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Sena Rios – Uma Vida e Mais 99 Anos

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© Copyright 2014

Revisão – Editoração – Capa Nilson Alves de Souza

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta

publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial,constitui

violação da Lei nº 5.988.

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Uma Questão da Justiça

calor durante o dia todo havia sido violento na ci-dade de Araçatuba e aqueles ainda não seriam os dias mais quentes daquele ano. Durante toda a

manhã não se viu, sequer uma nuvem para pacificar o in-transigente Sol da Alta Noroeste. Já passava das quinze horas quando algumas pessoas viram o alto e simpático hábitante do apartamento 306 do edifício da Rua Carlos Gomes chegar a pé e atravessar o portão que fora aberto sem que o mesmo precisasse pedir pela gentileza ao por-teiro. Apenas Germano, o porteiro, cumprimentou o mo-rador e inquiriu se acaso houvera deixado seu veículo pa-ra economizar combustível naqueles tempos de pressão por aumento dos postos de gasolina locais. Não recebeu resposta e achou melhor não perturbar o distinto mora-dor. Ninguém suspeitaria daquele homem charmoso e despreocupado que comprava o jornal na Banca de Revis-tas e Jornais da Praça Getúlio Vargas todos os dias. Ape-nas seria possível reconhecer sua natureza selvagem se acaso quem o investigasse viesse a se tornar sua vítima. Um olhar profissional com um pouco mais de perspicácia, talvez, pudesse desvendar que algo em seu comporta-mento subterrâneo, vez por outra, se aproximava de um ponto crítico. Todos o amavam e respeitavam, mas o que ninguém poderia aceitar era a ideia de que naquele ho-mem belo, gentil e inteligente pudesse ser um dia des-coberto um perigoso assassino.

Pessoa tão sociável e capaz de agradar do mais jo-vem ao mais idoso e experiente nunca se viu, mas para a-quela figura de modos tão exemplares era quase impos-sível encontrar um espaço satisfatório dentro dos limites do mundo que o cercava. Ocupava seu tempo em dois empregos, mas seus horários eram muito flexíveis. Era

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sua folga de um dos compromissos e sentia a urgência de sua compulsão pressionando para que não adiasse mais sua atividade predadora até então ignorada pelos vizi-nhos. Não poderia se demorar, pois já havia programado um encontro para mais tarde naquele mesmo dia. Por is-so entrou apressado no apartamento e foi direto para o banheiro. Contrariou o hábito e prolongou mais o banho naquela tarde como se desejasse se livrar de alguma im-pureza incômoda sob sua pele. Houvera deixado o traba-lho mais cedo para visitar Quitéria que já o estava enlou-quecendo com insistentes ligações no celular que ele mantinha ligado apenas por obrigação do ofício.

A parceira que precedeu seu retorno apressado ao apartamento era uma mulher madura de pernas grossas e nádegas que provocavam até aos menos sensíveis ao gosto, mas colecionava hábitos que ele não aprovava. Tentava a todo custo remover o cheiro do cigarro e do Martíni consumidos compulsivamente por Maria Quitéria enquanto estiveram juntos. Para ele, era uma abomina-ção o que a professora viúva fazia com os sabores e chei-ros e sentia náuseas a cada vez que ela abusava com as combinações que ele mais detestava como o café, o álco-ol, o alho e o tabaco. Ela não era sua única parceira para os seus naturais ritos do sexo. Discretamente mantinha outros relacionamentos ainda menos satisfatórios, ainda mais por que seu verdadeiro vício era pouco convencional e abominavelmente bizarro.

Ainda no elegante toilette todo decorado na impe-cável cor branca, sentia tremores e calafrios como se houvesse passado vários dias em profunda abstinência. Reconhecia aquele instante recorrente de angústia e tudo já havia sido preparado com antecedência. Enquanto ex-perimentava aquelas ondas de vacilo e negação, revivia em sua mente as memórias mais marcantes de sua infân-cia e adolescência. Elas vinham em cenas vívidas e o ho-

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mem contemplava cada passagem mudando seu humor no mesmo ritmo oscilante de seu apetite.

As passagens mais relevantes eram as da infância. Quando era pequeno não o aborreciam as outras crianças quando caçoavam de seu nome ou do short vermelho muito curto e muito largo que o fazia sentir-se como uma menina, enquanto bordejava acanhado e silencioso para desviar dos outros moleques menos tímidos em pleno al-voroço durante o intervalo das aulas. Aquilo não era di-vertido, mas por que desperdiçar tempo se aborrecendo já que ele não era o único alvo do escárnio das outras cri-anças não tão diferentes dele? Dispensava os folguedos e a maior parte das companhias por que gostava mesmo era da arte de dissecar insetos e torturar lagartixas. Os gatos eram mais difíceis de dominar, mas desde muito ce-do colecionava arranhões nos braços e no rosto. Os adul-tos achavam inocentes e engraçadas as suas pequenas crueldades, porém a aprovação diminuiu quando já era um mocinho e frequentava o quinto ano no colégio Jou-bert Carvalho. Essa fase teria sido mais incômoda, pois sua cabeça doía constantemente e sua mãe fora obrigada a peregrinar por diversas clínicas e a ouvir variadas opi-niões médicas a fim de curar sua enxaqueca. Demorou muito até que sua mãe conseguisse somar algumas eco-nomias para uma consulta particular e desse modo dar início a um tratamento razoável. Foi a primeira e última vez que um médico bisbilhotou o seu cérebro. Nada de anormal foi detectado em seus exames, senão uma fraca disritmia e isso nunca mais receberia atenção profissional.

Enquanto ainda era uma criança, Maicon Alexandre era um menino comum que sonhava em ser como os personagens das histórias em quadrinhos que gostava de ler e colecionar. Seu nome era a única herança que res-tou de seu pai admirador de um seriado de televisão dos anos de 1980. O gosto questionável e a posterior ausên-

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cia de seu pai fizeram com que Maicon odiasse ainda mais o nome que recebera, sobretudo, por que seu pai o havia ditado de forma equivocada ao oficial do cartório. Foi desse modo que Michael tornou-se Maicon. Após a morte da irmã seu temperamento mudou muito e parecia sentir-se cada dia mais deslocado em meio a tudo o que o cercava. Mais perturbador ainda foi o fato de ter crescido sem irmãos e ser obrigado a passar quase todo o tempo em que a mãe trabalhava fora sozinho em casa.

Um dia a menina Cecília, irmã mais nova de Maicon,

ainda com oito anos, experimentou um trauma exagerado demais para sua tenra idade. Costumava ficar sozinha algumas horas, já que os pais eram obrigados a trabalhar até tarde e seu horário de escola não era o mesmo que o do irmão. O senhor Cícero, pai de Cecília e de Maicon, se aventurou em uma sociedade com outro pedreiro por que o mercado da construção civil parecia demonstrar ânimo naquele período dos anos de 1980. Animados, seguiram a cartilha do pequeno empreendedor à risca e financiaram a compra de ferramentas e um veículo para transportar suas bugigangas. O nome do pai de Maicon era o único que serviria para os empréstimos e os protocolos para a abertura de uma pequena empreiteira já que o parceiro e sócio, Olavo Rocha, se encontrava com restrições nos desconfortáveis e limitadores cadastros de inadimplentes. O mercado correspondeu às expectativas dos sócios, mas logo o empreendimento revelou que eram necessários mais do que habilidades e talentos para construir casas. Uma ordem judicial fez com que um distinto oficial de justiça acompanhado de um representante do banco, dois mecânicos e o motorista do guincho cumprissem o man-dato de busca e apreensão da Perua que o pai de Maicon havia adquirido.

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Na ocasião, apenas a infante Cecília se encontrava solitária no imóvel absorvida com seus folguedos costu-meiros de menina. Parecia que a casa transbordava de gente, pois a menina punha toda sua imaginação em ofício para tornar sua solidão menos penosa. Tomou um susto quando olhou pela pequena janela de madeira e viu aquela tropa com muitos papéis e sapatos reluzentes, ex-cluindo-se apenas os dois mecânicos com macacão sur-rado e botinas padrão. Os homens inquiriam sobre o pa-radeiro do pai e a menina emudeceu de vez e congelou suas finas perninhas sem conseguir reagir de forma algu-ma.

A mãe de Cecília foi a primeira a chegar e logo foi interpelada pelo oficial de justiça. Olhando para os papéis na mão do distinto, só conseguia pensar na frágil Cecília. Articulou, enfim, um sonoro e seco: “Meu nome está nes-te papel, senhor?”. Com a resposta negativa e surpresa do oficial ela concluiu levando a menina para o quarto com outra frase ainda mais seca: “Então o senhor não me incomode!”. O senhor Cícero chegou logo em seguida sem que houvesse se passado mais do que meio quarto de hora. Uma fração de tempo desprezível, mas que para uma infante assustada parecia estender-se ao infinito. O homem notificado não desejava prolongar aquele período tenso das formalidades e decidiu colaborar de imediato entregando a chave do veículo para abreviar a conversa. Foi quando chegaram ao local o Cabo da Polícia Militar Eugênio Duarte e seu parceiro de ronda, o Soldado Mes-sias. Haviam sido chamados por que o oficial julgava ser necessário o arrombamento do veículo. Logo todos os cu-riosos do bairro e alguns de passagem começaram a se a-glomerar e fazer caras de espanto e desaprovação.

O pai de Cecília, percebendo o desespero da filha, implorou da maneira mais humilde que sua formação po-deria permitir para que ao menos o giroflex da viatura

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fosse desligado ao que o Cabo respondeu não ser possível por se tratar de um protocolo da corporação. O senhor Cícero insistiu na humildade e lembrou que o oficial de justiça já havia dispensado a presença da polícia por que o proprietário já estava presente e colaborava sem resis-tência, mas o Cabo foi inflexível. Ainda pensando na filha, Cícero tentou argumentar falando de forma lenta e en-gasgada que aquele procedimento apenas estava servin-do para constrangê-lo ao que o Cabo já sem paciência lhe respondeu com poucas e eloquentes palavras: “É para isso também!”. Cícero emudeceu e sentiu a gravidade zombar de suas pernas sempre fortes. O rosto queimava pressagiando a teimosa queda das lágrimas. Era maduro o suficiente para saber que qualquer atitude após aquela frase tão cheia de significado seria sua própria ruína. Fi-cou olhando para o Cabo que se sentiu provocado e deci-diu estender a visita a fim de arrancar protestos destem-perados do morador e com isso a oportunidade de mos-trar sua autoridade policial.

Mesmo com tudo já resolvido, ficaram todos em fren-te ao imóvel do senhor Cícero por mais de quarenta mi-nutos. Depois se despediram levando a Perua sobre o Guincho. O Cabo fez questão de ser amigável ao se des-pedir e Cícero respondeu com mesma cortesia, mesmo reconhecendo o grave sarcasmo da autoridade que aca-bava de abusar de sua impotência.

Maicon assistiu a tudo do outro lado da rua impas-sível. Desejava ver o pai resolvendo aquela situação da maneira mais apropriada para o agravo, segundo seu mo-do particular de entender as coisas. Queria que o pai ti-vesse degolado o policial ali mesmo diante de todos. Po-rém, a maior desgraça o senhor Cícero teve de enfrentar dias depois. Cecília ficou profundamente marcada pelo episódio e voltou-se contra o pai. Passou-se mais de uma semana e meia sem devolver uma única frase ou olhar

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que servisse de alento ao abatido Cícero. Não poderia ser diferente. Cecília era muito jovem para ter consciência do que havia acontecido, mas o golpe foi grande demais para o pai. Duas semanas depois daquele infausto epi-sódio, a família ainda teria outro choque o qual o ainda jovem Cícero não seria capaz de superar. Cecília recebia tratamento para epilepsia, mas o que era desconhecido pela família era que o diagnóstico não poderia estar mais incorreto. O que a menina tinha era uma grave encefalite descoberta tardiamente e o óbito foi inevitável.

O pai passou a se torturar por que a filha havia falecido sem que um perdão lhe escapasse pelo rosto na forma de um sorriso. A lembrança das gargalhadas escan-dalosas da menina transformaram-se em uma amarga tortura para Cícero. Cada pequeno detalhe da inocência e entusiasmo de Cecília abria-lhe o peito como se o coração não desejasse mais aquela morada. Cecília não sentaria mais em seu colo fingindo ser a motorista do seu antigo sonho sobre rodas. Ele a havia decepcionado e permitido que arrancassem com violência o orgulho que sentia do seu pai. Primeiro veio o desânimo para o trabalho, depois veio o álcool como fuga e, por fim, o abandono definitivo.

Foi a partir desse macabro episódio que a mãe de Maicon, dona Marta Assumpção Rodrigues e ele passaram a viver sozinhos.

Amigos, Maicon teve apenas dois: Rubens e Gabriel. A vida desses garotos era muito mais pesada. Rubens envelheceria e se casaria mais tarde, porém acabaria morto em um acidente de trabalho ao cair de um andai-me. Já o Gabriel nunca iria além do sexto ano na escola e terminaria sua vida seguindo os mesmos passos de seu pai violento.

Os dois garotos, logo que conheceram Maicon senti-ram forte empatia por ele e acabavam visitando-o em sua casa quando a mãe ainda estava no trabalho. Desse mo-

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do Maicon aprendeu a se esquivar do pequeno cárcere de seu quintal para aventurar-se com os amigos perambu-lando pelas ruas de Araçatuba. Quando a fome os inco-modava seguiam até a Rua Cussy de Almeida onde uma senhora viúva sempre lhes agraciava com uma refeição formada de suas sobras que eram muito mais apetitosas do que o que estavam acostumados a comer em casa. Quando havia feira eles aguardavam até que os feirantes desarmassem suas barracas para comer as frutas que não seriam aproveitadas por eles.

Rubens e Gabriel já estavam muito acostumados com essa vida desde o primeiro ano no colégio. Os dois eram vizinhos e a proximidade não era a única coisa em co-mum. Padeciam da mesma enfermidade: pais alcoólatras que agrediam as esposas e em seguida descarregavam suas desilusões nos filhos. Ambos, pouco frequentavam as aulas. Apareciam somente no horário reservado a me-renda escolar por que o destino deu a eles a mesma sina. Os dois tinham pais que bebiam e agrediam as esposas e a hora escolhida para a apoteose de seus vícios coincidia justamente com o horário do jantar. Todos os dias a cena se repetia. Mães esculhambadas, crianças escondidas no mato para não apanhar dos pais, mesas com os pratos vazios e alimentos espalhados pelas paredes.

Da amizade com os dois meninos um único fato iria permanecer gravado como cicatriz na mente de Maicon, além da simpatia pela carência e a apreciação que os dois lhe emprestavam. Os três escolhiam construções abando-nadas para conferir os espólios e avidamente assimilar o que ensinavam as revistas de pornografia que surrupia-vam e mantinham escondidas como tesouros nesses am-bientes. Vizinha a um desses templos escolhidos havia uma casa habitada onde morava uma jovem com pouco mais de quinze anos. Maicon cativou-se com os olhos e o corpo da menina. Pela primeira vez as páginas de suas

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revistas fizeram sentido para ele. Nunca pusera o olhar daquele modo em uma fêmea com uma pele tão atraente e com um olhar azul tão cativante quanto aquela. Sentia grave pressão em seu instinto para tocar aquele corpo. A imagem da menina perturbaria seu sono por toda a sua vida. Nunca souberam o nome da infante musa de Mai-con, mas Rubens e Gabriel logo começaram a chamá-la de “Branquinha” e sempre a provocavam com frases e gestos obscenos. Maicon constrangia-se com isso, mas nunca teve coragem de ir além do simples ato de olhar para ela.

Conforme os amigos iam crescendo aumentava tam-bém a ousadia em suas travessuras. Os meninos se diver-tiam com as maldades que Maicon elaborava com os in-cautos animais de estimação dos vizinhos. Logo aparece-riam os primeiros furtos mais ousados que os da banca de revistas da Estação Rodoviária e a esperteza de Maicon o elevaria a posição de líder da quase quadrilha infantil.

O menino Maicon já revelava em tenra idade uma grande habilidade na arte de planejar, dissimular e im-pressionar os outros. Não demorou a descobrir onde seu tio guardava o talão de cheques e maliciosamente sub-traiu a última folha removendo com acetona algumas le-tras que com uma habilidade artística foram substituídas por outras. Foi desta maneira que ele sentiu corroborados os talentos que o tornariam incomum entre as outras pes-soas. Tornou-se habilidoso na arte de fazer algo parecer-se com outra coisa e o mais impressionante foi como sur-giu a capacidade de distrair e convencer suas vítimas a confiarem nele. Aprendeu a falar com muita segurança e suas histórias convenceriam qualquer um quanto a sua veracidade.

A mãe de Maicon, dona Marta, trabalhava duro para não deixar que faltasse nada ao filho. Vivia presa em ho-ras extras na única fábrica de calçados da cidade e até

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deixava de comer para que o dinheiro fosse suficiente pa-ra comprar tudo o que o garoto desejasse. A infância dela foi terrível e nada daquilo seria repetido com seu único tesouro, principalmente depois do que ocorreu com Cecí-lia. Afinal, Maicon parecia ser um menino muito promis-sor. Ele não se destacaria mais de nenhum modo até a idade adulta, pois foi sempre um aluno calado e de notas insuficientes até concluir a oitava série sem que isso vies-se a chamar muito a atenção. Não havia nada de anor-mal, relevante ou diferente de outros milhões de meninos com as mesmas características e vivências.

Seu olhar tornava-se cada vez mais convincente e seu rosto mais confiável à medida que o tempo passava. Ainda enquanto um adolescente alto demais para a idade e atleticamente magro, Maicon aprendeu a gostar do que era capaz de fazer. Tomou gosto pela ideia de ter contro-le sobre as pessoas, mas não aprendeu a controlar o que o seu desejo o levaria a fazer mais tarde.

Dona Marta protegeu o filho quando este foi acusado de um duplo homicídio brutal, mas apenas ela e as auto-ridades encarregadas pelo caso não se convenceram de que fora ele o responsável por aquela aberração. Outra pessoa levaria o crédito e a exposição do fato fez surgir na índole do jovem uma fascinação pelo poder e pela admiração dos outros. O fato de alguns o terem defen-dido revelou outro desejo até então oculto. Passou a de-dicar-se com mais ardor aos estudos da psicologia, da fi-losofia e, por fim, da química. Saiu de Araçatuba e viveu como nômade em algumas instituições de ensino no Para-ná. Obviamente, ninguém mais suspeitaria do nome de Maicon até que fosse muito tarde.

O duplo homicídio do início dos anos de 1990 foi o

resultado de um arrombo de fúria de Maicon ao ser con-trariado. Poderia se dizer que foi involuntário até. Mas,

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suas vítimas seguintes seriam selecionadas com muito mais capricho. Nunca mais Maicon mataria como o fez naquele episódio, mas foi naquele dia que experimentou pela primeira vez um efeito similar ao causado pela Dopa-mina nos viciados, incluindo-se, também, o estágio de repulsa pelo ato cometido. Por muito tempo o animal con-tido em Maicon o faria viver um dilema moral interno. Po-rém, com os anos o seu apetite se tornaria mais intenso e dominaria o restante de sua natureza humana.

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A Liberdade Subordinada ao Instinto

ão logo deixou o apartamento em direção a sua ou-tra propriedade mais distante do centro, Maicon já estava quase todo transformado. A localização de

seu outro imóvel não era desconhecida, mas jamais en-traria na lista de locais suspeitos.

Começava naquele isolado recanto o estágio final da transformação de Maicon. Muitos anos haviam passado desde sua primeira queda no abismo da inspiração tana-tológica até aquele momento em que ele se encontrava tenso e impaciente em sua poltrona de couro no quarto de sua propriedade próxima ao rio. O seu templo pessoal de atrocidades não poderia ser o apartamento valioso no centro da cidade. Há um limite até para a insanidade. Es-colheu para isso um lugar mais afastado e isolado. Muitos erros de seu antigo amadorismo já teriam sido superados, mas o medo de ser apanhado parecia crescer à medida que os anos passavam.

Depois do duplo assassinato em Araçatuba, Maicon conseguiu ocultar outros crimes que nunca foram solu-cionados nas cidades de Londrina, Curitiba e Maringá. Também atacou no estado de Santa Catarina e em outras localidades do interior do estado de São Paulo. Faltava-lhe algo. Não havia um padrão em seus ataques e a im-prensa ou a polícia jamais conseguiram estabelecer para-lelos entre os crimes. Isso o frustrava, pois a atenção não era focalizada em seus atos como esperava que fosse. A escolha irregular sem respeitar uma geografia única so-mada à inexperiência de suas primeiras crises o preju-dicava e ele precisava de um modelo específico de ata-que. Na realidade o maníaco Maicon estava aprendendo e evoluindo com seus erros.

T

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O retorno para Araçatuba não poderia ter ocorrido em melhor momento para Maicon. A cidade tornara-se um centro muito mais atrativo para seu apetite. Multipli-caram-se as faculdades e os serviços locais atendiam vá-rios outros municípios vizinhos como Bilac, Auriflama, Biri-gui, Buritama, Santo Antônio do Aracanguá, Guararapes e até outros mais distantes dentro dos limites que um dia a tornariam a capital de uma região metropolitana. Havia nas calçadas muitos ambulantes com seus produtos alter-nativos sempre comercializados em bom expediente co-mercial e oferecendo um paralelo para consumidores in-felizes com a precariedade e baixa qualidade dos serviços oficiais. A insatisfação podia ser sentida no ar e isso seria um forte catalisador para Maicon.

Pairava sobre a cidade uma atmosfera densa de aca-demicismos e ideias extravagantes sobre temas sociais. Um progresso muito exagerado para aquele ambiente graças a anos de política e experiências sociais equivo-cadas. Maicon já estava de volta na cidade há pelo menos dois anos e não teve trabalho para conquistar os araça-tubenses apresentando-se como um refinado imigrante qualquer. Ninguém jamais suspeitou que não fora ao aca-so que Maicon retornara para aquela cidade e nela fixasse seu domicílio.

Maicon, agora utilizando nova identidade, era uma pessoa muito além do antigo morador. Tornara-se muito mais polido e inteligente, houvera acumulado riqueza também. Costumava deixar desconcertados muitos douto-res quando debatia certos assuntos, sobretudo, quando se relacionavam a psicologia e filosofia. O grande cidadão que veio a se tornar infiltrado naquela sociedade tinha uma visão moderna sobre a liberdade e seus efeitos. Sua visão sobre o homem livre como agente e não como ob-jeto de uma ideia seduzia até alguns professores de his-tória bem-intencionados com quem costumava divagar