sennet

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 R. História, São Paulo, D.  129-131, p.  271-321, ago.-dez./93 a ago.-dez./94. SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público   As Tiranias da Intimi- dade.  São Paulo: Companhia das Leiras, 1993.  Andrea Paula dos Santos  * O Declínio do Homem Público,  'de Richard Sennet, é uma obra que percorre uma das questões mais polêmicas da modernidade: a tortuosa rela ção entre o domínio público e o privado. Preocupado com o esvaziamento do espaço público atestado pela resignação formal com que "a maioria dos cidadãos aborda suas negociações com o Estado" (p. 15), bem como através de outros sintomas que extravasam a área política, Sennett pretende mostrar que essa derrocada da vida pública por meio de uma pratica social cada vez mais intimista é o resultado "de uma mudança que começou com a queda do Antigo Regime c com a formação de uma nova cultura urbana, secular e capitalista" (p. 30). Neste livro encontramos uma caracterização precisa e extremamente contemporânea do problema público, do que é o domínio público, e das inúmeras mudanças ocorridas nele, em especial com relação a intrusão dos sentimentos e do exercício de uma cultura da personalidade, que subverte as relações sociais e que, até mesmo modifica o sentido do que é o amor e a sexualidade para as pessoas. O objetivo é detectar os motivos que ocasiona ram o surgimento de u m e spaço público morto. Nesse sent ido , Sennett afirma que "foi a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial que se voltou para dentro de si ao se libertar das repressões sexuais. É nessa mesma geração que se operou a maior parte da destruição física do domínio público" (p. 30). A argumentação delineada baseia-se na definição dos papéis públicos nas cidades e na recuperação, como categoria de análise, da tradição do theatrum mundi.  Sennett deixa explícito que a sua tese busca não uma "prova" concreta de suas hipóteses, mas sim uma "plausibilidade empírica (que mostre) as conexões lógicas entre fenômenos que podem ser concreta mente descritos" (p. 63) para que o leitor possa inclusive pensar uma alterna tiva para a solução do problema que ele procura diagnosticar. Aluna ile Graduação du Ueplo. de Histór ia FFL CH/ USP .

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  • R. His tr ia , So Paulo, D. 129-131, p. 271 -321 , ago.-dez./93 a ago.-dez./94.

    SENNET, Richard. O Declnio do Homem Pblico As Tiranias da Intimi-dade. So Paulo: Companhia das Leiras, 1993.

    Andrea Paula dos Santos *

    O Declnio do Homem Pblico, 'de Richard Sennet, uma obra que percorre uma das questes mais polmicas da modernidade: a tortuosa rela-o entre o domnio pblico e o privado. Preocupado com o esvaziamento do espao pblico atestado pela resignao formal com que "a maioria dos cidados aborda suas negociaes com o Estado" (p. 15), bem como atravs de outros sintomas que extravasam a rea poltica, Sennett pretende mostrar que essa derrocada da vida pblica por meio de uma pratica social cada vez mais intimista o resultado "de uma mudana que comeou com a queda do Antigo Regime c com a formao de uma nova cultura urbana, secular e capitalista" (p. 30).

    Neste livro encontramos uma caracterizao precisa e extremamente contempornea do problema pblico, do que o domnio pblico, e das inmeras mudanas ocorridas nele, em especial com relao a intruso dos sentimentos e do exerccio de uma cultura da personalidade, que subverte as relaes sociais e que, at mesmo modifica o sentido do que o amor e a sexualidade para as pessoas. O objetivo detectar os motivos que ocasiona-ram o surgimento de um espao pblico morto. Nesse sentido, Sennett afirma que "foi a gerao nascida aps a Segunda Guerra Mundial que se voltou para dentro de si ao se libertar das represses sexuais. nessa mesma gerao que se operou a maior parte da destruio fsica do domnio pblico" (p. 30).

    A argumentao delineada baseia-se na definio dos papis pblicos nas cidades e na recuperao, como categoria de anlise, da tradio do theatrum mundi. Sennett deixa explcito que a sua tese busca no uma "prova" concreta de suas hipteses, mas sim uma "plausibilidade emprica (que mostre) as conexes lgicas entre fenmenos que podem ser concreta-mente descritos" (p. 63) para que o leitor possa inclusive pensar uma alterna-tiva para a soluo do problema que ele procura diagnosticar.

    Aluna ile Graduao du Ueplo. de Histr ia FFLCH/USP.

  • R. H Is tor ta, Sao Paulo, n. 129-131, p. 271-321, ago.-dez./93 a ago.-
  • R. Histria, Sao Paulo, n. 129-131, p. 271-321, ago.-dez./93 a ago.-dez./94.

    tornando 'uma aparncia de coisas que expressa a personalidade do compra-dor'..." (p. 185) para explicar como a secularizao ocasionou, at introduo da personalidade em pblico como uma forma de crena no significado imanente do mundo, onde at mesmo a essncia da vida privada, isto , a famlia, dissecada.

    A descoberta interessante de Sennett a diviso do homem pblico do sculo XIX em ator e espectador, sentindo mais prazer em exercer este ltimo papel e, a partir da, criando a disciplina do silncio aqui compreendido como ordem e ausncia de interao social, esfacelando todo o princpio de ama cultura pblica existente. Surge a caracterizao de uma personalidade cole-tiva que faz com que a personalidade individual triunfe sobre as classes sociais, estimulando a constituio do que o autor chama de comunidades destrutivas ou "guetos", nas quais fica patente que "a lgica de uma persona-lidade coletiva est no expurgo" (p. 308) ou seja, na auto-destruio. Tais comunidades destrutivas so brilhantemente exemplificadas com a anlise do caso Dreyfus e do "Eu acuso" de Emile Zola.

    Desse modo, Sennett chega concepo do que a sociedade intimis-ta: as teorias acerca do carisma so visitadas e surpreendidas com novas formulaes sobre as relaes do carisma de lderes que atacam o sistema por puro ressentimento e do carisma moderno como um indcio de "inciviliza-o". Sennett afirma que o carisma secular no passa de um streap-tease psquico onde "o fato da revelao (sobre a vida ntima do lder carismtico) o que incita: nada de claro ou de concreto (sobre seus projetos polticos) e* revelado" (p. 330). Esta realidade reforada pela eletrnica e pelo sistema do estrelato, essenciais ao carisma incivilizado, que torna a comunidade incivilizada. Mas, o que o autor qualifica como comunidade incivilizada? Ela , basicamente, "um modo de ser, mais do que um modo de crer", que se mantm por "paixo interna e retraimento externo" (p. 374), isto , cada comunidade se enxerga como a "verdadeira" comunidade. Cabe ressaltar que Sennett dialoga todo o tempo com Max Weber para discutir o conceito de comunidade (o termo , inclusive, utilizado em alemo: Gemeinschaft).

    Conceituando a sociedade intimista, Sennett chega a mais uma conclu-so: os homens - que no ideal clssico do theatrum mundi sfio atores -deixaram de representar e esto privados de sua artel As relaes sociais sfio imaginadas, mas no so completamente vivenciadas... O autor resgata a brincadeira infantil, especialmente o jogo, como sendo o aprendizado da representao e do autodistanciamento, onde a criana "aprende que pode trabalhar e re-trabalhar as regras, que (...) no so verdades imutveis, mas convenes sob seu controle" (p. 391-92). Contudo, a criana reprime essa capacidade porque em nossa cultura, na vida social moderna, deve-se agir

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    narcisistica men te nas relaes sociais para estar de acordo com as normas sociais. mais: as relaes sociais narcisistas produziram uma nova classe social que composta por pessoas que realizam um trabalho quase tcnico e funcional - por exemplo, os programadores de computao - onde "os limites entre o eu e o mundo so apagados porque aquela posio de trabalho parece ser um espelho do poder pessoal" (p. 399).

    Parodiando Max Weber, Sennctt alega que o narcisismo a tica protestante dos tempos modernos, e nesta sociedade " apenas natural que o artifcio e a conveno paream suspeitos. A lgica de uma tal sociedade ser a destruio desses meios de cultura. E ela o far em nome de uma remoo das barreiras entre as pessoas, de uma aproximao entre elas, mas s conse-guir fazer com que as estruturas de dominao na sociedade sejam transpos-tas para termos psicolgicos" (p. 409). Precisamente af reside o que este historiador norte-americano chama de tiranias da intimidade. Elas esto presentes em nossa vida diria e constituem intrnsecamente o que denomi-namos modernidade. Elas so sutis e, talvez exatamente por este motivo, tm um fantstico poder de coero.

    Enfim, a questo que perdura aps a leitura de O Declnio... 6: ser que podemos destruir essas tiranias da intimidade? Sim, entretanto, ferir essa nova tica da modernidade implicaria em modificar as relaes sociais, ou seja, ferir o prprio cerne do sistema capitalista, atitude que no est muito em voga... mas que, novamente, precisa ser colocada na ordem do dia.

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