sem idade, matéria de capa de vanessa jacinto

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VIVER Setembro 5 - 2014 50 VANESSA JACINTO ESPECIAL CAPA SEM IDADE MARY LAGE escala parede de calcário em Verdon, na França E las são revolucionárias. Põem em xeque o concei- to de velhice tal qual concebemos, desafiam a de- nominação de idosas que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), define as que passaram dos 60. E crescem em todos os cenários, classes sociais e re- giões do Brasil. Estão aí, a desafiar o tempo e atuantes, as atrizes Marília Pera, Irene Ravache, Fernanda Mon- tenegro, Marieta Severo... e tantas outras anônimas. Há Judy Robbe, de 73 anos, Mary Lage, 65, Rosa Carvalho, 70, e Margarida Cardoso, 66, rompendo o preconceito que associa a longevidade a prejuízos. A psicóloga Marisa Sanábria, presidente da Comis- são de Mulheres e Questões de Gênero do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, adianta: elas alteram a ostensiva ideia de que a data de validade fe- minina deve ser dada pela sua sexualidade e idade re- produtiva. “Elas lutam por seus direitos, inclusive o de envelhecer.” Melhor seria, então, de acordo com a an- tropóloga Mirian Goldenberg, se referir a elas como ageless (sem idade) ou inclassificáveis, “pois não lhes cabem rótulos.” À sua maneira, cada uma delas vai construindo, com fôlego para chegar bem aos 90 anos, o que Mirian Arquivo pessoal Mary Lage/ Academia Rokaz MULHERES QUE DESAFIAM O TEMPO, MOSTRAM SUA FORÇA E LUTAM POR SEUS DIREITOS, INCLUSIVE O DE ENVELHECER 050 - 054.indd 1 29/08/14 19:50

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Sem idade: mulheres que desafiam o tempo, mostram sua força e lutam pelos seus direitos, inclusive o de envelhecer.

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Page 1: Sem idade, matéria de capa de Vanessa Jacinto

VIVER Setembro 5 - 201450

VANESSA JACINTO

ESPECIALCAPA

SEMIDADE

MARY LAGE escala parede de calcário em

Verdon, na França

E las são revolucionárias. Põem em xeque o concei-to de velhice tal qual concebemos, desafiam a de-nominação de idosas que, segundo a Organização

Mundial de Saúde (OMS), define as que passaram dos 60. E crescem em todos os cenários, classes sociais e re-giões do Brasil. Estão aí, a desafiar o tempo e atuantes, as atrizes Marília Pera, Irene Ravache, Fernanda Mon-tenegro, Marieta Severo... e tantas outras anônimas. Há Judy Robbe, de 73 anos, Mary Lage, 65, Rosa Carvalho, 70, e Margarida Cardoso, 66, rompendo o preconceito que associa a longevidade a prejuízos.

A psicóloga Marisa Sanábria, presidente da Comis-são de Mulheres e Questões de Gênero do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, adianta: elas alteram a ostensiva ideia de que a data de validade fe-

minina deve ser dada pela sua sexualidade e idade re-produtiva. “Elas lutam por seus direitos, inclusive o de envelhecer.” Melhor seria, então, de acordo com a an-tropóloga Mirian Goldenberg, se referir a elas como ageless (sem idade) ou inclassificáveis, “pois não lhes cabem rótulos.”

À sua maneira, cada uma delas vai construindo, com fôlego para chegar bem aos 90 anos, o que Mirian

Arquivo pessoal Mary Lage/ Academia Rokaz

MULHERES QUE DESAFIAM O TEMPO, MOSTRAM SUA FORÇA E LUTAM POR SEUS DIREITOS, INCLUSIVE O DE ENVELHECER

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chama de bela velhice. O termo é o mesmo que intitula seu último li-vro, lançado pela Editora Record, resultado de suas pesquisas sobre envelhecimento. “As integrantes desse grupo têm muito a ensinar. A melhor lição é a certeza de que pas-sar dos 60 nada tem a ver com o fim do trabalho, da libido, da saúde ou do interesse pela vida.”

No próximo mês de outubro, nos dias 16 e 17, ela e outros es-pecialistas se reunirão no Rio de Janeiro para discutir o assunto, du-rante o II International Longevity Forum 2014 , promovido pelo Cen-tro Internacional de Longevidade e cujo tema será Envelhecimento e Gênero. Nesta reportagem, as mu-lheres entrevistadas mostram que não penduraram as chuteiras.

Tampouco fazem planos de pa-rar. “Eu não coloco data para dei-xar de fazer escalada”, afirma Mary Lage, escaladora e montanhista. “Enquanto eu conseguir, vou conti-nuar subindo muros e paredões. Se isso é o que me traz vigor e alegria de viver, não tem sentido deixar de fazer só porque podem me julgar velha demais pra isso.” Junto com o marido e os filhos, ela coman-da uma academia de escalada na Savassi, em Belo Horizonte, onde também treina quase que diaria-mente. Vencendo o próprio medo de altura, ela já subiu picos como o das Agulhas Negras (2.791,55 me-tros) e o Dedo de Deus (1.692).

Muitos a julgariam inadequa-da por começar, aos 47 anos, a pra-ticar esse tipo de esporte. Mas ela não se intimidou. Desde então, o muro tem sido seu psicólogo, sím-bolo de superação, de capacidade de transpor limites. Mary diz que escalar melhora sua autoestima, sua autoconfiança e, é claro, a con-dição física. “Existe tanta pedra bo-nita no mundo pra eu conhecer e subir! Ainda vou viver muito.”

Judy, aos 73, segue dedicada ao

seu trabalho de dar apoio às famí-lias da pessoa com Alzheimer. Ela também faz palestras e seminários, treinamento especial de cuida-dores e aconselhamento familiar. Desfruta de boa saúde e de alegria de viver. A esse envelhecimento bem-sucedido, Judy atribui o fato de ter passado por um processo de autoconhecimento, iniciado 30 anos atrás. “Foi nesta época que entendi qual era a minha missão: orientar e acolher essas famílias. O trabalho de autoconhecimento me permitiu estar mais engajada com a vida, encontrar o equilíbrio, pla-nejar as etapas e cuidar melhor de mim.” Nasceu na Inglaterra duran-te a Segunda Guerra. “Escondida em abrigos subterrâneos, minha mãe não sabia se era noite ou dia no momento em que vim ao mun-do. E foi assim que passei os meus primeiros 5 anos.”

Talvez por isso ela esbanje tan-ta vontade de viver, tenha tanto respeito pela velhice e morte. Es-ses ingredientes a conduziram num

SEMIDADE

Não tem sentido

deixar de fazer só porquepodem me

julgar velha”Mary Lage

processo de autoinvestigação que nunca acabou. Desde que o marido morreu em 2009, Judy criou outro grupo com mais 3 amigas. Sema-nalmente, elas se reúnem para dis-cutir “como estou envelhecendo”. Elas revisitam o passado, levantam questões e informações da infân-cia, da família, falam sobre como se sentem sem seus maridos, de espiritualidade, de onde e como querem viver quando se tornarem dependentes.

As respostas encontradas per-mitem a Judy fazer ajustes na rota que traçou para o seu envelheci-mento. Seu grande projeto é enve-lhecer com dignidade e, para que não haja dúvida sobre seus dese-jos, ela documentou como quer que isso aconteça (quadro na pág. ao lado). “Envelhecer é como uma viagem, você não pode ir para ela sem um mapa. É fundamental se preparar e planejar como vai ser o momento.”

Rosa de Lourdes sempre este-ve ao lado de Judy nesta busca

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por autoconhecimento. E tam-bém vive uma bela velhice. “Aos 70 me sinto inteira, ativa, disposta. É como se ainda tivesse 40 anos e muito tempo pela frente.” Ela sem-pre se preparou para chegar bem à velhice. Dietas equilibradas, cor-po em movimento, laços afetivos fortalecidos e espiritualidade em equilíbrio com outras esferas. Acre-dita que é preciso ir construindo a vida fazendo o que traz alegria, resgatando sonhos perdidos na in-fância.

Atualmente, faz novos inves-timentos levando em conta, prin-cipalmente, as dificuldades que poderão surgir nos próximos 30 ou 20 anos. “Tenho observado, pela minha mãe de 95 anos, o quan-to traz vida cada um envelhecer no seu canto, cuidando das suas coisas, das plantas, no seu ninho. Já estou adaptando o lugar onde moro de forma que ele possa com-

portar a minha velhice. É na minha casa que quero viver até o fim dos meus dias, com cuidadores se for necessário.”

Planejar é mesmo fundamen-tal. “É preciso se dedicar às coisas de que gosta. Nós envelhecemos como vivemos e, se a pessoa sem-pre teve projetos, certamente os terá depois dos 60. Pode ser com outra cadência, mas tem que ser o que dá alegria,” diz a psicóloga Ma-risa Sanábria.

Para traçar seu próprio enve-lhecimento, Marisa, que tem 60 anos, também fez seu plano. Um deles é chegar a essa fase com me-nos apegos, carga, culpa, menos. “É preciso ir adquirindo uma certa leveza para poder descansar nes-se jardim com a alma apaziguada e tranquila!” A professora Marga-rida Ferreira Cardoso, 66 anos, re-solveu levar esse jardim para fora. Ornamentou a praça Violeta Soter

Vargas, no bairro Serra, em Belo Horizonte. Foi a forma que encon-trou para preencher de forma lúdi-ca parte das horas vagas do seu dia, antes tomado pelos 30 anos em que deu aula na rede municipal de en-sino.

“Eu teria continuado, mas os alunos estavam me considerando inadequada por causa da idade. Fi-quei triste, mas não me surpreendi. Isso é comum, vindo de uma juven-tude que não está nada prepara-da para o envelhecimento”, afirma Margarida. A ideia de enfeitar a praça aconteceu no último Natal e, de lá para cá, os adornos feitos à mão são renovados a cada data comemorativa. Os últimos foram colocados no Dia dos Pais. “É um processo de cura.” De reconexão com a natureza e com a possibili-dade de mudança que não se es-gota com a idade. Ao contrário, se renova diariamente. “É fundamen-

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JUDY ROBBE: “Envelhercer é como uma viagem, você não pode ir sem um mapa”

Fotos: Pedro Vilela/Agência i7

MARISA SANÁBRIA(ao centro) durante ofi cina de bordado

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ALEXANDRE KALACHE: “O envelhecimento é uma conquista da mulher”

l Aceitando o ciclo natural da vida, com saúde física e lucidez mental, com independência e ajuda mínima para fazer aquilo que não consigo mais

l Adaptando-me às mudanças no meu mundo e mantendo-me fl exível para enfrentar melhor as difi culdades e tristezas que possam aparecer. Depois da morte de meu parceiro, em 2009, quero envelhecer gostando da minha própria companhia, e nunca reclamando da solidão

l Com meus fi lhos e netos me visitando porque querem estar comigo, não por obrigação

l Com os recursos adequados para as minhas necessidades básicas (para isso sempre poupei)

l Continuar gostando de brincar, de estar com as minhas amigas, com o meu computador, iPad e celular, para fazer pesquisas e me comunicar com parentes e amigos pelo mundo. Quero estar sempre rodeada pelos meus livros, lembranças e animais de estimação

l Na minha casa, no meu ninho, enquanto estiver lúcida e autônoma o sufi ciente para realizar as tarefas do dia a dia. Se perder a minha independência, vou morar numa pousada geriátrica previamente escolhida por mim

l Tendo boas razões para me levantar todos os dias, com metas, propostas e compromissos. Sentindo-me útil à comunidade

l Na esperança de que os meus desejos sejam respeitados se eu não conseguir mais me expressar ou tomar decisões quanto ao meu tratamento médico

l Declaro que não quero medidas heroicas para prolongar o processo da minha morte, quando as chances de vida já não existirem

l Quero ser acompanhada por médicos que apoiam a fi losofi a hospice e cuidados paliativos

COMO QUERO ENVELHECER

Divulgação

Igor Coelho/Agência i7

tal ter um projeto. Não lamento rugas ou cabelos brancos.”

Segundo o gerontólogo Alexandre Kalache, presidente do Centro Inter-nacional de Longevidade, a possibi-lidade de viver mais é uma realidade para todos. Até 2025, quando vamos atingir a marca de 33,4 milhões de idosos, o Brasil ocupará a sexta posi-ção na classificação dos países mais envelhecidos, dobrando, em 13 anos, o contingente na faixa acima dos 60 anos. Em 2050, nossa pirâmide etária estará completamente invertida, com o número de velhos ultrapassando o de jovens e crianças. Longevidade resultante de uma série de avanços como os da ciência e da medicina, o acesso aos serviços de saúde etc.

“A velhice, a ponto de a popula-ção toda envelhecer, é algo recente, dos últimos 50 anos. Antes, envelhecer era exceção, agora é regra”, diz a ge-riatra Karla Giacomin. Ela garante que só no século passado ganhamos

Documento escrito por Judy Robbe

MARGARIDA CARDOSO: “Não

lamento rugas ou cabelos brancos”

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“Você está se preparando para a velhice ou vai se deixar surpre-ender?” É com essa pergunta que o gerontólogo Alexandre Kalache, desafi a jovens e adultos em deba-tes que realiza mundo afora. A ideia é confrontá-los com a imagem de si próprios nas fases mais avan-çadas da vida, aos 65, 70 ou 80 anos, e alertar para o fato de que precisamos nos preparar, social e individualmente, para a tremenda revolução demográfi ca em curso.

Para que a possibilidade de vi-ver mais seja, de fato, uma con-quista, a velhice deve ser vivida com saúde, segurança, recursos fi -nanceiros e capital social. “Não dá para pensar nisso 1 semana antes de fazer 80 anos. Cada um de nós deve fazer investimentos, em todas as etapas da existência, para atra-vessar bem a fronteira dos 60”, diz o especialista. Caso contrário, pode ser uma etapa da vida caracteriza-da por solidão, sofrimento, insegu-rança. “É necessário desenvolver, também, uma cultura do cuidado, pois estamos sofrendo a síndrome da insufi ciência familiar.”

A equação não fecha: de um lado cada vez maior número de idosos, equanto que o de cuida-dores só diminui. Com mais mo-bilidade social e geográfica, as famílias também estão mais frag-

mentadas. As pessoas se casam 2, 3 ou até mais vezes. Com todas essas questões, a revisora Lucia-na Lobato Barros, de 41 anos, o professor universitário Fábio Ca-margo, 43, e o publicitário Robson Fontenelle, também de 43, come-çaram a se organizar.

Eles sabem que não terão fi lhos e que, portanto, precisam pensar alternativas de cuidado. Robson, que desde o primeiro AVC sofrido pela mãe, em 2001, vive a doloro-sa experiência de vê-la numa si-tuação limite, já havia despertado para a questão. “É angustiante ver minha mãe, hoje com 85 anos, sem falar, sem se mexer na cama.”

Não dá para prever o futuro. O que Robson já sabe é que terá que cuidar melhor da saúde e continu-ar fazendo reserva financeira. “In-visto nas relações de amizade. Já temos um combinado que é cons-truir casa para vivermos juntos.” A ideia é a mesma que Luciana e Fábio pretendem adotar. Como segunda opção, eles consideram a possibilidade de viver numa ins-tituição. “Eu sempre soube que ia ser sozinho na vida, então, essa possibilidade não me assusta”, diz Fábio. Luciana também não tem medo do futuro. “Eu me preparo, mas sempre com a consciência de que a vida é imprevisível demais.”

FÁBIO CAMARGO,Luciana Barros e Robson Fontenelle: atentos ao futuro

POUCO PREPARADOS PARA A VELHICE

Igor Coelho/Agência i7

mais em quantidade de vida do que tínhamos conseguido em milênios. “E não é apenas em quantidade. Trata-se, principalmente, de qua-lidade de vida que tanto homens quanto mulheres passaram a expe-rimentar.” Para o público mascu-lino, contudo, o envelhecimento, segundo a antropóloga Mirian Gol-denberg, é um processo de conti-nuidade, enquanto que o feminino teve que revolucionar e se reinven-tar para atingir – e até ultrapassar – a expectativa de vida do homem.

Kalache lembra que as mulhe-res que agora estão entre os 60 e 75 anos são as que nasceram durante ou pós-Segunda-Guerra. Elas desa-fiaram as elevadas taxas de mortali-dade materna, viveram a revolução sexual, conquistaram o direito de entrar no mercado de trabalho e de decidir o número de filhos que teriam com o uso de métodos an-ticoncepcionais. “Se analisarmos sob a perspectiva da mulher, a re-volução da longevidade foi muito maior. Ela se emancipou, gostou da experiência, e podemos, sim, considerar que o envelhecimento é uma conquista dela.”

A psicóloga Marisa Sanábria concorda com o gerontólogo e vê a mulher, o tempo todo, desafiar pre-conceitos, lutar por direitos, inclu-sive o envelhecer. Até mesmo pela literatura isso se torna evidente. As bruxas são retratadas como mu-lheres envelhecidas, na menopau-sa, feias e mal amadas. Cria-se, lembra Marisa, o arquétipo de que toda mulher vai envelhecer com amargura e que o processo inclui apenas decadência. Não é mais assim, estão aí as atrizes de 60, 70, 80, Judy, Mary, Margarida e Rosa para provar o contrário.

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