sem vergonha de contar -...
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EditorialPor Helena Frenzel
Neste número textos de:
Michele Calliari Marchese
Helena Frenzel
Maria Olímpia Alves de Melo
Maria Mineira
Rodrigo Arcadia
Maurem Kayna
Edição: Helena Frenzel
Versão Impressa de textos selecionados do Blog Sem Vergonha de Contar - IBSN 2- 505-203-000 - Nr 4 - Mar 2013
Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no
todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].
Neste mês fizemos uma seleção que é uma pena você não ler. Abrimos
com um bem fadado Dilúvio na Campina e um Encontro desses
marcados em quartos de anos de relacionamento que bem poucos não
sentem passar, e só mesmo Michele para descrever. Na seção de
Vigaristas, dramas pessoais que podem se revelar nas unhas, mas
também num ascensor. Nossos convidados de fevereiro não vieram de
mãos vazias, trouxeram valiosas contribuições. Maria Olímpia nos trouxe
Sapatos bem costurados e Maria Mineira, uma homenagem a um grande
João. Rodrigo Arcadia veio com carnavalescas lembranças de um
narrador personagem e, encerrando a rodada, Maurem Kayna nos trouxe
bem trabalhadas Trancas para fecharmos com chave literária esta
edição. Em março não teremos postagens, voltaremos em abril com
convidados e histórias mais. Que tal, nessa pausa, preparar um texto
seu para nos enviar? Boa pedida! Alegramo-nos com a sua participação.
Abraços letripulistas, até lá!
SEM VERGONHA DE CONTAR
Contos, Causos e Coisas do GêneroCanto das escritoras Helena Frenzel e Michele Calliari Marchese
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Textos reproduzidos com permissão dos autores. Esta publicação é parte do site semvergonhadecontar.blogspot.com e pode ser livremente distribuída, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no
todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].
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013 Causos da Campina
Ultimate Diluvium* ou O Bígamo NaufragadoPor Michele Calliari Marchese
Oras, todo mundo sabe da catastrófica
localização geográfica da Campina da
Cascavel de modo que não seria
novidade alguma o grande aguaceiro
acontecido no início do século passado.
Começou quando a Dona Silvia estendia
as roupas brancas do marido no varal de
bambu. Fazia um calor dos diabos e não
tinha vento.
Era um mormaço que vinha de baixo, da
terra, e que não dava tréguas ao suor
que escorria pelas pernas, cuja saia
estava feita em um nó próximo aos
joelhos para suportar o calor da lavação.
Estava tão cansada e traída que acabou
tendo uma vertigem e caiu de costas no
chão quente. A luminosidade não
permitia que abrisse os olhos, mas com
as mãos pos t as no ros to pôde
vislumbrar as nuvens escuras e grossas
que avizinhavam.
Levantou num ímpeto, desamarrou a
saia e saiu correndo pegar a ramagem
benta pelo padre e queimá-la na frente
da futura tormenta.
Toda vez que saía da casa tinha que
acender a chama na ramagem no fogão a
lenha — um vento tépido lhe soprava e
apagava o fogo. Assim foram repetidas
vezes, tantas que não percebeu que os
ramos bentos já se tinham extinguido
durante o entra e sai. Bufou e foi
recolher a roupa do marido que estava
seca.
As nuvens carregadas e ameaçadoras
estavam cada vez mais perto e ela não
tinha mais com o que benzer, mas
decerto que alguma vizinha já estava
fazendo o que ela não conseguira fazer.
Tranquilizou-se e notou a falta de um
dos tamancos do marido. Onde estaria?
E começou um vento que ventava
metade para baixo quente e metade para
cima, frio. Não sabia que sensação
agradável — porém doída nas orelhas —
era aquela que experimentava naquele
momento. Sentiu uma precipitação
dentro de si, uma vontade de largar tudo
e ir com o vento, mas lembrou-se do
tamanco desaparecido e voltou a si. O
marido precisaria do sapato, pois só
tinha aquele.
Agachou-se para procurar, em vão.
Além das saias que levantavam com o
vento, as roupas secas insistiam em sair
dos braços e seus cabelos já estavam
desgrenhados a ponto de Dona Silvia
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013 não saber mais em que pensar: se na
traição, se no sumiço do tamanco, se no
desembaraçar dos cabelos ou na
tormenta que estava prestes a cair.
Pior mesmo era a desaparição do
tamanco do marido.
O homem era um atormentado. Era
exigente demais, chato demais, e ainda
por cima o dito era bígamo. Bígamo. Foi
a comadre que contou num sussurro e
Dona Silvia levou quase um mês para
saber o que “bígamo” significava, e
quando soube levou um susto tão grande
que não quis nem saber quem era a
outra. Ficou pensando e pensando e
pensando e agora com o tamanco
sumido, poderia lhe atirar na cara a
bigamia. Que tivesse perdido o tamanco
na casa da outra e voltara com um pé no
limpo. Que fosse lá e que ficasse em
definitivo.
Mas não. Voltou com os dois pés, sujos,
dentro dos dois tamancos, também
sujos, para que ela e não a outra lavasse
os bandidos. Resolveu jogar o par limpo
fora, no rio, naquela parte bem funda.
Mas o maldito boiou e veio tal qual
terneiro a mamar na teta, devagarzinho
que dava ódio.
Resolveu cavar um buraco e enterrar o
calçado. Largou as roupas que saíram
voando em redemoinho. Tentou agarrá-
las, mas o buraco era mais importante.
Enterrou o tamanco do bígamo o mais
fundo que pôde e foi para casa suja, com
poeira a lhe arder os olhos e com a alma
lavada. Sentia que podia tudo, até com a
borrasca que desabaria em seguida. As
nuvens estavam bem acima de sua
cabeça e havia anoitecido sem ela
perceber. Só notou que os cabelos
caíram em seus ombros como uma
assombração; o vento tinha parado.
Justamente nessa hora o marido chegou
a reclamar dos tamancos. Ela deu uma
última espiada para o tempo e disse ao
marido que os sapatos estavam secando
em cima das pedras do rio e que ele
podia pegá-los se quisesse, pois que ela
estava atrapalhada com as roupas.
No mesmo instante que os dois
cruzaram a porta, ela quando entrou e
ele quando saiu, ele percebeu que não
havia roupa alguma nos braços da
mulher, mas duvidou, porque naquele
exato momento a porta se fechou a
tranco e a tempestade desabou. Não via
nada nem a um palmo do nariz. Era
desesperador.
Dona Sílvia exclamava prazerosamente
em cada janela que fechava: “Enfim, o
dilúvio”. E o bígamo que corria
naufragando e cego pela chuva sempre
atrasado a chegar às janelas, sufocava
com a água que caía ininterruptamente
tentando dizer “me deixe entrar”.
*Do latim: “finalmente, o dilúvio”
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013
Esse causo aconteceu quando a Dona
Maria reencontrou uma pessoa há muito
tempo esquecida. No início ficou
contente que essa pessoa a reconheceu
depois de quase quarenta anos, mas
depois foi entristecendo de tal forma
que a despedida foi um alívio.
A Dona Maria era uma mulher muito
feliz e extrovertida, e quando retornou
para casa, depois daquele fatídico
encontro improvável, tudo mudou;
inclusive a forma leve que ela via e
vivia a vida transformou-se de tal forma
que seu sorriso raramente era visto.
Não podia simplesmente culpar o
ocorrido pelo que sentia dentro de sua
alma, lá no fundo do peito ela achava
que era uma confusão passageira e que
essa tristeza era a soma de todos os
dias de sua vida. Passaria, decerto.
Porém, não passou.
Daquela infelicidade que brotou durante
os cinco minutos de conversa — o que
pareceu uma eternidade — veio a
incapacidade de levar a vida adiante.
Nem o marido que tanto amava e os
filhos queridos conseguiam transpor a
tristeza com a vivacidade familiar.
Dona Maria, taciturna e paradoxalmente
leve, pediu ao Padre Dimas que a
ouvisse em confissão, para ver se
alentava o coração e voltava a ser como
era antes, mas o Padre Dimas nada
podia fazer diante do desabafo e sugeriu
que esquecesse de uma vez por todas
do encontro e daquela pessoa. E isso só
poderia acontecer por vontade própria,
por luta interior.
Aconteceu que a Dona Maria acabou
gostando de não ter que lutar contra
nada e decidiu deixar que as águas
rolassem, assim como suas lágrimas,
calmamente e sem desejos. Engolia com
sofreguidão cada uma que escorria pela
face indo cair nos cantos de sua boca.
Pensava nesses momentos que aqueles
cinco minutos poderiam ter sido de
beijos, aqueles beijos roubados e
escondidos que tinham o sabor da
juventude e da maciez carnuda,
deixados para trás sem eira nem beira.
Passava em seguida a mão pela boca,
para afugentar tais pensamentos e
limpar possíveis resquícios do que
sobrou daqueles beijos. Sentia ainda a
urgência dos cinco minutos. Foram
mesmo cinco minutos?
Deitou em sua cama com o sol a pino,
sob os olhares atentos da família.
Trancou a porta. Passou a mão direita
pelo pescoço e tirou uma corrente de
ouro, colocando sobre a mesinha. Refez
O EncontroPor Michele Calliari Marchese
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013
Contos Vigaristas
Pintou as unhas de vermelho e foi para a horta
Por Michele Calliari Marchese
Joana era uma daquelas mulheres
extremamente apaixonadas pelos
p raze res que a ca rne o fe rece .
Namoradeira que só ela, dizia que o
meretr íc io era para as putas e
condenava a cobrança de tão caro
prazer. Não se apaixonava nunca pelo
homem que aparecia, mas pela carne
que se apresentava, viril, quente. A cada
um recebia de uma forma diferente,
conforme ela via a personalidade do
homem que se apresentava, ela se
vestia ora de modo jovial, ora clássico,
ora arrebatador. Cuidava da aparência
com desvelo e suas mãos eram as que
recebiam cuidados redobrados, suas
unhas eram pintadas de rosa — uma
discrição que se concedia — para
acariciar seus homens prazerosamente.
Recebia-os em sua casa, cujo endereço
ela distribuía aos quatro ventos, e até
mesmo muitos homens que ela nem
conhecia e tampouco havia encontrado
em algum momento já sabiam onde ela
o ritual e tirou os brincos, colocando-os
ao lado do colar. Fechou os olhos.
O sutiã apertava e o ar estava lhe
faltando. Resolveu ficar nua.
Tirou o esmalte vermelho das unhas,
tomou um banho e tornou a deitar.
Agora sim. Estava nua de fato, nua na
carne e nua na alma.
No quarto de um casamento de quase 45
anos, Dona Maria dormiu.
Sonhou com o encontro que nunca
deveria ter acontecido, sonhou com as
roupas espalhadas no chão, suas e dele.
Olhou atentamente e não reconheceu as
vestes do marido. Eram do outro. Aquele
do encontro, aquele dos beijos. Aquele
que veio com o verão e se foi como o
outono. Aquele que impossivelmente
seria o pai do seu primeiro filho. E
sonhou também com um rompimento que
fazia doer-lhe o coração. Rompeu com a
vida.
Acordou com as batidas insistentes na
por ta e o mar ido , v is ive lmente
preocupado, estava chorando. Vestiu-se
sem pressa, destrancou a porta e deixou
o amor entrar.
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morava. Mesmo sendo uma casa
pequena, a decoração era de todos os
gostos, todos se sentiam bem por lá.
Mas acontece que chegou um daqueles
dias que ninguém espera e que
estarrece com o hálito quente e doce as
diabruras do amor.
Djalma chegou com o mormaço do
verão, numa tarde de suor, tocou a
campainha da casa errada — a dela —
para procurar um cliente de sua
empresa. Não escondeu a admiração por
curvas tão voluptuosas, e aceitou de
pronto aquele convite insano para
entrar. Djalma tornou-se frequentador
assíduo da casa. Joana tornou-se
escrava daqueles momentos e não
aceitou mais nenhum encontro.
Mas acontece que chegou um daqueles
dias que ninguém espera e aquele
grande amor, que afoga a garganta de
tão louco e intenso, abandona os
abraços nus, deixa de lado os quadris e
mata o sentimento de posse. Djalma se
foi.
J o a n a n ã o p o d i a c o n c e b e r a
possibilidade de que as tardes quentes
de mormaço mole estariam vazias, assim
como suas carnes que não teriam o
gosto do sal do amor urgente com
D j a lma . F i c ou doen t e do amo r
abandonado e escorraçado, ligou, ligou e
exigiu a presença do amante com
pressa, com a urgência para um último
adeus, o adeus da cama, dos beijos, do
orgasmo e da calma do depois.
Djalma foi com a canalhice dos amantes
que cansam de suas presas e entediado
esperando os soluços chorosos da
mulher descartada.
* * *
Quem ligou para a polícia foi uma vizinha
— a manicure — que estranhou o
silêncio de Joana e as faltas masculinas
da casa. Estranhou o fato de que Joana
pediu para que ela pintasse suas unhas
de vermelho porque o homem de sua
vida viria para ficar. Depois aquele
cheiro putrefato que exalava do terreno
vizinho.
Num sábado chuvoso de muito frio, a
polícia e os bombeiros encontraram o
co rpo de um homem en te r rado
superficialmente no terreno. Estava
irreconhecível. Na casa, Joana jazia nua
em sua cama, as mãos cruzadas
escondendo os seios e mostrando o
vermelho vivo de suas unhas na carne
branca e pálida da morte.
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013
Chamou o elevador. Era só cansaço e o
final daquele turno prometia-lhe o
melhor: a cama enorme, macia. Sonhava
com o prêmio dos lençóis cheirando a
limpo e ansiava por um sono bom;
também pelo bolo que a faxineira
deveria ter batido, pois a mais, para
esse e outros mimos, concordara ele em
pagar. Tinha direito!
Era de manhã. Seu turno encerrava-se
às oito e ele ficava sempre mais um
pouco, cerca de uma hora, arquitetando
o futuro e medindo os pulsos do coração
do capital. Com muito esforço e exatos
contatos havia chegado lá. E dera muito
trabalho armar o circo: o colega desistiu
não só do cargo, também do emprego, e
mudou-se para outra cidade, pequena,
no interior. Sem ele no páreo e ninguém
mais preparado para assumir: bingo! as
portas do futuro se abriam no compasso
das do elevador.
Na vida, pra subir, a gente desce, com
elevadores nem sempre isso se dá.
Queria o subsolo, mas alguém que viera
de baixo e ali já não estava, apertara o
botão de um andar mais alto que o seu.
Cento e dez andares, ao todo, e ele
estava quase a meio caminho do topo,
no andar da firma. Elevador pequeno,
andar fantasma, não havia viv’alma
quando ele o tomou.
No circuito interno, versos de What a
Wonderful World fizeram-no lembrar de
1968 quando, aos sete anos, ouviu-a
pela primeira vez. De repente, a
impressão de que o prédio balançara fê-
lo voltar ao presente e esquecer de
Armstrong. Devia ser o cansaço, pensou.
Um relógio mostrava 09:03 e ele,
atraído pela força dos dígitos, balançou
a cabeça especulando a boa fração de
vida a gastar ainda na Itália, às custas de
duras escaladas em mais de vinte anos
de corporação.
A promoção era merecida, estava certo,
em seu dia-a-dia só havia trabalho,
planos, cálculos, transações e Elisa, de
quando em vez. “Ai, Elisa, tivesse você
mais ambição ou fosse você mais
sórdida...”
Perdido em pensamentos, esquecera-se
das luzes que iam mostrando os
progressos do ascensor, estava a um
passo do destino desejado quando sentiu
um solavanco, ouviu um estrondo e tudo
parou de funcionar. Sem energia e
comunicação, sem rede, sem nada. Tudo
tentara para escapar daquela caixa mas
certas coisas só dão certo em filmes de
ação. E como contava carneiros em
criança, quando não conseguia dormir,
50 minutos mais ou menos contou do
tempo para fugir de estar no escuro e no
Ascendendo
Por Helena Frenzel
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013 silêncio, do pânico de estar consigo
mesmo, tortura sem igual.
Tudo o que sobe, desce, e em poucos
segundos a vida se esvai: “Elisa,
querida, tenho tudo, tenho o mundo para
dar, tudo pago, sou rico e pobre de
amor; paraíso e putas, não tive, saudade,
só de mãe, deixada, deixou-me o pai, e
dói. Ai, Elisa que sonha com Lorca,
tivesse eu você agora aqui... Compro,
vendo, não dou nem troco, compro-
compro, vendi-vendi, vi vendi e vendo:
mais vale aquele que não se vende do
que aquele que se dá. “La Aurora” e
“las aguas podridas”, Elisa, ai, Elisa,
jamais saberei, dinheiro, só dinheiro,
trabalho, dinheiro, din-din, capital
ganhei, dinheiro, na torre do mundo,
d inhe i ro , nada herde i , d i nhe i- ,
capitalismo e moral, dinhei- calculo se
Deus din-din... e perco! Hoje faço
quarenta anos, setembro, quarenta anos
de solidão. Estou cansado, estamos
todos perdidos. Não fui imoral.”
“What a wonderful world!” foi seu último
suspiro, a canção de Elisa, a que ela
gostava mais.
Tivesse ele já não perdido os sentidos
lembraria também da queda, do ferro, do
pó e dos detritos, da torre e dos sonhos
cobrindo-o, desabando, da tão desejada
cama e dos limpos lençóis. Desejos de
aniversário se realizam. Ele queria o
subsolo e ansiava por um sono bom.
Convidados
Os SapatosPor Maria Olímpia Alves de Melo
Foram os sapatos. Foi a primeira coisa
que Denise viu, quando ele entrou. Uma
cor indefinida. Bege? Café com leite?
Leite queimado? Doce de leite, tal qual
sua mãe fazia, no tacho de cobre
comprado dos ciganos? Viu mesmo
antes que ele dissesse: Olha que
belezinha? Que conforto? Parado ali, na
porta da cozinha, a espera de um
aplauso que ele mesmo se concedeu,
Joel ria com todos os dentes, batendo as
mãos uma contra a outra, o anel de ouro
e rubi faiscando. Só eu mesmo, só eu
para fazer uma comprinha destas! Que
conforto! Que belezinha! E que precinho!
Foram os sapatos, pensou Denise, mais
tarde, refletindo e ainda ouvindo o choc
choc da colher batendo na tigela de
louça, misturando-se com o som das
exclamações no diminutivo. Fantástico é
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013 o show da vida, sem explicações. Como
se justificar? Não tentou. Às vezes, ela
mesma, quando pensava achava a
situação ridícula. Um homem, Joel, seu
marido, entra pela porta da cozinha
como faz sempre que chega antes da
noite. Ela, Denise, sua mulher, está ali
também, como sempre, nesses últimos
anos, preparando qualquer coisinha para
o nosso jantarzinho. Ele fala. Ela escuta,
será que escuta? Nem sabe realmente
se foi isso mesmo que foi dito. Agita os
braços. Penteia o cabelo com o pente de
osso, sem se incomodar com onde será
que vão cair os fios de seu cabelo mal
lavado. Coça o ouvido com o mindinho,
unha comprida, será que pra isso?
Limpa, esfregando na lapela do terno
berrante brilhante, o dedo sujo. Funga.
Lambisca. Faz tudo o que sempre fez.
Ele. Ela não. Fica calada. Absorta.
Enquanto bate a omelete, se lembra. Os
sonhos. O chá das cinco em um
aconchegante cottage inglês. O jantar
comemorativo, a luz de velas e regado a
champanhe borbulhante em finas taças
de cristal, em um restaurante francês.
Os fins de tarde no remanso de uma
fazenda quatrocentona. As férias na
R i v i e r a . A s n o i t e s
car ibenhas. . .cha. . .cha. . .cha. . . As
premiéres. Vestidos exclusivos. Jóias
caras. Quadros. Livros. Finesse. As. Os.
A O. Tantos lugares, situações. Se
lembrou dos sonhos, acordando em um
pesadelo. Foram os sapatos, ela não
pára de repetir, enquanto pensa e
lembra, relembra, Joelzinho, a boca
aberta, o som estrangulado na garganta,
olhos esbugalhados, espalhafatoso e
estupefato, ridículo, a massa caindo,
colherada após colherada, da tigela azul
de louça, lambrecando-o todo, da
cabeça aos pés, enquanto ela ria como
uma louca. Foram os sapatos, ela pensa
mais uma vez, enquanto vai para o
trabalho, o seu primeiro emprego,
dirigindo o primeiro carro comprado
com o suor do seu corpo. Do pesadelo
ao recomeço dos sonhos. Foram os
sapatos. Cor de ovo. De omelete.
João e Maria nas aragens de um sonhoPor Maria Mineira
Conheci João ainda menina e nunca mais
parei de viajar ao seu lado pelo interior
mineiro, abraçada nas palavras que eu já
conhecia, mesmo antes de aprender a
ler. Pois elas mostram o jeito do caipira
cangar os bois de carro, tocar o gado
p e l a s e s t r a d a s , r i o s e s e r r a s
encascalhadas. Palavras que descrevem
a incansável lida dos cavaleiros que
atravessavam o sertão, protegidos do
sol por dias nublados ou se molhando
nas chuvas de primavera.
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013 A fala de João é calma como o enrolar
de um cigarro de palha, gostosa igual
comer pão de queijo com café ou pescar
no corguinho ao entardecer. Ele sempre
soube do meu amor, não precisei falar
que ao ler seus livros escalei a Lua,
cheguei ao céu para dormir sonhos...
Naquele dia ele voltou a Minas. Estava
vivo, encantado! Era nosso primeiro
encontro assim de perto. Pedi que me
acompanhasse numa visita à Serra da
Canastra. Assentiu e caminhamos os
dois em silêncio pelo Chapadão afora.
Tudo estava verde e florido; as sempre-
vivas, as canelas-de-ema e até mesmo
os lírios. Na concha das mãos, bebemos
água fria da nascente do Velho Chico.
Margeamos o rio até sua primeira
queda, a Cachoeira Casca D'anta.
Ele quem puxou prosa primeiro,
excelente companhia. Aos poucos se
apresentou pra mim como um matuto
sonhador, me confidenciou que em
Minas sentia-se livre, longe da rotina
dura do mundo urbano e fumacento. Eu
bebia suas palavras, onde descrevia a
vida em retalhos de céu, pedras de
serra, pingos de sereno e frutas do
cerrado amoitadas no capim rasteiro.
Assim, Guimarães Rosa me ensinava que
nem sempre se precisa de presença
física para se amar alguém. A certa
altura do caminho, me olhou e disse:
— Maria... Alguns sentimentos não se
perdem na ausência quando se possui
afinidade de alma. O comum que temos
é o nosso jeito de espiar o mundo aqui
do alto da Serra, sentindo o cheiro, a
cor e o gosto da vida, nas águas, fauna e
flora desse lugar. Daqui do Paredão,
vemos o rio com toda sua simplicidade
na nascente, esse fio d’água correndo
pelo Chapadão, saltando toda manhã em
cachoeiras de águas cristalinas. É esse
rio que se agiganta para aguar e encher
de verde o outro lado do Brasil.
Segurou minha mão e seguimos do jeito
calado que tomava conta da paisagem. O
tamanduá-bandeira balançava o capim,
uma onça pintada espreitava escondida
na capoeira. Íamos para onde o sol
apontava, o mesmo que na aurora tinge
a terra de cores variadas secando o
sereno. Esse sol que toda noite repousa
nos braços da lua terna e apaixonada,
que o protege com um manto escuro
pendurando estrelas reluzentes nos
portais para iluminar o céu.
— João... Esta Serra abriga muitos
sonhos, já alimentou almas de bugres,
jagunços e tropeiros. Com essa beleza
singela, acalenta a vida de almas
simples, criando imagens que os seguem
pela vida afora, despejando gotas de
saudades nos corações que visitam
estas paragens.
As águas cochichavam segredos
guardados no fundo da Canastra quando
chegamos ao topo da última Serra. Era
chegada a hora do adeus... De mãos
dadas, ouvíamos a natureza sussurrando
o som do universo, sentíamos a
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013
Num Certo CarnavalPor Rodrigo Arcadia
Estava de odalisca e eu de pirata,
carnaval de 1976, São José dos Campos,
antigo salão de bailes na Rua Quinze de
Novembro. Todo mundo pulando,
alegria, fantasias, confetes, purpurinas,
animação e lança perfume.
Tinha um jeitinho encantador de dançar,
mexia os braços, pulava, requebrava
como ninguém. Eu era e sou uma
lástima, nem sabia o porquê de estar lá.
Culpa dos amigos, que te convencem
com possibilidades disso ou daquilo,
principalmente se a possibilidade se
refere a mulheres. Tá bom, aceitei. Até
porque tinha levado um fora meses
atrás.
E lá estava eu, ela também, no meio do
salão, aglomerados de gente cantando,
dançando e gritando. Foi ela que me viu
feito peixe fora d’água, perdido na
multidão. Parou na minha frente
começou a brilhar, parecia vaga-lume
piscando sem parar uma luz rosa. Sem
jeito eu sorri, retribuiu. Tomou minha
mão e saiu a me puxar pelo salão. Não
tive como escapar, me encontrava bobo
dançando com a menina.
presença da Imortalidade nas águas
revoltas das cachoeiras, nos campos
arados do céu e no vento cigano de
minha terra.
Desejei segurar o tempo, eternizar
aquele momento. João tinha no olhar
algo que o ligava ao sol e às estrelas,
parecia desacontecido, virou-se pra ir-
s’embora. Estava voltando para casa,
indo para longe de mim, mesmo assim
ainda permaneceria comigo por muito
tempo, mesmo depois que o vento
tivesse apagado nossos rastros, na
poeira do caminho.
Suavemente, me soltou as mãos... Por
um rápido segundo, mirei e vi seu rosto
sereno sendo levado pela aragem... João
ia, como se fosse parte da neblina,
rumando cada vez mais alto, ascendendo
aos céus, seguindo para as estrelas. Era
noite, havia luar. . . Meu coração
amanhecia.
Nota da autora: Esse texto é uma
homenagem ao meu escritor preferido,
João Guimarães Rosa. Ele me ensinou a
valorizar as coisas simples e fazer delas
coisas grandes, através do modo de ver
e enxergar o mundo.
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todo ou em parte para gerar obras derivadas. Para mais informações utilize o e-mail: [email protected].
SEM
VER
GONH
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013 Que canseira! Eu bufava mais do que
ela. Convidei pra bebermos alguma
coisa. Concordou. Meus amigos felizes
pulando na fantasia dos irmãos Metralha.
Uma cuba libre? Bom, muito bom, me
respondeu. Única bebida que bebia
quando saia nos fins de semana, hoje em
dia ninguém gosta de cuba libre. Bons
anos setenta.
Emitia o brilho rosa, aos poucos trocou
por violeta mais forte, fraco e médio.
Ficava mudando de cor a cada palavra
que falava.
— Estranho...
— O quê?
— Você, parece um vaga-lume cheio de
luzes.
— Tem medo de mim?
— Eu? Imagina. Nunca encontrei alguém
que emitisse luzes.
— Tudo tem sua primeira vez.
É, tinha razão, eu era tão anormal
quanto ela.
— Vem!
Puxou de volta pra dançar. Dançamos.
Ficamos coladinhos, quando a beijei
brilhou luz amarela e depois verde claro,
esquecemos tudo ao redor, não ouvimos
mais nada, acho que senti meus pés
suspensos no ar, de olhos fechados não
queria abrir pra confirmar.
Chamei pra sair, pra casa. Tinha discos
da Nara Leão, Tom Jobim, Chico
Buarque. Topou. Nem despedi dos
amigos. Saímos correndo.
Nem arrancamos as roupas direito.
Cama, caímos na cama. No começo
estranhei aquele corpinho magro
brilhando em luz rosa. Deitei sobre ela,
beijo e assim começou pra durar
minutos.
Minutos depois estávamos na cama
escutando Nara Leão. Cigarros nas
mãos, olhando para o teto. Cansados?
Sim. Olhava-a, pensativa, o corpo não
exibia luzes. Que coisa, na hora da
transa foi arco-íris, terminado, deixou
de exibir. Até o semblante mudou, o
rosto, o corpo... Não, o corpo era o
mesmo, magrinho, porém não a mesma
menina que conheci no salão.
Era tão sem graça. Preferia de antes,
com luzes. Pois diante de mim, uma
moça normal, de pele branca, cabelo
escuro, estatura alta me encarou.
— Acabou carnaval.
— Sim. Acabou a alegria. — Respondi.
Mas queria dizer que as cores também
se foram, que a menina que conheci não
estava mais do meu lado e que minutos
antes me amou. Tragou o cigarro,
levantou, vestiu-se logo. Não enxergava
mais um corpo bonito, igual às outras,
que se vê por aí andando pra cima e pra
baixo. Cinderela de carnaval?
— Adeus.
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013 Disse baixinho, mal deu pra ouvir,
também dei meu adeus sem energia.
Virei-me de lado, triste, sentindo vazio,
arrependimento. No outro dia seria
quarta-feira, quarta-feira de cinzas.
Nara Leão cantava, talvez quisesse me
acompanhar na tristeza. Maneira
estúpida de encerrar o próprio carnaval.
Amanhã, quarta-feira de cinzas, só
haveria o cortejo e nada mais.
TrancasPor Maurem Kayna
Era para ser apenas uma escala em
Lisboa, de onde seguiriam para montar a
exposição no Museu de Arte Moderna.
Adriana e a equipe desembarcaram
muito tarde; e a febre contraída em sua
passagem pela Inglaterra na visita que
fizeram à curadoria do Tate Liverpool
contribuiu para a decisão de acomodar-
se num hotel da cidade, aproveitar o que
fosse possível do dia seguinte e só
então rumar de carro para Sintra.
A moça da agência de viagens oferecia
opções de conforto e modernidade, mas
um calafrio vindo de além da febre ditou
a escolha. Seria o prédio antigo ao lado
do Museu Nacional de Arte Antiga.
Ninguém se opôs.
Rumaram do aeroporto direto para a Rua
das Janelas Verdes. Ao avistar a
fachada, Adriana sentiu-se convidada a
entrar, a ficar, a deixar ali o mal-estar.
Preencheu a ficha, despediu-se do
marchand e da curadora da exposição e
foi para o quarto.
Era uma habitação pequena, mas
agradável. Da sacada poderia apreciar a
vista do Tejo quando amanhecesse. Não
desfez as malas, apenas procurou uma
roupa para dormir e algo para vestir no
dia seguinte. Não gostava de tomar
decisões pela manhã, menos ainda se
fosse sobre a indumentária.
Tomou um banho reconfortante e fechou
a porta do banheiro para que o vapor
não tomasse conta do quarto. Deitou e
cobriu-se rapidamente, como se
pudesse enganar a febre e deixá-la fora
das cobertas, impedindo-a de colar na
pele alvorotada pelo jato quente do
chuveiro. Inútil. Mais sensato seria
tomar um antitérmico No entanto,
pensar em se pôr novamente de pé,
voltar à névoa do banheiro e vasculhar o
nécessaire a desanimava. Relutou um
tempo, oscilando entre o sono e a
hipertermia, mas deixou a razão
determinar o passo. Abriu a porta do
banheiro e estancou, forçou os olhos
para fazer com que a visão do corredor
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013 se dissolvesse. Sabia que se chegasse à
frasqueira e tomasse os comprimidos de
que estava precisando seria fácil
regressar ao conforto da cama.
Esfregar a vista não bastou, Adriana
estava mesmo no corredor, e podia
ouvir a movimentação dos outros
hóspedes, o barulho nas acomodações
alheias. Duvidou que fosse tamanha a
febre a ponto de fazê-la confundir as
portas, mas ali estava, e passos
desenhavam sons de sapatos no carpete
um pouco gasto. Farejou o conteúdo da
bandeja carregada pelo moço que
certamente estaria uniformizado. Não
chegou a vê-lo, mas ouvia, sentia cheiro
d e c o n d i m e n t o s ; a d i v i n h o u a
aproximação do empregado do hotel
empurrando o carrinho com pedidos
fumegantes para os interessados em
cear ou aquecer-se com um chá e
desejava esconder-se dos olores e dos
ruídos. Ela também gostaria de um chá
assim que regressasse à proteção dos
aposentos que lhe cabiam.
O moço uniformizado fez as entregas, e
foi engolido pelo elevador. Não a viu
porque o quarto de Adriana ficava junto
da bifurcação do corredor e, como ela
espremeu-se contra a coluna que
escondia a entrada do seu apartamento,
restara apenas o temor de que a porta
tivesse trancado e não pudesse ser
aberta por fora. Forçou a maçaneta e
escutou o som da dobradiça. Respirando
aliviada, esgueirou-se para o outro lado,
ainda pensando em algum remédio que
aliviasse a febre.
Vestia meias grossas e uma dessas
camisetas bem surradas, próprias para
dormir ou passar o sábado atirada no
sofá sob o cobertor e farelos de pipoca.
Os trajes já seriam motivo bastante para
não querer ser encontrada no espaço
público do hotel, mas o mais grave para
Adriana seria explicar o engano. Não
gostava da associação comum que
muitos dos seus conhecidos faziam
entre ser artista e ser excêntrica.
Preferia apresentar-se como uma
representante do comum, que o
inusitado visitasse apenas suas tintas.
Depois do curto alívio de constatar que
as maçanetas funcionavam do lado de
fora, apoiada na madeira sólida da
abertura, deparou-se com a mesma luz
amarelada de antes, uma claridade
indecisa que tinha gosto de madrugada
vazia. Aos poucos deixava o olhar ser
invadido pelo discernimento de que à
sua direita não estava a esperada
penumbra da alcova com a cama ao
f u n d o . N o v a m e n t e e s c u t a v a a
privacidade escapando dos outros
cômodos — enquanto uns manejavam
talheres, outros tinham a televisão
ligada, talvez outros já dormissem, ou
então o quarto estaria vago.
Com a respiração curta e receosa,
desconfiava da própria lucidez, e decidiu
experimentar a maciez do pavimento.
Espreitou o silêncio que vinha do
elevador, fazendo grande esforço para
conter o impulso de bater em cada
porta. Mas que espécie de ajuda poderia
obter? Girou sobre as próprias dúvidas e
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013 t en tou uma vez ma i s . I n sp i rou
ruidosamente, deixando os pulmões
lotados de ar. Com toda a tensão do
corpo que isso provocava, agarrou-se à
m a ç a n e t a c o m a s d u a s m ã o s ,
suspendendo o momento de forçá-la
pelo tempo em que resistiu o adiamento
da expiração.
Queria ao menos fingir decisão, mas não
pôde nada além de manter a porta
en t reabe r t a . O reco r t e que se
apresentou a ela reconfortava a ponto
de fazê-la rir, pensando em como
temera não encontrar os móveis quietos
e a janela aberta ao Tejo. Agora
confiante, atravessou o umbral e já
esquecia a vontade de curar a febre
para ir acalmar-se com a vista do rio.
Depois haveria as horas de sono que
merecia.
Tomou o cuidado de virar a chave e
iniciou o percurso vagaroso até seu
alvo. Mas cada passada era como um
pingo de solvente sobre o óleo já
definido de uma cena. Os móveis
pareciam se desmanchar, cedendo sua
forma original a outras. Derretiam-se os
contornos, a cadeira era agora o
extintor de incêndio, a cama subia
molemente pela parede até assumir a
rigidez metálica da moldura do elevador,
e a porta da sacada fechara-se em uma
seqüência de alvenaria intercalada por
portas idênticas. Recuou para observá-
las em detalhe. O entalhe na madeira do
marco, o metal da fechadura, a luz débil
escapando por baixo de algumas.
Nenhum signo do incomum, apenas o
frio querendo apresentar-se.
Pensou em descer à recepção, mesmo
com a vestimenta inadequada, e pedir
ajuda. Poderia contar que havia saído
para o corredor por conta de um barulho
qualquer, e que a porta se fechara.
Acreditava que se houvesse alguém
consigo a mobília e a privacidade não se
atreveriam a desaparecer do seu
caminho para confiná-la novamente na
passagem estreita onde desembocavam
os outros quartos.
O suor na palma da mão era a sensação
mais acentuada imediatamente antes do
movimento, arriscava-se, mas já não
haveria sobressalto. Não conseguira
regressar para sua lucidez exausta, tudo
se repetiu com a precisão das vezes
anteriores. Ainda poderia resignar-se e
aguardar a alvorada. Durante o dia toda
obviedade se restabeleceria, e, no café
da manhã, ela desabafaria com os
companheiros de viagem, contando-lhes
o pesadelo insólito.
Enquanto resolvia sobre aventurar-se
ou não pelas escadas, Adriana imaginou
como seria a conversa com a curadora.
Será que ela lembrava ainda daquele
quadro? Insistiria. Era uma sucessão
infinita de portas conduzindo sempre ao
mesmo cômodo, com a mesma e
incansável porta ao fundo, lembra-se,
Amanda?
Adriana não atribuía grande valor àquela
pintura, e ela não foi o destaque da
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013 exposição que acabou acontecendo
mesmo sem a participação da artista.
Talvez se houvesse um ou outro olhar
mais atento à obra fosse possível
perceber uma sombra que mudava de
lugar , ou de porta , conforme a
incidência da luz. Se um dia houvesse
um estudo acurado do fenômeno,
surgiriam discussões quanto à natureza
dessa sombra. O crítico apaixonado pelo
estilo da jovem defenderia tratar-se do
vulto de uma mulher amedrontada,
certos alunos distraídos não veriam
nada além de sutis variações da textura.
Adriana, já acostumada com o vagar
entre batentes e corredores infindáveis,
não faria qualquer argumentação.
http://www.mauremkayna.com
http://twitter.com/mauremk
E s t e c o n t o f a z p a r t e d a
Coletânea Pedaços de Possibilidades.
Uma resenha para esta coletânea pode
ser lida em bluemaedel.blogspot.com.
Quem somos
HELENA FRENZEL é maranhense, autora e editora
de vários Ebooks, entre eles, as coletâneas de
contos Perfis Interessantes, Trinta Contos de Euros
e Três de Natal e Outros Quinze Contos. Mantém o
blog Bluemaedel onde concentra suas letripulias e o
projeto 15 Contos+, onde pretende reunir
anualmente contos de diversos novos autores
brasileiros.
MICHELE CALLIARI MARCHESE é catarinense e
contista. Participou em coletâneas publicadas pela
Editora Literata de São Paulo nos Livros UFO-
Contos não Identificados (2009) e Espectra (2010) e
no Livro dos Prazeres publicado pelo SESC de Santa
Catarina em 2008. Mantém uma escrivaninha no site
Recanto das Letras onde publica contos e outros
gêneros.