sem vergonha de contar -...

16
1 Editorial Por Helena Frenzel Neste número textos de: Michele Calliari Marchese Helena Frenzel Maria Olímpia Alves de Melo Maria Mineira Rodrigo Arcadia Maurem Kayna Edição: Helena Frenzel Versão Impressa de textos selecionados do Blog Sem Vergonha de Contar - IBSN 2- 505-203-000 - Nr 4 - Mar 2013 Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected] . Neste mês fizemos uma seleção que é uma pena você não ler. Abrimos com um bem fadado Dilúvio na Campina e um Encontro desses marcados em quartos de anos de relacionamento que bem poucos não sentem passar, e só mesmo Michele para descrever. Na seção de Vigaristas, dramas pessoais que podem se revelar nas unhas , mas também num ascensor . Nossos convidados de fevereiro não vieram de mãos vazias, trouxeram valiosas contribuições. Maria Olímpia nos trouxe Sapatos bem costurados e Maria Mineira, uma homenagem a um grande João . Rodrigo Arcadia veio com carnavalescas lembranças de um narrador personagem e, encerrando a rodada, Maurem Kayna nos trouxe bem trabalhadas Trancas para fecharmos com chave literária esta edição. Em março não teremos postagens, voltaremos em abril com convidados e histórias mais. Que tal, nessa pausa, preparar um texto seu para nos enviar? Boa pedida! Alegramo-nos com a sua participação. Abraços letripulistas, até lá! SEM VERGONHA DE CONTAR Contos, Causos e Coisas do Gênero Canto das escritoras Helena Frenzel e Michele Caiari Marchese

Upload: others

Post on 01-Mar-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

1

EditorialPor Helena Frenzel

Neste número textos de:

Michele Calliari Marchese

Helena Frenzel

Maria Olímpia Alves de Melo

Maria Mineira

Rodrigo Arcadia

Maurem Kayna

Edição: Helena Frenzel

Versão Impressa de textos selecionados do Blog Sem Vergonha de Contar - IBSN 2- 505-203-000 - Nr 4 - Mar 2013

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

Neste mês fizemos uma seleção que é uma pena você não ler. Abrimos

com um bem fadado Dilúvio na Campina e um Encontro desses

marcados em quartos de anos de relacionamento que bem poucos não

sentem passar, e só mesmo Michele para descrever. Na seção de

Vigaristas, dramas pessoais que podem se revelar nas unhas, mas

também num ascensor. Nossos convidados de fevereiro não vieram de

mãos vazias, trouxeram valiosas contribuições. Maria Olímpia nos trouxe

Sapatos bem costurados e Maria Mineira, uma homenagem a um grande

João. Rodrigo Arcadia veio com carnavalescas lembranças de um

narrador personagem e, encerrando a rodada, Maurem Kayna nos trouxe

bem trabalhadas Trancas para fecharmos com chave literária esta

edição. Em março não teremos postagens, voltaremos em abril com

convidados e histórias mais. Que tal, nessa pausa, preparar um texto

seu para nos enviar? Boa pedida! Alegramo-nos com a sua participação.

Abraços letripulistas, até lá!

SEM VERGONHA DE CONTAR

Contos, Causos e Coisas do GêneroCanto das escritoras Helena Frenzel e Michele Calliari Marchese

Page 2: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

2

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 Causos da Campina

Ultimate Diluvium* ou O Bígamo NaufragadoPor Michele Calliari Marchese

Oras, todo mundo sabe da catastrófica

localização geográfica da Campina da

Cascavel de modo que não seria

novidade alguma o grande aguaceiro

acontecido no início do século passado.

Começou quando a Dona Silvia estendia

as roupas brancas do marido no varal de

bambu. Fazia um calor dos diabos e não

tinha vento.

Era um mormaço que vinha de baixo, da

terra, e que não dava tréguas ao suor

que escorria pelas pernas, cuja saia

estava feita em um nó próximo aos

joelhos para suportar o calor da lavação.

Estava tão cansada e traída que acabou

tendo uma vertigem e caiu de costas no

chão quente. A luminosidade não

permitia que abrisse os olhos, mas com

as mãos pos t as no ros to pôde

vislumbrar as nuvens escuras e grossas

que avizinhavam.

Levantou num ímpeto, desamarrou a

saia e saiu correndo pegar a ramagem

benta pelo padre e queimá-la na frente

da futura tormenta.

Toda vez que saía da casa tinha que

acender a chama na ramagem no fogão a

lenha — um vento tépido lhe soprava e

apagava o fogo. Assim foram repetidas

vezes, tantas que não percebeu que os

ramos bentos já se tinham extinguido

durante o entra e sai. Bufou e foi

recolher a roupa do marido que estava

seca.

As nuvens carregadas e ameaçadoras

estavam cada vez mais perto e ela não

tinha mais com o que benzer, mas

decerto que alguma vizinha já estava

fazendo o que ela não conseguira fazer.

Tranquilizou-se e notou a falta de um

dos tamancos do marido. Onde estaria?

E começou um vento que ventava

metade para baixo quente e metade para

cima, frio. Não sabia que sensação

agradável — porém doída nas orelhas —

era aquela que experimentava naquele

momento. Sentiu uma precipitação

dentro de si, uma vontade de largar tudo

e ir com o vento, mas lembrou-se do

tamanco desaparecido e voltou a si. O

marido precisaria do sapato, pois só

tinha aquele.

Agachou-se para procurar, em vão.

Além das saias que levantavam com o

vento, as roupas secas insistiam em sair

dos braços e seus cabelos já estavam

desgrenhados a ponto de Dona Silvia

Page 3: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

3

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 não saber mais em que pensar: se na

traição, se no sumiço do tamanco, se no

desembaraçar dos cabelos ou na

tormenta que estava prestes a cair.

Pior mesmo era a desaparição do

tamanco do marido.

O homem era um atormentado. Era

exigente demais, chato demais, e ainda

por cima o dito era bígamo. Bígamo. Foi

a comadre que contou num sussurro e

Dona Silvia levou quase um mês para

saber o que “bígamo” significava, e

quando soube levou um susto tão grande

que não quis nem saber quem era a

outra. Ficou pensando e pensando e

pensando e agora com o tamanco

sumido, poderia lhe atirar na cara a

bigamia. Que tivesse perdido o tamanco

na casa da outra e voltara com um pé no

limpo. Que fosse lá e que ficasse em

definitivo.

Mas não. Voltou com os dois pés, sujos,

dentro dos dois tamancos, também

sujos, para que ela e não a outra lavasse

os bandidos. Resolveu jogar o par limpo

fora, no rio, naquela parte bem funda.

Mas o maldito boiou e veio tal qual

terneiro a mamar na teta, devagarzinho

que dava ódio.

Resolveu cavar um buraco e enterrar o

calçado. Largou as roupas que saíram

voando em redemoinho. Tentou agarrá-

las, mas o buraco era mais importante.

Enterrou o tamanco do bígamo o mais

fundo que pôde e foi para casa suja, com

poeira a lhe arder os olhos e com a alma

lavada. Sentia que podia tudo, até com a

borrasca que desabaria em seguida. As

nuvens estavam bem acima de sua

cabeça e havia anoitecido sem ela

perceber. Só notou que os cabelos

caíram em seus ombros como uma

assombração; o vento tinha parado.

Justamente nessa hora o marido chegou

a reclamar dos tamancos. Ela deu uma

última espiada para o tempo e disse ao

marido que os sapatos estavam secando

em cima das pedras do rio e que ele

podia pegá-los se quisesse, pois que ela

estava atrapalhada com as roupas.

No mesmo instante que os dois

cruzaram a porta, ela quando entrou e

ele quando saiu, ele percebeu que não

havia roupa alguma nos braços da

mulher, mas duvidou, porque naquele

exato momento a porta se fechou a

tranco e a tempestade desabou. Não via

nada nem a um palmo do nariz. Era

desesperador.

Dona Sílvia exclamava prazerosamente

em cada janela que fechava: “Enfim, o

dilúvio”. E o bígamo que corria

naufragando e cego pela chuva sempre

atrasado a chegar às janelas, sufocava

com a água que caía ininterruptamente

tentando dizer “me deixe entrar”.

*Do latim: “finalmente, o dilúvio”

Page 4: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

4

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013

Esse causo aconteceu quando a Dona

Maria reencontrou uma pessoa há muito

tempo esquecida. No início ficou

contente que essa pessoa a reconheceu

depois de quase quarenta anos, mas

depois foi entristecendo de tal forma

que a despedida foi um alívio.

A Dona Maria era uma mulher muito

feliz e extrovertida, e quando retornou

para casa, depois daquele fatídico

encontro improvável, tudo mudou;

inclusive a forma leve que ela via e

vivia a vida transformou-se de tal forma

que seu sorriso raramente era visto.

Não podia simplesmente culpar o

ocorrido pelo que sentia dentro de sua

alma, lá no fundo do peito ela achava

que era uma confusão passageira e que

essa tristeza era a soma de todos os

dias de sua vida. Passaria, decerto.

Porém, não passou.

Daquela infelicidade que brotou durante

os cinco minutos de conversa — o que

pareceu uma eternidade — veio a

incapacidade de levar a vida adiante.

Nem o marido que tanto amava e os

filhos queridos conseguiam transpor a

tristeza com a vivacidade familiar.

Dona Maria, taciturna e paradoxalmente

leve, pediu ao Padre Dimas que a

ouvisse em confissão, para ver se

alentava o coração e voltava a ser como

era antes, mas o Padre Dimas nada

podia fazer diante do desabafo e sugeriu

que esquecesse de uma vez por todas

do encontro e daquela pessoa. E isso só

poderia acontecer por vontade própria,

por luta interior.

Aconteceu que a Dona Maria acabou

gostando de não ter que lutar contra

nada e decidiu deixar que as águas

rolassem, assim como suas lágrimas,

calmamente e sem desejos. Engolia com

sofreguidão cada uma que escorria pela

face indo cair nos cantos de sua boca.

Pensava nesses momentos que aqueles

cinco minutos poderiam ter sido de

beijos, aqueles beijos roubados e

escondidos que tinham o sabor da

juventude e da maciez carnuda,

deixados para trás sem eira nem beira.

Passava em seguida a mão pela boca,

para afugentar tais pensamentos e

limpar possíveis resquícios do que

sobrou daqueles beijos. Sentia ainda a

urgência dos cinco minutos. Foram

mesmo cinco minutos?

Deitou em sua cama com o sol a pino,

sob os olhares atentos da família.

Trancou a porta. Passou a mão direita

pelo pescoço e tirou uma corrente de

ouro, colocando sobre a mesinha. Refez

O EncontroPor Michele Calliari Marchese

Page 5: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

5

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013

Contos Vigaristas

Pintou as unhas de vermelho e foi para a horta

Por Michele Calliari Marchese

Joana era uma daquelas mulheres

extremamente apaixonadas pelos

p raze res que a ca rne o fe rece .

Namoradeira que só ela, dizia que o

meretr íc io era para as putas e

condenava a cobrança de tão caro

prazer. Não se apaixonava nunca pelo

homem que aparecia, mas pela carne

que se apresentava, viril, quente. A cada

um recebia de uma forma diferente,

conforme ela via a personalidade do

homem que se apresentava, ela se

vestia ora de modo jovial, ora clássico,

ora arrebatador. Cuidava da aparência

com desvelo e suas mãos eram as que

recebiam cuidados redobrados, suas

unhas eram pintadas de rosa — uma

discrição que se concedia — para

acariciar seus homens prazerosamente.

Recebia-os em sua casa, cujo endereço

ela distribuía aos quatro ventos, e até

mesmo muitos homens que ela nem

conhecia e tampouco havia encontrado

em algum momento já sabiam onde ela

o ritual e tirou os brincos, colocando-os

ao lado do colar. Fechou os olhos.

O sutiã apertava e o ar estava lhe

faltando. Resolveu ficar nua.

Tirou o esmalte vermelho das unhas,

tomou um banho e tornou a deitar.

Agora sim. Estava nua de fato, nua na

carne e nua na alma.

No quarto de um casamento de quase 45

anos, Dona Maria dormiu.

Sonhou com o encontro que nunca

deveria ter acontecido, sonhou com as

roupas espalhadas no chão, suas e dele.

Olhou atentamente e não reconheceu as

vestes do marido. Eram do outro. Aquele

do encontro, aquele dos beijos. Aquele

que veio com o verão e se foi como o

outono. Aquele que impossivelmente

seria o pai do seu primeiro filho. E

sonhou também com um rompimento que

fazia doer-lhe o coração. Rompeu com a

vida.

Acordou com as batidas insistentes na

por ta e o mar ido , v is ive lmente

preocupado, estava chorando. Vestiu-se

sem pressa, destrancou a porta e deixou

o amor entrar.

Page 6: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

6

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

morava. Mesmo sendo uma casa

pequena, a decoração era de todos os

gostos, todos se sentiam bem por lá.

Mas acontece que chegou um daqueles

dias que ninguém espera e que

estarrece com o hálito quente e doce as

diabruras do amor.

Djalma chegou com o mormaço do

verão, numa tarde de suor, tocou a

campainha da casa errada — a dela —

para procurar um cliente de sua

empresa. Não escondeu a admiração por

curvas tão voluptuosas, e aceitou de

pronto aquele convite insano para

entrar. Djalma tornou-se frequentador

assíduo da casa. Joana tornou-se

escrava daqueles momentos e não

aceitou mais nenhum encontro.

Mas acontece que chegou um daqueles

dias que ninguém espera e aquele

grande amor, que afoga a garganta de

tão louco e intenso, abandona os

abraços nus, deixa de lado os quadris e

mata o sentimento de posse. Djalma se

foi.

J o a n a n ã o p o d i a c o n c e b e r a

possibilidade de que as tardes quentes

de mormaço mole estariam vazias, assim

como suas carnes que não teriam o

gosto do sal do amor urgente com

D j a lma . F i c ou doen t e do amo r

abandonado e escorraçado, ligou, ligou e

exigiu a presença do amante com

pressa, com a urgência para um último

adeus, o adeus da cama, dos beijos, do

orgasmo e da calma do depois.

Djalma foi com a canalhice dos amantes

que cansam de suas presas e entediado

esperando os soluços chorosos da

mulher descartada.

* * *

Quem ligou para a polícia foi uma vizinha

— a manicure — que estranhou o

silêncio de Joana e as faltas masculinas

da casa. Estranhou o fato de que Joana

pediu para que ela pintasse suas unhas

de vermelho porque o homem de sua

vida viria para ficar. Depois aquele

cheiro putrefato que exalava do terreno

vizinho.

Num sábado chuvoso de muito frio, a

polícia e os bombeiros encontraram o

co rpo de um homem en te r rado

superficialmente no terreno. Estava

irreconhecível. Na casa, Joana jazia nua

em sua cama, as mãos cruzadas

escondendo os seios e mostrando o

vermelho vivo de suas unhas na carne

branca e pálida da morte.

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013

Page 7: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

7

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013

Chamou o elevador. Era só cansaço e o

final daquele turno prometia-lhe o

melhor: a cama enorme, macia. Sonhava

com o prêmio dos lençóis cheirando a

limpo e ansiava por um sono bom;

também pelo bolo que a faxineira

deveria ter batido, pois a mais, para

esse e outros mimos, concordara ele em

pagar. Tinha direito!

Era de manhã. Seu turno encerrava-se

às oito e ele ficava sempre mais um

pouco, cerca de uma hora, arquitetando

o futuro e medindo os pulsos do coração

do capital. Com muito esforço e exatos

contatos havia chegado lá. E dera muito

trabalho armar o circo: o colega desistiu

não só do cargo, também do emprego, e

mudou-se para outra cidade, pequena,

no interior. Sem ele no páreo e ninguém

mais preparado para assumir: bingo! as

portas do futuro se abriam no compasso

das do elevador.

Na vida, pra subir, a gente desce, com

elevadores nem sempre isso se dá.

Queria o subsolo, mas alguém que viera

de baixo e ali já não estava, apertara o

botão de um andar mais alto que o seu.

Cento e dez andares, ao todo, e ele

estava quase a meio caminho do topo,

no andar da firma. Elevador pequeno,

andar fantasma, não havia viv’alma

quando ele o tomou.

No circuito interno, versos de What a

Wonderful World fizeram-no lembrar de

1968 quando, aos sete anos, ouviu-a

pela primeira vez. De repente, a

impressão de que o prédio balançara fê-

lo voltar ao presente e esquecer de

Armstrong. Devia ser o cansaço, pensou.

Um relógio mostrava 09:03 e ele,

atraído pela força dos dígitos, balançou

a cabeça especulando a boa fração de

vida a gastar ainda na Itália, às custas de

duras escaladas em mais de vinte anos

de corporação.

A promoção era merecida, estava certo,

em seu dia-a-dia só havia trabalho,

planos, cálculos, transações e Elisa, de

quando em vez. “Ai, Elisa, tivesse você

mais ambição ou fosse você mais

sórdida...”

Perdido em pensamentos, esquecera-se

das luzes que iam mostrando os

progressos do ascensor, estava a um

passo do destino desejado quando sentiu

um solavanco, ouviu um estrondo e tudo

parou de funcionar. Sem energia e

comunicação, sem rede, sem nada. Tudo

tentara para escapar daquela caixa mas

certas coisas só dão certo em filmes de

ação. E como contava carneiros em

criança, quando não conseguia dormir,

50 minutos mais ou menos contou do

tempo para fugir de estar no escuro e no

Ascendendo

Por Helena Frenzel

Page 8: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

8

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 silêncio, do pânico de estar consigo

mesmo, tortura sem igual.

Tudo o que sobe, desce, e em poucos

segundos a vida se esvai: “Elisa,

querida, tenho tudo, tenho o mundo para

dar, tudo pago, sou rico e pobre de

amor; paraíso e putas, não tive, saudade,

só de mãe, deixada, deixou-me o pai, e

dói. Ai, Elisa que sonha com Lorca,

tivesse eu você agora aqui... Compro,

vendo, não dou nem troco, compro-

compro, vendi-vendi, vi vendi e vendo:

mais vale aquele que não se vende do

que aquele que se dá. “La Aurora” e  

“las aguas podridas”, Elisa, ai, Elisa,

jamais saberei, dinheiro, só dinheiro,

trabalho, dinheiro, din-din, capital

ganhei, dinheiro, na torre do mundo,

d inhe i ro , nada herde i , d i nhe i- ,

capitalismo e moral, dinhei- calculo se

Deus din-din... e perco! Hoje faço

quarenta anos, setembro, quarenta anos

de solidão. Estou cansado, estamos

todos perdidos. Não fui imoral.”

“What a wonderful world!” foi seu último

suspiro, a canção de Elisa, a que ela

gostava mais.

Tivesse ele já não perdido os sentidos

lembraria também da queda, do ferro, do

pó e dos detritos, da torre e dos sonhos

cobrindo-o, desabando, da tão desejada

cama e dos limpos lençóis. Desejos de

aniversário se realizam. Ele queria o

subsolo e ansiava por um sono bom.

Convidados

Os SapatosPor Maria Olímpia Alves de Melo

Foram os sapatos. Foi a primeira coisa

que Denise viu, quando ele entrou. Uma

cor indefinida. Bege? Café com leite?

Leite queimado? Doce de leite, tal qual

sua mãe fazia, no tacho de cobre

comprado dos ciganos? Viu mesmo

antes que ele dissesse: Olha que

belezinha? Que conforto? Parado ali, na

porta da cozinha, a espera de um

aplauso que ele mesmo se concedeu,

Joel ria com todos os dentes, batendo as

mãos uma contra a outra, o anel de ouro

e rubi faiscando. Só eu mesmo, só eu

para fazer uma comprinha destas! Que

conforto! Que belezinha! E que precinho!

Foram os sapatos, pensou Denise, mais

tarde, refletindo e ainda ouvindo o choc

choc da colher batendo na tigela de

louça, misturando-se com o som das

exclamações no diminutivo. Fantástico é

Page 9: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

9

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 o show da vida, sem explicações. Como

se justificar? Não tentou. Às vezes, ela

mesma, quando pensava achava a

situação ridícula. Um homem, Joel, seu

marido, entra pela porta da cozinha

como faz sempre que chega antes da

noite. Ela, Denise, sua mulher, está ali

também, como sempre, nesses últimos

anos, preparando qualquer coisinha para

o nosso jantarzinho. Ele fala. Ela escuta,

será que escuta? Nem sabe realmente

se foi isso mesmo que foi dito. Agita os

braços. Penteia o cabelo com o pente de

osso, sem se incomodar com onde será

que vão cair os fios de seu cabelo mal

lavado. Coça o ouvido com o mindinho,

unha comprida, será que pra isso?

Limpa, esfregando na lapela do terno

berrante brilhante, o dedo sujo. Funga.

Lambisca. Faz tudo o que sempre fez.

Ele. Ela não. Fica calada. Absorta.

Enquanto bate a omelete, se lembra. Os

sonhos. O chá das cinco em um

aconchegante cottage inglês. O jantar

comemorativo, a luz de velas e regado a

champanhe borbulhante em finas taças

de cristal, em um restaurante francês.

Os fins de tarde no remanso de uma

fazenda quatrocentona. As férias na

R i v i e r a . A s n o i t e s

car ibenhas. . .cha. . .cha. . .cha. . . As

premiéres. Vestidos exclusivos. Jóias

caras. Quadros. Livros. Finesse. As. Os.

A O. Tantos lugares, situações. Se

lembrou dos sonhos, acordando em um

pesadelo. Foram os sapatos, ela não

pára de repetir, enquanto pensa e

lembra, relembra, Joelzinho, a boca

aberta, o som estrangulado na garganta,

olhos esbugalhados, espalhafatoso e

estupefato, ridículo, a massa caindo,

colherada após colherada, da tigela azul

de louça, lambrecando-o todo, da

cabeça aos pés, enquanto ela ria como

uma louca. Foram os sapatos, ela pensa

mais uma vez, enquanto vai para o

trabalho, o seu primeiro emprego,

dirigindo o primeiro carro comprado

com o suor do seu corpo. Do pesadelo

ao recomeço dos sonhos. Foram os

sapatos. Cor de ovo. De omelete.

João e Maria nas aragens de um sonhoPor Maria Mineira

Conheci João ainda menina e nunca mais

parei de viajar ao seu lado pelo interior

mineiro, abraçada nas palavras que eu já

conhecia, mesmo antes de aprender a

ler. Pois elas mostram o jeito do caipira

cangar os bois de carro, tocar o gado

p e l a s e s t r a d a s , r i o s e s e r r a s

encascalhadas. Palavras que descrevem

a incansável lida dos cavaleiros que

atravessavam o sertão, protegidos do

sol por dias nublados ou se molhando

nas chuvas de primavera.

Page 10: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

10

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 A fala de João é calma como o enrolar

de um cigarro de palha, gostosa igual

comer pão de queijo com café ou pescar

no corguinho ao entardecer. Ele sempre

soube do meu amor, não precisei falar

que ao ler seus livros escalei a Lua,

cheguei ao céu para dormir sonhos...

Naquele dia ele voltou a Minas. Estava

vivo, encantado!   Era nosso primeiro

encontro assim de perto. Pedi que me

acompanhasse numa visita à Serra da

Canastra. Assentiu e caminhamos os

dois em silêncio pelo Chapadão afora.

Tudo estava verde e florido; as sempre-

vivas, as canelas-de-ema e até mesmo

os lírios. Na concha das mãos, bebemos

água fria da nascente do Velho Chico.

Margeamos o rio até sua primeira

queda, a Cachoeira Casca D'anta.

Ele quem puxou prosa primeiro,

excelente companhia. Aos poucos se

apresentou pra mim como um matuto

sonhador, me confidenciou que em

Minas sentia-se livre, longe da rotina

dura do mundo urbano e fumacento. Eu

bebia suas palavras, onde descrevia a

vida em retalhos de céu, pedras de

serra, pingos de sereno e frutas do

cerrado amoitadas no capim rasteiro.

Assim, Guimarães Rosa me ensinava que

nem sempre se precisa de presença

física para se amar alguém. A certa

altura do caminho, me olhou e disse:

— Maria... Alguns sentimentos não se

perdem na ausência quando se possui

afinidade de alma. O comum que temos

é o nosso jeito de espiar o mundo aqui

do alto da Serra, sentindo o cheiro, a

cor e o gosto da vida, nas águas, fauna e

flora desse lugar. Daqui do Paredão,

vemos o rio com toda sua simplicidade

na nascente, esse fio d’água correndo

pelo Chapadão, saltando toda manhã em

cachoeiras de águas cristalinas. É esse

rio que se agiganta para aguar e encher

de verde o outro lado do Brasil.

Segurou minha mão e seguimos do jeito

calado que tomava conta da paisagem. O

tamanduá-bandeira balançava o capim,

uma onça pintada espreitava escondida

na capoeira. Íamos para onde o sol

apontava, o mesmo que na aurora tinge

a terra de cores variadas secando o

sereno. Esse sol que toda noite repousa

nos braços da lua terna e apaixonada,

que o protege com um manto escuro

pendurando estrelas reluzentes nos

portais para iluminar o céu.

— João... Esta Serra abriga muitos

sonhos, já alimentou almas de bugres,

jagunços e tropeiros. Com essa beleza

singela, acalenta a vida de almas

simples, criando imagens que os seguem

pela vida afora, despejando gotas de

saudades nos corações que visitam

estas paragens.

As águas cochichavam segredos

guardados no fundo da Canastra quando

chegamos ao topo da última Serra. Era

chegada a hora do adeus... De mãos

dadas, ouvíamos a natureza sussurrando

o som do universo, sentíamos a

Page 11: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

11

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013

Num Certo CarnavalPor Rodrigo Arcadia

Estava de odalisca e eu de pirata,

carnaval de 1976, São José dos Campos,

antigo salão de bailes na Rua Quinze de

Novembro. Todo mundo pulando,

alegria, fantasias, confetes, purpurinas,

animação e lança perfume.

Tinha um jeitinho encantador de dançar,

mexia os braços, pulava, requebrava

como ninguém. Eu era e sou uma

lástima, nem sabia o porquê de estar lá.

Culpa dos amigos, que te convencem

com possibilidades disso ou daquilo,

principalmente se a possibilidade se

refere a mulheres. Tá bom, aceitei. Até

porque tinha levado um fora meses

atrás.

E lá estava eu, ela também, no meio do

salão, aglomerados de gente cantando,

dançando e gritando. Foi ela que me viu

feito peixe fora d’água, perdido na

multidão. Parou na minha frente

começou a brilhar, parecia vaga-lume

piscando sem parar uma luz rosa. Sem

jeito eu sorri, retribuiu. Tomou minha

mão e saiu a me puxar pelo salão. Não

tive como escapar, me encontrava bobo

dançando com a menina.

presença da Imortalidade nas águas

revoltas das cachoeiras, nos campos

arados do céu e no vento cigano de

minha terra.

Desejei segurar o tempo, eternizar

aquele momento. João tinha no olhar

algo que o ligava ao sol e às estrelas,

parecia desacontecido, virou-se pra ir-

s’embora. Estava voltando para casa,

indo para longe de mim, mesmo assim

ainda permaneceria comigo por muito

tempo, mesmo depois que o vento

tivesse apagado nossos rastros, na

poeira do caminho.

Suavemente, me soltou as mãos... Por

um rápido segundo, mirei e vi seu rosto

sereno sendo levado pela aragem... João

ia, como se fosse parte da neblina,

rumando cada vez mais alto, ascendendo

aos céus, seguindo para as estrelas. Era

noite, havia luar. . . Meu coração

amanhecia.

Nota da autora: Esse texto é uma

homenagem ao meu escritor preferido,

João Guimarães Rosa. Ele me ensinou a

valorizar as coisas simples e fazer delas

coisas grandes, através do modo de ver

e enxergar o mundo.

Page 12: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

12

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 Que canseira! Eu bufava mais do que

ela. Convidei pra bebermos alguma

coisa. Concordou. Meus amigos felizes

pulando na fantasia dos irmãos Metralha.

Uma cuba libre? Bom, muito bom, me

respondeu. Única bebida que bebia

quando saia nos fins de semana, hoje em

dia ninguém gosta de cuba libre. Bons

anos setenta.

Emitia o brilho rosa, aos poucos trocou

por violeta mais forte, fraco e médio.

Ficava mudando de cor a cada palavra

que falava.

— Estranho...

— O quê?

— Você, parece um vaga-lume cheio de

luzes.

— Tem medo de mim?

— Eu? Imagina. Nunca encontrei alguém

que emitisse luzes.

— Tudo tem sua primeira vez.

É, tinha razão, eu era tão anormal

quanto ela.

— Vem!

Puxou de volta pra dançar. Dançamos.

Ficamos coladinhos, quando a beijei

brilhou luz amarela e depois verde claro,

esquecemos tudo ao redor, não ouvimos

mais nada, acho que senti meus pés

suspensos no ar, de olhos fechados não

queria abrir pra confirmar.

Chamei pra sair, pra casa. Tinha discos

da Nara Leão, Tom Jobim, Chico

Buarque. Topou. Nem despedi dos

amigos. Saímos correndo.

Nem arrancamos as roupas direito.

Cama, caímos na cama. No começo

estranhei aquele corpinho magro

brilhando em luz rosa. Deitei sobre ela,

beijo e assim começou pra durar

minutos.

Minutos depois estávamos na cama

escutando Nara Leão. Cigarros nas

mãos, olhando para o teto. Cansados?

Sim. Olhava-a, pensativa, o corpo não

exibia luzes. Que coisa, na hora da

transa foi arco-íris, terminado, deixou

de exibir. Até o semblante mudou, o

rosto, o corpo... Não, o corpo era o

mesmo, magrinho, porém não a mesma

menina que conheci no salão.

Era tão sem graça. Preferia de antes,

com luzes. Pois diante de mim, uma

moça normal, de pele branca, cabelo

escuro, estatura alta me encarou.

— Acabou carnaval.

— Sim. Acabou a alegria. — Respondi.

Mas queria dizer que as cores também

se foram, que a menina que conheci não

estava mais do meu lado e que minutos

antes me amou. Tragou o cigarro,

levantou, vestiu-se logo. Não enxergava

mais um corpo bonito, igual às outras,

que se vê por aí andando pra cima e pra

baixo. Cinderela de carnaval?

— Adeus.

Page 13: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

13

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 Disse baixinho, mal deu pra ouvir,

também dei meu adeus sem energia.

Virei-me de lado, triste, sentindo vazio,

arrependimento. No outro dia seria

quarta-feira, quarta-feira de cinzas.

Nara Leão cantava, talvez quisesse me

acompanhar na tristeza. Maneira

estúpida de encerrar o próprio carnaval.

Amanhã, quarta-feira de cinzas, só

haveria o cortejo e nada mais.

TrancasPor Maurem Kayna

Era para ser apenas uma escala em

Lisboa, de onde seguiriam para montar a

exposição no Museu de Arte Moderna.

Adriana e a equipe desembarcaram

muito tarde; e a febre contraída em sua

passagem pela Inglaterra na visita que

fizeram à curadoria do Tate Liverpool

contribuiu para a decisão de acomodar-

se num hotel da cidade, aproveitar o que

fosse possível do dia seguinte e só

então rumar de carro para Sintra.

A moça da agência de viagens oferecia

opções de conforto e modernidade, mas

um calafrio vindo de além da febre ditou

a escolha. Seria o prédio antigo ao lado

do Museu Nacional de Arte Antiga.

Ninguém se opôs.

Rumaram do aeroporto direto para a Rua

das Janelas Verdes. Ao avistar a

fachada, Adriana sentiu-se convidada a

entrar, a ficar, a deixar ali o mal-estar.

Preencheu a ficha, despediu-se do

marchand e da curadora da exposição e

foi para o quarto.

Era uma habitação pequena, mas

agradável. Da sacada poderia apreciar a

vista do Tejo quando amanhecesse. Não

desfez as malas, apenas procurou uma

roupa para dormir e algo para vestir no

dia seguinte. Não gostava de tomar

decisões pela manhã, menos ainda se

fosse sobre a indumentária.

Tomou um banho reconfortante e fechou

a porta do banheiro para que o vapor

não tomasse conta do quarto. Deitou e

cobriu-se rapidamente, como se

pudesse enganar a febre e deixá-la fora

das cobertas, impedindo-a de colar na

pele alvorotada pelo jato quente do

chuveiro. Inútil. Mais sensato seria

tomar um antitérmico No entanto,

pensar em se pôr novamente de pé,

voltar à névoa do banheiro e vasculhar o

nécessaire a desanimava. Relutou um

tempo, oscilando entre o sono e a

hipertermia, mas deixou a razão

determinar o passo. Abriu a porta do

banheiro e estancou, forçou os olhos

para fazer com que a visão do corredor

Page 14: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

14

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 se dissolvesse. Sabia que se chegasse à

frasqueira e tomasse os comprimidos de

que estava precisando seria fácil

regressar ao conforto da cama.

Esfregar a vista não bastou, Adriana

estava mesmo no corredor, e podia

ouvir a movimentação dos outros

hóspedes, o barulho nas acomodações

alheias. Duvidou que fosse tamanha a

febre a ponto de fazê-la confundir as

portas, mas ali estava, e passos

desenhavam sons de sapatos no carpete

um pouco gasto. Farejou o conteúdo da

bandeja carregada pelo moço que

certamente estaria uniformizado. Não

chegou a vê-lo, mas ouvia, sentia cheiro

d e c o n d i m e n t o s ; a d i v i n h o u a

aproximação do empregado do hotel

empurrando o carrinho com pedidos

fumegantes para os interessados em

cear ou aquecer-se com um chá e

desejava esconder-se dos olores e dos

ruídos. Ela também gostaria de um chá

assim que regressasse à proteção dos

aposentos que lhe cabiam.

O moço uniformizado fez as entregas, e

foi engolido pelo elevador. Não a viu

porque o quarto de Adriana ficava junto

da bifurcação do corredor e, como ela

espremeu-se contra a coluna que

escondia a entrada do seu apartamento,

restara apenas o temor de que a porta

tivesse trancado e não pudesse ser

aberta por fora. Forçou a maçaneta e

escutou o som da dobradiça. Respirando

aliviada, esgueirou-se para o outro lado,

ainda pensando em algum remédio que

aliviasse a febre.

Vestia meias grossas e uma dessas

camisetas bem surradas, próprias para

dormir ou passar o sábado atirada no

sofá sob o cobertor e farelos de pipoca.

Os trajes já seriam motivo bastante para

não querer ser encontrada no espaço

público do hotel, mas o mais grave para

Adriana seria explicar o engano. Não

gostava da associação comum que

muitos dos seus conhecidos faziam

entre ser artista e ser excêntrica.

Preferia apresentar-se como uma

representante do comum, que o

inusitado visitasse apenas suas tintas.

Depois do curto alívio de constatar que

as maçanetas funcionavam do lado de

fora, apoiada na madeira sólida da

abertura, deparou-se com a mesma luz

amarelada de antes, uma claridade

indecisa que tinha gosto de madrugada

vazia. Aos poucos deixava o olhar ser

invadido pelo discernimento de que à

sua direita não estava a esperada

penumbra da alcova com a cama ao

f u n d o . N o v a m e n t e e s c u t a v a a

privacidade escapando dos outros

cômodos — enquanto uns manejavam

talheres, outros tinham a televisão

ligada, talvez outros já dormissem, ou

então o quarto estaria vago.

Com a respiração curta e receosa,

desconfiava da própria lucidez, e decidiu

experimentar a maciez do pavimento.

Espreitou o silêncio que vinha do

elevador, fazendo grande esforço para

conter o impulso de bater em cada

porta. Mas que espécie de ajuda poderia

obter? Girou sobre as próprias dúvidas e

Page 15: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

15

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 t en tou uma vez ma i s . I n sp i rou

ruidosamente, deixando os pulmões

lotados de ar. Com toda a tensão do

corpo que isso provocava, agarrou-se à

m a ç a n e t a c o m a s d u a s m ã o s ,

suspendendo o momento de forçá-la

pelo tempo em que resistiu o adiamento

da expiração.

Queria ao menos fingir decisão, mas não

pôde nada além de manter a porta

en t reabe r t a . O reco r t e que se

apresentou a ela reconfortava a ponto

de fazê-la rir, pensando em como

temera não encontrar os móveis quietos

e a janela aberta ao Tejo. Agora

confiante, atravessou o umbral e já

esquecia a vontade de curar a febre

para ir acalmar-se com a vista do rio. 

Depois haveria as horas de sono que

merecia.

Tomou o cuidado de virar a chave e

iniciou o percurso vagaroso até seu

alvo. Mas cada passada era como um

pingo de solvente sobre o óleo já

definido de uma cena. Os móveis

pareciam se desmanchar, cedendo sua

forma original a outras. Derretiam-se os

contornos, a cadeira era agora o

extintor de incêndio, a cama subia

molemente pela parede até assumir a

rigidez metálica da moldura do elevador,

e a porta da sacada fechara-se em uma

seqüência de alvenaria intercalada por

portas idênticas. Recuou para observá-

las em detalhe. O entalhe na madeira do

marco, o metal da fechadura, a luz débil

escapando por baixo de algumas.

Nenhum signo do incomum, apenas o

frio querendo apresentar-se.

Pensou em descer à recepção, mesmo

com a vestimenta inadequada, e pedir

ajuda. Poderia contar que havia saído

para o corredor por conta de um barulho

qualquer, e que a porta se fechara.

Acreditava que se houvesse alguém

consigo a mobília e a privacidade não se

atreveriam a desaparecer do seu

caminho para confiná-la novamente na

passagem estreita onde desembocavam

os outros quartos.

O suor na palma da mão era a sensação

mais acentuada imediatamente antes do

movimento, arriscava-se, mas já não

haveria sobressalto. Não conseguira

regressar para sua lucidez exausta, tudo

se repetiu com a precisão das vezes

anteriores.  Ainda poderia resignar-se e

aguardar a alvorada. Durante o dia toda

obviedade se restabeleceria, e, no café

da manhã, ela desabafaria com os

companheiros de viagem, contando-lhes

o pesadelo insólito.

Enquanto resolvia sobre aventurar-se

ou não pelas escadas, Adriana imaginou

como seria a conversa com a curadora.

Será que ela lembrava ainda daquele

quadro? Insistiria. Era uma sucessão

infinita de portas conduzindo sempre ao

mesmo cômodo, com a mesma e

incansável porta ao fundo, lembra-se,

Amanda?

Adriana não atribuía grande valor àquela

pintura, e ela não foi o destaque da

Page 16: SEM VERGONHA DE CONTAR - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4168818.pdfdistribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não

16

Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no

todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].

SEM

VER

GONH

A DE

CON

TAR

- NR

4 M

AR 2

013 exposição que acabou acontecendo

mesmo sem a participação da artista.

Talvez se houvesse um ou outro olhar

mais atento à obra fosse possível

perceber uma sombra que mudava de

lugar , ou de porta , conforme a

incidência da luz.  Se um dia houvesse

um estudo acurado do fenômeno,

surgiriam discussões quanto à natureza

dessa sombra. O crítico apaixonado pelo

estilo da jovem defenderia tratar-se do

vulto de uma mulher amedrontada,

certos alunos distraídos não veriam

nada além de sutis variações da textura.

Adriana, já acostumada com o vagar

entre batentes e corredores infindáveis,

não faria qualquer argumentação.

http://www.mauremkayna.com

http://twitter.com/mauremk

E s t e c o n t o f a z p a r t e d a

Coletânea  Pedaços de Possibilidades.

Uma resenha para esta coletânea pode

ser lida em bluemaedel.blogspot.com.

Quem somos

HELENA FRENZEL é maranhense, autora e editora

de vários Ebooks, entre eles, as coletâneas de

contos Perfis Interessantes, Trinta Contos de Euros

e Três de Natal e Outros Quinze Contos. Mantém o

blog Bluemaedel onde concentra suas letripulias e o

projeto 15 Contos+, onde pretende reunir

anualmente contos de diversos novos autores

brasileiros.

MICHELE CALLIARI MARCHESE  é catarinense e

contista. Participou em coletâneas publicadas pela

Editora Literata de São Paulo nos Livros UFO-

Contos não Identificados (2009) e Espectra (2010) e

no Livro dos Prazeres publicado pelo SESC de Santa

Catarina em 2008. Mantém uma escrivaninha no site

Recanto das Letras onde publica contos e outros

gêneros.