segredo dos nagas, o - vol.2 - trilogia shiva

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CAPÍTULO 1 O estranho demônio – Sati! – Shiva sacou a espada e trouxe o escudo para a frente do corpo, ao correr em direção à esposa. Ela está indo direto para uma armadilha! – Pare! – ele gritou, enquanto corria, ao vê-la disparar na direção das árvores que margeavam a estrada que levava ao Templo de Ram Janmabhoomi, em Ayodhya. Sati estava totalmente focada na perseguição ao Naga encapuzado que estava fugindo, sua espada em riste e pronta; uma guerreira experiente com a presa à vista. Shiva precisou de alguns instantes para alcançá-la e se certificar de que estivesse segura. Quando então retomaram a corrida, o foco de Shiva mudou para o Naga. Como aquele cão se afastou tão rápido? O Naga, com uma agilidade surpreendente, ainda corria muito rápido, avançando sem esforço entre as árvores e o terreno irregular da encosta da colina. Shiva se lembrou de quando havia se deparado com ele no Templo de Brahma em Meru, no dia em que viu Sati pela primeira vez. Os movimentos lentos no Templo de Brahma foram apenas uma estratégia de batalha. Shiva colocou o escudo de volta nas costas; ainda não precisava dele e estava dificultando seus movimentos. Sati, à sua esquerda, mantinha o ritmo e apontou de repente para a direita, indicando uma bifurcação

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Page 1: Segredo Dos Nagas, O - Vol.2 - Trilogia Shiva

Capítulo 1

O estranho demônio

– Sati! – Shiva sacou a espada e trouxe o escudo para a frente do corpo, ao correr em direção à esposa.

Ela está indo direto para uma armadilha!– pare! – ele gritou, enquanto corria, ao vê-la disparar na direção

das árvores que margeavam a estrada que levava ao templo de Ram Janmabhoomi, em ayodhya.

Sati estava totalmente focada na perseguição ao Naga encapuzado que estava fugindo, sua espada em riste e pronta; uma guerreira experiente com a presa à vista.

Shiva precisou de alguns instantes para alcançá-la e se certificar de que estivesse segura. Quando então retomaram a corrida, o foco de Shiva mudou para o Naga.

Como aquele cão se afastou tão rápido?o Naga, com uma agilidade surpreendente, ainda corria muito

rápido, avançando sem esforço entre as árvores e o terreno irregular da encosta da colina. Shiva se lembrou de quando havia se deparado com ele no templo de Brahma em Meru, no dia em que viu Sati pela primeira vez.

Os movimentos lentos no Templo de Brahma foram apenas uma estratégia de batalha.

Shiva colocou o escudo de volta nas costas; ainda não precisava dele e estava dificultando seus movimentos. Sati, à sua esquerda, mantinha o ritmo e apontou de repente para a direita, indicando uma bifurcação

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que se aproximava no caminho. Shiva concordou com a cabeça. Eles se separariam e tentariam encurralar o Naga no caminho estreito à frente, indo por lados opostos.

Shiva disparou para a direita sentindo as energias e a velocidade renovadas, espada em riste. Sati continuou atrás do Naga. o novo terreno sob os pés de Shiva tornou-se estável, permitindo que ele cobrisse a distância rapidamente. Notou de repente que o Naga havia puxado o escudo com a mão direita: a mão errada para defesa. Enrugou a testa.

Naquele instante, Shiva estava mais próximo do inimigo do que Sati. Ele puxou uma faca com a mão esquerda, num movimento ágil, e a atirou ao pescoço do Naga. porém, este evitou o golpe com uma manobra defensiva magnífica pela qual Shiva não esperava. Sem se virar para olhar a faca, ou mesmo diminuir o passo, o Naga jogou o escudo no caminho da lâmina. Quando a arma bateu no escudo e caiu no chão, sem infligir dano, ele recolocou o aparato de volta nas costas, com destreza, e continuou a correr.

Shiva não conseguia acreditar nos próprios olhos. Ele se defendeu da faca sem sequer olhá-la! Quem diabos é este homem?

Vislumbrando Sati do outro lado da pequena colina, Shiva acelerou o passo para acompanhá-la. Mais adiante, o Naga acabava de alcançar a muralha que protegia o templo de Ram Janmabhoomi de ataques de animais e invasores. Não tinha como pular sobre um muro tão alto. Seria necessário escalá-lo e isso daria a Shiva e Sati os segundos cruciais de que precisavam para alcançá-lo.

o Naga, obviamente, chegou à mesma conclusão. ao se aproximar do muro, ele deu um giro perfeito e sacou duas espadas das laterais de seu corpo. a espada na mão direita era longa e tradicional, e reluzia no entardecer do sol. Na mão esquerda estava uma arma mais curta, com uma estranha lâmina dupla acoplada a seu punho. Shiva puxou o escudo das costas ao se aproximar do Naga, e, enquanto isso, Sati se posicionava para atacá-lo pelo flanco direito.

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o Naga brandiu a espada longa, forçando-a a retroceder. Com Sati apoiada no pé traseiro, o Naga golpeou com a espada curta ferozmente, fazendo Shiva se abaixar para evitar o ataque. Quando a lâmina se aproximou, Shiva pulou alto e golpeou para baixo, um ataque quase impossível de ser defendido por um oponente sem escudo. Contudo, o Naga se esquivou sem esforço ao mesmo tempo em que atacava com a espada curta para frente, forçando Shiva a recuar para o lado e puxar o escudo para se defender.

Sati avançou outra vez, forçando o Naga para trás com golpes de sua espada. Com a mão esquerda, ela tirou uma faca de trás de seu corpo e a arremessou com precisão mortífera. porém, tão rápido que ela quase não pôde ver, o Naga afastou a cabeça para o lado no último segundo e a faca passou sem perigo por ele, batendo na muralha.

Embora Shiva e Sati não tivessem acertado um único golpe, ainda estavam forçando o Naga a recuar. Seria apenas questão de tempo até que o tivessem encurralado no muro.

Pelo Lago Sagrado, finalmente ele é meu!

o homem atacou Shiva com a mão esquerda. a espada era curta demais para alcançá-lo e Shiva, acreditando que a manobra fora inútil, avançou confiante de que pudesse atingir o tronco do oponente. No entanto, no instante em que o inimigo brandiu a espada, acionou uma alavanca no cabo com o polegar. uma das lâminas gêmeas foi projetada sobre a outra, dobrando o alcance da espada, que atingiu o ombro de Shiva. a ponta envenenada lançou uma descarga elétrica por seu corpo, e ele caiu no chão, paralisado.

– Shiva! – gritou Sati, brandindo sua arma de cima para baixo contra a espada longa na mão direita do Naga, esperando desarmá-lo. logo antes do impacto, o Naga soltou sua lâmina, fazendo Sati vacilar e sua espada escorregar de seus dedos enquanto ela se esforçava para recuperar o equilíbrio.

– Não! – gritou Shiva deitado de costas, indefeso, incapaz de se mexer. Ele notou algo que Sati havia esquecido: o Naga ainda tinha a faca que Sati arremessara contra ele instantes antes, quando o descobriu

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escondido atrás de uma árvore no templo de Ram Janmabhoomi. a adaga estava amarrada à sua mão direita, e, quando Sati caiu, ele a atirou contra o abdome dela. Sati percebeu o erro tarde demais.

Contudo, o Naga recuou a mão no último instante, transformando o que teria sido um golpe fatal num ferimento superficial, arrancando apenas gotas de sangue. Em seguida, o Naga atingiu Sati no rosto com força, usando o cotovelo esquerdo para quebrar-lhe o nariz e derrubá-la no chão.

Com os dois inimigos neutralizados, o Naga trouxe a espada longa rapidamente até a mão com a ajuda do pé direito e depois retraiu a lâmina estendida da outra, transformando-a de novo na espada curta dupla, e embainhou ambas as armas. Seus olhos nunca deixaram Shiva e Sati. Ele deu meia-volta e saltou para alcançar o topo do muro atrás dele.

o veneno que imobilizava Shiva de repente foi liberado e ele cambaleou em direção à esposa.

Sati estava com as mãos firmes no abdome. O Naga franziu o cenho, pois o ferimento era apenas um arranhão superficial. Então seus olhos se arregalaram repentinamente.

Ela está carregando um bebê.

Num movimento ágil, o Naga contraiu os músculos vigorosos da barriga, jogou as pernas para cima e subiu no muro.

– Aperte firme! – disse Shiva, esperando ver um corte profundo, dado o sangue nas vestes de Sati. porém, respirou mais aliviado quando percebeu ser um ferimento de menor gravidade, embora a perda de sangue e o nariz quebrado de Sati ainda lhe causassem preocupação.

limpando o sangue que escorria do nariz, os olhos incendiados de fúria, Sati pegou a espada e rugiu:

– pegue-o!

Shiva se virou e recolheu a espada, guardando-a na bainha ao se aproximar do muro. Ele o escalou depressa e aterrissou na rua movimentada do outro lado. Viu o Naga a distância, ainda correndo rápido.

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Shiva começou a persegui-lo, mas a batalha já estava perdida: ele estava muito atrás. odiava o Naga mais do que nunca – o algoz de sua esposa! o assassino de seu irmão! – e ainda assim, lá no fundo, não conseguia evitar se admirar com o brilhantismo incrível de suas habilidades marciais.

o Naga estava correndo em direção a um cavalo amarrado fora de uma loja. Dando um grande salto, com a mão direita estendida, ele aterrissou suavemente nas costas do cavalo, cortou as amarras com a faca e o libertou. o cavalo assustado empinou, jogando as rédeas para a mão esquerda do Naga, que golpeou seus flancos, sussurrou em seu ouvido e o fez disparar habilmente num galope, atendendo ao comando.

um homem saiu correndo de dentro da loja, gritando:– pare, ladrão! aquele é o meu cavalo!Ouvindo a comoção, o Naga enfiou a mão nas dobras de sua

túnica e atirou algo por cima do ombro com uma força tremenda enquanto o cavalo se afastava a galope. o homem cambaleou e caiu de costas no chão.

– pelo lago Sagrado! – murmurou Shiva, disparando na direção do que pensou ser alguém gravemente ferido. porém, ao se aproximar, surpreendeu-se ao ver o homem levantar devagar, esfregando o peito e praguejando alto.

– Que as pulgas de mil cães infestem as axilas daquele cretino!– Você está bem? – perguntou Shiva ao examinar o peito do

estranho.o homem olhou para Shiva, assustado e sem fala ao ver-lhe o corpo

coberto de sangue.Shiva se abaixou para pegar o objeto arremessado pelo Naga. Era

uma bolsa feita da seda mais gloriosa que já tinha visto na vida. Ele a abriu hesitante, esperando uma armadilha, mas não encontrou nada mais perigoso do que moedas. tirou uma e se espantou ao ver que era feita de ouro. E a bolsa continha pelo menos cinquenta moedas.

Que tipo de demônio rouba um cavalo e depois deixa ouro suficiente para comprar mais cinco?

– ouro! – sussurrou o dono do animal, ao arrancar a bolsa das mãos de Shiva. – É meu!

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Shiva continuou examinando as marcas na moeda entre seus dedos. – preciso desta, amigo.o homem não queria lutar contra alguém que parecia ser tão

poderoso quanto Shiva, mas ouro era ouro.– Mas...Shiva bufou e tirou duas moedas menores de ouro de sua própria

bolsa e entregou-as ao homem. o estranho agradeceu a suas estrelas por um dia de muita sorte e bateu em retirada às pressas.

Quando voltou para Sati, Shiva a encontrou descansando encostada no muro, a cabeça inclinada para trás, os dedos pressionando a ponte do nariz.

– Você está bem? – Ele traçou com a ponta dos dedos o sangue seco que maculava o belo rosto de Sati.

Ela confirmou.– Estou. Seu ombro? parece ruim.– parece pior do que é. Estou bem, não se preocupe.– o que o Naga atirou naquele homem?– uma bolsa cheia destas. – Ele mostrou a moeda.– Ele atirou moedas de ouro? – Sati franziu o cenho, admirada, e olhou

a moeda com mais atenção. De um lado estava gravada a cabeça de um homem coroado. Ela se surpreendeu ao ver que seu rosto não trazia as deformidades dos Nagas. – parece um rei de algum tipo – ela disse, limpando o sangue de seus lábios com as costas das mãos.

– Mas veja essas gravações estranhas – disse Shiva, ao virar a moeda.o outro lado tinha gravada uma pequena lua crescente horizontal,

sobre a qual havia uma rede de linhas. Duas linhas inclinadas se juntavam para formar um cone irregular no centro da moeda e depois continuavam numa rede que parecia uma teia de aranha.

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– Posso supor o que a lua deve significar, mas o que simbolizam estas linhas? – perguntou Sati.

– Não faço ideia – Shiva admitiu, mas uma coisa estava clara: sua intuição, seu instinto eram unívocos. Encontre os Nagas. Eles são seu caminho para descobrir o mal.

Sati quase conseguia ler a mente do marido.– Vamos deixar as distrações de lado, está bem?– Claro, mas primeiro precisamos levá-la para ayurvati.– acho que você precisa mais dela – respondeu Sati, mas deixou

o marido ajudá-la com um braço em volta de sua cintura, enquanto seguiam para o consultório da médica.

– Não quer mais fazer parte de nossa luta? – perguntou Daksha, Imperador de Meluha. – Não entendo, milorde. o senhor nos levou à maior vitória. agora temos que terminar o serviço. Devemos colocar fim às perversões maléficas dos Chandravanshis e educar esse povo em nosso modo puro de vida Suryavanshi.

Shiva mexeu levemente o ombro enfaixado para aliviar a dor irritante.– Não acredito mais que eles sejam maus, Majestade. Minha

missão mudou.Dilipa, Imperador de Swadweep, estava fascinado: as palavras de

Shiva eram um bálsamo para sua alma. Sati e o General parvateshwar mantinham a própria conferência, e Nandi e Veerbhadra, montando guarda um pouco afastados, escutavam com avidez. a única pessoa presente tão zangada quanto o imperador Daksha era o filho de Dilipa, Bhagirath, o príncipe Herdeiro de ayodhya.

– Não precisamos da aprovação de um bárbaro estrangeiro – disse Bhagirath. – Claro que não somos maus.

– Quieto – sibilou Dilipa. – Você não vai insultar o Neelkanth. – Virando-se para Shiva, mãos flexionadas, Dilipa continuou: – Perdoe meu filho impetuoso, milorde. Ele fala sem pensar. O senhor disse que sua missão mudou. Como ayodhya pode ajudá-lo?

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Shiva analisou o Bhagirath, visivelmente irritado, antes de responder:

– Como encontro os Nagas?

A mão de Dilipa voou por reflexo para seu amuleto de Lorde Rudra, buscando proteção, e Daksha ergueu os olhos de forma abrupta.

– Milorde – balbuciou Daksha –, eles são o puro mal. por que quer encontrá-los?

– Vossa Majestade respondeu à própria pergunta – disse Shiva. – Imperador Dilipa, não acredito que todo seu povo esteja aliado aos Nagas, mas algumas pessoas de seu império estão. Quero contatá-las.

– Milorde – disse Dilipa, engolindo em seco –, rumores contam que o Rei de Branga associa-se com as forças do mal. Ele pode responder às suas perguntas. porém, estrangeiros não são permitidos naquele reino estranho e rico. Estou convencido de que os Brangas pagam tributo a meu império apenas para impedir que entremos em sua terra, e não porque têm medo de serem derrotados por nós em batalha.

– Existe outro monarca em seu império? – perguntou Shiva. – Como isso é possível?

– Não somos como os obsessivos Suryavanshis – respondeu Dilipa. – Não insistimos que todos sigam um único conjunto de leis. Cada reino tem direito ao próprio rei, suas próprias regras de conduta e seu estilo de vida único. Eles pagam tributo a ayodhya porque nós os derrotamos em batalha durante o grandioso Ashwamedha Yagna.

Shiva enrugou a testa ao traduzir as palavras desconhecidas.

– Sacrifício do Cavalo?

– Sim, milorde. o cavalo de sacrifício anda livre por todos os reinos desta terra. Se um rei parar o cavalo, nós guerreamos, derrotamos e anexamos o território em questão, impondo nossas próprias leis e costumes sobre o povo conquistado. Se não param o cavalo, o reino se torna nossa colônia e nos paga tributo, mas é permitido que mantenha as próprias leis. Somos mais como uma confederação de reinos aliados, não um império fanático como Meluha.

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– Cuidado com as palavras, seu tolo insolente! – rebateu Daksha. – Sua “confederação”, a meu ver, parece mais uma espécie de extorsão. os tributos são pagos pelos reinos porque, se não forem, vocês atacarão suas terras e as saquearão. onde está o Dharma Real nisso? Em Meluha, o trabalho do imperador não é ficar sentado recebendo tributo. a responsabilidade do imperador é trabalhar pelo bem de todos os súditos do império.

– E quem decide o que é bom para seus súditos? – Dilipa replicou. – Você? Com que direito? o povo deveria ter permissão para fazer o que desejasse.

– Isso levaria ao caos – disse Daksha. – Você é tão estúpido quanto imoral.

– Basta! – disse Shiva, que estava perdendo a paciência depressa com a discussão. – Vossas Majestades poderiam, por favor, parar?

Daksha ficou surpreso e zangado por ser repreendido. Começava a perceber que Shiva agora tinha muito mais confiança do que o jovem que havia conhecido tão pouco tempo antes. Não só havia aceitado o papel de Neelkanth; ele o estava vivendo. o coração de Daksha se apertou. ansiava pela realização do sonho de seu pai e ser o primeiro membro da família a se tornar o imperador de toda a índia, levando o estilo de vida Suryavanshi a todos os cidadãos. Contudo o sonho se tornava cada vez mais remoto. Ele poderia derrotar Swadweep em batalha – sabia que as táticas de seu exército e sua tecnologia eram vastamente superiores –, mas não tinha nem de perto um número suficiente de soldados para controlar a terra conquistada. apenas o Neelkanth poderia instaurar o tipo de crença necessária para unir nações, e se o Neelkanth tinha outras ideias, os planos de Daksha caminhavam para a ruína.

– o que o faz pensar que os Brangas estão aliados aos Nagas? – perguntou Shiva, interrompendo as reflexões amargas de Daksha.

– Não tenho certeza disso, milorde – respondeu Dilipa –, mas comerciantes de Kashi comentam. Kashi é o único reino em Swadweep com que os Brangas aceitam, a contragosto, fazer comércio. além disso, muitos refugiados de Branga se estabeleceram em Kashi.

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– Refugiados? – perguntou Shiva. – De que eles estão fugindo? Vossa Majestade disse que Branga era uma terra de riqueza.

– Existem rumores de que uma grande peste atingiu Branga repetidas vezes, mas por enquanto é isso: rumores. Ninguém sabe ao certo o que acontece em Branga. talvez o Rei de Kashi tenha respostas melhores. Devo convocá-lo até aqui, milorde?

– Não, não há necessidade disso, Dilipa – respondeu Shiva, questionando-se se aquela seria outra caçada inútil ou se os Brangas realmente tinham alguma conexão com os Nagas.

– perdoe-me a interrupção, Vossa Majestade – disse Sati, a voz ainda um pouco fanhosa depois da pancada sofrida no nariz. – Mas onde exatamente fica Branga?

– No extremo leste, princesa Sati, onde nosso reverenciado Rio Ganges encontra o sagrado Rio Brahmaputra, que corre do Nordeste.

os olhos de Sati encontraram os de Shiva: a mesma ideia acabava de ocorrer a ambos. Não são linhas naquela moeda!, pensou. São rios!

Shiva abriu a pequena bolsa, puxou a moeda que tinha conseguido do Naga e a mostrou a Dilipa.

– Esta é uma moeda Branga, Majestade?

– Sim, milorde: aqui está o Rei Chandraketu em um dos lados e o mapa dos rios da região no outro. Mas estas moedas são raras. os Brangas nunca enviam tributo em moeda, apenas em lingotes de ouro.

Dilipa estava a ponto de perguntar como Shiva tinha obtido a moeda, mas o Neelkanth falou antes:

– Em quanto tempo podemos partir para Kashi?

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– Hummm, essa erva é das boas – disse Shiva, sorrindo ao entregar o chillum a Veerbhadra.

– Eu sei. a erva é muito melhor aqui do que em Meluha. os Chandravanshis com certeza sabem saborear as coisas boas da vida.

Shiva sentiu o corpo relaxar enquanto a erva trabalhava sua magia sobre ele. os dois amigos estavam sentados numa pequena colina fora de ayodhya, desfrutando a brisa do entardecer. a vista era deslumbrante. A encosta suave da colina descia até uma planície com uma floresta esparsa, que, por sua vez, terminava, mais além, num penhasco íngreme. o tempestuoso Rio Sarayu, que havia rasgado a rocha ao longo de muitos milênios, se direcionava ao sul por uma ravina profunda na base do desfiladeiro. A luz do sol poente era o floreio derradeiro na beleza dramática de um momento tranquilo.

– Suponho que o Imperador de Meluha finalmente esteja feliz – disse Veerbhadra, devolvendo o chillum a Shiva.

Shiva piscou para Veerbhadra antes de dar um trago profundo. Ele sabia que Daksha estava muito insatisfeito com a nova visão sobre os Chandravanshis proferida pelo Neelkanth, mas não queria nenhuma distração enquanto estivesse procurando pelos Nagas. Havia alcançado um engenhoso meio-termo que dava a Daksha um senso de vitória e, ao mesmo tempo, mantinha Dilipa feliz.

Shiva havia decretado que Daksha, dali em diante, fosse conhecido como o Imperador da índia. Seu nome passaria a ser ouvido durante as orações em ayodhya, assim como na corte real em Devagiri. Dilipa, em troca, continuaria a ser chamado de Imperador de Swadweep dentro dos territórios Chandravanshis, e de “Irmão do Imperador” em Meluha. Seu nome se seguiria ao de Daksha nas orações da corte, tanto em Devagiri quanto em ayodhya. o reino de Dilipa pagaria um tributo nominal de cem mil moedas de ouro para Meluha, as quais Daksha anunciou que seriam doadas para o templo de Ram Janmabhoomi em ayodhya.

portanto, um dos sonhos de Daksha havia sido realizado: ele enfim era o Imperador da Índia. Contente com o desfecho, Daksha havia retornado a Devagiri triunfante. o sempre pragmático Dilipa

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estava satisfeitíssimo porque, apesar de ter perdido a guerra contra os Suryavanshis, para todos os efeitos, mantinha tanto o império quanto sua independência.

– partimos para Kashi em uma semana? – perguntou Veerbhadra e, em resposta à lenta confirmação de Shiva, anunciou: – Bom saber, estou ficando entediado aqui.

– Esse tal de Bhagirath parece um sujeito muito interessante – disse Shiva, passando o cachimbo de volta ao amigo. – o que você ouviu a respeito dele?

– Bem – começou Veerbhadra, fazendo uma pausa para organizar seus pensamentos enquanto exalava devagar a fumaça da erva –, Bhagirath foi quem levou aquele contingente de cem mil soldados até as nossas costas, em Dharmakhet.

– Ele liderou o ataque pela retaguarda? aquilo foi brilhante. até poderia ter funcionado, não fosse pelo heroísmo de Drapaku.

– Com certeza teria funcionado se as ordens de Bhagirath tivessem sido seguidas à risca.

Shiva olhou para ele.– Verdade?– ouvi dizer que Bhagirath queria levar o exército por uma rota

mais longa, muito longe do campo de batalha principal e no meio da noite. Se tivesse feito isso, nunca teríamos descoberto o movimento das tropas e nossa resposta atrasada teria nos feito perder a guerra.

– Então o que deu errado?– ao que tudo indica, o Conselho de Guerra não quis se reunir à

noite, que foi quando Bhagirath os convocou.– por que, em nome do lago Sagrado, eles não quiseram se reunir?– Estavam dormindo.

– Você está brincando!– Não, não estou – respondeu Veerbhadra, sacudindo a cabeça. –

ainda pior, quando eles, de fato, se reuniram durante a manhã, ordenaram que Bhagirath se mantivesse próximo ao vale entre Dharmakhet e onde estávamos, e isso, claro, nos fez descobrir o avanço.

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– o que, neste mundo, possuiu o Conselho de Guerra para que tomassem uma decisão tão estúpida? – perguntou Shiva, perplexo.

– Aparentemente, Dilipa não confia no próprio filho e, por consequência, nem a maioria dos generais de Swadweep. todos pensaram que ele levaria os soldados e fugiria para Ayodhya a fim de se declarar imperador.

– Isso é ridículo. Por que Dilipa não confia no próprio filho?

– porque acredita que Bhagirath o considera tolo e um péssimo imperador.

– Com certeza, não!

– aliás – disse Veerbhadra, batendo o chillum para remover as cinzas –, do que ouvi, Bhagirath de fato tem essa opinião do pai. E ele não está muito errado, está?

Shiva deu um sorriso pesaroso.

– E então, para piorar as coisas – continuou Veerbhadra –, Bhagirath recebeu a culpa por todo o fiasco. A opinião pública é a de que ele tirou cem mil soldados do campo de batalha principal.

Shiva se entristeceu ao perceber um homem inteligente ser escarnecido pelos idiotas que o cercavam.

– penso que ele é uma pessoa capaz cujas asas foram cortadas – começou...

um grito alto de repente estilhaçou o momento tranquilo, e Shiva e Veerbhadra olharam em volta, percebendo um cavaleiro galopando numa velocidade arriscada. Seu companheiro, muito atrás, gritava:

– ajudem! alguém ajude o príncipe Bhagirath!

parecia que Bhagirath tinha perdido o controle de seu cavalo, que acelerava em direção ao precipício. uma queda naquela garganta significaria morte quase certa.

Shiva não hesitou. pulou sobre seu cavalo e avançou atrás do príncipe, com Veerbhadra seguindo de perto. o animal descontrolado estava a uma grande distância, mas a colina suave ajudou Shiva e Veerbhadra a cobri-la rapidamente. logo Shiva

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estava galopando bem ao lado de Bhagirath. Impressionava-se de ver o príncipe aparentar calma e foco a despeito da situação que ameaçava sua vida.

o príncipe sacudia as rédeas desesperadamente, tentando diminuir a velocidade do cavalo; porém, suas ações apenas deixavam o animal mais agitado e ele ganhou mais velocidade.

– Solte as rédeas! – gritou Shiva encobrindo o barulho do Sarayu.– o quê...?! – Bhagirath gritou. todos os seus instintos lhe diziam

que soltar as rédeas era a atitude mais estúpida de todas quando um cavalo estava fora de controle.

– acredite em mim! Solte-as!Bhagirath diria depois que o Destino havia guiado o Neelkanth até

ele naquele dia. No momento presente, entretanto, seu instinto lhe dizia para esquecer seu treinamento e confiar naquele bárbaro do Tibete. Ele soltou as rédeas e, para sua grande surpresa, o cavalo imediatamente afrouxou o passo.

Shiva cavalgou para perto, tão perto que quase podia sussurrar no ouvido do animal, e começou a cantar uma estranha canção.

o cavalo reduziu a velocidade para um meio-galope e aos poucos começou a se acalmar, ainda que continuasse se dirigindo para o precipício.

– Shiva! – gritou Veerbhadra. – o precipício está só a alguns metros!Shiva reconheceu o alerta apenas com um rápido aceno, mas

manteve o ritmo de seu cavalo equiparado ao de Bhagirath. De cara fechada, o príncipe se manteve montado enquanto Shiva continuava a cantar. aos poucos, mas de forma certeira, ele estava conseguindo o controle. O cavalo de Bhagirath enfim parou a apenas alguns metros à beira do precipício.

Bhagirath e Shiva estavam apeando quando Veerbhadra se aproximou, numa respiração muito ofegante.

– Maldição! – disse. – Essa foi por pouco!Shiva lançou um olhar para Veerbhadra antes de se voltar a

Bhagirath.– Está tudo bem?

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o príncipe encarou Shiva por alguns instantes antes de baixar os olhos, sentindo vergonha.

– lamento tê-lo feito se arriscar tanto.

– Não foi nada.

Bhagirath virou-se para o cavalo e deu-lhe um tapa forte na cara, a punição pelo constrangimento.

– A culpa não é do cavalo – disse Shiva, com firmeza.

Bhagirath franziu o cenho, irritado pela reprimenda, mas o Neelkanth o ignorou e se virou para o cavalo. aproximou-se devagar e aconchegou a cara do animal com delicadeza entre as mãos, quase como se fosse o rosto de uma criança punida sem merecer. Então, com cuidado, desafivelou a rédea e pediu que Bhagirath se aproximasse para mostrar o prego enterrado na tira de couro próxima à boca do cavalo.

o príncipe olhou horrorizado quando Shiva puxou o prego e lhe entregou.

– alguém não gosta de você, meu amigo.

o acompanhante de Bhagirath, o homem que tinha gritado por ajuda, finalmente os alcançou.

– Meu príncipe – gritou –, Vossa alteza está bem?

– Estou.

Shiva se virou para o homem e disse:

– Diga ao Imperador Dilipa que o filho dele é um cavaleiro excepcional. Diga-lhe que o Neelkanth nunca viu um homem com maior controle sobre um animal numa situação tão desesperadora. Diga-lhe que o Neelkanth pede a honra da companhia do príncipe Bhagirath em sua jornada a Kashi.

Shiva sabia que Dilipa reconheceria não como um pedido, mas como uma ordem; era a única forma que conseguiria proteger Bhagirath de quem quer que tivesse atentado contra sua vida.

o acompanhante do príncipe imediatamente caiu de joelhos.

– Seu pedido é uma ordem, milorde.

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Bhagirath ficou atônito. Já havia se deparado com pessoas conspirando contra ele antes, pessoas que recebiam crédito por suas ideias, pessoas que o sabotavam. Mas aquilo... era inigualável.

À medida que o homem se afastava cavalgando, o príncipe disse a Shiva:

– antes do dia de hoje, só recebi tamanha bondade de apenas uma pessoa: minha irmã anandmayi. – Seus olhos estavam marejados. – Mas são os laços de sangue que justificam as ações dela. Não sei como posso retribuí-lo por sua generosidade, milorde.

– Não me chamando de “lorde” – respondeu Shiva.– Esta é uma ordem que imploro permissão para desrespeitar

– disse Bhagirath, as mãos posicionadas num namastê respeitoso. – obedecerei a qualquer ordem que o senhor me der, ainda que seja para tirar minha própria vida.

– Não seja tão dramático – Shiva disse gentilmente, segurando o ombro do príncipe. – Não é provável que eu lhe peça para cometer suicídio logo depois de me esforçar tanto para salvar sua vida.

Bhagirath arriscou um meio-sorriso.– o que o senhor cantou para o meu cavalo, milorde?– Sente-se comigo para dividir um chillum, e qualquer hora eu lhe ensino.– Será uma honra me sentar a seus pés e aprender, milorde.– Não se sente aos meus pés, meu amigo. Sente-se ao meu lado.

assim poderá ouvir melhor.Desta vez Bhagirath sorriu e Shiva deu um tapinha em seu ombro.