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SCLIAR-CABRAL, L. Método Scliar de Alfabetização – Guia do Professor. 2009 (no prelo). 3. As descobertas das neurociências para a alfabetização e a leitura SINOPSE: Nesse capítulo examinarei como as neurociências estão contribuindo para que se entendendam os processos envolvidos na leitura e como se dá a reciclagem dos neurônios na região occípito-temporal ventral esquerda para o reconhecimento dos traços invariantes que diferenciam as letras entre si, sua articulação em uma ou duas letras (os grafemas), associados aos fonemas, com a função de distinguir significados. Nessa região há projeções para todas as áreas que processam a linguagem verbal e o significado: tais processamentos se dão em paralelo, com entradas e saídas simultâneas da informação. Figura 1. Visão moderna das redes corticais da leitura (adaptação a partir de Dehaene, 2007, p. 97). 3.1 Introdução No segundo capítulo, você verificou que é alarmante o número de analfabetos funcionais no Brasil e constatou que os alunos brasileiros têm obtido péssimos escores na avaliação mais importante do mundo sobre competências em linguagem, matemática e ciências. A reflexão foi encaminhada para a seguinte questão: Por que não aplicamos à alfabetização e ao ensino-aprendizagem da leitura e escrita as conclusões a que chegaram as pesquisas de ponta no assunto, realizadas pelas neurociências, pela psicolinguística e pela linguística? Graças à imagem por ressonância magnética (IRM), à eletroencefalografia (EEG) e à magneto-encefalografia (MEG), pode-se rastrear como nosso cérebro trabalha durante a leitura.

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Page 1: SCLIAR-CABRAL, L. Método Scliar de Alfabetizaçãosinpel.pbworks.com/f/Microsoft+Word+-+SINPEL+2009+Curso+Método... · 3.4 A escrita espelhada Faltou falar ainda sobre o que as

SCLIAR-CABRAL, L. Método Scliar de Alfabetização – Guia do Professor. 2009 (no prelo). 3. As descobertas das neurociências para a alfabetização e a leitura

SINOPSE: Nesse capítulo examinarei como as neurociências estão contribuindo para que se entendendam os processos envolvidos na leitura e como se dá a reciclagem dos neurônios na região occípito-temporal ventral esquerda para o reconhecimento dos traços invariantes que diferenciam as letras entre si, sua articulação em uma ou duas letras (os grafemas), associados aos fonemas, com a função de distinguir significados. Nessa região há projeções para todas as áreas que processam a linguagem verbal e o significado: tais processamentos se dão em paralelo, com entradas e saídas simultâneas da informação.

Figura 1. Visão moderna das redes corticais da leitura (adaptação a partir de Dehaene, 2007, p. 97). 3.1 Introdução No segundo capítulo, você verificou que é alarmante o número de analfabetos funcionais no Brasil e constatou que os alunos brasileiros têm obtido péssimos escores na avaliação mais importante do mundo sobre competências em linguagem, matemática e ciências. A reflexão foi encaminhada para a seguinte questão: Por que não aplicamos à alfabetização e ao ensino-aprendizagem da leitura e escrita as conclusões a que chegaram as pesquisas de ponta no assunto, realizadas pelas neurociências, pela psicolinguística e pela linguística? Graças à imagem por ressonância magnética (IRM), à eletroencefalografia (EEG) e à magneto-encefalografia (MEG), pode-se rastrear como nosso cérebro trabalha durante a leitura.

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As principais conclusões de tais pesquisas são de grande valia para repensarmos os métodos de alfabetização e o ensino-aprendizagem da leitura e escrita, além de nos esclarecerem sobre as dificuldades que nossos alunos apresentam, decorrentes de distúrbios de atenção ou da dislexia. A capacidade para aprender a ler e a escrever é exclusiva da espécie humana. Ela se deve, fundamentalmente, aos seguintes fatores de como está estruturado e funciona o sistema nervoso central, que explicarei: 1 – plasticidade dos neurônios para se reciclarem para novas aprendizagens; 2 – dominância e especialização das várias áreas secundárias e terciárias do hemisfério esquerdo para a linguagem verbal; 3 – interconexão entre as várias áreas mesmo distantes, inclusive as que processam a significação, com as que processam em paralelo a linguagem verbal; 4 - processamento das variantes recebidas nas áreas primárias, através do emparelhamento com formas invariantes mais abstratas que os neurônios reconhecem; 5 – arquitetura neuronal capaz de processar formas sucessivamente mais abstratas e complexas: a função semiótica. 3.2 O que acontece quando nos deparamos com um texto escrito? Nossos olhos não abarcam uma linha inteira, em virtude das limitações de a única parte da retina, realmente útil para a leitura, chamada fóvea, rica em células foto-receptoras, os cones, ocupar apenas 15º do campo visual. Por isso, nossos olhos correm pela linha, em movimentos de sacada (quatro ou cinco por segundo), quando não vemos nada, e param num ponto, a fixação: nos sistemas com direção da esquerda para a direita, a fóvea consegue abarcar 3 ou 4 letras à esquerda do centro do olhar, e 7 ou 8 à direita (os movimentos oculares são controlados pelos dois colícolos superiores, situados abaixo do tálamo e rodeados pela glândula pineal do mesencéfalo). É preciso explicar que as regiões do cérebro que recebem a informação se dividem em dois grandes blocos, as áreas primárias, formadas por censores sensoriais e somestésicos e as áreas secundárias ou terciárias, especializadas para processamentos específicos. Com a visão não é diferente: a área primária, para processar os sinais luminosos, fica na parte posterior e central da região occipital de ambos os hemisférios: os censores decompõem os sinais luminosos em miríades de pontos que, metaforicamente, chamo de píxeis e, só depois da recomposição em formas invariantes que possam emparelhar com as dos respectivos neurônios, são enviadas para as áreas especializadas: esse primeiro processamento dura aproximadamente 50 milissegundos. A distribuição compulsória para a região especializada em reconhecer os traços das letras, isto é, a região occípito-temporal-ventral esquerda, já comprovada pelas pesquisas em neurociências, coloca uma pá de cal nos métodos globais ou similares de alfabetização. Com efeito, o reconhecimento global ou por configuração é efetuado pela região homo-lateral direita. 3.3 Reconhecimento dos traços invariantes Os neurônios da região occípito-temporal-ventral esquerda reconhecem os traços invariantes que compõem as letras, cujos valores são os mesmos, independentemente de seu tamanho, da caixa (MAIÚSCULA ou minúscula), da fonte (imprensa, manuscrita, itálico, negrito ou sublinhado, etc.), ou da posição que ocupam na palavra. O reconhecimento das invariâncias é possível e necessário por duas razões, fundamentalmente: 1ª – porque, como mecanismo adaptativo, o sistema visual dos primatas deve reconhecer as formas básicas do que se encontra na natureza, independentemente das

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variantes que o olhar capta, conforme a distância, o ângulo de visão, a incidência da luz e sombra e a parte em relação ao todo, etc.; 2ª – porque, e essa é especificamente humana, só essa explica a capacidade dos neurônios da região occípito-temporal-ventral esquerda em reconhecer os traços invariantes que compõem as letras: na espécie humana, os respectivos axônios (prolongamentos dos neurônios para levarem a informação a outros neurônios através do mecanismo denominado de sinapse) estão ligados a todas as regiões que processam a linguagem verbal e simultaneamente à região que processa o significado. Desde o início do século XX que a linguística propôs o conceito de fonema, a unidade que cobria todas as realizações possíveis tanto em nível da recepção quanto da produção, com a função de distinguir significados, como no par mínimo /´karu/ oposto a /´kaRu/, independentemente do fato de /R/ poder se realizar como fricativa velar surda, vibrante ápico-alveolar múltipla, uvular ou glotal aspirada. A noção de fonema foi ampliada como sendo um feixe de traços distintivos (esses últimos também invariantes). Somente agora, através das técnicas de neuro-imagem funcional (IRM), de eletroencefalografia (EEG) e de magneto-encefalografia (MEG), foi possível verificar que há neurônios especializados na região occípito-temporal-ventral esquerda para reconhecer os traços invariantes das letras e isso é possível porque uma ou duas letras (os grafemas) estão associadas a um fonema, ambos com a função de distinguir significados: a mesma diferença que reconhecemos entre as realizações de /r/ e /R/, reconhecemos entre r e rr, R e RR, rrrr e rrrrrrrr, e RRRR e RRRRRRRR e isso porque caro e carro têm significados diferentes. A verificação de que os neurônios na região occípito-temporal-ventral esquerda reconhecem as invariâncias dos traços que compõem as letras e de que eles aprendem a reconhecê-las porque uma ou duas letras estão associadas aos fonemas, e os axônios de tais neurônios se projetam para a região que processa os significados, tem profundas implicações sobre a metodologia da alfabetização, particularmente em sistemas alfabéticos como o do português do Brasil em que, para a leitura, o sistema apresenta muita transparência. As principais conclusões são: 1 – O reconhecimento dos traços que diferenciam as letras entre si deve ser trabalhado sempre com os valores que uma ou duas letras (grafemas) têm de representar os fonemas, ambos para distinguir significados. Por exemplo, ao acrescentar um traço vertical à esquerda e outro à direita da letra V, você distingue VALA de MALA. Ao mesmo tempo, deve sempre pronunciar a palavra e, quando possível (o que é o caso, no exemplo), produzir o som isolado de [v] e [m], associado aos respectivos grafemas v e m, além de ativar outras regiões de reconhecimento tátil, motor e cinéstico, acompanhando a direção do movimento da letra, o que reforça a aprendizagem dos neurônios. O corolário desse princípio é que as letras não devem ser ensinadas isoladamente e, muito menos, por seu nome. O mesmo se aplica a trabalhar com sons isoladamente, que não sejam a realização de fonemas, portanto, fora da função de distinguir significados. Claro que essa atividade é muito necessária nas aulas de música, mas não tem a ver com o processo de alfabetização. 2 – Quanto mais associações forem feitas com as diferentes regiões cerebrais que processam a linguagem (sempre no hemisfério esquerdo), tanto mais rápida e profunda a aprendizagem. Esse princípio já havia sido compreendido por Montessori, daí porque os métodos de alfabetização que utilizam atividades multissensoriais favorecem a aprendizagem: observe-se, porém, que é para fixar as invariâncias dos traços que distinguem as letras. Por isso, você deve também associar ao reconhecimento visual da

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letra e ao seu valor sonoro gestos que acompanhem o traçado da letra, por exemplo, na letra V, em baixo relevo, fazer com que a criança acompanhe com o dedo o movimento de cima para baixo e, depois, de baixo para cima, pois, não só são três sensações (a tátil, a sinestésica e proprioceptiva) a reforçar a aprendizagem dos neurônios, como você estará trabalhando com a direção espacial, outra propriedade essencial à leitura. A emissão simultânea do som (realização do respectivo fonema), acresce as sensações auditiva e proprioceptiva dos movimentos do aparelho fonador. Uma coisa é acompanhar com o dedo o baixo-relevo da letra V de cima para baixo e, depois, de baixo para cima, produzindo o som correspondente ao fonema que ela representa. Enfiar contas numa linha, para desenvolver a psicomotricidade, não tem nada a ver com ensinar os neurônios a reconhecer tal letra e depois poder escrevê-la! 3 – A cada uma das projeções sinápticas, cada vez mais distantes da região occipital primária, as unidades processadas vão se tornando mais complexas: sílabas, morfemas, palavras, frases, orações, períodos e texto, graças ao que se denomina arquitetura neuronal. 3.4 A escrita espelhada Faltou falar ainda sobre o que as neurociências nos dizem sobre dois problemas que afligem os educadores: a leitura e escrita espelhadas no início da alfabetização e a dislexia. Para que se entendam a leitura e escrita espelhadas, no início da alfabetização, que, às vezes, perduram por longo tempo, é necessário partir dos seguintes pressupostos: 1. E bem conhecido que as projeções visuais são cruzadas: os sinais luminosos que se apresentam à esquerda se projetam sobre a metade direita da retina de cada olho, de onde a informação é enviada em direção às áreas visuais primárias na região occipital do hemisfério direito; e os sinais luminosos apresentados à direita se projetam sobre a metade esquerda da retina de cada olho e são tratados inicialmente na região occipital do hemisfério esquerdo. 2. Para que os neurônios reconheçam qualquer coisa como sendo a mesma, é desprezada a diferença entre esquerda e direita, o que se denomina de simetrização, quando a informação provinda de ambas as retinas atravessa o corpo caloso: tanto faz a alça de uma xícara estar para a direita ou para a esquerda, você reconhece a xícara como sendo a mesma. Ora, essa percepção terá que ser refeita durante a alfabetização, pois colocar as três pequenas retas horizontais paralelas só pode ser à direita da reta vertical para formar a letra E. Mais difícil, ainda, é reconhecer a diferença entre d e b ou entre q e p, a qual reside apenas no fato de as primeiras de cada par estarem com o semicírculo à esquerda da haste e as segundas, inversamente, com o semicírculo à direita da haste (espelhamento na horizontal). Uma outra diferença que os neurônios desprezam é a inversão vertical: se a mesa estiver com o tampo para baixo e as pernas para cima, ainda assim será reconhecida como uma mesa; o mesmo se pode dizer de um guarda-chuva ou de um tomate. Mas com as letras isso não ocorre: a única diferença entre M e W é a direção vertical (espelhamento vertical), o que ocorre também com o que diferencia b e p; d e q; e e a; e u de n. Isso significa que, na alfabetização, os neurônios da região occípito-temporal-ventral esquerda terão que se reciclar para reconhecer a diferença entre direção à esquerda e direção à direita e entre direção para cima e para baixo. Trata-se de uma aprendizagem específica e, insisto, só ocorrerá se for ensinada com a função de distinguir significados, como em bote/dote; bote/pote; dado/dedo. Essa reciclagem é muito difícil porque continua convivendo com o fato de que, para os demais reconhecimentos, os neurônios que processam a visão continuam a desprezar as

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diferenças entre esquerda e direita e em cima e embaixo. Por isso, as crianças persistem na leitura e escrita espelhadas por algum tempo, em maior ou menor grau, mas isso não significa que sejam disléxicas. A dislexia é um distúrbio de ordem genética que se origina, segundo muitos autores, quando se dá, no feto, a migração dos neurônios desde a zona germinal ao redor dos ventrículos até a posição final nas diferentes camadas do córtex. Alguns genes foram associados ao erro de migração dos neurônios que caracterizam a dislexia, como o gene DYX1C1 sobre o cromossoma 15 e os genes KIAA0319 e DCDC2, sobre o cromossoma 6 e o ROBO1 sobre o cromossoma 3. Esse erro de posicionamento dos neurônios determina que, futuramente, tais indivíduos venham a ter dificuldades no reconhecimento das letras, particularmente, quando está envolvido o traço de espelhamento. Em consequência, tais sujeitos falham nos testes de consciência fonológica. Está registrado que os disléxicos apresentam uma diminuição de atividade na região temporal esquerda. Atualmente, alguns programas têm se mostrado eficientes na recuperação dos disléxicos: trata-se da reeducação através de jogos no computador, uma vez que eles fascinam o educando. Os programas se baseiam na proposta de Vygotsky sobre a área proximal de aprendizagem, pela qual a aprendizagem é ótima quando os problemas são suficientemente difíceis para suscitar o interesse do educando, mas suficientemente fáceis para evitar a desmotivação. 3.5 Conclusões No terceiro capítulo, procurei demonstrar como as recentes descobertas das neurociências podem nos ajudar na escolha do melhor método para a alfabetização e para o desenvolvimento das competências em leitura e escrita. Você verificou, fundamentalmente, que os neurônios humanos são dotados de plasticidade para a aprendizagem de novos reconhecimentos e que, no caso da leitura, esses neurônios se encontram numa região denominada região occípito-temporal ventral esquerda. Você também constatou que esta reciclagem se torna possível porque tais neurônios aprendem a reconhecer os traços invariantes das letras, inclusive o direcionamento para a esquerda ou direita e para cima ou para baixo, que integram as letras, uma ou duas constituindo os grafemas, associados aos fonemas, ambos com a função de distinguir significados. Ficou claro que dessa região há projeções para todas as regiões que processam a linguagem verbal, em níveis cada vez mais abstratos, até se chegar ao processamento do texto e que esses processamentos ocorrem em paralelo, não unidirecionalmente, mas com informações que saem pelos axônios e entram pelos dendritos, num fluxo contínuo. Leitura recomendada: DEHANE, S. Les neurones de la lecture. Paris: Odile Jacob, 2007. Cap. 5. Apprendre à lire. Trad. de L. Scliar-Cabral, p. 282-302. Para visualizar os neurônios, acesse: <http://images.google.com.br/images?hl=pt-BR&q=neuronios &um=1&ie =UTF-8&sa=X&oi=image_result_group&resnum=4&ct=title> 6. As principais dificuldades na alfabetização – Parte I SINOPSE: Nesse capítulo, abordarei as principais dificuldades enfrentadas pelo alfabetizando que são: desmembrar a sílaba para associar um fonema a um grafema; examinarei, pois, a questão da consciência fonológica, a noção de fonema e, em adendo, a noção de sílaba e os encontros vocálicos. 6.1 Introdução

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No quarto capítulo, verifiquei que há três fatores que interferem na aquisição da linguagem oral, os fatores inatos, maturacionais e ambientais, enquanto no terceiro capítulo expliquei que, para haver reconhecimento dos traços invariantes que compõem as letras, os neurônios da região occípito-temporal ventral esquerda têm que se reciclar, num processo de aprendizagem e que isso se torna possível porque há uma projeção de tais neurônios, associando uma ou duas letras, um grafema, ao respectivo fonema que aquele representa, tendo ambos a função de distinguir significados. Ocorre que, para realizar tal associação, no processo de aprendizagem, o indivíduo deverá desmembrar a sílaba, quando ela for formada por dois, três ou mais segmentos, uma vez que nosso sistema não é silábico e sim alfabético. Eis aí a primeira grande dificuldade com a qual se defronta o alfabetizando, uma vez que, até se alfabetizar, ele percebe a fala como um contínuo e a sílaba como uma unidade indecomponível. É o que tratarei a seguir. 6.2 Desmembrar a sílaba para associar um fonema a um grafema Com efeito, antes de se alfabetizar, o indivíduo percebe a cadeia da fala como um contínuo: não há pausas entre as palavras, como os espaços em branco que as separam na escrita, nem contrastes entre os sons que constituem as sílabas. Primeiro vou examinar a dificuldade em perceber o contraste entre as unidades que constituem a sílaba e, portanto, em desmembrá-la. Por exemplo, não só as pistas acústicas que definem uma consoante e uma vogal adjacente são interdependentes, como também seus respectivos gestos fonoarticulatórios, em virtude da co-articulação. Faça o seguinte exercício diante do espelho: Exercício 6.1: Pense em pronunciar a palavra pi e, antes de dizê-la, olhe como ficou sua boca. Agora pense em pronunciar a palavra pó e, antes de dizê-la, olhe como ficou sua boca. Embora o fonema inicial seja o mesmo nas duas palavras, isto é, /p/ (que não pode ser realizado isoladamente), quando você pensou em pronunciá-lo na palavra pi, seus lábios fechados ficaram esticados horizontalmente (isto é, distensos), mas quando pensou em dizer pó, seus lábios fechados fizeram um biquinho (isto é, ficaram arredondados). Isso ocorreu porque o programa motor do cérebro envia os comandos aos músculos do aparelho fonador por unidades silábicas: como a vogal [i] é distensa (tente pronunciá-la na frente do espelho), ao pensar em dizer a palavra pi, os lábios já se preparam, no fenômeno chamado de antecipação; mas a vogal [O] é arredondada e, por isso, ao pensar em dizer pó, você arredonda os lábios, isto é faz um biquinho. Há outros traços das vogais que vão afetar a articulação do [p] e, portanto, as respectivas pistas acústicas. Por exemplo, em [i], o maxilar inferior vai para frente e puxa o dorso da língua de encontro ao palato duro: essa vogal é chamada de anterior ou menos posterior, fechada e alta (além de distensa), enquanto em [O], o maxilar abaixa e puxa o dorso da língua para trás: a vogal, então, é chamada de posterior, aberta e baixa (além de arredondada). 6.2.1 Consciência fonológica Cabe, em primeiro lugar, definir o que vem a ser consciência fonológica e, se tal consciência é sobre unidades fonêmicas, o estatuto de tais unidades. A consciência metalinguística e a consciência fonológica na qual ela se insere decorrem de o ser humano poder se debruçar sobre um objeto, no caso, a linguagem, de forma consciente, utilizando uma linguagem. No caso particular da consciência fonológica, o objeto sobre o qual você se debruça conscientemente são os fonemas, e a linguagem utilizada é o alfabeto.

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Portanto, uma primeira distinção a ser feita é entre conhecimento para o uso, não consciente, dos fonemas de uma língua, que todo o falante-ouvinte nativo tem, independente ou não de ser alfabetizado, pois utiliza com propriedade, quer quando escuta, quer quando fala, a diferença entre /´bala/ e /´mala/, e o conhecimento consciente dos fonemas, ou consciência fonológica que se desenvolve lado a lado com a aprendizagem do sistema alfabético da respectiva língua. Se o objeto da consciência fonológica é o fonema, é preciso também ter claro o conceito de fonema, pois muitos confundem fonema com som, ou colocam, dentro do objeto da consciência fonológica, outras capacidades de lidar com os sons. Então, o que é o fonema? A definição clássica de fonema, estabelecida pelo linguista R. Jakobson, é: O fonema é um feixe de traços distintivos. Vou clarear ponto por ponto, o que está implícito nessa definição: - O fonema tem uma função distintiva, isto é, serve para distinguir um significado básico de outro, como no já citado exemplo de /´bala/ e /´mala/. Veja bem, o fonema não tem significado: serve para distinguir significados. Quer dizer que /b/ e /m/ não significam nada, mas trocando um pelo outro no contexto /´_ala/, o significado se altera. - Se você observar bem, vai notar (e agora vou mencionar os traços que constituem os dois fonemas) que: 1º traço: ambos são consoantes [+cons]; 2º traço: /b/ é [+obstruinte], isto é, uma oclusiva, pois há um obstáculo à saída do ar pelo trato vocal e /m/ é [-obstruinte], uma vez que o ar sai pelas narinas, sem encontrar obstáculo; 3º traço: /b/ não é continuo [-cont], e sim momentâneo, isto é, não pode perdurar na prolação (e, por isso, não pode ser produzido isoladamente) enquanto /m/ é [+cont], pois pode perdurar na prolação; 4º traço: [+nasal], pois as moléculas de ar ressoam nas fossas nasais em [m] e ressoam no trato bucal em [b]; 5º traço: em ambos as pregas vocais vibram, por isso, eles são sonoros [+son], embora esse traço seja redundante nas consoantes nasais; 6º traço: ambos são anteriores, [+ant], pois são articulados na parte mais anterior do trato vocal, ou seja, com os lábios fechados; 7º traço: ambos não são coronais, [-cor], pois não são articulados com a coroa da língua contra os alvéolos ou parte anterior do palato duro. Conforme se pode verificar, a diferença entre /b/ e /m/ não é in totum e sim apenas entre os traços [+obstruinte], [-cont] de /b/ contra [-obstruinte], [+cont] e [+nasal] de /m/. O feixe de traços de /b/ é constituído de [+cons], [+obstruinte], [-cont], [+son], [+ant] e [-cor]. Ele se diferencia de /p/, apenas porque esse fonema é [-son] e de /d/, apenas porque esse é [+cor]. - Por que o fonema não é som? Porque o fonema é uma entidade psíquica: assim como você não pode colocar uma cadeira dentro de sua cabeça, as moléculas de ar que se comprimem e rarefazem para produzir as ondas acústicas também não entram dentro de dela. Lembra-se dos traços invariantes das letras? Pois bem, o fonema é um feixe de traços invariantes, de natureza abstrata, que são reconhecidos por sua função de distinguir significados, permitindo que as pessoas se comuniquem através da linguagem verbal. Não importa como as pessoas pronunciem o terceiro segmento que aparece na palavra carta, pois o som que o carioca produz só tem de parecido com o que um gaúcho de Bagé diz no fato de que ambos são consoantes, e só! MAS O FONEMA É O MESMO!

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Quando o bebê nasce, os neurônios das áreas primárias são sensíveis para discriminar as diferenças categoriais entre quaisquer sons que possam existir em qualquer língua, mas obviamente, não se trata de fonemas, pelas seguintes razões: 1ª – conforme expliquei acima, o fonema serve para distinguir significados. Ora, ao nascer, o bebê ainda não está com as conexões neurais estabelecidas com as áreas que processam as significações básicas, nem tão pouco teve experiência suficiente com a variedade linguística materna, para reorganizar as pautas acústicas pertinentes a tal variedade (vide os três fatores que se conjugam para a aquisição da linguagem, no capítulo anterior). São precisos alguns meses para que se estabeleçam conexões entre as várias áreas do sistema nervoso central, pois “certas áreas associativas específicas e não específicas do córtex, bem como as conexões axônicas que as ligam”, jogam um papel principal nos aspectos semânticos da linguagem receptiva e produtiva, em particular, o lóbulo parietal inferior (LECOURS, 1983, p.184). Conforme se pode depreender, o fato de o infante ser capaz de, após condicionamento, dar respostas diferenciadas a estímulos categoriais, no chamado paradigma HAS (high-

amplitude sucking, EIMAS et al. 1971), ou de ser capaz de emitir uma gama bastante rica de sons (inarticulados), não significa, no primeiro caso, que ele já esteja demonstrando qualquer tipo de consciência fonêmica, ou, no segundo, que ele já esteja produzindo gestos fonoarticulatórios de uma língua qualquer. Decorrem destas evidências muitas implicações para o que se considera pertinente no desenvolvimento da consciência fonológica: - o desenvolvimento da consciência fonológica pode ajudar o alfabetizando a vencer a dificuldade em segmentar a sílaba; - tal desenvolvimento depende do domínio gradativo do sistema alfabético, pois, para desenvolver a consciência fonológica, o indivíduo necessita de uma linguagem e essa linguagem é o alfabeto; - não se deve confundir consciência fonológica com habilidades para discriminar diferenças entre sons, pois o fonema é uma entidade que tem a função de distinguir as significações básicas. 7. As principais dificuldades na alfabetização – Parte II SINOPSE: Verificaremos o problema da segmentação das palavras e a questão da percepção dos vocábulos átonos, também chamados de clíticos, as dificuldades semânticas e a reanálise silábica; abordaremos em seguida a dificuldade em reconhecer os traços que diferenciam as letras e encerraremos o capítulo com a questão das variedades sociolinguísticas. 7.1 A segmentação das palavras Conforme asseveramos, antes da aprendizagem da leitura e da escrita, o indivíduo processa a cadeia da fala como um contínuo. Além da não percepção dos contrastes entre as unidades que compõem a sílaba, conforme examinado em 7.2, uma outra grande dificuldade é identificar as palavras tais como estão separadas por espaços em branco no sistema escrito. Vamos assinalar três grandes dificuldades aí envolvidas: 7.1.1 a percepção dos vocábulos átonos, também chamados de clíticos, 7.1.2 o fato de os vocábulos átonos não apresentarem significações com contrapartida referencial concreta e 7.1.3 a reanálise silábica, quando um vocábulo termina por consoante e o seguinte inicia por vogal, fenômeno conhecido como sândi externo, ou juntura externa fechada. 7.1.1 a percepção dos vocábulos átonos, também chamados de clíticos

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Vocábulos átonos são aqueles que, na cadeia da fala, não possuem o acento de intensidade mais forte. Em geral, são monossílabos e coincidem com classes gramaticais como os artigos e grande parte dos pronomes, preposições e conjunções. Em virtude de serem átonos, dependem fonologicamente no português do Brasil do vocábulo seguinte (com exceção dos pronomes oblíquos que podem ocupar a posição enclítica ou mesoclítica). Todos os substantivos, verbos, adjetivos e advérbios possuem uma sílaba com o acento de intensidade mais forte e, por isso, os vocábulos átonos neles ficam pendurados. Por isso, quando colocamos um vocábulo átono no final da frase, ele não tem onde se apoiar e deixa de ser átono, passando a sujeitar-se às regras de acentuação gráfica, como no exemplo: Queres me dizer por quê? Temos nessa frase dois vocábulos átonos, me e por, o primeiro se apoiou no verbo dizer e o segundo no vocábulo quê, que deixou de ser átono e passou a ser um monossílabo tônico terminado em e, portanto, recebendo o acento circunflexo. Por isso, a regra de ouro de atribuição do acento de intensidade durante a leitura, a primeira a ser ensinada, por contemplar os vocábulos mais frequentes do PB (com exceção dos átonos, que apresentam maior frequência de uso), deve ser: Se os substantivos, verbos, adjetivos ou advérbios tiverem duas ou mais sílabas e terminarem pelas letras e, a, ou o, seguidas ou não de s, e NÃO tiverem nenhum acento gráfico, LEIAM-SE COMO PAROXÍTONOS. Entende-se, pois, por que, ao substantivarmos qualquer vocábulo átono, na metalinguagem, ele deixa de sê-lo. Por exemplo: O dê é uma preposição. Já deu para perceber a importância de trabalharmos desde a Educação Infantil com a percepção das distinções entre sílabas mais fortes e mais fracas num vocábulo. 7.1.2 Os vocábulos átonos não apresentam significações com contrapartida referencial concreta Uma outra grande dificuldade para o alfabetizando em perceber os vocábulos átonos como separados decorre do fato de eles não terem contrapartida referencial concreta, isto é, eles têm significação puramente gramatical ou outras funções, mas não carregam o que J. Mattoso Câmara Jr. denominou de significação externa. Por isso, devemos ser engenhosos em ajudar a criança a identificar tais vocábulos. Veremos, por exemplo, que, para ajudar a criança a identificar os artigos indefinidos e definidos, é trabalhar com narrativas ficcionais, demonstrando que o artigo indefinido serve para introduzir a informação nova, enquanto o definido é usado para a informação conhecida. Poderemos trabalhar com atividades que lhes permitam verificar as preposições, trabalhando com procedência, direção para, estáticos, companhia, e assim por diante. 7.1.3 a reanálise silábica Quando um vocábulo termina por consoante e o seguinte começa por vogal, ou quando os dois fonemas são idênticos, ocorre a reanálise silábica, tornando opacas a fronteiras entre as palavras. Separe, por exemplo, lendo em voz alta as sílabas da frase os ouvidos. Você notará que há uma contradição entre o que está escrito, com um espaço em branco separando os de olhos e o que você disse, ao realizar /u – zow -´vi – duS/ (observe que a realização do último segmento depende da variedade sociolinguística de quem está lendo). Observe, também, que ficou totalmente opaco o morfema de plural que passou para o início da palavra seguinte, o que não é a sua posição na língua portuguesa! Além disso, na posição intervocálica, ele é realizado como sonoro.

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Por esse motivo, é possível que a criança, quando vem à escola, tenha em seu léxico mental, ao invés de olhos, zoio; ao invés de orelhas, zoreia, e, ao invés de unhas, zunha. Tudo isso terá que ser refeito no processo de alfabetização. Indicamos a seguir, um exemplo de atividade para reconhecimento dos artigos indefinidos e definidos, conforme já explicado. Colocar na lousa, em letra de imprensa minúscula, à esquerda, os artigos indefinidos (informação nova) e, à direita, os artigos definidos (informação já introduzida). Em seguida, ao ler a narrativa de Malba Tahan, a cada aparecimento de um artigo, fazer a seguinte pergunta: Isso já apareceu na história? Apontar na lousa o respectivo artigo. OS VASOS PRECIOSOS Malba Tahan

Um príncipe poderoso possuía vinte vasos de porcelana, belíssimos, que eram o seu orgulho. Guardava-os em uma sala especial, onde ficava durante muitas horas a admirá-los. Um dia, sem querer, um criado quebrou um* dos** vasos. O príncipe, enfurecido e inconsolável com a perda do** precioso objeto, condenou à** morte o desastrado. Nessa ocasião, apresentou-se no** palácio um velho sábio que se propôs a consertar o vaso de maneira a ficar perfeitamente igual aos*** outros, mas, para isso, precisava ver todos juntos. A sua proposta foi aceita. Sobre uma mesa coberta com riquíssima toalha, estavam os dezenove vasos enfileirados. Aproximando-se, o sábio, como se tivesse enlouquecido, puxou com violência a toalha e os vasos tombaram ao*** chão, em pedaços. O príncipe ficou mudo de cólera, mas antes que ele falasse, o sábio tranquilamente explicou: - Senhor, estes dezenove vasos poderiam ainda custar a vida a dezenove infelizes, assim, dou por estes a minha, porque, velho como sou, para nada sirvo. Refletindo, o príncipe compreendeu que todos os vasos do** mundo, por mais belos e preciosos, não valiam a vida de um ser humano. Perdoou o sábio e também ao*** servo desastrado.

* é numeral e não artigo indefinido. ** contrações de preposições com artigos *** combinação da preposição a com artigo

7.2 Reconhecimento dos traços que diferenciam as letras A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y z A utilização de uns poucos traços articulados para formar uma letra, de modo a diferenciá-la das demais, se insere nos princípios que governam o processamento dos sistemas verbais, que passo a enumerar: 7.2.1 – Quanto mais baixo o nível de processamento, tanto mais ele deverá ser automatizado durante a aprendizagem e, portanto, menor o número de traços que

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compõem o paradigma (lista dos traços que são utilizados) e de cada feixe (no caso, uma dada letra), para não sobrecarregar a memória. Os traços mais elementares que constituem as letras são as retas e as curvas, cujo reconhecimento, em suas formas invariantes, não é privilégio da espécie humana. Porém, o que caracteriza a utilização dessas formas invariantes na estruturação de um sistema alfabético é o desdobramento em pequenas diferenças, o modo como se articulam e o acréscimo de outros traços diferenciais, que são: a relação com uma linha real ou imaginária (somente nas minúsculas), a direção para cima ou para baixo, e para a direita ou para a esquerda (esse último, o mais complexo dos traços que diferenciam as letras entre si, pois vai de encontro à programação natural dos neurônios para buscar a simetria na informação visual). 7.2.2 – Em cada nível, as unidades do nível anterior vão sendo estruturadas numa ordem de complexidade e quantidade crescente: a primeira ordem é a dos traços articulados simultaneamente e não em cadeia, para formar cada letra, cuja função é a de realizar um grafema; a segunda ordem é a do grafema, associado ao fonema que representa e constituído de uma ou duas letras, cuja função é distinguir a significação básica das unidades puramente gramaticais ou que se referem à significação externa; a terceira ordem é a das unidades cuja função é referenciar a significação puramente gramatical ou externa; a quarta ordem é a das frases, com função nominal, verbal ou preposicional; a quinta ordem é a das orações, cuja função é proposicionar; a sexta ordem é a dos períodos, cuja função é articular as proposições e a sétima ou última ordem é a do texto, cuja função é articular as ideias, de modo coerente, em torno de uma unidade temática. No momento estamos tratando das dificuldades com as quais o alfabetizando se defronta para aprender a primeira ordem, a dos traços que se articulam para formar as letras. Algumas letras são formadas por um só traço, como é o caso de I, C e O maiúsculos, e de l, c e o minúsculos. Já mencionamos que os traços mais elementares que constituem as letras são as retas e as curvas, que se desdobram em pequenas diferenças que são: - posição da reta: vertical, horizontal ou inclinada. Por ex., na letra E, observamos uma reta vertical e três horizontais, enquanto na letra V, observamos duas retas inclinadas; - tamanho da reta. Você pode notar que os traços horizontais são sempre menores que os verticais (sempre do mesmo tamanho, numa mesma fonte). Compare, por exemplo, esses tamanhos nas letras E, F, H, L e T.

- relações entre os traços numa mesma letra. As relações podem ser entre retas (em qualquer das posições), entre curvas ou mistas, variando o local onde os traços menores se colocam em relação ao eixo principal e quantos são. Assim, a única diferença entre E e F está no fato de E ter um traço horizontal a mais na base, e de ambos se diferenciarem de L porque esse só possui um traço horizontal na base. Já na letra T, o traço vertical tange bem ao meio o traço horizontal que está no topo, enquanto no H, é o traço horizontal que liga no meio duas retas paralelas. Observe, pois, que essas cinco letras maiúsculas articulam exatamente os mesmos traços, diferenciando-se apenas pelas relações que estabelecem entre si: L T F E H. Encontramos um exemplo de relação entre curvas na letra maiúscula S e minúscula s, mas, como se pode observar essa letra, além das grandes dificuldades do grafema por apresentar valores fonológicos diferentes, conforme o contexto gráfico, possui uma dificuldade ainda maior, pelo fato do duplo espelhamento da curva c de cima para baixo e da esquerda para a direita. Voltaremos a tratar desse impasse. O que ocorre mais são as relações mistas. Uma pequena curva articulada com o traço vertical (na verdade, seu prolongamento), ou o inverso, aparece em letras maiúsculas e

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minúsculas, como G, J, a, e, f, g, h, j, m, n, r, t e u. Uma articulação mais complexa ocorre no estilo mais usado para g minúsculo. Uma outra articulação mista ocorre entre a curva c e a reta, acrescida de uma das dificuldades maiores no reconhecimento das letras que é a direção para a direita ou para esquerda, e para cima ou para baixo (espelhamento) conforme as letras: B, D, P e R, nas maiúsculas, e b, d, p e q, nas minúsculas. - direção para a direita ou para esquerda, e para cima ou para baixo (espelhamento): deixamos para o final o que constitui a maior dificuldade para o reconhecimento das letras, ou seja, a diferença entre a direção do traço para a esquerda ou para a direita e, em menor escala, a diferença entre a direção do traço de cima para baixo ou o inverso: o espelhamento. Como já afirmado várias vezes, a percepção dessa diferença vai de encontro à programação natural dos neurônios para buscar a simetria na informação visual, daí a grande dificuldade de aprendizagem. Essa diferença é a única que existe entre os seguintes pares: b/d, p/q (diferença para a direita ou para a esquerda) e entre M/W, n/u, b/p e d/q (diferença de cima para baixo ou o inverso) e, em menor grau, entre A/V, S/Z, a/e, s/z e f/j. 7.3 Variedades sociolinguísticas Em virtude da mobilidade social, o professor se defrontará com alunos provenientes das mais diferentes regiões do país, ou, mesmo na mesma cidade, com alunos provenientes de ambientes socioculturais muito distintos. Portanto, é necessário ter em mente que o código escrito se caracteriza por um estado de inércia maior se comparado com as mudanças diacrônicas mais rápidas que ocorrem nos sistemas orais. A variação sociolinguística não afeta as letras que constituem o código escrito, o qual deverá abarcar todas as variantes fonéticas de uma dada língua falada. Uma vez que as línguas, das quais cada sistema alfabético é dependente, mudam mais rapidamente do que sua contrapartida escrita, algumas relações fonêmico-grafêmicas passam a ser cada vez mais opacas com o passar do tempo e somente as regras de derivação morfológica ficam produtivas para algumas famílias de palavras; neste caso, um léxico mental ortográfico precisa ser fixado de memória, o que torna de novo o sistema antieconômico. Não significa, contudo, que por esta razão estes radicais devam-se ensinar fornecendo os nomes de suas letras constituintes. Assim que a grafia dos radicais básicos que estão em desacordo com as regras grafêmico-fonológicas é aprendida, são globalmente relacionados ao léxico mental fonológico. Uma das principais razões, pelas quais a discrepância entre o sistema oral e o escrito é tão profunda nos países desenvolvidos, é devida ao poder das editoras e seus respectivos lobbies. Temos um exemplo bem recente, com a nova reforma ortográfica, que só beneficiou as editoras que saíram na frente com seus dicionários e livros didáticos. É necessário acrescentar que, tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, existe uma discrepância adicional entre as diferentes variedades sociolinguísticas orais. Embora não exista correspondência biunívoca entre qualquer das variedades sociolinguísticas e a norma escrita, a distância é certamente maior se examinarmos as variedades que são consideradas como não tendo prestígio: em geral, os professores não estão preparados tanto para o encaminhamento das disparidades sociolinguísticas individuais, quanto para estar atentos às diferenças fonético-fonológicas e morfológicas relacionadas com o sistema alfabético adotado como única norma. Não significa, contudo, que estejamos aderindo às ideias naîves de Bernard Shaw em favor tanto de uma escrita fonética ou de uma miraculosa transformação de qualquer My fair lady: a diversidade sociolinguística oral é um fato inquestionável em contraposição a um código escrito único para uma dada língua.

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O que seria aconselhável a fim de reduzir as consequências de tais discrepâncias é: 1) a adaptação periódica e gradual dos sistemas ortográficos às mudanças diacrônicas que ocorrem no sistema oral; 2) uma atitude ideológica positiva por parte dos professores para com as variedades sociolinguísticas que diferem das supostas normas de prestígio; 3) professores bem formados, particularmente nas primeiras séries do primeiro grau, que possam descobrir a forma individual falada pelos estudantes a fim de que, em conjunto, construam as regras adequadas de correspondência fonológico-grafêmicas. Leitura recomendada: SOARES, M. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2006.