seabra fagundes - conceito de mérito

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, DOUTRINA CONCEITO DE MtRITO NO DIREITO ADMINISTRATIVO M. SEABRA FAGUNDES Advogado no Distrito Federal SUMÁRIO: Contrôle jurisdicional sôbre atos administrativos. Oportunidade e conveniência. Identificação do mérito. No- ção processual e noção administrativa. Atos discricionários e atos vinculados. Promoção de funcionários públicos. 0u- tros exemplos. Opiniões doutrinárias. Distinção entre mé- rito e legalidade. Atuação do Poder Executivo e do Poder Judiciário. Interpretação da Lei n.O 221, de 1894. Conclusões. 1. O conceito de mérito no Direito Administrativo reveste a maior importância, de vez que permite, pela discriminação de um elemento in- tegrante de certos atos administrativos e isento do contrôle jurisdi- cional, delimitar, a determinado ângulo, o âmbito dêsse contrôle sôbre a Administração Pública. 1 2. Considera-se que o mérito do ato administrativo constitui um aspecto do procedimento da Administração, de tal modo relacionado com circunstâncias e apreciações só perceptíveis ao administrador, dados os processos de indagação de que dispõe e a índole da função por êle exercida, que ao juiz é vedado penetrar no seu conhecimento. Se o fizesse exorbitaria, ultrapassando o campo da apreciação jurídica (legalidade ou legitimidade), que lhe é reservado como órgão especí- fico de preservação da ordem legal, para incursionar no terreno da ges- tão política (discricionariedade), próprio dos órgãos executivos. Substi- tuir-se-ia ao administrador, quando o seu papel não é tomar-lhe a posi- ção no mecanismo jurídico-constitucional do regime, senão apenas con- tê-los nos estritos limites da ordem jurídica (contrôle preventivo) ou compelí-Io a que os retome, se acaso transpostos (contrôle a posteriori) . 3. Nem constituem exceção a êsse princípio os casos em que o Judiciário desce às últimas conseqüências da execução (como nas 1 Supremo Tribunal Federal. ap. civil n.o 4.454. Arq. Judíciário. ,01. 41. ps. 301; ap. civil n.o 6.385. Arq. Judiciário. vol. 43. ps. 451; rec. ext. n.o 8.575. Rev. Dir. Administrativo, vol. 3.°. ps. 194-238; T. J. do Rio Grande do Sul. ap. civil n.o 2.213, Rev. Dir. Administrativo, vol. 1.°, ps. 193-204; Tribunal Federal de Recursos. ap. civil n.o 1.335, D.J. de 17-11-50. apenso ao n.o 263. pgs. 3.704-3.707. B.1

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conceito de mérito administrativo

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    DOUTRINA

    CONCEITO DE MtRITO NO DIREITO ADMINISTRATIVO

    M. SEABRA FAGUNDES Advogado no Distrito Federal

    SUMRIO: Contrle jurisdicional sbre atos administrativos. Oportunidade e convenincia. Identificao do mrito. No-o processual e noo administrativa. Atos discricionrios e atos vinculados. Promoo de funcionrios pblicos. 0u-tros exemplos. Opinies doutrinrias. Distino entre m-rito e legalidade. Atuao do Poder Executivo e do Poder Judicirio. Interpretao da Lei n.O 221, de 1894. Concluses.

    1. O conceito de mrito no Direito Administrativo reveste a maior importncia, de vez que permite, pela discriminao de um elemento in-tegrante de certos atos administrativos e isento do contrle jurisdi-cional, delimitar, a determinado ngulo, o mbito dsse contrle sbre a Administrao Pblica.1

    2. Considera-se que o mrito do ato administrativo constitui um aspecto do procedimento da Administrao, de tal modo relacionado com circunstncias e apreciaes s perceptveis ao administrador, dados os processos de indagao de que dispe e a ndole da funo por le exercida, que ao juiz vedado penetrar no seu conhecimento. Se o fizesse exorbitaria, ultrapassando o campo da apreciao jurdica (legalidade ou legitimidade), que lhe reservado como rgo espec-fico de preservao da ordem legal, para incursionar no terreno da ges-to poltica (discricionariedade), prprio dos rgos executivos. Substi-tuir-se-ia ao administrador, quando o seu papel no tomar-lhe a posi-o no mecanismo jurdico-constitucional do regime, seno apenas con-t-los nos estritos limites da ordem jurdica (contrle preventivo) ou compel-Io a que os retome, se acaso transpostos (contrle a posteriori) .

    3. Nem constituem exceo a sse princpio os casos em que o Judicirio desce s ltimas conseqncias da execuo (como nas

    1 Supremo Tribunal Federal. ap. civil n.o 4.454. Arq. Judcirio. ,01. 41. ps. 301; ap. civil n.o 6.385. Arq. Judicirio. vol. 43. ps. 451; rec. ext. n.o 8.575. Rev. Dir. Administrativo, vol. 3.. ps. 194-238; T. J. do Rio Grande do Sul. ap. civil n.o 2.213, Rev. Dir. Administrativo, vol. 1., ps. 193-204; Tribunal Federal de Recursos. ap. civil n.o 1.335, D.J. de 17-11-50. apenso ao n.o 263. pgs. 3.704-3.707.

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    aes possessrias ao impor, pela fra, o cumprimento dos mandados proibitrios, reintegratrios, etc.), pois nles o contrle sempre de legalidade. A intensidade com que se exerce no no desvirtua em qualidade. O juiz, no desdobrar do processo executrio, no se substi-tui ao administrador naquilo que lhe estritamente peculiar, isto , na apreciao poltica, ou, se se quiser, discricionria do procedimento administrativo. No passa a praticar medidas ou a tomar resolues, de cunho poltico-administrativo. No aprecia solues diversas, no se decide entre umas e outras. Faz, to somente, cumprir a lei em resguardo de um direito subjetivo do indivduo, assegurando a ste a nica soluo (ou uma dentre solues alternativas previamente fixa-das pelo legislador, o que d no mesmo do ponto de vista da limitao do contedo substancial do provimento) autorizada pelos textos es-critos. Assegura o cumprimento estrito da lei (contrle de legalidade) ; no escolhe entre solues d~ convenincia discutvel pelo confronto de umas com outras (o que seria um contrle de discricionariedade). A sua vontade substitui-se da autoridade administrativa nas provi-dncias (preestabelecidas na lei), de execuo, o que est perfeita-mente concorde com a posio institucional do Poder Judicirio. No na substitui na escolha entre critrios polticos deixados sua opo, e s isto poderia representar uma usurpao pela Justia da discri-cionariedade privativa do Poder Executivo.

    4. O mrito est no sentido poltico do ato administrativo. o sentido dle em funo das normas da boa administrao. Ou, nou-tras palavras: o seu sentido como procedimento que atende ao inte-rsse pblico, e, ao mesmo tempo, o ajusta aos intersses privados, que tda medida administrativa tem de levar em conta.2 Por isso exprime sempre um juzo comparativo.3

    Compreende os aspectos, nem sempre de fcil percepo, atinentes ao acrto, justia, utilidade, equidade, razoabilidade, moralidade, etc., de cada procedimento administrativo.

    sses aspectos muitos autores os resumem no binmio: oportuni-dade e convenincia.4

    5. A identificao do mrito no ato administrativo nem sempre fciJ.5 Em alguns casos le parecer confundir-se com o motivo do

    Z Prticamente o mrito se traduz na apreciao quase pessoal do agente sbre certos fatos, circunstncias ou coisas, apreciao que o pode levar a agir num sentido ou noutro e at a abster-se de qualquer ao.

    3 Da porque ao prisma do merecimento no se diz que o ato legal ou ilegtimo. seno que ou no o devia ser, que bom ou mau, que melhor ou pior do que outro (nosso O Contrle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio. Z.a edio. ps. 179.)

    4 Presutti. Istituzioni di Diritto Amministrativo Italiano. 3.a edio. vaI. I. ps. 156-157; Lentini. Istituzioni di Diritto Amministrativo. 3.a edio, vo1. lI. ps. 80-81; Orlando, Primo Trattato Completo di Diritto Amministrativo ltG/iano. z.a edio. vo-lume 11I. sego parte. pS. 55-56; Treves. La resunzione di Legittimit degli Atti Ammi-nistrativi. 1936. pS. 11; Fzs Vital. Garantias Jurisdicionais da Legalidade na Adminis-trao Pblica. 1938. pS. 124.

    5 E se difcil identific-lo em espcie. mais embaraow ainda o caracteriz-lo a priori. ou seja. mediante critrio genrico (Raggi. Diritto Amministrativo. 1936. pgs.115).

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    ato; noutros com a finalidade. que o mrito se constitui dsses impondervis de que fala William A. Robson, presentes no procedi-mento administrativo, mas insusceptveis de determinao precisa como a que comportam os aspectos legais de tal procedimento.6

    6. Serve, tipicamente, demonstrao das sutilezas, a que por vzes leva a caracterizao do mrito, o ato de demisso de funcio-nrio pblico mediante processo administrativo.

    H quem identifique o contedo do processo, a prova que colige, os fatos que constata, com o merecimento do ato que demite. Nle estaro as razes de escolha do administrador titular do poder de demitir. E, ento, partindo da, ou se nega que o Judicirio possa apreciar o processo administrativo para dizer da legitimidade da demisso 7 ou, se sustenta que, apesar de nle se envolver o mere-cimento do ato, h razes que justificam o seu exame pela Justia.8

    Ao nosso modo de ver, todavia, no inqurito, no que le apure, no que baseado nle decida a autoridade administrativa, no exame posterior do seu contedo pelo Poder Judicirio, no se envolve, nem posto em jgo aspecto de mrito do ato de demisso. O processo administrativo se destina a fazer apurar o motivo do ato, e somente isto.9 apenas um processo especial por que se indaga, em caso deter-minado (funcionrio com estabilidade), se ocorre, ou no, causa legal-mente capaz de autorizar a dispensa do servio pblico.lO Se constatado motivo legal o funcionrio demitido; se no constatado, permanece nos quadros da Administrao. No se tem em mira apurar um mo- que sempre embaraoso traar fronteiras entre as questes, que s.:: comportam nos estritos limites das regras de direito e aquelas que penetram no campo extra-jurdico das indagaes polticas (Robson. Justice and Adrr.inistrati~'e La~', za edio, ps. 288.)

    6 Obro cit., ps. 286-288. 7 Supremo Tribunal Federal. ap. civil n.o 5 535, Arq. Judicirio, "01. 15,

    ps. 271. ap. civil n.o 6 845, ReIJ Forense, vol. 78, p. 495, votos do ministro Jos Linhares na ap. civil e nos embargos n.o 7.307, Rev. Dir. AdministratiIJo, vol. 3., ps. 90 e 92-93; Tribunal Federal de Recursos, notas dos ministros Cunha Vasconcelos, Henrique D'vila e Mouro Russel. D J de 17-11-50, apenso ao n.o 226, pS. 3.704--3.706.

    8 Supremo Tribunal Federal, votos dos ministros Orosimbo Nonato e Castro Nunes. na ap. civil e embargos n.o 8.311. ReIJ. Dir. AdministratiIJo, vol. 2., ps. 689 e 692-697. votos dos ministros Castro Nunes, Orosimbo Nonato, Filadelfo Azevedo e Valdemar Falco, na ap. civil e embargos nO 7 307, ReIJ. de Direito Administrativo. vol. 3., ps. 74-79, 79-83. 83-84, 87-89. 93-95. 96-98; Vitor Nunes Leal. "O exa-me. pelo Judicirio, da legalidade dos atos administrativos". Rev. Dir. Administrativo, vol. 3.. ps. 70-98.

    9 Nosso. O Contrle dos Atos AdministratiIJos pelo Poder JudiciriO, l.a edio. pS. II 8 -119.

    10 Pela primeira vez encontramos a questo posta a sse ngulo. em de-ciso judiciria. num aresto do Tribunal Federal de Recursos. Examinando a demisso de funcionrio. contra o qual o processo administrativo nada apurara, os ministros Djalma da Cunha Melo, Afrnio Costa e Sampaio Costa. em votos vencedores. aludem inexistncia de motivo para o ato como uma questo concernente legalidade (em-bargos ap. civil n.o I 335. D J. de 17-11-50. apenso n.o 263. ps. 3.705-3.707). Conquanto no os preocupasse. como se v das exposies que fizeram, o aspecto terico do problema. o certo que. sbre os seus pronunciamentos tendo assentado o vencido. o ponto de vista que expenderam. representa precisa contr1buio jurisprudencial ao conveniente tratamento do assunto pela doutrina.

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    tivo qualquer, que se possa haver, a juzo do administrador, como razovel ou desarrazoado para autorizar a demisso. O que se in-daga, coligindo provas, se ocorreu um motivo predeterminado na lei como capaz de autorizar a demisso.lI

    No h diversidade, substancialmente, entre a indagao, no in-qurito, da ocorrncia de motivo legal para demitir e a contagem de tempo de servio para promover por antiguidade.12 Num caso,

    II Ranelletti, analisando o excesso de poder como vcio de ato administrativo relacionado com o motivo, adverte o intrprete, em consideraes que abonam o nosso ponto de vista, contra a tendncia a classificar o defeito de procedimento, nesse caso, entre os vcios de mrito.

    Para lc ocorre excesso de poder sempre que a autoridade pratica o ato sem levar em conta tdas as circunstncias essenciais de um fato, ou dste faz apreciao ilgica e irracional. Ser de ilegitimidade o caso em que se aprecia mal o fato, por omisso de circunstncias a le pertinentes, de sorte a se lhe emprestar sentido diferente do que em realidade apresenta; envolver aspecto de mrito o caso em que, assente com pre-ciso a existncia do fato. a autoridade lhe empresta ste ou aqule valor em relao ao procedimento que toma.

    Exemplificando, o insigne publicista italiano ainda mais precisament~ corrobora a opinio que sustentamos, eis que o exemplo do qual se socorre - demisso de funcio-nrio - \'Cm coincidir com o do texto.

    "Se um empregado demitido, diz le. por certos fatos e se discute se sses fatos so to graves que justificam a demisso, esta avaliao da gravidade ou impor-tncia dos fatos. para os efeitos administrativos. questo de mrito e no de legiti-midade" (Le Guarentigie del!a Giustizia nelIa Pubblica Ammnistrazione. 4. a edio. ps. 9G-98). .

    Logo. se a autoridade que demite no lenda a mdir a falta do funcionrio na sua rekvncia. mas apenas, por que tudo j previsto na lei. a constatar a sua ocorrncia. para da, automticamente. derir a necessidade da demisso. a questo de legalidade.

    E, em nosso sistema jurdico. no caso de demisso de funcionrio mediante inqurito. no cabe a'ltoridade graduar a falta. graduando. em conseqncia, a sano dela de-corren'c. O que lhe compete apurar um fato. que. se existente, dar, por fra, opor-tunidade pena.

    l\'cm a diversidade de sanes que a legislao de pessoal prev (advertncia, censura. suspenso, etc.) deixa ao administr3dor o poder de graduao. cujo exerccio se traduziria em apreciaes de mrito. A hierarquia das penas est prevista na lei segundo a gra-vidade das faltas. Ao executor o que compete verificar se o fato ste ou aqule e, em funo do que verifique. declarar incidente esta ou aquela pena.

    12 O Tribunal Federal de Recursos. partindo do princpio de ampla defesa nos executivos fiscais, teve ocasio de decidir que. nesses casos, o Judicirio examina o ato administrativo em seu prprio merecimento; afirma ou nega a existncia do prprio fato (ap. civil n.o 446, Rev. Dir. Administrativo, vol. 15, ps. 109-117). Tal como no exemplo figurado no texto, a se toma por mrito o motivo do ato.

    A apreciao sbre a existncia do fato determinante da obrigao tributria no envolve questo de mrito. Por mais ampla que seja, do ponto de vista processual, a indagao feita a respeito ficar adstrita, em substncia, existncia ou no do fato. Se existente ste, a obrigao ser havida como legtima (procedncia da ao). se inexistente ser ela considerada nula (improcedncia da ao),

    A sentena no analisa o fato para dle tirar dedues. de modo a julgar o tributo justo ou injusto, o que significaria apreciao de mrito. Apenas o constata ou o nega. para declarar, na primeira hiptese. que, ocorrente, a lei que o torna causa de obrigao tributria tem aplicao. e, na segunda, que. inexistindo. a lei fiscal no pode incidir. pois no opera no vazio.

    Nem mesmo quando se discute a classificao tarifria de um artigo, o juiz pe-netra no mrito da obrigao tributria. Ao declarar cabvel uma classificao e no outra. o que faz . to smente. ajustar a um fato ou circunstncia certo texto de lei. No enquadra a incidncia corno lhe parece convir. Declara que, aqule fato. aquela

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    como no outro, ali designada comisso especial, aqui entregue a apu-rao rotina do servio de pessoal de cada departamento, o que se investiga a existncia do motivo, ao qual o direito positivo condi-ciona o ato do administrador (falta capitulada na lei ou tempo de servio) .

    Ora, se assim , est visto que o contedo do inqurito diz res-peito apenas ao motivo do ato, envolvendo, dessarte, matria de lega-lidade e no de mrito. O que, dle resulta a constatao da exis-tncia ou no de elemento indispensvel prtica da medida,13

    Tanto que a sentena, ao invalidar ato de demisso, no diz que ste foi mau ou injusto e sim que houve ou no houve motivo para a sua prtica. H

    7. A noo processual de mrito no tem nenhuma correlao com a noo de mrito no Direito Administrativo. Trata-se de noes diferentes quantitativa e qualitativamente. Por isto mesmo, para bem fixar o conceito de mrito no ato administrativo preciso abstrair de qualquer considerao do conceito de mrito no Direito Processual.

    Sob o ponto de vista do processo civil se entende por mrito o contedo substancial da lide, isto , o contedo do contraditrio com base em regras de direito substantivo, por oposio s questes de cunho meramente processual,15 O mrito ento um elemento cons-tante e principal. Existe em tda demanda e centraliza as preten-ses das partes. S excepcionalmente o juiz deixar de examin-lo.

    Ao prisma do Direito Administrativo o mrito no um elemento essencial, nem constante, seno eventual e restrito. E' apenas, e em certos casos, um dos fatres que, conjuntamente, compem o ato admi-nistrativo.

    No exemplo, a que vimos de nos reportar, do ato da demisso de funcionrio com estabilidade, a distino se evidencia.

    Se considerssemos o contedo do inqurito ao prisma processual, nle, no que apurasse, estaria o mrito. Os elementos que coligisse concentrariam as pretenses da Administrao (acusao) e do fun-cionrio (defesa).

    Mas, visto ao ngulo do Direito Administrativo, no se leva em conta o contraditrio, mesmo imperfeito, que nle se arma, e sim o resultado a que chega unilateralmente a Administrao, como conse-qncia do que atravs dle conseguiu investigar e provar para a sa-

    circunstncia, etc., esto previstos em determinado inciso de lei; que o texto a aplicar ste e no aqule.

    13 Gonalves de Oliveira nega ao Judicirio o poder de examinar a prova do inqurito para emprestar-lhe sentido diverso daquele, que lhe atribuiu o administrador. Mas ressalva: se, no estudo da demanda, ao juiz resultar evidente que nenhuma falta existiu, que o processo administrativo constituiu mera formalidade para mascarar o ato ilcito da demisso, ter havido abuso de poder ou ilegalidade e o ato respectivo ser passvel de anulao pelo Poder Judicirio ("O exame pelo Poder Judicirio da legali-dade dos atos de demisso de funcionrios pblicos", Rev. Dir. Administrativo, vol. I. ps. 193-203.

    14 Nosso, O Contrle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio, Z.a edio, n.o 65, nota 7, ps. 175-185.

    15 Nosso, Dos ReclUSOS Ordinrios em Matria Civil, 1946, ps. 252-260.

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    tisfao de dois mandamentos da lei: o que exige o processo admi-nistrativo e o que autoriza demitir funcionrio convencido de certa falta .

    8. Pressupondo o mrito do ato administrativo a possibilidade de opo, por parte do administrador, no que respeita ao sentido do ato - que poder inspirar-se em diferentes razes, de sorte a ter lugar num momento ou noutro, como poder apresentar-se com ste ou aqule objetivo - constitui fator apenas pertinente aos atos discri-cionrios.

    Onde se trate de competncia vinculada, sendo a atividade do administrador adstrita a um motivo nico, predeterminado, cuja ocor-rncia material lhe cabe to somente constatar, e devendo ter o pro-cedimento administrativo por objeto uma certa e determinada me-dida, expressamente prevista pela lei, no h cogitar do mrito como um dos fatres integrantes do ato administrativo.16 ~ste se apresenta simplificado, pela ausncia de tal fator.

    9. E, alm de s pertinente aos atos praticados no exerccio de competncia discricionria, no constitui o mrito um fator essencial, nem autnomo na integrao do ato administrativo. No aparece com posio prpria ao lado dos elementos essenciais (manifestao da vontade, motivo, objeto, finalidade e forma). Surge em conexo com o motivo e o objeto. Relaciona-se com les. E' um aspecto que lhes diz respeito. E' u'a maneira de consider-los na prtica do ato. , em suma, o contedo discricionrio dsteP

    10. Afigurar-se- estranho, talvez, que o mrito, como elemento integrante do ato administrativo, s exista no ato discricionrio.

    Tanto mais quanto, se se analisa o procedimento administrativo concretizado afinal em um ato vinculado, no possvel abstrair, tendo em vista a situao individual por le atingida e o intersse da Admi-nistrao Pblica, de consideraes atinentes sua justia, oportuni-dade, razoabilidade, etc. O ato administrativo decorrente do exerccio de competncia estrita tambm se pode mostrar, do mesmo modo que o emanado do exerccio de competncia livre, justo ou injusto, opor-

    16 Edoardo Garbagnati. La Giurisdizione Amministratiua. 1950. ps. 70-78: Giannini. Lezioni di Dirirro AmministratiL'o. 195 O. vo1. L ps. 100: Zanobini. Corso di Dirirro Amministrctiuo. 1939. voI. lI. ps. 254: Prcsutti. obr. e voI. cits .. pi. 123 e 337: Meueei. lstituzioni di Dirirro Amministratiuo, 1894, ps. 76-83.

    I 7 Aqui ocorre-nos que a posio do mrito. no procesSlls de formao do ato administrativo, assemelha-se, no critrio da sua explicao. posio que Liebman assinala autoridade de coisa julgada no processus de atuao da sentena. Para o ilustre docente de Pvia a autoridade de coisa julgada no propriamente um efeito da deciso. "mas apenas um modo de se manifestarem e produzirem os efeitos da sentena mesma. qualquer coisa que a stes efeitos se ajusta para qualific-los e refor-los em sentido bem determinado" (Efficacia ed Autorit deIla Sentenza. 1946. ps. 27). Assim o mrito no ato administrativo. Pode-se dizer. em certo sentido. que no constitui le, propriamente e a rigor. um dos seus elementos componentes. Ser um aspecto relacionado com dois dsses elementos (motivo e objeto). Ser a maneira pela qual so encarados sses elementos ao praticar-se o ato.

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    tuno ou inoportuno, razovel ou desarrazoado, til ou pernicioso, bom ou mau.

    N a promoo por antiguidade, ato vinculado tpico, consideran-do-se a pessoa do agente e o servio no qual serve, se podem desco-brir inconvenientes ou vantagens. Embora obrigada a Administrao a praticar o ato, nem por isto le deixa de ter aspectos alheios estrita legalidade.

    11. Explica-se, no obstante, que o mrito seja elemento inte-grante apenas dos atos administrativos discricionrios.

    E' que, quando a Administrao exerce competncia estrita, ou seja, quando pratica ato vinculado, j encontra esgotado o contedo poltico (mrito) do processo de realizao da vontade estatal. A me-dida assim tomada j foi objeto de anlise e de soluo optativa ante-riores pelo legislador. O administrador apenas torna efetiva a solu-o pre-assentada.

    12. No processus, de expresso da vontade do Estado (manifes-tao e execuo), h sempre que optar entre solues. Essa escolha constitui o exerccio da discrio, como atributo do Estado.

    Qualquer dos trs poderes do Estado, na oportunidade de ex-pressar-lhe a vontade, pode apresentar-se investido do atributo da dis-crio, ou melhor, de uma competncia discricionria.

    Sendo o Poder Legislativo o criador da norma jurdica, do di-reito positivo ordinrio, somente sujeito suprema autoridade da Constituio, a sua discricionariedade a mais ampla. Cabe-lhe, mo-vimentando-se dentro da elasticidade prpria das regras constitucio-nais, criar a ordem legal como, ao seu juzo, se afigure conveniente. As prprias restries de ordem constitucional so escassas quantita-tivamente. As diretrizes rgidas, no comportando opo entre crit-rios, dispensando regulao ampliativa ou complementar, so pouco numerosas.

    No exercer, porm, a sua atividade discricionria, o legislador no esgota as possibilidades de opo peculiares ao exerccio da atividade estatal. As vzes por absteno voluntria, outras, as mais dentre elas, pela impossibilidade de abranger satisfatoriamente, no contexto de cnones preestabelecidos, as mltiplas realidades supervenientes.18

    Oferece-se, ento, margem ao exerccio da discrio pelos rgos meramente executores - o Poder Administrativo e o Poder Judi-cirio.

    O primeiro, atuando sbre u'a massa de relaes jurdicas e de fato muito maior que o segundo, tendo sbre si a responsabilidade do funcionamento permanente, contnuo, ininterrupto da vida coletiva

    18 Algumas vzes o legislador, abstendo-se do seu poder de iniciativa, deixa uma to larga margem atividade realizadora da Administrao, que esta se traduz em duas fases: uma normativa, exercida atravs do poder regulamentar; outra de execuo direta, exerCida mediante atos administrativos especiais. E, ento, sob o pretxto de revelar o pensamento lacunoso do legislador a discrio administrativa, se traduz, d-Io Carlos Medeiros Silva, em verdadeira criao da norma jurdica ("O Poder Regula-mentar e sua Extenso", Rev. Dir. Administrativo, vol. 20, ps. 1 e 2).

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    sob a ao e o incentivo do Estado, fica, por isto mesmo, com um largo campo atividade discricionria, ou seja, atividade que im-plica escolha entre critrios.

    Ao Poder Judicirio se reserva o exerccio da discrio num mbito quantitativa e qualitativamente muito mais limitado. Em princpio s interferindo no processus de realizao da vontade estatal quando provocado e para solver conflitos, a margem de atividade discricionria, que lhe toca, em correlao com essas circunstncias, restrita na extenso e natureza. Somente na total omisso do di-reito,19 ou na impossibilidade da sua aplicao por exigir a relao ajuizada soluo adrede construda 20 (sentena dispositiva) ,21 cabe-lhe decidir escolhendo um critrio.

    Sendo a discrio do legislador a mais ampla em contedo e a primeira a manifestar-se, cronologicamente, no processus de expres-so da vontade do Estado, a discrio reservada ao administrador e ao juiz pode dizer-se, em certo sentido, residual. Exerce-se no que no tenha sido regulado pela lei. Onde e quando se manifeste, em tda a plenitude, a discrio do Poder Legislativo, j no haver opes confiadas aos Poderes Executivo e Legislativo no processus de expresso da vontade estatal. Exaurindo a lei as possibilidades de escolha, no resta seno cumpr-Ia, individualizando a soluo por ela predeterminada.

    Da no ato administrativo resultante de competncia vinculada no se poder falar de mrito. ste, como sentido varivel do ato em funo de certas circunstncias, no existe. A Administrao, pre-fixados rigidamente os contornos da atividade executiva a exercer-se em face de determinada situao de fato, no escolhe uma soluo. Constata apenas a ocorrncia dessa situao e lhe atribui as conse-qncias previstas na lei.

    13. A promoo de funcionrio pblico, pelo duplo feitio que pode revestir, serve bem a demonstrar essa diversidade de sentido dos atos administrativos. Permite identificar o mrito no ato discri-cionrio e constatar-lhe a ausncia no ato vinculado.

    Na promoo por merecimento a lei deixa ao administrador es-colher entre vrios funcionrios, aqule que, pelas suas qualidades e, conseqentemente, no intersse do servio, melhor merea o acesso. Traa Administrao apenas algumas normas genricas indicando qualidades, que autorizem o acesso e fornecendo indicaes para a sua apurao e mensurao. chefia do servio fica, jogando com sses dados flexveis, preferir aqule que se lhe afigure o funcion-rio de maior merecimento. Cabe-lhe realizar um trabalho de esco-lha, praticando o ato com os motivos e o contedo, que se lhe afi-gurem os melhores, ou seja, praticando-o, pela aceitao de certas

    19 Cdigo de Processo Civil, art. 113. 20 Cdigo de Processo Civil, art. 114. 21 Da classificao de Carnellutti (Lezioni di Diritto Processual!', 1933, yol. 11.

    ps. 12-28).

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    razes, em favor de A e no de B e C. Pelo confronto entre diversos funcionrios, considera-se que um rene mais e melhores requisi-tos de idoneidade moral e profissional para o acesso do que outros. A prtica do ato envolve, portanto, uma apreciao da sua justia. Nessa apreciao, que se traduz objetivamente na escolha do bene-ficirio do acesso, numa opo afinal de contas, est o mrito.

    A promoo por antiguidade, efetuando-se sem qualquer possi-bilidade de ponderao das qualidades pessoais e profissionais do fun-cionrio, no enseja chefia do servio um julgamento para a es-colha do beneficirio do ato. ste j vem predeterminado por um critrio (tempo de servio) institudo na lei. Cabe ao administrador, to somente, constatar a ocorrncia material do pressuposto da apli-cao dsse critrio (datas de ingresso no servio pblico ou das promoes anteriores dos funcionrios de u'a mesma categoria). No lhe cumpre ajuizar e decdir da justia ou convenincia do acesso. sses aspectos foram pre-resolvidos pelo legislador, o qual, no mo-mento de fixar o rgido critrio da antiguidade, sups atender ao in-tersse pblico, pois o tirocnio na funo deve traduzir-se em expe-rincia e aptido, e ao intersse do funcionrio, que, antigo no ser-vio, aguarda a melhoria de condio como um ato de justia. No h portanto, aspectos de mrito (justia, convenincia, etc.), pen-dentes do conhecimento da Administrao.

    Mas no s o ato de promoo, seno muitos outros podem vir baila para deixar claro, que o mrito existe no ato administrativo praticado em virtude de competncia livre e inexiste no oriundo de competncia vinculada.

    O despacho deferindo pedido de registro de um diploma de m-dico no Ministrio da Educao e Sade no provm de uma opo. Pressups o legislador que aqule que sai de uma Faculdade de Me-dicina, oficial ou reconhecida, estar habilitado a exercer a profisso mdica. No ato do registro cumpre ao administrador, unicamente, apurar a veracidade e regularidade do diploma. Constata um fato. No aprecia fatos diversos para entre les se pronunciar. No de-cide da convenincia ou inconvenincia de autorizar o exerccio da profisso a mais um mdico, no designa sede sua clnica segundo se possa afigurar mais til coletividade. No d, por conseguinte, providncias que envolvam apreciaes de mrito.

    O mesmo de dizer de um lanamento de impsto sbre a renda. Faz-se em funo de fatos, cuja existncia o agente do Fisco apenas verifica. A convenincia de tributar a renda de certa profisso, a van-tagem de grav-la em mais ou em menos, so aspectos que o legis-lador pre-examinou e pre-resolveu, no deixando margem anlise do administrador sbre o merecimento.

    J diferentes so as situaes que se desenham com a outorga de uma licena para o estabelecimento de depsito de inflamveis, ou com a concesso de uma carteira de motorista. Ali, admitido pela lei, em princpio, aqule gnero de comrcio, prescrevem-se-Ihe, no entanto, cautelas, que ao administrador cabe detalhar e medir (localizao em

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    zona inabitada, preveno eficiente contra incndio, etc.). No escolher o local, no reconhecer a eficcia do servio de extino de fgo, a Ad-ministrao manifesta-se entre solues diferentes, o seu ato pode dizer-se bom ou mau, conveniente ou inconveniente, til ou nocivo. E sses so aspectos de mrito.

    Para expedir documento de habilitao profissional a motorista, o agente de trnsito analisa a sua aptido, compara-a com padres ideais e com a aptido de terceiros j habilitados. Decide, portanto, livremente, aps o exame de uma srie de circunstncias. No acrto ou rro que tenha cometido ao decidir, estar o mrito do ato.

    14. A circunstncia do mrito inexistir como elemento do ato vinculado e integrar o conjunto dos elementos componentes do ato discricionrio, repercute, de modo relevante, como observamos de in-cio, sbre a extenso do contrle jurisdicional. ste pleno em se tratando de atos praticados no exerccio de competncia estrita e limi-tado quando se trata de atos de sentido discricionrio. Nos primeiros, s havendo a examinar aspectos de legalidade, nada escapa reviso judicial. Nos segundos, existindo, ao lado dos aspectos legais, aspectos de mrito (os concernentes ao motivo e ao objeto), a autoridade judi-ciria no lhes devassa todo o contedo. Distingue entre o que constitui merecimento e legalidade para somente pronunciar-se quanto aos as-pectos legais.

    15. Alguns autores opem objeo a sse ponto de vista. Tm o mrito como tambm pertinente aos atos vinculados e admitem que at le se estenda o contrle jurisdicional.Z2

    16. Bartolome Fiorini um dles. Estudando o contrle sbre o merecimento dos atos administrativos, entende que o mrito, como "condio de eficcia" no exclusivo do "ato produzido pela ati-vidade discricionria", sendo tambm prprio da "atividade vincula-da". E acrescenta:

    "Quando ste juzo de eficcia no satisfaz plenamente, a admi-nistrao deve ter meios para repel-Io e substitu-lo por outro mais meritrio" .

    22 Alis, ns mesmos chegamos a admitir alhures, embora com res~rvas f-cilmente perceptveis das palanas que usamos, se pudesse constatar a presena do me-recimento tambm no ato vinculado:

    "Envolve (o mrito) a margem de discrio, que, via de regra, se deixa ao administrador, maior nos atos confiados comoetncia lIvre, menor ou nula (pois em certos casos o prprio legislador ;xaurc a mar-gem de opo) nos dependentes de competncia vinculada" (O Contrle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio, 2.a edio, nota 7, pgina 179).

    Estudando melhor o assunto, exatamente pelas dvidas que nos suscitara ao Exa-min-lo nessa oportunidade, convencemo-nos de que nos atos administrativos vinculados no h cogitar do mrito. A vinculao ou plena ou inexiste. Desde que na lei se deixe qualquer fresta opo do administrador, a competncia outorgada ser discricio-nria. Poder, s-lo minimamente, se mnima fr a zona de opo reservada ao agente administrativo, mas no obstante o ser.

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    Para depois insistir: "O mrito de um ato no patrimnio exclusivo de uma s classe

    de atividade; logo o contrle para esta classe de defeitos no corres-ponde especificamente discricionariedade, seno a tda a atividade administrativa. " ......................................

    ,

    "O mrito de eficcia se apresenta como condio necessria em qualquer ato administrativo independente da discricionariedade".23

    Afigura-se-nos manifesto o equvoco do lcido jurista argentino. E a sua origem est na identificao do procedimento estatal na reali-zao do direito (elaborao e aplicao), com o ato administrativo, que envolve to somente uma fase dle, isto , a fase de aplicao.

    Certo, como j vimos, no processus de realizao do direito, con-fiado a dois rgos do Estado - o Poder Legislativo elaborando a norma, a Administrao (ou, s vzes, o Judicirio) dando-lhe exe-cuo - h sempre a considerar a convenincia, a oportunidade, a justia, a razoabilidade, etc., de cada procedimento estatal. E, assim sendo, ao ngulo do merecimento (ou da eficcia, do mrito da efi-ccia, como prefere dizer o citado publicista), tanto o ato adminis-trativo vinculado, como o discricionrio, supem uma apreciao de utilidade.

    O que acontece, porm, nos casos de competncia vinculada faz-se oportuno repetir - que a lei (fase primria do processus de realizao do direito) exaure a margem de opo prpria do exer-ccio da atividade jurdica do Estado, deixando circunscrito o ato administrativo (fase secundria daquele processus) a estritos limites, sem ensejo para cogitaes sbre o til, o justo, o certo, etc. O aspecto de convenincia, de oportunidade, de eficcia, em suma, para usar da terminologia do ilustre autor, foi exaurido pelo legislador. Nada se deixou ao administrador quanto a le.

    No assim se discricionrio o ato administrativo, pois aqui se confia Administrao, pela liberdade outorgada aos seus movimen-tos, aferir da utilidade ou eficcia, maior ou menor, do procedimen-to estatal na sua fase derradeira.

    17. Vendo o problema a outro prisma tambm sustenta Ant-nio Amorth que atividade discricionria e mrito nem sempre coin-cidem, aquela podendo exercer-se em campo distinto do pertinente ao merecimento. Tanto que - argumenta - a discrio se exercita com submisso a normas jurdicas e comporta contrle jurisdicio-nal, o que no sucede aos aspectos de mrito.24

    A possibilidade do exame jurisdicional incidir sbre o exerccio da competncia discricionria e a sujeio desta a regras jurdicas, no depem, entretanto, contra a coincidncia do mrito com a dis-crio.

    23 La Discrecionalidad en la Administracin Pblica, 1948, ps. 181-182. 24 II M erito dell' Arro Amminisrrarivo, edio Giuffre, ps. 15 -16.

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    Sem dvida a atividade chamada discricionria se submete lei. Tem por esta demarcadas as divisas do seu exerccio, submete-se s linhas mestras que esta prefixa. Dentro, porm, dessas divisas ou dessas linhas, livre (e aqui est a prpria essncia da discricio-nariedade), exercita-se sob a influncia apenas de razes polticas. E' neste plano de insujeio da atividade administrativa a normas propriamente jurdicas, que discrio e mrito se identificam.

    Por outro lado, e em corolrio do que se vem de expor, a apre-ciao jurisdicional da competncia discricionria s se d quando dela abusa o funcionrio administrativo, quando age exorbitando da esfera de ao livre que lhe deixa a lei. E tanto vale dizer, quando o funcionrio supe ou quer fazer supor que est tomando medidas de mrito, mas na verdade age em campo diverso daquele que ao mrito traou a lei. O que nesse caso se analisa no o exerccio da eompetncia discricionria em sua substncia, ou seja, o mrito no seu contedo, mas sim o excesso no uso daquela, a prtica de ato alm ou fora do mbito pretraado discrio, e, portanto, ao mrito. O que se analisa um abuso de competncia, que ste sem-pre um aspecto legal. No se declara que o ato bom ou mau, melhor ou pior, mas apenas que, tal como praticado, representa um abuso do poder de livre ao conferido autoridade administrativa, poder que poderia ser utilizado largamente dentro de certos limites e nunca alm dles.

    Assim exposto o assunto percebe-se que nem a submisso do ato discricionrio legalidade, nem o contrle jurisdicional sbre le atuante, excluem a correlao entre discricionariedade e mrito.

    Da competncia discricionria procede o poder de agir e o m-bito dentro do qual sse poder se pode movimentar constitui o mere-cimer:to. O mrito a medida da discrio.

    18. No nosso pas, Vitor Nunes Leal e Castro Nunes, que se tm ocupado particularmente do assunto, negam a oposio entre m-rito e legalidade do ato administrativo, admitindo possa o mrito si-tuar-se como uma questo de ordem legal. Ambos se pronunciam ao propsito de ato de demisso de funcionrio pblico, precedido de in-qurito administrativo, e se abonam em texto da lei n.o 221, de 1894.

    A opinio do ministro Castro Nunes, manifestada em voto no Supremo Tribunal e reafirmada em recente e valioso trabalho dou-trinrio, assim se expe: "a Lei n.O 221 conferiu ao Judicirio po-deres muito amplos na apreciao dos atos administrativos quando dispe:

    "Consideram-se ilegais os atos ou decises administrativas em razo da no aplicao ou indevida aplicao do direito vigente", acres-centando - "A autoridade judiciria fundar-se- em razes jurdicas, abstendo-se de apreciar o merecimento dos atos administrativos sob o ponto de vista de sua convenincia ou oportunidade".

    Da resulta que a apreciao de mrito interdita ao Judicirio a que se relacione com a convenincia ou oportunidade da medida, no o merecimento por outros aspectos que possam configurar uma apli-

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    cao falsa, VICIOsa ou errnea da lei ou regulamento, hipteses que se enquadram, de um modo geral, na ilegalidade por indevida aplica-o do direito vigente".25

    Vitor Nunes Leal sustenta que "a apurao do motivo (do ato de demisso), pelo estudo das provas, exame de mrito".

    E adita: "nem todo exame de mrito est excludo da noo de legalidade. H questes de mrito que exorbitam da legalidade, como h questes de mrito que se inserem no conceito de legalidade. O mrito exorbitante da legalidade constitudo justamente pelo con-tedo discricionrio (convenincia, oportunidade, razoabilidade etc.) que pode existir mesmo nos atos administrativos vinculados".

    Conclui invocando o voto que vimos de citar, do eminente minis-tro Castro Nunes, onde, ao seu ver, se apreendeu, "com finura e exa-tido", essa "aparente sutileza".26

    19. Aos dois consagrados publicistas parece-nos de opor algu-mas consideraes.

    20. A distino entre mrito e legalidade no um artifcio, no se traduz em mero jgo de palavras. Impe-se em virtude da diviso das funes na vida estatal e da natureza peculiar de cada uma delas.

    Confiada ao Legislativo a edio do direito e reservada ao Exe-cutivo e ao Judicirio a sua execuo, nesta segunda fase se atribui ao administrador aplic-la normalmente e ao juiz dar-lhe aplicao, quando circunstncias incidentes exijam apurar compridamente a ju-ridicidade das medidas executrias. A interveno judicial no pro-cesso de execuo se explica, portanto, pela necessidade de dividir funes e de lhes emprestar especificidade. E a especificidade impe a cada um dos rgos de execuo territrio prprio, peculiar, ex-clusivo. Sendo sse territrio, no que concerne ao Judicirio, como dissemos, o da regularidade legal dos atos executrios, o da sua vali-dez ao prisma da lei, e competindo ao Executivo a aplicao diuturna, na massa imensa de relaes a serem consideradas pelo Estado, em funo de mltiplos intersses em jgo - o pblico, enca_do no prprio Estado e o privado do nmero ilimitado dos indiv s sob a sua jurisdio - se aqule, cuja atuao sempre de segundo grau no processo executrio, no se restringe ao exame dos aspectos jur-dicos dos atos dste, imiscui-se no seu domnio especfico, aprecia as-pectos de mero intersse e no de ordem legal. Ultrapassa, por con-seguinte, o mbito peculiar da funo que lhe compete.

    Assim analisada a mecnica do organismo estatal, bem se v que o campo de atuao do Judicirio o da estrita aplicao da lei, e o da Administrao o da sua aplicao, em face e em funo de in-tersses pblicos e privados.

    25 Rev. Dir. Administrativo, vaI. 3., ps. 75-76; Da Fazenda Pblica em Juzo, 1950, ps. 336-338.

    26 0 exame pelo Judicirio, da legalidade dos atos administrativos", Rev. Dir. Administrativo, vol. 3., ps. 70-98.

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    A necessidade de disCriminar, na terminologia do Direito Admi-nistrativo, sses dois setores - um de atuao sucessiva do Executivo e do Judicirio, outro de atuao exclusiva do Poder Executivo - que explica a adoo das expresses legalidade e mrito. Aquela defi-nindo o mbito da atuao executora, inicialmente competindo Admi-nistrao Pblica, e, posteriormente, em grau de reviso, ao Poder Judicirio; esta outra significando o setor privativo dos rgos da Administrao.

    Desde que se tenha o mrito como simples aspecto da legalidade, os dois conceitos perdem a autonomia, que a sua prpria razo de ser, devendo reduzir-se a um s, ao de legalidade. Pois se o mrito se apresenta apenas como a legalidade, enquanto relacionada Jus-tia, eqidade, etc., do ato, e se dstes aspectos legais pode conhe-cer o juiz, tanto quanto dos outros respeitantes a competncia, mo-tivos, forma, etc. (os que todos aceitam paclficamente como de or-dem jurdica), ento nada os distingue do ponto de vista jurdico. Equivalem-se juridicamente. A distino entre o exame da justia do ato e o da competncia ser de qualidade, do ponto de vista da natureza intrnseca de um e de outro, mas sem repercusso ao pris-ma do direito. No ser uma distino mais significativa, ao ngulo jurdico, que a distino a estabelecer entre os exames da competn-cia e da forma, por exemplo.

    21. Se assim , no se pode ter como prestimoso o subsdio da Lei n.o 221, interpretada letra, naquilo em que, contra tudo quanto preconiza a doutrina, identifica as noes de mrito e legalidade.27 Tanto mais quanto hoje, revogado sse ato legislativo, destitudo de fra obrigatria, no vale o seu texto seno como fonte histrica.

    22. Mesmo quando de p a Lei n.o 221, seria de fugir litera-lidade do seu texto, para ter como exaurentes de todo o mrito as expresses oportunidade e convenincia - art. 13. 9., letra a -a fim de evitar a concluso, menos defensvel, de que o juiz, no po-dendo apreciar no ato administrativo o que se referisse ao momento da su~rtica e sua vantagem para o intersse pblico, pudesse, no enta. apreci-lo no respeitante aos aspectos da sua justia, da sua razoabilidade, da sua moralidade, etc. Nenhuma razo jurdica, pol-tica, ou mesmo lgica, poderia justificar tratamento diferente ao exa-me de aspectos de um mesmo ato, substancialmente equivalentes, in-trinsecamente idnticos.

    23. O sentido literal do texto da Lei n.o 221 conduziria a uma outra concluso tambm inaceitvel: a de que, ainda em relao aos

    27 Ressalvemos. porm. que tais restries. explicveis hoje. quando. j tantos anos passados da lei n.o 221. evoluiu a sistemtica do Direito Administrativo. no signi-ficam. de nenhum modo. desapreo a sse notvel ato legislati\'o. Nessa lei. na sua ousada concepo de contrle do Poder Judicirio sbre os atos administrativos. esto as razes. pode-se dizer com justia. de todo o sistema brasileiro de proteo dos direitos pblicos subjetivos do indivduo. Nos seus autores se h de louvar sempre a superiori-dade com que. elaborando-a. enfrentaram um dos mais delicados problemas do regime constitucional brasileiro.

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    atos discricionrios, o exame jurisdicional se restringiria matria de competncia e excesso de poder, porquanto, no inciso b, 9. ar-tigo 13, est dito:

    "A medida administrativa tomada em virtude de uma faculdade ou poder discricionrio somente ser havida por ilegal em razo da incompetncia da autoridade respectiva ou de excesso do poder".

    Teramos assim que, em relao a tais atos, contra tdas as re-gras de suj eio da Administrao ao direito, o Judicirio no po-deria, pelo menos, controlar, as ilegalidades relativas forma. Por mais irregular que se mostrasse o ato sob o prisma formal, isto no o afetaria. V'a medida que a lei exigisse fsse tomada por es-crito e mediante antecipada notificao do interessado, poderia ter . lugar verbalmente e sem essa prvia cincia.

    24. Bem se v, portanto, que a Lei n.O 221, ontem obrigando, hoje mero subsdio histrico, exigia e exige interpretao cautelosa, capaz de concili-la, razovelmente, com os princpios de diviso das funes estatais e da natureza especfica dessas funes. 28 Sem o que o seu texto termina por traduzir-se, na prtica, em invaso, pelo J u-dicirio, de territrio peculiar ao Executivo e no reconhecimento aos atos dste, pela ausncia de contrle, de uma imunidade parcial para a infrao do direito escrito.

    25. Alis, o texto daquela lei se presta a uma exegese que dis-sipe tais incongruncias. Considerando-se, por exemplo, o inciso A, ainda o 9., art. 13, onde vem delimitado o mbito do contencioso administrativo ("A autoridade judiciria fundar-se- em razes ju-rdicas, abstendo-se de apreciar o merecimento dos atos administrati-vos sob o ponto de vista de sua convenincia ou oportunidade"), ve-rifica-se que o legislador contraps as razes legais s polticas. Ora, estas esto sempre onde no h um critrio estrito prefixado, e, por-tanto, no se tero de circunscrever ao que esteja relacionado com a convenincia e a oportunidade do ato.

    Abrangero os demais aspectos seus, que comportem varivel critrio de apreciao, isto , os concernentes razoabilidade, jus-tia, etc., quantos, afinal, em conjunto, compem o mrito.

    O legislador h de ter querido, portanto, preservar incurso da Justia o territrio extra-legal (reservando-lhe, to s, o exame dos aspectos jurdicos, ou seja, dos que pudessem, examinar-se luz de razes jurdicas), deixando livre Administrao os aspectos po-lticos dos procedimentos da sua alada. O seu intento h de ter sido, em suma, subtrair ao exame jurisdicional tudo quanto respeitasse s repercusses polticas do ato em relao Administrao (convenin-

    28 Da explicvel incompreenso que lavrava ao tempo da lei n.O 221. nos d bem idia a crtica que lhe fz o deputado Gasto da Cunha. na Cmara. Censurou-a por ter admitido apreciao jurisdicional dos atos discricionrios. quando eivados de incompetncia. pois lhe parecia gozarem tais atos de total imunidade perante a justia (apud Viveiros de Castro. Cincia da Administrao e Direito Administrativo. 2.a edio. ps. 601-604).

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    cia e oportunidade, no sentido estrito e usual) e ao indivduo (justia, eqidade, etc., isto , oportunidade e convenincia em sentido lato).

    Concluses: A) O conceito de mrito no Direito Administrativo assume

    particular relvo, por isto que nle assenta um dos critrios de me-dida da extenso do contrle jurisdicional sbre os atos da Admi-nistrao Pblica.

    B) O mrito do ato administrativo est no seu sentido ou con-tedo poltico. Traduz-se, prticamente, na justia, eqidade, utili-dade, razoabilidade, oportunidade, convenincia, etc., de cada medida tomada pela Administrao.

    C) O mrito no constitui elemento autnomo no conjunto dos elementos, que compem o ato administrativo, seno apenas um as-pecto, um modo de ser dsse ato, no que concerne aos motivos e ao objeto.

    D) O merecimento aspecto pertinente apenas aos atos admi-nistrativos praticados no exerccio de competncia discricionria.

    E) Quanto se trata de atividade administrativa vinculada, o aspecto poltico da atividade estatal de realizao do direito, em que se traduz o mrito, no tem cabimento por j ter sido objeto de apre-ciao do legislador.