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1. O duelo do brasileiro com a natureza; 2. A redescoberta da ecologia; 3.A Europa e a ecologia; 4. A legislaçõo portuguesa para o Brasil; 5. O mito atávico da impunidade ecológica: 6. Os custos e nilo-custos do controle ecológico, Claudio de Moura Castrol/<I/< q. O presente trabalho inclui um exame exaustivo da legislação portuguesa de proteção ao meio-ambiente no século XVI, bem como nos regimentos coloniais do Brasil. Nesta pesquisa fui guiado constantemente por meu avê, o historiador Marcos Carneiro de Mendonça a quem devo a possibilidade deste ensaio. Carlos Eugenio Thibau leu uma versão preliminar e ofereceu sugestões valiosas. Contudo, assumo sozinho a responsabilidade pelas opiniões, omissões e enganos que possa conter o texto. I/< I/< Doutor em Economia e Economista do Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA) do Ministério .do Planejamento e Cootdenação Geral. R. Adm. Emp.. Rio de Janeiro Com alguns anos de atraso, a consciência da gravidade dos problemas de equilíbrio ecológico chega ao Brasil. importada dos Estados Unidos. De episódio exótico, o assunto vai. paulatinamente, conquistando posições mais importantes, manchetes mais destacadas e mais freqüentes nos jornais. Timidamente vai emergindo al- gum tipo de legislação de proteção do meio-ambiente (e, eventualmente. da qualidade da vida). Pela via transver- sa dos americanos, somos colhidos de surpresa para os fatos desagradáveis de que os recursos naturais são finitos e que seu fim pode estar mais próximo do que. gostaríamos. Descobrimos 0'5 mecanismos que con- trolam a "harmonia das coisas e dos seres"! e enge- nhosamente tentamos criar uma legislação que impeça o cataclisma ecológico denunciado por muitos. Mas. ex- plosivas, como possam ser as conseqüências dos maus tratos que impingimos à natureza. na verdade estamos redescobrindo a pólvora. Se o termo ecologia é re- lativamente novo. e se mais recente ainda é a nossa des- coberta do problema. longe estaríamos da verdade em supor que a história nos vai dar qualquer crédito sobre a novidade. seja na forma de uma melhor compreensão de um mecanismo. seja na tomada de posição através de legislação apropriada. ~ quase milenar na Europa a percepção de que os recursos naturais podem ser exauridos por uma política canhestra de exploração e, a clara percepção dos mecanismos implícitos na relação de harmonia entre as coisas e os seres. Documenta esta afirmativa a existência de legislação farta e particular- mente detalhada sobre o assunto. Neste ensaio procuraremos mostrar como os por- tugueses. nossos antepassados e colonizadores. já com- preendiam perfeitamente o problema da conservação dos recursos naturais e legislavam com grande rigor a respeito. Mostraremos também como o Brasil recebeu deles legislação precisa e detalhada sobre alguns aspec- tos da exploração dos seus recursos naturais. Jamais se tentou implementar esta legislação. Estamos atavica- mente vinculados a uma crença na impunidade eco- lógica. Sempre vimos a fronteira econômica como móvel. Bastaria andar um pouquinho mais para a fren- te. e lá estava a terra virgem, a floresta virgem e os recursos naturais intocados. E o fim da fronteira? Não vemos. Marcados por este atavismo, nunca pudemos acompanhar o que se passava na Europa. Somente quando outro grande pecador contra a natureza redes- cobre o problema e lhe dá um nome elegante - ecologia - é que nós. caudatários da cultura, americana, redes- cobrimos também o mesmo problema. Falta-nos apenas descobrir que redigir e aprovar legislação é um mero passo inicial. ~ o desafio de fazê-la cumprir que temos de enfrentar. Temos também que aprender a comparar os sacrifícios presentes e futuros - e suas conseqüências sobre a qualidade da vida - resultantes de uma política de omissão, com as con-: seqüências e sacrifícios de diversas possibilidades ou al- ternativas de intervenção: nem sempre a solução eco- logicamente mais sadia é mais cara ou envolve maiores sacrifícios. mas só poderemos sabê-lo se desenvolvermos o hábito de perguntar sempre. 15(5) : 6-19. set.lout. 1975 Ecologia a redescoberta da pólvora

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1. O duelo do brasileiro coma natureza;

2. A redescoberta da ecologia;3. A Europa e a ecologia;

4. A legislaçõo portuguesa paraoBrasil;

5. O mito atávico da impunidadeecológica:

6. Os custos e nilo-custos docontrole ecológico,

Claudio de Moura Castrol/<I/<

q. O presente trabalho inclui um exameexaustivo da legislação portuguesa

de proteção ao meio-ambienteno século XVI, bem como

nos regimentos coloniais do Brasil.Nesta pesquisa fui guiado constantemente

por meu avê, o historiadorMarcos Carneiro de Mendonça

a quem devo a possibilidadedeste ensaio. Carlos Eugenio Thibau

leu uma versão preliminar eofereceu sugestões valiosas.Contudo, assumo sozinho a

responsabilidade pelas opiniões,omissões e enganos que possa

conter o texto.

I/< I/< Doutor em Economia e Economista doInstituto de Planejamento Econômico

e Social (IPEA) do Ministério.do Planejamento e Cootdenação Geral.

R. Adm. Emp.. Rio de Janeiro

Com alguns anos de atraso, a consciência da gravidadedos problemas de equilíbrio ecológico chega ao Brasil.importada dos Estados Unidos. De episódio exótico, oassunto vai. paulatinamente, conquistando posiçõesmais importantes, manchetes mais destacadas e maisfreqüentes nos jornais. Timidamente vai emergindo al-gum tipo de legislação de proteção do meio-ambiente (e,eventualmente. da qualidade da vida). Pela via transver-sa dos americanos, somos colhidos de surpresa para osfatos desagradáveis de que os recursos naturais sãofinitos e que seu fim pode estar mais próximo do que.gostaríamos. Descobrimos 0'5 mecanismos que con-trolam a "harmonia das coisas e dos seres"! e enge-nhosamente tentamos criar uma legislação que impeça ocataclisma ecológico denunciado por muitos. Mas. ex-plosivas, como possam ser as conseqüências dos maustratos que impingimos à natureza. na verdade estamosredescobrindo a pólvora. Se o termo ecologia é re-lativamente novo. e se mais recente ainda é a nossa des-coberta do problema. longe estaríamos da verdade emsupor que a história nos vai dar qualquer crédito sobre anovidade. seja na forma de uma melhor compreensão deum mecanismo. seja na tomada de posição através delegislação apropriada. ~ quase milenar na Europa apercepção de que os recursos naturais podem serexauridos por uma política canhestra de exploração e, aclara percepção dos mecanismos implícitos na relaçãode harmonia entre as coisas e os seres. Documenta estaafirmativa a existência de legislação farta e particular-mente detalhada sobre o assunto.

Neste ensaio procuraremos mostrar como os por-tugueses. nossos antepassados e colonizadores. já com-preendiam perfeitamente o problema da conservaçãodos recursos naturais e legislavam com grande rigor arespeito. Mostraremos também como o Brasil recebeudeles legislação precisa e detalhada sobre alguns aspec-tos da exploração dos seus recursos naturais. Jamais setentou implementar esta legislação. Estamos atavica-mente vinculados a uma crença na impunidade eco-lógica. Sempre vimos a fronteira econômica comomóvel. Bastaria andar um pouquinho mais para a fren-te. e lá estava a terra virgem, a floresta virgem e osrecursos naturais intocados. E o fim da fronteira? Nãovemos. Marcados por este atavismo, nunca pudemosacompanhar o que se passava na Europa. Somentequando outro grande pecador contra a natureza redes-cobre o problema e lhe dá um nome elegante - ecologia- é que nós. caudatários da cultura, americana, redes-cobrimos também o mesmo problema.

Falta-nos apenas descobrir que redigir e aprovarlegislação é um mero passo inicial. ~ o desafio de fazê-lacumprir que temos de enfrentar. Temos também queaprender a comparar os sacrifícios presentes e futuros- e suas conseqüências sobre a qualidade da vida -resultantes de uma política de omissão, com as con-:seqüências e sacrifícios de diversas possibilidades ou al-ternativas de intervenção: nem sempre a solução eco-logicamente mais sadia é mais cara ou envolve maioressacrifícios. mas só poderemos sabê-lo se desenvolvermoso hábito de perguntar sempre.

15(5) : 6-19. set.lout. 1975

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1. O DUELO DO BRASILEIRO COMA NATUREZA

Não é nosso objetivo, nesse ensaio, discorrer sobre osmaus tratos a que temos submetido a natureza em nossoPaís. Não conhecemos qualquer estudo sistemático erazoavelmente completo para o Brasil, a que nos pudés-semos reportar. J:: até sugestivo do grau de importânciaque atribuímos a esta área, o fato de que as informaçõesdisponíveis são casuais e assistemáticas. Os institutos deplanejamento a nível federal e estadual tão pródigos emdiagllósticos, ainda não se dedicaram à descriçãometódica -do duelo do brasileiro com a sua natureza.Limitar-nos-emos a algumas observações casuais.

Imensa surpresa aguarda aqueles que resolverem em-preender uma viagem pela Belém-Brasília, para tercontato com a floresta amazônica. Em todo o percursode quase 1 500km a única floresta. amazônica à vistaserá a do Parque Rodrigues Alves, ocupando três ouquatro quarteirões, na cidade de Belém. Ao sair dacidade, veremos algumas matas, ralas, de segundo cres-cimento, talvez. Daí para frente, até Brasília, não se vênenhuma árvore com vida.! J:: bem verdade que, a partirda metade do caminho, entramos na região dos camposgerais, onde a vegetação é rala. Mas onde havia florestaamazôn ica, há um cemitério, já quase um deserto. Afloresta foi destruída, e sobrou apenas seu cadáver. Ostroncos chamuscados de algumas árvores de 20, 30 ou40"1 de altura se podem ver ao longo de todo o percur-so. A linha do horizonte, nunca mais perto, de vez emquando vislumbramos a massa compacta da florestaamazônica.

Quem atravessa na direção sul-norte o estado doEspírito Santo somente verá uma floresta, a reservaflorestal da Cia. Vale do Rio Doce. O resto é o mesmodeserto da Belém-Brasília. Quem viaja pela Zona daMata, no estado de Minas Gerais, verá como se tomouinapropriado o nome; possivelmente, a única mata é amodesta reserva florestal da Universidade Rural deViçosa. Um viajante que passa apressadamente peloParaná, poderá ver não mais do que dois ou três pi-nheiros de péssima saúde, em frente ao Palácio Iguaçuque abriga o governo do estado.

A cartografia do café é representada por uma largafaixa de terras cansadas, começando na cidade do Riode Janeiro e já atingindo pedaços do Paraná. O duelo dobrasileiro com a natureza tem-se caracterizado pelaocupação irracional do solo, especialmente ao longo dasrodovias. Os ciclos econômicos do café, cana, milho epecuária baseiam-se em processos extensivos, sem aten-tar para as classes de uso do solo. A floresta no Brasil,como em todos os lugares de florestas tropicais, tem sidoconsiderada como um estorvo à civilização e ao própriodesenvolvimento agrícola.

Mas por outro lado, é gratificante e instrutivo lembrarque a região da floresta da Tijuca já foi ocupada porplantação de café e já foi também terra cansada.Aqueles que têm o hábito de passear pelas maravilhosastrilhas das matas que circundam o Rio de Janeiro, já nãose surpreendem mais quando encontram, perdido nomeio da floresta, um pé de café. A floresta da Tijuca éum grande exemplo da possibilidade de regeneraçãoflorestal, tanto natural como plantada.

As praias oceânicas (Copacabana e Ipanema), com asquais contaríamos para atrair turistas ao Rio de Janeiro,

têm um nível de poluição superior às da Califórnia, ondeos banhistas compartilham as praias com sondas de per-furação de petróleo. A vida marítima já está em vias deextinção na baia de Guanabara, Rio e São Paulo com-petem com cidades imensamente mais industrializadasnos índices de poluição atmosférica.

O Museu de Ouro, em Sabará, expõe uma âncora en-contrada ali mesmo, às margens do rio das Velhas. Ân-cora grande, de navios semelhantes aos que hoje aindaoperam no rio São Francisco. Em Sabará, hoje, o rio dasVelhas dá vau. A própria navegação no Rio São Francis-co está .cada vez mais difícil devido à perda de volumed'água.

Por casualidade, já acompanhamos turistas brasi-leiros a cidades dos EUA. Alguns trouxeram de volta,como impressão mais viva e mais marcante, não os con-vencionais atrativos do American way oi life, mas onúmero de árvores que havia nas cidades. E. nós, mo-radores de país tropical e sol inclemente, por que nãotemos árvores em nossaa cidades? Com que facilidadesucumbem as poucas que restam. E aqueles que seaventuram na inglória tarefa de plantá-las, vêem-seobrigados a guarnecer as mudas com equipamentos quese esperaria ver na defesa de instalações militares.

Seria interessante comparar pelo mundo afora arelação entre área urbana construída e área de parques ejardins. Provavelmente o Brasil, um dos maiores paísesdo mundo em extensão territorial, teria relações dentreas mais desfavoráveis. Suspeitamos que Belo Horizonteesteja entre as piores do mundo." Mesmo nas imensascidades dos EUA e Europa, aqueles que moram em casae têm sono leve poderão facilmente ser despertados pelocanto dos pássaros. Para nós, praticamente só restam ospardais, infeliz importação da Europa.

E a caça esportiva? Caça de pena, ou caça de pêlo,para que valha a pena o esporte, é preciso ir para alémdos limites das instalações permanentes do homem. J::preciso andar mais do que seria necessário para atraves-sar a Alemanha, país onde se pode ainda -eaçar a maiorparte dos animais que ali havia quando do descobri-mento do Brasil. Quem mora no Rio de Janeiro e mo-destamente quiser sair com sua varinha de pesca paratentar a sorte em algum rio nas proximidades, quantosquilômetros terá que viajar?

Nosso patrimônio histórico e artístico não tem me-recido melhor sorte, apesar de certo esforço do Governo.Possivelmente, os grandes exemplos de arte rupestre noBrasil estão na Gruta de Cerca Grande, nas proximi-dades de Belo Horizonte. Além do valor intrínseco,como exemplar de arte pré-colombiana, estes desenhosestão situados em uma das grutas mais interessantes daregião, à semelhança de um queijo suíço, com labirintosacima do nível do solo, aflorando em aberturas circu-lares e múltiplos níveis. A tudo isto era adicionada umaesplêndida formação de estalactites e estalagmites noscorredores ao nível do solo. Os estalactites e estalagmitesforam removidos e vendidos como calcita (matéria-prima industrial) a preços vis. Os desenhos rupestres emsuas delicadas cores a pastel estão hoje orlados por cen-tenas de assinaturas, datadas de poucos anos, e pro-duzidas com tintas que, pelo seu brilho, saturação de cornegra e zarcão, bem representam as grandes realizaçõesda química industrial. Próximo ao desenho mais impor-tante - que serve de capa de livro de Harold Walter,

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Arqueologia da Região de Lagoa Santa - encontra-se aassinatura de alguém que hoje é presidente de um dosgrandes complexos industriais do Brasil.

Em suma, em tão pouco tempo submetemos nossoPaís a tamanhos maus tratos que algumas áreas do NovoMundo já estão se tomando mais estragadas, mais con-gestionadas e parecendo mais velhas que o Velho Mun-do, a Europa milenarmente ocupada por densosagrupamentos populacionais.

2. A REDESCOBERTA DA ECOLOGIA

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Difícil é saber se fomos mais, ou menos, predatórios queos americanos. Contudo, no princípio do século, JohnMuir e outras pessoas fundam na Califórnia o SierraClub. Doía a estas pessoas ver a destruição da fantásticabeleza das montanhas e das florestas com a marcha parao Oeste. Em parte, como resultado do seu grande esfor-ço de organização e mobilização, começam a ser criadosos parques nacionais, sob a responsabilidade do Depar-tamento de Agricultura. O espírito protecionista aospoucos se espalha pelo país, marcando o princípio deum movimento popular de organização espontânea,visando proteger a natureza.

Na década de 60 entra em cena um novo participante:a comunidade científica dos pesquisadores na áreazoológica. Pelo uso de computadores, toma-se possíveldescrever as equações de troca de energia entre seres ecoisas da natureza. Teoricamente respaldados por estasequações de troca energética, passa-se a estudar asequações de equilíbrio entre as espécies. Definem-se osnichos ecológicos de cada espécie e condicionantes desua expansão, ditados pelos níveis qualitativos de outrasespécies com quem elas convivem, ou retiram a energianecessária para sua existência.! Mas, igualmente, es-tudam-se os desequilíbrios, especialmente os dese-quilíbrios irreversíveis. Uma pastagem abusivamenteutilizada por rebanhos de bovinos, deixa de alimentarestes rebanhos, que pela fome e pela alta mortalidadeserão parcialmente dizimados; com '0 tempo, sem apresença do rebanho excessivo, o pasto será refeito econtinuará o ciclo vital de equilíbrio, por aproximaçõessucessivas. Mas se o rebanho for de ovinos, que con-somem não somente o talo do capim, como a sua raiz, oexcesso de uso das pastagens liquidará a raiz, o embriãoque permite a recuperação dos pastos, transformando-os em deserto, e uma vez transformados em deserto, umnível estável de equilíbrio ecológico é atingido. Daí emdiante, não há forças naturais que levem à sua recu-peração. O sudoeste dos EUA viu isto acontecer, bemcomo o Oriente Próximo. 5

Com a melhor compreensão destes fenômenos, com aforça que têm as conclusões baseadas nos métodos sis-temáticos e desapaixonados das investigações cientí-ficas, o tema ganhou momento nos EUA. Os economis-tas tradicionalmente descreveram o fluxo circular daeconomia: a fábrica produz mercadorias que são ven-d idas e consumidas, em troca de mão-de-obra e ma-térias-primas que são transformadas em mercadorias,fechando o ciclo. Ao fim da década de 60, algunseconomistas propõem que o fluxo não é circular: entrano processo a matéria-prima, que é transformada emproduto que por sua vez é consumido e se perde. Entrano processo ~ energia requerida para a feitura do

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produto, que igualmente se perde no ato do consumo. t::a segunda lei da termodinâmica, a lei que nos afirmaque a entropia (isto é, a desorganização da energia)aumenta constante e implacavelmente. As riquezas nãocirculam, elas se consomem, se exaurem.f A idéia ex-plosiva da proximidade do fim de certos recursos jáhavia sido capturada pelos pesquisadores profís-sionais. Mas para o homem comum é o susto do fim dopetróleo que toma mais tangível essa unidirecionalidadedo processo econômico.

O Clube de Roma reuniu-se por volta de 1970 paradiscutir projeções ecológicas para o futuro, realizadascom imenso engenho e audácia por operadores de com-putador de grande envergadura. Os resultados são tãopessimistas que não basta verificar que quase todas assuas equações têm falhas metodológicas. Uma ou outraque resista à análise crítica já é suficiente para nos as-sustar.

Somos hoje caudatários da cultura americana, lá es-tudamos, lá vemos a elite intelectual européia estudandoe ensinando. Se dos EUA importemos tantos maushábitos, talvez seja natural que ocasionalmente impor-temos uma preocupação legítima, ainda que envolta emprevisões sombrias.

Já descobrimos a poluição, já descobrimos a devas-tação dos recursos naturais, renováveis e não-renováveis.Suspeitamos que estamos consumindo produtos indus-triais para atenuar a deterioração da qualidade da vida,provocada por essa própria industrialização. Finalmen-te, descobrimos que violar a harmonia das coisas e dosseres pode ter conseqüências catastróficas; descobrimosa ecologia.

Falta-nos aplicar os princípios, especialmente quandose trata dos recursos renováveis, isto é, que se renovam,regeneram. Por exemplo, os recursos florestais sãorenováveis e poderão ser manejados, com manutençãoda paisagem, das espécies, da flora, com todos os be-nefícios para o homem e para o meio-ambiente.

E orgulhosamente ensaiamos nossas primeiras aven-turas da área da legislação que coíbe o uso abusivo danatureza. Inventamos leis, criamos leis, aprovamos leisde defesa do meio-ambiente. A julgar pelos pronun-ciamentos oficiais, fazêmo-Io com grande espíritopioneiro.

3. A EUROPA E A ECOLOGIA

As equações de trocas energéticas transformaram aecologia em uma ciência quantitativa e precisa. Con-tudo, uma idéia muito antiga é a noção de que os recur-sos naturais não-renováveis podem-se exaurir, e que osrecursos naturais renováveis tais como florestas, ani-mais, plantas e peixes têm mecanismos de renovaçãoque podem atingir pontos críticos. A fábula da 'galinhados ovos de ouro diz-nos tudo que é necessário sobre oprincípio ecológico mais fundamental de todos: morta agalinha, não há mais ovos de ouro. t:: preciso entender anatureza para saber quanto se pode tirar dela, semdanificar sua capacidade de rejuvenescimento.

Falta ao autor o conhecimento histórico para acompa-nhar o amadurecimento desta consciência ecológica naEuropa. Porém, pequenos fragmentos sugerem a com-preensão do problema, já na Idade Média. Nas florestasdo rei da Inglaterra, a lenha que se podia tirar eram

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aqueles galhos que poderiam ser arrancados com obastão de extremidade curva que se usava na época.

Localizaremos nossa investigação histórica naquelepaís a quem devemos a nossa colonização, Portugal.Durante a regência de Felipe I, a partir de 1580, Por-tugal submeteu-se a um conjunto de leis, conhecidascomo Ordenações Filipinas. As mais variadas áreas es-tão cobertas por este conjunto, às vezes pitoresco, delegislação.A preocupação com a conservaçãodos recur-sos naturais renováveis emerge clara e nítida nestalegislação."

Examinaremos em detalhe as leis referentes ao quechamamos hoje de ecologia e, a título de ilustração, in-dagaremos sobre a pertinência ou propriedade destasleis. se vigorassem nos dias de hoje. Para facilitar a ex-posição. dividiremos a matéria de acordo com o objetotratado. e não segundo a ordem em que ocorre no textolegal. (Na transcrição do texto da lei intercalamos entreparênteses o significadocorrente e brasileiro de palavrasque hoje caíram em desuso ou não são conhecidas entrenôs.)

A) Legislação da caça. A legislação seiscentista deproteção à caça é especialmente complexa e revela umaclara compreensão dos limites daquilo que se pode pedirà natureza."Defendemos (proibimos) geralmente em nosso Reino,pessoa alguma não mate, nem cace perdizes, lebres,coelhos com boi (armadilha em que o caçador se disfar-ça em boi), nem com fios de arame, nem com outros al-guns; nem tome, nem quebre ovos das perdizes, sobepena de pagar na Cadea dous mil reis de cada vez quenisso for achado, ou lhe for provado dentro de dousmezes,e mais perder as armadilhas. Nas quais penas is-somesmo incorrerão as pessoas, em cujo poder ou casasforem achadas as armadilhas, ora sejam suas, oraalheas." (p. 289.)

Vários pontos emergem claramente da intenção dolegislador. O objetivoimediato parece ser coibir o uso deartefatos de caça em que se presume o caráter preda-tório. Há intenção nítida de limitar o fluxo de abate dacaça. Ao mesmo tempo, há proibição de consumir ouquebrar ovos, protegendo os mecanismos de repro-dução. Para contornar as dificuldades de caracterizar o"flagrante delito", a mera posse dos instrumentos im-plica na violação, sem que se possa alegar que o equi-pamento pertence a outrem.

"E nas comarcas da ESTREMADURA e (...), nos mezesde Março, Abril e Maio, e nas comarcas da BEIRA (...),nos mezes de Abril, Maio e Junho, pessoa alguma não,cace perdizes, nem criação delas com perdigões, nemcom aves de qualquer qualidade, redes, fios, ichós (al-çapões), laços nem per outro qualquer modo, nem lhetome. nem quebre os ovos,nem as cace a corricão (comcães) no mes de Julho até meado de Agosto, nem notempo da neve onde a houver quando a terra stivercuberta della, em quanto não for derretida, nem com boiem qualquer tempo do anno." (p. 289.)"E nos lugares da Estremadura (...), em Março, Abril eMaio, se não cacem coelhos,nem lebres com cães, redes,fios, laços, forão (doninha), besta, espingardas nem peroutro qualquer modo, nem no tempo da neve nos lu-gares, onde a houver e cobrir a terra, em quanto não for

derretida. E quem o contrário fizer, sendo fidalgo, oucavalleiro, pola primeira vez seja degradado hum annopara a Africa, e pague vinte cruzados. E pola segundahaja as ditas penas em dobro; em sendo de menorqualidade, seja preso trinta dias na cadea, e pague dousmil reis. E pola terceira seja degradado um anno fora deVilla e termo, e do lugar, onde for morador, e pague emdobro a dita pena de dinheiro, e percam as aves, cães,redes, fios, e armadilhas com que caçarem." (p, 289.)"H defendemos que em Lisboa (...), pessoa alguma nãomate, nem cace perdizes com candeos (archotes paradeslumbrar a caça), redes de cevadouros, perdigão ouperdizes de chamado, sob pena de pagar por cada vezque for achado caçando com cada uma das ditas cousas(...). E caçando com boi nos ditos lugares e seus termos,ou sendo-lhe provado dentro de dous mezes, ou sendo-lhe achado em seu poder, ou casa, pagará dez cruzados,e será degradado dous annos para a Africa." (p. 290.)

"E pessoa alguma, de qualquer qualidade que seja, nãocace nem mate perdizes com Açor (falcão), gavião, nemcom armadilha, nem a corrição, na coutada (reserva decaça) nova da cidade de Lisboa (...). Nem cace, nemmate na dita coutada lebres com galgos, redes, besta,espingarda, nem com outra alguma armadilha." (p.290.)

Na lei anteriormente citada, estabeleciam-se algumaspráticas que ficavam definitivamente vedadas. Na le-gislação citada, vemos a emergência de duas intenções.Em primeiro lugar, o controle da sazonalidade da caça,visando restringi-la durante o período de reprodução.Em segundo lugar, notamos a preocupação de definircritérios distintos para cada região geográfica do país. Aleitura do texto sugere que regiões mais densamentepovoadas ou mais próximas dos centros urbanos, terãorestrições adicionais às atividades do caçador. Onde hámais caçadores, nota-se a preocupação de dificultar oprocesso de caça, de maneira a manter a mesma taxa deabate.

Com relação às sanções legais, pode-se notar que nãosão nada brandas, característica que é compartilhadacom todas as Ordenações Filipinas. Ademais, aqui comoem outras partes deste código, ilustra-se o princípio deque a lei é a mesma para todos, mas as sanções pelo seunão cumprimento diferem fundamentalmente de acordocom a classe social. '

"Havendo tanta criação de coelhos em alguns lugares,que façam dano, às novidades (colheitas), pois officiaesdas Cameras nol-o poderão screver, enviando com suascartas informação do corregedor da comarca, para nistoprovermos, como for nosso serviço." (p. 289.)

Nesta lei aparece a possibilidadede controle ad hoc dealguns animais, cujos mecanismos de reprodução po-dem ocasionalmente ser insuficientemente coibidos oucontrolados pelos princípios restritivos das leis ante-riores. A legislaçãode caça dos EUA hoje, à semelhançada lei citada, é menos restritiva para algumas espéciesde reprodução muito rápida, coelhos em geral."E mandamos por se não destruir a criação das aves, epor não se perder o primor e a arte de tirar a ponto comespingarda, que nenhuma pessoa uze na espingarda, ar-cabuz, nem em outro qualquer tipo de fogo, de muniçãode pelouros (balas pequenas), nem tire com ela, nem a

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traga comsigo, nem a forma dela. E que o contráriofizer, e tirar com munição, ou pelouro, que notoriamen-te não for da medida do cano da sua espingarda, ou ar-cabuz, ou tiro de fogo (,..) pola primeira vez será preso, estará vinte dias na Cadea, e perderá a espingarda, ou ar-cabuz com todas as pertenças dela, e pagará dous milreis, a metade para quem o acusar, e outra metade paraos captivos." (p. 279.)

Esta é uma lei curiosa, com objetivos de origem- dis-tintas. De um lado, o legislador acredita que o tiro dechumbo fino não desenvolve as artes marciais, sendo umtiro que não exige a mesma pontaria. Mas, por outrolado, notamos a intenção clara de impor um controleadicional à taxa de abate. Obrigando ao caçador autilização de um projétil do calibre de sua arma, fica emmuito dificultada a caça.

O Brasil dispõe hoje de uma legislação de proteção àcaça cuja aplicação vem sendo intensificada nos anosrecentes. Deter-nos-emos sô mais adiante na grandediferença que existe entre possuir legislação e fazê-lacumprir; examinaremos aqui apenas algumas diferen-ças interessantes.

Na legislação filipina, o método de controle é opróprio instrumento de caça. Ao proibir artefatos oumodalidades de maior produtividade, reduz-se o nú-mero de peças abatidas. Deste período para cá, as armasde fogo tornaram-se cada vez mais eficientes, com maiorpotência de tiro, cano raiado e visores telescópicos,utilizando chumbo de calibres tais que maximizam aprobabilidade de abater a caça. Proliferam as armas derepetição. Somos também muito mais lenientes nosmétodos de caça; não temos restrições ao uso de cães,armadilhas, mundéus e outras modalidades entãoproibidas. Liberados os métodos, aprimorada a técnica,o perigo de extinção das espécies é cada vez maior. NaEuropa e EUA, além de religiosamente respeitados osperíodos de procriação, a solução encontrada para acaça amadorista foi a de limitar o número de peçasabatidas por caçador. Em alguns casos, a reduçãodramática na população de alguns predadores, pos-sibilita ao homem preservar para si, para seu esportebárbaro ou nobre, como se queira classificar - umnúmero de animais, que estava destinado às garras dasonças, jacarés, coiotes, pumas e aves de rapina. O casodos veados e lebres nos EUA ilustra bastante bem esteponto.

No Brasil é de se notar que, em geral, não há quotas.- se houvesse seria difícil fazê-las cumprir - e aspenalidades são de difícil aplicação. O século XVI nossugere a apreensão das armas, por que não a utiliza-mos? Toda arma de caça portada fora da temporadapoderia ser apreendida.B) O controle da pesca. Tão detalhada quanto a le-gislação da caça é aquela da pesca em água doce. Nota-se o extremo cuidado do legislador em especificar asmodalidades proibidas."Defendemos, que pessoa alguma não pesque em rios,nem lagoas de agoa doce, com rede, covãos (...) nassas(armadilhas para peixes), tesões (rede oblanga retesadacom vime) nem de algum outro modo, nos mezes deMarço, Abril e Maio, somente poder-se-há, pescar àcanna com anzol (...). Nem se poderá outrossim pescarnos ditos rios e lagoas, ainda que seja fora dos ditos tresmezes, com redes de malha mais streita da que for li-

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mitada pela Camera, nem com rede varredoura, lençois,trasmalhos (tipo de rede), nem Gabritos (rede de malhafina) dobrado, posto que sejam feitos pela vitola (bitola);das cameras, nem pessoa alguma os tenha em sua casa,nem fora dela. E ma:ndamos que os Officiaes do Con-celho ordenem em Camera, a largura da malha, de quedevem ser as ditas redes, para que, quando pescaremfora dos ditos tres mezes da criação, não possam tomarpeixe miúdo; do que se fará assento nos livros da Ca-mera, e pela Vitola, que assim ordenarem; que nasCameras stará, se farão as ditas redes." (p. 290.)"E porque a principal pescaria das saveis (peixes de marque se reproduzem em agoa doce) e lampreas he emMarço, Abril e Maio, havemos por bem que os saveis,sabogas e tainha se possam pescar nos ditos tres mezescom redes de vitola e malha de largura de 7 dedos aotravés ao menos. A qual vitola stará nas Cameras doslugares mais chegados aos rios, onde se houver de pes-car. E as lampreas se poderão pescar nos ditos tresmezes com redes, e pela maneira, que for ordenadopelos Officiaes das Cameras (...). Não se poderão pescar(...) nem com redes de mais streitas malhas, que a so-bredita." (p. 291.)"No Rio Tejo (...) pescador algum não pesque azevias(linguado), com tanchas e fatexas (arpões)." (p, 292.)"E de todas as penas de dinheiro, conteudas nesta Lei,será a metade para quem acusar, e a outra para cap-tivos, e as redes cães e armadilhas, para o acusador. Enão havendo quem acuse, somente a justiça, serão paraas obras do Concelho." (p, 292.)

Como na caça, o instrumento da lei é a técnica uti-lizada; pela mesma forma, nota-se a grande preo-cupação de sazonalidade, seja em termos de proibiçãototal, seja em termos de restrição dos métodos ou téc-nicas permitidas.

Na pesca, torna-se mais importante coibir as mo-dalidades que afetam diretamente os mecanismos dereprodução do cardume. t;; muito detalhada a especi-ficação da malha mínima permitida e dos tipos de redesque podem ser utilizados, visando claramente protegeros exemplares imaturos. A vito/a da malha das redesvolta a cada momento à pena do legislador e as exigên-cias de que se exiba um exemplo da dimensão mínimada malha são repetidas diversas vezes. Claríssima é aconsciência do caráter predatório das modalidades quevarrem os fundos dos rios, afetando a sobrevivência dasespécies.

A fauna da restinga de Marambaia está sendo des-truída rapidamente pela introdução recente da chamadarede balão, já proibida em Portugal há quatro séculos.Em nossos dias, não há qualquer controle eficaz da pes-ca, seja em termos de método, seja em termos de tem-porada. E como se tudo isso não bastasse, inventamosoutra técnica predatória, a banana de dinamite.

Grande parte de nossos rios e lagos não seriam ce-mitérios biolôgicos se tivéssemos em vigor e aplicada alegislação filipina para o controle da pesca; somenteseria necessário adicionar a proibição da pesca a di-namite.

Já notamos os rigores das sanções. t;; curioso verificaraqui que metade das multas e apreensões são utilizadaspara premiar o acusador. Se desapareceu este institutode direito, em um imenso e incontrolável País como o

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nosso, as suas funções de forma alguma se tomaram ob-soletas.

C) O controle de reservas florestais. O abate de árvorese suas possíveis utilizações são bastante controladospelas Ordenações Filipinas.

"O que cortar arvores de fructo, em qualquer parte questiver, pagará a estimação della ao seu dono em tresdobro. E se o dano que assim fizer nas arvores for valiade quatro míl reis, será açoutado e degradado 4 annospara Africa. E se for valia de 30 cruzados, e dahi paracima, será degradado para sempre para o Brasil." (p,268.)

Esta é a primeira lei de política florestal e especifi-camente protege as árvores frutíferas. Note-se que nãose trata do ressarcimento por danos e perdas que temoshoje. Em caso de pequenos danos, o valor delas esti-mado pelos donos terá ressarcido em três vezes o seumontante; em caso de delitos mais importantes, a san-ção torna-se mais severa."E mandamos, que pessoa alguma não corte, nem man-de cortar sovereiro (árvore da cortiça), carvalho, encinho(ancinho?), machieiro (sovereiro em crescimento), por opé, nem mande fazer dele carvão nem cinza; nem escas-que, nem mande escascar nem cernar algumas das ditasarvores, desde onde entra o Rio Elga (...) e fazendo con-trario va degradado quatro anos para Africa, pague cemcruzados, e perca o carvão e cinza, a metade para quemo acusar e a outra para os captivos. E se for peão, alémdisso seja açoutado, Porém os que tiverem sovereirosproprios os poderão cortar, não sendo para carvão oucinza; e cortando-os, para isso, incorrerão nas ditaspenas." (p. 268-9.)

Se a legislação anterior partia de uma preocupaçãocom ressarcimento a danos privados, a descrita acimaparte de um cuidado com o social, com o estoque das ár-vores nobres de Portugal, independente de a quem per-tençam. São severas as penalidades para aqueles quecortam árvores produtivas, especialmente quando a ten-tação é a produção de uma mercadoria pouco nobrecomo o carvão e cinza. Para que os próprios donos resis-tam à tentação, possivelmente em apertos financeiros, aárvore da cortiça, quando cortada, não pode ser de for-ma alguma utilizada com o fim de produzir carvão ecinza, com a única ressalva de que nas regiões mais dis-tantes estas proibições não se aplicam.

Mais uma vez, a preservação do patrimônio social,sobrepondo-se à propriedade individual, emerge nalegislação seiscentista. Se é inteiramente justificada anossa legislação recente com relação a madeiras como ojacarandá, por outro lado, é insuficiente, tardia e nãoinovadora.

D) O controle das queimadas. A legislação com relaçãoao fogo é bastante rigorosa. Mas, igualmente, demons-tra a astúcia do legislador."Defendemos, que nenhuma pessoa, de qualquerqualidade e condição que seja, ponha fogo em 'parte al-guma; e pondo-se fogo em algum lugar, de que se possaseguir dano, (...) acudam e façam a eles acudir commuita diligência, para prestes se haverem se apagar,fazendo para isso os constrangimentos, que lhes neces-sário parecerem."

"E se se achar culpado no pôr do fogo, de que se seguirdanos, algum escravo, seja açoutado publicamente, eficará na vontade do seu senhor, pagar o dano, que ofogo fez, ou dar o escravo para se vender, e do preço sepagar o dito dano. E se o culpado for homem livre, sen-do peão, seja preso, e da cadea pague o dano, e mais sejaaçoutado com baraço (corda trançada) e pregão pelaVilla e degredado per dous annos para Africa (...)" (p.286.)

Estas leis não apresentam muitas diferenças comrelação a uma ação contemporânea de perdas e danos.Entretanto, vêm a seguir alguma coisas interessantes."E porque alguns, por caçarem nas queimadas, oufazerem carvão, ou pastarem com seus gados, põem es-condidamente fogo nos matos, para se poderemaproveitar das queimadas e porque não se sabem que ofez, não são'castigados: mandamos, que pessoa alguma,não cace em queimada, do fia que foi posto o fogo, deque seguio algum dano, a trinta dias, nem entre nela apastar com seu gado até a Pachoa florida, e carvoeiro al-gum não faça nela carvão, até dous annos." (p. 286.)

A motivação para queimar, aguçada pelas dificul-dades de se identificar o incendiário, é neutralizada porcompleto por esta lei que impede a caça, a pastagem e aprodução de carvão em glebas queimadas. A rigor, o nãoaproveitamento do carvão em uma mata queimadacorresponde a um prejuízo social e privado. Mas, o atoincendiário é coibido exatamente pela disposição do Es-tado em proibir o aproveitamento do que sobra de umamata queimada.

Passando ao mundo da fantasia, o que é necessáriopara supor a reaplicação de uma Lei Filipina, muitasqueimadas seriam evitadas se os donos das terras ouqualquer outra pessoa fossem temporariamente im-pedidos de reutilizá-las, tanto como pasto, como paraaproveitar o carvão.

E) Controle de poluição das águas. A poluição daságuas, na medida em que possa afetar a fauna ictio-lógica, fica rigorosamente proibida.

"E pessoa alguma, não lance nos rios e lagoas, em qual-quer tempo do anno, trovisco (planta venenosa usadapara matar peixe), barbasco (planta alcalôide), cal, coe-ca, nem outro algum material com que se o peixe mata equem o fizer, sendo fidalgo ou scudeiro ou dahi paracima pola primeira vez seja degradado por hum annopara Africa e pague tres mil reis (...). E sendo de menorqualidade, seja publicamente açoutado com baraço epregão (...) o que assim havemos por bem se não mate acriação do peixe, nem se corrompam às águas dos rios elagoas, em que o gado bebe." (p, 291.)

Aí está uma legislação rigorosa contra a poluição dosrios e lagoas, que automaticamente proíbe jogar à águasubstâncias que matem o peixe ou a tomem insalubre.

Por muitas décadas a Mina de Morro Velho despejouarsênico em um afluente do rio das Velhas. O resultadosobre a fauna não poderia ser mais irreversível. Igual-mente detritos industriais de diferentes graus de to-xidade são livremente despejados em centenas de rios doBrasil. ~ cada vez maior o número de rios e lagoas ondenão há e não pode haver vida.

Ecologia

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1:: dificil resistir ao progresso e à revolução industrial;os rios ingleses já experimentaram a morte biológica.Mas, novamente hoje, o Tâmisa é um rio piscoso, ondeinclusive o exigente salmão pode ser encontrado.

F) Lições da história. A legislação seiscentista revela-nos que os portugueses compreendiam claramente osmecanismos que regulam o equilíbrio da natureza. Maisdo que isto, legislaram rigorosamente tentando resguar-dar este equilíbrio. Os nossos pecados e insultos contra omeio-ambiente não têm portanto como desculpa a ig-norância e o desconhecimento do fato. 8

A ecologia meramente dâ sistematicidade e precisão amuito do que jâ se sabia antes. Se o que estamos bus-cando é uma boa desculpa para os nossos descuidos notrato com o meio-ambiente, não é muito convincentealegar tal desconhecimento dasleis da natureza.

Não estamos subestimando a contribuição desta novaciência. A cada momento somos surpreendidos com acomplexidade do equilíbrio biológico: a ação do DDTreduz a espessura da casca do ovo até mesmo de aves daregião antártica: a poluição pode aumentar a tempe-ratura da terra, produzindo degelos catastróficos; emalgumas regiões, o leite de vaca comercialmente dis-tribuído atingiu níveis de radioatividade inaceitáveis: osaviões supersônicos podem reduzir a camada de ozônio,prejudicando a agricultura; as usinas termonuclearespodem destruir a fauna submarina, como resultado daelevação da temperatura da água.

Deixemos, porém a verificação destas hipóteses porconta dos países cientificamente mais avançados. Nossosproblemas são muito mais elementares. Erramos comconseq üências muito mais previsíveis. Se o efeito daconcentração crescente do DDT era insuspeitado atépoucos anos, as conseqüências do uso desregrado quefazemos dos nossos recursos naturais jâ é conhecido hâséculos.

4. A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA PARAO BRASIL

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Acreditamos haver deixado claramente demonstrada naseção anterior, a preocupação européia com a conser-vação do meio-ambiente. Na legislação referente à ad-ministração colonial - e interessa-nos em particular ado Brasil - esta mesma percepção se reflete em re-petidas ocasiões na forma de decretos e leis, ou na formade instruções a governadores e outras pessoas envolvidasna administração colonial. Mas, se é clara a compreen-são do problema e a intenção do legislador de coibir ouso predatório dos recursos, a eficácia destas leis sempredeixou muito a desejar. De fato, repetidamente se pas-sam-instruções a governadores gerais, visando evitarerros grosseiros cometidos anteriormente.

Ao contrário das Ordenações Manuelinas e das Or-denações Filipinas que sintetizam a legislação para Por-tugal, a administração colonial é casuística e assiste-mática. Descrições, intenções, instruções, legislação esanções penais ocorrem todas mescladas em documen-tos de procedências distintas e emitidas de forma espar-sa e até mesmo truncada. A presente'seção teria sido im-possível não fora o trabalho paciente do historiadorMarcos Carneiro de Mendonça, apresentado em sua

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obra, Raízes da formação administrativa do Brasil. 9

Neste trabalho, foram reunidos todos os documentosque compõem as instruções de políticas e legislação dePortugal c,om relação ao Brasil, durante todo o períodocolonial. A semelhança do que fizemos na seção an-terior, organizaremos a matéria por assunto, deixandode lado sua ordem cronológica ou a natureza do do-cumento de onde se origina. 10

A) A política da caça. As provisões legais com respeito acaça são muito genéricas, estabelecendo apenas os prin-cípios gerais."A caça, a pesca e a passarinhagem serão permitidas atodos os súditos e moradores, providenciando os con-selheiros de modo que as diversas espécies de caça nãosejam destruídas e exterminadas por uma peregrinaçãodesregrada e excessiva, e não só se conservem as que jáexistem, como também sejam para lá transportadas eintroduzidas aquelas que ainda não se encontram nestasregiões e nelas se podem aclímar,"!'

A legislação aí está: que se estabeleça localmente nívelmáximo que não põe em risco o equilíbrio ecológico dasespécies. Seria repisar sobre o óbvio dizer que as trans-gressões deste pequeno parágrafo de lei não poderiamter sido mais freqüentes e mais desastrosas.

B) As prioridades no uso dos recursos florestais. Talcomo nas Ordenações Filipinas, o legislador estabeleceuma nítida hierarquia no uso que se deve dar aos recur-sos florestais. Como se verá abaixo, esta hierarquia éditada por diferentes critérios."Primeiramente hei por bem e mando, que nenhumapessoa possa cortar, nem mandar cortar o dito Pau-Brasil, por si, ou seus escravos ou feitores seus, sem ex-pressa licença, ou escrito do Provedor-Mor (. .. ) e o que ocontrário fizer, incorrerá em pena de morte e confís-cação de toda a sua fazenda.P

Este é o caso clássico do poder de monopólio daCoroa. O rei de Portugal reserva para si o direito da ex-ploração do pau-brasil, e pune ferozmente aquele quetransgredir sua instrução."Informar-vos-ei de todas as madeiras (... ) se serviramalgumas delas para as naus da índia, ou para que partede navios podem servir e de que sorte podem servir paraliames e taboado dos forros; e particularmente vereis sehá madeira para madre e lemes e calceses, cabrestantes(... ), e achando algumas matas de madeiras convenientespra naus, as declarareis logo por minhas e mandareisque se não cortem e desbaratem.""Uma das qualidades de madeira de mais estimação eabundância, que há nesta Capitania, é Tapinhoã quetem sido objeto de diversas Ordens proibindo o uso aosparticulares (. ..) determinava que se não pudesse extrairesta qualidade de madeira para fora deste porto, quenão fosse para as fábricas das naus de Sua Majestade, eque os vassalos portugueses pudessem dela forrar osseus navios somente dentro do Porto. (Os Sesmeiros)serão obrigados a conservar os Tapinhoãs e Peroba quese acharem, deixando de os cortar para outro algumcaso, que não seja de construção das naus da Coroa,cuidando da plantação destas árvores (... ) se recomendea execu~ão do alvará (... ) como também as ordens que háa respeito do Tabuado de Tapinhoã evitando-se o ex-

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travio e castigando-se os que o cometerem, com as penasestabelecidas, e que nas Cartas de Sesmarias se continuea por a clausula de que os Sesmeiros serão obrigados aconservar os paus Reais para embarcações. particular-mente o Tapinhoã e Peroba. "13

Repetidamente, em momentos diferentes, a adminis-tração portuguesa preocupa-se com um dos aspectosmais estratégicos para sua sobrevivência: a construção emanutenção dos navios. Às madeiras de construçãonaval não se poderá dar qualquer outro uso, em hipótesealguma. Vê-se claramente a noção de hierarquia de uso,apoiada agora em razões estratégicas sobrepondo-se aointeresse particular de sesmeiros, donos e posseiros.

Voltando ao mundo da fantasia, estas determinaçõesde EI Rey de Portugal teriam poupado e poupariam atéhoje centenas de milhares de jacarandás, mognos eoutras essências que foram utilizadas para produzir car-vão ou mesmo reduzidas a cinzas, para abrir pastagensou transformar-se no alcalinizante mais caro que aoagricultura já conheceu. Eliminar a acidez da terra comcinza de jacarandá não parece boa economia, embora alei permita ainda hoje.

"Terá particular cuidado de prover sobre as lenhas emadeiras, que não se cortem, nem queimem, para fazerroças. ou para outras cousas em partes que se possamexcusar, porquanto sou informado que em algumasCapitanias do dito Estado, há já muita falta da ditalenha e madeiras, e pelo tempo em diante haverá muitomaior, o que será causa de se não poderem fazer maisengenhos, e os que hora há deixarão de moer. "14

"Por ser informado que as matas que servem ao be-neficio dos engenhos de açucar vão em muita dimi-nuição. e sem embargo de algumas serem de pessoasparticulares. convir ao bem publico conservarem-se tudoo que puder ser, (...) e que se conservassem quanto'pudesse ser assim as ditas matas para o beneficio dosditos açucares, como das madeiras para navios e outrasfábricas. (...), Fui informado de que naqueles Estadossão perdidos alguns engenhos, e outros são ocasionadosa isso. por falta de lenha para o seu meneio (...) e al-gumas pessoas que não tem engenhos, tendo terras delenha perto dos que as tem, as mandarem roçar e semearnelas mantimentos. "15

Para a produção de açúcar, esteio econômico daColônia, era claramente necessário garantir o forne-cimento de lenha aos engenhos. Dada a grande quan-tidade de lenha requerida, e das óbvias dificuldades detransporte. fazia muito sentido proteger e conservar asreservas florestais próximas dos engenhos. Esta questãotraz-nos à mente os problemas de abastecimento dasiderurgia a carvão vegetal, mas deixemos para adianteas nossas observações."Logo que entrei em Alemanha, e vi com que cuidadosse tratam ali os bosques (...) pedir-lhe instante mentequisesse fazer com que se não concedesse a ninguém umsó palmo de terra, fosse para minerar, e arruinar mais asminas, apenas descobertas; fosse para cultivar, ou o quevem ao mesmo, para destruir-lhes os bosques.""Administração das matas e os rendimentos, que delasvêm. aos soberanos alemães, seja na arquitetura dasminas, seja nas fundições dos metais, constitue um ramo

muito atendível das suas finanças, e anda sempre unidaà administração das minas, sem as quais estas matascolocadas nas montanhas, e no interior dos seus Estadoslhes não seriam da menor utilidade. Será necessário poisunir nos países mineiros à administração das minas àsdos bosques: mandar para elas homens peritos, queajuntem aos conhecimentos metalúrgicos, os botânicos,que vigiem sobre a conservação dos bosques, por oralivres, e que eles venham para o futuro a ser de maisutilidade à Coroa do que tem sido."

"Com a abundância. de carvão, que podemos ter, anão se continuar na destruição dos bosques (...) não lhesvenha a vender Nossa Magestade o Ferro por muito maisda metade do que o vendem os fabricantes europeus.t'P

Mais uma vez, vemos a política de utilização dosrecursos florestais condicionada a interesses sociais, aoinvés de ser ditada pelos desígnios erráticos de seusproprietários. A exploração das minas e das fundiçõesseria coordenada por uma autoridade única com juris-d ição sobre a exploração forestal.

Até hoje, a política de siderurgia a carvão vegetal nãofoi consolidada com a política florestal nas áreas depotencial siderúrgico. Nem sequer sabemos se há ummínimo de compatibilidade entre as duas. Não co-nhecemos tentativas de zoneamento determinado pelasnecessidades da siderurgia.

Nesta seção pudemos ver que diversas madeirasmerecem usos diferentes e que há uma clara hierarquiana sua utilização. Estamos por aprender esta lição.

C) Política de manejo .florestal. No corte de nossasmatas, o machado pode ser afiado, mas o lenhador écego: se é madeira, que venha para o chão, e nada es-capa. Há muitas maneiras de se explorar uma floresta ealgumas são definitivamente piores do que outras. Alegislação colonial mostra-nos que este fato tão elemen-tar já era então bem conhecido.

Examinaremos, inicialmente, a caracterização domanejo florestal como uma ciência que deve ser cui-dadosamente estudada.

"Sendo sumamente necessário o conhecimento da phy-sica das árvores para que não aconteça fazer-se o corte :em tempo incompetente, ou em ocasião em que os paosestejam em princípio de ruir; o intendente tomará a esterespeito todas as cautelas necessárias, valendo-se dosprecisos exames, e d'aquelles conhecimentos que as pes-soas antigas e práticas do paiz e desta matéria pela suaexperiência puderam sugerir (...) determino que façaisannualmente plantar a quantidade possível daquelas ár-vores mais próprias para delas depois de estarem no seudevido crescimento fazerem os cortes (...) quando estejano sazão conveniente para se cortar.""Uma informação sobre os lugares mais fartos de ar-vores de construção náutica, e sobre os lugares maispróprios para a plantação d'essas árvores, demanda umconhecimento miúdo e bem verificado tanto aos indi-víduos da espécie vegetal que fazem a opulencia dabotânica aplicada e industrial (...)."17

Além de deixar clara a noção de que a exploraçãoflorestal é uma ciência, as citações acima deixam en-trever as preocupações técnicas referentes ao período do

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ano em que se deve fazer o corte, bem como das perdasresultantes de cortes tardios, quando a árvore jáapresenta sinais de decadência. Não parece que nos diasde hoje se observem com freqüência preocupaçõeseq uivalentes.

"E toda pessoa que tomar mais quantidade de pau deque lhe for dado licença, além de o perder para minhafazenda (. ..) e passando de cem quintais morrerá porele, e perderá toda a sua fazenda."

"Para que se não corte mais quantidades de paus de queeu tiver dado por contrato, nem se carregue a cadaCapitania, mais do que boamente se pode tirar dela; heipor bem e mando que em cada um anno se faça repar-tição da. quantidade de pau que se há de cortar. (... )Se terá respeito do estado das matas de cada uma dasCapitanias, para lhe não carregarem mais nem menospaus que convém, para o beneficio das ditas matas."l."Os meos mais úteis, não só para a conservação de todasestas matas mais ainda para a regeneração d'ellas( ) são o de evitarem os roçados nas grossas matas( ) não se abrindo nelas situações novas (... ) não seprecisa outra providência (...) por ser a secupíra-merim e acary, madeiras de maior augmento. Conti-nuando estas providências as matas irão cada vez emmaior augmento, e nunca poderá haver falta n'ellas, porserem os roçados e os fogos que nelles se ateam os quecausavam maior ruina."19

14

"Os antigos cortes de pau Brasil (... ) foram des-truídos pela falta de método com que se fizeram estescortes, chegando a indiscreta ambição d'aquellesmoradores a arrancar as raizes de muitas árvores, parase aproveitarem do preço (... )."20

Está assim aplicada às matas a mesma idéia que regeo controle da caça e pesca; cada espécie tem sua ca-pacidade de regeneração; não faz sentido tentar subtrairmais do que pode ser justificado por esta capacidade deregeneração; repare-se que um regimento fala do que sepode "boamente tirar dela". Por outro lado, manda quenão se corte "nem mais nem menos pau para o que con-

.vém para o beneficio das ditas matas". -.;:curioso notar ajusta preocupação de não se tirar da mata menos do queela pode produzir. Os recursos naturais não são pa-trimônio histórico, nem monumentos nacionais, massim um organismo vivo que deve ser inteligente e ge-nerosamente manejado para que possa atender aohomem."Por ter informação, que uma das cousas que maiordano tem causado nas ditas matas, em que se perde, edestroe mais paus, é por contratadores não aceitaremtodo o que se corta, sendo bom, e de receber, e queremque o todo que se lhes dá seja roliço e maciço, do que sesegue ficar pelos matos muitos dos ramos e ilhargas(troncos) perdidas, sendo todo ele bom e convenientepara o uso das tintas: mando a que daqui em diante seaproveite todo o que for de receber, e que não se deixepelos matos nenhum pau cortado, assim dos ditos ramoscomo das ilhargas, e que os contratadores o recebemtodos. "21

Neste trecho da legislação emergem dois pontos muitoimportantes que parecem sugerir um dos aspectos maiscruciais da técnica de manejo florestal. Se de uma mata

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são selecionados para o corte somente os paus "roliços emaciços", em pouco tempo, esta mata se tomará umrefugo, contendo apenas madeiras de má formação. E sea regeneração da floresta se der com as sementes da-quelas madeiras que restaram, haverá então umainevitável tendência para a degeneração da composiçãoda mata. Haverá, cada vez mais, madeiras de máqualidade, paus tortos e inservíveis. As espécies inde-sejáveis ou menos interessantes para o aproveitamentoindustrial predominarão cada vez mais nessas matas. Aobrigatoriedade de desbastar a mata, cortando madeirasboas e más por igual, é uma das peças básicas da con-servação dos recursos naturais.

Em segundo lugar, para aqueles que já passaram pormatas destruídas no estado do Espírito Santo, este ar-tigo da lei não poderá deixar de parecer Particularmen-te atual. -.;:inacreditável a quantidade de madeira cor-tada e jamais retirada ou utilizada que jaz ao pé de suaraiz, a apodrecer pelos anos afora. Igualmente, aobrigatoriedade de utilização do subproduto não po-deria ser preceito mais sadio de aproveitamento derecursos florestais.

"A causa de 'Seextinguirem as matas do dito pau, comohoje estão, e não tomarem as arvores a brotar, e pelomau modo de como se faz um corte, não lhe deixandoramos e varas, que vão crescendo, e por se lhe por fogonas raízes, para fazerem roças: (... ) e que se nos ditoscortes se tenham muito tento à conservação das arvores,para que tornem a brotar, deixando-lhes varas e troncoscom que os possam fazer, e os que o contrario o fizeremserão castigados com as penas que parecer ao julgador."(1605)22

Novamente aqui, percebe-se com clareza meridiana acompreensão que já se tinha das técnicas de manejoflorestal. Não é assim que procedemos hoje, não é assimque a lei regula o desmate de nossas reservas florestais."Para maior segurança da conservação dos sobreditospáos de lei e porque o bem publico exige o coarctar-se aliberdade de qualquer assolar e sepultar para sempre aferro e fogo tão preciosos thesouros, quaes são as gran-des mattas que a Natureza levou séculos para formar,nenhum dos sobreditos possuidores de terras poderá,debaixo de qualquer causa e pretexto que for, derrubare incendiar aquellas martas e arvoredos que se chamame forem repultadas martas virgens, ainda que nellas seachem poucas madeiras de lei, com a comminação dapena pecuniaria (de 50$00() pagas da cadea) em dobroapplicando-se a metade della para a Fazenda Real peloprejuizo que recebe o incendio dos páos de lei, cujaquantidade não pode constar para o incendiario sertambém multado no seu justo valor; e a mesma penapecuniaria será quadruplicada e applicada do mesmomodo se alguma pessoa incendiar voluntariamentequalquer porção das martas reservadas para os reaescórtes. "23

A legislação do século XVII reflete de forma indis-cutível a percepção de que o fogo prejudica a fertilidadee a capacidade de regeneração da mata. Não é muitolisonjeira para nós a comparação entre as leis que temoshoje e as que tivemos há quase três séculos."Porque muito mais importaria menos engenhos com:lenhas bastantes, que haver mais com falta de lenha, e

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consumir-se de maneira que venha a faltar a todos, eperder-se tudo,"24

Nestes artigos neta-se uma preocupação pela prio-ridade do interesse social sobre o individual. Dá-se ên-fase à preferência por uma política a longo prazo. Alocalização dos engenhos e a distância deles entre sideverá prever não a operação imediata e afoita, apoiadanas matas existentes, mas sim à sua existência conti-nuada, garantida pelo bom manejo do desbastamentodas matas e pela capacidade de regeneração das flores-tas. Insiste-se para que não seja utilizada para roça asterras pr6ximas dos engenhos e também para que os en-genhos adotem técnicas de desbaste, ao invés de devas-tarem progressivamente círculos concêntricos de raio'cada vez maior.

Talvez estas idéias pudessem servir de pano de fundopara uma discussão da política de operação de altos for-nos a carvão vegetal. Qual a distância mínima ótima en-tre a mata fornecedora de madeira e os fomos? Qual apossibilidade de as matas circunvizinhas serem rege-neradas na mesma taxa em que se consome o carvão?

O) O uso da terra. Mais uma vez podemos notar apreocupação com as conseqüências 'de longo prazo, noseguinte trecho das Ordenações Filipinas:"E achando que não são terras para dar pão nem outrosfrutos, ou que não durarão em os dar, que dando-se desesmaria fariam um grande impedimento ao comumproveito de todos (... ) não os dêem de sesmaria.""E quanto as roças que se por temporadas podem fazernos matos, ou maninhos dos lugares, que não são paradurarem lavoura, por fraqueza da terra, onde estãomais, que um anno, dous, ou tres, (... ) e se acharemque queimando-as, rompendo ou cortando os ditosmatos, ou arvores, será dano geral, ou a alguns em par-ticular (... ) não dêem as ditas terras para roças."25 .

Se as terras não são de boa qualidade ou se sua fer-tilidade é aparente ou meramente transitória, que não setransforme uma mata em roça, pois, melhor é ficar comuma boa mata do que com uma roça abandonada apóspoucos anos. Os peritos da FAO repetiram estas adver-tências, tão bem formuladas nas Ordenações Filipinas,no que toca à distribuição de sesmarias, aplicando-as aocaso da Transamazênica. Mas não prevaleceram nem osantiquados conselhos dos legisladores filipinos e nem asopiniões técnicas dos peritos da FAO. Ao longo daTransamazônica, as florestas foram substituídas por ex-plorações agrícolas de produtividade inacreditavelmentealta nos primeiros anos. Pode-se antever, contudo, quedentro de curtíssimo período de tempo, se esgotará afertilidade de solo e essa região se transformará, quandomuito, numa pastagem.

Atraídos pela ilusão da fertilidade, os colonos daTransamazônica metamorfoseiam em deserto,· esplên-didas florestas que por muitos e muitos anos poderiamproduzir boas essências.

E) A propriedade da terra e seu uso. A legislação dassesmarias mostra-nos uma clara preocupação com obom uso da terra, com o esforço dedicado ao seu cultivoe suas possibilidades do sesmeiro em utilizar toda a terraque possui.

"E porquanto algumas pessoas deixam perder seusolivais e colher mato, por não os quererem adubar, nemroçar, e para lhos não pedirem de sesmarias, escavam,ou cultivam algumas oliveiras e não querem roçar osmatos; e outros que têm terras para dar pão, as deixamencher de grandes matos, e soverais, e por lhos nãopedirem, lavram um pedaço de terra, e deixam toda aoutra; e alguns deixam perder as vinhas, e tomar empousios, e adubam umas poucas de cepas em um cabo, eoutras em outro, e alegam que as aproveitam; man-damos que os donos de tais bens, sejam requeridos, e lheseja assinado termo, a que adubem os ditos olivais evinhas, e as terras lavrem, e semeiem as folhas, segundoo costume da terra. E se assim não o fizerem, passado odito termo, as dêem de sesmarias."

"E se acharem que as terras são tais, que, sendo rotas eaproveitadas, ou lavradas, e semeadas, darão pão, vi-nho, azeite, ou outros frutos, e que durarão em os dar atempos, ou a folhas, ou em cada um anno e que nãofarão grande impedimento ao proveito geral dos mo-radores os pastos dos gados, criações, e logramentos dalenha, e madeira para suas casas e lavouras, dêem osditos maninhos de sesmarias; porque proveito comum egeral é de todos haver na terra abastança de pão, e dosoutros frutos."

"( ... ) obrigando aos que tiverem terras de sesmarias,que as cultive e povoe, conforme as obrigações com quelhes foram dadas, e aos que as não cumprirem se tirarãoe se darão a quem as cultive e povoe, na repartição dasditas sesmarias fareis guardar o regimento para que senão dê a uma pessoa tanta quantidade de terra que nãopodendo povoá-Ia nem cultivá-Ia, redunde em dano dobem publico e aumento do Estado."26

Aí está, numa linguagem direta, aquilo que se poderiaconsiderar como dois princípios sadios de reformaagrária. O interesse social ("abastanças") prevalecesobre o capricho individual ou desleixo na exploração daterra. E, mais ainda, se previne o legislador contra ten-tativas de simulação por parte do proprietário ou ses-meiro a quem faltasse interesse pelo cultivo sério daterra.

Igualmente pertinente é o segundo ponto relativo àquantidade de terra que o proprietário pode ou con-segue utilizar produtivamente. Não se fala em latifúndioou minifúndio, não se fala em tamanho de propriedade;mas sim da extensão que consegue efetivamente cultivarquem está de posse da terra. A propriedade não deve sergrande nem pequena, mas simplesmente não pode ex-ceder a capacidade de utilização demonstrada pelos ses-meiros.

F)A consciência da exploração predatória. De nada ser-viram os documentos da administração colonial, muitosdeles revelando legítima preocupação e compreensãodos problemas de conservação ecológica. Já nestes mes-mos documentos podemos entrever a sua inocuidadecomo norma para efetivamente regular o uso dos recur-sos naturais.

"Sendo informado das muitas desordens que há no.sertão do Pau-Brasil, e na conservação dele (... )""Fui informado que das desordens que se cometiam nocorte dele, se seguiam muitos inconvenientes, e em breve

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tempo se extinguiria de todo se se não atalhasse (...)""Por ser informado, que as matas que serviam ao be-nefício dos engenhos de açucar, vão em muita dimi-nuição, sem embargo de algumas serem de pessoas par-ticulares (...) tomassem desta matéria a informaçãonecessária sobre o remedio, que nisto se deve dar e quese conservassem quanto pudesse ser, assim para obenefício dos açucares, como das madeiras para navios eoutras fabricas.""Nesta Capitania (da Bahia) já não há aquela abundan-cia de madeira que havia em outros tempo; porque asinfinitas derrubadas, que no espaço de tantos annos setem feito, por causa das plantações, e para as embar-cações da Coroa, e dos particulares, são causas de es-tarem destruidas as matas, de sorte que já se não encon-tra pau de construção em todo o Recôncavo em menosdistância de quatro léguas dos rios navegaveis, por ondese possam conduzir para esta cidade (...). Mas não épossível executar-se aqui a sua disposição inteiramente;porque já não se acham madeiras de construção emmatas próximas aos rios."27

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Se nos estendêssemos ao Império, veríamos tantasprescrições quantas lamentações pelas "peregrinaçõesdesregradas e excessivas". Em meados do século pas-sado, o Dr. Affonso Rendu Aibeyrolles e o Pe,Caetano da Fonseca comentam sobre o erro de não sedeixar reservas de matas no topo dos morros e nas ver-tentes. Como conseqüência das queimadas e do prolon-gamento da cultura do café a estas partes, estavaprecipitando-se o efeito da erosão e perda de fertilidadedo solo. Foi observado que nas regiões da província dasMinas Gerais onde se havia eliminado estas reservas, aprodutividade das colheitas de milho vinha decrescendoe o regime pluvial, modificando-se em comparação comoutras regiões e com períodos anteriores, a duração daestação seca estava se ampliando.

Não nos deteremos no século XIX pois nosso objetivonão é tratar exaustivamente o assunto, mas sim ilustrarcomo é antiga e nítida a sua compreensão. Para isto, operíodo colonial oferece-nos evidência mais eloqüente.

"Esta terra Senhor (...) muito chan e muito for-mosa (...) de tal maneira graciosa que, querendoaproveitar dar-se-á tudo."28 Pero Vaz de Caminha, quetão bem descreve nossa terra, não podia prever quehavia algo que plantando não dava: tentou-se desde oprincípio semear aqui o respeito pelos mecanismosinexoráveis da natureza, da harmonia das coisas e dosseres, mas esta semente não frutificou. Esta idéia, estasemente imaterial não encontrou o seu nicho ecológico,na terra de Vera Cruz.

S. O MITO ATÁVICO· DA IMPUNIDADEECOLÓGICA

A imensa extensão territorial do Brasil, a despeito dasadmoestações do Regimento Colonial, encorajou o usopredatório dos recursos. Herdamos dos nossos colo-nizadores um total desrespeito pela natureza e fabri-camos o mito de que desenvolvimento é algo que se dáem duas fases: destruição e reconstrução. ~ ilustrativodeste mito, desta infeliz herança, que o símbolo dodesenvolvimento passou a ser um trator destruindo al-

Revista de Administração de Empresas

guma coisa.: De duas décadas para cá, não há programade governo, não há plataforma desenvolvimentista quenão inclua uma fotografia de um trator destruindo umafloresta. Por que para nós desenvolvimento significa lutacontra a natureza, e não trabalho com a natureza?

Propomos como hipótese de trabalho, que um dosmaiores problemas a serem enfrentados no futuropróximo será o de destruir o mito atávico da impunidadeecológica.

Nosso País é extenso e está por ser desbravado. Afronteira econômica é móvel. Os brasileiros estão de-safiados a fazê-la avançar. Foi isso que nos ensinaram;aprendemos nas escolas, aprendemos nos jornais eaprendemos nos documentos oficiais.

Somos descendentes de gente cuja própria experiênciade vida ensinou que, estragando a natureza um pou-quinho onde estamos, mais adiante há uma reserva in-tocada e a ninguém preocupa se o deserto econômico,que vai ficando para trás, seja cada vez maior. Somosherdeiros de um país infinito. Acreditamos nisso.:

A natureza era hostil e escondia os inimigos. Paraproteger-se dos índios e salteadores, punha-se fogo aomato, à beira das estradas, para que a floresta nãopudesse mais escondê-los, para que fosse desassom-brada. Incalculável é o patrimônio florestal que ardeupor meses a fio às margens dos caminhos de penetraçãopara a Província das Minas Gerais. O fogo era defesa,era proteção contra emboscadas. Persiste até hoje ohábito de por fogo no capim ralo que substituiu estasmatas - duvidoso método de reduzira acidez do solo. Enão só duvidoso como incontrolável, pois quem há deatender para que o fogo se restrinja ao pasto de nossosincendiários congênitos? Quem viaja de avião à noite emMinas Gerais, durante a seca, dificilmente teria paciên-cia necessária para contar o número de incêndios flores-tais sobrevoados.

Pelo menos no estado de Minas Gerais onde já vi-vemos, a palavra mato adquire conotações sugestivas nonosso desrespeito para com a natureza. Mato em Minasé pejorativo, quando se diz só tem mato, esta é a con-denação fatal do local descrito. Na Escola Superior deAgricultura de Viçosa, era comum, nos idos da décadade 40 , dizer-se a um aluno que ele vem do mato e obtercomo resposta: "Não, minha fazenda está toda for-mada." Isto significa que não tinha mais nenhum mato.

Pior do que desprotegidas por lei, nossas reservasflorestais, ao fim do século, foram, em boa parte, des-truídas por força da lei. Demonstrando uma ingenui-dade que os legisladores filipinos explicitamente denun-ciaram, foi criado um imposto sobre terras improdu-tivas; e por terras improdutivas se entendiam florestas.Previsivelmente (pelo menos para um legislador fili-pino), para contornar a legislação, muitas matas foramincendiadas e a agropecuária, simulada. Em muitoscasos, pequenas roças ou gado quase simbólicos re-fletiam a inadequação da terra para tais fins. Em outros,os proprietários simplesmente não tinham o empenho, ocapital ou o interesse para uma exploração agrícola oupecuária séria. A agricultura desleixada ou simulada eraum mero subterfúgio para pagar menos impostos.

Esta é portanto a nossa herança. Descendemos de umcaboclo que viu na natureza um inimigo hostil a serpilhado e perseguido, empurrando, Brasil adentro, uma

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fronteira onde ninguém via nem tentava ver o fim.Atavicamente acreditamos na impunidade do crimecontra a natureza.

O renascer das preocupações com o meio-ambientenão vem do povo mas sim de uma elite de governantes egovernados. Com os sentidos aguçados pelos diálogosinternacionais sobre o meio-ambiente, já não conse-guimos mais ser cegos e surdos para os deslizes que sevêm cometendo no trato com a natureza.

Mas, condicionados pela herança atávica, falta-nos avisão histórica, falta-nos a perspectiva. Atacamos oproblema como marinheiros de primeira viagem.

Começa assim a surgir um conjunto de legislação bemintencionada, sincera, mas quer-nos parecer que es-tamos cometendo dois enganos. Permitimo-nos o deslizede ignorar a história duas vezes.

Ignoramos, juntamente com a compreensão dosprocessos biológicos, toda a experiência legislativa dosnossos antepassados. Foi exatamente isto que tentamosdemonstrar nas seções anteriores deste artigo.. E ignoramos a segunda lição da história: legislar não

basta. Tentamos demonstrar que a legislação que ti-vemos era mais do que suficiente para resolver prati-camente todos os problemas de conservação do meio-ambiente que encontramos hoje. Contudo de nadavaleu. Mais difícil do que o desafio de conceber boas leis- estas já as tivemos - é fazer cumpri-las por um povopara quem a lei natural aponta em direções opostas.

6. OS CUSTOS E NÃO-CUSTOS DOCONTROLE ECOLÓGICO

"Ecologia é coisa para país rico, para nós há outrasmetas mais prioritárias.""Controlar poluição é caro, nós somos um país pobre.""A pior poluição é da pobreza.""O Brasil tem vantagens comparativas em indústrias in-tensivas em poluição."

Em 1970 tivemos uma experiência interessante.Havendo regressado dos EUA, onde as discussões sobreecologia já mobilizavam as donas de casa de classemédia, fomos surpreendidos por uma reação de per-plexidade e ceticismo por parte de alunos de um cursosobre desenvolvimento econômico ministrado a eco-nomistas em nível de pós-graduação, em que se incluium capítulo sobre política de conservação do meio-am-biente, especialmente aqueles que, ao longo do curso,demonstravam maior preocupação com os problemassociais. A sua argumentação alicerçava-se em dois pon-tos: primeiro, o controle do meio-ambiente é caro, com-petindo, portanto, com metas que mais diretamenteafetariam o bem-estar da população; e, em segundolugar, o tema é de importância subalterna, um divertis-sement para diletantes e aristocratas.

O transcurso do tempo revelou que estes argumentoscorrespondiam a uma amostra representativa daoposição usual contra as preocupações com o meio-am-biente. Acreditamos que ambos os argumentos têm umafalha essencial. Não trataríamos de mostrar que a suanegação é verdadeira - a conservação do meio-ambien-te não é nem cara nem sem relevância; isto seria maisdifícil, e é desnecessário fazê-lo.

Esta é uma questão estritamente ernpmca, isto é,trata-se de uma afirmação a respeito do que é a reali-dade, uma descrição de alguma coisa que acontece. Porconseguinte, não é uma questão que se resolva afirman-do ou pontificando. As questões de fato se resolvem con-sultando os fatos, consultando a realidade, examinan-do-a metódica e sistematicamente. E como isto não foifeito, não podemos afirmar que tais programas sãoirrelevantes e que suas soluções são caras.

Mais ainda, não há qualquer indicação ou sugestão deque possa haver uma resposta que seja comum às duassituações. Há controles caros e baratos, há problemasimportantes e irrelevantes do controle do meio-ambien-te. Para cada caso haverá uma resposta diferente.

Para a imensa variedade de casos, a variedade de res-postas não poderia ser menor. Há situações elementarís-simas de controle de poluição, onde, pela comodidade,caprichos ou benefícios pecuniários de poucos, muitossão prejudicados. Há o caso ridiculamente simples dapoluição sonora dos veículos automotores que se uti-lizam de escapamento modificado e, portanto, maiscaros. Proibir fabricação e uso destes malditos aces-sórios, significa custos menores para o proprietário doveículo.

Por não utilizar processos industriais ou filtrosadequados, algumas indústrias podem produzir à co-munidade ou a algum grupo particular, danos ouprejuízos que em muito excedem o custo de tal equi-pamento preventivo. Note-se bem, estamos muitofreqüentemente lidando com números; os filtros têmcusto conhecido e com alguma imaginação é possívelquantificar os danos e mal-estar causados. Quem já sepreocupou em calcular o prejuízo causado pela fumaçada Mannesmann, em Belo Horizonte, ou, do arsênicojogado ao rio pela Mina do Morro Velho?

Em outros casos, trata-se de impedir que, por ig-norância ou miopia, as pessoas destruam a sua própriafonte de sustento. A continuar o uso da rede balão embraços de mar e rios, os maiores prejudicados com aeliminação da fauna submarina serão estes mesmos pes-cadores; nem serão seus filhos, tão rápido é o poder dedestruição da rede balão. Neste caso, trata-se de trocarpequenos aumentos na produtividade hoje, pela infer-tilidade das águas em poucos anos.

A questão das técnicas de manejo florestal não é umadiscussão de princípios, mas sim de cálculo econômico.Há quem afirme que os pinheirais do Sul do Brasil, Seexplorados com técnicas apropriadas de manejo (insis-timos, já conhecidas à época do descobrimento), po-deriam ter fornecido a mesma metragem cúbica quedeles foi extraída, sem que um pinus sequer, fosse plan-tado pela mão do homem; e poderíamos ter, como reser-va florestal, o mesmo acervo que tínhamos ao dia dodescobrimento. Mas, qual o custo do manejo, com-parado com o corte puro e simples? Quem sabe? Quemjá pesquisou?

Suponha-se um programa muito simples. Temos trêsmatas, uma é devastada e abandonada para que cresçanovamente. A outra é devastada também pelo mesmométodo habitual e reflorestada pela mão do homem.Uma terceira mata é periodicamente desbastada, se-guindo, vamos supor, para ser bizantinos, os preceitosindicados pela legislação do pau-brasil. Qual destes trêsmétodos é economicamente mais produtivo? Como não

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temos respostas para estas perguntas, não podemos afir-mar que o controle ecológico é caro ou barato. Só muitorecentemente um professor americano da Universidadede Viçosa iniciou alguns experimentos neste sentido.Mas, a legislação brasileira tem ignorado a existência detécnica de manejo florestal. A primeira portaria doIBDF a admitir técnicas de manejo para florestas na-turais data de 1973.29

Qual o preço social do carvão vegetal? Se o climamuda, os rios secam e a terra se lateriza, o preço pago aocarvoeiro (que meramente remunera o seu esforço físicoe mais uma estimativa de mercado da mata), subestimaem muito o custo social deste carvão. Parece uma hi-pótese plausível afirmar que o custo social do carvãovegetal vai depender de como é cortada a mata. Cada es-tilo de corte ou manejo permite à floresta um ritmo deregeneração. Ao invés de cortar e tocar fogo, podemosdeixar intactas as raízes com alguns palmos acima dochão, podemos deixar alguns galhos, podemos deixar al-gumas árvores, cortar 70%, cortar 50%, cortar 200/0,etc.Cada uma destas alternativas gera um custo social docarvão, porque o ritmo de regeneração da mata será dis-tinto (variando também com a tipologia florestal) e comocada uma delas tem o seu custo, resta saber qual é a al-ternativa mais adequada. Mas isto não é assunto paraespeculação e sim para pesquisa metódica. 30

Haverá casos em que o controle é caro ou a restau-ração do equilíbrio anterior é proibitiva. Mas há quedemonstrá-lo. A eliminação de 1000/0dos poluentes in-dustriais é, muitas vezes, técnica e economicamente im-possível. Não deverá ser isto razão, em geral, para re-negar a industrialização. Os motores de combustão in-terna, especialmente a gasolina, emitem, além domonóxido de carbono, outros resíduos nocivos à saúde.Isto não será razão para não se usar automóvel. Ra-ramente, porém, estamos diante de uma situação detudo ou nada. E tampouco cabem posições a priori. Se afábrica polui, temos de perguntar se é possível deixar depoluir, quais os custos dos processos não poluidores,quais os prejuízos resultantes?

Contudo, nem todos os prejuízos da poluição oudesequilíbrio ecológico podem ser medidos com nú-meros ou avaliados em moeda. Não obstante, nem porisso passam a ser irrelevantes ou menos importantes.Quanto vale o ar puro? Quanto vale a vista? Quanto valeo silêncio? Quanto vale o prazer de um banho de marem água limpa? Quanto vale trocar o cheiro de óleodiesel queimado por uma brisa vinda de um jasmineiroem flor?

Cabe perguntar, e não tomar uma resposta qualquercomo axioma. O desenvolvimento pode implicar certossacrifícios do meio-ambiente. Mas não podemos afir-mar, a priori, que isto tem que ser assim e que só há umamaneira de fazer as coisas. 1:: simplista e tolo supor quehá apenas uma relação de dicotomia entre desenvol-vimento e equilíbrio do meio-ambiente: ou um ou outro.Cada fábrica tem suas alternativas técnicas, com seusrespectivos custos, diversas possibilidades de localizaçãoe, cada um destes fatores tem que ser confrontado comas conseqüências da sua adoção. Diante deste quadroque, em geral, não é simples, cabe decidir por uma al-ternativa que represente um compromisso aceitável en-tre os diversos fatores em jogo.

Revuta de A.dminiltração de Empresas

Comparando este elenco de possibilidades com seuscustos e conseqüências, há um caso especial que mereceser lembrado. 1:: o das opções irreversíveis. Se optamoshoje por um ar um pouquinho mais sujo, esta em geralnão será a solução mais inteligente, mas podemosmudar de idéia mais adiante e adotar uma política an-tipolúição vigorosa; assim se passou em Londres. Mas,se por desleixo ou negligência, permitimos o desapa-recimento de uma espécie animal, a baleia, digamos,não podemos mudar de idéia mais adiante. Ondecriamos um deserto, toma-se difícil convertê-lo em al-guma outra coisa. Se destruímos a vida aquática, a suaregeneração é demorada, quando não, impossível.Quando decidimos que nossos filhos, netos e bisnetosjamais poderão ver ou comer a carne do peixe-boi, es-tamos tomando uma decisão para os que nos sucederão,e portanto, uma decisão mais séria. 1:: paradoxal verchamados de saudosistas, pessoas que relutam em tomardecisões que privarão as gerações futuras de um recursonatural, de uma obra de arte ou de um contorno feliz dapaisagem. Ao contrário dos saudosistas, estas pessoasestão voltadas para o futuro e não para o passado. Nãodevemos confundir caprichos sentimentais com decisõessobre o mundo que teremos em alguns anos e que terãoas gerações que nos sucederão.

Em suma, em todas as nossas interferências com osprocessos biológicos, temos que, seriamente, indagar arespeito dos mecanismos de equilíbrio e das possíveisconseqüências nas diferentes linhas de ações que po-deremos tomar.

As posturas municipais de qualquer cidade requeremo exame prévio das plantas de qualquer obra de en-genharia civil, para certificar-se de que há ventilaçãoadequada, que condições de higiene são preenchidas eque a posição da obra dentro do terreno não contrariacertas regras. Para proteger nossa própria vida e a deoutros, o Código Nacional de Trânsito exige que o can-didato à carteira de habilitação exiba certos reflexos,certos níveis de destreza manual e conhecimento dasnormas que regem o fluxo do trânsito. Para concederum empréstimo, os bancos buscam sempre evidênciasconcretas da capacidade de solvência do futuro credor.Bancos de desenvolvimento e agências de fomento aocrescimento exigem demonstrações da viabilidadeeconômica do projeto em pauta. O imposto de rendaexige um elaborado sistema de comprovações para quefique estabelecida a veracidade das informações pres-tadas. Para ser posta no mercado, uma" droga farma-cêutica tem de passar por testes exaustivos para que seestabeleçam certos limiares de segurança no seu uso.Qualquer indústria de grande porte tem, no seu quadrode funcionários, algumas dezenas de pessoas cuja fun-ção é partir da hipótese de que o produto ela empresa éde má qualidade, inseguro, e que as matérias-primas sãodeficientes, estão aquém das normas estabelecidas e quetodas as peças contêm fraturas internas e que os for-necedores estão tentando passar gato por lebre; é odepartamento de controle de qualidade.

Nossa proposta neste trabalho é a de que, em suasrelações com o meio-ambiente, a mesma dúvida sis-temática tenha de ser rotineiramente lançada. Quais asconseq üências da nossa interferência nos processosbiológicos? Não podemos pressupor a impunidade,temos de demonstrá-la. •

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I Titulo de um poema de Anna Amélia Q.c. Mendonça.

2 Em linguagem técnica. não se vêflorestas em clímax.

3 O Parque Municipal. além de já ter sido reduzido à metade. estásendo progressivamente invadido por escolas, teatros e parques de es-tacionamento. •

4 Hamilton. V.G.T.H. Process and pattern in evolution. London,Macmillan. 1967; Kormondy. E.J. Concepts of ecology. Englewood-Cliffs. Prentice-Hall, 1969.

S Storer, J.H. The web oflife. New York, Signet, 1953.

6 Georgescu - Roegen, E.G.N. Analytical economics. Cambridge,Harvard U. Press, 1967. p. 64-82.

7 Ordenações e leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandatoD 'El Rei Dom Felipe. O Primeiro. 12. ed, segundo a 9&. Coimbra. Im-prensa da Universidade. 1858.

8 Mas. ao mesmo tempo. é curioso lembrar que a pena máxima para odesrespeito às leis de proteção aos recursos naturais era freqüente-mente o degredo para o Brasil. Não podemos pois esperar muito bonshábitos dos nossos primeiros colonizadores.

9 Rio de Janeiro. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro -- Con-selho Federal de Cultura. 1972.

lO Foram incluídas também algumas citações dos volumes 6 (1865) e7 (1866) da Revista do Instituto Histórico (daqui por diante abreviadaRIH) referentes ao principio do século XIX que não foi coberto emFormação administrativa do Brasil.

1i Regimento do Governo das Praças Conquistadas e que foram Con-quistadas nas índias Ocidentais. Formação administrativa do Brasil.cit. p. 508.

12 Regimento do Pau-Brasil. op. cito p. 363.

13 Regimento de Andre Vidal de Negreiros. 1655. ibidem. p. 703, 704;Regimento de Roque da Costa Barreto dos Governadores Gerais.ibidem. p. 787. 789. 792. Na carta régia sobre os cortes das madeirasde construção (RIH. V. 6. p. 461. 463) vemos igualmente restrições aoLISO do cedro. consideração útil à construção naval. Ficam também aliestabelecidas as prisões e multas para os que "transgredirem (... )cortando ou queimando paus de construção nos lugares defesos".Pela mesma forma. fica limitado o direito dos proprietários paraaumentar as terras lavradas. "não se consentindo jamais poderem sealargar para as matas existentes. fazendo nas mesmas derrubadas equeimadas".

14 Regimento da Relação do Estado do Brasil. Formação adminis-trativa ... cito p. 663.

15 Regimento Gaspar de Souza. 1612. ibidem p. 42S ..

16 Esta citação difere de todas as demais apresentadas neste trabalhupor não ser um Regimento da Administração Colonial mas. sim. umacarta de Manuel Ferreira da Camara (Intendente Camara) em 1798 aoRei de Portugal. Carneiro de Mendonça. Marcos. O IntendenteCumaru. São Paulo. Cia. Editora Nacional. 1958. p. 58. 60.

17 Carta régia e plano sobre os cortes das madeiras de construção(1809). R/H. V. 6. p. 464; Correspondência. J. Thomas Henriques,Presidente da Província do Pará (1844). RIH. V. 7. p. 346.

18 Regimento do Pau-Brasil, formaç-ão administrativa ... cito p.364.

19 Relação das Matas das Alagoas. R/H. p. 516.

20 Ibidem. p. 508.

21 Regimento do Pau-Brasil, Formação administrativa.: cito p.364.

22 Ibidem. p. 364. 365.

23 Providências interinas para a conservação das mattas e páos reaisda Costa desta Capitania (Capitão General Mello Castro). Documen-lOS interessantes. São Paulo. Archivo do Estado de São Paulo. 1915. V.

44. p. 172-3.

24 Regimento Gaspar de Souza. ibidem. p. 425; Regimento de Roqueda Costa Barreto dos Governadores Gerais. ibidem. p. 789. A primeiracitação é uma repetição com pequenas modificações de um regimentoanterior. (veja p. 26. 27.)

2S Ordenações Filipinas. ibidem. p. 74. 75.

26 Ordenações Filipinas. ibidem. p. 73. 74; Regimento Gaspar deSouza. ibidem. p. 425.

27 Legislação do Pau-Brasil. ibidem. p. 363 Regimento Roque ~aCosta Barreto dos Governadores Gerais, ibidem, p. 791. Na Relaçãodas matas de Alagoas (1809). RlH. v. 7, p. 508, 513, podemos ver ad-vertências do mesmo teor.

28 Carta a El Rey Dom Manoel. Rio de Janeiro. Sabiá, 1968. p. 93. 94.

29 Portaria normativa DC n. o 1 do IBDF.

30 Carlos E. Thibau e David Azambuja calcularam uma capacidademáxima de 5 milhões de toneladas de gusa produzidas a carvão vegetalem Minas Gerais em 1980. Sem embargo. não hâ evidência clara deque estes cálculos sejam levados em consideração nas autorizaçõespara operar altos fornos. (Diretrizes para o problema do carvão vegetalna siderurgia, Ministério da Agricultura, IBDF, 1973.)

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