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    SEMPRE VIVAO mistrio no nome do pai

    Notas de pesquisa para argumento cinematogrfico

    A idia bsica a realizao de uma pesquisa que, preenchendo lacunas da biografia de meu prprio pai,subsidie o roteiro de um filme denominado Sempre Viva - O mistrio do nome versando, entre outrascoisas, sobre o conceito genealogia perdida, drama coletivo ao qual foi submetida a maioria dosdescendentes de escravos no Brasil.

    A histria estar centralizada nas peculiares origens deste homem que se chamava Jos Cyrillo do EspritoSanto, cuja misteriosa vida pregressa, dispersa em fragmentos na memria de seus familiares, se tentardesvendar e organizar, com os hiatos e pontos impossveis de serem resgatados, substitudos por inseresde dados ficcionais, sugeridos como probabilidades na pesquisa

    Cabe-nos enfatizar, portanto - como deve ficar suficientemente claro no corpo desta narrativa - que todosos nomes e fatos citados neste estudo, esto inseridos no contexto de um projeto de finalidadesmeramente artsticas. A maioria dos dados abordados, a despeito de sua eventual plausibilidade, nocontm nem pretendem conter- embasamento documental que possa servir para quaisquer outrasfinalidades que no a eventual realizao de uma obra de fico, que se estruturar a partir do seguintestory line:

    Jovem descendente de escravos, homnimo de jovem branco, de rica e influentefamlia do interior, foge para a cidade grande, vai guerra na Europa e, de volta aoseu pas, constitui famlia, mantendo sempre obscuros, fatos cruciais de seu passado,confundindo-os, por alguma estranha razo, com episdios vividos na verdade por seuhomnimo. Aps sua morte, um dos filhos decide averiguar a histria, descobrindo

    antigas relaes de parentesco e herana entre seu pai e a famlia branca.

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    Vida pregressa do paiFragmentos de dados reais que deflagram a narrativa:

    Jos Cyrillo do Esprito Santo, nascido em 1918 em Diamantina, Minas Gerais, fugiu com 14 anos dointerior para a cidade do Rio de Janeiro, por motivos que nunca revelou, nem para a esposa. Na fuga alegater participado de escaramuas ligadas revoluo de 1932, at parar no Rio de Janeiro, onde ingressa noexrcito em 1934, ficando ali engajado at 1939, quando aos 22 anos, por razes tambm desconhecidas,decide desertar.

    Reincludo no exrcito em 1942 condenado em 1943 a 10 meses e 15 dias de priso pela desero de1939. Em novembro de 1944, praticamente saindo da cadeia direto para o convs de um navio, embarcapara a guerra na Itlia onde fica at julho de 1945. Casado em 1946, tem um filho em 1947 e, quaseimediatamente mais dois outros, mas morre em 1951, com pouco mais de 30 anos, provavelmente porconta dos tormentos que sofreu na guerra, na qual foi um dos combatentes na sangrenta batalha pelatomada do Monte Castelo.

    Muito reservado com relao aos fatos de seu passado em Diamantina, principalmente os que motivaram asua fuga de casa ainda to novo, ele deixou poucas informaes sobre sua atribulada vida. Curiosamente,restaram embaralhados em sua fragmentada histria, fatos que, depois de verificados em pesquisa nolocal, se mostraram estranhamente inverossmeis porque haviam sido vividos, na verdade, por umhomnimo seu chamado Jos Cyrillo dos Santos Neto ('Jnior'), herdeiro de uma rica e influente famlia os Cyrillo Dos Santos-, tradicionalssima em Diamantina, cujos vares, pelo menos desde o sculo 19,eram batizados com o nome de Jos Cyrillo, mais ou menos como uma marca dinstica, de cl.

    Com efeito, dados obtidos numa pesquisa posterior (2009), confirmando o levantamento preliminar (1981),

    do conta que a famlia Cyrillo dos Santos ainda hoje muito importante em Diamantina tendo sededicado, pelo menos at alguns anos atrs, exportao de flores ornamentais conhecidas comoSempre-vivas (Paepalanthus Polyanthus) alm de ser segundo dizem, proprietria da maior imobiliriada regio e de possuirem uma concorrida loja de artesanato no centro histrico da cidade, a 'Boutique

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    Cyrillo'.

    Que misteriosa razo teria induzido Antnio, pai de Jos Cyrillo, o negro, a atribuir a seu primognito, umnome to diretamente associado esta importante famlia? Algum tipo de homenagem a um padrinho?Teria sido autorizada uma homenagem assim to ntima e particular, como a atribuio deste nome, aalgum no pertencente ao cl? Que relao poderia ter havido entre o A pai de Jos Cyrillo negro, e afamlia de Jos Cyrillo dos Santos, o patriarca branco, rico proprietrio de escravos no sculo 19?

    Na histria de Jos Cyrillo, o negro, contada por ele mesmo, h muitos episdios ocorridos dentro doseminrio da Mitra Diocesana de Diamantina de onde ele afirmou ter sido aluno. Na verdade, se conseguiuaveriguar em 1981 com um padre do local que o seminrio no aceitava alunos negros naquela poca (porvolta da dcada de 20 do sculo passado). Com efeito, o nome de Jos Cyrillo do Esprito Santo no constano livro de registros do seminrio onde consta sim o de Jos Cyrillo dos Santos Neto (jnior), seuhomnimo branco.

    Contudo, so verossmeis vrios episdios da histria contada por Jos Cyrillo, o negro, sobre a rotina e ointerior do seminrio. Dois deste detalhes so at muito significativos. Um, por exemplo, conta umincidente num quarto escuro, onde ele teria ficado de castigo, junto do esqueleto da aula de anatomia,que foi desmontado e remontado, segundo dizia orgulhoso, para passar o tempo. H tambm o episdio dalavadeira que prestava servio para os seminaristas, o acolhendo e protegendo, a ponto de ter emprestadoas roupas civis com que ele, se livrando da batina, fugiu da cidade. de se supor, portanto, que JosCyrillo, o negro, realmente conhecia o seminrio podendo mesmo, de algum modo, ter ali residido.

    Considerando remota a possibilidade de um menino de 14 anos alm disto, negro, residir sozinho numambiente de costumes to severos como os de um seminrio, a hiptese mais plausvel a de que elemorava com algum que trabalhava, ou tinha amplo acesso s dependncias do seminrio. A hiptese maisevidente neste caso a de que a pessoa com quem morava, era mesmo a tal lavadeira. No menosimprovvel inclusive que esta lavadeira tivesse sido a sua prpria me ou, no caso dele ter ficado rfo,algum com fortes laos de parentesco, uma tia ou mesmo uma av.

    A possibilidade de conviverem no seminrio dois meninos to diferentes entre si, com o nome de JosCyrillo, deve ter dado com certeza muito que falar na poca. Teriam se imaginado parentes? Teriam sidoamigos? O que teriam pensado sobre o fato algo inslito de terem exatamente o mesmo nome. O que certo que, todos os segredos contidos na histria de Cyrillo, o negro, parecem nos remeter questes deparentesco. provvel at que a razo de sua fuga esteja relacionada a isto.

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    Sobre sua me Maria Josephina (ou uma pessoa que o criara ou com quem vivera durante certo tempo) emdescrio atribuda a ele por sua esposa, Jos Cyrillo, o negro, dizia que ela era 'uma africana, que nofalava portugus e comia com as mos, agachada no cho, caada a lao beira de um rio, por umtropeiro branco' .

    Esta estranha descrio, muito improvvel se protagonizada por seus pais, nascidos no fim do sculo 19, japs a abolio da escravatura, nos sugere fortemente, contudo que, algum da famlia, muito

    provavelmente sua av, teria sido mesmo uma africana capturada e levada para Minas Gerais. A relaocarnal entre a africana com o tropeiro seu captor ou comprador- fica tambm, fortemente sugeridacomo bvia nas entrelinhas do relato.

    Por este raciocnio, Antnio, o pai de Jos Cyrillo, o negro, teria sido um filho bastardo de Jos Cyrillo dosSantos (que teria sido tropeiro e foi, comprovadamente, dono de escravos em 1878), com a escravaafricana a qual, a julgar pelo indcios do mesmo relato, Jos Cyrillo, o negro, conheceu bem, chegandocom ela a conviver, quem sabe at mesmo como uma segunda me.

    Entre os mesmos fragmentos de memria deixados por ele, h a descrio de dois tios, irmos de seu pai,que teriam tido carreiras bem sucedidas no Rio de Janeiro, ele, Nilton do Esprito Santo, como delegadode polcia e ela, Marieta do Esprito Santo, como pianista clssica.

    Segundo afirmou a sua esposa Geny, Jos Cyrillo, o negro, no mantinha boas relaes com os tiosoriundos de Diamantina, havendo visitado apenas Marieta, no bairro do Flamengo, uma ou duas vezes. Detodo modo, a boa situao social desses tios era bastante incompatvel com o que ele deixou sugeridosobre a vida modesta de seus pais. A impresso que fica a de que, seriam ao menos trs os filhosbastardos do senhor branco com a escrava, sendo que, pelo dois receberam algum tipo de apoio paterno,tendo sido por algum forte motivo o terceiro (supostamente o pai de Cyrillo, o negro), largado prpriasorte. Depois de deserdado do nome, deserdado de tudo.

    So muito elucidativos tambm alguns aspectos relacionados ao perfil tnico ou racial da famlia de JosCyrillo, o negro. Segundo seu relato, os tios tinham o tipo acaboclado, morenos no muito escuros, comcabelos quase lisos, perfil que, pode ser estendido a Antnio, seu pai. Ocorre que Jos Cyrillo, o negro,nasceu preto quase retinto, aspecto que sugere um perfil semelhante para sua me, Maria Josephina, a

    quem ele teria 'puxado'.

    Este fator, embora reforce a tese da africana capturada (que poderia ter sido a av, me de Antnio) e atese do filho bastardo, insere na histria a possibilidade algo remota de sua prpria me ter sido tambmuma 'quase' africana (neste caso uma filha de escravos).

    Dois outros mistrios podem acentuar ainda mais a tendncia de Jos Cyrillo, o negro, para se envolver,voluntariamente ou no, em mistrios ligados a nome e identidade. Um o fato de sua coleo dasrevistas Selees do Readers Digest (variedades e anti-comunismo) e O Pensamento (ocultismo eesoterismo), ambas muito populares no ps guerra (1945) serem assinadas por um tal de Carlos ChristbalRocha, codinome que ele utilizava na poca associado talvez a algum tipo de atividade secreta, sugeridatambm, quem sabe, pela longa vara de bambu com uma antena de rdio amador (de Galena ) que ele

    mantinha pendente no teto de sua casa no bairro de Mal Hermes, Rio de Janeiro.

    Outro mistrio familiar o aparecimento de uma certido dando conta do nascimento em 1951, mesesantes de sua morte, de mais uma filha, Clia Regina, cuja real existncia jamais foi realmente confirmadapela famlia (nem mesmo por Geny, a suposta me da menina).

    Cheia de mistrios como se viu, a histria precisar preencher os seguintes hiatos:

    Quem seriam os avs paternos e maternos de Jos Cyrillo, o negro?Na regio de Diamantina, em que bairro ou nas terras de quem viviam seus pais Antnio eMaria Josephina?Quando, como e como viveram e morreram os pais dele?

    Como, porque e com quem ele viveu no seminrio?Quem era a lavadeira do Seminrio?Porque ele fugiu aos 14 anos de Diamantina?Como e com a ajuda de quem chegou ao Rio de Janeiro?

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    Porque desertou em 1939?Onde e como sobreviveu entre 1939 e 1942, procurado como desertor pela Polcia doExrcito?Sua filha Clia Regina existiu mesmo? Seno, porque foi forjada uma certido com seunome?

    Questes conceituais principais, a serem desenvolvidos na pesquisa:A expropriao do nome

    No passado remanescente de Jos Cyrillo, o negro, o nome da av africana, tornada escrava no Brasil, foiarbitrariamente substitudo por um nome portugus e por um sobrenome catlico (ambos talvezimpossveis de serem descobertos pela pesquisa). Toda a memria contida no nome africano, original dela,que poderia servir de referncia para a afirmao da identidade pessoal de todos os seus descendentes(onde nasceu, a que cultura estava afeita, que papel poderia ter desempenhado em seu grupo ousociedade), ficou reduzida a fragmentos desconexos de memria, repassados por Jos Cyrillo, o negro,para sua esposa Geny, assim mesmo, de forma muito cifrada e confusa.

    A expropriao do sobrenome

    Ao que tudo indica a imposio ou a subtrao de um nome palavra que serve para identificar umapessoa no mbito restrito de seu grupo familiar ou cl - menos traumtica que a imposio (ou asubtrao) de um sobrenome palavra usada para identificar o grupo familiar num contexto mais amplo,social, tribal, cultural ao qual o indivduo esteja ligado, podendo ser por este intermdio, reconhecido.

    O sobrenome permite tambm que se trace uma linha clara entre uma pessoa e seus antepassados,configurando-lhe individualidade. Ao se suprimir o sobrenome de uma pessoa, se est na verdade lhenegando um passado, uma genealogia, uma histria enfim (como o caso evidente dos descendentes deJos Cyrillo do Esprito Santo, objeto desta pesquisa).

    J se sabe que o sentido geral do batismo portugus durante a escravido, era baseado na crena de queos negros africanos no tinham alma, individualidade, precisando, pois receber nomes de gente paraserem, supostamente 'transformados em indivduos', pessoas de verdade. Na maior parte do tempo em

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    que durou a escravido, o mais comum era, logo aps a imposio do nome portugus (geralmente ummesmo nome masculino e outro feminino para cada leva de escravos) se utilizar como sobrenome a origemgeogrfica de cada escravo, sua nao (Maria Angola, Manoel Moambique, Felipe Mina, etc.).

    Era na Corte ou nas capitais de provncia, principalmente nos anos prximos abolio, que o sobrenometal como o conhecemos passou a ser aplicado aos escravos com uma funo mais especfica, usado orapara associar o escravo a um ncleo familiar determinado ou, o que era mais comum, para identific-lo

    como pertencente a esta ou aquela parquia, no permetro desta ou daquela fazenda, sob o mando desteou daquele senhor, seu proprietrio.

    O sobrenome catlico cumpria, pois muito mais que a finalidade de identificar o indivduo no seu grupo, afuno de facilitar polticas de controle e represso de escravos.

    A expropriao dos direitos relacionados ao sobrenome

    Ao que se supe tambm Antnio do Esprito Santo, pai de Jos Cyrillo, que vem a se casar com MariaJosephina, tem seu sobrenome extrado desta prtica portuguesa muito recorrente, at mesmo depois daescravido, de se atribuir aos escravos e seus descendentes, um sobrenome que associava o indivduo a umevento catlico qualquer ou mesmo a um santo em especial, geralmente como se disse, no contexto dasparquias.

    Assim, so muitos os, Das Virgens, das Mercs, De Jesus ou mesmo os Dos Santos ou Do Bonfim,Das Dores, etc., existentes no Brasil. No caso de Diamantina, terra de Antnio, o santo mais popular,padroeiro da cidade era e, ao que parece, at hoje- o Divino Esprito Santo.

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    A estigmatizao do nome

    Por esta lgica, tambm Antnio, pai de Jos Cyrillo, o negro pode ter tido seu nome de famliaexpropriado. As razes poderiam ser duas:

    1- Ele era descendente direto de escravos dedicados em batismo ao Divino Esprito Santoou,

    2- Era filho ou neto bastardo de um homem branco, muito provavelmente de umaimportante famlia no local, cujo sobrenome no poderia ser atribudo a ele sem

    provocar problemas morais na poca - ou mesmo judiciais ou financeiros, de herana - nofuturo, havendo sido a sua ascendncia oculta por um sobrenome vago, que o dedicava aosanto padroeiro do local.

    Assim sendo, ao ter as eventuais referncias familiares contidas no sobrenome africano do ramo maternosubtradas e, do mesmo modo (embora por outras razes) sonegadas todas as informaes referentes suposta ascendncia paterna, Jos Cyrillo teve cortados os vnculos com suas origens nos ramos materno e

    paterno, passando a ser um no-indivduo, pessoa condenada a ter pouco ou nenhum acesso a sua histriafamiliar (agenealogia perdida), herana que, involuntariamente, passada para seus descendentes.

    A atribuio de seu sobrenome talvez com o fim de ocultar o segredo de sua suposta origem, acabou setransformando num estigma, marca imposta de modo nunca cicatrizar.

    A apropriao do nomeNa hiptese de ter sido mesmo um bastardo, cujo direito ao sobrenome do pai natural lhe foi negado, anica alternativa que restaria a Antnio para que seus descendentes no tivessem o passado expropriadopela segunda vez, foi ento se apropriar ele mesmo, seno do sobrenome, pelo menos do nome (naverdade um nome dinstico) de seu suposto pai.

    Caso tenha mesmo ocorrido, este gesto, por mais ingnuo ou despropositado que possa parecer, acabariasendo a nica pista que restou da obscura histria de sua famlia, um nico fio da embaraada meada.Tivesse Jos Cyrillo, o negro, outro nome qualquer e a eventual existncia de segredos em sua histriafamiliar jamais teria sido suspeitada.

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    A rejeio do nome e a negao de si mesmo

    Que outra explicao plausvel se poderia obter para Jos Cyrillo, o negro, cujo nome prprio igual aodo jovem branco, ter embaralhado a sua prpria histria - a que conta para sua mulher - inserindo nelafatos que foram na verdade eventos vividos por seu homnimo?

    A atitude fortuita pode significar tambm (caso ele j no soubesse a razo do nome), o sentimento derejeio por sua histria familiar, sua condio pessoal, sua revolta diante de ser, junto com seu pai, umrenegado. Este tipo de motivao pode ter-lhe incutido a vontade inconsciente de ser o outro, trocar delugar com o outro, o homnimo (que a esta altura j estava morto). A fuga da terra natal e da famliacomo expresso da rejeio contra tudo isto.

    A investigao do nome

    Em 1981, o filho mais velho de Jos Cyrillo, o negro (Antnio Jos), viaja at Diamantina em busca daconfirmao da estranha histria relatada pelo pai. J num primeiro passeio pela cidade encontra vriaspessoas com o sobrenome Do Esprito Santo. Um dos supostos parentes se emociona e chora, ao se

    imaginar diante de um elo perdido de sua tambm dispersa famlia.

    Refeito do susto e conformado, reflete: Deve ser culpa do Divino Esprito Santo, padroeiro do lugar, estaproliferao de pessoas com sobrenomes iguais ao seu, a maioria, descendentes de escravos, garante.

    Seria quase impossvel, portanto localizar parentes ou antepassados de Jos Cyrillo, o negro - ou mesmoqualquer negro -, partindo apenas de seu sobrenome.

    Uma descoberta mais surpreendente ainda acontece logo em seguida, no centro comercial da cidade,quando Antnio Jos, o filho, se depara com inscrio Boutique Cyrillo, entalhada numa placa demadeira de uma loja de artesanato. No interior da loja h um livro de contabilidade muito antigo,pitoresca curiosidade para atrair fregueses. No livro, nas anotaes de Dever e Haver constam detalhes

    pormenorizados sobre a compra e venda de escravos, mulas, ferramentas e mantimentos. Abaixo, no fimda pgina a assinatura do patriarca proprietrio:Jos Cyrillo dos Santos, 1878.

    No seminrio da Mitra Diocesana de Diamantina, na mesma linha da anterior, uma descoberta tambmsurpreendente: Inquirido sobre a possibilidade de ter existido ali um aluno chamado Jos Cyrillo doEsprito Santo, o padre, a princpio reticente diante da evidncia de efetivamente haver no livro deregistro de algum aluno com este nome, acaba assumindo enfaticamente que sim, houve um aluno com

    este nome no seminrio, mas ele jamais poderia ter sido pai de inquiridor. Mostra o nome do aluno nolivro, da turma dos nascidos em 1922: Jos Cyrillo dos Santos Neto ('Jnior') um homem branco que, jcomo ex seminarista, morreu num acidente nos cus de Diamantina, ao que dizem, pilotando seu prprio

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    avio.

    As razes eram definitivas: O sobrenome no coincidia, e o Jos Cyrillo em questo, o ex seminaristaaviador, no era o meu pai e pertencia mesmo quela famlia branca e influente do local.

    _A famlia hoje cultiva Sempre-vivas... - completou o padre_...que so vendidas para o exterior.

    Quatro Jos Cyrillos haviam sido localizados. Trs brancos e de uma mesma famlia (na verdade, descubroagora em 2009, um dos trs supostos brancos era na verdade mulato). O outro, o desgarrado, era onegro, o soldado.

    O fato que foi possvel a Antnio Jos, o filho mais velho de Jos Cyrillo (o negro) voltar ao local em2009, incrveis 28 depois das pesquisas preliminares acima narradas. O relato desta segunda viagem almde confirmar boa parte das suposies acima aventadas, lana a histria para rumos ainda maiseletrizantes.

    Uma nova observao, agora mais meticulosa dos objetos que ornamentavam a loja de artesanatoBoutique Cyrillo demonstra claramente que a famlia Cyrillo dos Santos teve efetivamente um ramonegro, originado evidentemente de uma relao interracial de um de seus membros, possivelmente Jos

    Cyrillo dos Santos Filho, primognito do patriarca dono de escravos que assinava o livro de contabilidadeque folhei na minha primeira visita loja de artesanato.

    Desta feita, se pode observar - e fotografar o rosto de Jos Cyrillo dos Santos Jnior, o aviador mortoque quem o padre da Mitra Diocesana me falara em 1981. A incrvel descoberta deste retrato encerra devez o enigma sobre este homnimo de meu pai, j que este Jos Cyrillo dito 'Jnior', aparece na fotoincrivelmente vestido carter, de aviador confirmando, cabalmente toda a histria contada pelo padrena Mitra Diocesana em 1981.

    Mas no terminava a a surpresa. Ao lado do retrato do aviador, Antnio Jos tinha tambm diante de si aimagem de um filho mulato do mesmo Jos Cyrillo (o velho). A insuspeitada figura daquele que poderia serseu tio, contemporneo que era de seu pai, aparece em vrios retratos finamente emoldurados, como o

    bem sucedido herdeiro e proprietrio de, pelo menos parte dos bens da famlia (a filha desteJos Cyrillodos Santos me falou, orgulhosamente sobre o quanto seu pai era querido por ela (sem desconfiar dassuspeitas sobre a relao entre a famlia dela e Jos Cyrillo, o negro) acrescentando o curioso comentrio:

    _Meu pai era moreninho assim igual a voc!

    Assim a inusitada, porm no improvvel histria de meu pai ganhou, alm de mais verossimilhana, umnovo e mais completo contexto. Teria tido Jos Cyrillo, o negro algum ressentimento relacionado a seu

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    suposto tio mulato? Este ressentimento seria semelhante ao que teve seu pai Antnio diante de seusdemais irmos bastardos, ao contrrio dele, agregados famlia do patriarca?

    O fato inquestionvel que Jos Cyrillo dos Santos, o patriarca branco do seculo 19, tivera em seucasamento um filho primognito a quem deu o nome de Jos Cyrillo dos Santos Filho. Este Jos Cyrillo dosSantos Filho seria opai de 'jnior', o aviador morto, nascido de seu casamento 'legtimo'.

    Contudo, numa segunda relao 'ilegtima' com uma de suas escravas, Jos Cyrillo dos Santos Filho teriatido com ela mais alguns filhos, aos quais apesar de serem' bastardos' assumiu, agregando-os famlia.

    Entre estes 'bastardos' estaria Jos Cyrillo dos Santos, o mulato.

    Meu av, pai de meu pai Jos Cyrillo do Esprito Santo, teria sido, portanto, pela hiptese desenvolvidaat aqui, irmo carnal de Jos Cyrillo dos Santos (o mulato) e meio irmo do Jos Cyrillo aviador. Por estaintrincada e impressionante histria, reforando mais ainda as minhas suspeitas iniciais a tal escrava,seguramente angolana e oriunda talvez do reino do Benguela (a julgar pelo perfil tnico predominante naregio), efetivamente existiu e poderia ter sido, realmente minha bisav.

    Portanto, a mais angustiante das probabilidades a mais impossvel de ser constatada: A escrava africana

    que como existiu na histria de Jos Cyrillo, o negro seria a mesma que est na histria do Jos Cyrillo, omulato?

    Seriam todos os personagens citados nesta histria descendentes da mesma africana do reino do Benguela?

    O mistrio da predestinao contida no nome

    A implausvel possibilidade do destino (ou do futuro) de um indivduo estar contido, de alguma forma, emseu nome prprio um caminho que pode ser tambm considerado na reconstituio da histria de JosCyrillo, o negro (pelo menos no plano emocional, no mbito da fantasia e da fico). Afora os mistriosextrados de fatos objetivos acima narrados, h com efeito na histria deste homem, algumas curiosidadesque poderiam muito bem ser atribudas a desgnios do destino.

    Resultados preliminares da pesquisa, por exemplo, associam a famlia Cyrillo dos Santos, como sendooriginria de uma proeminente figura da igreja local, D. Joo Antnio Dos Santos, famoso abolicionista,titular do bispado de Diamantina, institudo pelo papa Pio IX em 1854. Pode haver, pois alguma ligaoentre o nome Cyrillo e o catolicismo apostlico romano, o Vaticano, as coisas de Roma enfim.

    O nome dos vares desta famlia (que se supe, pelo ramos 'Dos Santos' estar ligada ao Bispo) talvez estejarelacionado So Cyrillo, um santo muito popular na Itlia. A hiptese do nome Cyrillo ser fruto doingresso, por casamento, de algum emigrante italiano na rvore genealgica da famlia Dos Santos,tambm pode ser considerada.

    O fato que, desafortunadamente, exatamente para a Itlia que em 1944 Jos Cyrillo, o negro, vai,

    enfrentando l, a guerra que acabou sendo o ltimo grande evento de sua vida.

    Em 1989, oito anos aps ter conhecido detalhes da histria de seu api em Diamantina, de novo por pura eafortunada obra do acaso, Antnio Jos, o filho mais velho de Jos Cyrillo, o negro, viaja como msicopara esta mesma Itlia.

    Conferindo num mapa com um professor italiano, o trajeto onde se localizavam as cidades da turn, todasnuma regio chamada Emlia Romagna, Antnio se assusta com a coincidncia apontada pelo italiano: Osshows se dariam nas mesmas cidades onde Jos Cyrillo e as tropas brasileiras transitaram e lutaram nasegunda guerra mundial. Impossvel para o filho no ficar intrigado com a coincidncia extrema, enquantoolhava pela janela do trem os campos de abetos, os vinhedos e os morros que foram o campo de batalhadefinitivo do soldado que fora seu pai.

    O mistrio mais intrigante, no entanto, diz respeito ao fato de dois filhos de Jos Cyrillo (Antnio Jos eLuiz Antnio) , o negro, terem se envolvido, tambm ocasionalmente, em 1975, ainda sem saberemrigorosamente nada a respeito das origens do pai, com um trabalho de pesquisa musical ao qual deram o

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    nome de Grupo Vissungo (transformado pelo filho mais velho, Antnio Jos, em projeto de vida).

    A pesquisa, que resgatava cantos de trabalho africanos denominados Vissungos, ocorrentes,exclusivamente, no interior da regio de Diamantina, Minas Gerais, trazidos para o Brasil por escravosangolanos de nao Benguela, estranhamente ligava os filhos de Jos Cyrillo, diretamente, ao seu maisremoto passado, como se tivessem sido atrados por alguma inexplicvel e irresistvel razo.

    Percalos de garimpo

    Ainda em 1981, no cartrio da cidade de Diamantina, Antnio Jos, descobre que os nomes de Antnio eMaria Josephina, seus avs, no constavam dos registros de nascimento daquela freguesia, Eles seriam,evidentemente, naturais de algum lugarejo da periferia. Os nicos registros possveis neste caso eram ascertides de batismo (batistrios), que poderiam estar num canto empoeirado de alguma igrejinha de umadas muitas vilas remotas espalhadas pela Serra do Espinhao e seus vales.

    Informados de que se investigava uma histria de famlia iniciada muitos e muitos anos atrs, algunsinformantes se referiram a uma senhora muito idosa, centenria, chamada Maria do Esprito Santo,moradora numa dessas vilas, chamada Pinheiros, muito distante para ser visitado naquela ocasio. Ainformao dava conta inclusive de que vrios destes lugarejos, haviam sido na verdade antigas lavras

    abandonadas ou velhos esconderijos de quilombolas, nos quais at hoje vive uma populao de arrediosdescendentes. A pista sobre a origem dos pais de Jos Cyrillo, o negro, no estando no centro deDiamantina, devero estar em algum ponto desta misteriosa periferia.

    Entrando mais para o interior da regio, montanha acima, Antnio Jos, chegou a So Joo da Chapada,vila importante no tempo da escravido, porque abrigou Xica da Silva e o contratador de diamantes JooFernandes de Oliveira, que ali mantinha um posto avanado da Contratao (voltando a So Joo daChapada em 2009, Antnio no se esquece desta vez de fornecer dados sobre estes avs ao cartrio local).

    Nos bares de So Joo da Chapada em 1981 era ainda assunto corrente, junto com as lendas e manhas daXica da Silva, as estrepolias e aventuras de famosos quilombolas, em luta com os soldados da RealExtrao portuguesa. Entre estes, para a populao local os mais famosos foram Dumba e Makemba. DeMakemba se fala, com muita empolgao, dos assaltos que fazia contra a carga transportada em tropas demulas, de onde ele surrupiava mantas de carne seca ou sacos de ouro, numa ttica to furtiva quantocuriosa, que se expressa numa mxima tornada popular na poca: A ltima mula do Makemba (naverdade, na pesquisa de 2009 descubro que as histrias dos quilombolsa da regio - e de Makemba emespecial - esto ainda mais vivas hoje do que nunca).

    Do outro falam da mstica Lapa do Dumba uma grande gruta que existiria ainda hoje, oculta namontanha, contendo inscries e desenhos feitos por Dumba e seu grupo. Um ponto de vissungo, da regioeterniza Dumba: Muriquim piquenino/ Muriquim piquinino/Purugunta a donde vai /Purugunta adondevai/ Pro quilombo do Dumb/Pro quilombo do Dumb.

    De So Joo da Chapada Antnio Jos desceu a p os 30 quilmetros montanha abaixo que o levaram ao

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    lugarejo denominado Quartel de Indai, evoludo em torno das runas de um dos antigos quartis que acoroa portuguesa espalhou na rea, na tentativa de controlar a agressividade dos quilombolas egarimpeiros da regio.

    Pouco antes de se divisar Quartel, se v um grande conjunto de palmeiras de indai, que do nome aolugar. Quartel um lugar ermo, isolado de tudo, composto apenas de umas poucas casas numa espcie delargo ou rua tomada pelo capim, com a pedregosa montanha ao lado. provvel que passem anos sem um

    estranho passar por l. Igreja h, mas, um padre ali s comparece uma vez por ano. Ao fundo, oculto pelomatagal como uma espcie de templo proibido, as runas do velho quartel portugus.

    Numa tensa e emocionada conversa com um velho informante local, foram registrados dois pontos deVissungo, em Benguela, idioma mantido ainda vivo na memria de alguns poucos moradores que sabemtemperar a lngua. Foram registrados tambm um relato sobre antigas prticas folclricas do local quetalvez remontem o sculo 19 - e podem ter ligao direta com folguedos angolanos alm de uma longadescrio sobre tcnicas de garimpo, atividade a qual os moradores de todos os lugarejos remotos daregio, esto ainda hoje envolvidos, clandestinamente, quase como por vcio. No caminho, comum sever ao longe, meio ocultas nas curvas de crregos, ao longo da estrada, as cabeas negras de famliasinteiras, garimpando em antigas lavras.

    (A quem interessar possa, toda esta parte da histria dos africanos escravos mineradores e quilombolas daregio onde teria vivido a av de Jos Cyrillo, o negro, est meticulosamente contada na surpreendentesrie Na Lapa de Makemba escrita por este mesmo filho de Jos Cyrillo, recentemente, aps o retorno regio em janeiro de 2009. A srie est acessvel aqui: http://portalliteral.com.br/artigos/na-lapa-de-makemba-03.

    Minerao da Persona.

    Como todos os indcios demonstram, portanto, algum parente prximo de Jos Cyrillo, o negro sua avtalvez - veio da frica, mais precisamente de Angola para Diamantina e, como todos os escravos das lavrasda regio, cantou Vissungos enquanto minerava ouro e diamante.

    Jos Cyrillo, o negro, se direitos a alguma herana possua, largou-os l em Diamantina, como cangaintil, vidrilho ou pedra falsa. A grande herana que deixaria para os filhos e netos seria a vaga memriade sua forte personalidade, sua fora de vontade, sua Pessoa enfim.

    DNA, memria gentica, sndrome da genealogia perdida, ou mera predisposio de um destino que, jestando traado, indelevelmente, no nome prprio desta pessoa, acabou por eterniz-la.

    Ao que parece, foi mesmo a linha do sangue - desprezado como bastardo- o veculo que, reconstituindo alinha do tempo, reuniu enfim - pelo menos no plano simblico- os fragmentos da desgarrada famlia deJos Cyrillo, o negro. Revelando um veio muito rico de lembranas, um veio puro e ntido, que a pesquisa e o filme ao qual ela deve se referir- pretende cultivar e perpetuar como uma Sempre- viva.

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    Sprito SantoRio, Janeiro 2006/ Maio 2009