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SEIS ANOS E MEIO ANTES Bogotá, Colômbia Meados de janeiro de 1989 J orge Salcedo acomodou sua bagagem de mão no compar- timento sobre as poltronas e tomou seu assento na janela do velho Boeing 727. Era um voo de manhã bem cedo, de Bogotá a Cali, na Colômbia, e ele fazia a viagem com relutância. Além do horário incon- veniente, o empresário de 41 anos não podia de modo algum se dar ao luxo de ficar longe do empreendimento mais recente que iniciara, uma pequena refinaria de reprocessamento de óleo de motor. O projeto já estava atrasado e ali estava ele num avião para uma viagem misteriosa. Não fazia a menor ideia de por que estava indo para Cali. Na verdade, até chegar ao Aeroporto Internacional El Dorado em Bogotá, uma hora antes, não sabia sequer seu destino. “Jorge, você precisa vir comigo. Algumas pessoas querem te conhe- cer”, afirmara seu amigo Mario ao telefone. Ele foi enfático. Disse a Jorge que fizesse uma pequena mala para apenas uma noite — depois desligou. Agora estavam juntos no avião.

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SEIS ANOS E MEIO ANTES

Bogotá, ColômbiaMeados de janeiro de 1989

Jorge Salcedo acomodou sua bagagem de mão no compar-timento sobre as poltronas e tomou seu assento na janela do velho

Boeing 727. Era um voo de manhã bem cedo, de Bogotá a Cali, na Colômbia, e ele fazia a viagem com relutância. Além do horário incon-veniente, o empresário de 41 anos não podia de modo algum se dar ao luxo de ficar longe do empreendimento mais recente que iniciara, uma pequena refinaria de reprocessamento de óleo de motor. O projeto já estava atrasado e ali estava ele num avião para uma viagem misteriosa. Não fazia a menor ideia de por que estava indo para Cali. Na verdade, até chegar ao Aeroporto Internacional El Dorado em Bogotá, uma hora antes, não sabia sequer seu destino.

“Jorge, você precisa vir comigo. Algumas pessoas querem te conhe-cer”, afirmara seu amigo Mario ao telefone. Ele foi enfático. Disse a Jorge que fizesse uma pequena mala para apenas uma noite — depois desligou. Agora estavam juntos no avião.

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“Que negócio é esse, Mario?” Jorge não conseguia esconder um tom de impaciência ao virar para o amigo sentado na poltrona do cor-redor. “O que a gente tá fazendo aqui?”

Como Jorge, Mario era um homem na casa dos 40 — em forma, com boa aparência, transmitindo autoconfiança. Mesmo em casuais roupas civis, parecia o militar prototípico, um personagem saído de al-gum filme. Mas o recém-reformado major Mario del Basto não tinha nada de fictício, era um soldado altamente condecorado.

“Depois que o avião subir”, assegurou ele a Jorge, “a gente conver-sa”. Acenou com a cabeça para alguns estranhos ainda de pé no corredor.

Jorge sempre confiara em Mario. Os dois haviam se tornado bons amigos desde que Jorge ingressara na reserva das forças armadas colom-bianas em 1984. Mario, um oficial do Exército regular, tornou-se co-mandante na unidade de reserva de Jorge, baseada em Cali. O major contava com Jorge como seu oficial no serviço de informações, graças a suas valiosas habilidades em armamentos, vigilância eletrônica, tecnolo-gias de rádio e fotografia.

A reserva do Exército era uma posição não remunerada, voluntá-ria, mas dava a Jorge um gostinho da carreira militar seguida por seu pai, o general Jorge Salcedo, que combatera pelas principais forças ar-madas colombianas e permanecera uma figura pública proeminente por quase 25 anos após se reformar, em meados da década de 1960.

Jorge via reflexos de seu pai no major Del Basto. Ambos eram ofi-ciais de carreira do Exército, usavam uniformes com o peito repleto de medalhas por bravura e tinham larga experiência no combate aos guer-rilheiros antigoverno.

Crescer como filho de general proporcionara a Jorge inúmeras vantagens, de segurança financeira e respeito social a oportunidades para viajar — incluindo uma estadia prolongada nos Estados Unidos quando seu pai estava servindo no Kansas. Também influenciou suas opiniões sobre grupos como as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), contra as quais seu pai travava uma guerra. Em casa e na reserva, Jorge via os guerrilheiros como terroristas incorrigíveis e parti-lhava das frustrações amplamente disseminadas entre os militares pelo

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fato de que as conversações de paz sancionadas pelo governo simples-mente permitiam aos guerrilheiros se reagruparem e se reabastecerem.

“Estamos tentando convencê-los a morrer”, queixava-se Mario para Jorge.

Mesmo para um herói militar como o major Del Basto, esse tipo de crítica contra a liderança civil era perigosa. Ele dividia suas opiniões somente com amigos íntimos, até que sua raiva não pôde mais ser con-tida. No fim de 1988, Del Basto rejeitou uma promoção a coronel e deixou o Exército. Ele detonou o presidente Virgilio Barco por tratar as FARC com indulgência. Depois desapareceu. Jorge ficou sem notícias de Mario por vários dias — até o misterioso telefonema que o levou a subir a bordo do voo da companhia aérea Avianca.

“Vamos nos encontrar com uns sujeitos de Cali”, começou Mario momentos depois da decolagem. Ele se curvava sobre a poltrona vazia entre ambos. O ruído dos motores protegia sua privacidade.

“Eu os conheço?”“É possível. São importantes homens de negócios locais.”Jorge havia morado em Cali na infância, quando o pai servia como

comandante de brigada por lá. Residiu ali outra vez no início dos anos 1980, quando se tornou sócio e engenheiro de uma fábrica de baterias nos arredores da terceira maior cidade colombiana.

“O que posso contar para você”, continuou Mario, “é que esse pessoal tem um problema sério com Pablo Escobar. Ele anda atacando seus negócios, ameaçando suas famílias — é uma situação terrível”.

A expressão de Jorge abruptamente endureceu, encarando o ami-go. “Não me diga. A gente está indo se encontrar com uns sujeitos do cartel de Cali?”

Em janeiro de 1989, todo mundo na Colômbia sabia a respeito da rixa cada vez mais violenta entre o cartel de Medellín de Escobar e seus rivais em Cali. Por quase um ano, as manchetes traziam sangrentos re-latos de bombas, gente desmembrada, tiroteios. O número de mortes entre testemunhas inocentes crescia. Como a maioria de seus amigos e conhecidos, Jorge temia e odiava Pablo Escobar. O chefão das drogas havia declarado guerra ao governo colombiano numa campanha para

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derrubar o acordo de extradição firmado por Bogotá com Washington. Os assassinos que ele contratava miravam altos funcionários do país, policiais locais, investigadores criminais e juízes. Uma equipe de merce-nários de Medellín chegou particularmente perto do alvo quando ma-tou um amigo de infância de Jorge, Rodrigo Lara Bonilla, um popular ministro da Justiça.

Jorge não sabia muita coisa a respeito dos rivais de Escobar em Cali, a não ser por reputação. Eles eram tidos como menos violentos — pelo menos, não matavam figuras públicas. Na verdade, os chefões do sul eram notoriamente conhecidos como “os Cavalheiros de Cali”. Entretanto, Jorge nunca considerou a possibilidade de escolher um dos dois lados. A guerra entre os cartéis não era assunto seu.

“Você devia ter me dito”, disse Jorge. “Talvez eu não quisesse co-nhecer esse pessoal.”

Mario deu de ombros. “Mas eles querem conhecer você.”Jorge abanou a cabeça, pasmo. Uma grande organização criminosa

queria se encontrar com ele. Por quê? Mario olhou em volta para verifi-car se não havia ninguém escutando e continuou.

Pouco após deixar o Exército, disse Mario, ele havia sido chamado a Cali e recebido uma proposta para trabalhar como gerente de seguran-ça para a família Rodríguez Orejuela. Jorge reconheceu o nome. Eram os donos de uma rede nacional de farmácias populares e também de um time de futebol, entre muitos outros negócios legítimos. Mas todo mundo sabia que eram também grandes traficantes. Como Escobar, negavam qualquer relação com o narcotráfico. Ao contrário de Escobar, mantinham o low profile.

“Esses caras estão temendo por suas vidas e por suas famílias”, disse Mario. “Pablo está tentando acabar com eles — homens, mulheres, crianças, todo mundo.” Ele disse que isso era particularmente injusto com o clã Rodríguez Orejuela, porque “não são pessoas violentas”. Ma-rio descreveu seu novo emprego como sendo o de manter mulheres e crianças inocentes a salvo dos assassinos contratados de Escobar.

“E eles acham que você também pode ajudar.”“Então não é o negócio do cartel de drogas”, disse Jorge, evidente-

mente aliviado.

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“Não, claro que não.” Mario baixou o tom de voz, de modo que até mesmo Jorge mal conseguia escutá-lo: “Mas não fale sobre cartéis. Eles odeiam essa palavra. Não existe cartel de Cali, está me entendendo? Eles são empresários.”

“Sei. Tudo bem, mas por que eu?”Jorge se considerava um empresário que reciclava óleo de motor e

um engenheiro que projetava sistemas de manufatura ou mexia com câmeras e rádios. Na reserva do Exército, ele se especializou em vigilân-cia e inteligência, uma área de interesse pessoal relativamente nova. Mesmo assim, não via qualquer motivo óbvio para ser chamado a Cali.

Perguntou mais uma vez: “Por quê?”Mario sorriu, recostou na poltrona e não respondeu.

Jorge não estava à procura de emprego nessa manhã de janeiro. Seus negócios iam a todo vapor em diversas frentes, entre as quais transa-ções potencialmente lucrativas com militares colombianos. Recentemen-te começara a representar certas companhias europeias interessadas em contratos de defesa para transportes na Colômbia e em outros países lati-no-americanos, clientes que conquistou ao longo do ano anterior, ao comparecer a uma exposição internacional de fornecedores militares em Londres. Ele voltou com amostras de equipamento de visão noturna, rá-dios criptografados e dispositivos de segurança que esperava vender para oficiais que intermediavam o negócio para o Exército em Bogotá.

Mas o que mais intrigou um dos generais em Bogotá foi o cartão de visitas de David Tomkins, um esperto negociante de armas que mo-rava nas imediações de Londres. Tomkins e um grupo de soldados refor-mados das forças especiais britânicas ofereceram-se para treinar o Exér-cito colombiano em técnicas de guerrilha. Jorge transmitiu a proposta deles.

“Esses instrutores também são mercenários?”, quis saber o general. Ele havia servido no passado como ajudante do pai de Jorge. Sabia que podia confiar no filho do velho general. “Seus contatos considerariam a possibilidade de uma missão clandestina contra as FARC?”

Em poucos dias, Jorge tomava um voo de volta para a Inglaterra. Lá, apresentou a Tomkins uma proposta de missão: atacar e destruir o

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quartel-general nas montanhas que era a vitrine das FARC, conhecido como Casa Verde. Os militares colombianos iriam apoiar o reide em segredo — fornecendo armas, explosivos e transporte —, mas isso tinha de ser feito de modo que o Exército pudesse negar envolvimento.

Os mercenários britânicos tinham ideologias flexíveis capazes de acomodar um amplo leque de clientes, mas tendiam a ser ferrenha-mente anticomunistas. Para selar o acordo, Jorge comentou sobre o antigo apoio que as FARC recebiam de Fidel Castro. Os ingleses disse-ram sim na mesma hora. Seu líder de campo era um escocês chamado Peter McAleese, um calejado ex-sargento e paraquedista da Special Air Service (SAS) que sobrevivera a um salto em que o paraquedas não abriu.

As FARC tinham muitos inimigos. Bandos guerrilheiros haviam atacado aldeias remotas, capturando fazendeiros, mineiros e rancheiros em troca de resgate, e tiveram o desplante de sequestrar até mesmo nar-cotraficantes. Quando o destacamento de comandos chegou à Colôm-bia, os soldados foram recebidos por uma improvável aliança de ricos pecuaristas, mineiros e chefes do cartel da cocaína de Medellín. A maior parte dos fundos para a missão vinha de José Rodríguez-Gacha, um importante proprietário de terras e parceiro de Pablo Escobar no narco-tráfico. Com oficiais militares fornecendo armas e munições, os britâni-cos eram bancados por um grupo faustiano — o que os colombianos chamavam de la mesa del Diablo. Com Jorge servindo de maître.

Durante o verão de 1988, Jorge — codinome Ricardo — foi a liga-ção secreta entre os comandos e seus patronos colombianos. Se a missão fosse revelada, o Exército negaria qualquer envolvimento. Jorge ficou responsável por manter os ingleses alimentados, abrigados, abastecidos e longe dos olhos do público. Um dos poucos com quem partilhava deta-lhes da operação era Mario del Basto. Jorge o levou para locais de treina-mento na selva e apresentou o major a Tomkins e McAleese.

Os preparativos para o ataque se arrastaram por meses. Os ingleses estavam prontos, mas os oficiais dissidentes hesitavam. Tinham medo de uma reação política e em todo caso estavam pouco dispostos a arris-car suas carreiras militares. No fim, o mesmo grupo de oficiais conspi-radores que havia elaborado o plano secreto acabou cancelando tudo.

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Mas os comandos foram embora satisfeitos e com o bolso cheio, graças aos ricos rancheiros e traficantes de Medellín, que pagaram os ingleses por treinar os maltrapilhos membros de seus exércitos particu-lares. Um chefão das drogas chegou até a enviar seu filho para treina-mento em combate na selva. Em novembro de 1988, Tomkins e McAleese foram os últimos a voltar para casa. Em uma reunião de des-pedida com Jorge, trocaram abraços e se disseram ansiosos para futuras missões. “Até a próxima”, disse McAleese.

Jorge retomou imediatamente os negócios que deixara de lado, mas agora — oito semanas depois — viajava para Cali, se perguntando por quê.

Um carro do hotel InterContinental os aguardava no Alfonso Bonilla Aragón, o aeroporto internacional de Cali. Luxuosas suítes de hotel também estavam à sua espera, abastecidas de frutas frescas e flores — cortesia da família Rodríguez Orejuela. Um recado informava-os de que o encontro daquela tarde com “os cavalheiros” estava atrasado. Um carro iria pegá-los por volta das dez da noite.

O horário não fora escolhido casualmente. No trânsito noturno, mais leve, qualquer um que tentasse seguir o veículo seria mais facil-mente notado. Jorge conhecia bem a cidade e percebeu na mesma hora que de vez em quando faziam meia-volta e andavam em círculos para ter certeza de não haver ninguém em sua cola. Jorge sentiu uma primei-ra pontada de ansiedade. Desde a infância, manifestara uma leve ten-dência a ataques de claustrofobia. No banco traseiro do carro do cartel de Cali, sentiu um aperto na garganta. Ele respirou fundo e limpou o suor das mãos em sua calça. Não queria que Mario notasse. Mas tam-bém não conseguia deixar de sentir que seu amigo o pusera numa posi-ção difícil.

O tortuoso percurso finalmente terminou em um conjunto resi-dencial rodeado de muros muito altos. O carro atravessou um grande portão que se fechou atrás deles. Jorge olhou ao redor conforme des-ciam. Viu falhas de segurança por toda parte. Dezenas de guarda-costas circulavam de um lado para outro, munidos de armas de fogo, mas pa-reciam mais concentrados em matar mosquitos. Ninguém inspecionou

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o carro. Curiosamente, para Jorge, todos os seguranças estavam além dos muros, não havia ninguém vigiando do lado de fora.

Mesmo no escuro, Jorge pôde perceber que o pátio de estaciona-mento estava lotado — na maior parte de sedãs Mazda e utilitários de pequeno porte —, com veículos parados em todos os ângulos. Um pu-nhado de carros menores efetivamente bloqueava todos os demais. Numa emergência, todo mundo, com poucas exceções, ficaria preso.

Um segurança do cartel os cumprimentou diante da porta da casa principal. José Estrada tinha cerca de 40 anos e era sargento reformado do Exército. Ele escoltou Jorge e Mario pela casa aparentemente vazia. O piso era de mármore branco polido. As paredes e o teto, brancos, haviam sido pintados recentemente. A mobília era de um luxuoso couro branco. Jorge não viu livros, brinquedos, crianças, nada do tumulto de uma vida fami-liar. Parecia um mostruário para designers de interiores ou um showroom de mobília. O estilo forneceu a Jorge a primeira amostra dos costumes e do gosto dos narcotraficantes: práticos, eficientes e pragmáticos.

Os visitantes foram conduzidos a um espaçoso escritório onde quatro homens aguardavam. Então aqueles eram os chefões do cartel de Cali, pensou Jorge — homens que podiam bancar Deus com as vidas humanas, determinar políticas de governo e influenciar a economia na-cional. Não eram particularmente imponentes, em termos físicos. Com quase um 1,90 metro, Jorge era o mais alto de todos os presentes. Con-forme Mario fazia as apresentações, Jorge cumprimentava cada chefe com um sorriso e um aperto de mão. Pareciam contentes de conhecê-lo — e completamente inofensivos, quase boa gente.

Pacho Herrera, de 37 anos, era o mais novo dos quatro. Aquela era uma de suas casas — sua paleta branca, suas salas estéreis. Tinha a apa-rência de um sujeito diretamente saído das páginas de uma revista de moda masculina. Pacho era homossexual e o único chefão solteiro. Para Jorge, ele exibia os modos solícitos, tranquilos, de um jovem padre. O que Jorge não sabia era que aquele bandido chefiava a ala mais brutal de carrascos do cartel.

Chepe Santacruz, de 45 anos, vestia calça jeans e camisa de algo-dão e tinha o aspecto de um fazendeiro ou rancheiro que acabava de sair de algum estábulo. Parecia um sujeito jovial e um pouco inseguro, até

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mesmo dado a alegres provocações. Mas às vezes levava sua veia brinca-lhona longe demais. Seus modos rudes ficavam patentes na vulgaridade de sua conversa. Chepe tinha orgulho de sua falta de sofisticação. Tam-bém gostava de brigas de rua. E nas brigas, assim como nas piadas de mau gosto, o excesso de sangue era sua marca registrada.

Gilberto Rodríguez Orejuela, de quase 50 anos, era quem falava, muitas vezes se revelando um encantador fascinante de anedotas, com o aspecto de um rechonchudo professor. Deixou Jorge imediatamente à vontade e parecia ser o anfitrião oficial, o responsável por conduzir a reu-nião. Pelo tempo que durou o encontro, Jorge reconheceu a autoridade tácita de Gilberto conforme os outros na sala prestavam deferência a ele.

O irmão mais novo de Gilberto, Miguel, de 45 anos, era um ho-mem de expressão austera que parecia permanentemente cansado. Qua-se não abria a boca, mas nada lhe escapava. Em sinal de respeito a seu lugar no cartel, era conhecido como Don Miguel, ou, simplesmente, El Señor. Chepe gostava de chamá-lo de Limón, por causa de seu ar azedo e sua disposição amarga. Ninguém mais ousava usar o apelido na frente do don. Miguel era o encarregado das operações diárias do cartel, o que fazia dele o chefe dos chefes. Mas ele e Gilberto eram parceiros próxi-mos, e todos os assuntos importantes do cartel passavam por esse brain trust* quádruplo que dava as boas-vindas a Jorge e Mario.

Os dois visitantes se acomodaram em poltronas de couro branco. Uma empregada vestindo uniforme branco ofereceu-lhes suco de fruta. Os Cavalheiros de Cali foram direto à agenda da noite. Primeiro, que-riam ajuda com a segurança pessoal.

Pablo é “um bandido… um criminoso… um louco”, declarou Chepe. Disse a Jorge que Escobar ameaçava matar todos que tivessem laços com os chefões de Cali — esposas, crianças, amigos. “Ninguém está a salvo”, disse Chepe.

“Certo, compreendo”, respondeu Jorge, pensando em seu antigo colega, o ministro da Justiça assassinado. “Escobar matou meu amigo Rodrigo Lara Bonilla, um homem muito bom.”

* Grupos de especialistas reunidos para dar consultoria, em geral a um governo, sem terem função oficial declarada. (N. da E.)

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Jorge sentiu uma onda de emoção. Raramente falara sobre o assas-sinato de seu amigo, mas ali, na companhia dos inimigos de Escobar, redescobrira sua raiva profundamente entranhada. Não viu necessidade de reprimi-la. Estava claro que todos ali compartilhavam de um pode-roso sentimento: o ódio.

Gilberto pareceu ao mesmo tempo surpreso e encantado ao ouvir sobre a perda pessoal de Jorge pelas mãos de Escobar. “Foi uma tragédia terrível”, disse, solidário. “E também uma estupidez. Às vezes, Pablo ignora seus melhores interesses. Ele declara guerra e espera fazer amigos. É um tolo. Um tolo perigoso.”

A conversa passou ao presente estado das defesas do cartel. Estrada, que encontraram na porta, tinha seus homens dando plena proteção aos traficantes. O outro chefe de segurança era um oficial reformado do Exército colombiano, a quem se referiam, com um tom de impaciência na voz, como “major Gómez”. Claramente seu desempenho não estava à altura do que queriam. Sua rede de inteligência era deplorável. Não tinha agressividade. O voto de desconfiança era unânime, e sua ausência nessa noite dizia tudo. Jorge ainda não tinha muita certeza sobre o que exata-mente os senhores da droga de Cali queriam dele até que…

“Queremos Pablo Escobar morto”, disse Miguel.“E queremos que você e seus comandos britânicos acabem com

ele”, acrescentou Gilberto.Jorge olhou ao redor. Todos esperavam sua resposta. Mario obvia-

mente lhes contara sobre seus contatos secretos com os britânicos. Ago-ra Jorge compreendia por que havia sido chamado a Cali. Não o inco-modava que o segredo houvesse vazado. Sentiu-se mais lisonjeado do que alarmado.

Até esse momento, nunca passara pela cabeça de Jorge vingar a mor-te do amigo. O cumprimento da lei era dever da polícia e dos tribunais. De um jeito trágico, os funcionários do governo que tentaram acusar Es-cobar de modo formal terminaram todos mortos. O caso permanecia ofi-cialmente em aberto. Se o convite de Gilberto pegava Jorge de surpresa, também o intrigava. Talvez a justiça pudesse ser feita, afinal de contas.

Jorge quase podia ouvir a trilha de seu filme favorito, Sete homens e um destino. A ideia de entrar a cavalo na cidade com um grupo de

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pistoleiros estrangeiros para acabar com o grande vilão Escobar suscita-va fantasias de heroísmo patriótico. Também mexia com as mesmas pai-xões que haviam motivado seu alistamento na reserva do Exército — um desejo de ação e aventura… tudo a serviço de Deus e do país. Ele queria ouvir mais sobre o plano dos chefões.

Já haviam selecionado um alvo: Hacienda Nápoles, a propriedade tropical de 30 mil hectares às margens do rio Magdalena. Era um país da fantasia com lagos artificiais para esportes aquáticos, piscinas imen-sas, aeroporto próprio e um zoológico com elefantes, leões, zebras e prolíferos hipopótamos. Era também a primeira opção de Escobar quando queria beber, comer e se divertir de verdade. Gilberto, que co-nhecera o lugar como convidado, disse que quando Pablo estava lá po-diam ter certeza de que estaria bêbado todos os dias.

Jorge perguntou sobre o transporte. Precisaria de helicópteros. “Você os terá”, disse Gilberto. Jorge perguntou sobre pilotos. “Temos pilotos que conhecem a área”, disse Gilberto. Jorge comentou a impor-tância de uma boa espionagem e equipamento de comunicação da mais alta qualidade — rádios confiáveis até mesmo em território remoto e acidentado. “Tudo o que for necessário será feito — e pode contar com a eterna gratidão de todos nesta sala.”

Era óbvio que o custo não era um fator a ser considerado. Jorge ficou chocado com o contraste: o Exército colombiano às vezes não ti-nha combustível para seus helicópteros, mas o cartel de Cali podia cus-tear uma invasão armada. E ele ficou chocado com outro contraste: com todo o dinheiro que tinham, os quatro bilionários na sala estavam aterrorizados com Pablo Escobar.

Foi um momento inebriante para Jorge. Ele se sentiu importante, escolhido a dedo para uma grande empreitada, uma grande aventura — e um serviço de utilidade pública. Também acolhia a oportunidade de se reunir outra vez com seus amigos britânicos dos comandos. Quanto às perspectivas de que quatro dos homens mais ricos do país pudessem estar em dívida com ele, isso não tinha preço. Contudo, ele hesitava.

Outro adiamento extenso podia pôr em risco seu novo negócio de reciclagem de óleo de motor. Ele esperava começar a construção de uma pequena refinaria no início do ano seguinte. E quanto a Lena Duque?

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Ela era o amor da vida de Jorge, sua companheira, e sua noiva. A missão Escobar podia adiar seu casamento.

Os chefões lhe asseguraram que preparar o ataque não levaria mais do que alguns meses. Depois que Escobar estivesse morto, Jorge voltaria a Bogotá “com mais dinheiro do que jamais precisará”, como disse Gilberto.

A reunião prosseguiu até bem depois da meia-noite. Jorge sabia que teria de lhes comunicar qual era sua decisão. Estaria trabalhando para grandes figuras criminosas — de volta à mesa do Diabo. Mas ra-ciocinou que seria por um breve período e que não se envolveria de modo algum com o tráfico de drogas. Considerou que talvez perdesse o negócio da refinaria, mas, em compensação, poderia conseguir novos e poderosos amigos e até oportunidades de negócios no futuro. No en-tanto, também pensava na família. Talvez trabalhar tão próximo dos chefões do cartel não valesse o risco à sua reputação. Foi então que Jorge considerou recusar a oferta.

Em vários momentos nessa noite, os chefes contaram-lhe histórias de suas vidas domésticas, das esposas e ex-esposas, das inúmeras famílias, e seus medos pela segurança de todos. A informação pessoal não era tão detalhada a ponto de que Jorge pudesse, digamos, rastrear a terceira mu-lher de Miguel, mas proporcionava uma atmosfera de confiança que, a essa altura, constituiria um constrangimento, se Jorge desse para trás.

Por um momento, passou por sua cabeça se desculpar e dizer: “Não, muito obrigado.” E depois? Ele passaria a ser visto como um risco à segurança? Havia, afinal de contas, trabalhado junto com parceiros de Escobar, patrocinadores do complô da Casa Verde dos britânicos. Sem dúvida os chefões de Cali sabiam sobre essa parte do projeto mercená-rio, também. Se ele dissesse não, será que iriam tomar como uma rejei-ção pessoal, ou pior, como sinal de lealdade aos chefões de Medellín? Jorge terminaria no porta-malas de um daqueles carros estacionados lá fora? Ele reprimiu um tremor.

Percebeu que estava com medo de dizer não. E graças a Deus por isso. Pois, lá no fundo, também sabia que de fato não queria recusar. Sentiu alívio quando anunciou: “Certo, eu topo.”