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DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA SEMINÁRIO NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA / LIMITES E DESAFIOS DATA: 12-07-2006 NOITE SEM REVISÃO O SR. MESTRE-DE-CERIMÔNIAS – Vamos dar início ao último painel do Seminário Nacional de Segurança Pública, mas antes quero dar algumas informações. A primeira refere-se à ficha de instruções de comprovação da freqüência que cada um recebeu na pasta. Essa deverá ser entregue na saída do auditório. E a segunda informação refere-se à sistematização em forma de texto e de áudio dos debates ocorridos neste seminário. Oportunamente, estaremos disponibilizando no site da Assembléia Legislativa, no espaço reservado às Comissões Permanentes, todo o material em texto e também em áudio dos painéis do evento. O site da Assembléia Legislativa é www.al.rs.gov.br. E de imediato chamamos para o painel Medo do Crime, Sensação de Insegurança e Papel da Média a mediadora deste debate e Promotora de Justiça, Angela Salton Rotunno. A SRA. COORDENADORA (Angela Salton Rotunno) – Gostaria de imediatamente convidar os Exmos. Srs. Dr. Marcos Rolim e Professor Pedrinho Guareschi para comporem a Mesa. Boa-noite a todos. Inicialmente, quero parabenizar a organização deste evento, por ter conseguido reunir aqui grandes pensadores e executores da segurança pública no Brasil. Torcemos para que este momento sirva para mobilizar todos os atores sociais na busca da qualificação das polícias e, por conseqüência, da melhoria de vida de toda a população brasileira. É fundamental termos em mente que somente um Estado que respeita a população, por essa população será respeitado. E gostaria 1

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SEMINÁRIO NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA / LIMITES E DESAFIOSDATA: 12-07-2006 – NOITE

SEM REVISÃO

O SR. MESTRE-DE-CERIMÔNIAS – Vamos dar início ao último painel do Seminário Nacional de Segurança Pública, mas antes quero dar algumas informações.

A primeira refere-se à ficha de instruções de comprovação da freqüência que cada um recebeu na pasta. Essa deverá ser entregue na saída do auditório.

E a segunda informação refere-se à sistematização em forma de texto e de áudio dos debates ocorridos neste seminário. Oportunamente, estaremos disponibilizando no site da Assembléia Legislativa, no espaço reservado às Comissões Permanentes, todo o material em texto e também em áudio dos painéis do evento.

O site da Assembléia Legislativa é www.al.rs.gov.br. E de imediato chamamos para o painel Medo do Crime, Sensação de Insegurança e Papel da Média a mediadora deste debate e Promotora de Justiça, Angela Salton Rotunno.

A SRA. COORDENADORA (Angela Salton Rotunno) – Gostaria de imediatamente convidar os Exmos. Srs. Dr. Marcos Rolim e Professor Pedrinho Guareschi para comporem a Mesa.

Boa-noite a todos. Inicialmente, quero parabenizar a organização deste evento, por ter conseguido reunir aqui grandes pensadores e executores da segurança pública no Brasil.

Torcemos para que este momento sirva para mobilizar todos os atores sociais na busca da qualificação das polícias e, por conseqüência, da melhoria de vida de toda a população brasileira.

É fundamental termos em mente que somente um Estado que respeita a população, por essa população será respeitado. E gostaria

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também de dizer que, como Coordenadora do Comitê Estadual Contra Tortura no Estado do Rio Grande do Sul, estaremos no segundo semestre deste ano disponibilizando à toda comunidade gaúcha formulários específicos para a denúncia de torturas e contamos, porque precisamos muito de todos vocês, para que possamos juntos, num trabalho de união, erradicarmos a tortura em nosso Estado.

Dando início ao último painel, ao eixo quatro deste seminário, o Medo do Crime, Sensação de Insegurança e o Papel da Mídia, convido a falar o professor Pedrinho Guareschi. O professor é formado em Filosofia, Teologia e Letras; é pós-graduado em Sociologia, é mestre em Psicologia Social e doutor Ph. D. em Psicologia Social e Comunicação, é professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC e autor de seis livros sobre Meios de Comunicação.

Por gentileza, professor, a palavra é sua, para que possamos ser brindados com seus ensinamentos.

O SR. PEDRINHO GUARESCHI – Muito obrigado, Dra. Angela. Boa-noite a todas e a todos, que esta seja uma noite gostosa.

Pensando sobre esse tema, decidi dividi-lo em duas partes, ocupando quinze minutos para cada uma. A primeira parte seria uma tentativa de sensibilização sobre a mídia, da qual nos vamos falar. E na segunda parte vou tentar relacionar a mídia com a questão da segurança e insegurança e a violência.

A segunda parte é dividida em quatro pequenos itens. Digo isso para vocês saberem que, quando chegar no quarto item, já está no fim.

Quanto ao primeiro ponto, o tema mídia e violência, mídia e insegurança, é bastante badalado, e penso que vocês sabem tanto ou mais do que eu a respeito disso.

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O meu papel aqui seria mais uma espécie de provocação, de reflexão, ou seja, um pequeno mergulho atrás dessas palavras que soam, que estão na boca de todo mundo, para tentarmos, quem sabe, dar conta, porque a realidade não é tão simples assim, é dar conta dessa coisa misteriosa que é a mídia e dessa coisa dolorosa que é a segurança e insegurança.

Primeiro ponto, a questão mídia. O estudioso da mídia, John Thompson, de Cambridge, tem uma expressão muito feliz que diz que nós vivemos uma sociedade midiada e uma cultura midiada, principalmente nas últimas quatro décadas. E aqui nós precisamos parar um pouquinho para, como dizem os antropólogos, levar susto em casa, porque pouca gente se dá conta desse novo ar que nós respiramos.

De fato, a mídia hoje perpassa todas as dimensões da sociedade, não há nada que escape à mídia e a mídia está presente em todos os estratos e segmentos da sociedade. Por exemplo, o caso da economia, onde alguns países já compram 25% através da mídia. Se você encomenda um computador, não tem nada pronto nesse computador, tem apenas o programa que está num site, que nem um lugar ocupa. Mas, em 12 horas, eles constróem todo esse computador, desde a caixa de metal até os discos. Os livros cada vez mais são assim, ou seja, você chega, leva um disquete e sai de lá com 100 livros, algumas horas depois.

A própria economia está passando cada vez mais através da informação e através da comunicação. Isso veio modificar completamente a nossa realidade.

Um outro exemplo, a religião. As igrejas eletrônicas ocuparam um espaço enorme e até certo ponto são as que estão aí. Na política, o próprio John Thompson escreveu um livro sobre o Escândalo Político. E isso é interessante, porque estamos numa época de eleição e ainda bem que já existe alguma regulamentação sobre isso, mas ele discute, por

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exemplo, que o capital de um candidato é a sua credibilidade e a credibilidade, esse capital simbólico, é construído pela mídia.

Então, pode muito bem acontecer com o escândalo, que, de um momento para outro, tudo desmorona-se em questão de horas e para ele retomar e refazer todo esse capital simbólico demora, às vezes, muitos anos. A educação também está passando pela mídia, tudo está passando pela mídia.

A pergunta então seria: E a segurança e a insegurança, a violência, o que elas têm a ver com a mídia? Esse vai ser o tema que quero discutir.

Mas, ainda nesse primeiro ponto, algo que fiquei meditando e pensando e quero falar quatro teses ainda, para nos sensibilizarmos um pouquinho sobre essa realidade, que digo novamente, misteriosa, porque um mistério é algo que nós não entendemos. Mistério é algo que não entendemos tudo e o nosso trabalho é ir mergulhando atrás disso.

Vou fazer agora quatro afirmações sobre essa realidade da mídia. A primeira é que a mídia constrói a realidade, hoje. A realidade hoje é socialmente construída pela mídia, estou falando em termos sociológicos.

Sociologicamente falando, uma coisa hoje existe ou deixa de existir, se é ou não midiada. A partir daí, o público e o privado trocam de nome. Antigamente, o público era o que estava na rua. Agora, o público é onde o olho grande da mídia incide, podem ser as cenas mais secretas, íntimas, dentro de quatro paredes, mas, se o olho grande da mídia está ali, aquilo se torna uma grande realidade pública.

E o privado é aquilo que não é mediado. Eu estava conversando sorrateiramente e perguntei para alguém se havia visto alguma coisa sobre esse seminário na mídia.

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Vamos aplicar logo essa questão, já que estamos com a mão na massa. Por exemplo, você pode reunir 5 mil pessoas. Esse salão aqui estava lotado hoje, durante todo o dia. E, sobre a preparação disso, vocês viram alguma coisa na mídia? Então, se algo não está na mídia, para a grande maioria da população, não existe. Mas você pode fazer uma reunião com cinco pessoas e, se o olho grande da mídia está em cima, todo o Brasil, todo o mundo fica sabendo, e fica sabendo sobre o assunto várias vezes.

Eu não estou falando mal da mídia, estou tentando analisar uma realidade. A mídia hoje não constrói a realidade, ela tem a ver com tudo. Isso, às vezes, nos deixa um pouco pesarosos, mas temos de encarar a questão, ou seja, como dar conta dessa nova realidade. Ou ela não é assim? Nós vamos ter tempo, depois, para perguntas. Gostaria muito de ver a reação dos colegas, porque as perguntas são importantíssimas. Dizem que a pior coisa do mundo é ficarmos dando respostas a perguntas que não foram feitas.

A mídia constrói a realidade. Segundo, constrói a realidade com valores e os valores são aquilo que nos impulsionam a fazer. Esse é um outro tema que pouca gente discute, mas, tudo que nós fazemos, o fato de vocês virem aqui, é devido a alguns valores. O fato de alguém comprar, votar, casar ou descasar, tudo isso está baseado em determinados valores. Nunca a mídia dá uma notícia neutra: essa é uma grande ilusão que temos. Os candidatos que estavam na mídia, de direita ou de esquerda, se elegeram fantasticamente, por que tinham dotes especiais? Não sei. Mas, se estava na mídia, existe, e para a grande parte da população o estar na mídia já é bom.

Às vezes, participamos de um outro evento na mídia e dizem que nos viram na televisão. Nesse instante, infalivelmente, eu pergunto. Vocês lembram o que foi dito? E 99% não sabe dizer. Mas o fato de estar na mídia é bom, o fulano está exposto. A mídia constrói a realidade

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com valores, a mídia coloca a pauta de discussão: em torno de 80 e 85% de tudo que se fala é pautado pela mídia.

Alguém pode dizer que tudo bem, que a mídia pauta, mas eu não aceito, eu critico. Ótimo, se for assim. Agora, existe algo que não podemos nos dar conta, que é daquilo que a mídia não diz, daquilo que a mídia não pauta, porque a força da mídia não é naquilo que ela diz, mas naquilo que ela deixa de dizer, é a agenda negativa.

Como vimos no primeiro ponto, se algo não é comunicado, não existe, sociologicamente falando. E, depois, um último ponto, também um pouco provocante, a mídia também nos faz. Existe hoje um novo personagem dentro de casa e nós somos resultado das milhões de relações que estabelecemos no dia-a-dia. Nós somos frutos dessas relações, ou seja, o resultado dessas relações.

Têm crianças nas Vilas Pinto e Joana d’Arc que ficam até 9 horas na frente da televisão. Isso quer dizer que há um novo personagem com quem elas falam e isso forma a subjetividade dessas pessoas. Essa é a grande pergunta que deveríamos fazer.

Vou ficar por aqui nessa primeira parte de sensibilização. Mas, para lembrar, deixem o que se conseguiu hoje. Através da informação e também da mídia, as linguagens foram resumidas, foram sintetizadas numa só. O texto, a imagem e o som passaram a ser uma linguagem só, que é linguagem digital, dos bits.

Essa maravilha que temos, pouca gente se deu conta disso. E nós nos perguntamos sobre a questão da escola: O que faz a escola, se não ensina para a imagem? No primeiro e segundo graus, aprendemos a ler e a escrever. Mas faça uma enquete com 100 jovens, sobre quanto tempo eles leram e escreveram numa semana e verão que foi quase nada. Mas a imagem está aí, eles assistem 30 horas de televisão por semana e a imagem tem um tremendo poder, a cor, a mobilização, o enquadramento

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na subjetividade das pessoas. Isso é para a gente levar um susto em casa. Essa é a nossa realidade hoje.

Qual a relação da realidade da mídia com a segurança e a insegurança, mais a questão da violência? Escolhi quatro pontos. Também não sei até que ponto poderei ser bem claro, porque o cenário é um tanto complexo.

Chamaria o primeiro ponto de a mídia e a expropriação do poder. O que quero dizer com isso? A comunicação é um dos direitos humanos. O item XIX da Declaração dos Direitos Humanos diz que temos direito a uma boa informação. Mas não é só isso: direito à expressão livre, por qualquer meio, também por meio eletrônico. Muitas pessoas falam em liberdade de expressão – mas que sejam elas igualitárias e para todos e por qualquer meio, inclusive os eletrônicos.

Quem, de fato, poderá falar hoje? Se dermos um mergulho e começarmos a discutir as origens da democracia, da cidadania, podemos nos remontar aos antigos gregos – a experiência nova da pólis –, antes mandavam numa sociedade os caciques, os clãs, os patriarcas. Mas, com a experiência grega, temos famílias igualitárias. Como resolver o problema do público onde há famílias igualitárias?

Se diz que se reuniam na ágora para discutir. Aqui tem uma questão, não era qualquer grego – eram só os homens –, desculpem-me, mas mulher, criança e escrava ainda não tinham vez. Também não era qualquer um que recebia o título de cidadão. Só era considerado cidadão quem falasse, e isso é crucial, porque é na expressão, na fala, que realmente o ser humano se explicita plenamente como ser humano.

Paulo Freire analisa isso de uma maneira muito clara e muito profunda, quando diz que o ser humano pronuncia o mundo, nomeia o mundo. Nesse momento, ele traz de dentro de si aquilo que tem de mais fantástico e poderoso, que é a sua criatividade, o seu projeto.

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Os gregos recebiam o título de cidadão quando eles diziam o seu projeto, quando apresentavam sua alternativa – esse era o cidadão. Que diferença temos de lá e aqui? Lá, o local onde se expressavam era a pólis, a ágora! E aqui? Os meios de comunicação são um serviço público – as constituições de todos os povos garantem isso –, portanto não podem ter donos os meios de comunicações eletrônicos, que devem propiciar esse espaço de discussão para a construção da cidade.

O que tudo isso tem a ver com insegurança? Aqui, queria roubar e pescar o seguinte: será que a falta de realização como cidadãos de não poder dizer a palavra, expressar a sua opinião, não é uma causa da reação e da insegurança? Há muitos estudos sobre terrorismo que dizem que a sua principal causa é essa exclusão a que muitos grupos sociais estão submetidos. Eles não podem falar. Eles fazem tramóias, inventam maneiras para poderem ser vistos e poderem falar, poderem dizer.

Eu vejo uma origem na insegurança hoje e uma origem da violência, principalmente na expropriação desse direito humano fundamental de dizer a palavra, de expressar a sua opinião, de manifestar o seu pensamento. Ninguém agüenta calado, submetido. Todos nós – cedo ou tarde – temos de falar. Isso a gente vê nas famílias, relação entre marido e mulher, isso a gente vê na escola. Muitas pessoas dizem que as crianças são insubordinadas. Não, o que elas querem é poder dizer a palavra! No final, qual a saída para isso? Esse seria o primeiro ponto.

O segundo ponto é muito claro. A mídia, pelo fato de construir a realidade, também define e nomeia algo que interessa – para os donos da mídia. Não é muito segredo que temos dez famílias, os latifundiários da mídia e que vêm herdando: herdaram terras, empresas, jornais e ultimamente herdaram as televisões, que são os grandes latifundiários da mídia. Dez famílias detêm entre 90 a 95% dos meios de comunicação.

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Esses que têm o poder de dizer a palavra definem o mundo, nomeiam o mundo. Entre outras realidades que eles nomeiam, dizem quem é o criminoso ou não, o que é ou não um crime. Depende de eles dizerem! Isso terá condições jurídicas. Penso que essa é uma faceta sorrateira da força poderosa que tem a mídia na construção da realidade social. Marcos Rolim poderá elaborar mais esse pensamento. Cada vez mais, vemos que determinadas coisas são definidas de acordo com determinados interesses. Vamos ver a reação dos colegas sobre isso.

Um terceiro ponto. Se alguém me perguntasse qual a última finalidade da mídia, diria que lá no fim, bem no fim, atrás da mídia, tem um enorme cifrão. Esse é o último determinante, o resto tudo é coisa pelo caminho. Eles vendem ideologias, trocam de ideologias, de valores, se eles conseguirem o cifrão. Essa é um pouco a análise de alguns meios de comunicação que estamos fazendo pessoalmente.

Para conseguir esse cifrão, uma das maneiras é através das vendas, dos comerciais, do consumismo. A partir daí, faz-se tudo o que se pode. Vou trazer apenas um caso do que se pode criar na imaginação.

Na maioria dos países do mundo, a propaganda para a criança é proibida; em alguns países, é absolutamente proibida. Em outros países, essa propaganda é permitida sob bastante vigilância. Em alguns países, enquanto estiver passando programas para crianças não pode haver propaganda uma hora antes e uma hora depois. Por quê? Porque a criança é presa, ela não tem capacidade de reagir, ela não tem os recursos necessários para dar conta daquela propaganda. No fundo, há uma agressão contra essa criança, porque ela está indefesa! Ou não é assim?

Para mim, é algo criminoso esse capítulo da mídia que se coloca dentro da propaganda e publicidade, principalmente a publicidade e os comerciais. Mas isso se passa, e não se pensa sobre isso. E, quando se discute esse assunto, as grandes empresas logo reclamam se tratar de

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censura. Mas que censura? Está se ferindo um direito das pessoas. Tem mais, nessa questão dos comerciais e do consumo, a gente não sabe bem como as pessoas acabam comprando. Há muitas teorias sobre isso. Alguns dizem que se faz a propaganda e se desperta um desejo. Mas o que é um desejo? Não sei se alguém já conseguiu responder? Dizem os pensadores que o começo de tudo é o desejo. Mas o que é um desejo? O que faz com que as pessoas explicitem e queiram comprar? Essas propaganda subliminares caminham por aí.

Alguns que pensam a questão da insegurança – e da violência principalmente – dizem que a propaganda é em grande parte culpada pela violência. Porque se faz propaganda para todos. Os que podem comprar são alguns, mas os outros não podem comprar! Aqueles que não podem comprar, porque não têm dinheiro, entram numa situação de frustração. Isso desperta a violência, eles roubam para poder comprar um tênis, um brinquedo. Esse é um outro capítulo, que tem muita relação entre mídia e violência.

O quarto ponto – e o último – trata de uma questão delicada. A Constituição, no seu art. 221, diz que o primeiro princípio que rege os meios de comunicação é que eles devem ser educativos.

O que é educação? Se eu for pensar em educação como algo reprodutivo, dentro de condicionamentos, a verdadeira educação é aquele processo de provocação de educar, de tirar de dentro da pessoa aquilo que já está lá para que ela livremente decida, escolha. Esse é o processo educativo.

A prática do processo educativo fundamental é problematizar, fazer a pergunta – não é dar respostas. É fazer a pergunta para que a pessoa se mobilize a buscar respostas.

Paulo Freire tem um livro que se chama Pedagogia da pergunta. Toda a teoria de Paulo Freire e de tantos pensadores, a partir de Piaget e

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outros, mostra que educação é provocar, é colocar, problematizar, isso desde Sócrates, com a Maiêutica Socrática. Ele nunca respondia uma pergunta, ele sempre perguntava – uma pergunta respondia com outra pergunta. Esse é o processo libertador da educação.

A mídia tem como finalidade primeira ter uma função educativa. O máximo que a gente vê na mídia é aquela educação quase que de manipulação, de dar receitas, de dar bons conselhos. Eu me pergunto, será que o papel educativo, libertador da mídia, não deveria ser constituir, colocar o grande debate nacional, ser aquilo que, de fato, a mídia deveria ser, a nova ágora, hoje, onde os grandes problemas nacionais são debatidos e não dar respostas. Onde todos os grupos organizados possam dizer a sua palavra, expressar a sua opinião, manifestar o seu pensamento. Esse seria o papel educativo da mídia.

Mas o que se vê é que, nesse aspecto, no máximo, manipula. E isso indiretamente vai levar a certa insegurança ou violência, porque forma pessoas submissas, pessoas que cedo ou tarde não suportam essa situação. Em toda a dominação terá, em um momento, uma reação. Não sei se consegui me fazer entender, porque esse quarto ponto, para mim, é crucial.

Estabelecemos diálogos precários com as pessoas da mídia, mas a maioria é gente que se forma com a técnica de fazer coisas bem feitas, nunca se perguntando sobre o papel fundamental que deve ter uma mídia dentro de uma sociedade verdadeiramente democrática, como em parte é a BBC de Londres. Ela coloca os problemas mais candentes à discussão da população para que toda a cidade, organizada, possa dar sugestões de como resolver esse problema.

Se eu fosse dar uma palavra para terminar, qual seria uma sugestão para isso? Eu penso que na medida em que os meios de comunicação caminharem numa direção que eu diria participativa e até certo ponto comunitária, onde a população pudessem expressar a sua

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opinião, penso que muito da violência seria solucionado.

Penso numa mídia participativa. Nesses dias, eu li na Folha de S.Paulo, um artigo de Mangabeira Ungler, sobre Segurança Comunitária. Há dois anos, numa vila de Porto Alegre, Vila Joana d’Arc, teve um debate sobre segurança. Lá estava alguém da Segurança. Vejam o que é o saber popular! Chegava lá a polícia, batia, os meninos voltavam revoltados. O que fazer quanto à segurança? Uma senhora disse ao delegado que pensava que poderiam solucionar o problema. Se ele lhes desse um crachá, eles próprios fariam a segurança da vila. Nem precisam pagar nada. Oito senhoras daqui conhecem todos da vila. Quando chegava um estranho lá, elas perguntavam o que ele queria, com quem queria falar e indicavam onde a pessoa morava. Isso seria uma segurança comunitária.

Penso que dando voz ao povo, dando-lhe possibilidade de falar, expressar-se – isso é comunicação –, recolher o saber popular, a criatividade do povo, as idéias, se a mídia cumprisse esse papel de ser verdadeiramente popular e participativa, muitos problemas da violência e da segurança seriam solucionados. Obrigado.

A SRA. COORDENADORA (Angela Salton Rotunno) – Professor Pedrinho Guareschi, muitíssimo obrigada por suas várias perguntas e por ter contribuído de forma eficaz com a nossa educação e, por conseqüência, com a nossa libertação.

É evidente que, assim como o professor Pedrinho, Marcos Rolim também dispensaria apresentações. De qualquer forma, em virtude das formalidades necessárias a qualquer evento, passo a apresentar Marcos Rolim como jornalista e consultor em direitos humanos e segurança pública; assessor da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; ex-presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul;

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autor de vários livros, dentre eles, o último A Síndrome da Rainha Vermelha, Policiamento e Segurança Pública no século XXI.

Concedo a palavra ao Sr. Marcos Rolim.

O SR. MARCOS ROLIM – Obrigado, Dra. Angela Salton Rotunno. Agradeço aos organizadores pelo convite que me foi feito para estar aqui hoje. É uma satisfação muito grande estar nesta mesa, ao lado da Dra. Angela Salton Rotunno, revendo o professor Pedrinho Guareschi e tentando oferecer uma contribuição para esse debates que considero muito importante na realidade nacional, especialmente.

Quero começar, fazendo um ponto de contato com o que disse há pouco o professor Pedrinho Guareschi. Quando pensamos na mídia, seria muito importante que procurássemos pensar a respeito de até que medida a mídia no Brasil estimula a reflexão. Quando digo reflexão, refiro-me ao sentido etimológico dessa palavra, que está ligado ao verbo refletir. Aquele que reflete é aquele que se vê. Refletir significa precisamente pensar o próprio pensamento. A capacidade de reflexão é aquela que nos permite colocarmo-nos em questão.

Quando nos perguntamos a respeito da veracidade da idéia de verdade que temos, quando nos perguntamos, a partir da idéia moral que temos, se esse valor que atribuímos, no conteúdo moral, é de fato moral, estamos refletindo. Reflete aquele que se enxerga, aquele que se vê, aquele que pensa o próprio pensamento.

Um dos primeiros grandes impactos que tive, de ordem cultural, no período que em que fiquei fora do Brasil, logo que cheguei na Inglaterra, foi ligar a BBC. Pedrinho Guareschi falou sobre isso agora. Os noticiários são muito impressionantes. Quando acontece um crime, ele é divulgado numa matéria que dura, em média, cinco ou seis minutos. Nessa matéria, ouvem-se 10 pessoas com as mais diferentes

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visões. O critério de ouvi-las são visões diferentes a respeito do fato. Ouve-se um familiar da vítima, uma testemunha, o policial que fez a diligência ou o chefe de polícia, um acadêmico que pesquisa o tema, os indicadores disponíveis na história, na estatística, enfim. Isso fecha, digamos assim, um conjunto de informações que permitem ao telespectador pensar a respeito do fato.

No Brasil, as matérias a respeito de crimes, como de resto todas as matérias, são divulgadas no ritmo de um videoclipe. São matérias de 30 segundos, de um minuto, quando muito. Há, em geral, música de fundo para que se dê um tom dramático àquela matéria. Certos personagens ou certas versões a respeito do episódio são sistematicamente excluídas, não são jamais ouvidas. Via de regra, esse fato noticioso é apresentado como sendo um fato sem contexto. Ele é, portanto, um fato misterioso, ele surge na realidade sem que ninguém saiba de onde ele surgiu, de onde veio e por que aconteceu. É natural que essa forma de apresentação desses fatos condicione um certo tipo de leitura, um certo tipo de recepção dessa notícia e, portanto, certos valores que serão oferecidos em resposta a essa notícia.

A mídia no Brasil, portanto, está comprometida, pelo seu estilo de reportagem, de divulgação, não só com a ausência de reflexão, mas com a anestesia de qualquer possibilidade reflexiva. Essa é, aliás, a razão pela qual as pessoas, em geral, muito espontaneamente dizem – várias pessoas já me disseram – que, às vezes, precisam ver televisão quando estão muito cansadas. Ligam a televisão para dar uma relaxada. Claro, porque esse material que ela verá fará tudo, menos com que ela pense. Não irá sobrecarregá-la. É uma sucessão de imagens que a distraem, que a relaxam, que a entreterão de alguma forma. Essa é a mídia brasileira como regra, especialmente, falando de televisão, da TV aberta no Brasil.

O que é um fato noticioso. Sou por profissão jornalista. Minha formação é na área do jornalismo. Os jornalistas dividem os fatos em

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dois tipos: há os fatos e os fatos noticiosos, os fatos que podem merecer notícia. O fato noticioso é aquele que agrega informação. Um fato que não agrega informação não pode ser notícia. Ninguém vai noticiar que o sol nasceu hoje às 6h30min. Isso não é notícia, não agrega qualquer informação. É necessário, portanto, que a notícia agregue algum tipo de informação, que tem que ter algo de novo, porque se ela for algo velho, conhecido, também não é notícia. A informação já está assimilada, não agrega informação. Deve ser algo novo.

Só por essa razão, os jornais de ontem servem de papel de embrulho. Há uma relação muito próxima entre a produção da notícia, entre o que é fato noticioso e essa capacidade de agregar informação. Essa é a razão pela qual um crime, quanto mais violento ele for, quanto mais recheado de detalhes sórdidos e macabros, maior valor jornalístico lhe será atribuído. Então, crimes especialmente graves, que destoam do conjunto ou da média dos crimes, que são, portanto, distintos dos crimes normais, daqueles com os quais estamos acostumados a conviver ou a ver, esses recebem uma atenção maior de qualquer edição jornalística, porque eles agregam mais informação.

Percebam que quando temos um conjunto infinito de fatos e também um conjunto infinito de fatos noticiosos, fatos que agregam informação, é preciso selecionar os fatos que serão objeto da notícia. A escolha na qual interfere os valores do jornalista ou do meio de comunicação ao qual ele está vinculado começa já no momento que ele seleciona os fatos merecedores de notícia. Ao selecionar, ao pinçar dessa realidade de fatos infinitos aqueles que serão transformados em matéria, já é feita uma escolha. Essa escolha, obviamente, é condicionada pelos valores morais de quem a faz. Se o jornalista imagina, por exemplo, que a tortura de um preso num presídio é um fato banal, que esse preso, por ser um preso, é merecedor dessa tortura, já que é, digamos, um bandido, um vagabundo, alguém que é absolutamente não-respeitável, se tem a informação de que ele foi espancado, para ele pode significar que não é notícia, porque não lhe agrega uma informação fundamental. Logo, ele

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não seleciona esse fato. Pelo contrário, se o jornalista acredita que a notícia, sendo verdadeira, é uma agressão à humanidade, uma agressão a todos nós, uma agressão à idéia de dignidade da pessoa humana, é uma ameaça ao estado de direito e à democracia, esse fato deverá ser produzido e divulgado na primeira página. Onde a matéria é colocada depende dos valores morais do jornalista.

Vocês tiveram um avalanche de exemplos interessantíssimos sobre valores morais dos nossos jornalistas na última copa do mundo. Tivemos manchete e destaque imenso nos jornais brasileiros sobre a bolha no pé do Ronaldo. Tivemos destaque a respeito das nádegas do Ronaldinho e descobrimos que o Ronaldinho gaúcho tem bunda, porque apareceu na televisão, na mídia, nos jornais. Descobrimos isso. É uma informação fantástica que a imprensa nos trouxe.

Mas na imprensa brasileira, nenhuma delas, nenhum jornal, nenhum veículo, tanto quanto eu saiba, posso estar enganado, enfim, mas os principais que eu acompanhei, não deram. Nenhum deles deu a notícia que uma semana antes da partida que o Brasil foi eliminado pela França, o Ronaldinho gaúcho deu uma entrevista coletiva organizado pela FIFA, como melhor jogador do mundo, com mais de uma hora de duração, conclamando os esportistas, as torcidas do mundo inteiro a combaterem o racismo. Esse fato não foi divulgado pela mídia brasileira. Certamente, claro, não é um fato importante.

Qual é a importância que tem o melhor jogador do mundo dar uma entrevista mundial, organizada pela FIFA – casualmente ele é um gaúcho, que foi formado na melhor escola de futebol do Brasil, inclusive – e não foi objeto de divulgação.

É evidente que ao selecionar os fatos que merecem ou não divulgação, temos já de início os valores morais daqueles que fazem a seleção.

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Em geral, a notícia criminal, não só no Brasil, mas em grande parte do mundo, constrói uma realidade invertida. Diante do crime, a mídia é, normalmente, sensacionalista. Não por acaso as notícias sobre o crime costumam ter um destaque muito maior de baixa qualidade. Isso é uma regra não escrita, mas ela bate no mundo inteiro. Vocês vão conferir isso sempre.

Na Inglaterra, por exemplo, temos dois tipos de imprensa escrita: os jornais de tamanho standard, esses jornais grandes, como é hoje a Folha de S.Paulo, O Estadão, enfim e jornais de tamanho tablóide, esse jornal de tamanho normal, como é a Zero Hora e o Correio do Povo.

Na Inglaterra a qualidade da imprensa escrita se reconhece pelos formatos dos jornais. Tablóides são sempre sensacionalistas, é a pior imprensa. Aquilo que os ingleses chamam de gutter press, quer dizer, imprensa da sarjeta, a imprensa que explora o que há de pior no fenômeno humano, são os tablóides, The Sun e outros jornais ultra-sensacionalistas que só tratam de fofoca da família real, sexo, violência, etc., e os jornais standard que são jornais de qualidade, jornais mais de conteúdo.

Uma pesquisa feita a respeito do espaço que esses jornais consagram a violência e ao crime mostrou que o The Guardian, que é, seguramente, o melhor jornal britânico, oferece ao tema da violência e da insegurança, 5,1% do seu espaço. Então, 5% do espaço do jornal é dedicado ao tema da violência e da criminalidade. O The Sun, que é um dos mais sensacionalistas dos jornais ingleses oferece 30,4% de espaço para essas matérias.

Se vocês forem ver no Brasil, essa realidade é bastante similar. Quanto mais desqualificado o jornal, maior importância concedida ao crime e a violência. Quanto mais qualificado, de forma não-sensacionalista, essa matéria é sublinhada.

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Um estudo recente, vou poupá-los das referências, mas essas referências todas estão num capítulo do meu último livro A Síndrome da Rainha Vermelha, onde eu trato da mídia e da violência. A violência transformada em espetáculo.

Paelo, que é um pesquisador, levantou um estudo muito interessante. Entre 1993 e 1997, ele pegou três grandes jornais nacionais, Inglaterra e País de Gales: o The Times, o The Mail e o The Mirror, comprovando que algumas das circunstâncias que acompanham os homicídios os tornam mais ou menos noticiáveis. Esse estudo constatou que apenas 40% dos homicídios que foram registrados pela polícia foram divulgados por pelo menos um dos três jornais analisados. Surpreendentemente, apenas 14% dos homicídios foram anunciados pelos três jornais, o que sugere a existência de critérios de seleção de cada veículo.

Esse trabalho comprova que os homicídios sexuais, ou aparentemente irracionais, possuem maiores chance de virarem notícia. A pesquisa demonstra também que homicídios de crianças, entre quatro e catorze anos, atraem muito mais atenção, e que casos de infanticídio, em geral, não atrai atenção.

Os autores sublinham que a percepção do público sobre a própria violência será influenciada por esses critérios de seleção. Mais do que isso. Sustento que se todos os homicídios são chocantes, apenas alguns irão conduzir a conclusão de que – abre aspas – algo precisa ser feito.

Alguns estudos, nos Estados Unidos, demonstram que a morte de negros e de etnias minoritárias não chama tanto a atenção da mídia. Um trabalho, por exemplo, relatado por dois diários de Chicago, o The Tribune e o Sun-Times, comparou 212 homicídios divulgados pelos dois jornais com os 684 homicídios que haviam sido registrados pela polícia no mesmo período. As reportagens não eram representativas social ou etnicamente. Brancos assassinados mereciam mais atenção do que as

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vítimas negras e homicídios de pessoas de classe média ou alta também importavam muito mais. Ao assassinatos de mulheres e de crianças são tratados sempre com mais destaque do que o de homens adultos. E assim sucessivamente.

Esse superdimensionamento de crimes violentos começou a ser uma regra nos noticiários do mundo inteiro a parti da influência exercida pela televisão. Já na década de 50, alguns autores levantaram que existia, logo no começo da televisão, sete casos de assassinato na tela para cada 100 personagens de ficção de programas exibidos. Essa relação correspondia a 1.400 vezes a taxa real de assassinatos nos Estados Unidos.

Enquanto o crime típico de assassinato é quase sempre o resultado indesejado de disputas comuns entre jovens ou familiares, brigas entre vizinhos, na mídia e na ficção, ele aparece como resultado planejado de alguém que atua com sangue frio ou desmedida ambição.

Observa-se o mesmo para os crimes de estupro. Na vida real, a violência sexual é o resultado colhido, quase sempre, em relações familiares ou entre pessoas conhecidas. Já na ficção, casos de estupro caracterizam sempre uma ameaça oferecida por estranhos. As pesquisas de vitimização na Inglaterra e no País de Gales mostram que jovens do sexo masculino, pobres e negros constituem o universo mais representativo das vítimas da violência. Nas matérias realizadas pela imprensa, entretanto, esse é o principal retrato dos infratores, ou seja, há uma inversão da realidade a partir da forma como esses fatos noticiosos são selecionados.

Segue-se aqui o mesmo padrão já observado para filmes e outras produções ficcionais, onde os casos de estupro são normalmente apresentados como atos típicos de psicopatas. Contudo, o estupro é uma realidade muito mais comum nas relações entre marido e mulheres, dizendo respeito ao cotidiano invisível da dominação masculina.

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Portanto, ao menos como regra, não se trata de uma patologia. Talvez, em função disso, o fenômeno seja invisível, afinal.

Túlio Khan, que é um pesquisador que vocês todos devem conhecer, produziu, há alguns anos, um estudo interessante nos jornais Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil, comparando todos os crimes divulgados por esses dois jornais com os crimes registrados pela polícia nesse mesmo período. Vou dar só os dados da Folha e deixar de lado o JB. Ele demonstrou que, em 1997, 2,7% dos casos de furto foram divulgados pela Folha de S.Paulo, enquanto 45% dos crimes registrados pela polícia no mesmo período foram de furto.. Claro que é um crime tão comum, tão normal, que furto não é mais notícia, exatamente por acontecer muito. A Folha de S.Paulo, divulgou 3,9% das lesões corporais. Nesse mesmo período, 27% dos casos registrados na polícia eram de lesões corporais. A divulgação de roubos já se aproximou mais da realidade: 24% dos casos divulgados pela Folha eram casos de roubo e 23% de todos os crimes registrados pela polícia eram crimes de roubo. O caso dos homicídios é interessantíssimo: 41% das notícias criminais da Folha trataram de homicídios, mas os homicídios representaram 1,7% de todos os crimes registrados pela polícia de São Paulo no mesmo período. Tráfico de drogas: 9,5% foram registrados pela Folha, sendo que 1% foram registrados pela polícia. Estupro: 6,4% dos casos foram registrados pela Folha e 0,4% foram registrados pela polícia. Seqüestros: 10% das matérias da Folha foram sobre seqüestro, enquanto os seqüestros corresponderam, nesse período, a 0,0001% dos crimes registrados pela polícia.

Então, o que em geral os leitores normalmente não percebem é que os crimes mais divulgados pela mídia, em qualquer lugar do mundo, são, por definição, os mais raros e só por isso são divulgados, mais raros no sentido da comparação com o conjunto de crimes.

É evidente que se as pessoas imaginam que esses crimes que são os menos freqüentes, os mais incomuns, em comparação com todos os

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crimes, são apenas os crimes que estão acontecendo todos os dias, a sua percepção a respeito da violência é completamente distorcida. Elas imaginarão que poderão ser as próximas vítimas, que isso que está acontecendo todos os dias com todas as pessoas acontecerá com elas.

Essa maneira de divulgação do crime e da violência no Brasil, especialmente, condiciona um dos fenômenos mais importantes analisados por muitos autores do mundo inteiro, que é a chamada sensação de insegurança ou medo do crime. Ao contrário do que muitas pessoas imaginam, a sensação de segurança e o medo do crime não é um problema menor. Trata-se de um problema muito importante para a criminologia moderna, e há um conjunto extraordinariamente importante de estudos a respeito disso.

O que se sabe a respeito da sensação de insegurança é, primeiramente, que ela, em geral, não possui qualquer relação com a insegurança efetiva, que pode ser medida, inclusive, estatisticamente a partir de estudos de vitimização. Em geral, as pessoas têm uma sensação a respeito da sua segurança ou da sua insegurança que poucas vezes corresponde, efetivamente, com os riscos concretos que elas estão sofrendo. Todos nós, evidentemente, enfrentamos riscos de segurança na sociedade moderna, todos, sem exceção. Mas esses riscos que enfrentamos não são distribuídos igualmente. São distribuídos de forma absolutamente desigual em qualquer sociedade moderna. A violência, aliás, entre todos os fenômenos sociais, é o menos democrático de todos. Ela é distribuída de forma totalmente desigual. Alguns entre nós estão muito seguros; outros estão muito inseguros. Alguns estão razoavelmente seguros. Isso depende de várias questões, por exemplo, do tipo de função que exercemos no nosso trabalho, da forma como nos deslocamos até o trabalho e do trabalho para casa, do local onde moramos, da idade e dos hábitos que temos. Há um conjunto de questões que permitem medir isso concretamente. Um jovem de 19 anos, negro, que more na periferia de qualquer grande cidade brasileira tem 32 vezes mais chances de ser vítima de homicídio do que um jovem da mesma

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idade branco, que more num bairro de classe média. Então, há uma distribuição completamente desigual.

A sensação que temos a respeito da insegurança é disseminada. Todas as pessoas, em geral, independentemente dessas distinções, sentem-se igualmente inseguras. Isso foi demonstrado por várias pessoas, inclusive no Brasil. Há uma pesquisa que foi realizada no início do ano 2000 muito interessante em São Paulo, que separou duas realidades antípodas na cidade de São Paulo, o bairro de Jardins que os senhores sabem que é bastante chique, onde mora grande parte da elite paulistana, um bairro de classe média alta, de pessoas muito privilegiadas socialmente, onde, na época da pesquisa, a taxa de homicídios era de três homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Essa é uma taxa um pouco superior à taxa canadense, que hoje é em torno de 2,5 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. É uma realidade de primeiro mundo, melhor do que a de muitos países europeus, inclusive. Essa era a realidade de Jardins.

Compararam essa realidade com a de outro bairro de periferia, uma vila popular chamada Jardim Ângela, muito pobre, na verdade, uma grande favela onde, na época da pesquisa era de 130 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Para quem não é da área desejo esclarecer que o país mais violento do mundo, que é a Colômbia, onde há uma guerra civil há muitos anos, tem uma taxa de 85, 86 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. O Jardim Ângela tinha 130. Hoje diminuiu muito a taxa de homicídios – está em torno de 30, 40, por conta de um projeto de policiamento comunitário naquele bairro. Na época, era uma das regiões mais violentas do Brasil.

A pesquisa perguntou aos moradores dos dois bairros qual era o principal problema do seu bairro. No Jardim Ângela, com 130 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, o primeiro problema elencado pelos moradores foi o desemprego. O segundo problema foi saúde e o terceiro foi violência. Vocês podem imaginar qual foi o

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primeiro problema indicado em Jardins, porque é óbvio: foi a violência. Isso dá uma dimensão exata do que quero chamar a atenção, sobre a diferença entre insegurança real, que pode ser medida objetivamente, com pesquisas de vitimização, e sensação de segurança, que é algo completamente diferenciado. Algumas pessoas entre nós estão muito inseguras e se sentem inseguras. Por exemplo, em geral, adolescentes e jovens adultos, que saem muito à noite para a balada e voltam de madrugada para casa não se sentem inseguros, mas eles constituem o grupo populacional mais inseguro do Brasil. A taxa de homicídios no Brasil se concentra entre jovens de 14 a 24 anos. Então, esse grupo etário é o grupo mais inseguro e, em geral, é um grupo que não se sente inseguro. Os jovens nessa faixa falam que não dá nada, que não vai acontecer nada. Deviam ter mais preocupação com a sus segurança porque estão mais expostos a riscos sérios de vitimização.

Em compensação, os idosos, por exemplo, é um grupo etário que se sente muito inseguro, mas é um grupo que está razoavelmente seguro. A taxa de vitimização de pessoas com mais idade é muito baixa no Brasil, como em todo o mundo por conta dos seus hábitos, da experiência, enfim, de várias outras situações que separam esses fenômenos.

Então, o que se observa – quero sublinhar isso – é que as notícias sobre o crime, nos países ocidentais, tendem a projetar sobre a sociedade uma imagem estranha de si mesma, uma imagem que, não obstante, por ser a mais forte que lhe é oferecida, tornou-se familiar e mesmo óbvia.

Há vários outros estudos que, se puderem ler, recomendo. Há um livro chamado Cultura do Medo, onde há um conjunto de dados bastante impressionantes a respeito disso. Sabe-se, por exemplo, que na década de 90, enquanto os indicadores da criminalidade caíam de forma consistente, nos Estados Unidos, mais de dois terços dos americanos registravam que eles estavam subindo. Quando perguntados sobre as razões para esse sentimento, 76% dos entrevistados citavam matérias da

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imprensa sobre crimes e apenas 22% mencionavam fatos conectados com a própria experiência.

Entre 1990 e 1998, com uma queda média de 20% nas taxas de homicídio, as notícias sobre assassinatos nos Estados Unidos subiram 600%., excluindo matérias sobre o caso O. J. Simpson, que foi alvo de centenas de matérias, como todos devem estar lembrados.

Quando em 1994 a ativista negra de direitos humanos Rosa Parks foi espancada aos 81 anos de idade, em Detroit, o jornal Washington Post noticiou o fato, afirmando: Cidadãos idosos e fracos vivem à mercê de matadores de rua. O que aconteceu com Rosa Parks, em Detroit, é um ultraje comum, moderno que quietamente acontece em nosso País. Nos 20 anos anteriores, crimes violentos contra pessoas idosas haviam caído 60% nos Estados Unidos.

A sensação de insegurança, conforme já vimos, constitui ela mesmo um problema de segurança pública que agrega efeitos criminogênicos. Quero explicar isso, porque considero um ponto importante, pelo menos no raciocínio da tecnologia moderna. Todos aqui já ouviram falar na famosa teoria das janelas quebradas. Sobre essa teoria que as pessoas repetem, elas deveriam ler mais, especialmente um artigo de 1982, que foi publicada por James Wilson e George Kelling, na Mont Review, uma revista de criminologia nos Estados Unidos. É, de fato, um artigo célebre, um artigo muito importante. As pessoas, quando falam nas janelas quebradas, instrumentalizam aquilo que ouviram na mídia sobre a teoria para sustentar a política de tolerância zero. Esse foi um outro engodo no qual a imprensa, no mundo inteiro embarcou. Rodolph Giuliani, ex-Prefeito de Nova Iorque vendeu para o mundo uma fraude. A fraude é que os crimes de Nova Iorque diminuíram por conta de uma política de tolerância zero. É uma das maiores fraudes na história da comunicação moderna, porque, nesse mesmo período da administração Giuliani, em Nova Iorque, os homicídios caíram em todas as grandes cidades norte-americanas, mesmo em todas as outras em que

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não se aplicou a política de tolerância zero. Mas Giuliani vendeu para o mundo que foi a política de tolerância zero que fez cair. A imprensa bancou isso. Sempre há alguém para acreditar nisso e sair repetindo. Hoje, temos no Rio Grande do Sul, uma pesquisa feita pelo Ministério Público que mostra que a maioria dos promotores são simpatizantes com a idéia de tolerância zero, o que é um fenômeno interessantíssimo. A teoria das janelas quebradas não tem nada a ver com a política de tolerância zero. Ela foi instrumentalizada também nos Estados Unidos para isso.

O que diz a teoria basicamente? Ela diz que as condições ambientais, por exemplo, de degradação urbana, produzem uma mensagem que é captada tanto pelos cidadãos residentes, como pelos eventuais infratores. Essa mensagem é a seguinte: esse local não é supervisionado. Esse local não é cuidado. Ninguém se preocupa com essa área. Portanto, os criminosos imaginam que ali podem agir com mais desembaraço, com mais liberdade.

O centro da teoria é esse. Na verdade, as pesquisas modernas confirmam que há uma enorme correlação entre ambientes urbanos degradados e a prática de uma série de delitos.

Por que há essa correlação? Exemplifico com o caso de Alvorada, que acho bem interessante: se toda hora assistirmos matérias na imprensa sobre os elevados indicadores de homicídio da cidade de Alvorada será criada a idéia de que é uma terra sem lei, é uma cidade onde as pessoas são assassinadas na rua a todo momento. Qual o efeito que produziremos a partir disso? Os moradores da cidade, aterrorizados, apavorados, imaginam que devam sair de lá.

Quem tiver mais recursos sairá e quem não tiver começará a pensar em possibilidades para no futuro irem para outro local e já não investem mais nenhum recurso seu para garantir a manutenção daquele local em que moram, sua praça, sua rua, sua região, sua própria casa.

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Quando as pessoas de mais recursos se afastam desse local degradado, os preços dos aluguéis e o valor venal dos imóveis caem e se atrai para esse lugar pessoas com menor poder aquisitivo, grande parte delas já com condição de subemprego ou desempregadas, então agrega problemas sociais na mesma região.

Aqueles empresários que tinham negócios neste setor, atemorizados com a possibilidade de serem assaltados, saem da região e assim aumenta o desemprego na região, mais um fator que vai realimentar esse espaço.

As pessoas, os cidadãos residentes temem ir ao local público à noite. O hábito que as pessoas tinham de tomar chimarrão na frente da casa, de ir na praça com os amigos conversar, em espaço inclusive noturnos, é abandonado por causa do medo. As pessoas ficam reclusas nas suas casas.

Esses espaços públicos portanto não tem mais vigilância natural e sem mais vigilância natural traficantes de drogas podem ocupá-lo e ali fazer o seu negócio sem nenhum problema, porque ali não há mais qualquer pessoa que possa testemunhar ou dar noticia disso.

Há um conjunto de mecanismos de causa e efeito que agregados vão produzindo, a partir do medo e a partir da degradação ambiental, conjuntos que formam a própria criminogênese no nosso País ou em qualquer lugar do mundo.

Outro problema a respeito da forma como a mídia cobre o crime e a violência tem a ver com os setoristas de imprensa, é interessante isso, temos uma pesquisa no Brasil, produzida pela Cândido Mendes do Rio, a pesquisadora Silvia Ramos, uma das pessoas mais qualificadas nesta discussão sobre violência e mídia, eles fizeram uma pesquisa muito interessante sobre três grandes jornais brasileiros do Rio, São Paulo e

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Minas, estudando como, está disponível na Internet, a imprensa divulga crimes nesses grandes jornais.

Esse estudo demonstra o seguinte: a principal fonte que a mídia brasileira usa para divulgação de crimes é a Polícia, cerca de 30%, 35% das matérias tem como fonte exclusiva a Polícia, mesmo quando há outras fontes da matéria, apenas 10% das matérias sobre crimes produzidas por esses jornais avaliados na pesquisa, no ano de 2004, apresentam fontes divergentes.

Há um trabalho que organiza os jornais brasileiros que é feito pelos setoristas de imprensa, o pessoal que cobre Polícia, o setorial de Polícia. O que acontece com o setorista que cobre a Polícia? O jornalista que vai entrar em contato com a Polícia precisa de informação e para isso precisa ter boas relações com usa fonte. Começa a se aproximar da sua fonte, o delegado, o oficial, o inspetor, o policial militar quem seja, com quem pode ter informação, em geral informações que podem ser passadas em off inclusive para que possa ter instrumentos para fazer a matéria.

O que acontece? Ao longo dos anos vai se produzindo uma simbiose, inclusive de natureza ideológica entre esse setorista e as suas fontes e os valores morais que caracterizam a cultura policial são incorporadas acriticamente pelos setoristas.

De repente abrimos certos jornais nas páginas policias e vemos matérias sobre crime, cuja fonte é a Polícia, onde na verdade tudo o que ocorreu foi descrito pela autoridade policial. Certo ou errado, justo ou injusto o fato é que não há nenhuma posição, nenhum ponto de vista que não seja a vista desde um ponto, ou seja todo o olhar que temos sobre o mundo é um olhar situado.

Se vou fazer uma matéria que é um crime e recebo uma informação de um ponto de vista, ou seja a vista desde um ponto, no

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caso um olhar policial, tenho já nessa abordagem uma distorção absurda e sempre teremos. Qualquer que seja o entrevistado será sempre um ponto de vista a partir de um olhar específico. É por isso que a matéria deveria compor uma série de olhares e nunca é feito. A pesquisa demonstra isso, apenas 10% das matérias sobre crime apresentam fontes divergentes com opiniões distintas. Temos sempre uma única opinião, via de regra aquela oferecida pela Polícia.

Esses dias a RBS convidou-me para participar de um seminário interno com seus jornalistas, mais dois outros convidados para tratar desse tema. Sou colaborador do jornal e sinto-me muito à vontade de falar, era um seminário interno, dei até um exemplo de uma notícia do domingo anterior, disse que eles não se deram conta, mas a empresa paga um assessor de imprensa da Polícia, porque se o cidadão faz uma matéria e só ouve uma fonte, podia ser assessor de imprensa da Polícia, porque esse é o papel do assessor de imprensa da Polícia: passar informações para a mídia, mas o papel do jornalista não é esse.

Vejam vocês a diferença que teríamos na cobertura de mídia e crime no Brasil se, por exemplo, houvesse um setorista que cobrisse audiências criminais, ou houvesse um setorista que cobrisse os julgamentos nos tribunais. Onde todos os dias dezenas de pessoas são condenadas. Isso não constitui notícia, mas essa notícia é importante. Ou não é importante saber que uma pessoa que praticou um crime grave foi condenada e recebeu 15 anos, 20 anos de cadeia? Isso não é importante? É importante e essa noticia não é produzida. Depois se pergunta às pessoas porque acham que acontece tantos crimes no Brasil e tal.

Quais são os mais responsáveis, e a Justiça aparece em primeiro lugar como sendo uma das principais responsáveis pelo crime no Brasil, o que é um discurso socialmente construído, absolutamente falso.

O problema da impunidade no Brasil, que é gravíssimo, tem pouco a ver com a lei criminal, embora também tenha a ver, há certas

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reformas legais que precisam ser feitas para diminuir, enfim, certos mecanismos que alguns bandidos perigosos se utilizam para escapar da lei, especialmente bandidos ricos. Bandido pobre não tem como acessar, mas os ricos usam.

Não se chega nisso.

O problema fundamental da impunidade no Brasil se chama produção de prova e esse é um tema central que envolve a missão constitucional que se deve conferir à Polícia, as dificuldades que a Polícia brasileira enfrenta hoje. A falta de pessoal, a falta de material, a falta de tudo que é a experiência policial no Brasil, mas esse é o tema central. Procurar entender que a Justiça é responsável pela impunidade é inverter mais uma vez a realidade, mas isso se produz também por essa percepção de uma notícia que tem uma fonte e não tem várias fontes.

Meu tempo está encerrando, quero chamar a atenção para outra questão. Dependendo da forma como divulgamos certos fatos criminosos, produzimos estigma. O estigma, essa marca que colamos em algumas pessoas e ao colarmos essa marca em algumas pessoas a quem se atribui a prática de delitos ou que praticaram certos delitos estamos também, de uma forma enviesada, reforçando a criminogênese ou seja reforçando o processo de formação do crime, por uma razão muito óbvia: sempre que temos um estigma, todas as demais características dessa pessoa que foi estigmatizada desaparece.

A pessoa que pratica um delito não é mais uma pessoa. Ela é o delito, a sua condição de humanidade foi exaurida, ela vira um sinal de igual ao seu delito.

Quando algum jornalista, os bravos jornalistas brasileiros fazem uma matéria dizendo o bandido fulano de tal, não precisa dizer o nome, qualquer fulano de tal pobre, porque vocês nunca vão ver uma matéria que diga: o bandido Paulo Maluf viajou essa semana para passar férias

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em Paris com sua esposa. Essa matéria não sai.

Quando diz bandido é porque depois dessa palavra tem um pobre, mas quando a mídia faz isso produz no leitor a seguinte idéia: esse sujeito que aprendo a reconhecer como bandido não é mais um ser humano. Ele não tem portanto mais direito de humanidade e ao sair de um presídio, depois de cumprir sua pena, não tem nenhuma chance porque ele é um bandido e um bandido é sempre um bandido. Contanto que seja pobre, porque os crimes praticados por bandidos ricos vamos apagando com o tempo e pode-se inclusive entender que foi um episódio infeliz da sua vida e etc.

O problema do estigma é um problema sério, que produz o desvio secundário. Temos pesquisas nos Estados Unidos como uma lei chamada Megan’s Law. Megan foi uma menina que foi vitimada barbaramente por um ex-condenado por crime sexual. O cara foi preso por ter cometido crime sexual, cumpriu a pena e saiu. Quando saiu depois de algum tempo, matou uma menina. Isso criou uma grande comoção nos Estados Unidos e por conta disso vários Estados norte-americanos começaram a aprovar leis conhecidas como Megan’s Law. Uma lei que determina que todos os criminosos sexuais, pessoas condenadas por crimes sexuais, depois de cumprir a sua pena e sair da prisão, quando vão para um Município, para qualquer lugar, as autoridades policiais estão autorizadas a informar e devem fazê-lo à comunidade quem é a figura, o crime que praticou e onde mora.

O argumento dessa lei é que a população precisa se proteger dessa pessoa. O que aconteceu entretanto? Várias pesquisas demonstram, em relação à Megan’s Law, que essas pessoas condenadas por crimes sexuais, cuja comunidade onde moram foi informada do crime que praticaram, mergulham na clandestinidade. Claro, porque se estiverem em uma comunidade onde todos saibam que é um ex-estuprador ou que foi condenado por crime de estupro, por exemplo, que é um crime bárbaro, nenhuma possibilidade de relação essa pessoa vai

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ter mais, nenhum emprego poderá alcançar. Então, está condenada a uma pena perpétua de marginalização e estigma dentro dessa própria sociedade.

O que faz para fugir do estigma? Mergulha na ilegalidade, foge do controle da Polícia, adquire nome falso e começa a viver uma vida à margem da lei.

Portanto, através do estigma, é produzido um desvio secundário de conduta, a pessoa começa a praticar crimes por conta desse estigma.

Fazemos isso o dia inteiro, sem nos darmos conta. A imprensa brasileira faz muito. É um problema sério. É evidente que podemos ter um papel virtuoso a ser produzido pela mídia. E toda essa visão crítica que rapidamente pincelei aqui não pode também descartar isso. Graças à mídia temos a chance no Brasil muitas vezes de encontrar responsáveis por crimes graves. Graças a certas matérias, por exemplo, as cenas filmadas e divulgadas pela Rede Globo de Televisão em 1997, de Diadema, todos estão lembrados, quando pessoas são torturadas e um deles sendo morto covardemente por um policial de nome Rambo. Essas cenas que foram gravadas por um vídeo amador e divulgadas pela Globo, tipificaram no Brasil crime de tortura.

Uma coisa fantástica, depois de 500 anos de tortura no Brasil, desde que aqui chegaram os portugueses, só esse tempo de 500 anos para criar o tipo penal tortura. Não criaríamos não fosse a matéria divulgada pela televisão.

A mídia tem um grande potencial importante e benigno que pode ser associado de forma virtuosa de combate ao crime e à violência, mas infelizmente não é exatamente essa situação que nos encontramos. Muito obrigado.

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A SRA. COORDENADORA (Angela Salton Rotunno) – Muito obrigada, Marcos Rolim, pelas valiosas informações e considerações.

Tenho certeza de que iremos refletir melhor, principalmente, logo após ao café da manhã ao nos depararmos com nossos tablóides.

Está à disposição do público a possibilidade de encaminhar perguntas por escrito. Solicitamos a identificação da pessoa e o destinatário da pergunta.

Informamos também que todo o conteúdo deste seminário vai ser sistematizado e publicado pela Assembléia Legislativa.

O SR. PEDRINHO GUARESCHI – A pergunta do Sr. Anderson Magalhães Antunes: A utopia é uma realidade que não existe agora, mas que através da luta podemos construir. Neste contexto, em sua opinião, qual é a grande utopia da segurança pública brasileira?

A pergunta é boa, não vou repetir, mas vou enfatizar algo que penso que sugeri na fala. Como que vejo uma tentativa de saída dessa problemática.

Não vejo que vai ser possível fora daquilo que chamaria até de uma segurança comunitária ou participativa.

O orçamento participativo foi uma grande criação, porque convocou a todos a dizer sua palavra, a expressar seu projeto, mas acho precisaríamos também uma educação participativa, uma saúde participativa, e por que não uma segurança participativa? Essa segurança participativa está ligada à mídia quando a mídia também pode ser participativa, porque a mídia não pode ter donos. Numa pesquisa que fizemos, 97% de pessoas do segundo e terceiro grau acham que a mídia tem donos. Não, a mídia tem concessionários temporários, as rádios são

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10 anos e as televisões, 15 anos, mas a idéia das pessoa é de que a mídia tem donos.

Essa é a primeira barreira que devemos romper. Temos que dizer que a mídia é um serviço público e que ela deve ser porta voz de grupos organizados. Então, porque não uma participação onde todos possam dizer a sua palavra, é claro, alguns não querem, então, que se multiplique a mídia, vamos passar para as rádios comunitárias, tevês comunitárias, todos os órgãos comunitários e participativos possíveis.

Então, a minha utopia é essa, o povo mesmo pode dizer a sua palavra, e todos podem, organizadamente dizer a sua palavra.

Uma segunda questão, da Daiane Flores. Muito se discute sobre a relação consumismo irracional e crime, mas o consumismo é a base, o fundamento da sociedade capitalista. Como usar o consumismo de forma racional? Como não nos tornarmos em adoradores do capital? Há espaço para uma sociedade sustentável nesse contexto?

Não podemos ser contra a propaganda ou a publicidade. É evidente que temos que informar, mas há várias maneiras de informar e essa é uma questão ética muito séria. Eu não posso informar manipulando, enfiando goela abaixo, e usando mecanismos até subliminares, manipuladores, para vender um produto. Agora, eu posso informar, fazer o meu comercial de uma maneira ética, estética e legítima. Esse é o desafio para os comunicadores.

O grande debate que temos é esse. Existe propaganda que usa meios irracionais, incontroláveis e manipuladores? Sim, mas sem consumo não existe sociedade. Sem consumo não há, agora, eu posso artisticamente, criativamente, fazer uma propaganda que seja bonita, informativa, agradável e que ajude os irmãos e irmãs a conhecer o que existe, para poder comprar aquilo que interessa, com isso promover a sociedade.

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A Luciana Reis diz: A mídia, com a sua manipulação, mensagens subliminares, constrói o caos da violência devido aos “interesses” do momento – interesses com aspas. Posteriormente, a mesma lança alguém que seria o salvador da criminalidade. Pergunto: o crime organizado não estaria por trás, até mesmo bancando a mídia? Existe algum órgão regulador que limite a mídia?

Seria interessante pensar o que passa pela cabeça das pessoas quando se fala em crime organizado, porque, em geral, o crime organizado é aquele que a mídia define como crime organizado.

Eu penso que o crime é organizado sim, mas o crime é organizado pelas pessoas mais poderosas desse País. Aí ele é organizado, e ele nunca vai ir contra os interesses profundos de determinadas pessoas. Esta é a minha opinião, e me arrisco a dizer isso. Agora, qual a ligação disso com a mídia? Eu coloco sempre o cifrão como ponto final.

Vejo que há uma certa ilusão de se definir como crime organizado esse pessoalzinho de baixo, porque ele é organizado desde cima. Então, é preciso saber quem está organizando, a partir de cima. Acho que a ligação com a mídia não pode deixar de existir. Vamos pegar o caso deste vídeo feito na favela, Os Falcões. Quantas horas? Tantas horas de gravação sobre aquelas crianças, como chegam, como vão. Pergunto de onde vem todo aquele tóxico? Será que não poderiam dedicar um pouco de tempo desse pessoal organizado, ligado à mídia, para buscar quais são, de fato, aqueles que trazem a droga? Será que não se poderia perguntar quem introduz isto dentro do Brasil, quem são os responsáveis? Quem lucra com isto? Por que focar a coisa nos coitados, nas crianças? Para deixar a população penalizada, dizendo: que belo trabalho fez a mídia. Que coisa extraordinária. Mas o verdadeiro problema nem se discutiu.

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Agora, perguntar sobre um órgão regulador. O único órgão regulador que conheço é a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, com a campanha Quem Financia a Baixaria é contra a Cidadania. É um grupo de 60 entidades brasileiras que estão começando a receber, pela primeira vez na história, reclamações do povo brasileiro, sobre tudo aquilo que a pessoa não goste. O acesso é através do site www.eticanatv.org.br. As reclamações chegam, são sistematizadas, são elaborados pareceres e é são enviadas para as emissoras. Houve uma mudança tremenda, o Ratinho mudou completamente o programa dele; a Rede TV ficou 24 horas fora do ar; tiveram que dar 200 mil reais para fazer 30 programas diferentes, destes grupos estigmatizados e rotulados, que eram debochados pelo Cleber. Então, está ocorrendo uma mudança.

A Rádio Bandeirantes chegou a processar o deputado Fantasini por causa disso. Porque uma propaganda das Casas Bahia foi retirada do ar. Então, isso está funcionando, mas é a única organização da sociedade civil que conheço que está se preocupando com a questão da mídia.

O SR. MARCOS ROLIM – Só para agregar uma informação, a campanha que a Comissão de Direitos Humanos que a Câmara Federal deflagrou, já há uns 4 nos, na época eu era deputado federal e fazia parte da Comissão, tem a pretensão de sensibilizar os anunciantes, para que eles deixem de anunciar em programas que reproduzem este tipo de baixaria, e já tem algum sucesso em algumas ocasiões.

Também quero dizer que um dos projetos que deixei no Congresso Nacional e que tramita até hoje, porque o deputado Orlando Fantasini, hoje no PSOL de São Paulo, reapresentou aquele meu projeto, e continua, tramitando, embora não tenha sido votado, e acho muito difícil ser votado nesta correlação de forças que temos no Congresso Nacional atualmete, é o projeto que institui o Código de Ética da Programação Televisiva, que foi baseado na experiência britânica, como também na legislação do mundo inteiro de participação democrática na

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mídia, que, entre outras medidas proíbe a propaganda de qualquer produto para criança. Eu concordo com o que foi dito aqui, que é um dos atentados mais grotescos que a mídia produz, a propaganda dirigida para crianças e que produz infelicidade para milhões de crianças brasileiras pobres, que recebem esse massacre publicitário e não podem adquirir os produtos que são associados à felicidade para essas próprias crianças. É uma coisa absurda. O mundo inteiro já conseguiu resolver isso e o Brasil continua achando que isso é liberdade de expressão.

Uma pergunta do Afrânio Andrade, que é policial rodoviário federal e também jornalista. A preocupação dele é sobre o papel das assessorias de comunicação dos órgãos de segurança pública. Como eles devem trabalhar sendo mediadores da transformação da cobertura das editorias de polícia, na sua condição de meros repassadores de boletins de ocorrência, etc.

No caso das assessorias de imprensa de órgãos policias, é evidente que se a assessoria de imprensa conseguir fazer um bom trabalho, ela vai ajudar muito no aumento do grau de confiabilidade da população nas polícias. É claro que nenhuma assessoria de imprensa do mundo vai conseguir aumentar o grau de confiança nas polícias se as polícias não ajudarem, e uma boa assessoria de imprensa pode ajudar muito.

O grau de confiança das pessoas na polícia é o tema central para a eficiência policial. Quando temos baixos indicadores de confiança, em geral, as vítimas de delitos não registram ocorrência. Sobre isto eu venho falando sozinho fazem exatos 16 anos. Há 16 anos, cada governo que assume o Rio Grande do Sul eu procuro o secretário de segurança e dou a sugestão de que não produzam diagnósticos a partir de boletins de ocorrências, e sim que façam pesquisas de vitimização. Todos os que falei até hoje acharam muito interessante, mas nenhum deles fez. Continuamos, no Brasil, trabalhando com diagnóstico na segurança pública com base em boletins de ocorrências, o que é a pré-história do

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diagnóstico em segurança pública, porque sabe-se que a grande maioria dos delitos não são registrados, quer dizer, a grande maioria das vítimas, inclusive vítimas de crimes violentos, não registram ocorrência na polícia, pelos mais variados motivos.

Então, aumentando o grau de confiança na polícia, aumentaremos, também, os registros policiais. Esta é a razão pela qual, quando os registros estão caindo, não significa que a violência está diminuindo. O que pode estar diminuindo é a confiança das pessoas na polícia, e isto é interpretado como queda real de crime, o que nem sempre é verdadeiro.

Agora, acho que a produção de uma boa imagem da corporação é fundamental para aumentar essa confiabilidade, e uma população que confia na sua polícia informará mais aos policiais, o que é central para a eficiência. Uma polícia que age sem informação é uma polícia que atua às cegas, e a fonte de informação mais importante da polícia é a população. Agora, se esta população tem medo da polícia, se ela não confia, se pensa, por exemplo, que dando uma informação, essa informação pode vazar para o crime e ela pode sofrer uma represália por conta dessa informação, essa informação não vai ser prestada.

É preciso aumentar a confiança das pessoas na polícia e esse é o papel fundamental a assessoria de imprensa. Acho também que um outro papel que a assessoria de imprensa poderia cumprir e que os setores de comunicação das polícias européias cumprem bastante é o seguinte: é muito importante o setor de inteligência policial, a partir do momento em que ele acumula informações sobre a dinâmica criminal, e que possa informar às pessoas, aos residentes, sobre essa dinâmica. Isso deve ser feito através da assessoria de imprensa, porque esse é um trabalho profissional de marketing, de informação, como tocar as pessoas, que meios utilizar, como fazer chegar até as pessoas a informação correta.

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Um exemplo da universidade de Oxford, quando começa o verão na Inglaterra. Como é muito frio o ano inteiro, chega o verão, a primeira coisa que as pessoas fazem é abrir as janelas. Aumenta muito o furto dentro das casas, mesmo sem arrombamento, devido às janelas abertas. Então, sempre que inicia o verão, a polícia manda, por e-mail, para todos os departamentos da universidade um comunicado dizendo que está começando o período onde aumentam os furtos de computadores, laptops, etc. por conta das janelas abertas, e aconselha as pessoas a não saírem de casa sem fechar as janelas.

São coisas óbvias, mas que podem prevenir certos crimes de oportunidade. Esse é um trabalho da assessoria de imprensa, que é feito por uma polícia que foi organizada de uma outra maneira, não essa polícia reativa que nós temos, mas uma polícia formada com outro paradigma, enfim, que não é objeto dessa discussão aqui.

Muito obrigado.

A SRA. COORDENADORA (Angela Salton Rotunno) – Passo novamente a palavra ao professor Pedrinho para uma última pergunta e para suas considerações finais.

O SR. PEDRINHO GUARESCHI – Pergunta da Andréa Rolin Félix. Como poucas pessoas podem deter o poder da mídia e formar opiniões, se a mídia é pública?

Uma coisa misteriosa acontece no Brasil. A Constituição de 1988 tem um capítulo com 5 artigos sobre a mídia. É o único capítulo da Constituição que ainda não foi regulamentado. A regulamentação da mídia é de 1962. Na Constituição diz que não pode haver monopólio nem oligopólio, mas está na cara que existe monopólios e oligopólios, tanto que 84% do que o gaúcho assiste vem de uma família. Então, temos que saber, dependemos de uma família, isso é monopólio. A

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regulamentação é de 1962. Então, quem não quer que esta lei seja regulamentada? A própria mídia, porque a mídia não é o quarto poder, é o primeiro, e decide sobre todos o outros.

Como furar esta barreira? Não vejo isso, fora da tentativa de participação popular, de roubar a palavra, se for necessário e, com isso, vou terminar. Penso que a mídia tem muito a ver com segurança. Estamos escutando as notícias de São Paulo, um estado que passou a ser um pouco refém de alguns grupos, e a mídia, é claro, execrando esses grupos, mas eu me pergunto, será eu, por trás, não há uma exclusão muito maior dessas pessoas? Será que elas não estão reagindo dessa maneira porque sentem-se excluídas até de dizer o que pensam? Não vejo saída fora de uma mídia participativa que leve a decisões de como possibilitar uma segurança que seja participativa. Os brasileiros todos pensando e dizendo sua opinião, sua palavra, fazendo discussões sérias sobre isso, e convocando todos os grupos organizados a pensar essa batata quente que é a nossa segurança, e a violência, acho que aí teríamos saída, agora, a solução não virá de alguns iluminados.

Era isso. Muito obrigado pela atenção paciente de vocês.

A SRA. COORDENADORA (Angela Salton Rotunno) – Sr. Marcos Rolim, para suas considerações finais.

O SR. MARCOS ROLIM – Eu só quero agradecer, mais uma vez, o convite e queria deixa registrado que estou de acordo com toda essa crítica que o professor Pedrinho fez sobre o processo de monopolização da mídia brasileira, que, de fato, é algo absurdo, ou seja, há uma concentração de meios de produção da comunicação no Brasil, que é extraordinariamente alta, a gente sabe disso.

Essa exigência, pela democratização dos meios de comunicação

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no Brasil, é uma exigência que tem muito a ver com o estado democrático de direito.

Mesmo em nações como por exemplo nos Estados Unidos, que são insuspeitas do ponto de vista do que significa o livre mercado e as garantias fundamentais de reprodução do próprio capital, tem uma lei antitruste no que tange aos meios de comunicação, que é a seguinte: o sujeito é empresário, é dono de um jornal, não pode ser dono de uma televisão.

Portanto, concentrar meios de comunicação numa mesma pessoa é vedado por lei nos Estados Unidos e em muitos outros países do mundo.

No Brasil temos uma grande concentração e isso é um problema sério que envolve a própria democracia brasileira, estou de acordo.

Agora, eu só acho que o funcionamento da mídia persegue, na verdade, os seus objetivos de lucro, como qualquer outra empresa e o seu compromisso com idéias e ideologias, como disse o professor Pedrinho, é residual, ou seja, os editores, os donos, têm a sua visão, a sua concepção sobre o mundo e em algumas vezes essa concepção estará muito explícita no jornal, mas nem sempre, porque dentro desse espaço, que é a mídia, há milhares de pessoas envolvidas.

Por exemplo, aqui no Rio Grande do Sul, a Zero Hora, um jornal que é feito todos dias, por trás desse jornal tem 400 ou 500 pessoas que o fizeram, é rigorosamente impossível haver um controle absoluto e total a respeito dessa produção.

Existe, portanto, uma margem muito grande de pluralidade, de diferença de tons e de enfoques dentro dessa mesma mídia, sobre alguns temas isso é mais difícil, por exemplo, os temas que envolvem os interesses dos anunciantes, neste caso pode-se notar claramente.

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Aconteceu comigo, há alguns dias, um fato muito interessante, o repórter da Zero Hora me ligou para fazer uma entrevista por telefone sobre a história de celulares no presídio, eu falei o que eu achava e dei várias informações sobre o funcionamento de presídios nos Estado Unidos e na Europa, os quais eu conheci e como eles resolveram os problemas, simplesmente, não saiu nada, saiu apenas uma frase minha onde eu apontava que o problema da corrupção era um dos temas centrais do Brasil para a entrada de telefones, o que é verdade, mas essa foi a frase que saiu.

Entrevistaram mais três ou quatro especialistas sobre a matéria, um deles disse que houve uma experiência, não sei onde, de bloqueamento de sinal, mas que não deu certo.

A chamada da matéria era: Especialistas afirmam que não funcionará o bloqueio de celulares. Eu não fui perguntado sobre isso, não sei se os outros foram, mas eu não.

Eu li a matéria e fiquei pensando que talvez não tenha sido coisa do jornalista que me entrevistou, pode ter sido coisa do editor que fez a matéria ou do cara que deu o título, enfim, mas pode ter sido também o interesse do anunciante, que são as companhias telefônicas que não estão interessadas em ser obrigadas a fazer o bloqueamento. Pode ter sido isso, não estou dizendo que aconteceu, em certos momentos em que isso fica muito evidente, em outros não.

Por exemplo, o documentário Falcão – Meninos do Tráfico, sobre crianças envolvidas com o tráfico, que foi feito pelo MV Bill e Celso Athayde, eu conheço os dois e conheço bastante a história do documentário, eles quase foram presos por esse documentário, a Globo jamais o aceitou antes de ver o resultado final.

Depois de um certo momento, por razões que, no fundo, são

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lucrativas, alguém da emissora percebeu que se tratava de uma matéria de impacto nacional e esse impacto seria produtivo, traria credibilidade, espaço, divulgação e outros veículos. Colocaram no ar, uma hora de Fantástico.

Foi uma das coisas mais impressionantes que a televisão Brasileira já fez e positivas, eu acho.

Com aquele documentário, pessoas que estão acostumadas a ver em matérias de jornal o traficante tal, o tráfico, de repente vê que por trás dessa palavra pode ter uma criança de doze, nove, oito anos.

Essa desconstituição do estigma associado à idéia do traficante, quando aparece um menino de nove anos por trás, é uma coisa muito revolucionária na mídia brasileira.

A Globo, ao divulgar isso, evidentemente que não pensou nisso que eu estou dizendo, pensou no seu objetivo lucrativo, mas esses espaços existem e devem ser bem trabalhados e aproveitados até para serem alargados.

Acho que uma discussão como essa pode ser feita e deve ser feita com jornalistas nos veículos, quem sabe a partir de uma certa reflexão eles mesmos não possam se dar conta de algumas coisas que têm feito e melhorar a sua própria cobertura ou ter uma visão mais ampliada.

Acho que esse é o nosso desafio apostando na possibilidade de construção através do diálogo e não da imposição de uma ou de outra visão. Obrigado. (palmas)

A SRA. COORDENADORA (Angela Salton Rotunno) – Para encerrar o evento, a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da

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Assembléia Legislativa, vai passar uma apresentação de uma série de imagens gentilmente cedidas pela Promotoria de Justiça de Controle de Execuções Criminais, do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, é uma proposta de reflexão a todos aqui presentes.

Agradecemos profundamente ao professor Pedrinho Guareschi e ao Marcos Rolim pelos valiosos ensinamentos e principalmente pela presença de todos vocês, lembrando que o brilho de todo o evento, com certeza, é creditado ao público.

Muito obrigada, uma boa noite a todos. (palmas)

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