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Se a Lei Ceder Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho Desembargador do T}/RJ. Ex-presidente da AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros. A propósito da recente decisão plenária do STF sobre a valida- de constitucional da Resolução n.1! 7 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), vedando a prática do nepotismo no âmbito do Poder Judici- ário pelo "expressivo placar de 9 x 1, é importante tecer algumas considerações. E mais especificamente sobre o significado do voto vencido, lançado pelo Min. Marco Aurélio, não para defender seus argumentos de mérito, já que eles não se distinguem daqueles aco- lhidos pela avassaladora maioria, ao contrário, com eles se harmo- nizando. Nesse ponto, torna-se interessante reproduzir o pensamento do próprio prolator do voto vencido, respondendo à indagação do jornalista Fausto Macedo, da Agência Estado, sobre se seria a favor do nepotismo (Jornal do Commercio, sábado, 18, e domingo, 19/02/06, pág. A-8): //1550 é absurdo. Sou contra o nepotismo porque ele não com- bina com os princípios que regem a administração pública em suas três esferas, não apenas no Judiciário como no Executivo e legislativo. Não se coaduna até mesmo com a eficiência no funcionalismo público, porque quase sempre revela uma pro- teção abominável e a prestação de serviços deixa a desejar. No nepotismo prevalece o tradicional o quem indica, onde se busca algo incompat{vel com o interesse público. O con- curso público é o caminho correto. Quem tem valor persegue e alcança o cargo por esse meio. N Revista da EMER/, v. 9, nU 14, 2006 103

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Se a Lei Ceder

Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho Desembargador do T}/RJ. Ex-presidente da AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros.

A propósito da recente decisão plenária do STF sobre a valida­de constitucional da Resolução n.1! 7 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), vedando a prática do nepotismo no âmbito do Poder Judici­ário pelo "expressivo placar de 9 x 1, é importante tecer algumas considerações. E mais especificamente sobre o significado do voto vencido, lançado pelo Min. Marco Aurélio, não para defender seus argumentos de mérito, já que eles não se distinguem daqueles aco­lhidos pela avassaladora maioria, ao contrário, com eles se harmo­nizando.

Nesse ponto, torna-se interessante reproduzir o pensamento do próprio prolator do voto vencido, respondendo à indagação do jornalista Fausto Macedo, da Agência Estado, sobre se seria a favor do nepotismo (Jornal do Commercio, sábado, 18, e domingo, 19/02/06, pág. A-8):

//1550 é absurdo. Sou contra o nepotismo porque ele não com­bina com os princípios que regem a administração pública em suas três esferas, não apenas no Judiciário como no Executivo e legislativo. Não se coaduna até mesmo com a eficiência no funcionalismo público, porque quase sempre revela uma pro­teção abominável e a prestação de serviços deixa a desejar. No nepotismo prevalece o tradicional Q~ o quem indica, onde se busca algo incompat{vel com o interesse público. O con­curso público é o caminho correto. Quem tem valor persegue e alcança o cargo por esse meio. N

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· Aliás, a posição do Min. Marco Aurélio contra o nepotismo era conhecida de há muito, pois no voto que proferiu em 12/03/97 na medida cautelar na ~DI 1.521-4/RS, Tribunal Pleno, já afirmara, re­ferindo-se a regras de vedação do aludido fenômeno, que:

liA um só tempo, mediante normas desse feitio, presta-se uma homenagem à justiça, na mais basilar acepção do termo, per­mitindo-se a quem de direito alcançar o patamar pelo qual pagou o preço do esforço, da dedicação e da competência. ('or outro lado, usando da cartilha dos diletantes do Neoliberalismo, tão em voga nas altas esferas dirigentes do País, cabe lembrar que o mérito é a fórmula eficiente para chegar-se à qualidade total desejada aos serviços públicos, ditos essenciais. Ora, como é possível compatibilizar tais assertivas com a possibilidade de nomeação de parentes próximos para ocupar importantes - e até estratégicos - cargos de direção nas repartições públicas comandadas pelo protetor/"

Voltando ao teor do voto vencido recém-proferido no STF, ne­gou que haja divisão sobre a matéria no âmbito da Corte:

NNão há divisão no STF. Minha forma de atuar todos conhe­cem, é com a maior transparência possível O comÚilte ao nepotismo deve se estender aos demais Poderes. O momento é alvissareiro para uma mudança cultura~ a coisa pública é coisa pública e não de uns poucos. "

Ora, se assim é, o Ministro teve que responder à pergunta 6b­via, que se insinuava pelos desvãos da dúvida mais ululante, escla­recendo - até pelo caráter categ6rico da profissão de fé contra o nepotismo - porque votou contra a resolução do CNJ:

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NNão posso reconhecer o poder normativo do Conselho por­que a Emenda 45 (reforma do Judiciário, que criou o CNJ) não prevê esse poder. Prevê outras atribuiçiJes, de caráter admi­nistrativo. Sendo assim, o Conselho não pode editar resolu-

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ções com força de lei. Senão, daqui a pouco não vamos mais precisar do Congresso. Já basta o Executivo com as medidas provisórias. O Supremo é a última trincheira do cidadão que busca preservação de prinClpios. Ao CNJ compete apenas ad­ministrar, assim como ao Conselho Nacional do Ministério PÚ­blico. Ao Legislativo compete legislar, aos conselhos compete administrar e conduzir a administração do MP e do Judiciário. "

E aqui é que a porca torce o rabo, percebendo-se que há ques­tões constitucionais e legais aparentemente apenas de forma que não podem, em nome da afirmada nobreza do conteúdo da matéria em deliberação, ser tangenciadas.

Para não ser um plágio, o título do presente artigo homenageia Norberto Bobbio, o grande mestre da Universidade de Turim, cuja cátedra assumiu, depois de passar por Siena e Pádua, em 1948. Vul­to que a magnitude e densidade de um dos grandes pensadores do século XX acabou agraciando com outra cátedra, esta de natureza política em sua maior expressão, que em seu pafs distingue aqueles cuja grandeza ultrapassa os limites do lugar-comum: a senatoria vi­talícia.

Pois foi precisamente Norberto Bobbio quem, em julho de 1977, escreveu um cintilante texto por ele intitulado "Se a lei cede!"', de onde se extrai valiosa significação do pensamento político mais con­sistente:

"'Já o primeiro grande teórico do Estado liberal, John locke, havia repetidamente defendido que só através do governo ci­vil fundado no consenso os i'ndivíduos saem realmente do es­tado de natureza (ou seja, do estado de gue"a civil permanen­te); já o Estado despótico, cujo poder se baseia na simples for­ça sem consenso, não é senão a continuação ou a quase cris­talização do estado de natureza.

A diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato

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de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de direi­to, ou seía, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal for­ma que não podem valer nunca retroativamente. A conse­qüência principal dessa transformação é que nas relações en­tre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima 'Tem ra­zão quem vence ~ é substituído pelo direito de paz fundado so­bre a heterotutela e sobre a máxima 'Vence quem tem razão;· e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da 'supremacia da lei' (rule of law).

Bem pelo contrário, a prova de fogo do Estado democrático não está em deixar-se envolver num estado de guerra por ne­nhum de seus cidadãos, mas, sim, na capacidade de respon­der às declarações de guerra reafirmando, mais uma vez, so­lenemente as tábuas da lei (que são a nossa Constituição). A fidelidade obstinada e coerente às tábuas da lei é o único e último baluarte contra os dois males extremos do despotismo e da guerra civil #

(As Ideologias e o Poder em Crise, Editora UnB, 4.iI edição, 1990, p. 97/98).

Como facilmente se percebe, a prepotência para a prática do bem deixa os povos, geralmente sem que disso se apercebam, na ante-sala dos regimes de arbítrio. O fim do nepotismo no Judiciário pode inaugurar outra era no controle da invasão do espaço público pelo patrimonialismo mas, se não se estender rapidamente aos ou­tros poderes, não passará de mais uma perversão justificada pela suposta nobreza dos fins.

Tumor se extirpa pela raiz ou, logo, logo, tende a virar metástase. E aceitar a edição de uma resolução para o bem, com força vinculativa de lei, acaba representando o pulo de um gato es-

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caldado para uma nação passar a ver como natural a invasão do espaço normativo da lei, demarcado pela Constituição Federal, por resoluções, portarias, ordens de serviço e outros espécimes do vi­veiro inesgotável dos burocratas de plantão. Estes, por sua vez, têm na medida provisória seu fator mais definitivo de orgasmo, a forma mais sutil de supressão da democracia pela legislação de exceção.

A Emenda Constitucional 45/04 (Reforma do Judiciário), que criou em seu artigo 103-B o Conselho Nacional de justiça, fixou sua competência no § 4.Q do referido dispositivo, destacando o controle da atuação administrativa e financeira do Poder judiciário e do cum­primento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, ainda, ou­tras atribuições defin!das no referido § 4Q e no futuro Estatuto da Magistratura. A Emenda, certamente, não lhe deu poder normativo, mas apenas regulamentador, fiscalizador e disciplinar.

Passe aqui o truísmo: se já houvesse norma vedando expressa­mente o nepotismo, ocioso seria ao CNj escrevê-Ia. Não que não fos­se necessária, muito ao contrário e para os três poderes, exatamente pela falta de anterior previsão. Aliás, já em 1999 a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) propunha, em norma de conteúdo idênti­co para todos os poderes apresentada na Reforma do judiciário, regi­me de vedação absoluta para o nepotismo, razão por que essa discus­são não é de cronologia recente no judiciário, inclusive tendo como alavanca suas entidades associativas, à frente delas a principal por representar todos os segmentos e áreas de jurisdição.

Ocorre que, segundo dispõe o art. 37, 11, CF: "a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em con­curso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declara­do em lei de livre nomeação e exoneração".

Assim, basta não ser um amanuense (mero copiador ou desconhecedor) da lei para concluir que se buscou - e na prática, conseguiu - revogar a parte final do dispositivo antes transcrito, cujo conteúdo, reitere-se à exaustão, não se está, em absoluto, defenden­do ou justificando, com a Resolução n.Q 7 do CNj. Que, como obser­vou isoladamente o Ministro Marco Aurélio, não teve concedidos poderes normativos pela Constituição Federal.

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A continuar nesse trôpego passo, o INCRA poderá legislar so­bre reforma agrária, a FUNAI sobre o regime jurídico a ser aplicado aos indígenas e, o CONFEA (Conselho Federal de Engenharia, Ar­quitetura e Agronomia) acerca da reforma urbana, sem que haja mais necessidade dos competentes - e por isso passíveis de cobran­ça democrática - canais legislativos.

Como pode o STF contornar esse aparente pequeno obstáculo e agigantar os poderes já não tão liliputianos do CNH Temerária a dúvida, cruel e apavorante a resposta: o plenário da mais alta Corte de Justiça do país preferiu considerar invisíveis prindpios cardeais como aqueles da reserva legal (matérias cuja definição depende de lei em sentido mais amplo e genérico) e da federação (vários esta­dos já tinham regras proibitivas do nepotismo, ainda que certamente - como mais uma característica do federalismo - com conteúdos diferentes e, portanto, mais ou menos rigorosos).

Por que terá agido assim o pleno do STF? Simplesmente por­que se transferiu para a perspectiva da platéia, cedeu às pressões agigantadas da mídia, substituiu a aplicação do direito - . face ao evidente apelo da proposta - pelo sentido do populismo.

Diante dessa constatação, possivelmente equivocada - e que já se seguiu à recente reviravolta da jurisprudência do Supremo para admitir a taxação previdenciária dos aposentados -, uma nuvem parece turvar a proteção dos direitos fundamentais, bastando que uma rotulagem bela, ainda que desprovida da consistência, avance sobre eles.

Democracia dá trabalho, não se exerce sem esforço e suor, es­tabelece ritos e formas de proteção e, sobretudo, não convive com o pensamento único tão a gosto do cardápio neoliberal nem com a ul­trapassagem da lei como síntese de tutela da segurança jurídica, sob pena de o assustador reinado das medidas provisórias ver-se substitu­ído pelo apavorante regresso dos atos institucionais que, mesmo sem essa forma e figura desavergonhada, terão restaurado seu império.

Norberto Bobbio, de onde estiver, não estará aplaudindo, além de certamente buscar afastar o caráter sombrio do plenário que, ao imediatismo de ocasião, deverá saber substituí-lo pela observância das regras do jogo. ~

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