seicho no ie

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Universidade São Marcos GILBERTO BAPTISTA CASTILHO A SEICHO-NO-IE DO BRASIL NO CONTEXTO RELIGIOSO DAS NOVAS RELIGIÕES JAPONESAS: CULTIVO E DIVULGAÇÃO DA PALAVRA São Paulo 2006

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Universidade So Marcos

GILBERTO BAPTISTA CASTILHO

A SEICHO-NO-IE DO BRASIL NO CONTEXTO RELIGIOSO DAS NOVAS RELIGIES JAPONESAS: CULTIVO E DIVULGAO DA PALAVRA

So Paulo

2006

Universidade So Marcos

GILBERTO BAPTISTA CASTILHO

A SEICHO-NO-IE DO BRASIL NO CONTEXTO RELIGIOSO DAS NOVAS RELIGIES JAPONESAS: CULTIVO E DIVULGAO DA PALAVRA

Dissertao

apresentada

ao

Programa

Interdisciplinar em Educao, Comunicao e Administrao da Universidade So Marcos, sob a orientao da Prof. Dra. Marlia G. Ghizzi Godoy com vistas obteno do ttulo de Mestre.

So Paulo

2006

i

Dedicatria

Ao

meu

pai,

Darcy

Gilberto

Castilho

( in

memoriam), que foi mestre da vida e legou-me o amor aos livros.

ii

Agradecimentos

No primeiro contato com a Seicho-No-Ie muitos se admiram pelo valor dado ao agradecimento. A frase Muito obrigado toma um sentido profundo de reverncia a todas as coisas e pessoas. Dentro desse sentimento, desejo agradecer a todos que direta e indiretamente colaboraram para a execuo deste trabalho. Em primeiro lugar, agradeo a meu pai Darcy (in memoriam) e minha me, Alzira, os quais me proporcionaram a oportunidade de conhecer a Seicho-No-Ie, dando-me suporte emocional, e estendo famlia e, em especial, aos amigos que a vida me deu, meus filhos, Gabriel, Daniel e Eduardo pela compreenso da ausncia neste perodo de trabalho. Agradeo ao apoio e incentivo nesta empreitada ao amigo Marsil R. R. Marcondes. Na Seicho-No-Ie sou imensamente grato ao professor Junji Miyaura, que juntamente com Cntia Alencar foram pessoas primordiais no levantamento de informaes. Agradeo a Eduardo Nunes, Joo Vieira, Fbio Dummer e aos funcionrios da livraria da sede central da Seicho-No-Ie pela disponibilidade em fornecer dados para a pesquisa. Sou grato aos professores da Seicho-No-Ie,Osvaldo Murahara pelo incentivo inicial e Heitor Miyazaki pelas informaes sobre a histria deste movimento religioso no Brasil. Em relao s informaes sobre a pedagogia Seicho-No-Ie, devo agradecimento professora Belisa Ribeiro, da sede central, e professora Josefa Aparecida Nri Guido, a seu esposo e aos funcionrios da Escola Infantil Branca de Neve, de Indaiatuba. Agradeo ateno e colaborao dos adeptos, preletores e funcionrios da Regional Rio Bonito, onde foi nosso local de estudo. Ao final desejo expressar o meu profundo agradecimento minha orientadora, professora Marlia G.G. Godoy. Agradeo-lhe pela confiana, incentivo e exigncia para a superao de meus limites. Minha admirao e amizade ficam registradas no meu Muito obrigado.

iii

RESUMO

A partir do final do sculo 19 na abertura do Japo ao mundo e sua conseqente modernizao, e imediatamente aps a Segunda Guerra Mundial surgiram movimentos religiosos que os estudiosos denominaram de Novas Religies Japonesas. Esses movimentos religiosos, que resgatam antigas crenas e costumes japoneses dentro de seu cenrio religioso com manifestao de traos ocidentais e com carter universal, expandiram-se e chegaram ao Brasil onde se desenvolveram no somente na colnia japonesa, mas alguns, destacadamente, entre os no-descendentes japoneses. Esses movimentos trazem no s seus conceitos religiosos, como tambm a cultura e o modo de ser japons. Entre as Novas Religies Japonesas este trabalho faz uma reflexo mais aprofundada na Seicho-No-Ie (Lar do Progredir Infinito ou Casa da Plenitude). O poder da palavra torna-se para o fiel o meio de expresso de sua religiosidade e fonte de obteno de sua realizao. Leituras, prticas recitativas, meditao e discurso otimista formam o cenrio onde racionalidade e intuio convivem formando um panorama religioso no qual o adepto se insere e se realiza como ser consciente de sua perfeio divina ( Jisso). A SeichoNo-Ie marca suas particularidades por enfatizar a palavra que se expressa em suas prticas religiosas, num contexto pedaggico e na sua dinmica de difuso. Tornou-se nica entre as Novas Religies Japonesas em relao sua insero na mdia virtual, alm de a representao brasileira ter liderana destacada no movimento mundial desta religio. O estudo aqui apresentado reflete a produo da palavra, sua originalidade, e contextualizaes moderna e ps-moderna expressivas do movimento religioso.

Palavras-chave: Novas Religies Japonesas; Seicho-No-Ie; palavra; orientalizao; religio.

iv ABSTRACT

Since the end of the 19 century, in the opening of Japan to the world and its consequent modernization, and immediately after World War II, appeared religious movements that the scholars had called of New Japanese Religions. These religious movements, that rescue old beliefs and Japanese practoces inside their religious scenery with manifestation of occidental traces and universal character, had expanded and arrived in Brazil where they had not only developed in Japanese colony, but some, standing out, among the no descending Japanese. These movements bring not only their religious concepts, as well as the Japanese culture and the way of being. Among the New Japanese Religions this work makes a more deep reflection about Seicho-No-Ie (Home of the Infinite Progress or House of the Fullness). The power of the word becomes for the faithful the way of expression of his religiosity and source of attainment of his realization.. Readings, recitation practices, meditation and optimistical speech form the scenery where rationality and intuition coexist forming a religious handscape where the follower inserts himself and is realized as a conscientious being of his divine perfection (Jisso). The Seicho-No-Ie marks its particularities by emphasizing the word that is expressed in its religious practices, under a pedagogical context and in its dynamics of diffusion. In relation to its insertion in the virtual media it became unique among the New Japanese Religions, besides the Brazilian representation to have detached leadership in the world-wide movement of this religion. The study here presented reflects the word production, its originality and modern and postmoderns expressive contextualizations of the religious movement.

Keywords: Japanese New Religions; Seicho-No-Ie; word; orientalization; religion.

v LISTA DE TABELAS, QUADROS E FIGURAS

Tabela 1: Nmero de adeptos das NRJ no Censo 2000 ---------------------------------Tabela 2: Registros e participantes das Festividades do Santurio Hoozo ------------Tabela 3: Santurio Hoozo Registros obtidos e metas da Regional Rio Bonito ---Tabela 4: Mdia mensal de revistas adquiridas para doao na Regional Rio Bonito Tabela 5: Visitas ao site oficial da Seicho-No-Ie do Brasil -----------------------------Tabela 6: Preletores da Regional Rio Bonito ----------------------------------------------

37 97 97 117 143 161

Quadro 1: Movimentos transplantados do Japo e formao antes da 2 Guerra Mundial ----------------------------------------------------------------------------------------- 37 Quadro 2: Movimentos transplantados do Japo e formao depois da 2 Guerra Mundial ----------------------------------------------------------------------------------------- 38 Quadro 3: Movimentos que se formam no Brasil, no seguem uma filiao direta com o Japo e tm formao com razes japonesas ---------------------------------------- 38 Quadro 4: Associaes em portugus (divulgao) externas Regional Rio Bonito - 151 Quadro 5: Associaes em japons (divulgao) externas Regional Rio Bonito --- 151 Figura 1: Emblema da Seicho-No-Ie ------------------------------------------------------Figura 2: Site oficial da Seicho-No-Ie do Brasil -----------------------------------------Figura 3: Viso Administrativa da Sede Central -----------------------------------------Figura 4: Viso Administrativa e Doutrinria na Sede Central ------------------------Figura 5: Viso Administrativa e Doutrinria da Regional -----------------------------Figura 6: Estrutura e Divulgao pela Sede Central -------------------------------------128 141 153 153 154 155

vi SUMRIO

INTRODUO ----------------------------------------------------------------------------- 02 CAPTULO I AS NOVAS RELIGIES JAPONESAS---------------------------- 11 1. Influncias religiosas na cultura japonesa: panorama histrico ------------- 15 1.1 Xintosmo (Shint): a mais antiga religio ------------------------------ 15 1.2 Budismo (Bukky) --------------------------------------------------------- 19 1.3 Confucionismo (Juky) e Taosmo (Dky) ---------------------------- 20 1.4 Crenas Populares (Minkan-Shink) ------------------------------------- 23 1.5 Cristianismo (Kirisutoky) ------------------------------------------------ 24 2. Novas Religies Japonesas (Shin-Shky) ------------------------------------ 25 2.1 Origem das NRJ no Japo e suas propostas de transformao do mundo ----------------------------------------------------------------------------------------- 26 2.2 Expanso e caracterizao do contexto religioso das NRJ ------------ 29 2.3 Desenvolvimento das religies japonesas no Brasil-------------------- 33 2.4 As NRJ e o contexto religioso brasileiro -------------------------------- 41 3. Nova Era: a porta de entrada das religies orientais ------------------------- 44 3.1 Origens e influncias ------------------------------------------------------ 45 3.2 Vises da Nova Era -------------------------------------------------------- 48 3.3 Marcos da Nova Era no mundo------------------------------------------- 53 3.4 Nova Era no Brasil --------------------------------------------------------- 53 3.5 Nova Era e as Novas Religies Japonesas ------------------------------ 55 CAPTULO II ORIGENS, FUNDAMENTOS E EXPANSO DA SEICHO-NO-IE ---------------------------------------------------------------------------------------- 57 1. A vida de Masaharu Taniguchi: a revelao da palavra e a formao das bases religiosas -------------------------------------------------------------------------------- 58 2. Fundamentos da religiosidade -------------------------------------------------- 63 2.1 Bases hegelianas da doutrina --------------------------------------------- 64 2.2 O carter de unicidade e diversidade no pensamento religioso ------- 66 2.3 Erro e moralidade: a inexistncia do pecado ---------------------------- 68 2.4 Cosmoviso espiritualista ------------------------------------------------- 70 2.4.1 A estrutura do homem --------------------------------------------- 71 2.4.2 Entendendo o fenomno ------------------------------------------ 72 3. Subjetividade e valores religiosos ---------------------------------------------- 75 3.1 O sentido da gratido ------------------------------------------------------ 75 3.2 Meditao Shinsokan: o caminho para o despertar--------------------- 77 3.3 Culto aos antepassados: o elo eterno ------------------------------------- 81 4 Tendncias universalistas da Seicho-No-Ie ------------------------------------ 82 5. Desenvolvimento da Seicho-No-Ie no Brasil --------------------------------- 85 CAPTULO III A PALAVRA E SUA DIREO ESPIRITUAL --------------1. A palavra e o sagrado -----------------------------------------------------------1.1 A natureza sagrada do poder divino da palavra ------------------------1.2 A palavra e as cerimnias ------------------------------------------------88 90 92 95

vii 2. Leituras do caminho sagrado --------------------------------------------------3. A palavra e a educao ---------------------------------------------------------3.1 A palavra na educao infantil ------------------------------------------3.2 Aprimoramento espiritual num processo educacional ----------------CAPTULO IV O PATRIMNIO ESCRITO--------------------------------------1. Obras de Masaharu Taniguchi -------------------------------------------------1.1 Revista Seicho-No-Ie: o incio-------------------------------------------1.2 A Verdade da Vida: a obra fundamental -------------------------------2. Representaes e ordenaes das obras --------------------------------------2.1 No universo das revistas--------------------------------------------------2.1.1 Revista Fonte de Luz --------------------------------------------2.1.2 Revista Pomba Branca -------------------------------------------2.1.3 Revista Mundo Ideal ---------------------------------------------2.2 Imprensa -------------------------------------------------------------------2.3 Literatura segmentada ----------------------------------------------------2.1.1 Literatura infantil -------------------------------------------------2.1.2 Literatura jovem --------------------------------------------------2.1.3 Literatura feminina -----------------------------------------------2.1.4 Literatura sagrada ------------------------------------------------2.4 Temas doutrinrios --------------------------------------------------------2.5 Outros meios de divulgao ---------------------------------------------3. Expanso da palavra: A imagem pblica -------------------------------------3.1 O Emblema da Seicho-No-Ie --------------------------------------------3.2 Projeo pblica da marca religiosa ------------------------------------100 101 102 103 106 107 107 112 115 116 117 120 121 121 122 122 123 124 124 126 126 127 128 129

CAPTULO V A PALAVRA E O SEU PODER NA ATUALIDADE: NOVOS HORIZONTES ----------------------------------------------------------------------- 134 1. Espao da mdia oral------------------------------------------------------------- 135 2. A palavra e a televiso ---------------------------------------------------------- 136 3. A religio e a rede virtual ------------------------------------------------------- 139 4. Poder, organizao e difuso --------------------------------------------------- 143 4.1 Estrutura para divulgao ------------------------------------------------- 144 4.2 O humano na palavra: a preparao do recurso------------------------- 157 4.3 Preletor: a presena da pedagogia e do professor ---------------------- 158 CONCLUSO ------------------------------------------------------------------------------- 165 BIBLIOGRAFIA ---------------------------------------------------------------------------- 169 ANEXOS---------- ---------------------------------------------------------------------------I. Glossrio -------------------------------------------------------------------------II. Depoimentos --------------------------------------------------------------------III. Normas Fundamentais dos Praticantes da Seicho-No-Ie ------------------IV. Palavras de Sabedoria para a Educao das Crianas ---------------------V. Canes da Seicho-No-Ie------------------------------------------------------VI. Emissoras de TV que transmitem o programa da Seicho-No-Ie ---------176 176 188 191 192 193 210

viii VII. Locais de Reunies da Seicho-No-Ie---------------------------------------VIII. Coleo A Verdade da Vida (Seimei no Jisso) ---------------------------IX. Livros Infantis -----------------------------------------------------------------X. Sutra Sagrada Chuva Nctar da Verdade ---------------------------------XI. Fotos ----------------------------------------------------------------------------212 221 223 224 240

Academia Espriritual de Ibina

A SEICHO-NO-IE DO BRASIL NO CONTEXTO RELIGIOSO DAS NOVAS RELIGIES JAPONESAS: CULTIVO E DIVULGAO DA PALAVRA

Quadro do Jisso (Imagem Verdadeira)

Emblema da Seicho-No-Ie

No possvel conhecer a Verdade atravs da inteligncia cerebral. No algo que possamos obter buscando intelectualmente, pesquisando, discutindo, debatendo sobre isso. A Verdade no se encontra numa violenta tempestade nem numa chama que arde com furor. Ela se manifesta do fundo da alma, como um som sublime e suave, quase inaudvel, que sentimos na quietude, no leve sussurro da alma. Masaharu Taniguchi

2

INTRODUO

Este trabalho visa a refletir sobre um fenmeno que vem sendo evidenciado nos censos demogrficos. Integrando-se diversidade religiosa no Brasil, aparece um grupo de religies de origem japonesa que se expande cada vez mais. Este crescimento destaca-se a partir da dcada de 1970, e de forma marcante retrata a presena de adeptos nodescendentes de japoneses. Este grupo de religies japonesas foi denominado por estudiosos como Novas Religies Japonesas - NRJ. Esta dissertao est voltada a entender como as NRJ constroem um espao de aceitabilidade para pessoas no descendentes de japoneses na criao de um universo expressivo de comunicao. Este universo tem-se ampliado e atrado um pblico simpatizante cada vez maior em razo dos temas tratados. Deve-se considerar que neste cenrio encontram-se culturas contrastantes: religies de procedncia oriental japonesas e seu pblico que, via de regra, de egressos do catolicismo brasileiro. Em relao ao sincretismo, este trabalho baseia-se nas idias deste conceito conforme Ferretti. Para esse autor a noo de sincretismo apia-se num universo de significao e compreenso simblico com que o grupo social incorpora valores. Esta idia recusa as antigas vises de ver o sincretismo cultural um universo de natureza essencialista da cultura dando prioridade ao universo relacional em que os enfrentamentos sociais ocorrem. Este estudo no est voltado somente ao registro dos aspectos de religiosidade e das crenas que fazem sentido no contexto de valores religiosos de origem japonesa. Pretendese, igualmente, verificar como tais valores, oriundos do mundo cultural oriental, tornam-se um atrativo para apoiar uma adeso de religiosidade e permitem compreender a dinmica do sincretismo. As NRJ surgiram no Japo nos meados do sculo XIX, abrangendo a era Meiji (1868-1912) e, acentuando-se imediatamente aps a 2 Guerra Mundial. As NRJ, tambm denominadas Shin-Shky, expressam um movimento de renovao de valores de espiritualidade tradicional no momento de modernizao da nao japonesa.

3 O carter de modernizao que caracterizou a poca do surgimento destas novas religies indica uma tendncia para aspectos da vida material, das influncias tcnicas e do estilo de vida marcado pelo consumo e pelo individualismo, caractersticas de um processo de ocidentalizao peloqual o Japo passou ao abrir-se, em sua modernizao, cultura de outros pases do Ocidente. Nesta dinmica, a valorizao das crenas tradicionais e a edificao das NRJ ganharam um sentido tnico no Japo moderno. Neste trabalho, esse sentido tnico est voltado aos valores tradicionais, mas adaptados e no conflitantes com os modernos, e deste modo o sincretismo - que permeia suas doutrinas e uma posio conciliatria com as demais religies - permite a assimilao dos novos valores e a universalizao de seus ensinamentos. Assim, as NRJ expandem fronteiras para locais onde as razes culturais possam estimular novas adeses num processo de transnacionalizao da religio. Foi esta a demanda que ocorreu no Brasil. Para realizar este estudo escolheu-se, dentro desse grupo, uma das religies que tm grande aceitao entre os brasileiros: a Seicho-No-Ie. A Seicho-No-Ie foi fundada no Japo por Masaharu Taniguchi em 1929, tendo projeo social no lanamento, com recursos prprios, da revista Seicho-No-Ie, em 1 de maro de 1930, que comeou a ser redigida em 1929. Tornou-se marcante, na fora desse movimento religioso, o fato de seu fundador ter tido influncias religiosas e culturais tanto de seu pas como do Ocidente. A dinmica do movimento ficou seriamente comprometida, dando-lhe caractersticas filosficas e cientficas. O perfil do fundador ao permear seu movimento religioso, imprimiu-lhe uma postura religiosa educativa em que prticas espirituais convivem numa atmosfera de estudo atravs de uma gnose que procura conciliar razo e religio. As influncias sobre Masaharu Taniguchi, aliadas ao sincretismo prprio das NRJ, fizeram com que a Seicho-No-Ie abrangesse vrios assuntos dentro de uma linha doutrinria, sobretudo em seu expansionismo, mobilizado para esclarecer a essncia de todas as religies. Trata-se de uma viso universalista que acompanha as NRJ, em contraposio s religies tradicionais do Japo. Os estudiosos da Seicho-No-Ie tambm registram o carter fundamental desta religio, ao criar a viso do homem, filho de Deus. Nesta perspectiva h uma nfase na natureza divina do homem, visto como aquele que possui o poder de criar no mundo as

4 melhores condies de expresso do modelo divino, chamado de Jisso, no qual o homem tambm se insere. O significado do termo Jisso constitui na doutrina de Masaharu Taniguchi a sua premissa bsica. Ele consiste no aspecto real ou na imagem verdadeira, como hoje o termo conhecido, e expressa a verdadeira essncia do homem e de todos os seres. No Brasil o processo de expanso religiosa ocorreu inicialmente no interior da colnia japonesa, mas aps a dcada de 1950 difundiu-se entre os brasileiros. Teve sua maior divulgao a partir da dcada de 1970, quando aumentou a afluncia de descendentes no-japoneses. A origem universalista da Seicho-No-Ie e seu carter de essencialismo unindo as religies impem-se como o tema de ser essa religio uma filosofia, algo como seu fundador sempre a definiu. Os estudiosos consideram valiosa esta representao para elucida as questes a ser discutidas. Ao lado dessas tendncias notvel uma aproximao da Seicho-No-Ie com seus adeptos, como prtica e estudo. Tem-se mesmo a impresso de uma dimenso pedaggica que se insere na demanda religiosa. H uma programao intensa de seminrios, encontros, cursos e reunies de estudos. Estas formas de concentrao engendram muita ateno e exerccio intelectual dos membros que se vem irmanados no ambiente das leituras e de exerccios espirituais. O plo representado por uma forma especfica de educao complementa o carter pedaggico expresso. Destaca-se como representao da compreenso religiosa o uso da palavra. A principal obra literria de Masaharu Taniguchi, a coleo A Verdade da Vida (Seimei no Jisso), um caminho de transmutao e de venerao de idias para aqueles que se vem na prtica da palavra. Derivando do tema palavra-educao, revela-se a questo conhecida como orientalizao da cultura. O novo adepto, ao entrar em contato com uma NRJ, encontra mais que um universo religioso - toda uma cultura japonesa. Sua busca religiosa volta-se para o entendimento dos smbolos, valores e costumes de uma realidade diferente da sua. Assim se processa a orientalizao que perspassa costumes e valores e tem na palavra, atravs de discurso, participao e leitura, o seu grande foco de identificao e insero neste novo mundo cultural-religioso.

5 Nesta perspectiva de acolhimento do adepto, valores da cultura japonesa so cultivados nas NRJ, onde a Seicho-No-Ie se inclui. Sabe-se atravs de estudos realizados por Ruth Benedict e Leila Marrach Bastos de Albuquerque, que a cultura japonesa tem como centro: hierarquia, obedincia, valores morais, reverncia natureza, supremacia da mente sobre o corpo, apreo educao, capacidade de ao comunitria, de pacincia, constncia e dedicao ao trabalho. Diante desses valores, ao estudar essa religio pertinente abordar como esse universo envolve e se impe aos brasileiros, adeptos da cultura japonesa pela via religiosa descrita. A obra, elaborada durante a Segunda Guerra Mundial, segundo a viso culturalista de antropologia indica caminhos para esclarecimento do modo japons que absorvido e aceito por adeptos no-japoneses, os quais formam a maioria dos crentes. Ruth Benedict um importante referencial para situar o carter e o pensamento que so visveis no uso da palavra, como sero analisados. As Novas Religies Japonesas, ao fazerem parte do cenrio religioso e cultural do Brasil, trazem suas caractersticas que, ao se adaptarem ao novo meio, tornam-se atrativas aos brasileiros. A questo central deste trabalho entender como a Seicho-No-Ie e as NRJ criam um espao onde os no-descendentes de japoneses assimilam novos valores atravs do uso da palavra. Acredita-se que um processo educacional focado nas possibilidades e

aplicabilidades do uso da palavra possa situar os adeptos num universo religioso pretensamente oriental, conseguindo ser efetivo numa proposta de transformao da pessoa, preparando-a para uma cultura em que se insira mediante uma convico de verdade. A Seicho-No-Ie apesar do seu forte sincretismo, prprio das NRJ, e suas iniciativas de aproximao da cultura e religiosidade brasileiras, mantm intacta a base que sustenta sua identidade e doutrina, que o legado de Masaharu Taniguchi - seu patrimnio escrito no qual esto valores de sua origem japonesa. O sincretismo poderia, numa primeira anlise, ser um elemento que ameaasse as bases dessa doutrina, mas, ao contrrio, contribui adicionando elementos num corpo que se mantm ntegro. A obra literria de Masaharu Taniguchi, sacralizada junto aos fiis pela atribuio de seu carter revelador e divino, mantm a doutrina da Seicho-No-Ie permeada pela cultura e religiosidade do Japo, quando exprime elementos como a crena na perfeio divina

6 (Jisso), a purificao, a supremacia da mente sobre o corpo e o ambiente, o valor do sentimento de gratido, e principalmente, a atribuio de poder no uso da palavra. Neste contexto, o modelo de perfeio, em que a palavra se torna meio e fim a serem preservados, trata-se de um ncleo gerador da prpria autenticidade religiosa. As explicaes sobre a forma como as NRJ e a Seicho-No-Ie criam um espao cultural de religiosidade e envolvimento dos adeptos, podero ser mais bem compreendidas a partir de um local de referncia para estudo deste movimento religioso. Escolheu-se a Regional Rio Bonito, um dos lugares de reunies e eventos da Seicho-No-Ie situado na regio sul da cidade de So Paulo. O histrico deste local remonta a 22 de maio de 1981, quando os responsveis pelas reunies para descendentes de japoneses e no idioma japons da Regional Santo Amaro compraram o terreno onde hoje a sede. A comisso para a construo foi instalada em 9 de junho de 1984 e a inaugurao da regional aconteceu em janeiro de 1986. Desde essa poca esse local serviu de meio de congregao de fiis e simpatizantes da Seicho-No-Ie, entre descendentes e no-descendentes de japoneses. As dinmicas prprias e conjuntas destes dois grupos - com reunies, seminrios, cursos, campanhas de divulgao na regio, festividades e atendimento individual aos que procuravam ajuda para soluo de seus problemas - permitiu a conquista de adeptos e o fortalecimento desse centro para a difuso desse movimento religioso. Durante dois anos o autor desta pesquisa observou sistematicamente as prticas religiosas empregadas nesse local. Sabedor de que os eventos desenvolvidos valorizam o idioma e representaes prprias do meio originrio japons e que foi preciso criar adequaes para o novo pblico, ele reconheceu que o trabalho ficou mais comprometido com a freqncia s reunies voltadas divulgao em portugus. Este estudo levou em conta, em primeiro lugar, uma pesquisa bibliogrfica sobre o tema, que contemplou trabalhos acadmicos e a literatura confessional. Quanto s religies japonesas, importante e esclarecedora a obra de Ronan Alves Pereira, que possui uma grande e conceituada produo sobre o assunto. Hiranclair Rosa Gonalves, em suas duas teses de mestrado defendidas na PUC, retrata dados fundamentais e esclarecedores sobre outras NRJ, a Messinica e a Perfect Liberty (PL). No tocante transmisso da cultura japonesa pelas religies e ao estudo do perfil do adepto, ser

7 utilizada a produo de Andra G. S. Tomita e Geraldo Jos de Paiva. O professor Koichi Mori e seus estudos tambm so fontes importantes para o estudo proposto. Em relao cultura japonesa, para entendimento da viso nipnica do mundo destacam-se: Hitoshi Oshima, que abordou o pensamento japons; Edmond Rochedieu, com sua obra sobre o xintosmo, e Ruth Benedict, com seu estudo sobre os padres da cultura japonesa. No estudo acadmico sobre a Seicho-No-Ie existem poucos trabalhos desenvolvidos. No Brasil s foram encontradas trs dissertaes de mestrado, sendo que a pioneira foi a de Takashi Mayeama, em 1967, abordando o imigrante japons com suas dificuldades de adaptao e a religio dentro da colnia. Atravs da sociologia da religio o autor classificou a Seicho-No-Ie e mostrou-a como um movimento religioso que preserva o patrimnio tnico-cultural, alm de abordar a tenso entre derrotistas e vitoristas sobr e a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial. A segunda dissertao foi a da prof Leila Marrach Basto de Albuquerque que, ao dar continuidade ao trabalho de Mayeama, abordou a viso dessa religio na sociedade brasileira em Seicho-No-Ie: um estudo da sua penetrao entre os brasileiros. At o momento desta pesquisa, dela o nico livro acadmico sobre esse movimento religioso: Seicho -No-Ie do Brasil: agradecimento, obedincia e salvao. A terceira dissertao de Edilia Mota Diniz, que trata da relao de poder existente na Seicho-No-Ie do Brasil em Carisma e poder no discurso religioso: um estudo do legado de Masaharu Taniguchi A Seicho-No-Ie no Brasil, onde analisa o modelo de poder familiar, patriarcal, carismtico e burocrtico que tem, fundamentalmente, no discurso e na retrica, os meios de reproduo e perpetuao do legado do fundador desse movimento religioso. Em temas relativos religiosidade ressaltou-se um autor destacado e que constar deste estudo: Mircea Eliade e, em especial ao sincretismo religioso, baseou-se nas obras de Srgio F. Ferretti e Roberto Da Matta. Em seguida foram coletadas informaes estatsticas e de produo variada concernentes ao tema em diversas fontes, tais como: peridicos, colees, publicao de censos e sites na Internet. Teve-se que recorrer Superintendncia de Comunicao da sede central da Seicho-No-Ie para a obteno dos dados relativos insero religiosa na mdia.

8 Esta pesquisa conseguiu informaes sobre a atuao desse movimento religioso no rdio, televiso e Internet. Como resultado elaborou-se um captulo relativo mdia. A terceira abordagem adotada foi o estudo dos livros da Seicho-No-Ie. Atualmente a produo em lngua portuguesa est em torno de 200 itens, que em sua maioria so do fundador Masaharu Taniguchi. Existe uma diversificao tanto na segmentao de pblico quanto de temas abordados. A importncia dada a essa obra literria, dentro do contexto da doutrina e na dinmica da insero do adepto a esse meio religioso, constitui por si motivo de anlise. A quarta iniciativa indica uma observao participante. Trata-se do estudo das atividades e dinmicas no local citado como referncia, a Regional Rio Bonito, na periferia, da zona sul de So Paulo, com uma populao, em sua maioria, proveniente da classe mdia. chamada de Regional na ordenao por responder diretamente organizao central, a matriz; e tem como objetivo, alm da difuso da doutrina, incentivar a criao e manuteno de locais de divulgao denominados associaes, dando-lhes todo o apoio organizacional e doutrinrio. Tal estrutura est implcita numa hierarquia complexa que completa a estrutura organizacional deste movimento. Esse local se destaca pela intensa rotina de trabalhos religiosos compreendida por pautas de reunies, cursos e discusses de obras. Realizaram-se entrevistas com membros e seguidores desta religio no lugar de pesquisa acima citado, com o objetivo de entender como os adeptos constroem os significados da religiosidade. Nesta abordagem metodolgica devem-se mencionar as experincias da vida pessoal do pesquisador. Desde a adolescncia na dcada de 1970, na zona leste, periferia de So Paulo, ele via seus pais com os demais vizinhos se dirigirem s reunies da Seicho-NoIe, que comeava a ter uma expanso significativa na sociedade brasileira. As experincias e os novos valores difundidos nesses encontros reverberavam em suas mentes, e assim eles compartilhavam e aprendiam sobre a palavra tendo presente um universo de valores que se configuravam em suas experincias. A participao do pesquisador nos cursos, seminrios, cerimnias e festividades constituiu experincias significativas que serviram de referencial para este trabalho. A aprendizagem e convvio disciplinado nos encontros tornaram rumos de uma reflexo contnua que agora pode ser traduzida em termos desta pesquisa.

9 Diante destas questes, deu-se um rumo ao contedo dos captulos a seguir. No captulo I As Novas Religies Japonesas, o objeto de estudo constituiu nessas religies em que se insere a Seicho-No-Ie. Procurou-se abordar, dentro do histrico e caractersticas que lhe so inerentes, os elementos facilitadores da insero das religies deste grupo que tiveram sucesso na sua expanso em pases ocidentais. Simultaneamente abordagem sobre as Novas Religies Japonesas procurou-se mostrar a cultura e o pensamento japoneses que permeiam toda a manifestao religiosa deste povo, e assim fornecer subsdios necessrios compreenso da Seicho-No-Ie e sua atuao. Fixou-se a ateno no panorama brasileiro e em suas particularidades, que foram e ainda so facilitadoras deste fenmeno religioso. Destaca-se tambm a compreenso da Nova Era, um movimento que comeou na dcada de 1960 e facilitou o movimento de orientalizao. No captulo II Origens, expanso e fundamentos da Seicho-No-Ie, teve-se como finalidade caracterizar o objeto deste estudo, a Seicho-No-Ie: um movimento religioso japons derivado da religio Oomoto. Neste sentido, pretendeu-se ordenar o histrico, o desenvolvimento, e posteriormente a difuso de ensinamentos no Brasil, em particular aos no-descendentes de japoneses. Foram vistos os pontos principais de sua doutrina, e dentro deles, aqueles que facilitam seu entendimento e aceitao pelos brasileiros, assim como mostrar os pontos relativos religiosidade e cultura japonesas. No captulo III A palavra e a sua direo espiritual, examinou-se a importncia da palavra na doutrina da Seicho-No-Ie, e o uso da palavra como objeto de poder transcendental e doutrinrio. Abordaram-se as suas prticas espirituais e a importncia que d educao, evidenciada na pedagogia de Masaharu Taniguchi. A partir do uso da palavra pretendeu-se exibir a ordenao de um universo de valores que se tornou central diante de uma projeo desta religio. No captulo IV O Patrimnio Escrito, enfatizou-se a produo escrita da SeichoNo-Ie e a imagem pblica por ela produzida. Mostrou-se como as obras literrias tornamse o foco principal de difuso e prticas espirituais, com destaque para as de Masaharu Taniguchi que, com sua formao e influncias recebidas, imprimiu como uma caracterstica principal a sua posio pedaggica ao movimento. Destacou-se a segmentao de pblico existente nas NRJ, presente nas publicaes da Seicho-No-Ie. O

10 carter sagrado atribudo obra de Masaharu Taniguchi dentro desse movimento religioso tornou-se um marco certo de reflexes. No captulo V A Palavra e o Poder na Atualidade: Novos Horizontes - o ltimo, a ateno se voltou aos novos meios de comunicao que a Seicho-No-Ie passou a utilizar e que a deixaram mais visvel e difusa no cenrio religioso brasileiro, lembrando ser ela a nica em seu grupo, o das NRJ, a ter tal visibilidade. Nessa nova dinmica foram abordados os efeitos das novas mdias em sua estratgia de divulgao e aspectos doutrinrios, j que uma religio e sociedade esto sempre num processo dinmico de mtua influncia. Diante dessas consideraes, esta dissertao pde-se refletir sobre o espao de valores culturais orientais introduzidos na cultura brasileira. Eles definem um pblico moldado por uma das NRJ que conseguiram mobilizar um espao de reflexo da palavra, que ficou expresso para os adeptos como uma filosofia. A projeo da palavra como marca da identidade coletiva e expresso da religiosidade foi um meio de esse movimento inserir-se na atualidade. Seguindo sua prpria gnese, a Seicho-No-Ie foi recriada para compreender a essncia humana inserindo-a como reflexo para seus adeptos. Esta reflexo tomou o rumo de uma considerao filosfica, pois os fiis constantemente retratam-se como filiados a uma filosofia de vida.

11 CAPTULO I - AS NOVAS RELIGIES JAPONESAS

Neste captulo o intuito entender as Novas Religies Japonesas, e para tanto h a necessidade de conhecer as principais tradies religiosas do Japo1, onde esse grupo se insere. Ao analisar as NRJ v-se que elas dentro das caractersticas da religiosidade nipnica, no foram contra nenhuma das religies tradicionais, estabelecendo um sincretismo prprio do carter religioso japons. Em relao ao sincretismo que existe de forma marcante neste grupo religioso, o entendimento deste fenmeno faz-se necessrio para uma anlise desses movimentos. O termo sincretismo surge para afirmar significados religiosos que so interpretados nos meios onde eles se manifestam. Ferretti faz um balano dos principais usos e sentidos desse termo. 2

Juno

= Unio

Confluncia Associao Fuso social Caldeamento Cruzamento Equivalncia Lado a lado Aproximao Concentrao Acomodao

Aglutinao Simbiose, Mescla (Mistura) (Juno) Hibridao (Juno) Correspondncia

Fuso Mistura

= Ligao = Amlgama

Paralelismo

= Semelhana

Justaposio Convergncia Adaptao

= Sobreposio = Reunio = Acordo

Contigidade (Juno) Confluncia Concordncia harmoniosa

Entende-se, como Ferretti, que nem todos os significados acima esto sempre presentes, mas necessrio identific-los em cada circunstncia que se expressa e, para

1 2

PEREIRA, Ronan Alves Possesso por Esprito e Inovao Cultural, pp. 23-28. FERRETTI, Srgio F. Repensando o Sincretismo: Estudo sobre a Casa das Minas, p. 90.

12 uma melhor anlise, o autor estabelece trs variantes 3 a partir de um caso hipottico de nosincretismo: 0 separao, no-sincretismo (hipottico); 1 mistura, juno, ou fuso; 2 paralelismo ou justaposio; 3 convergncia ou adaptao. Antes de mostrar as caractersticas principais das religies estabelecidas no Japo, importante iniciar este estudo sabendo, de acordo com Rochedieu, quais os fatores que exerceram papel preponderante no desenvolvimento das religies japonesas:a) a antiga cultura indgena do povo japons; b) o budismo, que, vindo da China, penetrou no Japo atravs da Coria, a partir do sculo VI d.C., e que era um budismo fortemente impregnado pela cultura chinesa; c) a cultura chinesa, em particular o confucionismo e o taosmo, que no s trouxeram ao Japo valores espirituais e artsticos incomparveis, como ainda modelaram sob muitos aspectos a alma japonesa. 4

Para contextualizar as NRJ no panorama religioso japons, dentro de um perodo que possa dar o entendimento necessrio, faz-se, com base em Rochedieu, um breve resumo sobre a histria do Japo desde a sua origem at imediatamente aps a 2 Guerra Mundial. Do Japo pouco se sabe antes dos sculos IV e V d.C. Nesta poca surgiu a escrita japonesa com os caracteres ideogrficos chineses. O documento escrito mais antigo da histria japonesa o Kojiki (Anais das Coisas Antigas), datado de 712 d.C., ainda na lngua turaniana, pertencente famlia lingstica japonesa. Na tradio oficial, o primeiro imperador foi Jimmu Tenn, no sculo VII a.C. Teria ele partido da ilha de Quixu e conseguido conquistar a plancie de Yamato e a zona central do Japo, realizando a unidade poltica e fundando o imprio japons em 660 a.C. Esta data comemorada como festa oficial, apesar de alguns historiadores discordarem desse fato, situando a fundao do Japo no sculo II a.C. ou no incio da Era Crist.

34

FERRETTI, S. F. Repensando o Sincretismo: Estudo sobre a Casa das Minas, p. 91. ROCHEDIEU, Edmond Xintosmo e Novas Religies do Japo, pp. 45-46.

13 Dados arqueolgicos comprovam achados que permitem remontar ao ano de 500 a.C., quando o pas estava ocupado pelos ainus, no norte da ilha de Hocaido, considerados um ramo da raa branca ou, mais provavelmente, que descendam do povo autctone do Japo. Os ainus atualmente encontram-se dispersos na ilha de Hocaido (Japo) e ilhas Curilhas e Sacalina (Rssia). Em documentos escritos existe a distino entre vrias pocas na histria do Japo. A primeira foi lendria e mtica e se encerrou com o aparecimento do primeiro imperador, Jimmu Tenn.Em seguida houve a instaurao do poder imperial, quando se fundou o antigo Japo tendo Nara como capital, em 710 a.C., com seu centro difusor, a provncia de Yamato. Neste perodo o regime social era patriarcal, existindo cls e possuindo cada um, o seu chefe e o seu antepassado comum, e estava incorporado a essa estrutura o kami (deus) do grupo. O cl correspondia forma da estrutura social que tambm ordenava seus prprios artfices e escravos. A importncia do cl era to relevante que, como exemplo, o primeiro imperador foi chefe de um desses grupos. A hereditariedade no era s reservada dinastia imperial, como tambm a esses cls. Desse modo, essas famlias tm importncia fundamental na compreenso da histria do Japo. Em relao ao perodo do antigo Japo interessante saber que os soberanos que sucederam a Jimmu Tenn, durante mil e duzentos anos se esforaram para consolidar sua obra de unificao do Japo. Existe um fato importantssimo ocorrido nesse perodo e marcante na histria do Japo: nos meados do sculo V, como resultado da disseminao da cultura chinesa no Japo foi adotada a escrita chinesa e deste modo, somente a partir dessa poca que o japons pde registrar em documentos a sua histria e o seu pensamento. vlido ressaltar que enquanto os ideogramas chineses por si expressam as idias, objetos e relaes, na adaptao lngua fontica japonesa a pronncia teve uma grande importncia. A partir da necessidade de se ter menos caracteres, mas indicando a pronncia que faz distinguir a idia ou objeto em questo, surgiram dois sistemas de escritas para o idioma japons. No perodo compreendido entre o sculo VI da Era Crist e o fim da 2 Guerra Mundial, tm-se de acordo com vasta documentao, seis perodos distintos na histria japonesa:

14 De 552 a 794 denominou-se perodo budista. O budismo entrou no Japo em 552, vindo da China pela Coria. O prncipe que favoreceu sua expanso, bem como a prpria cultura chinesa, foi Shotoku Taichu (595-621). Essa atitude refletiu na reforma de administrao e de instituies com base no modelo chins. Este perodo terminou no final do sculo VIII e no florescimento da primeira capital do pas, Nara. De 794 a 1615 houve o estabelecimento do xogunado. Aconteceu neste perodo a transferncia da capital para Quioto, e no decorrer do sculo IX e princpio do X houve um enfraquecimento da autoridade imperial em proveito das grandes famlias, sendo a Minamoto a que viria tomar o poder em 1815, inaugurando o regime dos xguns. De 1615 a 1868 estabeleceu-se a era Iedo. O xogunado, que se tornou hereditrio com a famlia Tokugawa, transformou Iedo, atual Tquio, em capital do pas. O pas enfrentava um regime feudal e adotou uma posio isolacionista cultural e comercial. Neste perodo, em 1853, o comodoro americano Perry foi autorizado a desembarcar e em 1859 foi assinado um tratado com os Estados Unidos. Em 1868 ocorreu a restaurao do poder imperial. Este perodo caracterizou-se pela recuperao do poder pelo imperador Mutsuhito, que adotou o nome de Meiji (governo iluminado). Aconteceu a transferncia da capital de Quioto para Tquio. Iniciou-se a modernizao do Japo e, conseqentemente, a sua abertura para as influncias externas. As eras Taix e Xwa. Com a morte do imperador Meiji em 1912, assumiu o poder o imperador Taix que faleceu em 1926, sendo seu sucessor o imperador Hiroito. Nesse perodo o Japo assumiu grande importncia no cenrio mundial, que se encerrou quando de seu envolvimento na 2 Guerra Mundial, aps sofrer com duas bombas atmicas a sua rendio. Em 3 de novembro de 1946 foi promulgada uma nova Constituio. O fato mais relevante nesta Carta Magna japonesa foi a instaurao do regime democrtico e a perda das prerrogativas imperiais pelo imperador, na poca, Hiroito. dentro deste contexto histrico que se pode situar os principais movimentos religiosos no Japo, os quais esto presentes nas razes das novas religies.

15 1. Influncias religiosas na cultura japonesa: panorama histrico

A religiosidade no Japo est presente em seus mitos de criao, na identidade de seu povo e na vida social desse povo. O cenrio religioso japons composto de diversas tradies religiosas, nativas e estrangeiras. Esses componentes formam um universo diversificado, ativo e contraditrio, que se recria e enriquece numa dinmica prpria.

1.1. Xintosmo (Shint): a mais antiga religio O xintosmo, conforme Ronan Alves Pereira, 5 a mais antiga tradio religiosa do Japo e considerada uma religio autctone e de origens obscuras. Na sua constituio pode-se dizer que possui elementos nativos (cultos de elementos da natureza, animismo) e de estrangeiros (budistas, taostas, confucionistas). Como religio tem suas cerimnias e seus cultos, mas diferentemente de outras no possui data de fundao, fundador, e nem um livro sagrado prprio. O termo Shint comeou a ser utilizado no Japo para distinguir crenas autctones perante o budismo e o confucionismo. Rochedieu elucida: O termo xint, a via dos deuses, adaptado do chins xin-tao, s tardiamente foi criado, no sculo XI, para distinguir, do budismo importado da China e da Coria, o conjunto dos cultos e crenas indgenas. Os prprios japoneses no deram grande uso ao termo e preferiram a expresso kami-no-michi, cujo significado idntico. 6

A criao do termo Shint, acima citado, um exemplo que mostra, como disse Hitoshi Oshima7, que o xintosmo como religio apareceu depois da introduo do budismo no Japo. O xintosmo pode-se apresentar sob vrios aspectos8:

5 6

PEREIRA, R. A. Possesso por Esprito e Inovao Cultural, pp. 23-24. ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, p. 55. 7 OSHIMA, H. O pensamento japons. 8 ROCHEDIEU, E. Op.cit., p. 55.

16 a) O xint do Estado ou oficial, Jinja-Xint, que compreende que os deuses, o

Japo, o povo e o imperador so parentes por terem antepassados comuns; b) O xint da Casa Imperial (Kxitsu-Xint), que tem nos cultos e cerimnias

celebradas pelo imperador o objetivo de este manter a harmonia com os deuses. c) O xint acadmico (Fukko-Xint) aquele pelo qual estudiosos procuram, por

pesquisas literrias ou filolgicas, o xintosmo puro livre de influncias externas. d) O xint das seitas (Kyha-Xint), que foi absorvido pelas novas religies em

1945, quando contava com 160 seitas. e) O xint popular (Minkan-Xint), que o mais espontneo e puro, com suas

crenas e prticas ligadas s divindades tutelares e domsticas.

Em termos histricos, as NRJ tiveram origem em meados do sculo XIX na era Meiji. Nesta era o governo adotou o xintosmo como religio oficial com o intuito de unificar Estado e Religio. Deste modo, o governo tentou reviver o culto do imperador, e ao mesmo tempo desenvolver um xintosmo nacionalista (Kokka Shint). O governo da era Meiji desejou separar o xintosmo do budismo, que foi a religio da era anterior, Tokugawa, mas esta separao no aconteceu de fato no meio do povo.9 As narrativas mticas da tradio xintosta foram registradas por escrito nos livros Kojiki (Anais das coisas antigas) em 712, e no Nihongi (Crnicas do Japo) em 720, as mais antigas fontes literrias. Na mitologia de Kojiki existem oitenta mil deuses num mundo complexo politesta, que ao mesmo tempo exibe um carter monotesta quando mostra que uma nica divindade pode se manifestar de vrias formas 10. A presena das entidades designadas kami, que alguns traduzem equivocadamente como deus, os japoneses entendem como espritos invisveis e poderosos de seres da natureza ou de pessoas falecidas para as quais se prestam reverncias, mas o sentido mais profundo o de expressar algo supremo, elevado 11.

9

PEREIRA, R. A. Possesso por Esprito e Inovao Cultural, pp. 45-46. OSHIMA, H. Op.cit., pp. 30-31. 11 ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, p. 63.10

17 O xintosmo expressa uma relao harmoniosa, de comunho com a natureza. Nessa viso, a natureza bela e contempl-la eleva a alma .12 Uma caracterstica considerada essencial no xintosmo a purificao. A purificao do corpo e da alma condio essencial para se entrar em contato com os kami, sendo o mais reverenciado, sem dvida alguma, Amaterasu, a deusa do Sol, antepassada da dinastia dos imperadores e fundadora mtica do Japo13. A purificao no xintosmo est totalmente vinculada sua mitologia, sendo associada prpria natureza de determinados deuses, como a lenda de Izanami e Izanagi, demiurgos femininos e masculinos, respectivamente. Atravs da mitologia da criao do mundo, segundo Kojiki, visto, no drama de Izanami e Izanagi, o destaque dado purificao. 14 De acordo com o Kojiki, o mundo em seus primrdios era semelhante ao mar e chamado de jindaishi (idade dos deuses). Pairavam sobre este mar trs divindades que nasceram ss e depois se ocultaram. Eram Takamimusubi, Kamimusubi e o iniciador da epopia da criao: Ame-no-minakunushi, tambm chamado de Kunitokotachi-no-mikoto ou Ushitora no Konjin. Naquele momento o mundo era um grande caos primordial sendo terra e cu unos. A terra, por sua vez, era fluida e os deuses ( kami) brotavam como plantas de seu solo, e aps vrios deles terem surgido, passando seis geraes, apareceu o casal Izanagi e Izanami. Izanagi representando o princpio masculino e Izanami, o feminino, sendo ambos, ao mesmo tempo, irmo e irm, marido e mulher. Estes deuses, aps terem consultado os demais receberam desses uma lana celeste, e ento a mergulharam no caos de mar que se agitava por baixo deles, e deste modo criaram o mundo representado pelas ilhas que constituem o arquiplago (referncia bvia ao Japo). Aps criar esse arquiplago, Izanami e Izanagi foram nele morar, e o casal l teve dez filhos - que so as divindades que regem a natureza. Entretanto, aconteceu uma tragdia quando Izanami deu luz o deus do Fogo: ela morreu queimada e foi para o mundo subterrneo dos mortos.15

Izanagi, furioso, cortou a cabea do deus do Fogo, de onde

12

Idem, p. 62. ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, p. 65. 14 GONALVES, Hiranclair R. O Fascnio do Johrei: um Estudo sobre a Religio Messinica no Brasil, pp. 39-40. 15 ROCHEDIEU, E. Op.cit., p.85.13

18 nasceram dezesseis divindades, e foi atrs de sua esposa para traz-la de volta, mas l chegando, chocado, viu Izanami com o corpo podre e totalmente infestado de vermes. Apesar disso ele a quis levar de volta, mas teve de fugir perseguido por ela e pelos espritos infernais. Izanagi, ao chegar terra, teve de se lavar para se purificar das impurezas relativas morte, e desse ritual de purificao nasceram outros deuses, novos kamis. Do seu olho esquerdo nasceu Amaterasu-o-Mikami (deusa do Sol); do seu olho direito, Tsukiyomino-Mikoto (deusa da Lua); do seu nariz, Susano-o-Mikoto (a tempestade), que recebeu o imprio do oceano. Alm disso, das manchas existentes em vrias partes do seu corpo nasceram muitos outros kamis (deuses). A prtica fundamental do xintosmo, a purificao, retrata-se na sua designao religio de purificao.16 A relao desta purificao com a conduta humana expressa-se no esforo do homem em manter um comportamento prximo ao dos deuses, e deste modo, obter ajuda e influncia destes e alcanar a felicidade.Permanecer no estado normal e normal significa neste caso o comportamento que deveramos ter, a norma que se impe a cada um representa o bem, enquanto afastar-se do estado normal significa fazer o mal. O profundo sentido da purificao xintosta , por conseguinte, o de reencontrar esse estado normal, indispensvel a quem quer prestar aos deuses um culto que eles aceitem. A purificao, desembaraando os fiis da influncia perniciosa dos espritos malignos que sem cessar labutam em volta do homem, torna-se a necessria preparao para todo o ato de adorao. 17

O xintosmo - com sua mitologia e seus inmeros deuses em manifestaes mltiplas de um nico deus, sua reverncia aos kamis, o culto natureza e a importncia dada purificao - traduz mais do que a religio para mostrar o fundamento do pensamento mtico japons. Trata-se de um pensamento em que a negao e a contradio no existem. Neste contexto ele est fundamentado em bases diferentes do pensamento dito ocidental. O tema foi objeto de estudo de Hitoshi Oshima em seu livro O Pensamento Japons:

16 17

ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, p. 93. Idem, p. 94.

19

Sabemos que a mentalidade mtica em geral no conhece a contradio nem a negao. uma mentalidade comparvel ao mundo inconsciente, no qual no h noo de tempo e no qual no existe o princpio da realidade. De modo que, se o pensamento japons em sua forma tradicional essencialmente mtico, no encontraremos nele um desenvolvimento dialtico, como ocorre no Ocidente. 18

1.2. Budismo (Bukky)

Aprender o caminho de Buda conhecer-se a si mesmo; conhecer-se a si mesmo esquecer-se de si mesmo; esquecer-se de si mesmo experimentar as leis; experimentar as leis deixar cair o corpo e a alma do eu e do outro. DOGUEN19

O budismo teve sua origem na ndia no sculo V a.C., nos ensinamentos de Sidarta Gautama. O budismo foi praticamente erradicado aps a invaso islmica na ndia, e a partir da se difundiu em outros pases atravs de duas correntes principais: a Mahyna (O Grande Veculo) e a Hinayna (O Pequeno Veculo), sendo a prime ira majoritria no Japo. O budismo no Japo inicialmente esteve restrito elite e foi um elemento de transmisso da cultura chinesa desde a sua entrada no sculo VI (538 ou 552) e em todo o perodo medieval. Ele foi gradualmente se disseminando entre as camadas populares. Na era Tokugawa (1600-1868) o budismo tornou-se religio oficial, tendo como objetivo do governo a sua utilizao como meio de unificao do pas, como tambm de controle social20. De acordo com Hiranclair Rosa Gonalves, o budismo definido como:

[...] uma religio que prope a salvao do ser humano de uma vida de sofrimentos, atravs da busca da sabedoria (dharma), cumprimento de preceitos ticos, recitao de sutras, mantras e meditao. Visa-se a atingir um estado de iluminao espiritual

OSHIMA, H. O pensamento japons, p. 18. Idem, p. 44. 20 PEREIRA, R. A. Possesso por Esprito e Inovao Cultural, p. 26.19

18

20no qual cessa todo o sofrimento, o nirvana. Um ensinamento importante tambm que se deve buscar o chamado caminho do meio, ou seja, procurar sempre o equilbrio e fugir dos extremos. 21

Para conseguirem manter-se no Japo, o budismo, o confucionismo e o taosmo tiveram de se misturar com o xintosmo e as crenas populares. Este processo de adaptao ao modo de ser japons sintetizado, como distingue Pereira22, nos movimentos sincrticos medievais, como o Ryby Shint (Xintosmo Dual), o Ichi-jitsu Shint (Xintosmo de Uma Realidade) e outros. Nesse processo ocorreu uma diviso quanto atuao no que se referia aos ritos de passagem. Ficaram geralmente, a cargo do xintosmo os nascimentos e casamentos, enquanto o budismo passou a atuar no culto aos antepassados e aos ritos fnebres, tanto que h um dito popular que diz: Todos os japoneses morrem como adeptos do budismo ou outro que mostra esta diviso de trabalho: o japons nasce xintosta e morre budista. 23 A mentalidade mtica japonesa de no-contradio faz com que o sincretismo em relao ao budismo e ao xintosmo tenha uma particularidade. Para Oshima24, sincretismo geralmente entendido como a fuso de elementos heterogneos de culturas, mas em relao ao budismo e ao xintosmo isso no aconteceu. Em vez disso houve uma justaposio (shugo) que se exemplifica na religiosidade do japons, o qual possui em seu lar dois oratrios um budista (Butsudan) e outro xintosta (Kamidana). Esta justaposio apia-se na teoria chamada Jonchi-suiyaku, que combina Buda com os deuses japoneses.

1.3. Confucionismo (Juky) e Taosmo (Dky)O Tao no age, E por esse no-agir tudo feito. Se reis e prncipes assim fizessem, Todas as coisas do mundo prosperariam por si mesmas

21 22

GONALVES, H.R., O Fascnio do Johrei: um Estudo sobre a Religio Messinica no Br asil, p. 45. PEREIRA, R. A. Possesso por Esprito e Inovao Cultural, p. 25. 23 MAEYAMA, Takashi. O Imigrante e a Religio: Estudo de uma Seita Religiosa Japonesa em So Paulo, p. 15. 24 OSHIMA, H. O pensamento japons, pp. 50-51.

21E se, mesmo assim, os homens tivessem desejos, Tao os satisfaria pela simplicidade Do seu ntimo ser. O nosso Eu no tem desejos. Onde no h desejos reina a paz, E onde h a paz, o Universo se regula por si mesmo. 25

O confucionismo e o taosmo so ensinamentos de origem chinesa que enfatizam a ordenao na sociedade e no Universo. Estes ensinamentos provavelmente tenham entrado no Japo na mesma poca do budismo. Ambos os ensinamentos no se estabeleceram com a posio de uma religio organizada como o budismo, mas tiveram um papel importante na formao dos valores morais e nas prticas religiosas. A vinda da cultura chinesa obrigou a um posicionamento das idias existentes no xintosmo, tendo o seu prprio termo, Shint, como exemplo, originado a partir deste confronto cultural. O xintosmo, por ser um movimento religioso autctone, teve, atravs do choque com outras religies e culturas, algumas influncias, e destas a que mais contribui para a sua formao terica foi o taosmo 26. Em trs pontos vem-se paralelos entre essas manifestaes religiosas. No taosmo existe o conceito do nada (mu), de onde tudo se originou. Esta idia sobre a gnese do mundo associa-se no xintosmo quilo que se expressa, em sua mitologia, da inexistncia de um criador do mundo. Em segundo lugar vse neste pensamento chins a importncia da atitude naturista, o aceite da natureza, atitude compartilhada pelo xintosmo. Por ltimo, tem-se uma semelhana formal entre a teoria do Ying-yang sobre os termos opostos que complementam a unidade, idia existente no pensamento japons e traduzido em sua mitologia, como assinala Rochedieu:No incio era o caos; depois deu-se a separao do cu. Ento apareceram cinco grandes deuses, seguindo-se o desenvolvimento de duas foras antagnicas, uma ativa e outra passiva. Depois sucedem-se as sete geraes divinas, compreendendo duas divindades isoladas e cinco casal divinos. Izanagui e Izanami, que constituem o ltimo desses

25 26

LAO-TSE, Tao Te King, p. 106. OSHIMA, H. O pensamento japons, p. 48.

22casais, sero os demiurgos do mundo terrestre, os seus criadores. Este casal representa certamente os dois princpios complementares, macho e fmea, que fundam a filosofia chinesa e explicam todas as transformaes subseqentes e o dinamismo do nosso mundo. 27

O confucionismo uma ideologia desenvolvida pelo filsofo Kng-Fu-Tzu (na forma latina, Confucius) (551-479 a.C.), que acreditava ter sido escolhido pelo Cu para revitalizar a moral e a cultura existentes. O confucionismo abrange uma srie de idias sobre filosofia e poltica, esta numa viso pragmtica, que influenciaram muito a China imperial. O interesse por Confcio e por questes religiosas e metafsicas era menor do que nos dois assuntos citados. O confucionismo adota alguns conceitos chineses, acrescentando os de Confcio. Dos conceitos chineses tem-se o tao, que se traduz pela harmonia que predomina no Universo e com a qual o homem deve tentar viver sintonizado j que dela faz parte. Neste contexto, Confcio via o homem como um ser bom intrinsecamente, tendo na ignorncia e na falta de conhecimento a raiz dos males. O confucionismo estrutura a sociedade atravs de cinco relaes: entre senhor e servo, entre pai e filho, entre mais velho e mais jovem, entre homem e mulher, e entre amigo e amigo. Os conceitos mais importantes e ideais para todos os homens, segundo Confcio, so: piedade filial, respeito e reverncia. 28 O confucionismo difundiu-se no Japo como uma filosofia de tica atravs da qual so enfatizadas as relaes humanas hierrquicas e a harmonia social. O confucionismo formou, juntamente com o zen-budismo, o Bushid, o cdigo de honra do guerreiro (samurai ou bushi). O taosmo baseia-se no livro Tao Te Ching que, dizem as lendas, foi escrito pelo filsofo Lao-Tse. Confcio utilizou este livro dando-lhe suas prprias interpretaes, como a via (tao), que ele via como a suprema ordem do Universo a ser seguida pelo homem. A diferena entre Confcio e Lao-Tse que este achava impossvel o entendimento direto e racional sobre o tao. As diferenas continuaram com Lao-Tse, voltado passividade, preferindo a ingenuidade e a simplicidade para o ser humano, e Confcio, que via na27 28

ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, pp. 84-85. GAARDER, Joasten O Livro das Religies, pp. 77-79.

23 educao do homem, obtendo conhecimentos, o meio para seu aprimoramento. Confcio acreditava que, com regras fixas na poltica, existiria o meio de se conseguir formar uma sociedade justa, o que discordava da posio de Lao-Tse, que acreditava que toda e qualquer administrao m 29.. Em termos de nfase, o confucionismo tem sua ateno voltada s vias (Tao) da ao social e da ordem poltica. O taosmo, por sua vez, enfatiza as vias da prtica mstica e ordem natural.

1.4. Crenas Populares (Minkan-Shink) Crenas populares, de acordo com Pereira 30, sempre foram caracterizadas por um conjunto complexo, diversificado e sincrtico de rituais e crenas. A princpio essas crenas por no terem uma estrutura organizada, ficaram merc das influncias das religies estabelecidas, mas muitas vezes tal relao se dava ao contrrio, isto , as religies tradicionais para se difundir nas camadas populares se serviam das crenas populares. Alm disso, idia aceita que as crenas populares tenham sido a fonte comum da maioria das Novas Religies Japonesas. Na lio de Rochedieu31, as crenas populares, na sua formao, tiveram suas razes na vida entre os camponeses do Japo. Na vida desses habitantes os objetos que tinham suas relaes com a aldeia, eram santificados e deificados. Um exemplo disso um edifcio chamado tesouro da aldeia que tem seu objetivo em seu nome. Este lugar, para os aldees, tornou-se o invlucro de uma divindade e, por sua vez, so sagrados os sabres e espelhos l existentes. Deste modo, a relao de uma casa com a vida da aldeia poderia santific-la e deific-la. O processo de santificao e depois de deificao se dava em muitas aldeias tanto para os objetos de uso pessoal como para aqueles coletivos, como anais locais, registros e livros de contas. Para esses objetos eram feitas oferendas em altares, venerando-os como a um kami. Nesse processo de adorao dos objetos de gerao em gerao, chegou-se at a

29 30

GAARDER, J. O Livro das Religies, pp. 80-81. PEREIRA, R. A. Possesso por Esprito e Inovao Cultural, p. 25. 31 ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, pp. 65-67.

24 perder o nome do deus ou deuses e o kami tornou-se o nome da aldeia. Alguns destes kami foram personalizados e outros objetos ficaram no nvel de adorao, e dentre estes podemse incluir elementos da natureza como montanhas, rios, fontes e cascatas, de grande importncia na vida dos aldees. Desde a era Meiji (1868-1912) as crenas populares no foram apoiadas, sendo por isto classificadas como supersticiosas, mormente nessa poca por no estarem sintonizadas com o xintosmo do Estado, que era o suporte ideolgico do governo e vigorou do final do sculo XIX at o fim da Segunda Guerra Mundial. Apesar do progresso tecnolgico, em vrios nveis da sociedade japonesa persistem essas crenas populares com prticas como adivinhao, astrologia e crenas como possesso por divindade ou animal, e outras mais. Dentre tais crenas aparece nas NRJ, como pano de fundo, o xamanismo a possesso de espritos e o controle da comunicao destes com este mundo.

1.5. Cristianismo (Kirisutoky)

As religies crists foram introduzidas no Japo em dois momentos. O primeiro foi o catolicismo no sculo XVI, com os missionrios jesutas, e posteriormente o protestantismo, na segunda metade do sculo XIX com os missionrios anglo-saxes. 32 A introduo oficial do cristianismo no Japo aconteceu em 1549 atravs do missionrio espanhol (So) Francisco Xavier, que servia na poca a Portugal. No primeiro sculo o proselitismo foi grande e, de acordo com Oshima, o motivo deveu-se crise que o pas estava passando, com inmeras guerras civis. Ao terminar as guerras civis e conseguir, em 1587, a unificao do pas, o general Toyotomi Jideyoshi proibiu as misses catlicas. Esta poltica de proibio foi seguida pelo seu sucessor, Tokugawa Ieyasu, acabando na batalha de Shimabara, com os ltimos catlicos japoneses. 33 O cristianismo foi proibido no perodo compreendido entre 1639 e final do sculo XIX pelas autoridades japonesas, porque o viam como um agente do imperialismo, alm de ser associado bruxaria pelo povo comum. Pelas vicissitudes histricas encontradas, o cristianismo no incio da dcada de 1990 restringia-se a 0,5 % da populao japonesa, o que

32 33

OSHIMA, H. O pensamento japons, p. 56. Idem, p. 55.

25 numa primeira anlise mostra a pouca presena desta religio no panorama religioso japons, mas, por outro lado, v-se em algumas das NRJ a abordagem da doutrina crist em seus ensinamentos como, por exemplo, a Seicho-No-Ie, indicando, deste modo, que existe uma influncia ou utilizao por algumas dessas religies que no pode ser desprezada no seu estudo, pois como se expressou Rochedieu em relao s novas religies japonesas: ( ... ) a Bblia crist torna-se com freqncia uma fonte de inspirao.34

2. Novas Religies Japonesas (Shin-Shky)

Pode-se classificar o xintosmo e o budismo como as religies tradicionais do Japo, enquanto as novas so as religies modernas. As primeiras man tm-se pela venerao do japons a tudo que antigo, so transmitidas quase somente de pais para filhos, perpetuando-se entre as mesmas famlias por sculos e sculos, em contraste com as novas religies que praticam intenso proselitismo e muitas vezes apresentam carter de religio universal. 35

Ao discorrer sobre as Novas Religies Japonesas, usa-se o conceito adotado por Ronan Alves Pereira36, de que o termo Novas Religies, shin-shky, refere-se aos movimentos religiosos surgidos a partir do incio do sculo XIX no Japo. Destacam-se cinco movimentos religiosos das NRJ, surgidos no sculo XX: a Seicho-No-Ie, a Perfect Liberty (PL), a Igreja Messinica Mundial, a Soka Gakai e a Arte Mahikari, presentes no Brasil e em outros pases, e que no ficaram restritas aos descendentes de japoneses37. Criadas em plena modernizao do Japo, elas se caracterizam por terem sabido incorporar elementos estrangeiros em suas doutrinas, o que no as restringiu herana cultural do Japo. O sincretismo religioso criado nas NRJ deriva do pensamento conjuntivo e nocontraditrio mencionado (xintosmo). Este modo de pensar caracteriza-se por uma postura relativista que aceita vrias concepes diferentes sem ter uma relao de negao ou

34 35

ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, p. 200. GONALVES, H. R. O Fascnio do Johrei: um Estudo sobre a Religio Messinica no Brasil, p. 48. 36 PEREIRA, R. A. Possesso por Esprito e Inovao Cultural, p. 35. 37 GONALVES, H. R. Op. cit, p. 49

26 confronto. Completa esse pensamento o seu carter aditivo, o que permite a combinao de diferentes manifestaes religiosas, caracterizando assim o seu sincretismo singular.

2.1 mundo

Origem das NRJ no Japo e suas propostas de transformao do

Na concepo de Rochedieu38, podem-se estabelecer trs perodos em relao ao surgimento e expanso das Novas Religies Japonesas. O primeiro vai de meados do sculo XIX, final da era Tokugawa ou Edo (16001868), 39 perodo feudal, anos dos xguns (lderes militares do Japo feudal), alm de toda a era Meiji (1868-1912), chegando a 1920, quando o Japo j era uma nao industrial e moderna: A era Meiji marca a recuperao do poder pelo imperador Mutsuhito, que, tomando o nome de Meiji (governo iluminado), transfere a capital (ento Quioto) para Tquio. o princpio da era moderna e o Japo abre-se s influncias exteriores. 40 Na era Meiji as novas religies japonesas foram reconhecidas oficialmente como Xint das Seitas, deixando uma poca, a Tokugawa, onde se proibia as novas seitas. Deste perodo importante destacar o surgimento de duas religies: a mais antiga, a Tenrikyo, e a Oomoto. O segundo perodo abrangeu o fim da 1 Guerra Mundial, 1918, e o final da 2 Guerra Mundial em 1945. Este perodo foi caracterizado como de opresso s novas seitas, tendo um cenrio caracterizado por uma grande depresso econmica e com movimentos militares totalitrios no Japo. Neste perodo havia vrias seitas com enorme aceitao popular, tendo algumas delas uma aproximao com camponeses e outras com a populao mais humilde das cidades, como a Oomoto que foi violentamente reprimida pelo governo. A Oomoto (A Grande Origem ou A Grande Fonte) foi fundada em 1892 por Nao Deguchi (1936-1918), sendo uma religio sincrtica com predominncia de elementos xintostas e com traos milenaristas, 41 e sofreu influncia, na sua formao, da Tenrikyo. Neste ponto interessante informar que da Oomoto surgiram outras seitas, e dentre elas

38 39

ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, pp. 191-192. PEREIRA, R. A. Possesso por Esprito e Inovao Cultural, p. 35. 40 ROCHEDIEU, Op. cit., p. 51. 41 PEREIRA, R. A. Op. cit., p. 155.

27 destaca-se a Mahikari, a Seicho-No-Ie e a Sekay Kyusei Kyo (Igreja Messinica Mundial) 42. Esta ltima foi fundada por Mokiti Okada em 4 de fevereiro de 1950. O terceiro perodo iniciou-se imediatamente aps a 2 Guerra Mundial, em 1945, quando havia um novo alento s novas religies, e uma expanso solidificada pela liberdade religiosa, estabelecida pela Constituio de 1946. Antes de 1946 a liberdade religiosa apesar de reconhecida desde 1889, era habilmente controlada pelo governo. Com direitos efetivamente garantidos na Constituio ps-guerra, as NRJ irromperam num processo de solidificao e expanso de suas influncias. Em relao aos perodos citados, pode-se dizer que as religies oficiais, o budismo na era Tokugawa e o xintosmo na era Meiji, foram perdendo sua capacidade vitalizadora, e deste modo deixaram de dar resposta s necessidades dos adeptos. Um exemplo desta perda foi o xint do Estado, que se tornou na era Meiji uma escola de patriotismo e um meio de venerar o imperador e heris nacionais; assim os fiis afastaram-se procurando uma religio que os atendesse em seus problemas e lhes desse esperana. Aps a Segunda Guerra Mundial, o xintosmo debilitado e o budismo com sua postura de encarar todo desejo como fonte de sofrimento no traziam conforto ao povo nipnico, derrotado e sofrido. Nesse cenrio, as novas religies com sua nfase em responder s necessidades do homem neste mundo e de valoriz-lo como criatura divina, tornaram-se, por si ss, um atrativo que as fortalecesse em sua expanso ps-guerra. As NRJ, com sua ascenso no cenrio religioso do Japo aps a 2 Guerra Mundial, e posteriormente com seu sucesso em outros pases, no invalidam nem mostram que as antigas crenas se extinguiram, pelo contrrio, como cita Anthony C. Wallace, as antigas religies mantm suas influncias atravs destes novos movimentos religiosos: As velhas religies no morrem; elas sobrevivem nas novas religies que as sucedem.43. Colaborando com a posio expressa por Wallace, entende-se interessante inserir neste estudo o conceito de renovao do mundo de Reader44, desenvolvido no trabalho de Ronan Alves Pereira Neste conceito os novos movimentos religiosos so entendidos como

42

GONALVES, H. R., O Fascnio do Johrei: um Estudo sobre a Religio Messinica no Brasil, p. 77. Apud, PEREIRA, R. A. O Budismo Leigo da Ska Gakkai no Brasil: da Revoluo Humana Utopia Mundial, p. 14. 44 Apud, PEREIRA, R. A. O Budismo Leigo da Ska Gakkai no Brasil: da Revoluo Humana Utopia Mundial, p. 18.43

28 recriadores de temas, crenas e mitologias existentes nas antigas crenas, inserindo-os numa nova dinmica que atrai e responde s expectativas e s necessidades do homem moderno, em particular o urbano. A idia de renovao de Wallace e a inspirao na religiosidade popular japonesa fez Pereira propor uma classificao importante como forma de entender as novas religies japonesas: a de perceber, como ele mesmo diz, movimentos messinicos, milenaristas e utpicos como movimentos de renovao do mundo ou complexo da renovao do mundo. Antes de expor o complexo da renovao do mundo e contextualizar a Seicho-No-Ie dentro desta classificao, faz-se necessrio expor os conceitos de messianismo, milenarismo e utopia que integram a classificao citada existente no referido trabalho. Messianismo, para Hans Kohn, definido como a crena religiosa na vinda de um redentor que acabar com a ordem presente das coisas tanto universalmente quanto para um nico grupo, e instituir uma nova ordem de justia e felicidade . 45 Milenarismo, de acordo com Yonina Talmon, usado para caracterizar movimentos religiosos que esperam uma salvao iminente, total, final e coletiva neste mundo. 46 Utopia, no dizer de Rosabeth M. Kanter, representa um ideal do bem, em contra ste com os males e imperfeies das sociedades existentes. 47 A partir dos conceitos apresentados, segue-se a idia de Pereira: complexo de renovao do mundo:

Concebo este complexo como sendo composto por movimentos que partem de uma avaliao negativa da ordem social vigente tida como catica, injusta, imperfeita e/ou impura para vislumbrar, tentar criar ou esperar a implantao (por agentes humanos ou sobrenaturais) de um ideal de perfeio neste ou em outro mundo imaginado, universalmente ou para um grupo restrito. Portanto, os movimentos de renovao do mundo podem ou no depender da figura de um messias ou de um profeta; podem conceber uma salvao neste ou em outro mundo, centrada nas necessidades bsicas

Apud PEREIRA, R. A. O Budismo Leigo da Ska Gakkai no Brasil: da Revoluo Humana Utopia Mundial, p. 23. 46 Idem, p.24. 47 Idem, p. 27.

45

29do homem (alimentao, sade, moradia, etc.) ou em valores tidos como superiores e espirituais (liberdade, justia, felicidade, pureza, etc.); podem pregar uma salvao universal ou restrita a um grupo de leitos; podem depender de agentes externos (seres divinos, um salvador, um heri, os antepassados, um exrcito, um rei, etc.) ou contar com os militantes do prprio movimento (que assumem coletivamente o papel de revolucionrios e vanguarda da sociedade perfeita) 48

2.2

Expanso e caracterizao do contexto religioso das NRJ

A caracterizao das NRJ se evidencia pelo fato de marcarem uma nova era: a de incluso na modernidade e a resposta a novas exigncias. Deste modo, elas rompem o quadro antigo das religies mais arcaicas que estavam submersas no tradicionalismo religioso. H um acordo entre estudiosos, como Ronan A. Pereira, Rochedieu, Oshima, Gonalves e Mayeama em compreender as NRJ seguindo tanto suas caractersticas como os seus contextos sociolgicos. Dentre as caractersticas fundamentais das NRJ, primeiro aborda-se o sincretismo. Esta questo est presente de forma muito antiga no budismo e no xintosmo, o que exemplifica este carter religioso japons. Nas novas religies elas trazem para si elementos de crenas populares, do cristianismo, e inclusive de cincias, a exemplo de conceitos de psicologia e psicanlise. Este sincretismo traduz um pensamento definido como Banky-Kiitsu (todas as religies so unas). Os japoneses, vistos atravs de sua histria, tm um gosto por aquilo que no tenha um carter dogmtico e possuem uma grande capacidade de adaptao; portanto, no de estranhar que eles faam suas devoes em templos budistas, xintostas ou cristos ou, como j abordado que possuam em seus lares dois oratrios, xintosta e budista, exemplo da justaposio. Este proceder tambm encontrado nas NRJ onde se poder ouvir em uma reunio ou cerimnia os nomes de Buda, Cristo e do fundador da seita.

48

PEREIRA, R. A. O Budismo Leigo da Ska Gakkai no Brasil : da Revoluo Humana Utopia Mundial, p. 31.

30 O processo de sincretismo ao ordenar-se nas razes culturais do Japo indica tendncias opostas e assinala trs direes, conforme o autor citado: 1) o enfrentamento: o budismo ante a mentalidade mtica; 2) o conflito ou a contradio: o budismo contra o xintosmo; 3) a incorporao: fazer do budismo e do xintosmo dois termos de oposio dentro do mesmo sistema. 49 O pensamento mtico permite, como disse Gonalves 50, compatibilizar conceitos metafsicos que outros sistemas de pensamento considerariam irreconciliveis. Desta forma o sincretismo japons ganha originalidade para criar um espao de coexistncia de diferentes religies. Nesta perspectiva do sincretismo, chama ateno o fato de as novas religies mais recentes, como a Seicho-No-Ie e a Igreja Messinica Mundial, terem surgido no sculo XX, poca em que a influncia ocidental j era grande no Japo. Este fato marcou estas religies no sentido de incorporarem elementos estrangeiros em suas doutrinas e ao se modelarem permitirem que uma influncia cultural japonesa pudesse ser entendida pelos ocidentais. Aps o sincretismo tem-se uma segunda caracterstica, a do xamanismo, que uma tradio ligada s primitivas religies japonesas. Os fundadores das novas religies so entendidos como salvadores da humanidade, representantes vivos de Deus e de suas mensagens divinas. Eles colocam-se como recebedores de revelaes das entidades divinas,e deste modo so providos de uma dimenso prpria do xamanismo: Na viso de Kokan Sasaki, o xam um especialista mgico-religioso que, por vontade, consegue comunicar-se com seres superiores num estado psicolgico anormal do tipo exttico para ajudar outras pessoas. 51 O xamanismo distingue-se da possesso por esprito. Dentro da crena religiosa japonesa, o homem tem uma ligao grande com o sobrenatural podendo se ligar a um kami (divindade, esprito ou ser extraordinrio), e no decorrer de sua vida chegar a se tornar um deles. A pessoa viva que possui um corpo, pode se relacionar com as entidades espirituais sendo possvel ser possuda de modo a ter ou no controle sobre tal influncia. Por esse assunto estar intimamente relacionado ao espiritismo, doutrina religiosa professada

OSHIMA, H. O pensamento japons, p. 52. GONALVES, H. R. O Fascnio do Johrei: um Estudo sobre a Religio Messinica no Brasil, p. 53. 51 PEREIRA, R. A. Possesso por Esprito e Inovao Cultural, p. 11.50

49

31 tambm no Brasil e que influenciou Masaharu Taniguchi. conveniente esclarecer que se entende possesso como o poder dos espritos sobre as pessoas; em relao mediunidade, o foco concentra-se na comunicao que se processa com o meio, e por fim, no xamanismo existe a comunicao controlada com essas entidades.Possesso por esprito, diz Firth, envolve fenmenos de comportamento anormal que so interpretados por outros membros da sociedade como evidncia de que um esprito est controlando as aes de uma pessoa e provavelmente habitando seu corpo. Na mediunidade espiritual a nfase est na comunicao. Finalmente, xamanismo se aplica queles fenmenos em que a pessoa, sendo mdium espiritual ou no, vista como tendo domnio sobre os espritos, exercendo comando sobre eles por meios socialmente reconhecidos. 52

Relacionado a esta questo e como tema comum s novas religies, o valor transcendental que elas destacam o culto aos antepassados. Conforme a crena Tama (alma) existente nas religies primitivas japonesas, as pessoas falecidas possuem o poder de influenciar positiva ou negativamente aqueles que aqui vivem. Doenas e problemas diversos, segundo essa crena, podem ocorrer devido influncia maligna dos antepassados falecidos, que estando em locais, ou camadas mais baixas espirituais e necessitando de um aprendizado para uma elevao e compreenso espirituais, enviam vibraes negativas aos seus descendentes provocando fatos infelizes. Atravs do culto aos antepassados, estes teriam melhor possibilidade de ascenso a mundos espirituais mais elevados, transformando as antes influncias perniciosas em benficas aos seus descendentes. Existe uma caracterstica sobre as NRJ que Rochedieu destaca em seu estudo53. Ele se refere nfase dada na cura pela f ao ressaltar o pensamento positivo que transcende a matria. Nesta caracterstica pode-se destacar duas abordagens relevantes. A primeira a viso de o homem possuir, em si, uma natureza boa, e o mal ser uma impureza, conceito proveniente do xintosmo. Com a orientao para a pessoa colaborar e esforar-se para mudar suas atitudes e, por sua vez, a religio dispor de cerimnias de purificao, o adepto pode chegar soluo de seus problemas de qualquer ordem. Sobre este carter de

52 53

Apud, PEREIRA, R. A. Possesso por Esprito e Inovao Cultural, p. 8. ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, pp. 209-223.

32 purificao, a presena de cerimnias xintostas d uma marca especial s novas religies. Como exemplo, cita-se a cerimnia Ooharai (Grande Purificao)54. Ela visa a limpar as manchas provenientes de males cometidos pela pessoa. O conceito de purificao insere-se para o adepto numa conduta humana correta de proceder para alcanar a felicidade atravs dos deuses ( kamis). Os kamis aos quais o homem procura ajuda na resoluo de seus problemas, no se predispem a compartilhar a companhia daqueles que possuem mculas impurezas, em seu esprito. As mculas geradas pelo homem podem at atrair a ira dos deuses, como a presena de espritos malignos, ocasionando, atravs do seu mau procedimento, a sua prpria infelicidade. Dentro da concepo de Deus, Rochedieu55 lembra, a maioria dessas NRJ no se preocupa em definir claramente seu objeto de adorao, convivendo simultaneamente com concepes politestas e monotestas. O objeto ou deus de adorao no colocado como nico e, por vezes, representa atravs deles outras divindades, o que possvel constatar no livro Kojiki. Na prtica, os adeptos adoram esse deus apresentado como o Deus nico. Este entendimento do divino atravs da unicidade e, ao mesmo tempo da multiplicidade, est inserido no j comentado pensamento mtico abordado na obra de Oshima 56, que acentua uma ordenao da contradio e da negao de forma coesa. Nas NRJ pode-se constatar que na atuao dos adeptos no existem ntidas divises entre sacerdotes e leigos, sendo incentivada a participao destes ltimos. H tambm o encorajamento da participao de mulheres. Entre muitas lderes, a bibliografia retrata Nao Deguchi e Miki Nakayama, fundadoras, respectivamente, da Oomoto e da Tenrikyo. Ao surgirem no perodo de modernizao do Japo, as NRJ incorporaram uma dimenso de organizao e racionalidade assumindo um carter empresarial. A organizao adota um processo administrativo moderno: a comunidade religiosa dirigida como uma empresa. Alm disso, a utilizao da mdia para divulgar sua doutrina tornouse um dado cada vez mais abrangente. 57

54 55

ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, pp. 209-223. Idem, p. 94. 56 OSHIMA, H. O pensamento japons. 57 MAEYAMA, T. O Imigrante e a Religio: Estudo de uma Seita Religiosa Japonesa em So Paulo, p. 40.

33 Um meio de crescimento e propagao da religio se faz atravs de atividades em pequenos grupos as quais contribuem para a formao de um vnculo entre os seguidores. Essas caractersticas so destacadas em considerao s propostas do catolicismo. As NRJ pem seu foco na felicidade neste mundo, esforando-se para dar uma soluo imediata aos problemas daqueles que as procuram no presente. As NRJ tomam um rumo de serem religies deste mundo e para este mundo.58 a fim de dar atendimento s necessidades daqueles que esto nestas religies h sempre um dirigente disponvel para orientao, numa abordagem individual, sendo um elemento atrativo para aqueles que se aproximam dessas religies. As NRJ destacam o esforo do adepto na mudana de comportamento com base em valores por elas difundidos. desejvel uma dedicao e mudana que se integram viso religiosa e se tornam meio e objetivo para a criao de soluo dos problemas apresentados pelos fiis. Enfocando-se no mais como vtima de uma circunstncia, o fiel encontra na doutrina exposta meios de sobrepujar suas dificuldades. dada ao adepto uma gnose a ser seguida, enfatizando sua fora de vontade e f, e um suporte do grupo religioso para que atinja seus objetivos.

2.3

Desenvolvimento das religies japonesas no Brasil

Em relao ao desenvolvimento das religies japonesas no Brasil, tm-se, de acordo com Koichi Mori59, quatro perodos. O primeiro abrangeu o incio da imigrao em 1908 e a dcada de 1920, e era denominado ausncia de religio. Nesta fase os japoneses eram colonos e a religio no foi ativa, o que se deveu a vrios fatores. Este perodo compreendeu um estado de crise na adaptao e integrao dos japoneses, adicionando a isto a dificuldade de se sustentarem. O Japo, por sua vez, tinha uma situao econmica precria, e assim no havia a possibilidade de serem enviados e sediados os religiosos. A vida religiosa tradicional dos japoneses compreendia o culto aos antepassados e s deidades da comunidade. Como o culto aos antepassados era de responsabilidade do primognito, e

58 59

ROCHEDIEU, E. Xintosmo e Novas Religies do Japo, p. 200. MORI, Koichi Vida religiosa dos japoneses e seus descendentes residentes no Brasil e religies de origem japonesa", pp. 559-601.

34 em sua maioria tinha ficado no Japo, isto aliado ao fato de que os imigrantes sonhavam em voltar ao pas de origem, esses cultos no aconteciam, e quando havia a sua necessidade devido a algum falecimento, a cerimnia se dava num processo de improvisao dos que ousavam fazer os rituais. O segundo perodo incorporou as dcadas de 1920 e 1930 e foi classificado como atividades religiosas na colnia. Nesta poca os japoneses passavam de colonos para arrendatrios, e seus planos incluam uma permanncia mais longa no pas. Os colonos que antes tinham a estratgia de um perodo de curta durao no trabalho temporrio mudavam para a de longa durao. A organizao em colnias aumentou, e a de Hirano, na regio noroeste de So Paulo, em 1930, comeou a ter reunio de palestra budista. Comearam a pregao e a instalao de seitas japonesas como a Butsuryushu, a Tenrikyo (Tenri-ky), a Oomoto (Omoto-ky), a Seicho-No-Ie (Seich-no-Ie). A Butsuryushu iniciou-se pela pregao de Tomojiro Ibaragi, imigrante que veio na primeira leva de imigrantes em 1908. Desconhecendo a existncia de Ibaragi, Yoneji Matsubara iniciou a divulgao em 1932 na Colnia Unio, em Lins. Em 1936, sabendo de Ibaragi, Matsubara construiu um templo em sua propriedade e solicitou a sua vinda. Esta seita possui templos nos Estados de So Paulo, Paran e Rio de Janeiro. Em 1988 contava com 32 templos no Brasil. A Tenrikyo teve sua divulgao iniciada quando da chegada em 1929 de quatro famlias de crentes que se estabeleceram na Colnia Tiet, situada na regio oeste do Estado de So Paulo. Posteriormente a sede foi transferida para Bauru. A organizao que controlava os seguidores e os templos foi implantada em 1941. Em 1955 foi instalado em Bauru o Centro Brasileiro da Tenrykyo. Em 1983 a seita contava com 56 templos e 243 locais de divulgao no Brasil. A Oomoto iniciou sua pregao em 1925 atravs de Tsuguo Ishido e seu cunhado Teiji Kondo em Araguari, no Tringulo Mineiro. Em 1931 Ishido mudou-se e iniciou a divulgao perto de Uberlndia, e com adeptos tanto brasileiros como japoneses, construiu o Templo do Amor a Deus. Por volta de 1930, Kondo comeou o trabalho de divulgao em So Paulo60.

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MAEYAMA, T. O Imigrante e a Religio: Estudo de uma Seita Religiosa Japonesa em So Paulo, p. 110.

35 A Seicho-No-Ie nos idos de 1930 tinha publicaes vindas do Japo para japoneses residentes nas colnias do Estado de So Paulo. A divulgao iniciou-se em 1934 com os irmos Daijiro e Miyoshi Matsuda na regio de Glia e Duartina, no Estado de So Paulo. Em 1953 foi autorizado seu funcionamento como entidade religiosa. uma das NRJ que mais se expandiram entre os no-descendentes de japoneses. Data desse perodo um primeiro convvio com o catolicismo: os japoneses o adotavam como forma de se integrarem ao meio brasileiro. Ainda nesse perodo houve intensificao da imigrao com subsdio do governo japons para os gastos com passagem. Apesar desta intensificao da fixao dos japoneses em colnias agrcolas, foi nessa poca que comeou a migrao para a cidade de So Paulo com o aparecimento de uma colnia na rea urbana. A aconteceram os primeiros trabalhos de missionrios de igrejas crists como tambm das religies de origem japonesa, como a Seicho-No-Ie e a Tenrykyo. O terceiro perodo abrangeu a metade da dcada de 1930 e o incio da dcada de 1950 e se tornou mais conhecido como hibernao das religies pelo fato de as religies japonesas, quando de suas manifestaes, terem sofrido restries e ameaas do governo brasileiro. A poltica nacionalista de Getlio Vargas, na metade da dcada de 1930, no via com bons olhos as colnias de estrangeiros, e depois com ecloso da 2 Guerra Mundial, toda manifestao da colnia nipnica foi muito cerceada. Aps a guerra, com a derrota do Japo, os imigrantes japoneses viram que definitivamente deveriam fazer sua vida no Brasil. O terceiro perodo tambm foi denominado xodo rural e migrao urbana, pois nele se processou a migrao urbana quando, por conta da boa conjuntura econmica da agricultura, muitos japoneses passaram de arrendatrios a agricultores independentes, e alguns se mudaram para as cidades, de preferncia capitais, como So Paulo, sendo a principal razo desse xodo a educao dos filhos. Tais situaes foram inserindo os japoneses nas cidades em uma nova estrutura que se formava na composio social brasileira: a classe mdia. A cidade de So Paulo a que teve um maior foco de migrao em virtude de as colnias japonesas se concentrarem no interior do Estado, graas sobretudo, lavoura do caf, onde a maioria desses imigrantes trabalhava, e que teve um alto desenvolvimento econmico naquela poca. Alm disso, esses japoneses

36 independentes enviavam os filhos para estudar nas cidades, onde havia bastante emprego, integrando-os a uma classe mdia urbana. Este perodo retratou uma ruptura com a ptria e uma expresso de novas dinmicas nele se inseriu. O quarto perodo iniciou-se a partir da dcada de 1950 e conhecido como ressurreio das religies japonesas e seu desenvolvimento posterior. Este o momento em que ocorreu a difuso das religies japonesas e a sua expanso nos centros urbanos. Esta expanso teve seu favorecimento pelas mudanas da sociedade brasileira, que se iniciaram na dcada de 1930 e se acentuaram no ps-guerra, havendo em seguida o prprio posicionamento das organizaes dessas religies em seu traba