schutz parte 1

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uma tradição sociológica bem estabelecida, embora não univCI'''1I1 ,2ssatradição, incorporada em várias abordagens, toma como pont de partida os atores sociais que constituem a sociedade, em vez istemas e instituições sociais que são produtos de suas atividad Sem negar a importância das preocupações macrossociológiç Schutz estendeu a abordagem de Weber ao reino sociopsicológic ~ especialmente nesse reino que sua obra pode se tornar importanl' para os expoentes das abordagens subjetivas recentemente revitali zadas da sociologia e da psicologia socialamericanas, deptruras-ô interacionismo simbólico. Espera-se que o presente volume inspir discussões críticas e investigações sobre as principais questões colo- cadas por Schutz. Sua obra coloca-se diante de nós não como um corpo de teoria acabado, mas como um incansável esforço de uma mente excepcional. Ela constitui um desafio. I Fundamentos fenomenológicos 62

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Sobre fenomenologia e relações sociais

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Page 1: Schutz Parte 1

uma tradição sociológica bem estabelecida, embora não univCI'''1I1,2ssatradição, incorporada em várias abordagens, toma como pontde partida os atores sociais que constituem a sociedade, em vezistemas e instituições sociais que são produtos de suas atividad

Sem negar a importância das preocupações macrossociológiçSchutz estendeu a abordagem de Weber ao reino sociopsicológic~ especialmente nesse reino que sua obra pode se tornar importanl'para os expoentes das abordagens subjetivas recentemente revitalizadas da sociologia e da psicologia socialamericanas, deptruras-ôinteracionismo simbólico. Espera-se que o presente volume inspirdiscussões críticas e investigações sobre as principais questões colo-cadas por Schutz. Sua obra coloca-se diante de nós não como umcorpo de teoria acabado, mas como um incansável esforço de umamente excepcional. Ela constitui um desafio.

IFundamentosfenomenológicos

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1A linha de base fenomenológica*

A fenomenologia em foco

Até este momento os cientistas sociais não encontraram umaabordagem que esteja em conformidade com o movimento [enome-nologico iniciado pelos escritos básicos de Edmund Husserl, quedatam das primeiras três décadas do século XX. Em determinadoscírculos o fenomenólogo é considerado como um vidente com bolade cristal, um metafísico ou um ontologista no sentido mais depre-ciativo desses termos, ou ainda como alguém que sempre ignora osfatos empíricos e os métodos científicos mais ou menos estabeleci-dos que deveriam servir para coletar e explicar esses fatos. Outros,melhor informados, percebem que a fenomenologia poderia ter al-guma importãncia para as ciências sociais, mas olham para os feno-menólogos como constituindo um grupo esotérico cuja linguagemé incompreensível para um não iniciado, e como algo com o qualnão vale a pena se ocupar. Um terceiro grupo formou a vaga e errô-nea ideia a respeito do significado da fenomenologia a partir de al-guns slogans usados pelos autores, que pretendiam apenas ser feno-menólogos, sem utilizar o método de Husserl (como é o caso deTheodor Litt) , ou usados por fenomenólogos (como Max Scheler)em escritos não fenomenológicos que lidavam com assuntos dasciências sociais ...

Qualquer tentativa de reduzir a obra de um grande filósofo a al-gumas proposições básicas compreensíveis para um público não fa-miliarizado com seu pensamento é, em geral, um esforço pouco fru-tífero. E no que concerne à filosofia de Husserl há ainda uma série

* Transcrito a partir dos seguintes itens das Referências: 1945b, p. 77-79,95-97;1941, p. 443-446; 1967, p. 45-47, 51-53, 53-57; 1945c, p. 537-538, 539-541.

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de dificuldades particulares. A parte publicada de sua filosofia, ca-racterizada por uma apresentação condensada e por uma linguagemtécnica, é de caráter bastante fragmentário. Ele considerou essencialreiniciar várias vezes sua busca pelos fundamentos básicos não ape-nas da própria filosofia, mas também de todo pensamento científi-co. Seu objetivo era mostrar os pressupostos implícitos sobre osquais se baseavam qualquer ciência das coisas naturais ou sociais.Seu ideal era ser um "aprendiz" na filosofia, no sentido mais verda-deiro da palavra. Apenas mediante urpa análise laboriosa, uma con-sistência destemida e uma mudança radical em nossos hábitos depensar é que seria possível ter a esperança de revelar a esfera de uma"filosofia primeira" que leve em consideração os requisitos de uma"ciência rigorosa", realmente merecedora desse nome.

É verdade que muitas ciências são chamadas de rigorosas, sen-do que essa expressão usualmente se refere à possibilidade de ex-pressar um conteúdo científico sob uma' forma matemática. Masnão foi nesse sentido que Husserl utilizou essa expressão ... Ele tinhaa convicção de que nenhuma das assim chamadas ciências rigoro-sas, que utilizavam a linguagem matemática com essa eficiência,poderiam levar a um entendimento de nossas experiências do mun-do - um mundo cuja existência é pressuposta de forma acrítica, eque se pretende mensurar com fitas métricas e escalas de seus ins-trumentos. Todas as ciências empíricas se referem ao mundo comoalgo já dado; mas elas e seus instrumentos são em si mesmos ele-mentos desse mundo. Somente uma dúvida filosófica lançada sobreos pressupostos implícitos de todo nosso pensamento habitual- ci-entífico ou não - pode garantir a "exatidão" não apenas de tal tenta-tiva filosófica, mas de todas as ciências que lidam direta ou indireta-mente com nossas experiências do mundo ...

Esse esboço do propósito geral de Husserl pode explicar asgrandes dificuldades encontradas por um estudante que está sendoiniciado na fenomenologia e que tenta atribuir a essa filosofia aque-les rótulos de manuais, tais como idealismo, realismo, empirismo.Nenhuma dessas classificações escolares pode ser adequadamenteaplicada a uma filosofia que põe as próprias classificações em ques-tão. Ao buscar o começo real de todo pensamento filosófico a feno-menologia espera ter como ponto de chegada aquele momento que

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\ ~ y,.~-{,\ .~ J\\'::-11,I~cY~~~'~~ r-~

,'OSLUmaser o ponto de partida da filosofia tradicional. Ela se colocaem um ponto que está além - ou melhor, antes - de todas as distin-

s entre realismo e idealismo.Além disso, essas considerações introdutórias podem ajudar a

remover um equívoco bastante difundido a respeito da natureza dafcnomenologia - a crença de que ela é anticientífica, não baseada naanálise e descrição, mas em uma espécie de intuição incontrolávelu em uma revelação metafísica. Até mesmo alguns estudantes sériosie filosofia foram induzidos a classificar a fenomenologia como me-taftsica, em virtude de sua admitida recusa em aceitar de forma acrí-rica aquilo que é dado pela percepção sensorial, ou os dados biológi-os, ou ainda os dados sobre a sociedade e o meio, recusando-os

como ponto de partida inquestionável para a investigação filosófica.Além disso, o uso que Husserl fez de alguns termos desafortunados,como Wesensschuu, fez com que muitos deixassem de reconhecer afenomenologia como um método de pensamento filosófico.

O método da fenomenologia é tão "científico" como qualquer

outro.

Fenomenologia e ciências sociais

Uma última observação pode ser sugerida a respeito da impor-tãncia da fenomenologia para as ciências sociais. É preciso afirmarclaramente que a relação da fenomenologia com as ciências sociaisnão pode ser demonstrada mediante a análise de problemas concre-tos da Sociologia ou da Economia - tais como o ajuste social ou a teo-ria do comércio internacional - com métodos fenomenológicos.Contudo, tenho a convicção de que futuros estudos sobre os méto-do? das ciências sociais e de suas noções fundamentais levarão ne-cessariamente a questões que pertencem ao domínio da investiga-

ção fenomenológica1.

Para dar apenas um exemplo, todas as ciências sociais tomam aintersubjetividade da ação e do pensamento como algo dado. Que o

1. CL SCHUTZ, A. Phenomenology and Social Sciences. In: FARBER, M. (org.).Phílosophica[ Essays in Memory oJEdmund HusserL Cambridge, Mass.: [s.e.] , 1940,

p.164-186.

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ser humano existe, que os homens agem em relação a outros ho-mens, que a relação mediante símbolos e signos é possível, que gru-pos sociais, instituições, sistemas econômicos e legais são elemen-tos constitutivos de nosso mundo da vida, e que esse mundo da vidapossui sua própria história e uma relação particular com o tempo ecom o espaço, são todas noções explícita ou implicitamente funda-mentais para o trabalho de todos os cientistas sociais. Estes desen-volveram certos instrumentos metodológicos - esquemas de refe-rência, tipologias, métodos estatísticos - para lidar com os fenôme-nos sugeridos por esses termos. Mas os fenômenos em si mesmossão tomados como dados. O homem é simplesmente concebidocomo um ser social, a linguagem e os outros sistemas de comunica-ção simplesmente existem, a vida consciente do outro é acessível amim - em suma, eu posso entender as ações do outro e o outro podeentender a mim e a minhas ações. E o mesmo vale para os assim cha-mados objetos sociais e culturais criados-pelo homem. Eles são ti-dos como dados, e possuem seu significado específico e um modoparticular de existência.

Mas como é ossível que a compreensão mútua e a comunica-ç~o realmente ocorram? ~ível que o homem realizeações significativas •. com finalidades ou simplesmente habituais,que ele seja guiado ar i s a serem realizados e motivado por dete~mina as experiências? Os conceitos de significado, de motivos, defins, de atos, referem-se a uma determinada estrutura da consciên-cia, a determinado arranjo de todas as experiências segundo umtempo interior, a um certo tipo de sedimentação? E a interpretaçãodo significado atribuído pelos outros e do significado de suas açõespor acaso não pressupõe uma autointerpretação do observador oude seu parceiro? Como é possível que eu, enquanto hom~mm~io a outros, ou como cientista social, encontre uma forma deabordar isso tudo a não ser recorrendo a um estog,ue de exptriênçias

ré-interpretadas, construídas mediante um rocesso de sedimen-tação dentro e mm a própria vi a consciente? E como é possívelju~car métodos de mterpretação das inter-relações sociais se elesnão forem baseados um uma cuidadosa descrição dos pressupostossubjacentes e de suas implicações?

Essas questões não podem ser respondidas pelos métodos dasciências sociais. Elas demandam uma análise filosófica. E a fenome-

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nologia - não apenas o que Husserl chamou de filosofia fenomeno-lógica, mas também a psicologia fenomenológica - não apenas abri-ram caminho para essa análise, como ainda deram início a ela.

Consciência

Ao discutir os métodos de investigação disponíveis aos psicólo-gos', James destacou que todas as pessoas acreditam sem hesitaçãoque percebem a si mesmas pensando, e que distinguem o estadomental como uma atividade interna diferenciada em relação a todosos objetos com os quais podem lidar cognitivamente. "Eu conside-ro", ele afirma, "essa crença como o mais fundamental dentre todosos postulados da Psicologia, e descarto todas as curiosas investiga-ções a respeito dessa certeza por serem demasiado metafísicas paraos propósitos deste livro". "Que tenhamos cogitações de alguma or-dem é o inconcessum em um mundo no qual os outros fatos em al-gum momento foram sacudidos pelo sopro da dúvida filosófica".

Em primeiro lugar, essa posição básica é a plataforma comum apartir da qual têm início tanto a investigação psicológica de Jamesquanto a meditação fenomenológica de Husserl. O primeiro fato in-dubitável do qual se pode partir é a existência de uma consciência-individual; o selr individual, antes do que o próprio pensamento,deve ser tratado como o dado imediato da psicologia, e o fato uni-versal da consciência não é a constatação de que "os sentimentos epensamentos existem", mas é o "eu penso" e o "eu sinto". Dentro decada consciência pessoal o pensamento é contínuo e mutá~l, e,como tal, é comparável a um rio ou a uma torrente. "Torrente depensamentos", "torrentes de experiências ou cogitações", "torrenteda vida consciente", são termos que ambos os filósofos usam paracaracterizar a essência da vida interior. Para ambos a unidade daconsciência consiste em sua absoluta conectividade. James afirmaque_é nosso pensamento conceitual que isola e fixa arbitrariamentecertas porções dessa torrente da consciência ...

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2. PrincipIes. VaI. 1, p. 185.

. lbid., p. 226.

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~ It-P ~ r_'8

Para Husserl, a vida pessoal da consciência como um fato indu-,~ bitávelleva à apreensão e à investigação teórica do "reino da COilS-

,'\ ciência pura em seu próprio Ser". Vamos examinar essa posiçãomais de perto. Desde o começo o problema perseguido por Husserlpossuía dois caminhos: primeiramente, consistia em estabeleceruma disciplina psicológica a priori capaz de oferecer a única base se-gura para construir uma psicologia empírica sólida; em segundo lu-gar, estabelecer uma filosofia universal, começando com um "prin-

\' cípio" absoluto do conhecimento nó sentido mais genuíno desse~ termo. Nós estamos interessados principalmente no primeiro.

.~ !:iusserl começa com a explicª-ªo das características da expe-J riência psicológica. ,Énquanto vivemos, ~vemos em nossas expe-J riências, e, como estamos concentrados sobre seus objetos, ~o per-cebemos os "atos subjetivos da experiência" em si mesmos. ~ara re-

\

velar esses atos é preciso modificar ~itude ingênua com ª-il,ua[riOScOIocamos diante dos objetos e nos voltarmos para nossas pró-p;ias experiências, e!!.UIDlato espedBco-d.e "reflexfio~ ,

) -O passo seguinte de Husserl Consistiu em revelar a "intenciona-

lidade" da consciência. Nossas co ita ões têm o característica'\ básica o fato de serem a "consciência de" alguma coisa. Aqui o qued aparece na reflexão c0!!l0 um fenômeno Lu objeto~ncion~l, do

, qual eu pOSSllOlJma ídeia, uma percepção, um temor etc. Eorranto,toda ex eriência não é caracterizada apenas elo fato de que existe

1ti'ma consciência, mas é simu taneamente determ.inada gelo objeto. intencional do qual se tem consciência 4. É possível descrever tipos e

formas dessa intencionalidª-pe. Essa descrição pode ser realizada emdois diferentes níveis: primeiro, em relação à atitude natural _ e

~ I tu~ o que foi afirmado até o momento se refere a esse nível; segu,n-V do, em relação à esfera da redução fenomenológica. Esse conceito

~ báSiCo da teoria de Husserl demanda maiores explicações.

Em nossa vida cotidiana, ou, como afirma Husserl, "do pontode vista natural", aceitamos como inquestionável o mundo dos fãtosque nos circunda como algo existente exteriormente. Podemos atécolocar em dúvida alguns dados do mundo exterior, ou mesmo de-

Glbson,p.361. ~xI""") _ . .

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sacreditar todas as experiências desse mundo que quisermos; mas,mesmo assim, a crença ingênua acerca da existência de algum mun-do exterior, essa "tese geral do ponto de vista natural", irá subsistir,Irnperturbavel. Mas mediante um esforço radical de nossa mentepodemos modificar essa atitude, não transformando essa crençain-ênua em uma descrença quanto à existência desse mundo, nãoubstituindo nossa convicção pelo seu contrário, mas mediante

uma suspensão da crença. Nós apenas controlamos nossa mentepara refrear qualquer juízo relativo à existência espaço temporal, ou,m uma linguagem técnica, colocamos a existência do mundo "fora

do domínio da ação", nós colocamos nossa crença "entre parênte-ses". Mas usando essa epoché particular nós não apenas "colocamosentre parênteses" todos os juízos do senso comum de nossa vida co-tidiana a respeito do mundo exterior, mas também todas as proposi-ções das ciências naturais que também lidam com as realidades des-se mundo do ponto de vista natural.

.12@do mundo após esse processo de colocação entre pa-rênteses? Nem mais nem menos do que a completude concrªª-- dofluxo de nossa experiência-Que contém todas as nossas percepções,reflexões, em suma, nossas cogjJa.çães. E na medida em que essas co-gitações continuam a ser intencionais, seus "objetos intencionados"correlatos também persistem, mesmo com os parênteses. Mas .demodo algum eles devem ser identificados como objetos ínsrínndos.Eles são apenas "aparências", fenômenos, e, como tais, SãQjD.ais..algocomo "unidades" ou "sentid~ ("sig~"). Eortanto, °métododa redução fenomenoló ica toma acessível o ró rio fluxo da cons-~, como um reino que existe em si mesmo, em sua natureza a -solutamente singular. Nós podemos experienciã-la e descrever suaestrutura interna. Essa é a tarefa da psicologia fenomenológica ...

A redução transcendmtal é importante para a psicologia feno-menológica descritiva não apenas porque revela o fluxo da cons-

f-ciência e suas características em sua pureza, mas, acima de tudo,porque algumas importantes estruturas da consciência odem sertorna as VisíveiS somente no âmbito dessa esfera reduzida. Dadoque a cada determinação empírica dentro dessa redução fenomeno-lógica corresponde necessariamente uma característica paralela naesfera natural, e vice-versa, podemos sempre retornar à atitude na-tural e ali fazer uso de insights que adquirimos na esfera reduzida.

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Ill,

Vamos tomar como exemplo a teoria de Husserl de noesis (o queexperiencia) e noema (o que é experienciado), o que nos aproximade alguns princípios fundamentais de james. Todas as cogitações,em virtude de seu caráter intencional, são sempre a Cogitação de al-guma coisa, e sempre existirá uma dupla maneira de descrevê-Ias: aprimeira é a noemática, que lida com o "cogitado", isto é, com o ob-jeto intencionado de nosso pensamento específico tal como aparecenele, enquanto uma existência certa, possível ou apenas presumíveldo objeto, ou ainda como um objeto presente, passado ou futuro; osegundo modo, o noético, lida com os atos do cogitar, com a própriaexperiência (noesis) e com suas modificações, tais como: a percep-ção, a retenção, a rememoração etc.; e com suas diferenças em rela-ção à clareza ou explicitação. Cada noesis específica possui uma noe-mática específica correspondente. Há modificações no pensamentoque influenciam o conteúdo noetu:o e noemático como um todo,como por exemplo, as modificações na' atenção; outras transfor-mam preponderantemente o lado noemático ou o lado noético. Masuma análise mais atenta (que pode ser feita apenas na esfera reduzi-da) mostra que há sempre um núcleo ou cerne noemático em cadaobjeto intencional, que persiste mesmo no decorrer de todas as mo-dificações, e que pode ser definido "como o significado do pensa-mento em sua plena realização".

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Experiência: fluxo da consciência

Vamos começar com a distinção de Bergson entre viver dentrodo fluxo da experiência e viver dentro do mundo espaço temporal.Bergson contrastou o fluxo da duração interna, a duree _ um contí-nuo vir a ser e deixar de existir de qualidades heterogêneas _ comum tempo homogêneo, que foi espacializado, quantificado e torna-do descontínuo. Na "duração pura" não há "paralelismo" , não háexterioridade mútua das partes, nem divisibilidade, mas apenas umfluxo contínuo, uma torrente de estados de consciência. No entan-to, o termo "estados de consciência" pode ser enganador, pois evocafenômenos do mundo espaço temporal, com suas entidades fixas,como imagens, percepções e objetos físicos. Aquilo que nós de fatoexperienciamos na duração não é um ser que é discreto e bem defi-nido, mas uma constante transição de um aqui e agora para um

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novo aqui e agora. O fluxo da consciência, em virtude de sua pró-pria natureza, ainda não foi capturado pela rede da reflexão. A refle-tia, sendo uma função do intelecto, pertence essencialmente ao

universo espaço temporal da vida cotidiana. A estrutura de nossa ex-periência varia conforme nos rendemos à corrente da duração ouparamos para refletir sobre ela, tentando classificá-Ia em conceitos

paço temporais. Podemos, por exemplo, experenciar o movimen-10 como uma contínua e múltipla transformação - em outros ter-1110S, como um fenômeno de nossa vida interior; por outro lado, po-lemos conceber esse mesmo movimento como um evento divisível

no espaço homogêneo. Neste último caso não apreendemos a essên-ia desse movimento que é um contínuo vir a ser e deixar de existir.

Ao contrário, apreendemos um movimento que já não é mais movi-mento, um movimento que já completou seu curso, em suma, não omovimento em si mesmo, mas apenas o espaço atravessado. Pode-mos olhar para as ações humanas sob esse mesmo duplo aspecto.Podemos olhar para elas como processos conscientes em curso, ouorno ações congeladas, espacializadas e já completamente realiza-:las.Esse duplo aspecto aparece não somente nos "objetos temporais"lranscendentais, mas em toda experiência em geral...

Mas como as experiências individuais do fluxo de consciênciaão convertidas em unidades intencionais? Se tomarmos como nos-

so ponto de partida o conceito de durée de Bergson, então se tornaclaro que a diferença entre as experiências que fluem em sua dura-

ão pura e as imagens descontínuas delimitadas no mundo espaço-temporal é uma diferença entre dois níveis de consciência. Em suavida cotidiana, enquanto age e pensa, o ego vive no nível da cons-ciência espaçotemporal. Sua atenção à vida (attention à la vie) evitaque ele permaneça submerso na intuição da duração pura. No en-tanto, se a "tensão psíquica" relaxa por qualquer razão, o ego desco-bre aquilo que antes parecia separado e bem definido, e agora se dis-solve em transições contínuas, que as imagens fixadas agora foramsuplantadas por um vir a ser e um deixar de existir que não possuicontornos, nem limites, nem diferenciações. E assim Bergson con-clui que todas as distinções, todas as tentativas de "separar" as expe-riências individuais da unidade da duração são artificiais, isto é,alheias à pura durée, e todas as tentativas de analisar os processossão apenas casos em que se adia os modos de representação espaço-temporais em favor de uma durée radicalmente diferente.

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De fato, quando faço uma imersão em meu próprio fluxo deconsciência, em minha própria duração, eu não encontro qualquertipo de experiência bem diferenciada. Em um dado momento a ex-periência se acende, e logo em seguida desvanece. Enquanto isso,novas experiências surgem a partir daquilo que era antigo, e entãodá lugar a algo ainda mais novo. Eu não consigo distinguir entre oAgora e o Antes, entre o Agora mais antigo e o que acabou de acon-tecer, a não ser quando consigo perceber que aquilo que acabou deser é diferente daquilo que Agora é. Isso porque eu experiencio mi-nha duração como um fluxo unidirecional e irreversível, e perceboque entre o momento que acabou de passar e o Agora-Assim, eu en-velheci. Mas eu não posso me tornar consciente disso enquanto es-tou imerso nesse fluxo. Enquanto toda minha consciência permane-ce unidirecional e irreversível, eu permaneço inconsciente de meupróprio envelhecimento ou de qualquer diferença entre o presente eo passado. A própria consciência do fluxo da duração pressupõeuma interrupção do fluxo, um tipo especial de atitude em relação aisso, uma "reflexão", tal como a chamaremos. O simples fato de queuma fase anterior precedeu este Agora e Assim faz com que o Agoraseja Assim, e aquela fase anterior que constitui o Agora seja dadaneste Agora sob a forma de uma rememoração (Erinnerung). Aconsciência da experiência no puro fluxo da duração é, a todo mo-mento, transformada em um acabou-de-ser-assim rememorado: é arememoração que coloca a experiência fora do fluxo irreversível daduração e assim modifica a consciência, tornando-a memória.

Experiência significativa

Se nós simplesmente vivemos imersos no fluxo da duração, po-demos encontrar apenas experiências indiferenciadas que se fun-dem em novos fluxos contínuos. Cada Agora difere essencialmentede seu predecessor pelo fato de que este está contido na forma deuma modificação retentora. No entanto, eu não sei nada sobre issoenquanto estou simplesmente vivendo no fluxo da duração, porqueé somente mediante um Ato de atenção reflexiva que eu percebo amodificação retentora e, a partir dela, a fase anterior. Dentro do flu-xo da duração existe apenas uma vida que transcorre de momentoem momento, que algumas vezes contém em si mesma modifica-

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.ões retencionais da fase prévia. Então, diz Husser!, eu vivo nosmeus atos, cuja intencionalidade me conduz de um Agora para opróximo. Mas esse Agora não deve ser construído como um instantepuntiforme, uma ruptura no fluxo da duração, uma cisão com opassado. Para que esse efeito artificial possa ser produzido dentro daduração, eu preciso me colocar fora do fluxo. Do ponto de vista deum ser imerso na duração, o "Agora" é uma fase, mais do que umponto, de modo que as diferentes fases se fundem umas com as ou-tras ao longo de um connnuurn. A simples experiência de viver nofluxo da duração prossegue em um movimento unidirecional e irre-versível, que segue de multiplicidade em multiplicidade em umconstante processo de fuga. Cada fase da experiência se funde com aseguinte sem limites bem definidos enquanto ela está sendo vivida;mas cada fase é distinta da outra em seu "ser assim", em sua qualida-de, na medida em que ela está sob a mira da atenção.

Contudo, quando por um ato de reflexão eu volto minha aten-ção para minha experiência de vida, eu já não estou mais no fluxo dapura duração, eu não estou mais simplesmente vivendo dentro da-quele fluxo. As experiências são apreendidas, distinguidas, coloca-das em relevo, diferenciadas umas das outras; as experiências que seconstituíam enquanto fases durante o fluxo da duração agora se tor-nam objetos da atenção enquanto experiências constituídas. Aquiloque inicialmente foi constituído como uma fase, agora se apresentacomo uma experiência acabada, não importa se o Ato de atençãoconsiste em reflexão ou reprodução (no caso da simples apreensão).Porque o Ato de atenção - e isso é da maior importância para o estudodo significado - pressupõe urna experiência transcorrida, já vivida,em suma, uma experiência que já esteja no passado, tanto quando aatenção em questão é reflexiva quanto quando ela é reprodutiva.

Portanto, devemos contrastar aquelas experiências que em seutranscorrer são indiferenciadas e fundem-se umas nas outras comaquelas outras que são distintas, que já são passado, que já transcor-reram. Estas não são apreendidas enquanto estão sendo vivencia-das, mas mediante um ato de atenção. Isso é crucial para a questãoque estamos perseguindo: porque o conceito de experiência signifi-cativa sempre pressupõe que a experiência que tem o significadocomo predicado é aquela delimitada, e agora se torna bastante evi-dente que somente uma experiência passada pode ser chamada de

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significativa, isto é, aquela que se apresenta para o olhar retrospecti-vo como já estando pronta e acabada.

Somente do ponto de vista do olhar retrospectivo é que existemexperiências bem distintas. Apenas o que já foi experienciado é queé significativo, e não aquilo que o está sendo. Isso porque o signifi-cado é meramente uma operação de intencionalidade que, no en-tanto, só se torna visível a partir de um olhar reflexivo. Do ponto devista da experiência que está acontecendo, a predicação do signifi-cado é algo necessariamente trivial, dado que aqui o significadopode ser entendido apenas como o foco de atenção direcionado parauma experiência passada, e não para uma experiência em curso.

Contudo, essa distinção entre experiência delimitada e não deli-mitada pode realmente ser justificada? Não é ao menos possível queo olhar atento possa iluminar cada item da experiência que se pas-sou, "colocando-o em relevo" e "distinguindo-o" dos demais? Acre-ditamos que a resposta deva ser negativa. É fato que existem expe-riências que são experiências quando são presentes, mas que ou nãopodem ser refletidas de modo algum, ou apenas mediante uma apre-ensão bastante vaga, cuja reprodução é quase impossível, a não ser apartir da noção vazia de se "ter experienciado algo". Chamaremosesse grupo de experiências "essencialmente atuais", porque em vir-tude de sua natureza elas são limitadas a uma posição temporal defi-nida no ãmbito do fluxo interno da consciência. Elas são conhecidaspela sua vinculação ou proximidade Com o âmago mais profundodo Ego, a que Scheler chamou - de modo muito feliz _ de "privaci-dade pessoal absoluta" (Pessoa absolutamente íntima) de um indiví-duo. O que sabemos sobre a privacidade pessoal absoluta é que eladeve necessariamente estar lá, e que permanece absolutamente fe-chada a qualquer forma de compartilhamento de sua experiênciacom os outros. Mas no próprio autoconhecimento existe uma esferade absoluta intimidade cujo "ser-aí" (Dasein) é tão indubitávelquanto ocluso à nossa inspeção. As experiências peculiares a essaesfera são simplesmente inacessíveis à memória, e esse fato é consti-tutivo de seu próprio modo de ser: a memória apreende apenas o"aquilo" dessas experiências. Essa tese (que aqui pode apenas serenunciada, mas não plenamente provada) pode ser confirmada me-diante a observação de que a reprodução se torna tanto menos ade-quada à experiência quanto mais se aproxima da intimidade maisprofunda da pessoa. A diminUição dessa adequação tem como con-

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equência um caráter cada vez mais vago do conteúdo reproduzido.oncomitante a isso, a capacidade de recapitular também diminui,

isto é, a capacidade de reconstruir completamente o curso da expe-riência. Na medida em que alguma reprodução é possível, ela podeser obtida apenas mediante um simples ato de apreensão. Entretan-to, o "Como" da experiência pode ser reproduzido apenas na re-construção mediante recapitulação. A lembrança de uma experiên-cia do mundo exterior é relativamente clara; um curso de eventosexternos, um movimento, talvez, pode ser lembrado em uma repro-dução livre, isto é, como pontos de duração arbitrários. Incompara-velmente mais difícil é a reprodução das experiências da percepçãointerna; aquelas experiências internas vivenciadas perto do âmagoabsolutamente privado da pessoa são irrecuperáveis no que se refereao seu Como, e apenas o seu Aquilo pode ser assimilado em um sim-ples ato de apreensão. Aqui estão contempladas não apenas todas asexperiências da corporeidade do Ego, ou seja, o Ego Vital (tensões erelaxamentos musculares como correlatos dos movimentos do cor-po, a dor "física", sensações sexuais, e assim por diante), mas tambémaqueles fenômenos psíquicos classificados sob o vago título de "hu-mores", bem como os "sentimentos" e "afetos" (alegria, tristeza, des-gosto etc.). Esses limites da lembrança coincidem exatamente com oslimites da "racionalização", desde que essa ambígua expressão - queMax Weber algumas vezes usou de modo equivocado - seja usadapara significar a "capacidade de atribuir significado". A possibilidadede recuperar algo pela memória é, de fato, o primeiro pré-requisitopara qualquer construção racional. Aquilo que é irrecuperável- e emprincípio isso é sempre alguma coisa inefável- pode apenas ser vivi-do, mas jamais "pensado": é incapaz de ser verbalizado.

Conduta investida de significado"

Agora devemos responder à seguinte questão: "Como posso dis-tinguir meu comportamento do restante de minhas experiências?"

* Nesta seleção os tradutores atribuíram ao termo alemão Verhalten o seu significa-do literal em inglês, behavior (comportamento). Em seu período americano, Schutztornou-se mais e mais consciente das conotações indesejáveis que são atreladas aotermo behavior, em virtude da importãncia adquirida pelo behaviorismo psicológi-co. De modo a evitar as implicações biomecanicistas de uma teoria das respostas aestímulo, ele acabou por preferir o termo conduct (conduta) [N.E.].

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A resposta é fornecida pelos próprios costumes. Um sofrimento, porexemplo, não costuma ser chamado de comportamento. Tampoucopoderia ser dito que eu estou me comportando quando alguém le-vanta e solta meu braço. Mas as atitudes que eu assumo em qualquerum desses casos são chamadas de comportamento. Eu posso enfren-tar a dor, suprimi-Ia ou abandonar-me a ela. Eu posso submeter-meou resistir quando alguém manipula meu braço. Portanto, aquiloque temos aqui são dois diferentes tipos de experiências vivenciadasque são fundamentalmente relacionadas; Experiências do primeirotipo são apenas "sentidas" ou "sofridas". Elas são caracterizadas poruma passividade básica. Experiências do segundo tipo consistem ematitudes tomadas em relação às experiências do primeiro tipo. Parautilizar os termos de Husserl, o comportamento é "uma experiênciada consciência investida de significado". Quando estudou "o impor-tante e difícil problema de definir as características do pensamento",Husserl mostrou que nem todas as experiências são, por natureza, in-vestidas de significado. "Experiências de passividade primordial, as-sociações, todas aquelas experiências nas quais existe a consciênciatemporal original, isto é, a constituição da temporalidade imanente, eoutras experiências desse tipo, são todas incapazes disso" (ou seja, deconferir significado). Uma experiência investida de significado deveser um "Ato do Ego (ato com atitude) ou alguma modificação de talAto (passividade secundária, ou talvez um juízo que emerge passi-vamente, que de repente 'me ocorre')?",

É possível definir os Atos de tomada de atitude como Atos deatividade engendrada de forma primária, desde que, como Husserl,sejam também inclUídos nessa categoria os sentimentos e os valoresconstituídos pelos sentimentos, sejam esses valores consideradoscomo fins ou como meios. Husserl utiliza o termo "experiênciasconscientes investidas de significado" (sinngebende Bewusstseinser-lebnisse) para se referir todas as experiências que ocorrem intencio-nalmente, na forma de atividade espontânea, ou em uma das modi-ficações secundárias possíveis. Agora, quais são essas modificações?As duas principais são a retenção e a reprodução ...

5. HUSSERL, E. Formale und Transcedentale Logik, p. 22.

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Definimos o "comportamento" como uma experiência da cons-iência que atribui significado mediante uma Atividade espontânea.

Ação e comportamento (no sentido mais estrito de conduta) for-mam uma subclasse do comportamento assim concebido; discutire-mos isso com maior profundidade mais tarde. Aquilo que distinguea objetividade da consciência - que é constituída na Atividade origi-nal e, portanto, constitui um caso de comportamento - de todas asutras formas da consciência e a torna "investida de significado", noentido de Husserl, é algo que se torna inteligível sob uma condição,

qual seja, que se aplique as distinções explicadas acima entre o Atoonstitutivo e a objetividade constituída também à esfera da Ativi-

dade espontânea. Ao se fazer isso será possível distinguir entre o Atospontâneo em si mesmo e o objeto constituído dentro dele. No quee refere à ocorrência ou passagem do comportamento, o Ato espon-

tâneo não é nada mais do que o modo de intencionalidade no qual édada a objetividade constitutíva. Em outros termos, enquanto ocomportamento ocorre, ele é "percebido" de modo único, como ati-vidade primordiaL

Essa percepção opera como uma impressão primordial, que cer-tamente passa pelo usual "obscurecimento" durante o processo deretenção, assim como ocorre com todas as impressões. A atividade éuma experiência constituída por fases na transição do Agora para oseguinte. O raio da reflexão só pode se voltar sobre ela posterior-mente. Isso necessariamente envolve a retenção ou a lembrança.Esta última pode consistir em um simples Ato de apreensão ou podeenvolver a reconstrução em fases. Em qualquer um dos casos a in-tencionalidade original da Atividade espontânea é preservada namodificação intencional.

Aplicada à teoria do comportamento, isso significa que o com-portamento de uma pessoa, enquanto está acontecendo, é uma ex-periência pré-Ienomênica. Apenas depois de ela ter ocorrido (se elaocorre em fases sucessivas, somente depois da primeira fase ter sidocompletada), é que ela aparece como um item bem definido, que fazparte do conjunto das experiências passadas. Portanto, a experiên-cia fenomênica nunca é a experiência do próprio comportamentoenquanto este ocorre, é apenas a experiência de ter se comportado.No entanto, em certo sentido a experiência original permanece amesma na memória, sendo sentida tal como quando ela ocorreu.

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Afinal, meu comportamento passado é ainda meu comportamento;ele consiste em meu Ato, enquanto eu adoto uma ou outra atitude,mesmo que eu o veja apenas "de perfil", como algo passado. E é pre-cisamente esse caráter de atitude que o distingue de todas as outrasminhas experiências. Minha experiência passada é ainda minha,dado que fui eu quem a vivenciei; este é simplesmente outro modode afirmar que o passar da duração, ou seu "transcorrer", é contí-nuo, que há uma unidade fundamental no fluxo da consciência queconstitui o tempo. Até mesmo experiências de passividade primor-dial são percebidas retrospectivamente como minhas experiências.Meu comportamento se distingue delas pelo fato de que se refere àminha impressão primária da Atividade espontânea.

Portanto, o comportamento consiste em uma série de experiên-cias que se distinguem das demais em virtude de uma intencionali-dade primordial da Atividade espontânea que permanece a mesmaem todas as modificações intencionais. Agora está claro aquilo quequeríamos dizer quando afirmamos que o comportamento se refereàs experiências para as quais se olha a partir de determinado ângulo,isto é, quando se volta para a Atividade que originalmente as produ-ziu. O "significado" das experiências não é nada mais do que aquelequadro interpretativo que as percebe enquanto comportamento.Assim, também no caso do comportamento é somente aquilo que jáse passou que pode ter significado. Somente aquela experiência per-cebida reflexivamente na forma de Atividade espontânea é que pos-sui significado.

Atenção à vida: alerta total

Um dos pontos centrais da filosofia de Bergson é sua teoria deque nossa vida consciente apresenta um número indefinido de pla-nos distintos, que vão do plano da ação, em um extremo, ao planodo sonho, no outro. Cada um desses planos é caracterizado por umatensão específica da consciência, sendo que o plano da ação apre-senta o grau mais elevado de tensão, enquanto o do sonho apresentao menor grau. De acordo com Bergson, esses diferentes graus detensão de nossa consciência são funções dos variados interesses quetemos pela vida, sendo que a ação representa nosso interesse maisforte em encontrar a realidade e tudo o que nela está implicado, e osonho representa a completa falta de interesse. A attention à Ia vie,

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atenção à vida, é, portanto, o princípio regulador mais básico denossa vida consciente. Ele define qual a parte de nosso mundo que érelevante para nós; ele articula a continuidade do fluxo de nossopensamento; ele determina a extensão e a função de nossa memória;le faz com que - em nossa linguagem - ou vivamos dentro de nos-as experiências presentes, dirigidos para seus objetos, ou nos volte-

mos para nossas experiências passadas com uma atitude reflexiva,perguntando-nos por seus significados.

Com a expressão "alerta total" queremos denotar um nível daonsciência que possui a mais elevada tensão, que se origina em

uma atitude de plena atenção à vida e a seus requisitos. Somente oeu realizador, e em especial o eu trabalhador, é que está plenamenteinteressado na vida e, portanto, totalmente alerta. Essa atenção é ati-va, e não passiva. A atenção passiva é o oposto da consciência plena.Na atenção passiva eu experiencio, por exemplo, ondas de pequenaspercepções indistinguíveis, que, conforme afirmado antes, são expe-riências reais e não manifestações significativas da espontaneidade. Aespontaneidade significativa pode ser definida, segundo Leibniz,como o esforço para sempre chegar a outras percepções. Em sua for-ma mais inferior, ela leva à delimitação de certas percepções, trans-formando-as em apercepção; em sua forma mais elevada ela conduzao trabalho que tem lugar no mundo exterior e o modifica.

O conceito de alerta total revela o ponto de partida para uma legí-tima interpretação pragmática de nossa vida cognitiva. O estado deconsciência total do eu que trabalha define aquele segmento do mun-do que é pragmaticamente relevante, e essas relevâncias determinama forma e o conteúdo do fluxo de nosso pensamento: a forma, porqueregula a tensão de nossa memória e, com isso, a extensão de nossasexperiências passadas que são recordadas e das experiências futurasque são antecipadas; o conteúdo, porque todas essas experiências sãosubmetidas a modificações de atenção específicas, em virtude do pro-jeto preconcebido, e são levadas a cabo por ele.

Agindo no mundo exterior

As investigações de Bergson e Husserl enfatizaram a importân-cia de nossos movimentos corporais para a constituição do mundoexterior e de sua perspectiva temporal. Nós experimentamos nossos

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movimentos corporais em dois diferentes planos simultaneamente:na medida em que são movimentos no mundo exterior, olhamos parales como um evento que ocorre no espaço e no tempo espacial, men-

surável em termos do caminho percorrido; conquanto são experien-ciados também internamente como mudanças que estão acontecen-do, como manifestações de espontaneidade pertencentes a nossofluxo de consciência, eles tomam parte em nosso tempo interior oudurée. O que acontece no mundo exterior pertence à mesma dimen-são temporal na qual ocorrem os eventos inanimados da natureza.Isso pode ser registrado pelos aparelhos adequados, e mensuradopor nossos cronômetros. É o tempo espacializado, homogêneo, queé a forma universal do tempo objetivo ou cósmico. Por outro lado, éno tempo interior ou durée que nossas experiências são conectadascom o passado mediante recordações e retenções, e com o futuro, apartir das projeções e antecipações. Em nossos movimentos corpo-rais e a partir deles, nós realizamos uma transição da nossa duréepara o tempo cósmico ou espacial, e nossas ações fazem parte deambos. Simultaneamente nós experienciamos a ação do trabalhocomo séries de eventos em nosso tempo interior e exterior, unifi-cando ambas as dimensões em um fluxo único que chamaremos depresente vívido. Portanto, esse presente vívido se origina em uma in-tersecção da durée com o tempo cósmico.

Ao viver no presente vívido, nos atos construtivos que estão emcurso, voltado para objetos e objetivos que devem ser realizados, oeu atuante experiencia a si mesmo como o originado r das ações emcurso e, portanto, percebe-se como eu total indiviso. Ele experien-cia seus movimentos corporais a partir de dentro; ele vive as expe-riências reais que são inacessíveis à lembrança e à reflexão; seumundo é um mundo de antecipações em aberto. O eu atuante, eapenas o eu atuante, experiencia todo esse modo presente e percebe asi mesmo como o autor da obra em curso, ele percebe a si mesmocomo uma unidade.

Mas se o eu em uma atitude reflexiva se volta para os atos concre-tos realizados, e olha para eles como modo pretérito, essa unidade é es-facelada. O eu que realizou as ações passadas não é mais o eu total in-diviso, mas um eu parcial, o realizador desse ato particular que se re-fere a um sistema de atos correlatos ao qual ele pertence. Esse eu par-

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clal é apenas um eu que encarna um papel particular ou - para usar'0111 toda a reserva necessária o termo algo equivocado que foi intro-luzido na literatura por W. james e G.H. Mead - um Mim.

Para nossos propósitos, a mera consideração de que as expe-riências interiores de nossos movimentos corporais, as experiências

sencialmente concretas, e de que as antecipações em aberto esca-pam à apreensão da atitude reflexiva,já mostra com suficiente clare-za que o eu passado nunca pode ser mais do que um aspecto parcialdo eu total, que percebe a si mesmo na experiência de sua atuaçãom curso.

É preciso acrescentar mais um ponto no que se refere à distin-ção entre trabalho (aberto) e performance (fechada). No caso deuma mera performance, tal como a tentativa de resolver mental-mente um problema matemático, é possível perfeitamente cancelarminhas operações mentais e recomeçar desde o início, caso minhasantecipações não deem o resultado correto ou se eu estiver insatisfei-to. Nada terá mudado no mundo exterior, não haverá qualquer res-quício do processo que foi anulado. Nesse sentido, as ações pura-mente mentais são revogáveis. O trabalho, no entanto, é irrevogá-vel. Meu trabalho transformou o mundo exterior. Na melhor das hi-póteses é possível restaurar a situação inicial a partir de ações rever-sas, mas eu não posso desfazer o que eu fiz. É por isso que - do pon-to de vista legal e moral- eu sou responsável por minhas ações, masnão por meus pensamentos. É também por isso que eu tenho a liber-dade de escolher entre as várias possibilidades apenas no que se re-fere ao trabalho projetado mentalmente, antes que ele tenha sido le-vado a cabo no mundo exterior, ou, no máximo, enquanto ele estásendo realizado no presente e, portanto, ainda aberto a modifica-ções. Aquilo que faz parte do passado não está aberto a escolhas.Tendo realizado meu trabalho ou apenas porções dele, eu escolhodefinitivamente aquilo que foi feito e preciso arcar com as conse-quências dessa decisão. Eu não tenho como escolher aquilo que eugostaria de ter feito.

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2O mundo da vida*

o mundo da atitude natural

Começamos com uma análise do mundo da vida cotidiana, so-.bre qual o homem adulto e plenamente consciente age, bem comosobre seus semelhantes, os quais ele experiencia como uma realida-de, mediante uma atitude natural.

O "mundo da vida cotidiana" deve ser considerado como omundo intersubjetivo que já existia muito antes de nosso nascimen-to, que já foi experimentado e interpretado por outros, nossos ante-cessores, como um mundo organizado. Toda interpretação sobreesse mundo é baseada sobre um estoque de experiências prévias aseu respeito, nossas próprias experiências e aquelas transmitidas anós por nossos pais e professores que, sob a forma de um "conheci-mento à mão", opera como um esquema de referência.

A esse estoque de experiências à mão pertencem nosso conheci-mento de que o mundo no qual vivemos é um mundo composto porobjetos bem delimitados com qualidades definidas, objetos em meioaos quais nos movemos, que resiste a nós, e sobre os quais podemosagir. Para a atitude natural o mundo não é nem nunca foi um meroagregado de pontos coloridos, de barulhos incoerentes, de focos defrio ou calor. Uma análise filosófica ou psicológica da constituiçãode nossas experiências pode, retrospectivamente, descrever comoos elementos desse mundo afetam nossos sentidos, como os perce-bemos passivamente de forma confusa e indistinta, como, a partirde uma apercepção ativa, nossas mentes isolam certas característi-cas do campo perceptivo, concebendo-as como coisas bem defini-das que se colocam diante de nós como se estivessem contra um

,. Textos extraídos a partir dos seguintes itens das Referências: 1954c, p. 533-534;1953c, p. 6; 1959a, p. 77-79; 1944, p. 500-501.

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pano de fundo ou horizonte mais ou menos desarticulado. A atitudenatural não tem conhecimento desses problemas. Para ela o mundonão é o mundo privado de um único indivíduo, mas um mundo in-tersubjetivo, comum a todos nós, em relação ao qual não temos uminteresse teórico, mas eminentemente prático. O mundo da vida coti-diana é o cenário e também o objeto de nossas ações e interações. Nóstemos que domina-lo e transformá-lo de modo a ser possível concre-tizar os propósitos que buscamos realizar nele, entre nossos seme-lhantes. Portanto, nós não agimos apenas no mundo, mas tambémsobre o mundo. Nossos movimentos corporais - cinéticos, locomoti-vos e operativos - afetam o mundo, modificam ou transformam seusobjetos e suas relações mútuas. Por outro lado, esses objetos ofere-cem resistências a nossas ações, as quais temos que superar ou às qua-is temos que nos conformar. Nesse sentido, talvez seja correto dizerque um motivo pragmático governa nossa atitude natural em relaçãoao mundo da vida cotidiana. O mundo, assim concebido, é algo quetemos de modificar com nossas ações ou que as modifica.

Situação biograficamente determinada

Um indivíduo pode encontrar-se em uma situação biografica-mente determinada a qualquer momento de sua vida diária, isto é,em um ambiente física e socioculturalmente definido por ele, noqual ele ocupa uma posição não apenas em termos do espaço físico edo tempo exterior ou de seu papel no sistema social, mas também setrata de sua posição moral e ideológica. Dizer que uma situação é bio-graficamente determinada é afirmar que ela possui uma história; ela éa sedimentação de todas as experiências prévias do indivíduo, orga-nizadas como uma posse que está facilmente disponível em seu es-toque de conhecimento e, enquanto uma posse exclusiva, trata-sede algo que é dado a ele e somente a ele. Essa situação biografica-mente determinada inclui certas possibilidades de futuras ativida-des práticas ou teóricas que podem ser chamadas de "objetivo à dis-posição". É esse objetivo à disposição que define quais dentre os vá-rios elementos contidos em uma situação serão relevantes. Esse sis-tema de relevãncias determina, por sua vez, quais elementos devemser transformados em um substrato de tipifícação generalizadora,quais destas devem ser consideradas caracteristicamente típicas equais são únicas e individuais ...

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Estoque de conhecimento

o homem em sua vida cotidiana ... encontra, a cada momento,um estoque de conhecimento à sua disposição, que lhe serve como umesquema interpretativo de suas experiências passadas e presentes, etambém determina sua antecipação das coisas que estão por vir. Esseestoque de conhecimento possui uma história particular. Ele foi cons-tituído nas e pelas atividades vivenciadas por nossas consciências, cujoresultado agora se tornou nossa posse habitual. Ao descrever o pro-cesso constitutivo aqui envolvido, Husserl utilizou uma expressãográfica, falando de uma "sedimentação" dos significados.

Por outro lado, esse estoque de conhecimento à disposição nãoé de modo algum homogêneo, mas revela uma estrutura particular.Eu já fiz alusão à distinção de William jarnes entre "conhecimentosobre" e "conhecimento por familiaridade". Há apenas uma partenuclear de conhecimento, relativamente pequena, que é clara, dis-tinta e consistente em si mesma. Esse núcleo é circundado por re-giões com várias gradações de imprecisão, obscuridade e ambigui-dade -.Essas regiões de coisas são tomadas como sendo dadas, sãocrenças cegas, suposições rasas, meras adiVinhações, regiões nasquais tudo o que fazemos é "simplesmente acreditar". E, finalmen-te, há as regiões que ignoramos completamente ...

Primeiramente, permitam-nos considerar o que determina a es-truturação do estoque de conhecimento em um Agora particular.Uma resposta preliminar é a de que nesse momento específico é osistema de nosso interesse prático ou teórico que determina nãoapenas aquilo que é problemático e pode permanecer inquestiona-do, mas também o que deve ser conhecido, e com que grau de preci-são de clareza, de modo a ser possível resolver o problema emergen-te. Em outros termos, é o problema particular com o qual estamospreocupados que subdivide nosso estoque de conhecimento em ca-madas, segundo as diferentes relevâncias para sua solução e, por-tanto, estabelece as fronteiras das várias regiões de nosso conheci-mento que acabaram de ser mencionadas, zonas de precisão e im-precisão, de clareza e obscuridade, de certeza e de ambiguidade.Aqui está o cerne da interpretação pragmática sobre a raiz de nossoconhecimento, a relativa validade daquilo que deve ser reconhecidoaté mesmo por aqueles que rejeitam as outras premissas do pragma-tismo, especialmente sua teoria da verdade. É certo que mesmo no

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mbito dos restritos limites do conhecimento do senso comum arespeito da vida cotidiana, a referência a "interesses", "problemas" e"relevâncias" não constitui uma explicação suficiente. Todos essestermos são apenas títulos para assuntos mais complicados, que de-vem ser objeto de pesquisas futuras.

Em segundo lugar, é preciso enfatizar que o estoque de conheci-mento existe em um fluxo contínuo, que se transforma de qualquerAgora ao seguinte, e isso diz respeito não apenas ao seu tamanho,mas também à sua estrutura. É evidente que qualquer experiênciaposterior aumenta-o e enriquece-o. A partir da referência ao esto-que de conhecimento à disposição em qualquer Agora particular, axperiência emergente aparece como sendo "familiar" se ela for re-

lacionada - mediante uma "síntese de reconhecimento" - a uma ex-periência prévia, segundo os modos da "igualdade", "semelhança","similaridade", "analogia", e assim por diante. A experiência emer-gente pode, por exemplo, ser concebida como sendo "o mesmo quese repete" de algo já experienciado, ou como um tipo similar a este,e coisas do tipo. Ou então a experiência emergente é considerada"estranha" se não houver algum referencial, ao menos em termos detipo. Em ambos os casos é o estoque de conhecimento à disposiçãoque serve como esquema de interpretação para a experiência emer-gente atual. Essa referência aos atos já experimentados pressupõe amemória e todas as suas funções, tais como a retenção, a lembrançae o reconhecimento.

o caráter do conhecimento prático

O conhecimento do homem que age e pensa no mundo cotidia-no não é homogêneo; ele é (1) incoerente, (2) apenas parcialmenteclaro e (3) de modo algum livre de contradições.

1) Ele é incoerente porque os interesses do indivíduo que deter-minam a relevância dos objetos selecionados para ulterior investi-gação não são integrados em um sistema coerente. Eles são apenasparcialmente organizados em algum tipo de plano, tais como planosde vida, planos de lazer e trabalho, plano para todo papel social as-sumido. Mas a hierarquia desses planos muda conforme a situação ecom o desenvolvimento da personalidade; os interesses mudamcontinuamente e sofrem transformações ininterruptas no que se re-fere à forma e à densidade das linhas de relevância. Não é apenas a

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leção dos objetos de curiosidade que muda, mas também o graude conhecimento almejado.

2) Em sua vida cotidiana, o homem é apenas parcialmente - eousamos mesmo dizer que somente excepcionalmente - interessa-do na clareza de seu conhecimento, isto é, em uma compreensãoplena das relações entre os elementos de seu mundo e os princípiosgerais que regem essas relações. Ele costuma satisfazer-se com ofato de que há um serviço telefõnico que funciona bem a seu dispor,e não se pergunta como todo esse aparato funciona em detalhe equais leis da física tornam seu funcionamento possível. Ele compramercadorias na loja, sem saber como são produzidas, e paga com di-nheiro, mesmo que tenha apenas uma vaga ideia a respeito do que odinheiro realmente é. Ele assume como um dado que seus contem-porâneos entenderão seu pensamento se ele o expressar na lingua-gem correta, e irão responder a ele, sem se perguntar como essa mi-raculosa performance pode ser explicada. Além disso, ele não buscapela verdade nem pela certeza. Tudo o que ele quer é informação so-bre as probabilidades e uma visão sobre as chances ou riscos que asituação em questão representa para o resultado de suas ações. Queo metrô irá funcionar amanhã é algo que para ele possui pratica-mente o mesmo elevado grau de probabilidade de que o sol irá nas-cer amanhã. Se em razão de algum interesse especial ele precisar deum conhecimento mais específico a respeito de algum tópico parti-cular, a benevolente civilização moderna lhe oferece toda uma redede birôs de informação e de bibliotecas de referência.

3) Finalmente, seu conhecimento não é consistente. Ele podeconsiderar simultaneamente como válidos argumentos que são incom-patíveis entre si. Enquanto pai, cidadão, empregado e como membrode sua igreja, ele pode possuir as mais diferentes e menos coerentesopiniões a respeito de questões morais, econômicas ou políticas. Essainconsistência não origina necessariamente uma falácia lógica. Opensamento dos homens se estende por assuntos que estão situadosem diferentes níveis de relevância, e eles não estão conscientes dasmodificações que teriam que fazer ao passar de um nível ao outro.

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"O quadro cognitivodo mundo da vida