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1 0814261-21.2007.4.02.5101 (2007.51.01.814261-1) AUTOR: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL REU: JOAQUIM RIBEIRO FILHO E OUTROS CONCLUSÃO Nesta data, faço estes autos conclusos a(o) MM (a) . Juiz(a) da 3ª Vara Federal Criminal/RJ. Rio de Janeiro, 07 de março de 2013 ANDREIA AZEVEDO Diretor(a) de Secretaria (Sigla usuário da movimentação: JRJIZD) SENTENÇA D2 - ABSOLUTÓRIAS 1- Relatório: Trata-se de ação penal promovida pelo Ministério Público Federal em face de Joaquim Ribeiro Filho, Eduardo de Souza Martins Fernandes, Giuliano Ancelmo Bento, João Ricardo Ribas Júnior e Samanta Teixeira Basto, qualificados nos autos. A punibilidade dos réus Eduardo de Souza Martins Fernandes, Giuliano Ancelmo Bento, João Ricardo Ribas Júnior e Samanta Teixeira Basto foi extinta, por sentença, em virtude do cumprimento das condições impostas nas respectivas propostas de suspensão do processo, remanescendo a ação penal em face de Joaquim Ribeiro Filho a quem, na qualidade de médico-cirurgião, o MPF imputa responsabilidade criminal por supostas preterições em fila de espera por transplantes de fígado. A denúncia foi recebida em 29/07/2008, conforme decisão de fls. 2364/2365, ocasião em que foi, ainda, decretada a prisão preventiva de Joaquim Ribeiro Filho e parcialmente deferido o pleito de busca e apreensão. FAC de Joaquim Ribeiro Filho às fls. 2434/2435 e 2519/2521. Audiência realizada em 06/08/2008, conforme fls. 2488/2489, na qual foi oferecida pelo MPF proposta de suspensão condicional do processo aos acusados Giuliano Ancelmo Bento, João Ricardo Ribas Júnior e Samanta Teixeira Basto, a qual restou aceita. Audiência realizada em 13/08/2008, conforme fls. 2532/2534, na qual o Juízo julgou improcedente, em parte, a pretensão punitiva em relação a Eduardo de Souza Martins Fernandes, no que tange à imputação de peculato consumado, no caso do transplante de fígado realizado em Carlos Augusto de Alencar Arraes. Em seguida, o MPF ofereceu proposta de suspensão condicional do processo ao referido acusado, com relação à segunda imputação (peculato tentado), a qual restou aceita. Por fim, foram 134 Assinado eletronicamente. Certificação digital pertencente a Fabricio Antonio Soares. Documento No: 15502477-101-0-134-34-470821 - consulta à autenticidade do documento através do site www.jfrj.jus.br/autenticidade

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0814261-21.2007.4.02.5101 (2007.51.01.814261-1) AUTOR: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL REU: JOAQUIM RIBEIRO FILHO E OUTROS

CONCLUSÃO

Nesta data, faço estes autos conclusos a(o) MM(a). Juiz(a) da 3ª Vara Federal Criminal/RJ.

Rio de Janeiro, 07 de março de 2013

ANDREIA AZEVEDO Diretor(a) de Secretaria

(Sigla usuário da movimentação: JRJIZD)

SENTENÇA D2 - ABSOLUTÓRIAS 1- Relatório:

Trata-se de ação penal promovida pelo Ministério Público Federal em

face de Joaquim Ribeiro Filho, Eduardo de Souza Martins Fernandes, Giuliano

Ancelmo Bento, João Ricardo Ribas Júnior e Samanta Teixeira Basto, qualificados nos

autos.

A punibilidade dos réus Eduardo de Souza Martins Fernandes, Giuliano

Ancelmo Bento, João Ricardo Ribas Júnior e Samanta Teixeira Basto foi extinta, por

sentença, em virtude do cumprimento das condições impostas nas respectivas propostas

de suspensão do processo, remanescendo a ação penal em face de Joaquim Ribeiro

Filho a quem, na qualidade de médico-cirurgião, o MPF imputa responsabilidade

criminal por supostas preterições em fila de espera por transplantes de fígado.

A denúncia foi recebida em 29/07/2008, conforme decisão de fls.

2364/2365, ocasião em que foi, ainda, decretada a prisão preventiva de Joaquim Ribeiro

Filho e parcialmente deferido o pleito de busca e apreensão.

FAC de Joaquim Ribeiro Filho às fls. 2434/2435 e 2519/2521.

Audiência realizada em 06/08/2008, conforme fls. 2488/2489, na qual foi

oferecida pelo MPF proposta de suspensão condicional do processo aos acusados

Giuliano Ancelmo Bento, João Ricardo Ribas Júnior e Samanta Teixeira Basto, a qual

restou aceita.

Audiência realizada em 13/08/2008, conforme fls. 2532/2534, na qual o

Juízo julgou improcedente, em parte, a pretensão punitiva em relação a Eduardo de

Souza Martins Fernandes, no que tange à imputação de peculato consumado, no caso do

transplante de fígado realizado em Carlos Augusto de Alencar Arraes. Em seguida, o

MPF ofereceu proposta de suspensão condicional do processo ao referido acusado, com

relação à segunda imputação (peculato tentado), a qual restou aceita. Por fim, foram

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interrogados os réus Joaquim Ribeiro Filho, às fls. 2535/2539, e Eduardo de Souza

Martins Fernandes, às fls. 2540/2542.

O réu Joaquim Ribeiro Filho foi reinterrogado à fl. 3540, na modalidade

audiovisual.

Ofício da Polícia Federal de apresentação do material apreendido na

“operação fura-fila”, às fls. 2561/2562, cujos termos de acautelamento se encontram às

fls. 2639/2645.

Defesa prévia de Joaquim Ribeiro Filho, às fls. 2653/2677, acerca da

qual se manifestou o MPF às fls. 2692/2695.

Decisão proferida pelo TRF-2ª Região, nos autos do HC nº

2008.02.01.012261-3, para declarar que a restrição quanto à comunicação com corréus

ou testemunhas, imposta pela decisão que deferiu a liminar a Joaquim Ribeiro Filho,

cuja cópia se encontra às fls. 2726/2734, não diz respeito a Eduardo de Souza Martins

Fernandes nem a Carlos Augusto Arraes (fls. 2711/2712).

Fl. 2716. Decisão proferida nos autos do HC nº 2008.02.01.012261-3,

concedendo a ordem para confirmar a liminar anteriormente deferida, no que toca à

prisão preventiva de Joaquim Ribeiro Filho, e determinando que seu afastamento das

funções no Hospital Clementino Fraga Filho se dê apenas em relação aos procedimentos

cirúrgicos relativos a transplantes hepáticos, devendo retornar às atividades inerentes à

atividade de médico e professor.

Fl. 2752. Decisão de indeferimento, pelo Juízo, de pedido da defesa de

Joaquim Ribeiro Filho para a apresentação de resposta à acusação, na forma da Lei

11.719/2008.

Fl. 2795. Decisão determinando a autuação em apartado do traslado das

alegações preliminares de Joaquim Ribeiro Filho, nas quais havia menção à exceção de

suspeição do Juízo, a qual fora julgada improcedente pela 2ª Turma Especializada do

TRF-2ª Região.

Acórdão nos autos do HC nº 2008.02.01.012261-3, em embargos de

declaração, declarando que a restrição imposta ao paciente quanto à realização de

transplantes hepáticos diz respeito apenas à sua atuação na rede pública de saúde (fl.

2867).

Oitiva das testemunhas de acusação Itamar Coppio (carta precatória),

Edílson Duarte dos Santos (carta precatória), Ellen Elizabeth Macedo Barroso

(audiovisual), Lúcio Filgueiras Pacheco Moreira (audiovisual), Luiz Claudio Lerner

(audiovisual), Maria do Socorro Z. Dutra (audiovisual), Rodrigo Martinez (audiovisual),

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Rafael Ferreira da Costa (audiovisual), Henrique Sérgio Moraes Coelho (audiovisual),

Ricardo Antônio Refinettti (audiovisual), Carlos Roberto Cabral (audiovisual) e

Vinicius Gomes da Silveira (audiovisual), às fls. 2934/2935, 2968/2969, 3335, 3336,

3343, 3344, 3345, 3353, 3354, 3365, 3366 e 3367, respectivamente.

Decisão de fls. 3017/3019, na qual foi afastada a preliminar de inépcia da

denúncia, rejeitados os pleitos de anulação do feito e de degravação dos áudios do

monitoramento e deferido o pedido de empréstimo da prova colhida nos autos (petição

do MPF às fls. 2991/2998).

Ofício nº 211/2009 da Coordenação Geral da Central Estadual de

Transplantes, encaminhando a lista completa dos transplantes de fígado cadavéricos

incluindo as modalidades “dominó” e “split”, e indicando a instituição transplantadora,

às fls. 3293/3301.

Ofício nº 07/2010 da Coordenação Geral do Sistema Nacional de

Transplantes, encaminhando as listagens de doações de fígado enviadas pelas Centrais

de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO) dos Estados de Minas

Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, de 2002 a 2008, bem como planilha contendo o

quantitativo de doações ocorridas no Brasil, no período de 2002 a 2010, e o número de

transplantes efetivamente realizados a partir dessas doações, às fls. 3315/3331.

Oitiva das testemunhas de defesa Rui Hadad (audiovisual), Silvio José de

Souza Martins (audiovisual), José Benvindo de Faria Neto (audiovisual), Marcos

Oliveira de Sousa (audiovisual), Regina Maria da Veiga Pereira (audiovisual), Adriana

Penha da Silva Riscado (audiovisual), Luiz Roberto Soares Londres (audiovisual),

Alexandre Pinto Cardoso (audiovisual), Pedro Túlio Monteiro de Castro e Abreu Rocha

(audiovisual), Juraci Ghiaroni de Albuquerque e Silva (audiovisual), Ricardo Miguel

Gomes Carvalho (audiovisual), Denise Carvalho da Costa (audiovisual), Adriana

Therezinha C. Souto Castanho de Carvalho (audiovisual), Miguel Arraes de Alencar

Filho (audiovisual), Wagner Cordeiro Marujo e Luiz Augusto Carneiro D’Albuquerque

(carta precatória com audiovisual), às fls. 3372, 3373, 3374, 3377, 3378, 3379, 3380,

3386, 3387, 3388, 3402, 3403, 3406, 3407 e 3344/3445, respectivamente.

Em diligências, o MPF requereu, à fl. 3470, a requisição de envio do

relatório da auditoria nº 6202.

Em diligências, a defesa de Joaquim Ribeiro Filho requereu, às fls.

3476/3479, o encaminhamento, pela Central Estadual de Transplantes do Rio de

Janeiro, de cópia de seu livro de ocorrências referentes aos períodos de 01/09/2006 a

31/12/2006 e de 17/05/2007 a 17/09/2007, o que foi deferido pelo Juízo.

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Certidão à fl. 3484, dando conta da abertura dos anexos 1 (para juntada

das cópias do livro de ocorrências da Coordenação Geral da Central Estadual de

Transplantes), 2 (para juntada da cópia do Processo Ético Disciplinar nº 1561 do

Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro) e 3 (para juntada de documentos

apresentados pela defesa em petição de fls. 3483 e 3487).

Certidão à fl. 3517, dando conta da abertura do apenso 4 (para juntada do

Relatório de Auditoria nº 6202).

Alegações finais do MPF, às fls. 3571/3623, requerendo a condenação do

réu Joaquim Ribeiro Filho, em concurso material, nas penas dos arts: a) 312, caput, c/c

327, § 2º, ambos do CP – desvio de órgão para a realização de transplante em Jaime

Ariston; b) 312, caput, do CP – desvio de órgão para a realização de transplante em

Carlos Augusto de Alencar Arraes; c) 299, parágrafo único, do CP – inserção de

declaração falsa na ficha de inscrição do paciente Carlos Augusto Arraes, com o fim de

habilitá-lo a figurar na lista única nacional de receptores de enxerto hepático; d) 299,

caput, do CP – inserção de declaração falsa em laudo médico, com o fim de induzir a

erro o Poder Judiciário no caso Arraes; e) 312, caput c/c art. 14, II, do CP, com a

aplicação da agravante prevista no art. 62, I, do CP – tentativa de desvio de órgão para

realização de transplante em favor de Frederico Sattelmeyer Junior.

Alegações finais da defesa de Joaquim Ribeiro Filho, às fls. 3635/3893,

requerendo a absolvição do réu.

Certidão de traslado de decisão em exceção de suspeição

(2009.51.01.800454-5), à fl. 3894.

Carta de fiscalização de Eduardo de Souza Martins Fernandes, às fls.

3912/3949.

Carta de fiscalização de João Ricardo Ribas Júnior, às fls. 3951/3984.

Carta de fiscalização de Samanta Teixeira Basto, às fls. 3986/4010.

Carta de fiscalização de Giuliano Ancelmo Bento, às fls. 4037/4069.

O MPF manifestou-se pela extinção da punibilidade dos réus Eduardo de

Souza Martins Fernandes, João Ricardo Ribas Júnior, Samanta Teixeira Basto e

Giuliano Ancelmo Bento, devido ao cumprimento das condições impostas e ao decurso

do prazo do sursis processual, sem revogação (fl. 4125). Às fls. 4130/4131, foi proferida

sentença, declarando extinta a punibilidade dos referidos réus, com fundamento no art.

89, § 5º, da Lei 9.099/95.

Às fls. 4113/4413, foi requerida pelo MPF a juntada do pedido de

extensão do sigilo telefônico apresentado pelo Procurador da República responsável

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pela ação civil pública nº 2009.51.01.023884-1, ajuizada contra os réus Joaquim Ribeiro

Filho e Eduardo de Souza Martins Fernandes, de maneira a permitir a utilização da

transcrição do monitoramento telefônico perante o Juízo cível, o que foi deferido à fl.

4119.

É o relatório. Decido.

2- Fundamentação:

2.1- Preliminares:

A defesa arguiu a incompetência do Juízo, sob o argumento de que o

inquérito policial que gerou esta ação penal foi distribuído a esta 3ª Vara Federal

Criminal por dependência aos autos do inquérito policial nº 2004.51.01.502233-2, sem

que houvesse conexão.

A defesa arguiu ainda, a suspeição do MM. Juiz Federal Lafredo Lisboa

Vieira Lopes, sustentando que o referido magistrado teria antecipado juízo de valor

sobre o mérito da ação penal, além de haver participado ativamente da investigação

policial.

Por fim, a defesa alegou nulidade da prova decorrente da interceptação

telefônica, uma vez que a decisão que determinou a realização da medida não teria

demonstrado sua imprescindibilidade, conforme determina a lei de regência, e não teria

sido fundamentada.

Inicialmente, afasto a preliminar de incompetência do Juízo, renovada

pela defesa em sede de alegações finais, por já haver sido apreciada na exceção de

incompetência nº 0811862-82.2008.4.02.5101, cujo teor reproduzo a seguir:

“Por despacho de 5.12.2007, esse MM Juízo determinou a distribuição do IPL n. 2386/2007 (2007.51.01.814261-1) por dependência ao IPL 1826/2003 (2004.51.01.502233-2), ambos da DELEFAZ, em atenção a ofício da autoridade policial que assim sugeria, com base em unidade de autoria, semelhança de condutas e unicidade de linha investigatória. Referido despacho está às fls.727 dos autos do IPL n. 2386/2007 no ofício, imediatamente antes. O excipiente alega que esse MM. Juízo errou ao determinar a distribuição nesses moldes, com invocação de dois argumentos consecutivos: (1) esse MM Juízo não teria competência específica para os crimes narrados na denúncia, e (2) não haveria conexão entre o transplante apurado no IPL n. 1286/2003 e os transplantes apurados no IPL 2386/2007. A conexão probatória é, contudo, evidente. O modo de execução dos desvios de órgão narrados na denúncia é amplamente semelhante, em especial nos casos de Jaime Ariston e Frederico Satelmeyer, cada qual apurado em um dos inquéritos policiais. Esses dois casos envolvem atividade probatória relativa aos critérios de utilização de fígado marginal, tanto os gerais quanto os concretamente

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aplicados, bem como ao funcionamento e à administração da lista única e à dispensa de pacientes que já estavam internados em preparação para a cirurgia de transplante. O caso de Carlos Augusto Arraes, embora não tenha envolvido a temática do fígado marginal, envolve, de todo modo, atividade probatória relativa ao funcionamento e à administração da lista única, imbricando-se com os outros dois por essa vertente. A prova relativa à utilização do fígado marginal e ao funcionamento e à administração da lista única nacional aproveita aos fatos apurados em um e outro inquérito policial. Exemplifico com a ata de reunião, objeto de referência na denúncia, que revela a adoção, pela Câmara Técnica do Fígado deste Estado, de critérios de qualificação de fígados como marginais. Essa ata constitui prova documental produzida no caso de Jaime Ariston, apurado no primeiro inquérito policial, mas inteiramente influente na prova do caso de Frederico Sattelmeyer, apurado no segundo inquérito policial. Exemplifico, ademais, com o interrogatório em juízo de Eduardo de Souza Martins Fernandes, que, embora limitado ao caso de Frederico Sattelmeyer, elucida relevantes aspectos do modo de preterição da lista única e influi na prova do caso de Jaime Ariston. É induvidosa, desse modo, a conexão probatória entre os fatos apurados em um e outro inquérito, a atrair a aplicabilidade do art. 76, III, do Código de Processo Penal e ensejar a reunião dos feitos. (...) Oficio, ante o exposto, pela improcedência da exceção.” E penso que S. Exª deu a resposta adequada à pretensão do excipiente, esgotando a matéria. Daí porque, adotando como razões de decidir os dizeres do douto representante do Ministério Público, REJEITO a presente exceção de incompetência.”

Quanto à alegada suspeição do MM. Juiz Federal Lafredo Lisboa Vieira

Lopes, que instruiu o feito, também renovada em sede de alegações finais, rejeito-a,

uma vez que a matéria restou decidida, em definitivo, pelo TRF-2ª Região, conforme

decisão de fls. 2943/2945.

Rejeito, por fim, a alegação de nulidade da prova decorrente da

interceptação telefônica, uma vez que as decisões judiciais que autorizaram a quebra do

sigilo das comunicações telefônicas foram devidamente fundamentadas.

Afastadas as preliminares arguidas, passo ao exame do mérito.

2.2- Mérito:

2.2.1- Dos fatos narrados na denúncia e da correta classificação do tipo penal:

Conforme narra a denúncia, entre setembro de 2003 e agosto de 2007,

Joaquim Ribeiro Filho, médico-cirurgião lotado no Hospital Universitário Clementino

Fraga Filho, vinculado à UFRJ, e coordenador da equipe médico-cirúrgica autorizada

pelo Ministério da Saúde a realizar transplantes hepáticos – o que lhe conferia o poder

de inscrever receptores na lista única nacional –, teria realizado ao menos dois

transplantes e teria tentado ao menos mais um, sem observar, de forma dolosa, a ordem

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de prioridades estabelecida em lista única nacional, instrumento do Sistema Nacional de

Transplantes, organizado pelo Ministério da Saúde.

Ainda segundo a denúncia, o réu Joaquim Ribeiro Filho teria destinado

fígados a pacientes internados em estabelecimento hospitalar privado, mediante o

pagamento de vantagem pecuniária, falseando os critérios legais e regulamentares sobre

a classificação e a destinação dos órgãos, classificando-os como marginais, fora do

padrão ou sub-ótimos, classificação então inexistente na legislação brasileira, e que não

desobrigaria a Administração Pública de oferecê-los à lista única nacional.

Os pacientes então beneficiados pelo transplante de fígado realizado pelo

réu Joaquim Ribeiro Filho seriam Jaime Ariston de Araújo Sobrinho (caso 1) e Carlos

Augusto de Alencar Arraes (caso 2). O paciente Frederico Sattelmey Júnior (caso 3) não

teria sido transplantado por circunstâncias alheias à vontade do réu.

Em síntese, nos termos do descrito na denúncia, o réu Joaquim Ribeiro

Filho, médico-cirurgião, teria inobservado a lista única para transplante de fígado, cuja

matéria se encontra disciplinada na Lei 9.434/1997 e no Decreto 2.268/1997, que a

regulamentou, razão pela qual estaria incurso, em tese, nas penas do art. 312 do Código

Penal (peculato) ou, alternativamente, nas penas do art. 16 da referida Lei 9.434/1997.

Reproduzo, a seguir, os dispositivos legais:

Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

Art. 16 - Realizar transplante ou enxerto utilizando tecidos, órgão ou partes do corpo humano de que se tem ciência terem sido obtidos em desacordo com os dispositivos desta Lei. Pena: reclusão, de um a seis anos, e multa, de 150 a 300 dias-multa.

O art. 16 da Lei 9.434/1997 referencia norma do próprio texto legal, no

caso, o art. 10:

Art. 10 - O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. (grifei) (...)

Cotejando a leitura dos dispositivos legais mencionados e os casos

narrados na denúncia, verifico que a conduta do réu Joaquim Ribeiro Filho, de,

supostamente, não haver observado a lista única para a realização dos transplantes de

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fígado, estaria, em tese, tipificada no art. 16 da Lei 9.434/1997, que, por sua vez, é

regulamentado pelo art. 24, § 4º, do Decreto 2.268/1997, e, não, no art. 312 do Código

Penal.

Isso porque a equiparação de parte do corpo humano a bem móvel, ainda

que post mortem e doada para o Poder Público com o fim de transplante terapêutico,

visando ao enquadramento no art. 312 do CP, constituiria interpretação extensiva

desarrazoada e não admitida no âmbito do direito penal, além de ir de encontro ao

princípio da especialidade, uma vez que a matéria se encontra regulada em lei

específica.

Em 1997, o Ministério da Saúde elaborou lista única abrangendo todos os

pacientes inscritos na Central de Transplantes (CT) da Secretaria Estadual de Saúde,

obedecendo a um critério constante que determina quem deve ser transplantado, ou seja,

quem deve ser o receptor do enxerto. Assim, durante dez anos, a lista obedeceu a um

critério cronológico de prioridade, objetivo e de fácil controle, pelo qual eram

transplantados os inscritos conforme sua data de inscrição. Todavia, pacientes menos

graves eram transplantados antes de outros mais graves os quais faleciam durante a

espera.

A partir de 15/07/2006, após ampla discussão, o critério adotado passou a

ser a gravidade, ou seja, transplantavam-se, primeiro, os mais graves, já que os menos

graves poderiam, em tese, aguardar devido à sua maior reserva funcional. Para tanto,

adotou-se o critério MELD/PELD (Model for End-Stage Liver Disease) que calcula a

gravidade de cada caso por fórmula matemática baseada em resultados numéricos de

exames laboratoriais.

Nesta ação penal, o primeiro caso descrito na denúncia, relativo ao

paciente Jaime Ariston de Araújo Sobrinho, trataria de situação especial em que o

fígado enxertado não se encontrava em estado ideal, porém apto a ser transplantado e

salvar vida, sendo classificado, no meio médico, como “fígado marginal”, nomenclatura

hoje conhecida como fígado limítrofe.

O segundo caso, relativo ao paciente Carlos Augusto de Alencar Arraes,

referir-se-ia a transplante de fígado normal, em desacordo com os critérios adotados na

lista de inscritos.

O terceiro caso, relativo ao paciente Frederico Sattelmeyer Júnior,

também trataria de enxerto de fígado supostamente marginal, o qual não chegou a ser

implantado.

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É de ressaltar a relevância do bem jurídico tutelado, consubstanciado na

moralidade da doação de órgãos do corpo humano, com vistas à preservação da

integridade física, da dignidade e da vida humanas.

Assim, toda vez que, em assistência médica, a demanda é maior que a

possibilidade de atendimento, é necessário estabelecer um critério de prioridade, ou

seja, a quem atender primeiro. Essa situação mostra-se concreta e de grande importância

no caso dos transplantes, uma vez que, para deles se beneficiar, são inscritos somente

pacientes sem outra forma de tratamento capaz de evitar sua morte em curto prazo.

Cabe, então, ao médico-cirurgião avaliar o estado do órgão e

compatibilizar o receptor adequado de acordo com a lista de transplante. Contudo, a

destinação do órgão mostra-se controvertida quando se trata de fígado marginal, não

havendo lei ou norma reguladora específica para o caso concreto, sendo certo que, na

prática médica, situações especiais e não reguladas anteriormente podem proporcionar a

não observância dos preceitos médicos e éticos, e até legais, no caso, a Lei 9.434/1997

que, especificamente em seu art. 16, tutela o bem jurídico no contexto da doação de

tecidos, órgãos e outras partes do corpo humano, bem como a preservação da

integridade física e da vida humana.

Feitas essas considerações iniciais e firmada a classificação do crime,

subsumindo os fatos descritos na denúncia ao tipo previsto no art. 16 da Lei 9.434/1997,

passo à análise individualizada de cada caso.

2.2.2- Transplante realizado no paciente Jaime Ariston de Araújo Sobrinho:

Segundo o MPF, Joaquim Ribeiro Filho, na condição de médico-

cirurgião especializado em transplantes hepáticos com notório conhecimento da

legislação que regula a captação e a distribuição de fígados a serem implantados em

doentes graves inscritos na lista única nacional, teria ocupado diversos cargos de chefia

e, sobretudo, o de coordenador da Central de Notificação, Captação e Distribuição de

Órgãos do Estado do Rio de Janeiro, por quase quatro anos, e, por estas razões,

dominaria a regulamentação legal pertinente aos transplantes no Brasil.

Além do exercício de cargos na Administração Pública Federal e

Estadual, Joaquim Ribeiro Filho possuiria uma clínica particular – Centro

Hepatobiliopancreático do Rio de Janeiro –, a qual contaria com a mesma equipe

médica por ele chefiada no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho.

O réu teria, ainda, permissão para inscrever, na lista única de receptores,

pacientes públicos ou particulares que reunissem os requisitos previstos na legislação

para receberem o transplante de fígado, bem como para captar órgãos e realizar

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cirurgias, caso os pacientes inscritos por ele ou por sua equipe gozassem de prioridade

na lista única nacional.

Segundo o MPF, não haveria irregularidade na realização de transplantes,

mediante a cobrança pelos serviços médicos prestados, em pacientes tratados em

estabelecimento particular, porém seria imprescindível a observância da lista única

nacional para que o paciente recebesse o órgão, fosse ele da rede pública ou da rede

particular de saúde.

O réu Joaquim Ribeiro Filho, porém, ao menos em três episódios, teria se

valido de expedientes ardilosos para desviar, dolosamente, órgãos que deveriam ter sido

destinados a pacientes com preferência na fila.

No caso Jaime Ariston de Araújo Sobrinho, o MPF afirma que, a partir

dos prontuários médicos, relatórios, depoimentos e circunstâncias que envolveram o

transplante de fígado realizado em favor do referido paciente, no Hospital Universitário

Clementino Fraga Filho, em 24/07/2003, não haveria dúvidas de que o réu, na qualidade

de chefe da equipe de transplantes hepáticos do HUCFF e de coordenador da

CNCDO/RJ, desviou, dolosamente, órgão da lista única nacional, em detrimento de

pacientes que precediam Jaime Ariston na fila de espera por um transplante de fígado.

Lembrou, o MPF, que Jaime Ariston de Araújo Sobrinho seria irmão do

então Secretário de Transportes do Estado do Rio de Janeiro, Augusto Ariston, e que o

réu teria determinado à sua equipe a realização do transplante em favor de Jaime

Ariston, mesmo ciente de que ele não ostantava prioridade na lista única nacional, tanto

que ocupava a 32ª posição.

Ressaltou, ainda, que, conforme depoimentos colhidos às fls. 1055/1064,

ratificados às fls. 3336/3337, fls. 1179/1189 e 1551/1556, o anterior coordenador da

Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Rio de Janeiro

(CNCDO/RJ), Dr. Roberto Chabo, viria sofrendo pressão do então Secretário de Saúde

Gilson Cantarino O’Dwyer, para furar a fila de transplantes hepáticos em favor de Jaime

Ariston. Todavia, diante de sua recusa, o médico Roberto Chabo teria sido substituído

pelo réu na coordenação do CNCDO/RJ, após nomeação efetivada em desacordo com o

Estatuto do Rio Transplante. Ademais, apenas dois dias após sua nomeação, o réu teria

consentido na realização do transplante hepático em favor de Jaime Ariston no HUCFF,

com inobservância dolosa da lista única nacional, a qual, à época, possuía o critério

cronológico de inscrição para ordenar os pacientes.

Com o fim de justificar sua conduta, o réu teria classificado o fígado

transplantado em Jaime Ariston como marginal, por, supostamente, apresentar “bordas

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rombas”, o qual, embora apresente características não ideais e não tenha previsão na

legislação brasileira, seria amplamente aceito pela comunidade médica no Brasil e no

exterior.

Ocorre que a caracterização do fígado como marginal não autorizaria a

inobservância da ordem de precedência da lista única nacional, razão por que deveria o

órgão ser oferecido à lista única para que fosse aproveitado com observância da ordem

de prioridade da fila de espera nacional.

Ainda segundo o MPF, no boletim operatório elaborado pela Dra. Inary

Bueres, o fígado transplantado em Jaime Ariston seria descrito como normal, conforme

fls. 353/354 do anexo 2, volume 2. A médica teria, ainda, declarado que o fígado seria

utilizável e sem alterações significativas, conforme fls. 298/299 do apenso 1 do IPL

1826/2003. Todavia, ao prestar declarações no procedimento administrativo instaurado

no CREMERJ, teria ventilado a possibilidade de o órgão apresentar “bordas rombas”.

Da mesma forma, o cirurgião que realizou o transplante em Jaime

Ariston, Dr. Vinícius Gomes da Silveira, teria afirmado que o fígado utilizado seria

normal (fls. 3367/3368 – áudio KT_248~560_VIDEO ’03:14/04:00’).

Assim, se se tratasse de fígado marginal, no prontuário médico de Jaime

Ariston deveria haver menção à anormalidade do fígado nele implantado, para fins de

registro e do aumentado risco de não funcionamento ou de complicações pós-

transplante.

Conforme depoimento prestado à fl. 1058 e ratificado em Juízo, a

testemunha Lúcio Pacheco, cirurgião integrante da equipe de transplantes de fígado do

Hospital Geral de Bonsucesso (HGB), afirmou que a equipe do HUCFF, chefiada pelo

acusado, comumente descrevia os órgãos captados de forma a concluir por sua

imprestabilidade e implantá-los em pacientes particulares, com preterição da lista única

nacional. Isso teria instado os cirurgiões de transplantes hepáticos do HGB, indignados

com as “furadas de fila”, a formularem pedido à CNCDO/RJ, para acompanhar a

captação de órgãos pela equipe chefiada pelo réu (fl. 1065).

Para o MPF, o réu não teria comprovado a alegação de que os pacientes

que precediam Jaime Ariston na lista única não estariam dispostos a receber o fígado

marginal, conforme declaração prestada na sindicância instaurada junto ao CREMERJ –

fls. 147/148 do anexo 3 e em reinterrogatório – fls. 3540/3541, ou não poderiam ser

consultados a tempo (conforme versão apresentada em seu interrogatório à fl. 2536).

Nesse ponto, as testemunhas Rodrigo Martinez e Henrique Sérgio

Moraes Coelho, integrantes da equipe chefiada pelo réu, teriam declarado em Juízo, às

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fls. 3346 e 3355, que os pacientes assinavam termos tanto no caso de aceitação quanto

no caso de recusa e que incumbiria ao acusado comprovar que Jaime Ariston seria o

primeiro paciente da lista disposto e apto a receber o fígado supostamente considerado

marginal.

A ordem cronológica dos acontecimentos estaria, também, em desfavor

do réu, uma vez que o paciente Jaime Ariston fora internado às 16 horas do dia

24/07/2003, para a realização de procedimentos pré-operatórios ao transplante no

HUCFF, e o procedimento de captação e preparação do órgão se encerrara às 18 horas,

o que revelaria que o réu já havia deliberado pelo favorecimento do paciente ao menos

duas horas antes de finalizada a preparação do órgão.

Por fim, a Equipe do Departamento Nacional de Auditoria do SUS, no

Relatório de nº 6.202, teria concluído pela efetiva violação à lista de espera, quando do

transplante de fígado realizado em Jaime Ariston, conforme fl. 93, apenso 4, aduzindo

que o próprio DENASUS, em relatório preliminar referente à auditoria levada a cabo na

Central de Notificação, Captação e Distribuição de órgãos no Rio de Janeiro (nº 1257,

apenso 5), já teria registrado a existência de vários pacientes em acompanhamento no

Hospital do Fundão que teriam falecido até cerca de um mês após o transplante e que

poderiam ter optado por receber o enxerto.

A defesa, por sua vez, alegou que a equipe de transplante de fígado do

Hospital Universitário Clementino Fraga Filho teria transplantado em Jaime Ariston

fígado marginal, motivo pelo qual não teria havido desrespeito à ordem cronológica,

sobretudo porque Jaime, considerados o seu peso e o seu tamanho, seria o primeiro

paciente do referido hospital para o recebimento do enxerto.

Ainda segundo a defesa, as equipes de transplante do Hospital

Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) e do Hospital Geral de Bonsucesso

(HGB) usavam fígado marginal em pacientes que não se encontravam nos primeiros

lugares da fila de espera. A própria Coordenação-Geral do Sistema Nacional de

Transplantes reconhece que o fígado marginal é utilizado e que seu uso fica a critério

das equipes transplantadoras (fl. 1933 – vol. 7).

O fígado transplantado em Jaime Ariston seria marginal, conforme a

conclusão da Comissão de Sindicância instaurada no Hospital Clementino Fraga Filho e

o depoimento da Dra. Inary Bueres, médica que procedeu à captação do órgão (fl. 153

do Anexo 3).

Segundo a Comissão de Sindicância, “A soma de dados clínicos e

patológicos levaram-na a considerar que o fígado deveria ser classificado como

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‘marginal’ e, de acordo com os procedimentos anteriores previstos pela correspondente

Câmara Técnica do CREMERJ, deveria ser utilizado em um dos pacientes inscritos na

listagem de espera do próprio hospital”.

Considerando que Jaime Ariston seria o primeiro paciente da fila de

espera de transplante de fígado marginal no Hospital Universitário Clementino Fraga

Filho, os pacientes do Hospital Geral de Bonsucesso não teriam sido preteridos. Isso é

corroborado pela Câmara Técnica do Conselho Regional de Medicina, consoante a qual,

quando um fígado não pudesse, por qualquer intercorrência, ser implantado no primeiro

paciente da equipe que fazia a captação, o órgão, por questão de logística, ficava com a

própria equipe transplantadora e era implantado no primeiro paciente daquela equipe em

condições de receber o órgão: “Ficou estabelecido que o fígado captado e que não pôde

ser transplantado para o primeiro paciente da fila por qualquer razão permanecerá com a

Equipe que o captou para transplantá-lo, de acordo com a Lei.” (fl. 522, vol. 2).

Ainda segundo a defesa, o próprio órgão acusador, às fls. 415/426 do

Anexo 3, concluiu, ao determinar o arquivamento do inquérito civil instaurado em face

do médico Vinicius da Silveira Gomes, arrolado como testemunha de acusação e

investigado por fato análogo ao presente caso, que a denúncia seria improcedente, pois

os pacientes inscritos em classificação inferior ao do paciente transplantado e inscritos

no Hospital Clementino Fraga Filho não apresentavam condições clínicas imediatas

para a realização do transplante, ou outras intercorrências.

No que toca aos pacientes inscritos no Hospital Geral de Bonsucesso,

segundo decisão proferida pela Câmara Técnica de Transplante de Fígado do Rio de

Janeiro, a prioridade seria para convocar receptores inscritos na mesma unidade, caso

houvesse uma intercorrência com o 1º receptor (fls. 424/425 do Anexo 3). Ocorre que a

própria auditoria do DENASUS/MS informou que, no mesmo dia e horário daquela

captação, a equipe do Hospital Geral de Bonsucesso estava realizando transplante inter-

vivos, de modo que não poderia, simultaneamente, realizar outro transplante de órgão

(fl. 70 do Apenso 5 ao IPL 1.826/2003).

Ademais, o Conselho Regional de Medicina (fls. 107/108 do anexo 3)

teria, à unanimidade, absolvido o réu: “O paciente Jayme Ariston já estava inscrito

desde 2002 e ocupava a 32ª posição na fila. Encontrava-se com o estado geral agravado,

comprovado tanto pelo médico assistente quanto pela análise do prontuário. Ora, caso o

denunciado resolvesse favorecer o paciente de alguma maneira, teria realizado o

transplante em data anterior, já que dispunha de condições para realizá-lo, bem como

faria o transplante pessoalmente.”

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A aludida decisão do Conselho Regional de Medicina teria sido proferida

no mesmo sentido do que veio a ser definido pelo TRF-2ª Região, nos autos de ação

civil pública ajuizada contra o réu na 21ª Vara Federal, cujo pedido foi julgado

improcedente.

A defesa considerou, pois, provado que os fígados marginais são

utilizados por todas as equipes do Brasil em pacientes que não se encontram nos

primeiros lugares da fila, tanto que, antes de ter ciência de que se tratava de fígado

marginal, o réu determinou a internação dos dois pacientes que se encontravam nos

primeiros lugares da fila.

Ademais, a própria Coordenação Nacional de Transplantes teria

declarado que a utilização de tais órgãos ficava a critério das equipes transplantadoras.

E a médica que procedeu à captação do órgão declarou em documento

oficial que o fígado possuía "bordas rombas" e que solicitara a realização de exames

patológicos de urgência, os quais não foram realizados a tempo por patologistas do

Hospital do Fundão, o que contribuiu para a elevação do tempo de isquemia do órgão, o

que configuraria outra hipótese de caracterização de marginalidade do fígado.

O transplante de fígado autorizado pelo réu no paciente Jaime Ariston,

tal como narrado na denúncia, foi objeto de ação civil pública ajuizada pelo Ministério

Público Federal, por suposto ato de improbidade administrativa, com fundamento no art.

12, III, da Lei 8.429/1992.

Nos autos da referida ação civil pública de improbidade administrativa,

protegiam-se a probidade e a moralidade administrativas, bens jurídicos também

tutelados pelo art. 16 da Lei 9.434/1997, que rege o transplante de órgãos, tecidos e

partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.

Guilherme de Souza Nucci1 assim definiu os objetos material e jurídico

da Lei 9.434/1997:

“Objetos material e jurídico: o objeto material é composto pelos tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. O objeto jurídico é a ética e a moralidade no contexto da doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, bem como a preservação da integridade física e da vida das pessoas. O controle estatal em relação aos transplantes em geral, cuidando de organizar uma fila para a recepção das doações, realizadas de modo gratuito, impõe respeito à dignidade da pessoa humana, proibindo-se o comércio de partes do corpo humano, algo

1 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 6ª Ed. 2012, vol 1, pg. 534.

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naturalmente degradante. Não se poderia pensar em civilidade, ética e bons costumes, caso fosse permitido o mercantilismo nesse cenário, tão delicado, envolvendo, diretamente, a vida humana.”

Por incontestável pertinência, reproduzo abaixo a decisão proferida pelo

TRF-2ª Região, da relatoria do Desembargador Federal Guilherme Calmon Nogueira da

Gama, em apelação cível interposta em face da sentença prolatada nos autos da ação

civil pública nº 2003.51.01.023256-3, pelo Juízo da 21ª Vara Federal desta Seção

Judiciária.

Relatório: 1. Trata-se de remessa necessária e apelação cível interposta pelo Ministério Público Federal em face da sentença de fls. 1819/1827, originária do Juízo da 21ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, proferida nos autos de ação civil pública de responsabilidade pela prática de atos de improbidade administrativa, com pedido de afastamento cautelar, proposta pelo ora apelante em face de Joaquim Ribeiro Filho, objetivando a condenação do réu nas sanções previstas no inciso III, art. 12, da Lei nº 8.429/92. O autor fundamenta seu pedido alegando que o réu, na condição de Coordenador da Central Estadual de Notificação e Captação de Órgãos – CNCDO, autorizou o transplante hepático de paciente fora da ordem cronológica da lista única de potenciais receptores e sem amparo na legislação pertinente, favorecendo irmão do então Secretário Estadual de Transportes, bem como determinou a inutilização de fígado que seria viável para transplante. 2. A sentença julgou o pedido improcedente, reconsiderando o despacho que deferiu a produção de prova pericial e indeferindo as demais, por entender que os elementos carreados aos autos seriam suficientes ao deslinde do feito. No que concerne à estrita observância da fila única de espera, considerou que seria “incontestável que a

transplantação não deve ater-se somente à ordem cronológica,

cabendo ser apreciados, dentre outros, critérios como

compatibilidade sanguínea e peso corporal”. Considerou ainda que o fígado transplantado se caracterizaria como “fígado marginal” e, sendo assim, deveria ser destinado ao primeiro paciente que aceitasse o risco, evitando-se perder o órgão, diante do limite temporal em que este sobrevive sem a circulação sanguínea. No tocante ao fígado inutilizado, reputou que “a decisão do réu no sentido de descartar o fígado teve por base relatório proferido pela médica responsável pela captação do órgão, pelo que não pode ser a ele imputada tal responsabilidade”. Acrescentou ainda que a utilização da Solução de Collins na realização de perfusão no fígado, conforme determinado pelo réu, não seria contra-indicada, pois a solução “pode ser utilizada para fluxo hipotérmico e acondicionamento de órgãos incluindo rins, fígado e pâncreas para transporte e preservação antes do transplante”. 3. O apelante, em seu recurso, sustenta a nulidade da sentença, com o cerceamento do direito de defesa. Isto porque, posteriormente ao despacho saneador que havia deferido a produção de perícia médica e sem análise do pedido de produção de prova testemunhal, foi proferida a sentença. Aduz que, nos termos da Súmula nº 424 do STF, o despacho saneador transita em julgado se não for impugnado através de recurso e, sendo assim, não poderia ser modificado pelo juízo.

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Defende que o direito de produzir provas é corolário do direito de ação. Acrescenta que a lide não poderia ser julgada antecipadamente, pois se fazia necessária a produção de prova pericial, no sentido de aferir se o fígado transplantado seria ou não um “fígado marginal”. Argumenta que existiriam depoimentos produzidos no âmbito de ação criminal movida pelo MPF contra o réu, que influenciariam o convencimento do julgador sobre a questão, e que o indeferimento de provas não foi fundamentado. No mérito, alega que a preterição da lista de espera foi “ilícita e ímproba”, à luz da legislação aplicável ao caso, qual seja, Lei nº 9.434/97, Decreto nº 2.268/97 e Portaria nº 3.407/GM/MS, de 05/08/98. Neste ponto, ressalta que três aspectos merecem análise: (i) a preterição de pelo menos 31 (trinta e um) pacientes contrariou a legislação em vigor; (ii) o fígado transplantado não era marginal; (iii) ainda que o enxerto fosse marginal, tal fato não desobrigava o réu de observar a legislação. Em relação ao fígado inutilizado no Hospital Geral de Bonsucesso – HGB, sustenta que a perfusão determinada pelo réu, utilizando Solução de Collins, tornou o órgão inutilizável para transplante, conforme restou comprovado nos autos. Neste aspecto, aduz que a sentença alude à “pesquisa” que demonstraria que a utilização da referida solução é aconselhada, sem, entretanto, indicar a fonte desta pesquisa. Por fim, acrescenta que a lista única nacional é instrumento de justiça, invocando os arts. 196, 197 e 198 da CF, o art. 2º, caput e § 1º da Lei nº 8.080/90 e os princípios da isonomia, legalidade, impessoalidade e moralidade (art. 37 CF). 4. Recebido o recurso e oferecidas contrarrazões (fls. 1871/1920), subiram os autos para este Tribunal, onde, oficiando, o Ministério Público Federal exarou o parecer de fls. 1925/1929, pugnando pelo provimento do apelo. 5. Os autos retornaram ao juízo de origem para intimação pessoal da União Federal, admitida no feito como litisconsorte ativa às fls. 1745. É o relatório. Peço dia para julgamento. Voto: 1. Conheço da remessa necessária e da apelação, porque presentes seus requisitos de admissibilidade. 2. Conforme relatado, trata-se de remessa necessária e apelação cível interposta pelo Ministério Público Federal em face de sentença proferida nos autos de ação civil pública de responsabilidade pela prática de atos de improbidade administrativa, com pedido de afastamento cautelar, proposta pelo ora apelante em face de Joaquim Ribeiro Filho, objetivando a condenação do réu nas sanções previstas no inciso III, art. 12, da Lei nº 8.429/92. O autor fundamenta seu pedido alegando que o réu, na condição de Coordenador da Central Estadual de Notificação e Captação de Órgãos – CNCDO, autorizou o transplante hepático de paciente fora da ordem cronológica da lista única de potenciais receptores e sem amparo na legislação pertinente, favorecendo irmão do então Secretário Estadual de Transportes, bem como determinou a inutilização de fígado que seria viável para transplante. 3. A irresignação do apelante não merece prosperar, senão vejamos. 4. Inexiste o alegado cerceamento de defesa. Veja-se que, inobstante a prova pericial ter sido anteriormente deferida, inexiste preclusão para o juiz, que pode, a qualquer momento, rever seu posicionamento, considerando desnecessária a prova já deferida, diante do princípio do livre convencimento, previsto no art. 130 do CPC.

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A preclusão a que alude a Súmula nº 424 do STF diz respeito às partes, e não ao juiz. Neste sentido, confira-se os seguintes arestos dos Tribunais superiores: (...) 5. Por outro lado, considero que os elementos carreados aos autos são suficientes ao deslinde do feito, não sendo necessária, portanto, a produção de prova pericial e testemunhal, sendo caso de julgamento conforme o estado do processo, conforme passo a expor. Saliento ainda, em relação à prova pericial, que foi realizada biópsia, tanto no fígado transplantado quanto naquele que foi descartado. No fígado que foi transplantado, o exame concluiu que este apresentava “tecido hepático com alterações histopatológicas mínimas” (fls. 351). Já o fígado descartado apresentou o seguinte resultado: “múltiplos

micro-hamartomas biliares (complexos de Von Meyenburg); necrose

isquêmica focal” (fls. 838). Desta forma, mostra-se despicienda realização de novo exame, com o mesmo objetivo. 6. No mérito, são dois os pontos nodais que merecem análise. Primeiramente, o MPF alega que o réu praticou ato de improbidade ao permitir o transplante de fígado, em 24 de julho de 2003, fora da ordem cronológica da lista única de potenciais receptores, favorecendo irmão do então Secretário Estadual de Transportes, que estava no 32º lugar da referida lista. 7. A biópsia realizada no fígado, conforme visto acima, concluiu que este apresentava “alterações histopatológicas mínimas”. Em um primeiro momento, este exame parece descartar a avaliação do réu, no sentido de que o fígado seria marginal, apresentando “bordas

rombas”. Entretanto, da leitura do relatório do Departamento Nacional de Auditoria do SUS – DENASUS, conclui-se que o principal fator para classificação do fígado como “de bordas rombas” é a macroscopia do mesmo, ou seja, a análise feita, a olho nu, pelo médico que está presente na retirada do órgão (fls. 1420). Este procedimento é confirmado ainda, no mesmo relatório, no item 13, que trata dos “mecanismo e formalidades para rejeição de um fígado

tido como marginal”, afirmando-se que “A avaliação do fígado é

baseada no aspecto macroscópico do mesmo no momento da cirurgia

de retirada”. Em outras palavras: é a análise do médico, e não a biópsia, que classificará o órgão como marginal ou não. Isto porque o transplante deverá ocorrer dentro de um prazo exíguo, não sendo possível, portanto, aguardar-se o resultado da biópsia. Veja-se ainda que o referido relatório determina que a responsabilidade pela definição da possibilidade ou não da utilização do órgão doado e quais os critérios que norteiam tal definição cabe à equipe transplantadora, sendo que os critérios são estabelecidos por protocolo das câmaras técnicas de cada tipo de transplante (fls. 1417). Neste aspecto, existe a Ata da reunião da Câmara Técnica de transplante de fígado de 04/11/2002, onde se fixou que “o fígado

captado e que não pôde ser transplantado para o primeiro paciente

da fila por qualquer razão, permanecerá com a equipe que o captou

para transplantá-lo, de acordo com a Lei” (fls. 820). 8. Há situações excepcionais que, como tais, devem ser tratadas, daí a possibilidade de haver lacunas ou claros normativos para hipóteses que a realidade apresenta. Há elementos que indicavam que nenhuma das pessoas anteriores àquela que estava posicionada no n 32 da fila de transplantes de fígado seria candidato a ser receptor de “enxerto marginal”, como se pensou tratar o caso envolvendo o órgão corporal da pessoa que faleceu.

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9. Em relação ao fígado transplantado, ainda que marginal, urge examinar se houve burla da lista de transplantes. A lista dos receptores, com as devidas anotações sobre a possibilidade de receber o fígado marginal, consta às fls. 846/850. Destes, dois faleceram antes do transplante em questão, sendo que dez eram pacientes de outros hospitais e, portanto, excluídos do transplante de fígado marginal, nos termos do Protocolo da Câmara Técnica acima citado. Em relação aos demais foram apresentadas, às fls. 851/905, declarações de próprio punho, com data posterior ao transplante, de que não seriam candidatos a fígado marginal. Restam, portanto, os pacientes nº 6 – Marcia Cristina S. do Nascimento, nº 13 – Renato Malvino Siqueira e nº 18 - Antonio Silva. Em relação ao paciente nº 13, afirma o réu que este não estava respondendo a chamadas telefônicas e que, caso a situação persistisse, seria excluído da lista. A paciente nº 6, por sua vez, seria portadora de doença que a impediria de receber enxerto marginal, assim como o paciente nº 18, portador de câncer gástrico. Diversamente do que consta do relatório do Sistema de Auditoria do Ministério da Saúde (fl. 1.453), não há como se presumir a ocorrência de burla ou descumprimento da ordem em razão de alguma das declarações datar de época posterior à data do transplante do fígado. Não houve qualquer referência por parte dos integrantes da fila em posição anterior à do n. 32 a respeito de não ter havido consulta prévia para fins de realização do transplante. 10. Como bem registrou a Juíza Federal sentenciante, “no que concerne à estrita observância da fila única de espera, tornou-se incontestável que a transplantação não deve ater-se somente à ordem cronológica, cabendo ser apreciados, dentre outros, critérios como compatibilidade sanguínea e peso corporal” (fl. 1.823), bem como o próprio estado do órgão a ser transplantado. Sabe-se que, em matéria de realização de transplante de determinados órgãos do corpo humano, há urgência nos procedimentos a serem empregados e, por isso, eventual demora ou atraso pode ser fatal para a inviabilidade da utilização do órgão. 11. Ademais, não havia legislação específica à época sobre a utilização do denominado fígado marginal, a desnaturar a argumentação do MPF, ora Apelante, quanto à eventual violação da ordem para realização do transplante. Não há como desconsiderar, neste contexto, a decisão do Conselho Regional de Medicina a respeito do caso concreto em questão que, neste ponto, merece ser transcrita: “(...) O paciente Jayme Ariston já estava inscrito desde 2002 e ocupava a 32ª posição na filha. Encontrava-se com o estado geral agravado, comprovado tanto pelo médico assistente quanto pela análise do prontuário. Ora, caso o denunciado resolvesse favorecer o paciente de alguma maneira, teria realizado o transplante em data anterior, já que dispunha de condições para realizá-lo, bem como faria o transplante pessoalmente. Quanto à qualidade do enxerto, acompanhamos a opinião da testemunha arrolada, Dr. Luis Augusto Carneiro D’Albuquerque, que a ordem cronológica pode deixar de ser aplicada em situações especiais. Bordas rombas e tempo de isquemia são fatores importantes, bastando uma das características estar presente para o órgão ser considerado marginal. Em relação ao valor da biópsia, acompanho a opinião do mesmo médico” (...)

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15. Ante o exposto, nego provimento à remessa necessária e à apelação, mantendo integralmente a sentença. É como voto. (grifei)

Nos autos da ação civil pública de improbidade administrativa ajuizada

em face de Joaquim Ribeiro Filho, ora réu, o MPF destacou: a) a preterição, em

desrespeito à legislação regente da matéria, de pelo menos 31 (trinta e um) pacientes,

uma vez que Jaime Ariston ocupava o 32º lugar na fila de espera; b) que o fígado

transplantado em Jaime Ariston não era marginal; c) que, ainda que o fígado fosse

considerado marginal, isso não desobrigava o réu de observar a legislação.

Na sentença proferida em primeira instância, o magistrado, julgando

improcedente o pedido, considerou que a realização do transplante não se deve ater tão

somente à ordem cronológica, mas também aos critérios de compatibilidade sanguínea e

peso corporal, acrescentando que, sendo tido como marginal, o fígado deveria ser

destinado ao primeiro paciente que aceitasse o risco, a fim de evitar a perda e a

inviabilização do órgão.

No julgamento de apelação cível, o TRF-2ª Região registrou que o

Departamento Nacional de Auditoria do SUS concluiu que o principal fator para a

classificação do fígado como marginal é a realização de macroscopia, ou seja, a análise

do órgão, pelo médico, a olho nu, até porque o transplante deve ocorrer em prazo

exíguo, o que torna inviável a espera por eventual resultado de biópsia nele realizada.

O TRF-2ª Região, acertadamente e com razoabilidade, entendeu que há

situações excepcionais que, como tais, devem ser tratadas. No caso, nenhuma das

pessoas anteriores ao paciente Jaime Ariston seria candidato a receber um fígado

marginal. E ainda que o fígado fosse marginal, não teria havido burla na lista de

transplantes. Isso porque, dos potenciais candidatos, dois haviam falecido e dez eram

pacientes de outro hospital, o que, por esta razão, os excluía da fila. Outros três também

teriam sido desconsiderados, porque, em razão de doença que os acometia, não estariam

aptos a receber o órgão.

O TRF-2ª Região destacou, ainda, a decisão do Conselho Regional de

Medicina, segundo a qual o paciente Jaime Ariston ocupava a 32ª posição na fila de

espera por transplante de fígado e se encontrava em estado geral agravado. Assim, caso

o réu desejasse favorecer o paciente de alguma forma, poderia ter realizado o

transplante em data anterior.

Nos autos da comissão de sindicância instaurada no Hospital Clementino

Fraga Filho (fl. 153 do anexo 3), Dra. Irany Bueres, médica que realizou a captação do

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fígado transplantado no paciente Jaime Ariston, era quem detinha condições de atestar

sobre a saúde do fígado captado. A referida médica prestou depoimento no dia

03/01/2004 à Comissão de Sindicância (processo nº 23079.026196/03-13), cujos termos

transcrevo abaixo, declarando que o fígado era considerado marginal, o que, à luz da

Câmara Técnica do CREMERJ, impunha a obediência da fila para transplante por

paciente do próprio hospital, e não da fila nacional.

“que foi ela quem fez a captação do fígado no Hospital Pedro II, sendo verificado que o doador era um homem de 44 anos, com sobrepeso, que estava há 5 (cinco) dias na UTI e mostrava elevação de AGT e leucocitose; que não havia história de alcoolismo; que o fígado captado tinha pouca esteatose, mas tinha borda romba; que ela fez então uma biópsia do fígado antes de iniciar a perfusão de solução conservadora (Belzer), sendo o fragmento enviado ao Serviço de Patologia do HUCFF, juntamente com 1 gânglio; que, duas horas e meia após, a depoente procurou o Serviço de Patologia e foi informada que o material não estava sendo localizado, possivelmente, tendo sido encaminhado para a rotina de exames; que ela decidiu fazer então nova biópsia no fígado já perfundido e que, não havendo ninguém disponível no Serviço de Patologia para examinar o corte de congelação, ela própria avaliou o fragmento com intuito de afastar lesões grosseiras que inviabilizassem o uso do órgão, tendo ela concluído que o órgão não apresentava lesões que o inviabilizassem para o transplante; que, até esse momento, já havia transcorrido 5 horas desde o início da captação do órgão, supondo-se, ainda, que seriam necessárias aproximadamente mais de 8 horas para a remoção do fígado nativo do paciente e colocação do enxerto; que a soma de dados clínicos e patológicos levaram-na a considerar que o fígado deveria ser classificado como “marginal” e, de acordo com os procedimentos anteriores previstos pela correspondente Câmara Técnica do CREMERJ, deveria ser utilizado em um dos pacientes inscritos na listagem de espera do próprio hospital; que se comunicou então telefonicamente com o Dr. Joaquim Ribeiro Filho, que concordou com isto, sendo o fígado implantado no paciente Jaime Ariston de Araújo Sobrinho pela equipe cirúrgica chefiada pelo Professor Vinícius da Silveira.”

Assim, superada a questão de ser ou não marginal o fígado transplantado,

bastando, para sua caracterização como tal, que o órgão apresente "bordas rombas" e

tempo de isquemia, verifico que o CREMERJ confirmou a marginalidade do órgão e o

TRF-2ª Região reconheceu, no julgado acima reproduzido, que o paciente Jaime Ariston

se encontrava com o estado geral agravado, comprovado tanto pelo médico assistente

quanto pela análise do prontuário, o que autorizaria a não obediência à ordem

cronológica, em situações especiais, principalmente à época dos fatos, cujo critério

vigente era o da ordem cronológica de inscrição.

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No caso, porém, em se tratando de fígado marginal, não teria havido

preterição de pacientes, uma vez que, desconsiderada a fila única nacional por decisão

da Câmara Técnica do CREMERJ, aqueles que precediam Jaime no próprio hospital em

que estava internado não se mostraram aptos a recebê-lo.

Assim, pelas providas colhidas nos autos, mas, sobretudo, com respaldo

no julgado do TRF-2ª Região, e independentemente de se considerar obrigatória, no

caso, a obediência à fila única nacional de inscritos, entendo que o réu Joaquim Ribeiro

Filho, na condição de Coordenador da Central Estadual de Notificação e Captação de

Órgãos – CNCDO, autorizou o transplante hepático no paciente Jaime Ariston por

motivo de força maior, o que, na seara penal, traduz inexigibilidade de conduta diversa.

Tudo isso com suporte no estado extremamente grave em que se

encontrava o paciente, na marginalidade do órgão e na inexistência, à época, de norma

legal reguladora desta hipótese, na obediência à fila de inscritos do próprio hospital e na

iminência de perda ou inviabilização do órgão.

Ou seja, o paciente Jaime Ariston era quem, à época, detinha condições

físicas de receber o fígado considerado marginal, tendo havido obediência à fila de

espera do próprio hospital no qual estava internado. Ademais, em se tratando de caso

excepcional, devido ao quadro de saúde agravado do paciente e à possibilidade de

inviabilização do fígado, aliado à ausência de regra específica acerca da destinação de

órgão considerado marginal, entendo não ter havido ilegalidade na realização do

transplante, pelo réu, em Jaime Ariston, razão pela qual deverá ser absolvido.

2.2.3- Transplante realizado no paciente Carlos Augusto de Alencar Arraes:

Segundo o MPF, o réu, na qualidade de coordenador da equipe de

transplante hepático do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, teria desviado

órgão da lista única nacional, para a realização de transplante em favor de Carlos

Augusto de Alencar Arraes, que ocupava o 65º lugar na fila de espera nacional,

conforme listagem de fls. 69/73.

O transplante teria sido realizado em 18/07/2007, na Clínica São Vicente

da Gávea, pela equipe chefiada pelo réu Joaquim Ribeiro Filho, em troca de honorários

médicos no valor de R$ 90.000,00 (noventa mil reais).

O referido paciente seria parente do então governador de Pernambuco e

irmão do diretor da Rede Globo, Guel Arraes, conforme depoimento às fls. 548/550. O

fígado nele implantado teria sido captado no Hospital São Francisco, em Minas Gerais,

e trazido para o Rio de Janeiro em avião fretado pelo irmão do paciente, Guel Arraes

(fls. 483/487).

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O plantonista Rafael Ferreira da Costa teria dito, em seu depoimento, que

o acusado entrou em contato com a Central de Notificação, Captação e Distribuição de

Órgãos do Rio de Janeiro, demonstrando interesse na captação do fígado

disponibilizado pela CNCDO/RJ antes mesmo de o plantonista entrar em contato com

as equipes responsáveis pelos pacientes com prioridade na lista única. Destacou que a

Central Nacional de Transplantes teria recebido informações sobre a disponibilização do

fígado proveniente de Minas Gerais apenas às 20 horas do dia 17/07/2007, ocasião em

que foi consignado que, dada a instabilidade hemodinâmica do doador, o fígado deveria

ser retirado com urgência até a meia-noite. A Central constatou, porém, que não havia

voos disponíveis para o transporte naquele dia (fls. 75/76).

Diante da recusa do órgão pelo chefe da equipe do Hospital Geral de

Bonsucesso, cujos pacientes ocupavam os primeiros lugares na lista única, por não

conseguirem o voo, Rafael Ferreira da Costa teria informado ao plantonista da Central

Nacional que o réu faria a captação e obedeceria à lista única (fls. 76, 490/492 e

3353/3355).

O réu teria, então, acionado os integrantes de sua equipe os quais teriam

utilizado avião fretado por Guel Arraes até Minas Gerais para captar o órgão e retornado

ao Rio de Janeiro para a realização da intervenção cirúrgica em seu paciente particular,

Carlos Augusto Arraes, efetivada em 18/07/2007, com preterição, segundo o MPF, da

ordem de prioridade estabelecida na lista única (fls. 69/73).

Somente após a realização do transplante, o réu teria informado à

CNCDO/RJ que havia destinado o órgão ao paciente Carlos Augusto Arraes, com

respaldo em decisão judicial que se baseara em suposto laudo ideologicamente falso

fornecido pelo próprio réu (fls. 771, 1153 e 3345/3346, 3354/3355).

Em seu interrogatório, o réu afirmou ter recebido ofício por fax de um

desembargador do Estado de Pernambuco, no dia 14 ou 15 de julho de 2007,

determinando a realização de transplante hepático no paciente Carlos Augusto Arraes,

com prioridade, em todo o território nacional.

Para o órgão acusador, porém, o referido ofício não seria destinado ao

réu, mas, sim, aos chefes das Centrais de Transplante dos Estados do Rio de Janeiro,

Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Norte, Paraná, Paraíba e do Distrito Federal.

Além disso, a CNCDO/RJ somente teria tomado ciência da decisão judicial em

18/07/2007, após realizado o transplante, por intermédio de pessoa não identificada e

por meios não oficiais (conforme fls. 62/65 e 41 e declarações de fls. 498/506,

ratificadas em Juízo, fls. 581/582 e 493/497).

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Para o MPF, a decisão judicial seria ilegal, porque proferida em regime

de plantão por Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco para

ser cumprida no Rio de Janeiro, não tendo sido objeto de intimação oficial e

comunicação imediata a todos os destinatários, inclusive à CNCDO, mas enviada

somente ao réu (fls. 97, 98, 254). O ofício teria se prestado apenas a conferir aparência

de legalidade ao desvio do órgão da lista única, e Joaquim, na qualidade de chefe da

equipe de transplante hepático do HUCFF, teria obtido autorização junto à CNCDO/RJ

para a captação do fígado disponibilizado pela CNCDO/MG, em 17/07/2007,

declarando falsamente à Central que destinaria o enxerto a paciente daquele hospital

universitário, Selma Almeida Peixoto, com prioridade na fila de espera, embora ciente

de que o favorecido seria Carlos Augusto Arraes.

Ainda segundo o MPF, a Lei 9.434/1997 determina que os órgãos objeto

de doação post mortem sejam oferecidos aos pacientes de acordo com lista única de

receptores, sob a coordenação da Central Nacional de Notificação, Captação e

Distribuição de Órgãos, o que revela que seriam, no mínimo, inapropriadas as

solicitações do réu, porque contrárias ao espírito da legislação, e que, menos de dez dias

após os contatos de Joaquim, uma das Centrais, a de Minas Gerais, disponibilizou o

fígado que foi transplantado em Carlos Augusto Arraes (fl. 261).

Antes que a Central Nacional de Transplantes fosse informada sobre a

disponibilização do fígado, a família de Carlos Augusto Arraes e o médico, ora réu, já

teriam providenciado o desvio do órgão da lista única (fl. 75, depoimento de fl. 1049 e

de fl. 1184).

Conforme documentos de fls. 483/487, o avião que transportou a equipe

de transplantes do Rio de Janeiro até Minas Gerais teria sido fretado por Guel Arraes

em 17/07/2007, a partir de 12 horas, antes mesmo da confirmação da morte encefálica

da doadora (12:52h, conforme fls. 976/977) e antes da disponibilização do fígado à

CNCDO/RJ (20:00h, conforme fl. 76), sendo que o próprio Arraes afirmou em sede

policial que contratara o avião na parte da tarde (fls. 1085 e 3407/3408).

Ressalta que a CNCDO/MG foi comunicada da doação de órgãos da

paciente Ângela às 9:30h da manhã de 17/07/2007 (fl. 980) e que sua morte encefálica

foi confirmada às 12:52h (fl. 977), causando estranheza que somente às 18:00h tenha

sido feito o registro da doação no livro de plantão da CNCDO/MG, o que indicaria que

pode ter sido criada uma situação de urgência de modo que a utilização do enxerto por

outra Central estadual só fosse viável, caso providenciado transporte por jato particular,

tal como ocorrera.

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Apesar de a CNCDO/MG ter informado que a doadora apresentava

quadro de instabilidade hemodinâmica, o que justificaria a urgência na captação, não

haveria registro sobre tal circunstância; ao contrário, no plantão noturno de 16/07/2007,

constaria que Ângela estava hemodinamicamente estável (fl. 982).

O DENASUS, no Relatório nº 6.202, também teria entendido pela

violação da lista de espera quando do transplante de fígado realizado no paciente Carlos

Augusto Arraes (fl. 93, apenso 4).

O réu teria, ainda, omitido informação, na ficha de inscrição de Carlos

Augusto Arraes, de que o referido paciente era portador de hepatocarcinoma, com

diâmetro de 6 cm (fls. 134 e 535). E, embora Carlos Augusto Arraes fosse paciente

particular, o réu teria usado formulários do Hospital Universitário Clementino Fraga

Filho para inscrevê-lo na lista única nacional de receptores de fígado, nos quais omitira

a doença que o acometia, valendo-se do cargo de chefe da equipe de transplante

hepático daquele hospital.

Ainda segundo a denúncia, especialistas teriam concluído que Carlos

Augusto Arraes não era elegível para receber transplante com doador falecido, por não

se enquadrar nos critérios estabelecidos pela legislação brasileira (declarações de fls.

1000/1001, 1009 e 1184), considerando que o critério adotado no Brasil para inscrição

em fila única de transplante hepático com doador cadáver é o de Milão (um nódulo de

até 5 cm, três nódulos inferiores a 2 cm, ausência de invasão vascular), tendo sido

previsto inclusive pela portaria que adotou o critério MELD (Portaria nº 1.160/2006, às

fls. 123/127), conforme fl. 2537.

Interrogado, o réu teria afirmado que “o diagnóstico de cirrose hepática

por vírus C garante a sua inscrição independentemente de complicações que possa ter” e

que “aliás o mesmo foi inscrito para realizar transplante inter vivos”, conforme fl. 2537.

No entanto, tais afirmações seriam falsas, porque em desconformidade com o critério de

Milão adotado no Brasil.

Ademais, a ficha de inscrição de Carlos Augusto Arraes para a fila única

de transplantes não faria ressalva de que o paciente seria inscrito apenas para concorrer

a órgãos por doação inter vivos. A Lei 9.434/1997, no art. 9º, não exige inscrição em

lista única para esse tipo de doação, que depende da compatibilidade e aceitação

expressa do doador, além de decisão judicial, em certos casos.

Carlos Augusto Arraes, porém, ocupava a 65ª posição na lista, pontuação

atribuída pelo sistema MELD/PELD, diante da omissão, pelo réu, da informação acerca

da presença de tumor de 6 cm (fls. 69/73).

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Assim, no dia 12/07/2007, o acusado teria subscrito laudo médico

ideologicamente falso, com a finalidade de instruir ação judicial objetivando a imediata

realização de transplante com doador cadáver em favor de Carlos Augusto Arraes,

embora ciente de que o critério adotado era o de Milão: “apresentava um

hepatocarcinoma em fígado cirrótico de 6 cm de diâmetro, não podendo pontuar pelo

sistema MELD, ou seja, sem chance de receber enxerto hepático atualmente”,

acrescentando que “a doença está restrita ao fígado e encontra-se dentro dos critérios

de São Francisco, amplamente utilizado, tornando-o hábil a receber qualquer órgão

disponibilizado em território nacional”.

A defesa, por sua vez, sustentou que Carlos Augusto Arraes se

encontrava em estado gravíssimo, vitima de câncer no fígado, e que, mesmo inscrito na

fila de transplantes, não alcançava os primeiros lugares da fila, em razão de estar fora do

chamado critério de Milão, de acordo com o qual só receberia pontos por critério de

gravidade o paciente que possuísse tumor no fígado de até 5 cm.

Assim, tendo em vista que Carlos Arraes não se enquadrava neste

critério, por apresentar tumor de 6 cm, considerado inconstitucional pela defesa, sua

família teria ajuizado ação buscando prioridade na fila e obtido liminar junto ao

Tribunal de Justiça de Pernambuco, dirigida a todas as Centrais de Transplantes do

Brasil e ao próprio Sistema Nacional de Transplantes.

A defesa ressaltou, ainda, que o órgão implantado em Carlos Augusto

Arraes seria descartado, uma vez que nem o Hospital do Fundão nem o Hospital Geral

de Bonsucesso possuíam transporte para captar o órgão em Minas Gerais. Ademais, o

Sistema Nacional de Transplantes informou que só dispunha de transporte para o dia

seguinte, devido a acidente aéreo ocorrido com avião da TAM, o que inviabilizaria a

captação.

O fígado implantado em Carlos Augusto Arraes foi captado no Hospital

São Francisco em Minas Gerais e trazido para o Rio de Janeiro em avião fretado pela

família do paciente (fls. 483/487).

No dia 17/07/2007, a Central Nacional de Transplantes recebeu

informações sobre a disponibilização de fígado proveniente de Minas Gerais. Todavia, a

Central constatou que não havia voos disponíveis para transporte naquele dia, uma vez

que o tráfego aéreo enfrentava problemas devido a grave acidente com um avião da

TAM no Rio de Janeiro.

Os pacientes que ocupavam os primeiros lugares na lista única se

encontravam no Hospital de Bonsucesso, mas o chefe da equipe daquele hospital

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recusou o órgão por não haver voo para captá-lo. Em virtude disso, o réu Joaquim

demonstrou interesse no fígado, responsabilizando-se por sua captação, com respaldo

em liminar concedida pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco.

No caso, há que se observar que o fígado oferecido pela Central de

Transplante encontrava-se em Minas Gerais e não havia meio de transportá-lo para o

Rio de Janeiro por meio de voo comercial, devido à interrupção do tráfego aéreo

naquele dia.

Trata-se, portanto, de situação excepcional e, como tal, deve ser tratada.

O paciente Carlos Augusto Arraes foi inscrito na lista única regional do

Estado do Rio de Janeiro com data de 28 de maio de 2007 e obteve judicialmente uma

antecipação de tutela para ter o fígado transplantado.

Interrogado em Juízo, sob o crivo do contraditório, o réu Joaquim

afirmou “que no caso Arraes o mesmo se encontrava ocupando a primeira posição da

clinica São Vicente da Gávea no ranqueamento feito pela CNNCDO e que não se

tratava de fígado marginal nem de doação marginal; que não é verdade que o paciente

não poderia estar na lista, pois fora inscrito pela equipe com a assinatura do

interrogando, com diagnóstico de cirrose hepática por vírus C, Child – Pugh 7, o que

garante a sua inscrição independente de complicações que possa ter, aliás o mesmo foi

inscrito para realizar transplante inter vivos; que o critério conhecido como de Milão

(um nódulo de até 5 cm, três nódulos inferiores a 2 cm, ausência de invasão vascular)

foi o incluído pela portaria que adotou o critério MELD, datado de 1995, extremamente

restritivo e que foi expandido pela Universidade de São Francisco para 6,5 cm, sendo

adotado no Brasil o de Milão; que no caso de Arraes o tumor era de 6 cm, que foi

inscrito somente pela perda de função da cirrose (Child-Pugh 7, conforme já referido) e

em momento algum observou pontuação que lhe seria devida caso fosse inscrito com

diagnóstico de hepatocarcinoma (CHC) e que o mesmo encontrava-se em tratamento

quimioterápico para se conseguir a redução do mesmo para 5 cm para aí sim ser

pontuado pelo critério MELD; que no dia 14 ou 15 de julho o interrogando recebeu por

FAX um ofício de um desembargador de Pernambuco informando ao interrogando

haver decisão liminar priorizando o paciente Arraes em todo o território nacional; que o

interrogando, quando da oferta do enxerto em 17 de julho, comunicou a existência dessa

decisão às 08:00 horas da noite ao enfermeiro Rafael, plantonista da CNCDO-RJ; que,

no caso do paciente Frederico, o interrogando tem conhecimento que a retirada foi

presenciada pela equipe do CNCDO-RJ que constatou três paradas cardíacas do doador

tornando-o marginal; que o interrogando não tem conhecimento de que a equipe tenha

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relatado qualquer tipo de lesão existente no fígado; que, no caso do paciente Arraes, o

interrogando recebeu um telefonema do enfermeiro Rafael comunicando haver

disponibilização de enxerto em Minas Gerais; que o ranqueamento feito pela CNNCDO

apresentava como primeiros três pacientes do HGB e que, em seguida, havia a paciente

Selma (HU); que, neste momento, o interrogando comunicou ciência da decisão liminar

para paciente que era da clinica São Vicente da Gávea; que Rafael demonstrou não ter

ciência da mesma; que o interrogando então aceitou o órgão para a paciente Selma; que

pouco tempo depois o interrogando foi comunicado pelo Rafael de que a CNNCDO

havia cancelado a disponibilização porque a única passagem possível seria para 10:00

horas do dia seguinte, e que não seria possível esperar pois a cirurgia do doador era em

hospital privado, prevista para 23:00 horas, não havendo equipe disponível para a

retirada de fígado em Minas Gerais; que o interrogando solicitou ao enfermeiro Rafael

que perguntasse ao Dr. Lucio Pacheco se o mesmo teria algum paciente do HGB ou da

Clinica São Vicente com possibilidade de ir buscar esse órgão em Minas Gerais; que

pouco tempo depois o Rafael informou ao interrogando da negativa do Dr. Lucio

Pacheco e liberou que a equipe fosse para Belo Horizonte para proceder a cirurgia para

a Clinica São Vicente da Gávea em meio de transporte particular; que o interrogando

não mais falou com o Rafael; que o transporte foi contratado pela família do paciente;

que a morte cerebral do doador de Minas Gerais ocorreu às 13:52 h e que a

disponibilização por Brasília foi por volta das 20:00 h; que o interrogando não tem

conhecimento dos trâmites feitos pela família para alugar o avião; que o interrogando

não tinha conhecimento, no momento, do acidente com o avião da TAM; que sempre

houve comunicação entre as diversas equipes do Brasil, sempre no sentido de aproveitar

órgãos que seriam jogados no lixo, salvando vidas, entretanto a disponibilização desses

enxertos obrigatoriamente é feita pela CNNCDO a partir de ranqueamentos feitos

primeiramente no Estado, depois na região e finalmente em todo o território nacional;

que o interrogando discorda da opinião do Dr. Paulo Chap-Chap; que o paciente Arraes

poderia ser inscrito na lista nacional, o que não poderia era pontuar pelo critério MELD

e que a inscrição foi referendada pela CNCDO-RJ e portanto pela CNNCDO; (...); que o

paciente Carlos Augusto Arraes encontra-se no 13º mês de pós transplante de fígado,

em pleno gozo de saúde, sem apresentar recidiva da lesão, trabalhando e convivendo

com a sua família, inclusive com seus dois filhos menores de idade.”

Ou seja, o réu Joaquim, médico-cirurgião, diante de situação

extremamente difícil e ciente do estado grave de seu paciente Carlos Augusto Arraes,

tomou conhecimento da disponibilidade de um fígado que iria se perder em razão da

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indisponibilidade de transporte para a captação do órgão e da dificuldade de transporte

aéreo naquele dia, agravada pelo acidente aéreo da TAM.

Portanto, neste caso pontual, a decisão do médico, ora réu, de requerer o

órgão captado deveria ser tomada de imediato, mormente porque ciente da decisão

judicial que autorizava o transplante e por ela legitimado. Assim, outra não foi a atitude

do réu senão a de optar pela captação do fígado doado, ainda que sabedor de que o

paciente Arraes não se encontrava entre os primeiros da lista. Não há dúvida de que a

quebra da fila se deu por cumprimento de ordem judicial, em situação excepcional de

extrema urgência.

Nesse sentido, assiste razão à defesa quando, em sede de alegações

finais, aduziu que o enfermeiro Rafael tinha conhecimento de que o órgão seria

destinado a paciente beneficiado por ordem judicial. Na verdade, na manhã do dia 18 de

julho de 2007, o Rio-Transplante já sabia que o fígado fora implantado em razão de

ordem judicial (fl. 579, vol 2 e fl. 165 do Vol 1).

E mais, tanto o Hospital Clementino Fraga Filho, por ausência de

transporte aéreo para se deslocar para Minas Gerais, quanto o Hospital Geral de

Bonsucesso não poderiam realizar o transplante do órgão disponibilizado pela Central

de Minas Gerais. Note-se que o Chefe da equipe do Hospital Geral de Bonsucesso

reconheceu que o fígado implantado em Carlos Augusto Arraes lhe foi oferecido e que

ele o recusou, dada a dificuldade natural de transporte e que não havia voo direto

naquele período (fl. 1062, Vol 4).

Reconhece, a defesa, ainda, que Carlos Augusto Arraes, de fato, jamais

alcançaria os primeiros lugares na lista, uma vez que, pelo critério “MELD” adotado no

Brasil, o paciente, por estar acometido de tumor superior a 5 cm, não receberia os

pontos para ser considerado um paciente grave e merecedor de um transplante; grave

seria, mas não apto a receber o transplante, porque suas chances de sobrevivência

seriam mínimas.

Com razão a defesa ao esclarecer, ainda, que, na Portaria 1.160/2006 (fls.

124/127 do vol. 1), não há referência à proibição de se inscrever na lista, tese defendida

pelo órgão acusador, apenas de ser pontuado pelo critério MELD, sendo certo que o

paciente possuía pontuação número 12 (fl. 201, vol. 1) e o MELD mínimo para

inscrição é 6 (seis).

Ademais, não prospera a alegação do MPF de que a liminar concedida

pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco teria eficácia somente no âmbito e em face do

Estado de Pernambuco. Não vislumbro, também, nenhuma ilegalidade no recebimento

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do ofício expedido pelo Tribunal e recebido pelo réu, uma vez que a decisão judicial

deve ser cumprida independentemente de constar o seu destinatário específico,

sobretudo em se tratando de proteção à saúde e garantia de sobrevida. Ao contrário do

sustentado pelo MPF, o réu não poderia se escusar ao cumprimento da decisão que

deferiu a liminar ao paciente para a realização do transplante.

Pouco importa, ainda, se o paciente beneficiado pelo transplante era

irmão de diretor da Rede Globo de Televisão ou parente do então Governador do Estado

de Pernambuco. O fato é que, diante da liminar concedida e com risco de o órgão se

perder ou colocar em risco a vida do paciente, uma vez que não havia, naquele dia, voo

disponível para a captação do órgão de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, o réu, na

qualidade de médico e na posse da decisão judicial, aliado à disposição da família do

paciente de captar o fígado por meios próprios, não poderia deixar de cumpri-la.

A denúncia trata de casos relevantes em que estavam em jogo três vidas à

espera do recebimento de órgãos, não sendo razoável presumir que tenha havido algum

tipo de ilegalidade ou imoralidade na conduta do réu por se tratar de paciente abastado e

de família inserida na política ou na mídia televisiva.

Ressalto que, ao contrário do que pretendeu fazer crer o MPF, a situação

abastada da família do paciente Carlos Augusto Arraes não serviu para a ultrapassagem

da fila de transplantes, mas, sim, para a captação e o aproveitamento de órgão que seria

perdido por não haver, à época, viabilidade de transporte aéreo com destino a Minas

Gerais, em virtude de grave acidente com um avião da companhia aérea TAM.

Dessa forma, pelas provas dos autos, entendo que o paciente Carlos

Augusto Arraes poderia estar inscrito na lista, como de fato estava, e beneficiar-se do

órgão captado no Estado de Minas Gerais, uma vez que ninguém na lista do Rio de

Janeiro teria condições de aproveitá-lo, devido à inviabilidade de transporte do referido

fígado, naquele dia.

Logo, a rigor, não houve ultrapassagem de paciente na lista, tendo sido a

realização do transplante respaldada em ordem judicial que se tornou exequível graças

aos recursos pessoais disponibilizados pela família do paciente para captar o fígado de

Minas Gerais para o Rio de Janeiro, evitando que se perdesse e, consequentemente, que

o doente deixasse de dele se beneficiar. O réu deverá ser, pois, absolvido.

2.2.4- Fato nº 3: Caso Frederico Sattelmeyer Junior:

Segundo a inicial acusatória, o réu teria tentado desviar órgão da lista

única nacional para realizar transplante no paciente Frederico Sattelmeyer Junior na

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Clínica São Vicente, em preterição à lista única nacional e mediante remuneração de R$

80.000,00 (oitenta mil reais).

Frederico Sattelmeyer Junior teria sido inscrito pelo réu Joaquim na lista

de receptores do Rio de Janeiro em 22/05/2007, apesar de morar em São Paulo, onde

também teria se inscrito, na mesma data, para a lista de espera daquele Estado, tendo

solicitado transferência da CNCDO/SP para a CNCDO/RJ, declarando estar sob os

cuidados de Joaquim e da equipe da Clínica São Vicente (fl. 824).

Narra o MPF que, em 05/08/2007, a equipe do HUCFF, chefiada pelo

acusado, fora avisada pela CNCDO/RJ sobre a existência de fígado objeto de doação

post mortem disponível no Hospital Copa D’Or, que deveria ser destinado ao paciente

Dimas Alves Pereira, do HUCFF, segundo a lista única. Porém, a enfermeira Denise, da

referida equipe de transplantes, teria informado que o hospital não tinha estoque de

sangue tipo O fator Rh negativo para a realização da cirurgia. A coordenadora da

CNCDO/RJ Ellen Barroso, por volta de 15 horas, ao tomar conhecimento dos fatos,

teria entrado em contato com Denise, que lhe teria dito ter conseguido o sangue

emprestado com o Banco da Clínica São Vicente, conforme fls. 526/532, liberando,

assim, o CNCDO/RJ, o órgão para captação pela equipe do HUCFF, responsável pelo

paciente com prioridade na fila.

Em torno das 19 horas, a coordenadora Ellen teria sido comunicada pela

enfermeira Eliane, plantonista da CNCDO/RJ, que a captação no Hospital Copa D’Or

estava difícil por condições físicas do doador e que aquele órgão estava sendo

considerado pela equipe como marginal (áudio às fls. 3335 e 3357). Ellen teria entrado

em contato às 19:45 horas com a enfermeira Flávia, que acompanhava a captação no

Copa D’Or, e confirmado a consideração do fígado como marginal. Flávia teria

informado, ainda, que havia oferecido o fígado à equipe do Hospital Geral de

Bonsucesso e o Dr. Marcelo Enne teria dito que, conforme descrito, as condições não

seriam adequadas para implante do órgão em nenhum paciente (fls. 1179/1189). Ter-se-

ia, então, avisado à Coordenadora da CNCDO/RJ que a equipe do HUCFF iria

aproveitar o órgão em paciente particular, da Clínica São Vicente, que estaria vindo de

São Paulo (áudio 1:08:47, fls. 3335 e 3357). Ellen teria questionado sobre o nome do

receptor, pois deveria estar na lista única nacional, mas a enfermeira não soube dizer. O

cirurgião da equipe, Dr. Eduardo Fernandes, teria entrado em contato com a

coordenadora dizendo que mandou alocar o órgão em paciente que estava vindo de São

Paulo, cujo nome não recordava, mas que, pela pontuação MELD, não tinha boa

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colocação na lista única. A coordenadora da CNCDO/RJ teria informado, então, que

não autorizava a realização do transplante.

Ressalta que Ellen já havia entrado em contato com o coordenador

nacional de transplante, Roberto Schillindwein, o qual teria dito não concordar com esse

tipo de conduta, e que, se o órgão não servia para quem está na fila pelo critério MELD,

não deveria ser implantado em nenhum outro paciente, razão pela qual determinou o

encaminhamento do fígado para avaliação histopatológica, não autorizando o

procedimento, conforme fls. 526/532.

Assim, diante da recusa, Joaquim teria ligado para Ellen, na tentativa de

obter a liberação do órgão para Frederico, ocasião em que afirmou que a alocação do

fígado marginal era um “vício” da equipe.

Segundo o MPF, embora o denunciado Joaquim tivesse pleno

conhecimento de que o órgão seria implantado em Frederico Sattelmeyer, não informou,

dolosamente, o nome do paciente à coordenadora da CNCDO/RJ, já que ele sequer

figurava na lista única de receptores aptos a receber o enxerto, conforme fls. 136/137 e

146/181.

Conforme relatado no livro de plantão da Clínica São Vicente, o

cirurgião Eduardo ligou para marcar o transplante de Frederico às 19:35h, enquanto

ainda era realizada a captação do órgão no Hospital Copa D’Or (fl. 1360),

depreendendo-se que os contatos com o paciente para a cirurgia teriam sido realizados

antes de a CNCDO/RJ ser informada sobre a suposta condição “marginal” do enxerto, a

qual o impediria de ser destinado ao primeiro da fila.

Conforme declarações da testemunha Itamar Cóppio, médico e cunhado

de Frederico, em julho, o depoente teria recebido ligação informando a respeito de um

fígado marginal disponível para transplante, mas que sua durabilidade era de 10 ou 15

anos, razão pela qual a família não teria aceito, e que, no final de julho ou início de

agosto, recebeu outra ligação informando que havia outro fígado marginal, proveniente

de parada cardíaca, e que esse fígado estaria em bom estado, sendo então aceito pela

família.

Segundo a denúncia, não seria a primeira vez que a equipe do HUCFF,

sob a chefia de Joaquim, tentava desviar órgão da lista única para favorecer Frederico

Sattelmayer, e que o fígado captado não poderia ser considerado como marginal, visto

que se encontrava em melhor estado que aquele antes oferecido, sendo aceito pela

família.

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O réu teria, pois, prestado declarações falsas para marginalizar órgão

sadio captado, o que redundou em seu descarte devido à não implantação no paciente

que ocupava a primeira posição na fila (Dimas Alves Pereira). O órgão teria sido, então,

oferecido ao paciente Frederico Sattelmayer, que veio de São Paulo para o Rio de

Janeiro para realizar o transplante, tendo sido internado na Clínica São Vicente, local

em que a equipe chefiada por Joaquim teria conduzido todos os procedimentos pré-

operatórios, conforme fl. 1360.

Para o MPF, não haveria dúvidas de que Joaquim teria tentado desviar,

dolosamente, órgão da lista única nacional para a realização de transplante no paciente

Frederico Sattelmayer, em detrimento dos pacientes que figuravam na referida lista.

De acordo com o já relatado, o réu Joaquim, supostamente, teria tentado

realizar transplante no paciente Frederico Sattelmeyer, que se encontrava em estado

grave, embora não constasse como o primeiro da lista a receber o fígado. De fato, o

referido paciente não constava entre os primeiros da lista, o que restou esclarecido pela

Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (IPL 1286/2003, apenso 5),

segundo a qual a inscrição do paciente Frederico Sattelmayer Junior remonta a 22 de

maio de 2007, com diagnóstico de Hepatite Viral C.

Segundo a defesa, durante o procedimento de captação, o doador sofreu

três paradas cardíacas, o que tornou o órgão marginal, segundo demonstrado por provas

testemunhais e documentais, e inviabilizou sua destinação aos primeiros pacientes da

fila. A própria Coordenação estadual e a Coordenação nacional de transplantes

proibiram a implantação do órgão em qualquer paciente, pois entenderam pela

imprestabilidade do órgão.

Ademais, o paciente teria sido inscrito inicialmente para ser

transplantado com a utilização de órgão oriundo de doador vivo, mas os testes de

incompatibilidade demonstraram a impossibilidade do procedimento nessas condições,

razão pela qual se optou pela utilização do órgão que seria descartado. E, ao contrário

do ventilado pela acusação, o tumor hepático que extrapola o critério de Milão não

impediria a inscrição na lista de transplantes.

A Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes, em

procedimento administrativo (IPL 1826/2006, apenso 5), ratificou a condição de órgão

marginal:

“Tendo em vista o explicitado acima esta Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplante não entende a razão pela qual tal paciente foi chamado pela equipe para receber este órgão, uma vez

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que segundo os próprios médicos era um órgão limítrofe e não tinha indicação de ser transplantado em nenhum dos 530 pacientes do Rio de Janeiro que foram selecionados.”

Assim, segundo o depoimento da testemunha Dra. Ellen Elizabeth

Macedo Barroso, então Coordenadora da Central de Transplantes do Rio de Janeiro, o

paciente selecionado para receber o órgão captado no Hospital Copa-Dor em

decorrência de Hemorragia Subaracnóidea por Aneurisma Cerebral do paciente Enes

Godoy Pereira, 51 anos, sexo masculino, grupo sanguíneo Rh positivo, o qual sofreu

três paradas cardíacas, seria o paciente Dimas Alves Pereira, inscrito no cadastro técnico

de receptores (RGCT 3745735) pelo Hospital Universitário Clementino Fraga Filho

(HUCFF), com MELD estimado de 29. Contudo, por questões de segurança, o órgão foi

considerado inadequado para o implante em qualquer receptor, tendo o Dr. Roberto

Schillindwein (fl. 529) definido pelo cancelamento do procedimento (fls. 529/530).

Assim, não procede a acusação de que o réu Joaquim teria determinado

que o órgão fosse falsamente caracterizado como marginal, pois o órgão, de fato, era

marginal. Ademais, de acordo com todos os depoimentos colhidos no curso da

instrução, a marginalidade do órgão deve ser aferida no momento da captação,

considerado o exame macroscópico e o estado do paciente doador, não havendo como

se esperar por exames conclusivos no momento do transplante.

É o que consta no relatório da auditoria do DENASUS/MS (apenso 5 ao

IPL 1826/2003 – fl. 1158):

“A macroscopia do fígado na hora da retirada é o principal fator de descarte para utilização do enxerto, bordas rombas indicam sofrimento do enxerto, que pode ser decorrente de instabilidade hemodinâmica do doador. Parada cardio-respiratória revertida, má perfusão e outros fatores, levando à necrose, balonização de hepáticos, apopitose, congestão e à comissão”.

Portanto, no caso, era inexigível conduta diversa do médico, ora réu, que

só tomou conhecimento dos fatos quando já se havia se chegado à conclusão de se tratar

de fígado marginal.

Nesse sentido, trago à colação o depoimento da testemunha arrolada pela

acusação Lúcio Pacheco Moreira:

“A decisão de transplantar um fígado marginal é uma decisão limite, não é uma decisão fácil em Medicina, é uma decisão muito difícil. No Rio de Janeiro o fígado marginal é utilizado em 85% dos casos.”

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E mais: tendo em vista que a Coordenação do Rio-Transplante não

concordou com o transplante do fígado considerado marginal, a equipe médica do

acusado decidiu implantá-lo em Frederico Sattelmeyer, tendo a família do paciente

ajuizado ação em que a liminar foi indeferida. Assim, independentemente da discussão

acerca da condição de marginalidade do fígado que seria transplantado no paciente

Frederico, note-se que o transplante não aconteceu e sequer foi iniciado.

3- Dispositivo:

Diante de todo o exposto, julgo improcedente a pretensão punitiva estatal

e absolvo Joaquim Ribeiro Filho, qualificado nos autos, dos fatos que lhe foram

imputados na denúncia, o primeiro, ocorrido em 24/07/2003, com fulcro no art. 386, VI,

o segundo, ocorrido em 14/07/2007, com fulcro no art. 386, III, e o terceiro, ocorrido

em 05/08/2007, com fulcro no art. 386, VI, todos do CPP.

Sem custas processuais.

Juntem-se em apenso os documentos e mídias acauteladas, conforme

certificado nos autos.

Transitada em julgado esta sentença, proceda-se às comunicações de

praxe e arquivem-se os autos com baixa.

Oficie-se, ainda, ao Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de

Janeiro, dando-lhe ciência desta sentença.

Publique-se. Registre-se. Ciência ao MPF.

Rio de Janeiro/RJ, 11 de setembro de 2013.

(ASSINATURA ELETRÔNICA)

FABRÍCIO ANTONIO SOARES Juiz Federal Titular

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