RODRIGUES, Mauro. 2013

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34

Nós matamos a mãe d’agua: O drama da falta de água na comunidade do rio São

Francisco

Aqui na comunidade todo mundo já ouviu falar, sabe?! Porque aconteceu

antigamente, mas a gente sente as consequências até hoje. E aconteceu foi com

uma comadre minha muito querida aqui em casa. Dizendo ela que estava indo

lá perto dos Buritis pega água, quando ela ta chegando lá em baixo ela disse

que tinha pensado que era alguém mexendo por lá, mas quando ela bateu o

olho na água viu as folha em cima mexendo e tremendo, quando pensa que

não, saiu uma moça de dentro da água, ela foi saindo e o cabelo, que era

cumprido e preto, foi tampando os peito dela, tinha os peito muito grande, uma

moça branca muito bonita. Mas ela não aguentou de medo, saiu correndo e

chamou os outros, mas quando eles chegaram só tinha as folhas tremendo em

cima da água....Era a mãe d’água” (grifos meus, D. das Neves, 2013)

A crença em entidades que representam a natureza sempre esteve presente na

relação homem/natureza como uma forma de interagir simbolicamente com o ambiente.

Vários destes seres estão presentes no imaginário popular como o curupira , o saci, o

caboclo d’água, Iemanjah com os seus orixás e por aí vai. Contanto o entendimento de

mundo das pessoas que tem contato com esses seres, geralmente encontrados em áreas

rurais, é desqualificado pelo sendo comum avindo da cidade, remetendo à estes como

criaturas provenientes de invenções ou alucinações, sendo criaturas fictícias que vivem

somente no imaginário das pessoas.

A construção dos sistemas simbólicos de uma comunidade tradicional se

constitui a partir da vivencia co-evolutiva e constante interação com seu meio natural,

sendo articulada intensas trocas materiais e simbólicas que fazem parte do processo de

construção do ethos dos nativos assim como de seu eidos, que segundo Geertz(1989) é

formado pelas diversas construções simbólicas de um coletivo no qual o indivíduo está

inserido, construindo assim as categorias de entendimento destas pessoas. Assim sendo,

em oposição à estas pessoas que possuem este tipo de interação com seu meio ambiente,

os indivíduo modernos, que vivem em cidades de concreto, embutidos em uma contexto

de extrema racionalização instrumental da vida cotidiana e tem seus meios de

reprodução social e simbólicos desvinculados com a natureza, possuem seu ethos e

eidos formado a partir desta estrutura. Criaturas míticas da natureza estão no plano dos

“contos de fadas” por não se encaixarem nas categorias de entendimento do mundo

urbano.

A racionalidade das pessoas que estão inseridas em complexos coletivos

tradicionais, ou seja, que possuem um vínculo histórico com seu ambiente físico, possui

outra maneira de interpretar o mundo e de interagir com este. A mãe d’água, é uma

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35

criatura que vive nas veredas e representa a interação recíproca que as pessoas fazem ao

acessar os recursos naturais existentes nestes ambientes

Esta estória, como diz a própria Dona das Neves, é amplamente conhecida no

quilombo, mas ela remente à um tempo passado, pois atualmente a comunidade passa

um drama muito característico de povoados sertanejos, a falta d’água. O problema das

secas já é algo de se preocupar, pois perde-se várias plantações ao prever a chuva e esta

não vir, intensificando os problemas causados por falta de precipitações.

A questão agravante que se soma a seca é a falta de água para abastecer a cidade.

O mito da mãe d’água representa essa dificuldade no quilombo pois ao perguntarem

para os moradores o que ocorreu a resposta é imediata:

A mãe d’agua fugiu... Tem muito tempo que ela já não mora onde viram ela.

Ela gostava mesmo era daquelas veredas, bem lá onde ficava o olho d’agua,

mas o problema foi a falta de cuidado das pessoas. Eles tiraram muitas árvores,

e ali era um lugar que todo mundo sabia que não podia tirar nada, era de

preservar! Mas não teve jeito, a mãe d’agua fugiu. Dizem até ter visto ela

saindo de lá, eu não sei. Só sei que depois que ela fugiu secou tudo! Até um

corguim14

que tinha aqui secou. E ai nós enfrenta mais essa dificuldade meu

filho...(Grifos meus, Dona das Neves, 2013)

Ao se quebrar um vínculo moral de reciprocidade com estas entidades há o

desrespeito com elas, refletindo uma mudança na maneira de se apropriar dos recursos

naturais. Buriti do Meio vem tradicionalmente trabalhando suas terras de acordo com

os saberes baseando da mutualidade e na adaptação, que os primeiros moradores da

comunidade iniciaram.

Mas o contato com os centros urbanos a partir do século XIX, propiciou a

hibridação das lógicas rurais com as lógicas urbanas que estão ligadas à ao campo

hegemônico da economia e também do discurso, que segundo Foucoault(2012) este tem

a força de legitimar uma visão de mundo, sendo capaz de instituir a realidade através

dos símbolos enunciados pelas palavras de uma determinada ideologia. Com isso inicia-

se um processo de alteração nos dois sistemas simbólicos onde o hegemônico tem a

potencia de subjulgar o sistema subalterno, levando as consequências como a

representação da comunidade da fuga da mãe d’agua.

Este evento na narrativa da comunidade marca o início da secagem dos córregos

e veredas que existiam nesta. Atualmente a água é um bem muito precioso na

comunidade, significando muito para os moradores, que utilizam esta de forma

14

Entende-se por pequeno córrego

Page 36: SERTÃO DE PRETO”

36

contabilizada, para não correrem o risco de agravar ainda mais a situação. A água da

comunidade é derivada do município de São Francisco, um caminhão pipa vai a

comunidade de dois em dois dias para abastecer os vários tambores já preparados pelos

moradores com quantidades e volumes estratégicos para conseguir armazenar a maior

quantidade de água possível pelos próximos dois dias. Uma problemática nesta logística

é que ela não é tão eficiente em cumprir o período de dois dias para abastecer a

comunidade, que muitas vezes sem nenhum aviso, permanece por três, quatro dias, sem

água.

Sendo assim, esta comunidade, que apesar de se localizar no distrito da cidade

de São Francisco, por onde passa o rio que leva o mesmo nome, possui sérias

dificuldades em lidar com a reprodução da vida social, pela escassez de algo tão

banalizado nos meios urbanos, como a água. Esta é mais uma incógnita que entra na

equação do sistema produtivo, tornando este ainda mais complexo de ser estruturado.

Pois, além da questão agrária, estas pessoas contam apenas com as águas da chuva para

poderem ter suas plantações irrigadas. Neste contexto é praticamente nula a

possibilidade de uma família com cinco pessoas, médias das famílias no quilombo,

possam produzir e reproduzir suas vidas contando apenas com a agricultura e seus

empecilhos.

Nesta atual configuração da comunidade, há pessoas que recorrem a poços

artesianos em locais que ainda possuem vestígios de água. Mas são casos específicos de

moradores que com umamaior articulação com a cidade possuírem recursos econômicos

para realizarem empreendimentos como os poços artesianos.

No entanto na maioria dos casos os moradores possuem muita dificuldade de

administrar este recurso tão escasso, passando por situações que fazem deste um povo

de muita resistência.

A água aqui ta ficando um problema sério, a gente não tem condições de sair

furando as terras para ver onde que vai dar água. E as pessoas que tem

disponível não gosta muito de falar do assunto com a gente não. As minhas

planta mesmo tão só diminuindo, porque não tem água para molhar então elas

acaba morrendo e eu fico aqui sem poder fazer nada, a não ser tirar da água que

eu bebo para poder molhar elas. (...) Tem vez aqui mesmo que não tem água

pra coar um cafezinho se quer, porque o caminhão que traz água falha uns dias

e ai só Deus mesmo pra saber quando ele vem e ai nós ficamos aqui nesse

sofrimento.(Rosimeire, 42 anos, 2013)

Page 37: SERTÃO DE PRETO”

37

A religião no quilombo

A comunidade de Buriti do Meio tem muita influencia do catolicismo em suas

práticas, tanto no ethos da população quanto em sua cosmovisão, este contato com a

religião católica possui muitos anos de contato de missionários e de incorporação de

festividades como as folias e as festa de santos por parte dos moradores do quilombo. O

que se configura na comunidade é m catolicismo rural que possui certas especificidades,

este é facilmente perceptível pelas falas dos moradores sempre cheios de superstições

acompanhadas da palavra “Deus” em seguida.

Uma forte influencia da igreja católica na comunidade são construções físicas

que a priori passam despercebidas por visitantes despreparados, mas estão fortemente

gravadas nas memórias do povo da comunidade. Em vários lotes do quilombo há

algumas pequenas casas construídas de alvenaria onde pessoas da comunidade moram.

Estas casas possuem uma escrita em frente a sua estrutura logo abaixo do telhado da

casa, que lembram algum dialético europeu e ao perguntar para os moradores eles logo

explicam que são dizeres em alemão, nomes de pessoas. Anos atrás o bispo da cidade

de São Francisco, que era alemão, teve uma forte presença na comunidade de Buriti do

Meio e de acordo com a narrativa local, este se sensibilizou com uma precária estrutura

de moradia que o quilombo possuía então organizou uma expedição internacional. O

bispo trouxe vários conterrâneos seus para que pudessem fazer o empreendimento de

várias construções para os nativos do quilombo, sendo assim várias casas foram

construídas, e em cada casa construída pintou-se em alemão o nome desses

trabalhadores estrangeiros como forma gravar nas construções e nas memórias da

população a ação internacional que foi realizada através do bispo católico de São

Francisco.

Estes símbolos se tornaram muito significativos na comunidade, pois de acordo

com Durkheim(2000), o entendimento dos símbolos são construídos através da tradição

coletiva de determinado grupo, sendo o símbolo significado de acordo com a trajetória

desta coletividade e as influencias que este símbolo possuiu no coletivo. No caso do

quilombo este símbolo serviu para reafirmar a presença da religião católica na vida da

comunidade e a importância do vinculo religioso estar presente nas vidas dos

moradores, tornando as casas e principalmente as escritas uma símbolo que representa a

força e adesão dos moradores à fé católica.

Page 38: SERTÃO DE PRETO”

38

Em meados dos anos 2000 chega à comunidade uma nova religião, levada

através de fiéis que eram parentes dos moradores de Buriti do Meio, a congregação

cristã do Brasil. A religião sempre proporciona aos humanos um local de conforto e de

segurança muitas vezes sendo inclusive considerado um mal necessário para a

humanidade. Mas o que ocorre quando há uma disputa religiosa dentro de uma mesma

comunidade, e mais inda, dentro de um mesmo grupo étnico é uma (des)união destas

pessoas devido à fidelidade à crença que cada um.

A religião evangélica que chega ao quilombo de forma tardia em relação à

católica começa a tomar muito espaço da igreja católica, o que causa aos fiéis católicos,

revolta e desprezo pela outra religião. Um símbolo que pode ser percebido dessa

“corrida religiosa” e relativo “sucesso” da CCB15

é a igreja pertencente a esta religião.

Ao lado da principal escola de Buriti do Meio, há uma rua lateral, que se for seguida à

pé é possível de se visualizar um sinal “CCB - 100 metros”, ao seguir essa placa,

passando por algumas propriedades chega-se à uma estrutura que aparenta estar em fase

final de término, uma grande construção religiosa, que remete à algumas construções

urbanas modernas, templo este que tem pelo menos três vezes o tamanho da igreja

católica.

A religião é uma instituição que tem o poder de interferir no modus operandi de

seus fiéis, que de acordo com Weber(2004), é o mecanismo que que tem a capacidade

de mudar a maneira com que as pessoas estabelecem suas relações sociais. Apesar do

quilombo se basear de maneira anterior no catolicismo, este é permeado de crenças e

mitos ligados à religiões de matriz africana. É fácil se perceber tal característica quando

se pergunta sobre as curandeiras e curandeiros da comunidade, que são pessoas

investidas de dons repassados por parentes, que tem o poder de cura através da natureza,

raízes e plantas, e também através de rezas. Estas pessoas são dotadas de um

sincretismo religioso muito grande, que é notável quando estes oram sobre a pessoa que

está enferma ou mesmo quando é uma oração de proteção, são falas que contem os

santos católicos e os espíritos da natureza se comunicando. Essa característica existe

mesmo com o poder normatizador e padronizador das religiões, dessa maneira o

catolicismo se mesclou com outras crenças do quilombo para dar luz à uma ética

específica da comunidade de Buriti do Meio. Contato, esta não é a mesma lógica que

perpassa a religião evangélica, na figura da CCB.

15

Congregação Cristã do Brasil, igreja ligada ao pentecostalismo.

Page 39: SERTÃO DE PRETO”

39

A primeira marcação da diferença que há no ethos dos fiéis evangélicos,

principalmente das mulheres são as vestimentas, que no caso feminino é requisito que

se use saia abaixo do joelho. Desta maneira a diferença se torna visível, marcando de

maneira simbólica o modus operandi destas mulheres. Mas há uma ética que prejudica

em muito na sociabilidade do quilombo, a impossibilidade imposta ao evangélico de

participarem de eventos festivos, principalmente aqueles ligados à religião católica,

como a folia de reis. Este é um traço que faz com que os moradores criem uma certa

aversão frente ao outro, na parte dos católicos uma aversão aos evangélicos que não

participam das festividades, mesmo em comemorações como o “dia da abolição da

escravatura”, que nada possui de comemorações religiosas, mas por outro lado, é uma

festividade que tem por finalidade reafirmar a negritude do quilombo, os evangélicos

são impedidos de participarem.

Além destas diferenciações que acabam atrapalhando a sociabilidade

quilombola, há a própria natureza do mundo social de acordo com Bourdieu(2003), que

se configura em uma constante disputa de hegemonia pelo campo, ou seja, pela

legitimidade do discurso e da instituição da realidade social. Sendo assim, as religiões

naturalmente se confrontam pois estão disputando um campo singular, o campo

religioso. Os sujeito que estão dentro desta lógica são claramente afetados e acabam por

compor esta disputa enquanto co-autores de cada agência que disputa a hegemonia.

Outra característica que o autor traz sobre o funcionamento dos campos é a necessidade

de auto-conservação que a hegemonia do campo tende a se comportar. Sendo assim a

religião católica que se encontrava na hegemonia do campo sem ameaças claras de seu

monopólio sentiu uma ameaça real de perder a esta hegemonia. Como exemplo que

ilustra a necessidade de auto-conservação, é possível identificar estratégias adotadas

quando eu conversei com Dona das Neves, católica fervorosa, que me fala sobre as

missões populares da igreja, sendo Dona das Neves uma missionária.

A missão é algo de Deus mesmo, sabe?! Quando me chamaram para ser

missionária me senti orgulhosa de mim mesma, sabia que era importante para a

igreja, por isso eu aceitei logo a participar. Essa missão é da igreja católica, a

gente vai na casa das pessoas para poder conversar com elas, rezar junto e para

chamar as pessoas para irem para igreja porque hoje todo mundo pode ir na

igreja, mãe solteira, pessoa que usa droga, não tem problema a igreja vai

acolher tudo mundo. E eu faço parte disso sabe meu filho, é um verdadeiro

chamado pra mim e eu faço questão de não perder uma visita!(grifos meus,

Dona das Neves, 2013)

Page 40: SERTÃO DE PRETO”

40

Na fala de Dona das Neves, é possível de observar que houve realmente uma

mudança de atitude da igreja católica. É claro que essa mudança não se deu apenas por

conta do contexto do quilombo, isso se deu devido há um contexto muito maior, mas

com certeza representa a disputa que existe no campo religioso, e cada vez mais com

novas estratégias serão tomadas para que a hegemonia possa ser conservada, ou para

que a agencia subalterna possa se elevar a hegemonia. A grande questão é que dentro

dessa disputa as pessoas, antes unidas por um vínculo histórico e étnico têm cada vez

mais fissuras em seus relacionamentos, e possuem cada vez mais dificuldade de

estabelecerem vínculos sociais entre si.

Dentro deste contexto de disputa de poder, há esferas sociais no quilombo, que

possibilitam, não somente a associação de pessoas por meio de sua prática, mas também

um resgate e uma afirmação da identidade históricas destas pessoas.

Figura 7 - Altar presente na sala da casa de Dona das Neves

Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013

Page 41: SERTÃO DE PRETO”

41

O artesanato quilombola

A história do artesanato na comunidade, segundo a narrativa dos moradores,

possui mais de 300 anos de confluências, onde foi repassado pelas tradições da vivencia

e da história oral que remetem à raízes africanas. Segundo Dona das Neves, o início do

artesanato rememora uma negra advinda de Grão Mogol que fazia parte do troco

familiar da atual comunidade de Buriti do meio, ela foi capturada por um fazendeiro e

permaneceu nas propriedades deste. Naquela época os negros andavam como índios, e

eram muito hostis à brancos, apesar de ser capturada pelo senhor ela teve que ser presa

para ser “amansada”, com o tempo os poucos ela se adaptou e começou a trabalhar na

fazenda. Certo dia essa negra precisou de uma panela de uma panela de barro:

Figura 8 – Artesanatos diversos feitos pelos quilombolas

Fonte: Acervo do Opará/2013

Ela (a negra) fez a feijoada só que ficou muito preta. [disse ela] Lá na minha

terra a gente faz na panela de barro, mas aqui não tem. Aí eles perguntaram

como que é, e ela falou: Vai lá na nascente e aprofunda três metros arranca o

barro que tiver e traz pra mim fazer a panela. Aí eles foram arrancou o barro e

levou para ela e lá ela fez o processo todo, tudo que nos fazemos hoje. Secou

esse barro, depois quebrou, fez e depois queimou. Queimou a em um buraco,

igual os nossos antigos, meu avô mesmo ainda queimou nesse buraco(...) Aí

Page 42: SERTÃO DE PRETO”

42

surgiu disso, depois surgiu o pote também para beber água, o pote que é mais

sadio, porque bebia água só nas cabaça da cisterna. E também ensinou a telha,

todo ano eles tinham muito prejuízo porque perdia as rapadura aí pegou o barro

e pós na coxa e fez a telha grande para cobrir o engenho e também fez

copos.(Donas das Neves, 44 anos, 2013)

O artesanato representa um traço diacrítico muito forte no quilombo, é

constituído de histórias de muitas gentes que repassaram durante os século as

engenhosidades necessárias para se transformar o barro no produto final. Este se

constitui enquanto um símbolo de suma importância para a comunidade, pois ele afirma

a negritude deste povo e sua rica história baseada na resistência e também é uma

estratégia alternativa para a comunidade reproduzir sua vida, pois é uma fonte

econômica significativa para muitos moradores.

Figura 9 – Forno utilizado para a queima do artesanato

Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013

Os traços de ancestralidade marcam este símbolo que é reconhecido pelo

município e pela região. No caso da comunidade quilombola o artesanato foi sendo

construído a partir da cultura negra e aos processos de interação do barro com os

aspectos sociais daquela coletividade. Ao longo dos séculos este foi sendo fabricado e

repassado de maneira a permanecer vivo ao longo de tanto tempo. Sendo assim o barro

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43

e o artesanato são construções que se fortalecem dentro da comunidade devido a

identificação que os moradores têm com este, e se torna mais importante quando é

reconhecido pelo município, através de convites para a participação em promoções

culturais onde há a exposição das obras de arte, assim como pela região, legitimando

tanto o artesanato quanto o sujeito quilombola16

em âmbito regional. Com isso, um

simples pote de barro ou uma escultura de argila são resignificados pelos quilombolas,

que constroem um símbolo de luta, de resistência e de afirmação de um povo.

A importância também ocorre no plano material, pois quando a agricultura não

da conta de suprir as necessidades básicas para a reprodução da vida dos quilombolas, o

artesanato de barro surge como uma estratégia de resistência. Neste sentido existem

algumas face da resistência, que segundo Guha(1989), oscila entre dois pontos, o

confronto e a evitação. Estas faces oscilam de acordo como o grupo reage as pressões

sofridas pela hegemonia do campo , no caso dos quilombolas, estes se encontram em

uma condição que esta dentro do contexto dos povos e comunidades tradicionais pois

resistem a pressão imposta a estes no campo econômico. Os extremos da resistência vão

desde a luta ou guerra, o extremo do confronto e a fuga, o extremo da evitação.

Seguindo este pensamento a artesanato de barro é utilizado enquanto uma forma de

resistência que está na área da evitação, pois é uma alternativa para que os quilombolas

possam garantir se modo de vida sem que se coloquem em um embate, segundo o

discurso dos moradores:

O artesanato pra mim é parte da minha vida né?! Porque é dele que eu defendo

tudo aqui da minha família, o pão, a comida, o medicamento, tudo aqui. Meus

filhos estudaram desde criança e já tenho alguns na faculdade, tudo com esse

barro. (Donas das Neves, 44 anos, 2013)

Como acima mencionado por Dona das Neves, o processo de apropriação que

estas pessoas fazem do barro, acabam por moldar também a forma com que estes se

relacionam com a própria comunidade, pois estabelecem um contato íntimo com a

natureza que os fornece a matéria prima para manufatura do artesanato. Exemplo disto

são os locais onde eles extraem o barro, são locais que possuem uma formação

geológica específica que propiciam a constituição de “veias de barro”, pontos venais da

terra que produzem o barro e a argila, estas são área tidas como coletivas, pois não há o

cercamento destas áreas havendo um acordo tácito entre os moradores, tanto dos que

16

Identidade étnica emergente a partir da constituição de 1988. Nós capítulo a seguir será tratado sobre este termo em específico

medicamentos pinho
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produzem o artesanato quanto daqueles que não o produzem. Assim, produção de

artesanatos de barro e de argila representa um metabolismo,Foster (2005), que está em

pleno funcionamento, possibilitando uma troca recíproca com a terra e uma interação

que fortalece o vínculo com a terra.

A importância econômica do artesanato é visível nas casas dos moradores, pois

aqueles que não conseguem se sustentarem com a agricultura precisam de outra

ocupação para garantirem a sua reprodução, sendo que não há muitas opções de trabalho

na zona rural, além de algumas oportunidades como diaristas em fazendas vizinhas, que

remonta a dominação pessoal e exploração configurada em um passado próximo na

realidade do quilombo. Por conseguinte a alternativa do artesanato é uma estratégia que

faz com que o povo quilombola permaneça em seus territórios.

Figura 10 - Artesanato dentro do galpão

Fonte: Opará, 2013

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45

CAPITULO II

IDENTIDADES EM JOGO:

AS REPRESENTAÇÕS IDENTITÁRIAS DOS NATIVOS DE BURITI DO MEIO

A identidade tem sido amplamente debatida nas áreas das ciências sociais,

sempre com o intuito de compreender a dinâmica identitária do indivíduo frente ao

corpo social. Ocorre que a identidade dentro do mundo social possui funções específicas

quando não dinâmicas próprias em geral se ligadas àdiferenciação e identificação.

Neste aspecto é preciso elucidar a desintegração do sujeito, havendo uma critica de

acordo com Hall(2005), da percepção de um indivíduo integral, originário e unificado,

que se fecha em si mesmo. Portanto parte-se de uma percepção plural da identidade,

onde o individuo deve assumir a distinção de si para que se possa marcar a diferença

frente ao outro e estabelecendo relações de coesão, onde os similares se agregam frente

aos diferentes, sendo possível esta sociabilidade apenas através da criação de marcos

diferenciais ou fronteiras identitária.

As identidades surgem então para que determinados tipos de relação ocorram em

determinados contextos, onde se cria o jogo de identidades. As fronteiras surgem para

demarcarem a diferença entre os grupos e indivíduos, pois segundo Bourdieu(0000),

estamos em um mundo social onde a dominação através do campo dita o funcionamento

das práticas sócias, neste sentido a fronteira, a diferença que marca profundamente o

meio social, aparece enquanto uma estratégia social que articula os poderes em jogo.

De acordo com Hall(2005), as identidades possuem ampla ligação com as

práticas discursivas, onde esta última é adotada em uma semântica foulcoaltiana, na

qual identifica esta prática enquanto uma prática normativa e imperativa. Sendo assim

os discursos são símbolos que operam dentro da gramatica social, onde a ordem dos

signos e significados é ditado pelo discurso hegemônico, funcionando em sincronia com

a identificação dos sujeitos às representações, onde Tomas Tadeu da Silva as interpreta

da seguinte maneira:

É por meio da representação, que por assim dizer, a identidade e a diferença

passam a existir. Representar significa, neste caso, dizer: “essa é a

identidade”, “a identidade é isso”(...) É também por meio da representação

que a identidade e a diferença se ligam a relações de poder. Quem tem o

poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade(...)

Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os

sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação(SILVA: pág. 91,

2005)

Page 46: SERTÃO DE PRETO”

46

A representação entra enquanto aspecto fundamental para que se passa entender

a dinâmica da identidade e diferença, pois quando há a emergência das fronteiras pelas

distinções identitárias, as representações funcionam como mediadoras dos conflitos que

envolvem o poderio do campo. Assim sendo é possível visualizar a representação

enquanto aspecto importante a ser tratado para perceber as diversas faces das

identidades em jogo. No tocante da representação, Dürkheim(2000), trata desta

enquanto construção gestada à partir da interação coletiva e constituem uma maneira de

pensar e interpretar a realidade cotidiana, onde o peso do social se faz em aspectos

imperativos.

A representação é sempre uma atribuição da posição que as pessoas ocupam

na sociedade, toda a representação social é representação de alguma coisa ou

de alguém. Ela não é cópia do real, nem cópia do ideal, nem a parte subjetiva

do objeto, nem a parte objetiva o sujeito, ela é o processo pelo qual se

estabelece a relação entre o mundo e as coisas. (SÊGA: pág. 129, 2000)

Neste âmbito, utilizo o conceito de representação social, para trabalhar com as

dinâmicas identitária no quilombo de Buriti do Meio. Analiso as representações dos

quilombolas em três dimensões diferenciadas, para poder analisar e compreender como

estas foram construídas e como os sujeitos interagem e se utilizam da identidade em

jogo.

Figura 11 - Crianças na E.E. Fazenda Passagem Funda

Fonte: Opará, 2013

Page 47: SERTÃO DE PRETO”

47

O sujeito quilombola

A partir dos movimentos sociais realizados pelos povos e comunidades

tradicionais com a reivindicações a favor de legislações para os mesmos, foi inaugurada

na constituição de 1988, os direitos à favor destas minorias sociais. Leis que garantem

“o pleno exercício de direitos culturais” (texto constitucional de 1988, art. 215), assim

como a garantia de direitos “... dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira... Os modos de criar, fazer e viver” (texto constitucional de 1988, art. 216).

Estes dispositivos constitucionais legitimam a luta das populações subalternas,

equipando-as com aparelhos legais para a sua luta por território, como elucida o João

Batista em seu estudo:

“Durante o processo constituinte na década de 1.980, representações

de diversas categorias sociais existentes no Brasil se fizeram presentes

reivindicando o reconhecimento de suas existências na Constituição Brasileira

que seria promulgada posteriormente. Articuladas a diversos movimentos

sociais, indígenas, membros de comunidade negras rurais, comunidades rurais

que foram atingidas brutalmente pelo processo de modernização da agricultura

e pecuária brasileira e diversos grupos étnicos, foram agentes da construção de

si mesmos como sujeitos coletivos de direito”(COSTA et al. Pág. 51, 2011)

Figura 12 – Dona das Neves e Don’Ana em reunião da associação

Page 48: SERTÃO DE PRETO”

48

Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013

Neste contexto os aparelhos constitucionais conseguem legitimar a tanto a luta

como a identidade e os modos de vida destes povos e comunidades tradicionais. Há

então a emergência de sujeitos de direito baseados nos dispositivos legais, como caso

específico das comunidades remanescentes de quilombos, termo criado pela constituinte

de 1988, que é conceituado a partir da regulamentação dos dispositivos constitucionais,

em questão o decreto 4.887 de 2003 em seu art. 2º refere à estas comunidade como:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins

deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,

com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,

com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à

opressão histórica sofrida.”(BRASIL, 2003)

Os critérios acima citados para que comunidades rurais negras sejam

reconhecidas enquanto remanescentes de comunidades de quilombo, como a “trajetória

histórica própria” e “relações territoriais específicas” podem ser notado nos tópicos

anteriores que registram as especificidades destas características na comunidade de

Buriti do Meio. Mas o que realmente define a identidade de uma comunidade negra

enquanto quilombola, são os critérios de “auto-atribuição” que possibilitam a autonomia

das pessoas da comunidade para se identificarem ou não com esta identidade criada a

partir de operadores do direito. Este é um critério de extrema importância, pois a

verdadeira significação ou identificação existe a partir dos próprios nativos, não há

como sobrepor esta identificação nas comunidades a partir de uma agencia externa, pois

este método iria resultar em uma violência simbólica, que segundo Bourdieu(2003) se

configura com a imposição de critério a calcados no discurso hegemônico para que um

determinado segmento social se alinhe à estes padrões.

Destarte, as comunidades negras tem que se identificar e se proclamar enquanto

remanescentes de quilombo para ter acesso aos direitos constitucionais. A organização

que reconhece as comunidades auto-atribuídas é a Fundação Cultural Palmares

vinculada ao Ministério da Cultura, responsável por emitir um certificado que legitima

legalmente a comunidade enquanto uma comunidade que possui modos de vida e de

reprodução social específico e permite que esta tenha acesso aos direitos concedidos.

A comunidade de Buriti do Meio teve seu reconhecimento garantido a partir de

2007, depois de uma longa caminhada por conhecimento através de instituições de

Page 49: SERTÃO DE PRETO”

49

ensino, organizações como o serviço brasileiro de apoio a micro e pequenas empresas

(SEBRAE) e profissionais da área da antropologia para dar suporte à comunidade. O

histórico de como o interesse pelo direito ao acesso a identificação enquanto quilombola

se deu a partir de informações de agentes externos. O SEBRAE havia firmado um

contato maior com a comunidade no ano de 2005, onde este realizava oficinas

profissionalizantes para os moradores da comunidade. Ocorre que os integrantes do

SEBRAE que estavam ministrando os cursos começaram a participar da rotina da

comunidade e ter contato com as pessoas de maneira mais intensa que deu a eles acesso

aos modos de vida específicos do Buriti do Meio, e ao conversarem com alguns

representantes da comunidade que são mais velhos e detém a história da comunidade

em suas mentes, os professores do SEBRAE conseguiram identificar que aquela

comunidade em que estavam atuando tinham características muito específicas de

antecedentes negros, que remontam aos escravos africanos e suas estratégias de fuga

nos períodos coloniais. Com esta descoberta houve um reunião com os membros da

associação de moradores da comunidade para que fosse repassado a possibilidade

daquela comunidade se auto-atribuir de acordo com os dispositivos legais e ter acesso à

direitos que foram institucionalizados como forma de correção ao passado de massacre

e escravidão.

Outras instituições assim como o próprio poder municípal se envolveram no

processo junto a comunidade que procurou se informar melhor e tomar conhecimento

do que de fato esta declaração tinha haver com sua história e seus modos de vida.

Após os moradores terem tomado consciência do que realmente representava

essa titulação, houve o esforço comunitário de concretizar a auto-atribuição. Os

representantes da comunidade tiveram que se deslocar várias vezes, à sede do município

e também a capital, Belo Horizonte, para que fosse articulado com as instituições

responsáveis os trâmites necessários para que a Fundação Cultural Palmares emitisse o

título de comunidade remanescente de quilombo que ocorreu no final do ano 2007.

Assim que o certificado foi emitido e a comunidade reconhecida, houve alguns

processos que iriam ser desencadeados devido a identificação e o significado que isso

teve para a comunidade. A começar, houve um ressignificação do histórico da

comunidade, as os nativos de Buriti do Meio tinham conhecimento de sua história e a

ligação que esta tinha com a escravidão, mas isso era um motivo de “vergonha” para os

moradores, a maioria fazia questão de esconder este passado. É claro que isto se dava

devido a configuração com a qual a sociedade brasileira está identificada.

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50

Anteriormente citei a violência simbólica de Bourdieu, que se encaixa novamente

quando deparamos com as falar dos moradores e a relação que estes tinham com a

trajetória histórica da comunidade antes do reconhecimento pela Fundação Palmares.

A gente tinha vergonha mesmo! Era muito difícil ver alguém falando sobre o

nosso passado, as pessoas daqui não queria saber dessa história de quilombo,

porque eles não entendia que era importante pra gente. Mas eu mesma tinha

vergonha, era muito difícil, ainda é sabe?! É que antigamente o povo pensava

muitas coisa ruim se a gente falasse essa coisa. Hoje a gente ta lutando pra

poder falar com orgulho né?! (Tânia, 2013)

Como respeitar seu próprio passado, olhar para traz e dizer com orgulho que é

descendente de escravos, quando todo um coletivo associa este mesmo passado com

coisas negativas e desclassifica o mesmo, e reafirmar o passado é sinônimo de

degradação da imagem de si e de sua comunidade? A violência simbólica que estas

pessoas sofrem, têm dimensões profundas e complexas, pois nas disputas travadas

dentro do campo, segundo Bourdieu(2003), há uma agencia que consegue a supremacia

e sobrepõe as outras, estabelecendo a legitimidade daquele mundo social, as pessoas que

estão nos grupos subalternos tem suas realidades violentadas pelo discurso hegemônico,

que tem o poder simbólico de instituir uma hierarquia valorativa baseada em seus

próprios critérios que excluem agencias que não pertencem aquela lógica ou não se

adaptam ao formato estabelecido.

Ao retornar para o histórico da emergência do sujeito quilombola na comunidade

de Buriti do Meio, passo a compreender o que foi possível advir nas pessoas da

comunidade quando a titulação da comunidade ocorre por uma instituição do Estado

que as classifica e as legitima no mundo social, que anteriormente as desclassificavam.

Novas lideranças comunitárias surgem com a possibilidade de poderem semostrar, sair

de sua camuflagem e emergir do contexto social dotado de um poder simbólico

propiciado pelos dispositivos legais assim como a própria força intrínseca à riqueza

cultural desse povo. Ao interagir com os sujeitos da comunidade em outro âmbito

através da execução do Projeto Sujeito Agente/Unimotes17

, é possível identificar que os

quilombolas têm consciência da força inserida no reconhecimento da Fundação

Palmares, devido às propostas sugeridas por estes para o projeto.

17

Fiz referencia ao projeto na introdução, mas lembro ao leitor que fiz e faço parte da equipe de pesquisadores do projeto e realizei o trabalho de campo na comunidade. O projeto é financiado pelo Fapemig e reconhecido na Unimontes pela resolução Cepex 271/2012, coordenado pela Professora Andréa Narciso.

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51

O projeto sujeito-agente se propõe, à partir de uma perspectiva da pesquisa

participante, interagir com as pessoas que foram selecionadas internamente na

comunidade para que houvesse uma proposta de pesquisa que surge a partir dos

próprios sujeitos da comunidade. Os pesquisadores participantes do projeto, no qual eu

me incluo, capacitam os quilombolas no âmbito da pesquisa científica através de

oficinas realizadas na comunidade. A partir desse processo e do entendimento pelas

pessoas da comunidade sobre a pesquisa, estes são instigados a pensarem em um projeto

que surja a partir dos anseios perpassam os imaginários destas pessoas, pensando sobre

a atual conjuntura da sociedade quilombola e sobre as necessidades que podem ser

supridas com uma pesquisa acadêmica.

As propostas que surgem a partir da provocação inicial podem ser

consideradas como o reflexo ou uma representação do atual momento que vive o

quilombo, pois são propostas que inicialmente almejam resgatar o histórico da

comunidade, porque na visão dos moradores, apesar de já haver pesquisas que retomam

o surgimento e a fundação da comunidade, como exemplo a pesquisa de Aguiar (2012),

os sujeitos quilombolas anseiam fazer este processo de reconstrução à partir de seus

próprios esforços, com suas próprias representações, assim como fazer uma comparação

do contexto comunitário como um todo, antes e após o reconhecimento pela Fundação

Cultural Palmares. Esse segundo objeto de pesquisa proposto pelos nativos de Buriti do

Meio, exemplifica perfeitamente um divisor de águas, que surge a partir das

subjetividades dos próprios indivíduos que viveram este processo, sendo considerados

por estes uma possibilidade de melhoras para a comunidade. A vontade destas pessoas

destas pessoas de pesquisarem estas diferenças e anunciado por Tânia:

(...)A gente tem que ver como era aqui antes, porque as coisas eram diferentes,

tem gente que fala que não, mas é só olha paraas coisas novas da comunidade,

as escolas, o PSF, os programa do governo que a gente tem direito agora. Isso

muda as coisas por aqui, muda as pessoas também, a gente tem que saber como

que mudou, porque isso é importante pra gente, para o quilombo e para

pessoas, isso é importante até para os jovens. (meus grifos, Tânia em uma

oficina do projeto sujeito agente, 2013)

Observando o discurso da Tânia, moradora politizada, membro ativo da

associação de moradores, pode-se depreender com mais clareza o impacto que uma

titulação como este tem. O movimento de ressignificação por parte dos moradores, tanto

das estratégias quanto do histórico da comunidade se faz presente a partir do momento

em que este sujeito de direito emerge. Um exemplo emblemático que também

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52

exemplifica de maneira sincrônica este sujeito quilombola e sua implicação no ethos das

pessoas da comunidade é a representante política e artesã da comunidade, Dona Maria

das Neves.

Dona das Neves, como os moradores a chamam na comunidade, participou

ativamente do processo de reconhecimento da comunidade, inclusive sendo convocada

para ir pessoalmente à capital, Belo Horizonte, para poder entrar em contato com a FCP

,onde ela passaria por alguns procedimentos burocráticos para que o reconhecimento

pudesse ser efetivado. Essa mulher quilombola é uma figura carismática e performática,

que consegue de atribuir características simbólicas para estabelecer fortes relações

dentro e fora da comunidade. Ela é constantemente convocada para representar a

comunidade de Buriti do Meio em eventos oficiais e apresentações culturais. Este lugar

de representação ocupado por Dona das Neves se torna possível por conta de seu

engajamento no cenário político da comunidade e recentemente pela recente

participação no processo de reconhecimento. Ela atuava como membro ativo da

associação de moradores de Buriti do Meio, mesmo quando esta não existia

oficialmente e se organizava junto à associação de morados da comunidade de Imbu

Cabeludo, que já estava registrada e ajudava os moradores de Buriti do Meio nas

questões funcionais dos aspectos políticos. O quilombo não possuía autonomia de ter

um presidente próprio e dependia da outra comunidade para resolver até mesmo

questões burocráticas, mas a partir do ano de 1998 há a criação e registro da associação

de Moradores de Buriti do Meio, contando com Dona das Neves como um dos membros

fundadores. As influencias de Donas das Neves passaram então a ser catalisadas pelos

símbolos a ela cedidos através dos dispositivos constitucionais e sua participação

significativa na efetivação destes para o quilombo.

A trajetória, de acordo com Geertz(1989), representa parte importante na

construção e no fortalecimento dos símbolos, principalmente aqueles ligados à esfera do

carisma, que investiram Dona das Neves de um poder associados aos símbolos que atua

através da legitimidade que lhe foi proporcionada pelo Estado, sendo assim os símbolos

que ela utiliza em sua performance social são eficazes.

O sujeito quilombola se torna instrumento primordial para que a comunidade

possa ter acesso à um direito de fundamental importância para estes povos, o direito ao

território através do Laudo Antropológico. As comunidades quilombolas, se enquadram

dentro dos dispositivos infraconstitucionais, no caso art. 68 ADCT, que garante aos

quilombolas direito a seus territórios que vêm sido ocupados de forma histórica por suas

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famílias. Este por sua vez é regulamentado pelo decreto presidencial 4.887 de 2003, que

garante aos quilombolas a possibilidade do “auto reconhecimento”, como já colocado

acima e também regulamenta e institui o Relatório Técnico de Identificação e

Delimitação (RTID), que possibilita aos quilombolas, através do INCRA, terem acesso

a seu território ancestral, ou seja, retomada das terras expropriadas.

Esta é uma equação complexa que envolve uma série de incógnitas, pois apesar

de, no mesmo decreto, o 4.887/03, regulamentar tanto o reconhecimento quando a

titulação das terras, estes não ocorrem de forma sincrônica, ou seja, tanto um como o

outro são processos que são desencadeados depois de muita articulação por parte da

comunidade, e principalmente o segundo, por conta de movimentos sociais como forma

de pressionar os órgãos responsáveis. No caso de Buriti do Meio, desde 2007 que a

comunidade é reconhecida, mas até os dias atuais esta não possui sinais de que vai haver

a demarcação de terras, contando apenas com seu nome na “lista de espera” do INCRA.

Esta situação exemplifica a necessidade das comunidades reconhecidas pelas FCP de se

articularem em torno desta nova identidade acerca de um modo de vida ancestral.

Passando por um processo de ressignificação, pois o significante, quilombola, é uma

identidade que surge de legislações governamentais, ou seja, se localiza em esferas

distantes daquela vivenciada pelos sujeitos que a “receberão”. Assim sendo, há a

necessidade se se preencher, de dotar este de significado a partir da própria comunidade

que vivencia esta identidade nos âmbitos políticos e culturais.

O processo de demarcação territorial se faz necessário para estas comunidades

devido à seu histórico de expropriação vivido em âmbitos praticamente gerais na região

norte mineira, remetendo à imagética-discursiva existente sobre a região. Neste

contexto, o sujeito de direito quilombola, deve ser acionado, ou seja, deve ser assumido

pelos moradores de Buriti do Meio para que se possa legitimar o processo de retomada

das terras. Pois, mesmo nesta comunidade quilombola, há pessoas que não tem interesse

nas demarcações territoriais, pessoas que não querem participar da luta política, por já

julgarem ter um pedaço de terra justo, onde podem reproduzir-se minimamente ou

simplesmente por não terem o interesse de aderir ao movimento quilombola, são

pessoas que não se identificam com a identidade constitucional, se posicionando apenas

como trabalhadores rurais.

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Festa da abolição de Buriti do meio

Neste tópico recorro à descrição densa para traduzir a festa de abolição da

escravatura que aconteceu no Buriti do Meio, pois esta foi vivida por mim em sua

totalidade, ou seja, desde a arrumação da festa, passando pelo evento em seu ápice até a

percepção posterior ao dia da festa. Analiso está enquanto um ritual feito pelos

moradores, enxergandoesta através do prisma de Peirano (2003), que apresenta uma

abordagem de ritual contrária à visão que cristalizaou é entendida pelo senso comum

enquanto acontecimento extraordinário, sagrado ou formal que está fora da esfera do

cotidiano das pessoas. Para a autora os acontecimentos desta esfera, na vida de uma

sociedade, podem ser entendidos e analisados enquanto processos ritualísticos dotados

de símbolos, celebrações e até mesmo de uma eficácia simbólica acionada durante o

processo. Na perspectiva metodológica de analise, recorro à proposta de Turner (2005),

que organizada a compreensão em três etapas: as formas observáveis do processo, a

interpretação dos especialistas e dos leigos, e a elaboração do antropólogo.

O evento observadoocorreu no dia 25 de maio de 2013, sendo que me foi

possível chegar à comunidade no início dias antes e vivenciar o pré-rito junto aos

moradores. O evento é realizado no terreiro18

de Dona das Neves, local onde ocorrem

reuniões coletivas, e eventos, principalmente os organizados por ela. A justificativa do

local do evento se dá devido à sua natureza organizacional. Esta festa tem o apoio da

associação de moradores da comunidade, que participa cedendo o caminhão

comunitário para resolver aspectos da logística do evento. No demais toda a estrutura é

articulada e organizada pela família de Dona das Neves, que conta com alguns parentes

para ajudar na montagem da ornamentação, nas tem sua família nuclear como equipe

que participa de todo o processo, incluindo o trabalho durante o evento.

A família nuclear deDona das Neves é estrutura inicialmente com seus cinco

filhos, três mulheres e dois homens, que não estava completa por conta da ausência de

dois filhos homens mais velhos, que se estavam migrando para sul de Minas onde

ofertam sua força-de-trabalho na lavoura de cana-de-açúcar e café, para garantir a

reprodução familiar como caracterizado anteriormente. A filha mais velha desta

matriarca, Flávia, é casada com Wendel, personagem importante na comunidade e na

festa enquanto articulador de ideias e eventos. Ele não é nativo da comunidade, mas por

casamento exogâmico passa amorar na comunidade, residindo há quatro anos

18

Terreiro deve ser compreendido na perspectiva discutida por Woortmann (1983) sobre os espaços no

sítio camponês.

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55

nesta,sendo reconhecido pelos moradores como um quilombola e que participa

ativamente dos movimentos políticos da comunidade.

Minha chegada ao quilombo no início da tarde não alterou a rotina das pessoas

que estavam trabalhando na montagem da festa, pelo contrário, logo sou recebido por

Flávia que me mostra onde vou dormir e me incluí nas tarefas, demonstrando que a fato

de e eu ter estado no quilombo algumas vezes propicia uma familiarização de inclusão

por parte dos nativos. Seguindo essa lógica sou incumbido de ajudar o Wendel a

arrumar a parte elétrica colocando várias lâmpadas espalhadas pelo terreiro e

improvisamos algumas tomadas. Este momento de pré-rito, sou incluso nos preparativos

enquanto uma pessoa de dentro, ou seja, as pessoas da comunidade me incluem nas

atividades assim como a seus próprios parentes, me fazendo trabalhar junto ao Wendel,

enquanto as mulheres trabalhavam a comida, preparando e limpando o arroz e o feijão.

Enquanto isso os dois filhos de Das Neves estão fora resolvendo o transporte do som

que será utilizado na festa e as filhas e a própria Das Neves junto à mais algumas

pessoas tomam conta dos alimentos que serão servidos no dia seguinte.

Dona das Neves que possui sua força política e cultural na comunidade, se faz

presente em eventos sempre de forma performática, anda com vestidos coloridos e

turbantes na cabeça e vários colares de sementes. A roupagem utilizada por ela,

consideradas como próprias da comunidade, reflete oethose a afirmação da identidade

negra. Numa perspectiva foucaultiana, o discursoproferido por ela, enuncia o

quilombola na sua luta pela afirmação de seu passado histórico.

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Figura 13 – Dona das Neves em seu quintal.

Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013

Com o findar da tarde, as pessoas que não moram na casa de Das Neves

começaram a se recolher, ficando apenas os filhos de para o dia seguinte. Um enorme

silêncio toma conta da atmosfera do terreiro, o céu dá espaço à bandeirolas que são

musicalizadas pelo vento, os artesanatos, símbolos da identidade quilombola, estão à

mostra debaixo de uma mangueira, iluminado pelas lâmpadas improvisadas e o galpão

do artesanato se torna um auditório onde acontecerão palestra e discursos de convidados

e moradores da comunidade. Assim, se encerra o pré-rito, momento necessário para

ornamentar o evento, assim como prever os gastos, organizar as quantidades de comidas

e bebidas, estabelecer os cargos que as pessoas ocuparão do momento central do evento.

Peço a Dona da Neves que me fale sobre a festa da abolição, considerando ela

como uma das especialistas do ritual:

Essa festa é importante para o povo daqui valorizar o que é, e pra lembrar da

história, né?! Nós já fomos escravos, né?! E não tem tempo não! O povo

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daqui parece que se esquece. Mas eu não esqueço não! A minha vó mesmo

foi escrava, tratada igual bicho e presa em corrente de ferro. E parece que a

gente ainda é escravo, nessa vida sofrida que a gente leva” (Dona das Neves,

2013).

O amanhecer das pessoas começa bem cedo, com o assobiar das panelas de

pressão cozinhando as carnes e o cheiro de lenha queimada que aquece o fogão de

lenha. Às seis horas da manhã o movimento já é intenso no terreiro. Várias pessoas que

não se encontravam no dia anterior se fazem presentes para ajudar com os últimos

preparativos. Wendel me procura para que eu possa ajuda-lo a compor perguntas para as

dinâmicas que ele preparou para os estudantes participaram do primeiro momento do

evento que basicamente se dividirá em três instâncias: A gincana, parte específica

destinada aos jovens das cidades vizinhas, as apresentações culturais, momento onde as

pessoas de Buriti do Meio fazem várias apresentações, de capoeira, catulé, folia entre

outras e o momento de descontração, onde uma banda contratada de São Francisco

animará as pessoas na parte da noite.

Wendel é um negro alto e robusto, articulado e gesticulador que junto à Das

Neves luta pelos direitos dos quilombolas, como interpretado por ele:

Figura 14 – Wendel no galpão de artesanatos

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Fonte: Acervo Opará/ 2013

Vou te dizer, eu acho esse trabalho de D. das Neves fundamental pra

comunidade. Se depender das pessoas daqui, eles não fazem nada. Porque

vou te falar, preto ainda é escravo hoje, e você sabe a dificuldade que é falar

de preto né?! A gente tem na cabeça nossa que tudo de ruim é preto, até o

pessoal daqui acha isso de vez em quando, e Dona das Neves sabe que é

importante mudar isso (Wendel, 2013).

Por volta das oito horas da manhã as “cores” do quilombo começam a ser

tingidas de branco. Quatro turmas de estudantes do ensino médio junto ao corpo

docente que os acompanha começam a ocupar o terreiro. Adolescentes eufóricos, que

em sua maioria não são negros, ocupam rapidamente um grande espaço vazio de terra

batida sob as bandeirolas. Eles irão participar das dinâmicas da parte da manhã, regidas

pelo Wendel. As escolas são das cidades de São Francisco, Brasília de Minas e

Luislândia, principais centros que envolvem a comunidade de Buriti do Meio, o que dá

o tom de reconhecimento microregional à festa e ao quilombo.

Posicionado em um palco feito de madeiras de eucalipto e coberto por uma

estrutura metálica, Wendel convoca os adolescentes para que se iniciem as dinâmicas,

abrindo os trabalhos do rito em si. O objetivo das dinâmicas é que estes jovens possam

praticar atividades que são costumes dos quilombolas, para que eles “vivam” um pouco

da realidadeda comunidade. Sendo separadas três equipes que disputarão a gincana é

esclarecido como a mesma ocorrerá.

A primeira fase se baseia em um jogo de perguntas e respostas, onde perguntas

sobre a escravidão e sobre o quilombo serão realizadas, acumulando-se “pontos” a cada

acerto das equipes.

A segunda fase exige o aspecto físico dos estudantes, estes terão que fazer uma

“corrida rústica”, de acordo com Wendel, simulando algumas atividades cotidianas do

quilombo como: cortar lenha e levar ao forno, carregar potes de barro cheios de água na

cabeça e colher a mandioca para fazer a tapioca, esta atividade sendo realizada de forma

performática.

Na fase final cada equipe tem a tarefa de simular a dança e o canto feitos pelas

mulheres do quilombo. A gincana ocorre de forma descontraída com o clima de

competição estimulado pelo Wendel, que inflama com gritos e frases animadoras as

equipes. Neste momento percebo a formação dos grupos presentes no terreiro. Há o

grupo dos estudantes que se forma no centro do terreiro se dividindo em três equipes.

Cada equipe tem atrás de si a torcida de sua escola, composta por estudantes e

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professores. Um segundo grupo se forma no entorno das equipes formado por

professores ligados a instituições de ensino de Belo Horizonte e Montes Claros, por

políticos da região e em grande parte por quilombolas. Ao final de muita agitação por

parte das equipes de estudantes e do próprio Wendel, encerra-se a gincana anunciando a

equipe ganhadora. Todas as equipes recebem como troféus esculturas de barro feitas por

Dona das Neves. Ao término da gincana procuro alguns jovens que dela participaram.

Nas duas interpretações abaixo é possível compreender um sentimento de

compartilhamento da vida dos quilombolas de Buriti do Meio.

Figura 9 – Gincana da festa da abolição

Fonte: Acervo do Opará/ 2013

Achei muito divertido! Acho que foi muito importante para todos nós

aprendermos sobre os quilombolas, porque eu mesmo nem sabia o que essa

palavra significava. É importante a gente viver essas coisas porque a

sociedade nossa é muito preconceituosa. Eu acho que fazer parte da dinâmica

fez a gente entender um pouco mais como eles vivem (Sofia – 16 anos -,

Brasília de Minas, 2013).

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Eu acho que a escola deveria levar a gente mais pra fora, pra conhecer as

coisas, as pessoas. Eu adorei a gincana e acho que essas pessoas merecem

muito respeito pela vida que levam aqui, fiquei sabendo que até água falta pra

eles, fico pensando como é viver aqui todos os dias... (Matheus 17 anos -,

Luislândia, 2013).

No momento em que se estabelece a relação dos quilombolas com os estudantes

durante a gincana, posso observar a efervescência coletiva, em uma perspectiva

dürkheimiana, tomando conta da atmosfera da dinâmica. Os símbolos e o eidos dos

quilombolas, reproduzidos pelas performances dos próprios estudantes, provocam um

efeito de comunicação simbólica como discutido por Peirano (2003). Os estudantes por

sua vez acessam o sistema simbólico local que é comunicado simbolicamente pelas

tarefas realizadas na gincana. A comunicação entre todos os participantes e a

efervescência coletiva estabelecida dentro do ritual propiciam a comunhão de todos os

sujeitos envolvidos no evento, quilombolas,estudantes, professores, políticos, assim

como, outras pessoas que estão nos grupos mais exteriores no momento da gincana.

Nesse momento, utilizo Dürkheim (2000) que entende o momento de efervescência

coletiva como umcompartilhamento das mesmas ideias, valores e sentimentos. Entendo

que este momento propicia a eficácia da comunicação estabelecida no ritual, pois os

estudantes, assim como outros presentes, apreendem o conteúdo dos símbolos

quilombolas comunicados e que passarão a ser compreendidos por todos, como disse a

estudante acima.

Após o término da gincana, os alunos se dispersam do centro do terreiro, pois

neste momento iniciam-se alguma palestra dentro do galpão acerca da temática da

festa.Dentro do galpão, foram retirados os artesanatos que deram lugar aos bancos e as

pessoas presentes, assim como, banners e cartazes que continham informações sobre os

trabalhos do quilombo, como a danças e o artesanato. Nos cartazes as seguintes

afirmações: “A abolição aconteceu?” e “Resistir e Afirmar!”. Diante deste cenário

ocorriam discursos proferidos por professores das escolas, moradores da comunidade,

professores de instituições de ensino superior e de políticos. Todos falavam sobre a

escravidão e a abolição em suas perspectivas históricas e seus reflexos atuaiscomo o

preconceito e a exclusão social. Seu Geraldo, membro da associação de moradores da

comunidade de Buriti do Meio, falou sobre as dificuldades que a comunidade encontra

em ter seus direitos garantidos enquanto quilombolas. João Batista, antropólogo que

participava do evento foi convidado a falar para as pessoas ali presentes, que em sua

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maioria eram estudantes e quilombolas, onde abordou a questão ideológica do

embranquecimento e sobre o preconceito dos próprios negros com eles mesmos, entre

outras coisas disse que “tem que se arrancar o branco que está sentado no centro de

nossas cabeças”. O discurso para Foucault(2012) é um símbolo que tem a força de criar

representações do real. Entendo a fala do antropólogo como a construção de uma

representação, que desconstrói a representação hegemônica dentro do campo

ideológico. O campo pode ser entendido, segundo Bourdieu(2003), enquanto um espaço

onde se travam relações de dominação, sendo que a agencia hegemônica no campo tem

o poder simbólico de instituir o real através de sua “legítima” representação. O que

posso perceber no âmbito das palestras são símbolos sejam eles, pessoas, cartazes ou

discursos que constroem uma representação que dá visibilidade ao quilombola e sua

cultura, que por sua vez é legitimada no tempo ritual pelas pessoas, tanto de dentro

quanto os de fora, como estudantes, professores e até mesmo quilombolas de uma outra

comunidade do mesmo município de São Francisco, Bom Jardim da Prata.

Terminadas as falas dentro do galpão, as pessoas começam a ser reunir

novamente no terreiro e se dirigem para diversos locais onde é servido almoço, em

pratos e copos de cerâmica feitos para este fim, que a comunidade disponibilizou para

todos. Numa perspectiva simbólica posso dizer que os quilombolas de Buriti do Meio

repartiram o pão, como no simbolismo cristão.

Em seguida, os estudantes em sua maioria foram embora, havendo uma maior

concentração de quilombolas nesta parte do ritual. Inicia-se então a parte artística da

festa com o terno de folia de reis se apresentando junto das mulheres “dançadeiras” da

comunidade de Buriti do Meio. Rodrigo, folião que puxa o grupo, afirma que a folia foi

iniciada há mais de duzentos anos, remontando os tempos do Seu Euzébio, negro

fundador deste grupo social. Tocam junto ao Rodrigo outros três moradores da

comunidade e em frente a eles cinco mulheres entre elas, Flávia, filha de Dona das

Neves. Elas dão movimento às músicas da folia, que só são dançadas por mulheres. Há

uma grande empolgação por parte das pessoas que assistem, que aplaudem e cantam

juntos. Percebo novamente um momento de efervescência contaminar o coletivo ali

presente, que segundo Durkheim (2000) propicia a exposição da visão de mundo desse

grupo social, que festivamente representa a si mesmo. As danças e a folia são símbolos

fortes que representam a ancestralidade e a resistência da comunidade. Interpreto com

Peirano (2003) que as danças e as músicas comunicam aos presentes a recriação da

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representação da comunidade e da identidade quilombola local. A narrativa abaixo

evidencia este aspecto:

Das Neves é a dona da casa, e é ela que incentiva a comunidade inteira. A

gente nasceu aqui. Temos a dança da roda, a folia e a dança do pote. Todas

são danças católicas. Das Neves é muito católica. A dança do pote é uma

senhora com um pote na cabeça e ao seu redor têm outras mulheres dançando

e cantando. Só mulheres dançam e os homens ficam para tocar. As mulheres

não tocam. Mas das Neves toca com batuque. Isso tudo é uma tradição e

continua. É um costume. A tradição é ela dança, e para não parar. A função é

para preservar a cultura (Entrevista concedida pelos integrantes, Jaime e

Brasiliana, 2013).

Figura 15 – Roda de catira das mulheres de Buriti do Meio

Fonte: Acervo Opará/ 2013

Depois das apresentações das danças e da folia, a capoeira é anunciada e a roda

se forma. Mestre Bigode conduz a dança, tocando o berimbau e cantando num ritmo

contagiante, logo as pessoas começam a acompanhar com palmas e os capoeiristas

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entram na roda, que se movimenta em uma mistura de dança lutada ou de luta dançada.

As letras das musicas enunciadas por mestre Bigode falam da luta e da resistência de

escravos que fugiam e de costumes ligados aos negros, como o beneficiamento da

mandioca para fazer o alimento. Cinco capoeiristas se revezam na dança, mostrando

muita habilidade nos movimentos, o que faz com que as pessoas gritem e aplaudam com

euforia.

Durante as apresentações de capoeira, há uma intervenção de Dona das Neves

que, trajada com maltrapilhos e com a cara pintada de barro preto, entra no meio da roda

de copeira e todos os participantes se ajoelham em sinal de reverencia. Compreendo que

neste momento os símbolos anunciados, representam e reverenciam a luta dos negros

que vindos da África contribuíram para a construção do Brasil. Das Neves começa uma

performance que simula uma escrava, sua fala contém dor e luta, ela discorre sobre a

vida do escravo e sua labuta. Ela, também, fala do quilombo nos dias de hoje e com

muita emoção, grita para as pessoas presentes: Ser quilombola é sofrer, ser quilombola

é lutar, ser quilombola é resistir, ser quilombola é chorar, ser quilombola é

afirmar!Durante sua performance muitos quilombolas presentes se emocionam e o

silencio só é quebrado pela voz da própria Das Neves. Ao término de sua encenação ela

é fortemente ovacionada e quando sai da roda a capoeira volta a ser tocada e dançada.

Como enunciado no início deste tópico utilizo o método proposto por Turner

(2005), que em sua primeira instancia propõe a observação dos fatos externos. Na

observação das relações estabelecidas dentro do ritual e dos símbolos presentes neste, é

possível identificar a representação simbólica que se materializa no cenário da festa. O

fato de este ocorrer em um quilombo só fortalece os símbolos da identidade e da cultura

desse povo. As pessoas presentes são contagiadas com todo o contexto que representa o

lugar de vida dos quilombolas. O terreiro de Dona das Neves com todos os seus

símbolos fortemente enfatizados pelo ritual: o artesanato, as danças, a capoeira, a

música, a comida e é claro os próprios moradores expressam a intenção do rito na

perspectiva da festa de abolição da escravatura. Em segunda instancia analiso a

interpretação dos leigos e dos especialistas perante a festa. Nas falas de Donas das

Neves e do Wendel, que considero como especialistas do ritual, é possível observar a

ênfase dada à festa enquanto instrumento de emancipação do sujeito quilombola e de

sua cultura. Estes entendem que o negro é vista enquanto um sujeito inferior e veem a

necessidade de utilizar de rituais para que haja a promoção e a divulgação da cultura

negra como forma de emancipação do sujeito quilombola frente ao preconceito da

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sociedade. Os leigos, que considero em primeiro lugar os estudantes, afirmam a

existência de preconceito racial na sociedade em que vivem. Após comungarem da

realidade local no ritual, quando foram expostos à visão de mundo e aos símbolos

quilombolas, entendem que participar de rituais em uma comunidade negra possibilita

ter um contato profundo com o sujeito quilombola e sua cultura, ainda que subsumida à

ideologia hegemônica. Outros sujeitos que considero enquanto leigos, são os próprios

quilombolas que estão ali para apreciar o rito, estes afirmam a importância de ver a sua

cultura ancestral se renovando e perpetuando, sendo a mesma comtemplada e legitimada

por pessoas “de fora”.

Na minha visão entendo esse ritual com um ato de sociedade de afirmação de si

como quilombola por meio da resistência cultural. Os rituais e eventos ampliam,

acentuam e sublinham o que é comum em uma sociedade, segundo Peirano (2003),

sendo que no quilombo de Buriti do Meio, a luta pelos direitos quilombolas, assim

como a afirmação constante da identidade e da cultura são traços marcantes na vida

desse povo. A efervescência coletiva propiciada pelo ritual é sentida por todos a cada

momento, pois os acontecimentos do rito desde a gincana, onde se reproduz o cotidiano

da comunidade até à folia de reis, que recria os cantos dos primeiros moradores da

comunidade, representam traços ancestrais da cultura local. Esses traços possuem

grande valia para as pessoas que ali moram, pois é através destes símbolos que a

comunidade de Buriti do Meio se reproduz e resiste à uma sociedade que coloca estes

mesmo sujeito enquanto inferiores.

Ao final das apresentações culturais, as pessoas que fazem parte da organização

do evento, me incluindo novamente, iniciam uma reorganização do espaço da festa, para

dar início a terceira e última etapa do evento. Este é um momento em que há a presença

de uma maioria de pessoas de dentro da comunidade, tendo algumas outras vindas das

comunidades e cidades vizinhas.

A reestruturação do espaço se dá no sentido de transforma-lo, de um evento

temático da cultura negra, para um momento de entretenimento e descontração. O

primeiro espaço a ser colocado em evidencia é um balcão ao lado da casa do Wendel,

que tem a função de comercialização de bebidas alcoólicas e não alcoólicas. Assim, as

pessoas já entram em outra atmosfera do evento, que se inicia de fato com o inicio da

apresentação de uma banda de forró vinda de São Francisco no mesmo palco no qual

foram anunciadas as gincanas e as danças culturais. Este é um momento de

sociabilização das pessoas, em que a temática quilombola não é acionada, as pessoas

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dançam, bebem e se divertem em um contexto de festa, estão ali para se entreterem,

neste momento não há um apelo por direitos, por rememoração histórica ou menção à

resistência negra. São homens e mulheres, crianças e idosos que se fazem presente para

prestigiar a música e as próprias pessoas ali presentes.

O dia 26 de maio se caracteriza enquanto o momento de pós-rito. Este se dá pela

nova organização da festa, que agora precisa ser desmontada os itens que foram

emprestados ou alugados precisam ser devolvidos. Este é um momento experimentado

apenas por pessoas participaram do primeiro e do segundo momento.

Este é um momento de reflexão e de agradecimento por parte das pessoas que

organizaram a festa. É possível descobrir em uma conversa com Donas das Neves que

todo o evento é financiado pela família desta, que planeja com alguns meses de

antecedência e conta com o dinheiro arrecadado com o artesanato para que se possa

fazer o evento. Nessa intensa vivência da festa, das três esferas do evento, consegui

depreender a necessidade dessas pessoas de terem que recorrer a eventos como este para

que possa ser legitimado no âmbito regional, a identidade e o modo de vida quilombola.

É um trabalho árduo, pois estas pessoas não contaram com o apoio de nenhuma

instituição, nem para a organização, muito menos para o auxílio financeiro. Foi-me

possível ver mais de perto a reciprocidade que existe nas categorias de pensamento

destas pessoas do quilombo, pois muitas pessoas participaram da organização da festa,

mesmo sabendo que a quantia arrecada iria para a família de Dona das Neves, mas eles

o fizeram de modo a afirmar o seu apoio a este tipo de evento, de legitimar Dona das

Neves enquanto uma representante da comunidade. A atmosfera criada pela

coletividade de ajuda mútua foi tão forte, que mesmo eu, pesquisador de fora, fui

incluso em uma lógica recíproca, e passei a operar neste mesmo sistema simbólico,

apoiando de forma a se pensar no único objetivo, a realização da festa.

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Figura 16 - Dinâmica proposta pela gincana

Fonte: Opará, 2013

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Migrações sazonais: Entre o quilombo e a “firma”

Figura 17 – Estrada que sai do quilombo. Caminho feito pelos ônibus que levam as

pessoas para as “firmas”.

Fonte: RODRIGUES, Mauro, 2013

Irei transitar neste tópico pelos meandros das migrações e dos sujeitos, que nela

atracados, sempre partem e nunca chegam. A compreensão dessa dinâmica se inicia em

aspectos que já foram tratados, no caso do sistema produtivo, perpassando os aspectos

territoriais, familiares e identitários, que muitas vezes são inconscientes pelo próprio

migrante, que preso a essa lógica, só se preocupa em pensar quantos “pé de cana já

cortei?”.

A migração em Buriti do Meio se dá principalmente pela falta de mão-de-obra

na zona rural, sendo que esta é catalisada pelo estrangulamento do sistema produtivo.

Em um local onde não se pode plantar devido à alteração dos circuitos produtivos da

comunidade, não deixa alternativa para as pessoas que querem permanecer no

quilombo, ainda mais quando as “firmas” mandam alguns ônibus para buscarem os

trabalhadores em suas comunidades.

A exemplo da estrutura familiar e sua ligação com a migração, tomarei a família

de Dona das Neves para ilustrar essa constelação. Como já exposto anteriormente, Dona

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das Neves tem sete filhos: Davi, 17 anos, Walter, 19 anos, Mariana, 24 anos, José

domingos, 26 anos, Maria Cassia, 27 anos, Flávia, 29 anos e Manoel Luiz, 31 anos.

Sempre estão presentes na comunidade ou na região19

todos os filhos de Donas das

Neves, com exceção dos dois filhos homens mais velhos, José Domingos e Manoel

Luiz, que funcionam em um calendário ditado pela migração temporárias das lavouras

de cana-de-açúcar e de café.

Nesta constelação desenhada pela estrutura familiar de Donas das Neves é

possível estabelecer relações que perpassam as migrações. A começar pela relação do

gênero e da idade. Esta relação é definidora de perfis de migrantes, pois Davi e Walter

ainda se encontram estudando no ensino médio, estes estão sempre presentes na casa da

mãe, e quando vão longe é em alguma festa nas cidades vizinhas. As filhas mais velhas

que já se formaram no ensino médio, logo entraram para o ensino superior a distância, e

se encaixam em um tipo de migrantes, pois optaram por permanecerem no quilombo e

viajarem para a cidade uma vez na semana para poder cumprir com a carga horária da

faculdade. Os dois filhos homens mais velhos, já participam a algum tempo da migração

temporária, pois assim que terminaram o ensino médio tiveram a “oportunidade”,

quando o ônibus da “firma” foi ao quilombo buscar trabalhadores, de irem trabalhar nas

monoculturas do sul de Minas.

Essas migrações, tanto das mulheres em busca de estudo, quando a dos homens

em busca de recursos, tem um denominador comum, a permanência no território

quilombola. Estas pessoas tema possibilidade de mudarem de vez para a cidade para

sanar suas buscas e seus anseios, mas ao invés disto optam por permanecerem em seu

lugar de origem, onde tem suas famílias, seus amigos, sua casa. A estratégia de partir

para ficar pode ser encarada com um tipo de resistência, que de acordo com

Guha(1989), pode se configurar em uma resistência de evitação, sendo esta

caracterizada pela adoção de estratégias que possam garantir seus objetivos onde não

acontecerá o enfrentamento. Pois, estes quilombolas poderiam estar em processo de luta

política ou até mesmo luta armada (em uma visão extremista), para poder ter o direito

de permanecer em seus territórios, direito este garantido pela constituição federal, mas

como mostra a família de Donas das Neves, estas pessoas optam por estratégias mais

passivas, degradam os vínculos destes com a terras e com o território, mas conquistam

de alguma forma a possibilidade de permanecerem em suas terras. É claro que os dois

19

No caso das meninas Mariana, Maria Cassia e Flávia, que fazem faculdade em São Francisco.

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tipos de migrações, aquela feita por homens e aquelas feita por mulheres, tem níveis de

violência simbólica, um tanto quanto diferenciados, pois uma pessoa que percorre 30

km uma vez por semana, tem seus sistema simbólico muito menos afetado do que uma

pessoas que percorre de 800 à 1000 km a cada quatro ou seis meses.

Ao deslocar-se 30 km, as alterações que se tem são mínimas, alterações em todas

as esferas, climática, cultural, geográfica. Essa distância faz com que as pessoas ainda

estejam em sua região, não alterando com tanta violência a lógica e o funcionamento

das coisas e das pessoas. Mas ao percorre uma distancia média de 900 km vários

aspectos mudam radicalmente. As mudanças proporcionadas pelas longas distâncias não

são negativas por si só, o que as torna negativa é o tipo de viagem que as pessoas do

quilombo têm acesso ao percorrem essa extensão. É o caso da migração temporária que

José de Souza Martins traz:

Geralmente, essas migrações combinam ciclos agrícolas distintos. São

migrações completamente dominadas e ritmadas pelo tempo cíclico das

estações do ano, do plantio, do crescimento e da colheita dos produtos

agrícolas. (MARTINS: pág. 49, 1986)

As situações mais significativas de migrações temporárias que podem ser

encontradas no Brasil mostram que a migração temporária é,

contraditoriamente, um modo de desatar os laços da família e, ao mesmo

tempo, um modo de atar o desenvolvimento do capital à exploração mais

intensiva da agricultura familiar (MARTINS: pág. 50, 1986)

Dessa maneira as pessoas estão presas em um circuito completamente paradoxal,

pois estão saindo de suas terras onde estão vivendo, no sentido literal da palavra, para

irem à locais distantes onde a única lógica que irão encontrar é a lógica do trabalho do

capital. Ao mesmo tempo, estes saem de suas terras para terem uma chance de viver

nelas, mas tem o outro lado da viagem, os que ficam. A migração então se torna em uma

faca de dois gumes, “cortando” a vida de dois sujeitos em um único processo, pois

quando José Domingos vai, Marineth (sua esposa) fica e eles vivem tempos e lógicas

diferentes. José vive no sul de Minas em função da quantidade de cana que conseguiu

cortar, enquanto Marineth vive em função dos animais, das plantas, das águas, das

pessoas. E quando José volta? Ele deixa todo seu funcionamento laboral para trás, no

sul? E como Marineth o percebe depois de tanto tempo? Sem dúvida as interferências

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70

que estas pessoas sofrem ao entrar em contato com ambientes nos quais a palavra de

ordem é “ganhar um trocado”, são imensas e o objetivo de permanecer em terras

ancestrais parece se descolar de seus propósitos.

As pessoas do Buriti do Meio que migram, tem a possibilidade de poder

trabalhar nas cidades e viver no quilombo, mas muitas das vezes o trabalho na cidade

proporciona mais coisas do que somente o recurso no final da temporada. As maiorias

das pessoas que migram não participam dos movimentos sociais, nem das lutas por

direitos ou reconhecimento enquanto quilombolas. Geralmente são pessoas que não

estão a pá da situação política da comunidade pois, como afirmado por José de S.

Martins em sua citação acima, que interpreta a migração temporária como:“um modo de

desatar os laços da família”. Acontece que há consequências graves quando estas

pessoas têm seus laços afetados, pois estes representam a conexão com a terra, com as

pessoas, com o ambiente. Se a relação da família nuclear é afetada, quem dirá as

relações com as outras pessoas, isso se dá devido ao “descolamento” com os vínculos

familiares e tradicionais para que possa aderir ao vínculo do capital e do trabalho, do

urbano e do “desenvolvido”. A violência simbólica sofrida por estas pessoas passa então

a ser explícita, pois carregam uma racionalidade tradicional, baseada na vivencia e na

experiência com seu ambiente e sua cultura que é desfigurada para dar lugar a uma

racionalidade funcionalista, baseada nas demandas do capital e da modernidade. Assim

como explica:

As atividades de produção em tempos antigos eram caracterizadas como

atividades de subsistência e possibilidade de permanecia no campo. As

relações de trabalho relatadas não se baseavam apenas nas leis de mercado.

As ações econômicas dos indivíduos baseavam-se também em trocas entre as

famílias, parentes, vizinhos, imbricando valores de cooperações,

solidariedade e reciprocidade. (Paula et al: pág. 6, 2002)

Os tempos, os valores, as pessoas, os circuitos, todos estes são diferenciados no

caminho entre o quilombo e a “firma”. Afirmar que o sujeito tem a possibilidade de

permanecer em seu território através da estratégia migracional seria leviano, pois como

visto aqui, o individuo que migra não é aquele que permanece em seu território, estes

são sujeitos diferentes. Talvez o desejo inicial de um migrante seja a permanecia, mas

até quanto esta ideia ira permanecer defronte de seus olhos, quando estes estão sendo

vedados com cédulas imbuídas de valor simbólico.

Voltemos ao exemplo inicial da família de Dona das Neves, os dois filhos que

migram, constantemente ausentes, não participam das atividades quilombolas, muitas

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vezes planejadas e executadas pela própria mãe, como no caso da festa da abolição. O

distanciamento dos rapazes é perceptivo no cotidiano, uma vez que estas pessoas não

participam tão efetivamente da vida da comunidade, tendem a “flutuação”, pois não

estão nem aqui nem ali, não estão migrando, mas também não estão participando das

manifestações culturais. Neste cenário é preocupante a desagregação de pessoas na luta

quilombola, pois, esta luta só existe devido à um processo histórico de desigualdade,

catalisado por dispositivos constitucionais que legitimam essa luta, mas com a nova

“inclusão” do capital, ou seja, com a adesão de jovens ao sistema, através da migração

temporária desviasse de foco a luta, para dar lugar à alienação, pois em um sistema onde

pessoas são transformadas em indivíduos e estes transformados em força de trabalho,

não há espaço para cultura, muito menos para luta por direitos, sendo o sistema do

capital um grande desarticulador da comunidade quilombola.

Desde logo, é conveniente que se figa que exclusão, em si mesma, como

fenômeno isolado, é uma ficção – não existe exclusão propriamente dita. Na

sociedade capitalista, a rigor, não se pode haver exclusão; não pode existir

sociedade capitalista baseada na exclusão. Toda a dinâmica dessa sociedade se

baseia em processos de exclusão para incluir.(MARTINS: pág. 119, 2002)

O que faz o capitalismo, ao desenraizar as pessoas, é transforma-las em

proprietárias de uma única coisa: a sua força de trabalho. O desenraizamento

do camponês não está simplesmente em sua expulsão da terra. É reduzi-lo à

única coisa que interessa ao capitalismo, que é a condição de vendedor de força

de trabalho. (MARTINS: pág. 121, 2002)

O desenraizamento e a interferência das lógicas urbanas capitalistas na vida dos

quilombolas se torna um problema que preocupa os moradores, pois, uma vez que estas

pessoas vão para as “firmas” e tem seu eidos e seu ethos afetados, estes voltam e as

alterações não param nas individualidades, um indivíduo contamina o outro, aprende

com o outro, o migrante “tira vantagem” de suas roupas “modernas” e de seu dinheiro

acumulado ao longo dos meses. Ou seja, há um efeito dominó dentro do quilombo, as

coisas interferências se dão em todos os níveis.

“Hoje o problema da droga é muito grande aqui na comunidade. As pessoas

trazem de fora. Antes aqui ninguém ouvia falar disso, isso era coisa de

cidade, mas hoje em dia, a gente tem até que chamar polícia pra dar palestra

aqui na comunidade sobre as drogas, porque as pessoas que vão trabalhar

fora acaba caindo na conversa dos outros e voltam viciados, aí não tem jeito,

vem pra cá e trazem coisas que não é nossa. O povo que vai corta cana

mesmo, usa droga pra corta mais cana e ganhar mais dinheiro, mas não vê o

que ta fazendo com ele, e muito menos com a comunidade.” (Joana, 34 anos,

2013)

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No relato da Joana, presidente da associação, é possível visualizar claramente

como as influencias externas afetam a lógica e o funcionamento da comunidade, assim

como os indivíduos que saem do quilombo são afetados pela lógica do capital. Não há

como pular em um rio e sair dele sem que suas águas o toquem, assim como não há

como trabalhadores rurais passarem temporadas em centros urbanos, ou em pequenas

cidades onde trabalham nas monoculturas, sem que os ciclos tanto de suas identidades

quanto de suas cosmovisões sejam afetados.

É possível enxergar na estratégia dos quilombolas as duas faces da moeda. Pois,

a principio são sujeitos que foram vítimas da perda de suas terras e do complexo sistema

produtivo que possuíam, forçados a adotarem algum tipo de estratégia que os tiraria

daquela situação. Portanto são “agressivamente20

” incluídos pelo capitalismo enquanto

mão de obra barata que servem de combustível humano para a agroindústria. Ao mesmo

tempo estes estão em um contexto de retomada dos territórios ancestrais, a partir de

lutas e movimentos sociais. Mas estes são neutralizados com a alienação do capital, que

deixa o quilombola estéril, pronto para cortar mais mil pés de cana.

20

Me remeto a este termo devido a estratégias utilizadas pelas empresas de enviarem ônibus as comunidades rurais em busca de trabalhadores.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O Sertão é de Preto!

O objetivo deste estudo monográfico foi a discussão das dinâmicas presentes

tanto nas identidades dos sujeitos em questão, quanto nos territórios ocupados por estas

pessoas. Reforço neste contexto a importância da minha pesquisa etnográfica para a

compreensão destas esferas da vida em Buriti do Meio, assim como um interação de

respeito mútuo, onde estas pessoas me acolheram em suas casas e abriram não somente

as portas de seus lares, mas também as suas vidas, suas crenças, seus pensamentos e

suas confiança.

Pude observar os quilombolas em seu cotidiano, no campo, no artesanato, na

partida para a viagem de trabalho, nas viagens para estudo. Estas experiências deram a

vivencia necessária para apreender como estas pessoas lidam com a batalha da vida,

como elas se posicionam frente às dificuldades, ou seja, como a identidade é acionada

nas relações em que os quilombolas têm com o mundo da vida. Nesse âmbito pude

entender quão importante é para estas pessoas uma identidade legitimada pelo Estado,

pois se veem dotados de uma força simbólica para lidar com as dificuldades impostas

pelo contexto social e histórico.

A identidade quilombola ao contrário do que eu esperava encontrar, apresenta

um caráter diverso, estas pessoas não são indivíduos estáticos que tem lógicas simples

de funcionamento devido à sua localização no rural. Os indivíduos do quilombo são tão

complexos e profundos quanto qualquer outro indivíduo moderno.

Um exemplo desta elasticidade encontrada nas identidades em Buriti do Meio,

foram os três recortes, ou três esferas em que pude ter acesso aos sujeitos e suas

manifestações autênticas. Pude perceber o quanto estas pessoas movem suas identidades

de acordo com o contexto em que estão posicionadas, como uma navegação social

propiciada pelas identidades. No contexto do “sujeito de direito” é inegável o quanto

uma identidade se torna importante e como as pessoas da comunidade ressignificam

estas identidades de acordo com a cultura local, e mais que isso, de acordo com o

contexto vivido por eles. Na busca do reconhecimento como quilombola são muitas as

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74

lutas, inclusive internas, afinal o ser quilombola ainda é uma construção dentro da

comunidade.

No contexto da festa, a identidade é um instrumento de performance, um

símbolo de afirmação e resistência. É mais um momento onde as pessoas dos quilombo

ressignificam um símbolo identitário para que possam instituir e legitimar localmente

uma cultura própria, um modo de vida específico e ser reconhecido e respeitado pela

sociedade. Esse mesmo individuo que nas duas ocasiões citadas acima, tem o poder de

ressignificar e de apresentar uma identidade de acordo com uma cultura local, tem sua

identidade “desarticulada” ao ter que recorrer a migração enquanto estratégia de

reprodução. Ou seja, a mesma pessoa que estava na festa da abolição da escravatura

afirmando sua identidade negra e seus antepassados históricos de rica tradição, agora se

vê forçado a adotar uma identidade que está exposta à influencia e ressignificações

externas a partir do contato com o mundo do capital e suas dinâmicas demandadas por

ele.

No âmbito das dinâmicas territoriais, o principal fator que entra em pauta é a

expropriação territorial. Este fator sendo ligado à historia dessas pessoas devido à sua

posição na pirâmide social. Pude entender que o sistema produtivo destas pessoas está

ligado de forma intrínseca à seu território, a sua maneira histórica de apropriação das

terras ao longo dos séculos pelos seus antepassados. Mas nesta lógica de território, e

não simplesmente de terra, a expropriação não pode ser sanada apenas com a aquisição

de outras terras, a necessidade destas pessoas é das suas terras históricas, pois somente

nelas é possível de se regatar um sistema que foi construído historicamente, somente a

partir da restauração deste território específico, podem ser restauradas as dinâmicas

sustentáveis que uma vez existiram ali, assim como o reestabelecimento do

metabolismo homem/natureza.

Ao entrar no contexto territorial consigo enxergar um denominador comum entre

as identidades assumidas pelos quilombolas. Porque, ao questionar qual foi o impulso

que gerou um sujeito migrante que se permite sair de sua lógica de vida para enfrentar

uma lógica do capital, a resposta advém do território expropriado.

Ao ponderar sobre a necessidade da identidade quilombola enquanto sujeito de

direito e sua apropriação pelos moradores de Buriti do Meio, e da luta dessas pessoas

para que fossem reconhecidos enquanto tal, mais uma vez encontro a raíz no território

expropriado. E na última esfera, o questionamento da necessidade destas pessoas, se

articularem localmente para lançarem uma festa da abolição da escravatura, sem

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nenhum apoio institucional e mobilizarem a região para presenciar este evento, vejo

estas pessoas lutarem por um reconhecimento, por uma afirmação para que seu direito

ao território seja garantido.A realização da festa é um símbolo de resistência e de

afirmação dos negros do lugar, é a celebração da vida e a manifestação de prosseguir na

luta.

A compreensão final deste trabalho é que é a questão territorial que aciona as

identidades. Este foi o fator pelo qual os sujeitos “compraram um briga” institucional

com o Estado e com os fazendeiros, foi o motivo pelo qual estas pessoas assumiram

para si uma identidade que foi criada pela constituinte de 1988, assim como foi motivo

pelo qual estes são forçados a alterarem radicalmente suas formas de reprodução da vida

como no caso da migração. Com este entendimento passo a compreender de maneira

profunda a necessidade que estas pessoas tem de reaverem seus territórios ancestrais. Os

quilombolas querem seus territórios para a reprodução material e simbólica da vida, é

nele e somente nele em que o seu sistema produtivo funciona, é somente nele em que a

mãe d’agua espera pacientemente que as matas cresçam, é só nestas terras de ancestrais

que a cultural do negro acontece.

Os pretos em Buriti do Meio dançam, cantam, trabalham, parte e voltam, fazem

no cotidiano uma “lida” diária buscando a manutenção da terra. É na festa, no migrar,

no fazer o pote de barro, na luta pelos seus direito que o povo do Sertão grita: o Sertão

é de Preto!

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