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Selva! AMAZÔNIA CONFIDENCIAL j.c. DE toledo hungaro

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Amostra com as 25 primeiras páginas do livro "Selva! Amazônia Confidencial", de J. C. de Toledo Hungaro - Dois comandantes na Amazônia e uma advogada na Suíça revelam as facetas do mercado garimpeiro e desbravam uma Amazônia insuspeita.

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Selva!AMAZÔNIA CONFIDENCIAL

j.c. de toledo hungaro

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Copyright © 2012 Kwabb-Fortec Corporation - Gestão de Ativos Intelectuais e EditoraAv. Harwood n.6411-Carrasco-Montevideo-Uruguay-11.500Tel:++598-26001881 / Fax: ++598-2604652

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.

É proibida a reprodução desta obra, mesmo parcial, por qualquer processo, sem prévia autorização, por escrito, do autor e da Editora.

Diagramação e capa: M.F. Machado LopesFotografia: Victoria Fox

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Hun931 Hungaro, J. C. de Toledo. Selva! : Amazônia confidencial! / J. C. de Toledo Hungaro. — 1. Ed. – Rio de Janeiro : Paula Cajaty, 2012. 420p. ; e-book. – impresso sob demanda ISBN 978-85-913790-1-9 (e-book) 1. Ficção Brasileira. 2. Literatura. I. Título. CDD B869.3

Bibliotecária Responsável: Amanda Araujo de Souza Carvalho CRB 7/6351

Editora Jaguatirica DigitalEdifício Galeria Sul AméricaRua da Quitanda, 86, 2o andar - CentroRio de Janeiro - RJ - CEP 20.091-902Tel.(21) 3942-0222e-mail: [email protected]: www.jaguatiricadigital.com

Registro de Obra e Autor: Biblioteca Nacional-Rio de Janeiro.Biblioteca Nacional de Montevideo.

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para Cesarina Riso

à Melanie e João Manuel Com amor

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Agradecimentos

Meus sinceros agradecimentos a Márcio Vassallo por ter aceito revisar este livro.

Aos membros de minha equipe de Montevidéu que permitiram a tranquilidade para escrever, enquanto trabalhavam de fato.

A minha editora Paula Cajaty por todo o seu talento.

E a extrema generosidade de Marina Colasanti por ter aceito ler os originais e apresentado Márcio Vassallo para a revisão.

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Esclarecimentos

Esta é uma obra de ficção, processada pela minha imaginação doentia, a partir de uns tantos fatos verídicos, muitas lendas do mercado internacional e meias mentiras contadas nos barrancos dos garimpos perdidos da Amazônia, nas noites perturbadas por ruídos vindos da escuridão inescrutável da floresta, que é quando se consolida a história naquelas latitudes.

Os personagens e fatos deste livro jamais existiram em suas unidades. São ingredientes do caldo existencial e cultural de parte da humanidade amazônida, contados levianamente por um garimpeiro tão irresponsável ao ponto de ter sobrevivido.

Montevidéu, inverno de 2010

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EleLivro I

(1988)

“No es hoy que es hoy.

ni me veo con lo que he sido. no sé si he enloquecido o ya no soy lo que soy”

(atrib. li po)(Henrique de Hériz, Mentira. pag. 310)

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SelvaPrecisava urgentemente dormir, mesmo sabendo das tantas possibilidades

de não acordar mais.

O calor sufocante da febre começava a incendiar os dedos dos seus pés e ele sabia que aquela quentura subiria por suas pernas perfurando como agulhas incandescentes as superfícies ainda geladas de todo o seu corpo submerso na onda anterior, a glacial, que congelava até os fios dos seus cabelos longos, sujos e desgrenhados. Ele também sabia, que quando o seu corpo estivesse inteiramente mergulhado no calor que começava a sua escalada, assando no braseiro da febre insuportável, uma avassaladora onda gelada ressurgiria de seus pés para retomar o terreno então em chamas.

Assim funciona uma crise de malária. Um contínuo processo de mutação, entre o calor e o frio extremos, alternados, em ondas. Começa sempre pelos pés, termina nos cabelos. E tudo é agravado pela total impossibilidade de alimentar-se ou manter no estômago qualquer coisa que, num esforço supremo, conseguisse tragar.

Caminhava pela mata escura, trôpego e insano, sonhando com o duvidoso conforto de uma cama de hospital. Imaginava as delícias de uma dieta intravenosa de soro e o descanso entre lençóis quase limpos, única chance de prolongar a sua curta existência.

Ele sabia tudo sobre a malária e sobre o tratamento que deveria estar recebendo nesta crise, porque aos vinte e seis anos de idade, era um garimpeiro veterano da Amazônia.

Mas, acima de tudo, sabia que continuar a caminhada na mata fechada e escura - aspirando o odor acre da madeira putrefata, dos cupins e das folhas em decomposição, pisando o caldo úmido de tudo isso com as suas improváveis chinelas de plástico presas ao vão dos dedos de seus pés, semi-destruídas e sustentadas pelo inchaço provocado por um sem número de mordidas de mosquitos e sabe-se lá o que mais, ainda com as tiras presas aos pés destroçados pela caminhada, uma massa disforme e sanguinolenta - era a sua única possibilidade de sobreviver, mais uma vez.

Mais do que isso, ele sabia que, tecnicamente, era um homem morto.

A galharia entrelaçada, afiada e sem folhas, simplesmente pela impossibilidade dos raios solares atravessarem o teto compacto da folhagem

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a sessenta metros de altura, nas copas daquelas árvores gigantes, havia feito o seu trabalho, nos muitos cortes de profundidades variadas que lanhavam o seu tronco nu e as suas pernas descobertas pela calça jeans, há muito tempo cortada com facão de mato, na altura dos joelhos. Mas esse facão não fazia parte das suas posses naquela fuga.

Com as pupilas dilatadas pela febre e a escuridão permanente da floresta, seguia seu rumo ao norte, encharcado de água suja, suor e sangue. Um boné inútil, naquela ausência absoluta de sol, completava a sua indumentária e concluía a lista de todos os seus bens terrenos. Também levava com ele o relógio de mergulhador novo em folha, seu precioso aliado. Estar com aquele relógio no pulso, quando escapara da morte iminente, fora o único sorriso da sorte naquela manhã tão recente e já tão definitivamente arquivada em sua mente. Afinal, embora não tivesse dado maior importância, quando o adquirira, há menos de dez dias atrás, o instrumento trazia uma bússola. E foi graças a essa bússola que ele não perdeu o rumo nem andou em círculos, na imensidão de trevas.

Enfim, era tudo que levara consigo, naquela viagem sem volta. Aquela era a fortuna que restara dos seus últimos cinco anos de trabalho obsessivo e insalubre nos garimpos de ouro, encerrado em trajes obsoletos e mortais de escafandrista, sua profissão desde que abandonara a academia de oficiais da Marinha de Guerra, no Rio de Janeiro, em uma vida que não era mais a sua.

Agora procurava a morte, cavando submerso os leitos dos rios escondidos na floresta, sugando pedras, areia e ouro pela mangueira de seis polegadas, que a força de um motor conectado a uma bomba de água puxava para o convés daquela draga flutuante, perdida em qualquer braço insignificante e não mapeado do rio sem nome, muito acima do seu deságue no alto do rio Negro, quase na fronteira da Amazônia colombiana onde suas águas cor de chá forte nascem com o nome de Guaianía, vindas desde o alto das cordilheiras e tomando volume já no coração escuro da Amazônia brasileira.

A Amazônia era uma só, indiferente às bandeiras que os homens insistiam em hastear.

Como em quase todas as dragas da região, a sua tivera, até uns dias atrás, quatro tripulantes embarcados: seus sócios. Seus irmãos. Amazônidas e garimpeiros como ele. Sem passado e sem futuro. Quatro párias imersos na faina desesperada de arrancar o ouro da lama que subia pela mangueira manejada por ele, o escafandrista da trupe, desde as profundezas do rio onde flutuava

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a plataforma de madeira, pouco mais de uma jangada; a casa e a empresa de todos eles, alheios ao ronco incessante do motor e do ruído ensurdecedor que saía das caixas de som instaladas no convés, jorrando um material que eles, os seus sócios primatas, acreditavam ser música. Sem qualquer interrupção dos movimentos mecânicos e febris daquele trabalho autista que durava enquanto houvesse qualquer traço de luz do dia. Dia após dia.

Mas isso agora era mais um passado para esquecer. O objetivo primordial era fugir dos seus perseguidores e enganar a morte. Mais uma vez. Ele tinha chances reais de escapar, porque escolhera embrenhar-se na selva fechada, em vez de tentar margear o rio em que estava ancorada a sua balsa - a sua ex-balsa, pensando melhor. Optara por esta estratégia porque a sua fuga fora improvisada e repentina. Portanto, seria impossível levar as armas que estavam a bordo junto a todos os seus tesouros: elas agora estavam a serviço dos seus inimigos. Quanto ouro não daria, nas atuais circunstâncias, pelo seu par de botas emborrachadas?

“Canadenses, porra!”, pensou, lembrando-se da compra que fizera de um contrabandista em Manaus, a bela capital junto à selva, tão distante de onde estava agora. Lembrou-se vagamente dos confortos que ali gozara, com dinheiro do ouro que arrancara do ventre daquela mata.

Esses pensamentos mais o cansaço absoluto, além da ausência de qualquer traço de ser humano, branco, índio ou mestiço, relaxou-o. Então, sentou-se acostado a uma raiz morta e imensa já despojada do que fora a sua arvore gigante, devorada por cupins. Precisava urgentemente dormir, mesmo sabendo das tantas possibilidades de não acordar mais. Só que isso não o preocupava agora. Talvez morresse em paz e a sua inexistência teria efeito zero sobre os demais seres viventes. Será mesmo? Bem, disto ele realmente não tinha certeza, mas este pensamento, de certa maneira, o amansou. O treino militar, sua segunda natureza, obrigou-o a memorizar a hora e o dia marcados no seu relógio novo. Finalmente, o sono instantâneo e profundo livrou-o um pouco da pesada carga de estar vivo.

Contrariando todas as probabilidades, deu-se conta de que despertara quatorze horas e trinta e oito minutos depois, mais lúcido que os dias anteriores e consciente de que tinha cagado um pouco e mijado muito, nas calças cortadas que vestia. Ainda estava febril, mas naquele momento o que mais queria era encontrar água limpa para beber, tomar um banho completo e lavar a sua única peça de roupa. Não sentia fome, o que seria um sintoma de superação da crise aguda de malária, mas não estava tão mareado quanto na véspera.

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Experimentava a calma do soldado perdido, longe da frente de batalha. Com serenidade, disse a si mesmo que dispunha de todo o tempo do universo para conseguir uma possível recuperação física e mental. Economizar energia seria a meta das horas seguintes, pois os dias que viriam eram apenas uma conjectura. Assim, com conhecimento e familiaridade, ainda recostado, instintivamente buscou algum eventual foco de luz solar que atravessasse o alto teto da mata. Mais do que nunca, precisava de uma luz na sua vida.

Então sentiu, mais do que viu, uma claridade maior vinda a noroeste de onde se encontrava. Naquele instante, marcou na bússola e traçou o rumo a seguir.

Qualquer criatura da floresta sabe que um foco de luz pode indicar uma pequena clareira causada por um riacho de leito pedregoso, uma formação rochosa, uma lagoa, um rio ou a presença de seres humanos instalados, brancos ou índios. E qualquer uma destas possibilidades seria vital para a sua sobrevivência. Sim, aquele era o sol do fim da manhã. Ele teria muito tempo para procurar o seu destino, a fonte de luz que percebera. Levantou-se muito lentamente, esticando os membros como num bocejo demorado e firmou-se nos pés, agora um pouco mais descansados, mas tão doloridos quanto na noite anterior.

No entanto, a dor ainda era o sinal de que estava vivo. Desta forma, teve tempo de cerrar os olhos durante vários minutos, para acostumar-se com a penumbra e encontrar um galho seco que serviria de bengala, bastão e arma. Caminhou o mais diretamente que pôde para a luz distante. Para ele, havia momentos em que tudo parecia distante.

Os últimos raios do dia ainda brilhavam refletidos na água que escutara correr bem antes de ver o espetáculo que nunca houvera imaginado. Um soberbo igarapé corria do alto de uma elevação rochosa sobre uma escadaria natural de lajes superpostas, batendo suas águas em cada patamar, com o som de uma corredeira íngreme, terminando tudo num pequeno lago de águas claras sobre o leito de pedras chatas. Permaneceu estático avaliando a sua sorte e vasculhou o terreno, com o olhar do especialista em busca de humanos. Mas os seus olhos não acharam nada, não acharam ninguém, não acharam nenhum vestígio de gente. Seu coração batia desembestado, só de pensar na possibilidade de achar um vestígio de gente. Foi quando escolheu uma pedra fora do curso da água, bem no meio do lago e mergulhou na sua direção.

Nunca uma dor ardida em todas as feridas de um corpo foi tão bem

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recebida quanto naquele momento. Alçando-se à pedra, aproveitou para despir-se completamente e lavou suas calças batendo-a ao avesso, com fúria, contra a superfície lisa e lixenta, alternando mergulhos da roupa nas águas límpidas. Depois, usou a peça como esponja para um longo banho, lavando cuidadosamente os pés e cada chaga aberta do tronco e retorcendo-se com esforço para alcançar as costas, lavá-la e fazer uma avaliação dos danos. O ato de avaliar os danos, perdido no meio da mata, e buscar soluções urgentes para continuar vivo será sempre uma experiência inesquecível.

E a noite não espera. Ela já caíra quando ele deitou-se numa face lisa da sua pedra, do seu castelo seguro, ao lado da calça estendida para secar, depois de ingerir muitos e pequenos goles de água limpa, em intervalos de tempo, como ensinara insistentemente, e aos gritos, o sargento do seu curso de sobrevivência naquela longínqua e mágica academia de oficiais de Marinha, em um planeta maravilhoso chamado Rio de Janeiro. Às vezes, duvidava que realmente tivesse vivido dias tão despreocupados e felizes, imaginando que estas lembranças poderiam ser apenas a apropriação indébita de sonhos de outro homem. Ou apenas estaria mergulhando na loucura?

O fato é que a dor que sentia nas costas em carne viva contra a pedra áspera foi superada pela sensação de conforto e o impacto da luz das estrelas que refletia na superfície do lago, num alucinante esplendor privado. Enfim, adormeceu quase feliz, embriagado de febre, naquele palco de luzes.

Inspeção e reconhecimento. Despertou-se agradavelmente seco e aquecido pelos primeiros raios de sol, que batiam chapados nas superfícies das lajes e do lago. Foram aquelas superfícies que o protegeram das criaturas da noite na selva. Era um homem protegido pelas superfícies. Sem resistir, ficou na mesma posição gozando aquele calor bom até que a temperatura ficasse insuportável e nuvens de mosquitos tomassem conhecimento do festim disponível que seu corpo nu proporcionava. Para evitar tudo isso, mergulhou na água fresca nadando até a borda, buscando a sombra da mata e um ponto de observação.

Sentado em um tronco caído, examinava o conjunto do lago e da cascata quando percebeu pequenos peixes, quase na superfície da água, nadando entre as enormes folhas de vitória-régia que flutuavam exibindo suas magníficas flores, aqui e ali, fazendo do entorno um simples complemento para a sua grandiosidade. Afinal, na Amazônia, nada é mais grandioso do que a simplicidade. E, no meio daquela cena, entrando até a altura da cintura, permaneceu quieto com o boné seguro pela aba. Com golpes rápidos, os

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primeiros de resultados frustrantes, finalmente pegou um peixinho com o boné. Depois, o prendeu pelas guelras, ainda vivo, numa vareta que levara da margem. Manteve o prisioneiro submerso, preso pela mão esquerda, enquanto repetia a operação de captura na faina ancestral do homem, até ter meia dúzia de exemplares na sua vareta. Então, abriu cada um dos peixes com as unhas, pelos ventres, lavando e removendo os órgãos deles, até tê-los todos abertos e sem cabeças, sobre a folha larga como uma bandeja redonda, de uns sessenta centímetros de diâmetro, uma das inúmeras que flutuavam no lago presas às suas raízes aquáticas.

Depois, voltando à sombra com seu banquete, sugou cada um dos peixes pelo lado interior, sorvendo a carne fresca e firme dos filés e atirando cada pele escamada e já descarnada de volta ao lago, como se saboreasse pequenas frutas e se livrasse de suas cascas. Pequenos goles de água fresca completaram a sua saudável dieta de proteínas e hidratação. Por fim, assistiu ao fim da tarde sentado à sombra de uma árvore debruçada na margem, sobre uma laje úmida. Forrou essa laje com inúmeras daquelas grandes folhas aquáticas, algumas com mais de um metro de diâmetro, e também cobriu-se com elas, livrando-se do ataque feroz das nuvens de mosquitos que o devorariam, não fosse a proteção da grossa espessura de que eram constituídas.

O descanso quase hospitalar, a dieta e a proteção das folhas fizeram as ondas de frio e calor perderem a intensidade e a noite já o encontrou dormindo em sua pedra, no meio do lago. Seu corpo agora estava seco, sua calça estava seca, seu boné estava seco sobre um colchão de folhas redondas e carnudas e coberto por muitas outras delas. Sentia-se limpo, banhado que fora, por límpidas águas. O dia terminava e o ser vivente, bípede dominante, já usava o seu lóbulo frontal, fazendo planos sofisticados para o seu futuro imediato. Às vezes fazemos nossos melhores planos quando estamos perdidos.

Mas, sem planejar, despertou assustado por algum pesadelo, aos primeiros raios da manhã, rapidamente encharcado pelas gotas de uma intensa chuva que desabava pesada, sem aviso, lavando aquele mundo e penetrando por entre as folhas que o cobriam, desaparecendo em seguida, com o retorno do sol forte, minutos depois. Ele permanecera em pé, desamparado, sabendo que aquela chuva repentina o debilitaria para a febre, e jurou que em breve estaria longe das intempéries da floresta.

Após ter repetido os atos de alimentação e higiene da véspera, prendeu os peixes pelas guelras e bocas em um cipó atado à cintura. Isto permitiria que eles permanecessem vivos, submersos durante a pesca e em número suficiente

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para garantir também o jantar.

“A tecnologia evoluía”, ele pensou. E começou a executar os planos elaborados na tarde anterior. Passou o resto da manhã escolhendo galhos pelo chão da mata limítrofe ao lago, onde havia maior claridade, e arrancando grandes cipós secos das árvores vizinhas. Então, foi alinhando todo o material recolhido, lado a lado, nas margens do lago, separando por tamanhos e escolhendo as peças mais retas e uniformes. Depois, foi levando lentamente, a nado, as peças aprovadas pelo seu controle de qualidade até a plataforma chata e elevada da sua querida pedra, no meio do lago. Naquele instante, pensou que era uma espécie de castor tropical e sorriu pela primeira vez, desde a sua fuga para a floresta.

O cair da tarde pegou-o terminando o cubo vazado, composto por doze galhos de aproximadamente dois metros de comprimento cada um, com diâmetros diversos mas compatíveis, atados fortemente por cipós secos, que ficariam ainda mais firmes depois de umedecidos pelas pancadas de chuvas. Na parte superior, que seria o teto do seu palácio, deixou uma inclinação para correr a água da chuva, simplesmente armando um dos lados com galhos um pouco mais curtos. Depois, rearrumou a sua cama de folhas. Ele havia espalhado essas folhas pela pedra para que secassem, examinando detidamente cada uma, porque qualquer garimpeiro sabe que onde há pedra, há escorpião Adiante, num arroubo de licença poética, colocou o cubo de galhos, até agora inútil porque ainda não possuía teto ou paredes, na posição onde planejara colocar a sua casa, e arrumou a cama e a sua coberta vegetal dentro dele, no centro do espaço cercado.

“Era como um acampamento provisório num apartamento novo”, pensou, deixando aflorar aquele urbanóide do Rio de Janeiro que ainda vivia dentro dele e que se negara a aceitar o exílio.

Pensar, naquele lugar, era um prazer e uma danação. Quando pensava, conseguia se reaproximar das suas raízes e de todos os motivos que tinha para continuar lutando. Ao mesmo tempo, os seus pensamentos também o incomodavam, principalmente os mais lúcidos e realistas. Porém, naquele momento, dormiu profundamente, até que, de madrugada, o seu sono reparador foi interrompido por uma tempestade com raios e trovões. E ele esperou sentado, completamente molhado, no meio do seu cubo vazado, tremendo de febre, calor e frio, até que a noite completamente escura pelas nuvens negras fosse substituída pela manhã clara e ensolarada.

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Sem descansar depois do ritual de alimentação e banho, passou o resto do dia em um trabalho frenético, reforçando cada lado do cubo com mais galhos, presos pelos cipós, e fixando as grandes folhas como telhas superpostas não só no teto como nas quatro paredes fixas. Apenas a abertura da porta, estreita, era suficiente para que entrasse o seu corpo enxuto. A tapera seria guarnecida por um painel removível no dia seguinte. Seria o portal do seu palácio. Quando a noite chegou, ele estava instalado em sua residência, ainda sem porta, mas seca pelo sol de todo o dia. Como não podia fixar a estrutura na pedra, optou por ancorá-la por grossos cipós amarrados a pedras que levara com muito sacrifício, para manter a cabana estável pelo peso. Quando as espessas gotas de chuva caíram pesadas, ele estava sentado em sua cama de folhas, coberto e seco, ouvindo o barulho ensurdecedor da precipitação no seu telhado e paredes, sentindo somente pequenos respingos no vão ainda aberto. A estrutura resistia ao temporal e a sensação de conforto que o inundou jamais seria igualada, no resto de seus venturosos dias.

Quantos dias ainda seriam venturosos na sua vida? Às vezes, no meio da mata, pensar a longo prazo era o que o mantinha lúcido. Em outras vezes, só o que o mantinha vivo era pensar a curto prazo, com a cabeça já concentrada no próximo dia, na próxima hora, no próximo minuto.

ExploradorSentado à sombra da sua árvore, depois da refeição matinal, no décimo

primeiro dia do descobrimento do seu lago e da sua cascata particular, ele observou que o volume de água que descia sobre a escada de lajes chatas, havia diminuído de maneira considerável. Restava apenas um fio de água escorregando entre as lajes, descendo para o lago. “Claro, há pelo menos três dias e três noites não chovia uma única gota e o volume de água descendente agora evidente, era diretamente relacionado com o volume das chuvas”, pensou. Animou-se, então, a subir pelos largos degraus, nas partes secas das lajes, evitando o limbo acumulado e voltando-se sempre para avaliar a perspectiva do lago desde o alto.

Naquela hora, no fim da manhã, havia poucos mosquitos que ressurgiriam no lusco-fusco do cair da tarde. Ele escalava os degraus irregulares de lajes chatas, lentamente, atento a eventuais serpentes e escorpiões, negros e vermelhos, moradores habituais dos terrenos rochosos. Escalava descalço, uma vez que as suas chinelas, além de serem escorregadias, deveriam ser poupadas para as trilhas na mata. Enfim, alcançou a parte mais alta da escadaria de lajes

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que terminava em uma grande pedra, semicoberta de vegetação. Toda a água que alimentava a cascata saía da larga e baixa fenda na sua base, provavelmente a saída de um rio subterrâneo nutrido pelas chuvas, filtrada através dos poros do terreno pedregoso, o que a transformava em pura água de fonte mineral. Depois de avaliar que não dispunha de meios para escalar a grande pedra, resolveu descer de novo os degraus por onde subira.

Se estivesse calçado com suas botas impermeáveis, ousaria agora subir até o alto da pedra, contornando sua borda revestida de mata baixa e densa. Assim, teria tido uma visão mais abrangente do local, pensou. Mas tivera que abandonar essas botas na draga, ao escapar do fogo das armas disparadas pelos seus ex-sócios. No meio daquela lembrança, soprou um suspiro de ódio sólido, consolidado, como são os sentimentos dos que sofreram injustiças descabidas. Porém, afastando do pensamento o objeto de sua vingança implacável com um meneio de cabeça, iniciou a descida para o seu lago.

Do alto pôde ver claramente que a ação da água, martelando por séculos as faces das lajes, de diferentes tamanhos e formas, havia desgastado o meio delas, transformando-as em bacias côncavas onde ficavam depositadas grandes quantidades de areia fina e clara. Descer pisando a areia depositada em cada laje daria mais firmeza e apoio para voltar, raciocinou, esmagando com volúpia aquela areia fina e compacta, afundando seus pés a cada passo. Descobriu que em muitos momentos precisamos afundar os pés no chão, para termos mais firmeza em nossos passos. Depois, quando chegou à última laje, já na margem do lago, sentou-se colocando os pés na água límpida, para refrescar-se e lavar a areia seca e pegajosa que os envolvia até os tornozelos.

Boquiaberto, pasmo, inerte, viu o brilho amarelo da nuvem de pó de ouro misturado a areia clara, que soltava dos seus pés ainda inchados e mergulhava, rápida, refletindo a luz do sol na água: um átimo, um flash, um mergulho rápido das partículas douradas desaparecendo céleres por seu peso, em busca da escuridão das águas mais profundas do lago que era dele. Estático, permaneceu ausente, sem coragem de ordenar pensamento algum, sentindo as nuances de luz que a caída da tarde provocava na superfície do lago cristalino, perguntando-se se de fato o que vira não fora uma miragem provocada por seu estado de debilidade geral e o efeito dos raios solares na superfície imaculada da água, ou da brancura da areia, talvez. Mas o fato é que algo ocorrera ali. E a noite o encontrou assim. Ensimesmado.

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Prof issionalMentir que naquela noite ele desfrutou o sono dos justos seria uma

leviandade histórica, mas não foi uma noite agitada. Absolutamente.

Quando despertou do estado catatônico em que esta noite o surpreendera, ainda sentado naquela pedra sombreada da margem, nadara até a sua pedra central e a mansão que plantara lá, nadando com um braço levantado, mantendo a sua única roupa, sua calça preciosa, segurada no seu braço esticado para o alto, fora da água e seca, na curta travessia. Usando a roupa como toalha, secou-se e acomodou-se nu em sua cama de folhas, enrolado nelas, deitado de lado, quieto, dentro da sua cabana. Olhando para o nada, sem querer pensar nas implicações e consequências do que vira. Exercitando a sua disciplina, subjugava sua companheira de noite, a adrenalina, que o envolvia em ondas por todo o corpo. “Como a febre da malária”, pensou.

Ele sabia por experiência própria que a febre do ouro era mais insidiosa e destrutiva que a outra, por isto mesmo mantinha a cabeça oca de pensamentos. Aguardava a nova aurora da sua vida. Seu controle foi tanto que adormeceu ao calor dos primeiros raios da manhã, despertando tarde e confuso.

Propositadamente, demorou-se no banho matinal em largos mergulhos na água fresca e desdobrou-se nos detalhes da captura e preparação dos peixinhos que compuseram o seu desjejum. Cada gesto seu era meticuloso e lento, como um bêbado tentando parecer sóbrio e displicentemente eficiente. Enfim, o show de autocontrole chegou ao ato final e ele encaminhou-se para a primeira laje da cascata, a mais próxima do lago, levando nas mãos uma folha firme e nova, que colheu entre as tantas que flutuavam à sua volta. A peça que escolhera tinha uns setenta centímetros de diâmetro e uma dobra natural na borda, de uns cinco centímetros de altura. Semi-enfiado em um dos bolsos, um pequeno pedaço de casca de árvore morta, seca e dura, que preparara instantes antes retirado de uma peça maior, lixando e polindo o novo instrumento contra a superfície porosa de uma pedra até transformá-lo em uma fina lâmina retangular, uma régua curta e biodegradável, como a classificaria um ecologista insuportável.

Pousou a folha na extremidade plana da laje, ao lado da depressão central cheia de areia limpa e clara e, com as mãos em concha, colocou muito delicadamente umas seis mancheias do material bem no centro do disco vegetal. Levando a borda da folha até o fio de água que corria ao lado, deixou uma quantidade do líquido inundar o montículo de areia, somente o necessário

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para fazer uma sopa grossa que começou a movimentar em círculos, com a régua improvisada, segurando a folha pelas bordas, transformando-a em uma rasa e larga tigela pela ação do peso da areia na água, a areia correndo para o centro da folha.

Havia improvisado uma bateia, a peça chave da história do homem em busca de metais e pedras preciosas, desde que o mundo conheceu estes estranhos bípedes eretos. Aquele espécime de homo-sapiens perdido na imensidão da mata infinda; solitário, agachado, imóvel e atento, repetia o movimento de rotação de todos os corpos do universo; um microcosmo das galáxias girando em torno dos seus núcleos, atraindo para o eixo todas as partículas muito densas, minúsculas estrelas de luz, e expulsando para os anéis periféricos todas as massas mais leves. Essa ação centrífuga jogaria qualquer material mais pesado que a fina areia para o centro do círculo, na parte mais profunda da tigela improvisada, e aí permaneceria quando a folha fosse pousada na laje.

Depois, a areia dos círculos exteriores foi cirurgicamente retirada da folha com o auxílio da lâmina de casca de árvore. E o processo recomeçou com a adição de um pouco mais de água para mover a areia restante. Este ritual voltou e voltou a repetir-se. Até que um montículo de material amarelo, dourado e brilhante, misturado ao pouco da areia que restara, raptasse a luz dos raios do sol e a mantivesse ali, no centro daquele círculo verde e fibroso. Trabalhara o tempo todo de cócoras, apoiado nas pernas. Quando finalmente descansou a folha na superfície plana, caiu para trás, mergulhando de costas na superfície imaculada do lago, submergindo em um relaxamento mudo e perplexo num deixar-se ficar, por muitos minutos, imóvel, olhando o azul do céu sem nuvens para poupar os olhos da luz intensamente dourada que capturara das entranhas da floresta.

Tivesse ele, naquele instante, umas poucas gotas de mercúrio, e aquele material amarelo agora misturado a areia e a outras impurezas se aglutinaria todo, formando uma só massa, pura e indivisível, separada totalmente de qualquer partícula estranha à sua divindade. “Claro que ele utilizaria este material com extremo rigor”, afirmou a si próprio, evitando qualquer contaminação do entorno e das águas do seu lago, primordial para a sua sobrevivência.

Não, ele não era um garimpeiro ignorante e primata. Ainda era aquele jovem que vinha sendo intensamente preparado desde a sua aprovação, aos quatorze anos de idade, para o Colégio Naval em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, onde completara o curso de quatro anos com louvor e fora promovido a cadete para ser um oficial e cavalheiro da Marinha de Guerra do Brasil, onde

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permanecera três anos completos até a ruptura brusca e sua baixa e afastamento inexplicáveis, o abandono das metas, o início dos ciclos e rupturas, a marca da sua existência e a vergonha de seu pai, velho capitão-de-mar-e-guerra, para quem a Marinha de Guerra era tudo na vida.

Mas a sua formação não havia sido em vão. Foram sete anos varando noites, preparando-se para as aulas de física, química e matemática, além de todas as matérias inerentes à sua vida de estudante e cadete. E também das aulas de mergulho e escafandrismo, sua paixão desde menino. Ser um oficial submarinista fora a sua meta.

De repente, um gesto brusco de cabeça e espantou os seus fantasmas, levantando-se e voltando a admirar o montículo dourado que insistia em permanecer ali, no centro daquela folha, testemunhando sua realidade física, desmentindo aquela sua impressão de delírio causado pela febre. Tocou com os dedos, desmanchando o minúsculo monte e os seus olhos de veterano se certificaram que aquilo era ouro aluvionar de altíssimo teor de pureza. Depois de queimadas todas as impurezas com um maçarico comum, ali haveria não menos que uma onça de ouro puro!

Voltou a olhar toda a cascata e seus degraus, mergulhado em profunda concentração, até encontrar uma explicação que o convencesse cientificamente. Ponderou que o ouro vinha com a água e a terra, desde o subsolo, aflorando através da fenda da pedra enorme que formara a cascata. Como o peso específico do ouro era muito maior que o da terra, a areia e o cascalho ejetado da fenda, este ficava depositado no fundo côncavo de cada uma das lajes, mesclado à areia fina, pesada, molhada.

Mas claro que esta grande quantidade era somente o depósito secundário, porque quando as chuvas volumosas ocorriam, com a frequência típica da Amazônia, a força das águas aumentadas na cascata certamente carregava todo o ouro depositado nas lajes, lançando o material aluvionar antes depositado pelo trabalho do fluxo normal, ao leito do lago, o principal depósito e destino final de todo o vômito do deus subterrâneo que habitava ali. Na vazante, a água mais débil voltava a encher as lajes com o material sólido e o peso do ouro o aprisionava nas concavidades de cada um dos degraus naturais. Assim, o ciclo se completaria com a temporada seguinte de tempestades.

Ele concluiu que deveria trabalhar dura e rapidamente na coleta do material depositado nos degraus da sua cascata, antes que uma grande chuva enchesse o manancial subterrâneo e o volume de água aumentado levasse todo

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o seu ouro para o fundo do lago, onde ele não teria meios técnicos de coleta. Ainda. Colheu uma nova folha na água, agora uma bem menor, uns trinta centímetros de diâmetro, e transferiu o ouro garimpado para ela, deixando-a ao lado, como depósito, no próprio degrau, o primeiro, o mais próximo do lago, aquele em que começara sua quase provável vida nova. Muitas outras mancheias de areia clara foram retiradas da depressão central da laje e os movimentos de bateia, como uma dança interminável, somente foram suspensos para a troca da folha; a primeira se rompera pela fadiga de suas fibras.

Os últimos raios da tarde ainda iluminavam um homem agachado, inteiramente absorto na sua tarefa, sem fome ou sede; somente alimentado por sua febre de ouro. Ao seu lado, um feixe de luz, emitido por uma pequena e nova folha de vitoria regia, completamente cheia de ouro, refletia os raios de sol. Mas ele não via este espetáculo, ocupado que estava em sua cata obstinada.

Decisões mercadológicasO sol já havia sumido atrás da floresta, mas um resto de claridade ainda

permitia ao homem sentado em frente a um prato redondo, de fibra natural, verde, transbordante de ouro sujo e misturado a um resto de areia e terra, contemplar o produto do seu trabalho. A verdade, nua e crua, é que ele não sabia o que fazer com todo aquele capital, colocado a seu crédito por aquela volúvel e desalmada madrasta, também conhecida como selva amazônica. Tentar remover da laje onde estava pousada, a folha certamente se romperia. Transladar parte da carga para outra folha talvez fosse apenas multiplicar a possibilidade de espalhar o ouro pelo solo barrento. Estava seguro que aquele material, depois de aglutinado com umas gotas de mercúrio e da queima de todas impurezas, com um pequeno maçarico, deixaria mais de dois quilogramas de ouro limpo. Depois, os testes diriam o teor de pureza que ele avaliava ser altíssimo. “Mais de noventa”, pensou. E isso em apenas uma tarde de trabalho, somente no primeiro degrau de laje. A areia que retirara da depressão desta única laje sequer exauriu uma parte mínima da cavidade. Ele calculava em centenas de quilos, apenas o ouro depositado nas lajes da cascata.

Não queria pensar no ouro aluvionar acumulado no lago. Procurava manter a sanidade, concentrando-se somente nas lajes. Era um método de disciplina. Claro que os capangueiros não pagavam pelo teor aferido do ouro. Ninguém nos acampamentos pagava pelo teor. Simplesmente roubavam descaradamente os garimpeiros não só no preço, mas no teor de pureza e no próprio peso.

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Mas esta canalha não compraria grama algum do seu ouro, porque ele já sabia o que fazer quando chegasse na dita civilização.

“Garimpar, encontrar a fortuna e não poder carregar”, ele pensou, o eterno trio de opções que atormentam o imaginário coletivo dos povos da floresta. Porque não encontrar ouro será sempre o menor dos problemas, uma vez que a fome, a frustração e a malária nem sempre matam imediatamente. Muitas vezes o maluco que exerce esta atividade tem chances de sobreviver e escapar. Mas aparecer com ouro, precisando vendê-lo nos barrancos para os capangueiros ou para os compradores dos acampamentos, às margens da corrutela, a troco de urgências tais como comida, medicamentos, ferramentas, aplicações intravenosas de soro na “farmácia” ou puta, sem alardear ao distinto público em geral e policiais ou autoridades em trânsito em particular onde encontrou ouro, será decretar a própria morte antes do alvorecer do dia subsequente. Ponto.

Foi tomado por estes pensamentos transcendentais que o ora potencial milionário senhor minerador resolveu encerrar as atividades profissionais do dia, cobrindo os seus ativos com uma folha maior sobre a abarrotada folhinha, prendendo com pedras todo o conjunto, ali mesmo, sobre o primeiro degrau, na esperança de uma noite sem ventanias ou tempestades.

- Foda-se o ouro, eu preciso descansar - bradou o empresário, nadando vagarosamente em busca do seu castelo, adiando qualquer decisão para o dia seguinte.

Dormiu sentindo muita fome, não parara para pescar durante toda a jornada e não sentia calor ou frio de maior monta, o que informava que o pior da última crise havia sido superado. E isto, aproveitar o momentâneo bom estado de saúde, foi determinante na decisão que tomou pela manhã, ainda deitado, ouvindo os sons do novo dia e o ronco surdo vindo do seu estômago. Quando mergulhou para o banho, demorou-se na água como uma despedida do seu lago. Despedida por pouco tempo, é verdade. Afinal, pretendia voltar muito em breve, para aproveitar a colheita da estiagem, antes que o período de tempestades e inundações tomasse conta do continente verde.

A pesca foi mais intensa e sugou as carnes frescas dos peixinhos em muito maior número que o cotidiano. Tomou o tempo necessário para escolher as mais tenras folhas, as mais novas e flexíveis, para empacotar todo o ouro garimpado. Todo o pacote foi amarrado com finos fios de cipós, uma e outra vez, até que se tornasse um volume rijo e monolítico. Usou mais cipós para

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improvisar uma espécie de mochila, podendo levar o volume às costas. Com outras folhas enroladas nas pernas e nos pés, e mais cipós, improvisou umas botas até a altura das pernas cortadas do seu jeans. As sandálias de tiras foram amarradas aos pés, passando a ser as solas reforçadas da bota idealizada. Mais folhas cortadas na medida, com as mãos, atadas ao seu torso, formaram um tipo de armadura reforçada com um emaranhado de cipós até a sua cintura.

Então, ajeitando o boné, contemplou longamente o seu império, conferiu a rota de volta para a humanidade na bússola do seu relógio e soprou todo o ar dos pulmões para espantar o pânico do desconhecido, agarrando um longo bastão, com as pontas agudas, limadas nas pedras. Uma lança de duas pontas, mais que um bastão, pensando melhor.

Mergulhou na mata sem olhar para trás.