segurança elétrica no limite

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Por Weruska Goeking Segurança elétrica no Problemas na instalação elétrica são a maior causa de incêndios não intencionais no Brasil. Saiba por que isso ainda é uma realidade, o que mudou desde os primeiros grandes desastres e entenda – com detalhes – o que aconteceu no maior incêndio da história do País Memória da eletricidade 60 O Setor Elétrico / Agosto de 2010

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Page 1: Segurança elétrica no limite

Por Weruska Goeking

Segurança elétrica no limite

Problemas na instalação elétrica são a maior causa de incêndios não intencionais no Brasil.

Saiba por que isso ainda é uma realidade, o que mudou desde os primeiros grandes

desastres e entenda – com detalhes – o que aconteceu no maior incêndio da história do País

Memória da eletricidade 60 O Setor Elétrico / Agosto de 2010

Page 2: Segurança elétrica no limite

Segurança elétrica no limite Quando pensamos nas atividades do Corpo

de Bombeiros a primeira imagem que nos vem à

cabeça é a de homens – conhecidos pela coragem

– combatendo grandes incêndios e salvando vidas.

Mas após a extinção das chamas e do socorro às

vítimas ficam as perguntas: Isso poderia ser evitado?

O que causou o fogo?

A resposta na maior parte dos casos é sim,

poderia ser evitado. Isso porque as principais causas,

além do incêndio criminoso, são brincadeiras

de criança, descuido na cozinha e ao fumar, e

problemas com a instalação elétrica. Este último

motivo foi o responsável pelos maiores incêndios

(em números de vítimas) já ocorridos no País, nos

edifícios Andraus e Joelma, em São Paulo (SP),

levando à morte de dezenas de pessoas.

Embora a maior parte dos incêndios dos últimos

anos não alcance tamanha gravidade, esse tipo de

acidente continua causando muitos danos físicos e

materiais, já que o número desse tipo de sinistro –

como é chamado por bombeiros e peritos – é alto.

Mais preocupante ainda é o fato de que instalações

e equipamentos elétricos são a segunda maior

causa de incêndios, somando 12,7% do total de

ocorrências nos últimos dez anos em São Paulo,

perdendo apenas para os incêndios intencionais

(criminosos), que correspondem a 56,1% do total.

De acordo com o Departamento de Operações

do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo,

foram 1.169 incêndios iniciados por fenômenos

termoelétricos (nomenclatura usadas por bombeiros

e peritos) em 2008. Dentre os principais problemas

em instalações elétricas que levaram à combustão

estão a ausência de infraestrutura de aterramento e,

em particular, do condutor de proteção (“fio terra”) e

sobrecargas nos circuitos elétricos.

Números compilados pela Associação Brasileira

de Conscientização para os Perigos da Eletricidade

(Abracopel), que tomam como base notícias

publicadas pela imprensa brasileira na internet,

indicam que o número de incêndios por problemas

elétricos tem aumentado a cada ano. Em 2007,

foram relatadas 182 ocorrências em todo o País,

enquanto em 2009 foram 261. Os dados mostram

que em dois anos houve um aumento de 43% no

número de casos divulgados pela imprensa.

Além dos prejuízos financeiros e humanos para

os indivíduos diretamente ligados ao acidente, toda

a população brasileira é atingida a cada incêndio,

independentemente da cidade ou Estado em que

ocorram, já que o tratamento das vítimas onera o

Sistema Único de Saúde (SUS). Para se ter ideia,

segundo o Ministério da Saúde, somente em 2009

foram gastos mais de R$ 18 milhões com internações

de 8.599 pessoas expostas à fumaça e às chamas.

61O Setor Elétrico / Agosto de 2010

Page 3: Segurança elétrica no limite

Memória da eletricidade 62 O Setor Elétrico / Agosto de 2010

Principais causas de incêndios por fenômenos termoelétricos em São Paulo

Principais problemas encontrados nas instalações elétricas

incêndios cousados por curto-circuito

Apesar de muitas pessoas ainda fi carem feridas

em incêndios, hoje esses acidentes geralmente não

alcançam as mesmas proporções de décadas atrás,

com o status de tragédia devido à quantidade

de mortes. Contudo, especialistas afi rmam que

a destruição cada vez menor ocasionada por

incêndios não é mérito somente da evolução

tecnológica e normativa das instalações elétricas.

Esse motivo, inclusive, teria menor infl uência em

relação aos estragos.

Pelo menos é isso que afi rma o pesquisador do

Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), Douglas

Messina, que considera a maior conscientização

dos riscos de incêndio e, principalmente, a melhor

preparação dos bombeiros (tanto em treinamento

quanto em equipamentos disponíveis) como

fundamental para que esses acidentes não se

transformem em tragédias. “Com a evolução da

construção hoje, você pode escapar de um incêndio

muito mais rápido, pois todo o sistema de alarme e

controle de incêndios melhorou muito”, concorda o

diretor executivo da Abracopel, Edson Martinho.

O ex-engenheiro da polícia técnica e atual

perito judicial, Shunji Nassuno, também acredita

que elementos como portas corta-fogo são

essenciais para evitar tragédias, mas que a atenção

às instalações elétricas ainda é a melhor maneira

para que os incêndios sejam efetivamente evitados.

Quando o enfoque são as instalações elétricas,

especialistas são praticamente unânimes ao afi rmar

que o problema não está na tecnologia disponível,

mas na execução dos projetos. Isso porque

acreditam que as normas compulsórias existentes

para equipamentos e as normas norteadoras das

instalações são sufi cientes para garantir uma

instalação segura. “Um projeto bem executado

elimina 90% dos problemas”, afi rma Nassuno.

Dados compilados pelo Corpo de Bombeiros de

São Paulo comprovam a opinião dos especialistas.

Segundo a corporação, apenas 3,8% dos casos de

incêndios motivados por fenômeno termoelétrico

tiveram início em componentes elétricos sem

certifi cação, enquanto todos os outros aconteceram

pela ausência de equipamentos de proteção ou

instalação inadequada dos produtos.

Mas, se nem mesmo a evolução tecnológica

e normativa foi capaz de diminuir sensivelmente

esses incêndios, a execução inadequada de

projetos estaria ligada à falta de profi ssionais

bem preparados? Segundo Edson Martinho, bons

profi ssionais não faltam no mercado. O problema

estaria na conscientização da população que ainda

não vê uma instalação projetada e executada

corretamente como um investimento, mas como um

gasto que pode ser dispensado.

Fonte: Departamento de Operações do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo (CBPMESP).

Fonte: Abracopel

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Memória da eletricidade 64 O Setor Elétrico / Agosto de 2010

O major do Corpo de Bombeiros de São

Paulo, Adilson Silva, acredita que uma melhoria

efetiva nas instalações só irá ocorrer com a

implementação de fiscalizações. “Em comparação

com a década de 1970 a situação melhorou

muito, pois há fiscalização das prefeituras

e de companhias seguradoras. Ao menos há

uma exigência documental, mas ainda não é

suficiente. São necessárias vistorias como as que

o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização

e Qualidade Industrial (Inmetro) faz com produtos

normatizados”, explica.

O major lembra que o número de

irregularidades encontrado nas instalações elétricas

é maior em residências e edificações menores.

“Quando você tem prédios maiores, pessoas mais

qualificadas estão envolvidas na execução do

projeto e a probabilidade de ele estar correto é

maior”, explica.

Mudanças nas instalações elétricas

Se hoje contamos com aparato normativo

e tecnológico para projetar instalações seguras,

devemos, em parte, aos conhecimentos adquiridos

com o estudo de diversos incêndios que

aconteceram há 30 anos ou mais.

Naquela época, os condutores antichamas

e com baixa emissão de fumaça que hoje

encontramos em qualquer revenda de material

elétrico sequer existiam. A fiação, por exemplo,

ainda era composta, em muito casos, por fios e

cabos de cobre cobertos por um tipo de tecido

resinado.

No lugar dos disjuntores usavam-se fusível tipo

rolha que eram instalados em quadros totalmente

inadequados, algo não aceitável nas normas de

hoje. Apesar disso, Douglas Messina, do IPT, afirma

que alguns prédios antigos da capital paulista ainda

possuem os mesmos equipamentos e instalações

da época em que foram construídos. Não é comum

a renovação total das instalações elétricas, dessa

forma, apenas a troca de algumas partes é feita

e somente quando ela apresenta algum defeito.

Outro problema das instalações antigas se deve ao

fato de que ela não foi dimensionada para atender

a demanda que o número de eletroeletrônicos

conectados atualmente exige.

Essas instalações deveriam ser modernizadas

com alguns equipamentos elétricos que se

desenvolveram desde a década de 1970, como os

fios e cabos não propagantes de chamas, com baixa

emissão de fumaça e isentos de halogênio, além

dos dispositivos de proteção, que têm o objetivo de

oferecer maior segurança aos equipamentos e às

pessoas, como o Dispositivo Diferencial Residual

(DR) de alta sensibilidade (para prevenção de

choques) e de baixa sensibilidade (para prevenção

de incêndios) e o Dispositivo de Proteção Contra

Surtos (DPS).

Messina conta que a forma de instalar os

equipamentos também sofreu alterações, com

destaque para a equipotencialização e todo o

sistema de aterramento. Outra mudança foi

comportamental, já que, com as tragédias, a

atenção dos profissionais do setor foi despertada,

levando-os a serem mais cuidadosos no

dimensionamento e na execução das instalações

conforme as normas vigentes, que também

sofreram muitas alterações desde então. Em 1970,

a norma de instalações elétricas era a NB3, criada

em 1940 e embrião daquela que conhecemos hoje

como ABNT NBR 5410 e que foi publicada em

1980. Esta norma já foi revisada diversas vezes e

está em sua sexta edição.

Os grandes incêndios ocorridos na cidade

de São Paulo, nos edifícios Andraus e Joelma,

serviram também para dar impulso às mudanças

nos códigos de obras do município. Na época, esse

documento foi alvo de diversas críticas, pois datava

de 1934 – quando ainda não havia muitos prédios

na cidade nem a mesma quantidade de aparelhos

eletroeletrônicos – e continuava em vigor sem

nenhuma alteração até então.

Outra transformação provocada pelos grandes

incêndios foi a instituição das normas municipais

de segurança contra incêndio. Com novo código

de obras e normas contra incêndios, o modelo

de fiscalização também mudou, contribuindo

para a qualidade das instalações aprovadas pelo

Corpo de Bombeiros e pelas prefeituras. Isso

porque antes do advento dessas regras, a vistoria

era feita apenas até a entrada de energia do

prédio. “Apenas se incendiasse a justiça mandava

periciar”, afirma Messina.

Com a existência de prédios com instalações

antigas em todas as grandes cidades e o alto

índice de irregularidades ainda encontrado nas

instalações recentes (veja fotos a seguir), fica

a dúvida: Podemos ser testemunhas de mais

incêndios com desfecho trágico?

De acordo com os especialistas ouvidos pela

reportagem (engenheiros eletricistas, bombeiros

e peritos), a chance de um incêndio com muitas

vítimas é mínima, devido à existência de normas

para saídas de emergência, extintores e portas

corta-fogo, à evolução dos equipamentos de

combate ao incêndio dos bombeiros e à maior

rapidez com que eles chegam ao local. Tudo isso

tem diminuído o número de vítimas fatais, mas o

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65O Setor Elétrico / Agosto de 2010

ideal seria evitar que os incêndios aconteçam e,

para isso, os especialistas contam que é preciso

haver maior conscientização e fiscalização das

instalações existentes.

Desvendando os motivos

Assim como ocorre com acidentes aéreos,

geralmente apenas um problema ou erro

dificilmente dá início a um incêndio. Em muitos

casos em que ficou comprovado que a razão do

incêndio foi algum fenômeno termoelétrico, apesar

de um elemento específico ter dado origem às

chamas, havia outras irregularidades na instalação

que colaboraram para o desfecho.

Quando ocorre um incêndio, a primeira ação

após a extinção das chamas – em alguns casos

ainda durante este trabalho – tem início com uma

pesquisa para descobrir as causas do acidente.

No caso do Rio de Janeiro e de São Paulo, assim

que chega ao local do incêndio um bombeiro

é designado para colher informações junto às

testemunhas para saber, entre outras informações,

onde as chamas tiveram início. “As testemunhas

são muito importantes para saber onde começou o

incêndio”, conta o major.

Em São Paulo, todos os bombeiros estão aptos

a apurar essas informações e podem indicar a causa

provável do incêndio, mas a responsabilidade de

emitir um laudo oficial é da perícia técnica, que

pode ser feita tanto pelo Instituto de Criminalística

(IC) quanto pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas

(IPT), e o órgão geralmente é designado pelo

Ministério Público.

No Rio de Janeiro, a pesquisa é feita para

fornecer dados ao sistema operacional do Corpo de

Bombeiros e ajudar a melhorar os atendimentos da

corporação, que conta inclusive com o Centro de

Pesquisas, Perícias e Testes (CPPT). Os bombeiros

responsáveis por esse tipo de pesquisa devem ter

patente mínima de capitão (equivalente à metade

da carreira), curso de investigação pericial de

incêndios e outros sinistros, oferecido pela própria

corporação, e também o curso de perícia criminal

oferecido pela Polícia Militar do Estado.

O tenente-coronel e diretor do CPPT, Hilmar

Soares, afirma que é possível definir a causa do

incêndio como fenômeno termoelétrico devido aos

vestígios deixados na cena do acidente. “Um curto-

circuito, por exemplo, faz o fio receber muito calor

em um curto espaço de tempo. Ele rapidamente se

dilata e resfria, deixando algumas marcas no material

chamadas de ‘traço de fusão”, explica o oficial.

Soares também explica que o incêndio

ocasionado por fenômeno termoelétrico geralmente

leva mais tempo para que a chama tenha início

porque é preciso que a temperatura aumente muito

e atinja outros materiais combustíveis. “O incêndio

causado por fenômeno termoelétrico é facilmente

identificado”, garante.

Entretanto, ainda que os indícios sejam claros,

é preciso descartar outras causas, como a ação

humana criminosa – razão campeã em números de

incêndios de acordo com estatísticas do Corpo de

Bombeiros de São Paulo.

Quanto à perícia feita pelo Instituto de

Criminalística Carlos Eboli (ICCE), no Rio de

Janeiro, e Instituto de Criminalística (IC) e

Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), em São

Paulo, o método usado é bem semelhante ao dos

bombeiros do Rio, mas, após a identificação da

causa do incêndio, é preciso recriar o ambiente

em laboratório para provar que aquela situação

específica é capaz de gerar um incêndio. Todos os

dados colhidos no local do acidente e resultados

dos testes laboratoriais devem fazer parte do laudo.

A responsabilidade nesse caso é maior, pois os

resultados podem gerar o indiciamento judicial do

responsável – quando houver – pelo incêndio.

Instalações inadequadas que geraram incêndios

Edifício AndrAus

Grande incêndio que antecedeu o ocorrido no

edifício Joelma, a tragédia no Andraus, localizado

na cidade de São Paulo, era um sinal de que algo

não ia bem com as instalações elétricas da época.

O acidente aconteceu em 24 de fevereiro

de 1972 e terminou após quatro horas com 16

mortos e 350 feridos. O fogo teria começado após

um curto-circuito em cartazes de propaganda

localizados na marquise do edifício, que teve todos

os seus 31 pavimentos – com lojas e escritórios –

atingidos pelas chamas.

Edifício GrAndE AvEnidA E cEsP

O edifício Grande Avenida foi acometido por

um incêndio em 14 de fevereiro de 1981 e deixou

17 pessoas mortas e 53 feridas. A causa provável

foi um curto-circuito originado no subsolo da

construção.

Seis anos depois, no dia 21 de maio, houve

incêndio no prédio que pertencia à Companhia

Energética de São Paulo (Cesp) e a causa também

foi um fenômeno termoelétrico nos cabos de

alimentação de um aparelho de ar-condicionado.

Parte da construção teve de ser implodida devido

ao comprometimento das estruturas após o

incêndio.

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Memória da eletricidade 66 O Setor Elétrico / Agosto de 2010

O calendário marcava 1º de fevereiro de

1974 e era apenas mais uma manhã de plantão

para Shunji Nassuno. Ele havia se formado em

engenharia civil e atuava como engenheiro da

polícia técnica. Sua missão era realizar perícias

e descobrir a causa de acidentes, entre eles

os incêndios. Para chegar até ali, fez curso de

investigador e de detetive.

Sempre que algum acidente acontecia em seu

plantão, ele saía em um carro da polícia técnica

acompanhado do motorista e de um fotógrafo para

averiguar o local e, dias depois, elaborar um laudo

técnico. Naquela manhã de 1974 ele foi chamado

para realizar perícia em um prédio da Goodyear

que estava em chamas. Ao se dirigir para o centro

da cidade de São Paulo, onde ficava o prédio que

precisava ser periciado, a viatura em que estava

passou em frente ao Edifício Joelma.

Eram nove e dez da manhã quando Nassuno

observou fumaça e fogo saindo de uma das janelas

do 12º andar. Imediatamente solicitou ao fotógrafo

que registrasse aquela imagem, afinal era seu

plantão e já imaginava que seria chamado depois

para realizar a perícia daquele prédio. “Com as

imagens, a investigação seria facilitada, pois eu já

saberia onde o fogo começou”, conta.

Àquela altura, nem mesmo a lembrança

do grande incêndio ocorrido dois anos antes

no edifício Andraus fez o perito desconfiar da

proporção da tragédia que estava para acontecer.

Sendo assim, seguiu seu caminho para o incêndio

da Goodyear e cumpriu sua função até o momento

em que recebeu um chamado pelo rádio. Ele

precisava se deslocar rapidamente para o Edifício

Joelma. Era quase meio-dia quando Nassuno

chegou e o fogo já tomava conta da construção.

Sua rapidez para se deslocar até o local do

incêndio foi em vão. Após três horas de incêndio, 189

pessoas mortas e 320 feridas, o perito ainda precisou

aguardar dois dias para que o edifício resfriasse o

suficiente para que ele e seu fotógrafo pudessem fazer

o trabalho de perícia em segurança. Nassuno conta

que a temperatura dentro da construção atingiu mais

de 1.000 ºC durante o incêndio, chegando a derreter

materiais como ferro e cobre.

Para preservar o local, pediu para que um

policial guardasse o andar em que o incêndio se

iniciou. Nem mesmo os bombeiros poderiam entrar

no local para que o ambiente do acidente fosse

totalmente preservado e o resultado da perícia não

fosse prejudicado. “Nem mesmo as vítimas fatais

poderiam ser retiradas dali, porque o ambiente em

que começou o fogo não poderia ser alterado antes

da perícia”, explica.

Uma das primeiras coisas que o perito observou

ao iniciar sua vistoria foi o relógio de ponto dos

funcionários, que estava parado e marcando sete

da manhã, indicando que o primeiro curto-circuito

teria ocorrido naquele horário.

Ao vistoriar o 12º andar, o perito rapidamente

detectou a ocorrência de curto-circuito na

instalação dos aparelhos de ar-condicionado.

Eram ao todo cinco equipamentos que, conforme

o manual de instruções do fabricante, deveriam

estar ligados cada um em um circuito independente

e protegidos individualmente por disjuntores

dimensionados adequadamente.

Entretanto, a realidade encontrada pelo perito

era bem diferente da considerada ideal para manter

a segurança dos equipamentos e das pessoas:

os aparelhos estavam ligados diretamente em

uma barra de cobre. Dessa forma, não havia um

disjuntor conectado aos ares-condicionados que

pudesse ser desligado automaticamente em caso de

sobreaquecimento.

Essa não conformidade foi o estopim para

a tragédia, mas a perícia mostrou que o edifício

era uma bomba pronta para explodir a qualquer

momento. Veja a seguir alguns trechos do laudo

finalizado pelo perito após 30 dias de investigação

e ensaios laboratoriais.

“No quadro de distribuição do 12º pavimento havia

chaves disjuntoras de capacidades variando de 15

A a 35 A. Nesse quadro, foram confirmadas as

informações prestadas pelos eletricistas da Crefisul

de que, quando o circuito estava sobrecarregado, foi

simplesmente alterada a capacidade de chave parar

evitar o corte de iluminação, ligando-se o fio de 15

A para a de 35 A.

(O funcionário da empresa instaladora dos ares-

condicionados) informou-nos que fora ele que

trocou a chave geral do 12º andar para permitir

a ligação elétrica dos aparelhos naquele andar.

(...) E que para a instalação dos cinco aparelhos

que existiam naquela ala ele fizera uma extensão

semelhante à reproduzida em laboratório, com o

Raio X de uma tRagédia

Page 7: Segurança elétrica no limite

67O Setor Elétrico / Agosto de 2010

circuito ligado diretamente na chave do quadro

geral na base dos fusíveis de 150 ampéres (...)

em desobediência ao manual de instalações do

fabricante que exige para cada aparelho um circuito

independente e cada circuito com fusível de 20 A.”

O laudo também afirma que as instalações

e até os quadros de distribuição de cada andar

eram originais, mas a partir desse ponto sofriam

alterações para atender à demanda de cada

pavimento. A Crefisul, empresa que ocupava o

maior número de escritórios no edifício, também

havia dividido as salas com divisórias de madeira

e coberto o teto com forro de mesmo material, o

que ajudou as chamas a se espalharem rapidamente

pelas salas.

“As chamas partiram do forro em correspondência

com as fiações elétricas de alimentação de sete

luminárias e um circuito para cinco aparelhos de

ar-condicionado. As luminárias eram fixadas nos

forros falsos com os fios de alimentação partindo

das caixas mais próximas embutidas nas lajes. As

ligações das peças não foram executadas dentro

da técnica recomendada, criando condição de

insegurança para o sistema naquele setor.

A fiação de alimentação dos cinco aparelhos de ar-

condicionado saía do quadro geral daquela ala com

ligação direta ao fusível de 150 ampéres, embutido

nos eletrodutos até a mais próxima caixa na laje.

A partir daquele ponto, os fios corriam diretamente

apoiados sobre o madeiramento de sustentação do

forro falso até sua ligação ao primeiro aparelho de

ar-condicionado em condições inadequadas.”

As condições citadas anteriormente foram

reproduzidas em laboratório pelo mesmo

profissional que efetuou a ligação no edifício

Joelma para que se provasse a causa do incêndio.

“Foram encontrados indícios característicos de

fenômeno termoelétrico nos fios do sistema de ar-

condicionado e nas proximidades da zona em que

foram notadas as primeiras chamas.”

Esses indícios, conforme explica Nassuno, são

as “pérolas de fusão” – ou traço de fusão – que se

formam na fiação que sofreu o curto-circuito.

Todos esses itens observados durante a perícia

no edifício Joelma foram reproduzidos fielmente

em laboratórios e materiais iguais aos recolhidos

na construção foram usados nos ensaios. “Ao

reproduzirmos a situação em laboratório, a capa

plástica do fio começou a derreter em oito minutos.

Após 17 minutos, essa capa pegou fogo, deixando

o cobre dos fios expostos, que se tocaram e

levaram ao curto-circuito”, explica Nassuno sobre

um dos testes realizados.

Exames ainda comprovaram que a fiação

utilizada na instalação dos ares-condicionados era

de baixa qualidade, apresentando mistura de outros

metais ao cobre.

Levando em consideração as condições da instalação,

o laudo afirma que o incêndio teria acontecido devido ao

aquecimento exagerado do circuito elétrico, que chegou

a fundir e ignir a parte plástica do fio, provocando a

combustão do forro de madeira.

A conclusão do laudo foi a seguinte:

“Os peritos concluem que as chamas tiveram

origem por um fenômeno termoelétrico nos fios

do circuito de ar-condicionado que se assentavam

diretamente sobre o madeiramento do forro falso.

A fiação do circuito dos aparelhos de ar-

condicionado era muito solicitada em amperagem,

tal como comprovam os testes efetuados, resultando

em aquecimento exagerado do tipo de ligação

daqueles aparelhos.

A qualidade do fio empregado na ligação dos ares-

condicionados era comprometedora, principalmente

para a carga anormal que o solicitava.

O exame da rede elétrica das luminárias do 12º

andar, somado ao que se constatou no 11º andar,

que não foi atingido pelo incêndio, indicam que

o serviço de manutenção elétrica da Crefisul era

precário, principalmente se considerada a mudança

da chave disjuntora de proteção de 15 A para 35 A

, sem um estudo prévio.”

De acordo com o perito, o engenheiro

responsável pela manutenção das instalações

elétricas do edifício e seus auxiliares chegaram a

ser indiciados judicialmente, mas por serem réus

primários e terem residência fixa, ninguém foi preso.

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Memória da eletricidade 68 O Setor Elétrico / Agosto de 2010

Edifício AndorinhA

A construção localizada na cidade do Rio de

Janeiro sofreu um incêndio na tarde do dia 17 de

fevereiro de 1986 e terminou com um saldo de

20 pessoas mortas e quase 50 feridas. Inaugurado

em 1934, o edifício não contava com todos os

aparatos de segurança contra incêndios, como

porta corta-fogos. O episódio também foi marcado

pela falta de equipamentos do Corpo de Bombeiros,

que não possuía cama elástica (para o salvamento

das pessoas que saltaram do prédio) nem escadas

altas o suficiente para alcançar todos os andares

atingidos. Também faltou água para o combate às

chamas e algumas mangueiras se partiram.

O fogo teve início no 9º andar, nas

dependências da General Electric (GE), e foi

causado pela explosão – devido a uma sobrecarga

de energia – da tomada em que estava ligado um

aparelho de ar-condicionado. O fogo se alastrou

rapidamente pelos carpetes e poltronas daquele

andar e atingiram os demais andares.

TEATro culTurA ArTísTicA

Incêndio sem vítimas fatais e sem feridos,

mas com prejuízo enorme para a cultura. O Teatro

Cultura Artística fica na capital paulista e teve

suas dependências tomadas pelo fogo no dia 17 de

agosto de 2008. O laudo realizado pelo Instituto de

Criminalística e concluído no dia 9 de setembro de

2008 não é categórico ao indicar um único agente

causador das chamas, mas afirma que o péssimo

estado de conservação do prédio – incluindo as

instalações elétricas – contribuiu para a propagação

do incêndio.

Um dos itens avaliados na investigação

foram as 200 fotos tiradas três meses antes do

acidente pelo então estudante de pós-graduação

em Patologias, Origens e Reflexos no Desempenho

Técnico-Construtivo do Edifício pela Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São

Paulo (FAU-USP), Anderson Leite Schmidt. As fotos,

que a princípio eram para sua tese, acabaram sendo

usadas também no inquérito policial sobre o caso.

As imagens registraram diversas

irregularidades, como fios e cabos instalados

incorretamente, presença de umidade próxima

aos condutores, tubulação de água instalada

paralelamente à fiação e ausência de dispositivos

de proteção.

De acordo com relatos, antes do incêndio,

Schmidt ofereceu uma cópia de seu trabalho para a

direção do teatro, mas não houve interesse.

insTiTuTo BuTAnTAn

O laboratório de répteis do Instituto, onde

estavam a maior coleção de aranhas da América

Latina e a maior coleção de serpentes do mundo,

foi atingido por um incêndio no dia 15 de maio de

2010. Nenhuma pessoa ficou ferida, mas a perda

científica foi incalculável já que mais de 70 mil

espécies de cobras, escorpiões e aranhas – usadas

em pesquisas – foram perdidas no desastre.

A suspeita é de que um curto-circuito ou

sobrecarga tenha dado início ao fogo. Todas as

possibilidades foram investigadas por peritos do

Instituto de Criminalística (IC) e, até o último

dia 4 de agosto, o laudo pericial ainda não havia

sido concluído. O inquérito sobre o acidente

permanece em aberto.

AlArmE fAlso

Como já foi visto nesta reportagem, o resultado

do laudo técnico é fundamental para definir as

causas de incêndio, já que as primeiras impressões

podem induzir ao erro mesmo os bombeiros e

técnicos mais experientes. Foi o que aconteceu

com os dois incêndios ocorridos no Hospital das

Clínicas, em São Paulo, nos dias 24 de dezembro de

2007 e 23 de janeiro de 2008.

Após rumores de que um vazamento de

gás em alta temperatura no subsolo do prédio

dos ambulatórios em conjunto com um curto-

circuito na instalação elétrica teria provocado o

incêndio, o laudo revelou que o primeiro incêndio

foi intencional, pois peritos encontraram fiação

cortada no subsolo. No segundo caso, o laudo

também afirma tratar-se de incêndio criminoso

devido a vestígios de álcool verificados na sala

onde teve início o segundo sinistro.

Outro engano também ocorreu no incêndio na

futura sede do Ministério Público Federal, também em

São Paulo. Inicialmente a informação era de que um

curto-circuito teria causado o fogo, mas operários que

trabalhavam na construção esclareceram que estavam

demolindo um duto do ar-condicionado quando uma

faísca atingiu algum material inflamável.

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Page 9: Segurança elétrica no limite

69O Setor Elétrico / Agosto de 2010

Problemas encontrados em instalações elétricas Veja, a seguir, algumas imagens de instalações inadequadas e que são situações facilmente

encontradas em instalações prediais residenciais e comerciais.

Instalação inadequada de duto plástico externo com vários outros fixados por amarração simples.

Fiação fora da caixa com dutos não embutidos.

Quadro elétrico sem proteção efetiva contra contatos diretos e com condutores saindo diretamente dele.

Caixa de passagem totalmente inadequada com circuitos misturados e sem identificação. Emendas abertas com risco de curto-circuito e choque por contato.

Cabo elétrico passando diretamente da laje para um feixe, sem calha ou bandeja.

Interruptor fora da caixa, com circuito desprotegido externo.

Fotos gentilmente cedidas pelos engenheiros eletricistas Eduardo Daniel, Edson Martinho e Hilton Moreno.

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