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Departamento de Filosofia SCHOPENHAUER, KANT E VEDĀNTA Aluno: Daniel Rodrigues Braz Orientador: Pedro Duarte de Andrade Introdução Arthur Schopenhauer é amplamente reconhecido como grande tributário de Immanuel Kant e do “divino Platão”. Contudo, outra de suas inspirações nem sempre é mencionada com a ênfase devida, apesar de o próprio autor ressaltá-la incontáveis vezes ao longo de toda sua vida e obra: o Oriente. É bastante argumentável que Schopenhauer tenha sido o primeiro filósofo no Ocidente a ter se apropriado de concepções vindas da tradição oriental, mais notadamente a de matriz indiana, na construção de seus conceitos centrais. “Eu confesso que não acredito que minha doutrina poderia de algum modo ter surgido antes que as Upanishads, Platão e Kant tivessem simultaneamente lançado seus raios dentro da mente de um homem” (#623) [1] escreve Schopenhauer no seu caderno, em 1816, dois anos antes da publicação da obra que lança ao mundo sua filosofia madura, O mundo como vontade e como representação (1818). Mas qual teria sido exatamente o papel do Oriente na formulação de suas ideias? E de que maneira e em que medida se deu, em Schopenhauer, esse encontro entre Ocidente e Oriente? E por meio de que chaves hermenêuticas? São essas perguntas que a presente pesquisa procura responder. Como recorte metodológico, nos atemos, sobretudo, à relação entre o Idealismo Transcendental de Kant e a doutrina das Upanishads, ou Vedānta. Vivendo uma era da Filosofia Moderna que passara a se orientar pelo legado crítico do Idealismo Transcendental de Kant nas áreas da epistemologia, da ética e da estética, Schopenhauer começou sua carreira em um cenário onde figuras como Fichte e Schelling já ditavam as tendências dos debates na academia em torno dessas questões. Especificamente, reflexões acerca da dicotomia kantiana entre fenômeno e coisa-em-si, e acerca da relação recíproca e condicionante entre sujeito e objeto na experiência moravam no âmago das polêmicas. O conceito de um Absoluto incondicionado como coisa-em-si vinha, também, ganhando cada vez mais espaço, conjuntamente aos esforços em provar como seria possível acessá-lo através do conhecimento, rompendo a limitação inerente à consciência dos objetos da experiência. Salvas semelhanças importantes entre eles, é notável, entretanto, que o sistema filosófico reivindicado em O mundo como vontade e como representação não se alinhava com este projeto de conhecimento dos idealistas, mas de fato expressava pensamentos em larga medida inéditos, e se baseava aparentemente em fundamentos metafísicos de natureza distinta daqueles que estavam em voga no debate contemporâneo. Apesar do envolvimento evidente de Schopenhauer nas discussões próprias de sua época, prova simples disso é o tratado estritamente kantiano composto em sua tese de doutorado Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente (1813), com críticas diretas aos grandes filósofos idealistas e seus “filosofemas” –, o vislumbre do conteúdo dos seus manuscritos de juventude nos forneceu boas razões para crermos que suas aspirações mais íntimas por respostas dentro da Filosofia podem ter raízes alhures. Chama atenção, de modo geral, uma questão pessoal constante em seus cadernos desde sua remota juventude por que a vida está sempre marcada pelo sofrimento? E como seria possível superar esta condição? , e, mesmo que o Idealismo da época oferecesse soluções a esse problema, elas estavam longe de serem bem sucedidas para Schopenhauer, que tinha suas próprias opiniões críticas e já reconhecia de longa data a noção de esquecimento do “eu” pela arte ou pela ascese, tendo lido românticos como Zacharias Werner e místicos cristãos como Jacob Böhme com muito zelo quando jovem.

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Departamento de Filosofia

SCHOPENHAUER, KANT E VEDĀNTA

Aluno: Daniel Rodrigues Braz

Orientador: Pedro Duarte de Andrade

Introdução

Arthur Schopenhauer é amplamente reconhecido como grande tributário de Immanuel

Kant e do “divino Platão”. Contudo, outra de suas inspirações nem sempre é mencionada com

a ênfase devida, apesar de o próprio autor ressaltá-la incontáveis vezes ao longo de toda sua

vida e obra: o Oriente. É bastante argumentável que Schopenhauer tenha sido o primeiro

filósofo no Ocidente a ter se apropriado de concepções vindas da tradição oriental, mais

notadamente a de matriz indiana, na construção de seus conceitos centrais. “Eu confesso que

não acredito que minha doutrina poderia de algum modo ter surgido antes que as Upanishads,

Platão e Kant tivessem simultaneamente lançado seus raios dentro da mente de um homem”

(#623) [1] – escreve Schopenhauer no seu caderno, em 1816, dois anos antes da publicação da

obra que lança ao mundo sua filosofia madura, O mundo como vontade e como representação

(1818). Mas qual teria sido exatamente o papel do Oriente na formulação de suas ideias? E de

que maneira – e em que medida – se deu, em Schopenhauer, esse encontro entre Ocidente e

Oriente? E por meio de que chaves hermenêuticas? São essas perguntas que a presente

pesquisa procura responder. Como recorte metodológico, nos atemos, sobretudo, à relação

entre o Idealismo Transcendental de Kant e a doutrina das Upanishads, ou Vedānta.

Vivendo uma era da Filosofia Moderna que passara a se orientar pelo legado crítico do

Idealismo Transcendental de Kant nas áreas da epistemologia, da ética e da estética,

Schopenhauer começou sua carreira em um cenário onde figuras como Fichte e Schelling já

ditavam as tendências dos debates na academia em torno dessas questões. Especificamente,

reflexões acerca da dicotomia kantiana entre fenômeno e coisa-em-si, e acerca da relação

recíproca e condicionante entre sujeito e objeto na experiência moravam no âmago das

polêmicas. O conceito de um Absoluto incondicionado como coisa-em-si vinha, também,

ganhando cada vez mais espaço, conjuntamente aos esforços em provar como seria possível

acessá-lo através do conhecimento, rompendo a limitação inerente à consciência dos objetos

da experiência. Salvas semelhanças importantes entre eles, é notável, entretanto, que o

sistema filosófico reivindicado em O mundo como vontade e como representação não se

alinhava com este projeto de conhecimento dos idealistas, mas de fato expressava

pensamentos em larga medida inéditos, e se baseava aparentemente em fundamentos

metafísicos de natureza distinta daqueles que estavam em voga no debate contemporâneo.

Apesar do envolvimento evidente de Schopenhauer nas discussões próprias de sua

época, – prova simples disso é o tratado estritamente kantiano composto em sua tese de

doutorado Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente (1813), com críticas diretas

aos grandes filósofos idealistas e seus “filosofemas” –, o vislumbre do conteúdo dos seus

manuscritos de juventude nos forneceu boas razões para crermos que suas aspirações mais

íntimas por respostas dentro da Filosofia podem ter raízes alhures. Chama atenção, de modo

geral, uma questão pessoal constante em seus cadernos desde sua remota juventude – por que

a vida está sempre marcada pelo sofrimento? E como seria possível superar esta condição? –,

e, mesmo que o Idealismo da época oferecesse soluções a esse problema, elas estavam longe

de serem bem sucedidas para Schopenhauer, que tinha suas próprias opiniões críticas e já

reconhecia de longa data a noção de esquecimento do “eu” pela arte ou pela ascese, tendo lido

românticos como Zacharias Werner e místicos cristãos como Jacob Böhme com muito zelo

quando jovem.

Departamento de Filosofia

É possível, contudo, que o interesse especial do jovem filósofo pelos tesouros

espirituais da Índia a partir do final de 1813, após seu encontro com o orientalista Friedrich

Majer em Weimar, tenha sido o elemento que finalmente levou suas ruminações sobre

sofrimento e salvação à formulação mais completa, sendo logo exposta em sua principal obra.

A esse respeito, um livro merece atenção redobrada para o estudo do desenvolvimento do

pensamento schopenhaueriano: a Oupnek’hat, de A. H. Anquetil-Duperron [2] – uma

tradução comentada em latim da pioneira tradução em persa (Sirr-i-Akbar, 1657) de 50

Upanishads originais em sânscrito, feita pelo príncipe persa Dara Shukoh e uma “equipe

especialista” de ascetas indianos. A partir de março de 1814, Schopenhauer leu com afinco os

dois volumes e no mesmo ano adquiriu seu próprios exemplares. Já em sua velhice, ele

confessou que a obra era o consolo de sua vida e que seria também o consolo de sua morte

(Parerga e Paralipomena, § 184) [3]. Entretanto, embora nem ele nem Anquetil soubessem

disso, o “livro favorito” de Schopenhauer tinha por toda a parte a marca da interpretação

pessoal de Dara, sobretudo em suas explicações dos versos que acabaram passando como

parte do texto original. De todo modo, longe de denunciarmos a ilegitimidade desse

documento como expressão verdadeira da doutrina das Upanishads, argumentamos que só é

possível compreender como as Upanishads teriam influenciado Schopenhauer se acolhermos

o conteúdo “impuro” de suas reais fontes, e não de outras traduções “mais fieis”.

Revendo, comentando e complementando conclusões passadas

No primeiro ano desta pesquisa, dedicamos nosso relatório, sobretudo, à justificação da

pertinência do projeto. Como alguém que entra em um quarto escuro sem saber onde ficam as

luzes, tateamos o que pudemos e fizemos muitas descobertas, mesmo sem ter ainda uma

noção razoavelmente exata do terreno mais amplo no qual estávamos pisando. Não entrando

em detalhes aprofundados sobre “comos” e porquês, demonstramos como a influência das

Upanishads parece, nos escritos de Schopenhauer, dar claramente suporte a soluções que

dificilmente seriam deduzidas da tradição ocidental. Juntar peças elucidativas de um quebra-

cabeça maior foi, pois, suficiente para demonstrarmos que nossa pesquisa possui, de fato,

relevância para uma compreensão alargada do pensamento schopenhaueriano. Agora

sabemos, por exemplo, que, em uma de suas primeiras citações explícitas à doutrina dos

Vedas em seus manuscritos (# 192) [1], Schopenhauer exalta o que ele chama de “método dos

indianos” (“die Methode der Indier”), que busca compreender a essência do mundo a partir da

investigação da natureza íntima do sujeito, e não dos objetos da experiência atrelada ao

princípio de razão suficiente. Na mesma nota, ele escreve: “Apenas de dentro [o entendimento

da essência do mundo] pode vir. O essencial não é quais objetos se apresentam ao homem,

mas sim como ele os vê e como ele é determinado por eles”. Como em seu próprio sistema

ainda em processo de formação, portanto, para os hindus o segredo do universo só poderia ser

desvendado por meio da compreensão daquilo que constitui o que chamamos de “eu” – no

qual, como formulara Schopenhauer, a coincidência do sujeito da vontade com o sujeito do

conhecimento constitui o milagre “par excellence” (κατ' ἐξοχήν) (p. 211) [4] –, discriminando

o que nele é ilusório e o que é real ou essencial. Tal meio de conhecimento que parte da

análise do sujeito, e não do objeto, foi por isso muito bem acolhido por Schopenhauer, que, na

sua tese de doutorado, apesar de sua análise exaustiva do conteúdo objetivo da experiência

possível à moda de Kant, já admitia que o grande desafio estava em explicar o “eu” que

conhece e quer, que se percebe, ao mesmo tempo, como causalidade e como motivação. Cada

vez mais, portanto, as coisas vêm fazendo sentido para nós.

Enquanto apontávamos, ano passado, algumas rupturas de Schopenhauer com o

pensamento kantiano na ética e na teoria do conhecimento, ressaltamos passagens de ‘O

mundo’ e de ‘Sobre a quádrupla raiz’ (de 1847) em que o autor lança mão de referências aos

Vedas e às Upanishads como endossos filosóficos de seus argumentos. Pois bem, veremos

mais afrente que o número de ocorrências similares aumenta muito quando se examina o

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conteúdo dos seus manuscritos. Por hora é suficiente apontar que estes confirmam que o ano

de 1814 aparece como significativo em dois sentidos:

1. Schopenhauer faz os primeiros contatos com seu “livro favorito”, a Oupnek’hat:

a. Em março, temos o primeiro registro de empréstimo da Oupnek’hat por

Schopenhauer na biblioteca de Weimar, sendo devolvido apenas no

momento em que o jovem doutor em Filosofia se muda para Dresden no

fim de maio. Dentre outras anotações curiosas deste período, na nota

#189 temos sua primeira menção à “Maya dos indianos”, na nota #192 já

citada é elogiado o “método dos indianos”;

b. Assim que se estabelece no dia 24 em Dresden, o primeiro livro retirado

na biblioteca é a Oupnek’hat, e, além deste, apenas um único outro livro

foi retirado nesse período – a Kritik der theorischen Philosophie de seu

antigo professor de filosofia em Göttingen, G. E. Schulze. Na nota #213,

Schopenhauer aponta a vontade em geral como origem do problema do

sofrimento (“o erro fundamental”) e a liberação dela como sua única

solução. Na mesma nota, Schopenhauer cita o verso da Oupnek’hat que

ele mais tarde utilizou como motto do livro quarto de sua obra principal

[5]: Tempore quo cognitio simul advenit amor e medio superssurexit

(“Quando o conhecimento sobrevier, ao mesmo tempo o amor se elevará

no seio das coisas”1); e diz “[...] aqui por ‘amor’ se quer dizer maya que

não é nada mais que aquela vontade, o amor (pelo objeto) cuja

objetificação ou manifestação é o mundo. Como o erro fundamental isto

[amor/ māyā] é ao mesmo tempo, por assim dizer, a origem do mal e do

mundo (na verdade, uma e mesma coisa).”;

c. Em algum momento do verão de 1814, Schopenhauer adquire sua

própria cópia dos dois volumes da Oupnek’hat, preservada até hoje no

Schopenhauer-Archiv, em Frankfurt. Neste exemplar, cerca de 840

páginas apresentam anotações ou marcações suas – número que equivale

a quase metade da obra completa –, acumuladas daquele ano até seus

dias de velhice. Uma curiosidade contada por seu amigo Wilhelm

Gwinner (p. 215), dois anos depois da morte de Schopenhauer, é que era

comum que o filósofo, logo antes de dormir, abrisse a Oupnek’hat para

fazer orações. A verdade encontrada nesta obra seguiu, portanto,

iluminando seu pensamento até seus últimos dias.

2. Quando Schopenhauer anunciou O mundo como vontade e como representação

a sua futura editora Brockhaus, em março de 1818, ele esclareceu: “[a] essência

dessa linha de raciocínio já existia há quatro anos em minha cabeça; mas, para

desenvolvê-lo e fazê-lo completamente claro para mim mesmo através de

incontáveis ensaios e estudos eu precisei de não menos que quatro anos

completos, durante os quais me ocupei exclusivamente com ele e com estudos

diretamente relacionados de outras obras” (carta 29) [7]. Ou seja, o próprio

Schopenhauer confessa que em 1814, ano em que ele descobriu e estudou

vigorosamente a Oupnek’hat, foi o mesmo ano em que o núcleo de sua filosofia

madura foi formado. Quem, hoje, estuda seus manuscritos relativos a esse

momento, pode notar claramente que tal “essência” – caracterizada, sobretudo,

(i) pela concepção do conceito cósmico e metafísico de “vontade” em

contraposição ao entendimento puramente psicológico do termo, (ii) pela

compreensão da natureza ilusória da multiplicidade, sendo em realidade apenas

1 Tradução de Jair Barboza.

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vontade objetivada2, (iii) pela importância dada ao corpo enquanto ponto de

acesso à essência do mundo que nada mais é do que a vontade, e (iv) pela

superação da vontade como única possibilidade de salvação – começa a ser

esboçada ao mesmo tempo em que os primeiros traços inegáveis de influência

da Oupnek’hat são também registrados em suas notas filosóficas.

Enfim, mesmo que as primeiras notas que apresentam óbvia influência da Oupnek’hat já

estabelecessem uma leitura da doutrina indiana dentro dos paradigmas idealistas pós-

kantianos, e, portanto, a fizesse confirmar por meio de outros conceitos o que Schopenhauer

já sabia, é a permanência do estudo desse texto seguida do esforço para colocar Platão, Kant e

a “sabedoria dos Vedas” (# 577) [1] em harmonia o que definiria o caráter acabado do sistema

de Schopenhauer em O mundo como vontade e como representação. Essa trinca metafísica

fundamental fica evidente não apenas na nota #623, já citada, mas de modo ainda mais

surpreendente na tabela montada por Schopenhauer em sua nota #577, na qual já se pode

enxergar toda a estrutura de sua obra principal consolidada.

É importante ressaltar também que, o exame do exemplar pessoal de Schopenhauer

evidencia que sua leitura da Oupnek’hat foi uma leitura crítica. Nele, por exemplo, vemos

diversas manifestações de suas rejeições aos traços teístas da obra. Um bom exemplo disso

ocorre no glossário de Anquetil-Duperron (ver imagem abaixo). O francês traduzira a palavra

sagrada “Oum” dos indianos por “Deus”, mas Schopenhauer riscou duas vezes a palavra

“Deus” e escreveu ao lado “Brahm, Omitto3, p. 15”. Logo abaixo na mesma página, Anquetil

traduz “Brahm = creator [‘criador’]”, mas Schopenhauer risca duas vezes a palavra

“creator”, e não escreve mais nada (p. 7) [2].

Para contextualizar o estabelecimento na Alemanha da cadeira acadêmica de estudos

orientais, dando origem ao chamado Orientalismo que influenciou tanto a visão que os

europeus tinham do Oriente no século XIX, dedicamos também seções inteiras do último

relatório. Para nossos propósitos, o enfoque em descrever essa época tinha como fim,

sobretudo, mostrar que uma nova ideia de Índia estava sendo formada na Europa, inicialmente

muito influenciada na Alemanha pelo pensamento romântico, notavelmente por Friedrich e

August Schlegel, e por filósofos como Voltaire [8] (APP, 2010, pp. 15-76) [9] e J. G. Herder,

que disseminaram a crença de que a região teria sido uma espécie de berço cultural da

humanidade. Schopenhauer, por sua vez, era desde jovem privilegiado por seu acesso

particularmente fácil à sociedade culta da época, que fazia do salão de sua mãe Johanna em

Weimar um ponto de encontro4. Por isso ele, que de costume também estava presente nesses

círculos, não demorou a ouvir as novidades do Oriente. No fim de 1813, suas sabidas

conversas intelectuais com o orientalista discípulo de Herder, Friedrich Majer – que “sem sua 2 Por questões de economia, deixemos por um momento de mencionar também o papel da ideia platônica nessa

teoria. 3 Omitto vem do sânscrito amita, que significa “ilimitado”.

4 Duas vezes por semana, o salão da casa de Johanna, a mãe de Schopenhauer, era local de encontros para

artistas e intelectuais. Dentre eles, podemos citar grandes poetas como Wieland, Zacharias Werner e Goethe.

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solicitação” o “introduziu à antiguidade indiana” (carta nº 251, p. 261) [7] – e sua “associação

íntima” [7]5 com o escritor Goethe, também profundamente fascinado pelo Oriente, indicam

que não é à toa que o despontar do interesse especial de Schopenhauer pela Índia, com a

leitura da Asiatisches Magazin [12], ocorreu logo em sequência.

Finalmente, logo no início de nossa pesquisa, introduzimos ainda a figura do orientalista

Paul Deussen, que, sendo até hoje reconhecido como um dos mais importantes e pioneiros

indólogos, foi um declarado discípulo de Schopenhauer e provavelmente seu maior

divulgador entre o fim do século XIX e o início do século XX, tendo sido o primeiro editor de

suas obras completas e o fundador da Schopenhauer-Gesellschaft. Consideramos a passagem

por Deussen um axioma metodológico de quem pretende entender os limites da comparação

efetiva entre o pensamento de Schopenhauer e a doutrina não-dualista do Vedānta. Afinal, há

mais de cem anos, e não muito longe da época do próprio Schopenhauer, Deussen passava a

maior parte de sua vida se dedicando à análise e à exposição sistematizada da doutrina do

Vedānta, à luz de sua influência metafísica idealista extraída da tríade Platão, Kant e

Schopenhauer. Além disso, ele foi um pioneiro em traduções do sânscrito para o alemão,

deixando para sempre a sua marca na tradição ocidental de leitura dos indianos, e, ao

contrário de Schopenhauer e até mesmo de Max Müller6, ele esteve na Índia, foi iniciado no

hinduísmo e era até mesmo amigo de mestres indianos famosos no Ocidente, como Swāmi

Vivekānanda. Sua amizade com um dos mais rebeldes discípulos de Schopenhauer, Friedrich

Nietzsche é ainda outro fator faz dele alguém que merece atenção. Tendo de forma corajosa

no século XIX trabalhado academicamente com questões próximas às que esta pesquisa

5 Schopenhauer e Goethe se reuniram diversas vezes, com o objetivo de estudar principalmente o fenômeno das

cores, fato que deu origem à obra Sobre a visão e as cores (1816) do filósofo. Goethe, que leu a tese de

doutorado de Schopenhauer, o descreveu, depois de um de seus encontros, como “um homem notavelmente

interessante”, que “com certa perspicaz obstinação” está jogando um coringa no jogo de cartas da filosofia

moderna (p.756) [11]. 6 Outro indólogo extremamente importante do século XIX. Demos a ele relativo destaque no relatório anterior.

GÖRRES, Joseph. Mythentafel der alten Welt, 1810. O grande círculo

destacado no mapa ilustra a região da Caxemira, na Índia, onde, acreditava-

se, teria se nascido o “mito original” (Urmyth) que constituiria a essência de

todas as culturas e religiões da Europa e da Ásia.

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mesma quer responder, Paul Deussen fez um livre e inédito diálogo entre Ocidente e Oriente,

ou melhor, entre Idealismo Transcendental e Vedānta, e soube tirar bons frutos dele.

Manteremos os olhos em Deussen, ainda que ele não seja o foco nesse presente relatório, que

se atém à análise histórica e biográfica do nascimento da filosofia de Schopenhauer.

Sobre os pontos abordados naquele primeiro ano, gostaríamos de fazer, da nossa atual

perspectiva, alguns adendos particulares importantes:

Em 2015, por ignorância de quais das fontes iniciais de Schopenhauer sobre a

Índia era a mais relevante, demos bastante ênfase à Asiatisches Magazin, devido

ao fato de a revista em que Friedrich Majer publicava seus artigos ter sido a

primeira de suas sucessivas leituras do gênero a partir de dezembro de 1813,

tendo permanecido em suas mãos por cerca de quatro meses. Porém, estamos

convencidos agora de que foi outra provável indicação de Majer que cumpriu o

mais decisivo papel nos futuros insights de Schopenhauer, a saber, a

Oupnek’hat. Por fim, outra influência de relevância comprovada é o periódico

publicado pela Asiatic Society of Bengal, as Asiatick Researches, cujos volumes

Schopenhauer estudou entre novembro de 1815 e maio de 1816. As Asiatick

Researches foram sabidamente responsáveis pelas primeiras informações mais

aprofundadas de Schopenhauer sobre o Budismo e o conceito de nirvāṇa, além

de ter sido a causa da reformulação de sua compreensão do conceito de māyā7,

traduzido em latim na Oupnek’hat, como amor (ishq, no persa), uma

interpretação marcadamente sufista do Príncipe Dara que ainda assim deixou

marcas irreversíveis na filosofia de Schopenhauer. Com as Asiatick Researches,

Schopenhauer passou a dar um viés mais idealista ao termo, como “ilusão”,

identificando ao fenômeno (Erscheinung) kantiano e ao mundo das sombras

platônico.

Embora tenhamos tido cuidado de fazermos o mínimo possível de afirmações

categóricas naquele momento, em nosso relatório anterior pode ter ficado

sugerido que as Upanishads tiveram uma função de mera confirmação do

pensamento de Schopenhauer, que já estaria com seu curso definido desde antes.

Boa parte dessa crença vem de termos observado o fato de que o sistema de O

mundo como vontade e como representação começa pela exposição de uma

teoria do conhecimento, com referência recorrente à tese de doutorado, Sobre a

quádrupla raiz do princípio de razão suficiente, publicada cinco anos antes, em

uma época em que Schopenhauer ainda não tinha tampouco familiarização com

a doutrina dos Vedas. Considerando que ainda permanecemos desconhecendo o

texto da tese original8 – carentes, pois, de instrumentos para diferenciar o que

era recente e o que era antigo na segunda edição, de 1847, em termos de reflexão

filosófica –, nos parecia razoável acreditar que o ponto de partida da filosofia de

Schopenhauer em sua obra principal era mesmo a epistemologia kantiana. Em

outras palavras, achávamos que, se o sistema metafísico da vontade fosse um

edifício, as teorias da percepção e do conhecimento teriam fornecido as vigas

mestras para sua construção. Em verdade, essa interpretação é em larga medida

disseminada na tradição de comentadores de Schopenhauer, e, em especial,

nossa leitura de um deles, John Atwell [12], reforçou ainda mais nossa opinião,

nos dando confiança de que estávamos no rumo correto. Contudo, a leitura da

brilhante obra de Urs App, que faz parte da nossa bibliografia principal neste

segundo ano, mudou nossa forma de ver a questão. A ordem de exposição dos

7 Essa mudança de interpretação é reconhecível a partir da nota #564.

8 Felizmente, Urs App dentre muitos outros serviços prestados a nossos estudos atuais, citou trechos bastante

esclarecedores da versão original em Schopenhauer’s Compass.

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assuntos em O mundo mostrou-se uma evidência insuficiente para sabermos

quais teorias dão as bases para a construção do sistema como um todo, ao passo

que o vislumbre dos manuscritos e da biografia intelectual de Schopenhauer de

modo geral nos indica que a linha de raciocínio que leva um filósofo a escrever

uma obra não necessariamente vem a sua mente da mesma forma como este

julga adequado e relevante que o seu público a aprecie. Assumimos, agora, pois,

que a Oupnek’hat, sobretudo, teve influência decisiva para que Schopenhauer

pudesse dar a coerência final necessária às suas reflexões de juventude, de modo

que atingissem a configuração completa de um sistema filosófico original e

maduro. Esta visão, portanto, se afasta daquela que vê a influência oriental em

Schopenhauer como um mero elemento afirmador de sua doutrina, ou seja,

como algo que, por uma feliz coincidência, apenas disse mais do mesmo que

Schopenhauer já tinha em mente em termos de epistemologia, sem agregar

novos significados. A propósito, mais do que a teoria do conhecimento, a ética e

a estética tiveram um papel originário mais fundamental para a definição do tom

e da urgência do projeto filosófico, pois é a partir delas que Schopenhauer

tentava pensar a possibilidade de superação do sofrimento.

Indo mais fundo nessa atual interpretação, está agora claro para nós que O

mundo como vontade e como representação é produto final de um processo de

reflexão motivado por uma perplexidade original – um θαύμα –, rastreável já em

suas primeiras anotações em 1804, e que a influência da Oupnek’hat tornou

possível que esse processo fosse selado, em 1814. Uma das muitas pistas que

apontam para essa direção, por exemplo, é o registro de uma conversa de

Schopenhauer ao poeta Wieland, em 1811, na qual aquele confessou a este que:

“A vida é um assunto miserável e eu decidi que quero despende-la pensando

sobre isso” (p. 22) [13]. A experiência contínua de insatisfação e angústia que é

a vida, com momentos extraordinários de superação temporários na

contemplação artística e permanentes na vida dos místicos e dos santos, desde

muito cedo já o instigava a buscar, na Filosofia, por explicações. Por sua vez, a

relevância do seu contato com a doutrina contida na Oupnek’hat é justamente o

fato de esta ter trazido à tona em Schopenhauer insights suficientemente claros

para que ele desse como concluída a partir daí sua explicação para a origem

última do sofrimento e para o fato de que é possível de superá-lo em

circunstâncias muito específicas.

Enfim, embora não seja comumente citada, a influência do Neoplatonismo

precisa também ser assumida como fundamental na gênese do pensamento de

Schopenhauer, sendo ela um elemento pervasivo no Idealismo do início do

século XIX de modo geral, contaminando filósofos e poetas. Mesmo que em

Schopenhauer isto tenha se dado em maior parcela de forma indireta, a

influência ocorreu, por certo, de múltiplas maneiras, como: (i) por meio de

Zacharias Werner, escritor e dramaturgo com influências do neoplatonismo e do

misticismo, ilustre amigo de Schopenhauer9 em sua juventude, que

“definitivamente” exerceu uma “influência positiva” neste (conversa 20) [13];

(ii) através das lições de seu primeiro professor de Filosofia ainda na faculdade

de medicina, Gottlob Ernst Schulze, que em seus cursos, em 1810, acusava

veementemente Schelling e Fichte de imitarem a doutrina dos neoplatônicos e

dos místicos (o que, embora expressamente exagerado por Schulze, está longe

9 Schopenhauer e Weiner efetivamente se conheceram no fim de 1807, em Weimar, e, durante os três primeiros

meses de 1808 se encontraram frequentemente no salão de Johanna Schopenhauer. Segundo Schopenhauer,

Zacharias Werner gostava dele e falava com ele frequentemente, inclusive “séria e filosoficamente”.

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de ser uma afirmação falsa, como sabe-se hoje); (iii) através das filosofias de

Fichte e de Schelling, cujos cursos Schopenhauer frequentou em Berlim, e cujas

obras estudou, principalmente as de Schelling; (iv) incorporado nas obras de

místicos cristãos, como em Mysterium Magnum (1623), de Jacob Böhme, que

inspirou não só Schopenhauer, mas inclusive Schelling, Goethe e Werner; (v)

em suas conversas com Goethe, também um leitor de Plotino; (vi) e, por fim, o

mais surpreendente... O Neoplatonismo foi elemento chave no espírito por trás

da tradução das Upanishads liderada e comentada pelo príncipe persa Dara

Shukoh em 1657, traduzida para o latim por A. H. Anquetil-Duperron em 1801,

e lida por Schopenhauer a partir de 1814; o Sufismo, tradição islâmica a que

Dara pertencia, traz desde suas raízes mais profundas inspirações do

Neoplatonismo10

, embora nem Anquetil nem Schopenhauer soubessem disso.

Há evidências conclusivas, portanto, de que todo o período de maturação da

filosofia de Schopenhauer é marcado positivamente pela forte presença do modo

neoplatônico de pensar, o que se reflete, por sinal, no conteúdo de seus

manuscritos. Não se trata, pois, de uma especulação, mas de um fato, que

merece atenção por parte dos pesquisadores. Fato este, aliás, que pode muito

bem explicar por que a Oupnek’hat – cuja leitura muitos orientalistas, inclusive

o excepcional Max Müller, relataram ser extremamente desagradável e quase

incompreensível – atraiu tão profundamente a atenção de Schopenhauer a ponto

de permanecer sendo sua tradução preferida das Upanishads, mesmo após sua

aquisição posterior de traduções mais modernas diretamente do sânscrito. Aliás,

nunca nenhuma tradução direta do sânscrito será capaz de se aproximar do texto

da Oupnek’hat por uma razão simples e curiosa: Anquetil-Duperron, que

traduziu o mais literalmente possível o texto dos manuscritos em persa, não

percebeu (embora isso estivesse expresso no prefácio de Dara Shukoh) que o

manuscrito estava constantemente atravessado por comentários e explicações

dos versos originais à luz do Sufismo e de seu ensinamento sobre unidade última

de todas as coisas em Allah (Tauḥīd). O resultado é que a formatação do texto

da Oupnek’hat não diferencia o que é śruti11

e o que é comentário, tornando-se

acidentalmente, para o desconhecimento de Anquetil e Schopenhauer, uma

grande mistura de Vedānta e Sufismo, que por sua vez possui fortes conexões

com o Neoplatonismo. Mas todos esses ingredientes tem algo em comum: a

concepção do mundo como essencialmente não dual, isto é, como

fundamentalmente um e único, denunciando, assim, toda a experiência da

multiplicidade objetiva e da individualidade subjetiva como um grande engano.

Na verdade, somos como a água na garrafa que boia no oceano12

. O conteúdo de

dentro da garrafa e o conteúdo de fora são exatamente o mesmo, e podemos

realizar essa unidade se quebrarmos o vidro que representa o apego à

experiência da individualidade e às demandas do “eu” e do “meu”.

A bússola de Schopenhauer

Até agora, vimos que a equação vida = sofrimento já era desde o início presente nos

escritos de Schopenhauer. Uma filosofia de negação do “ego” (ou da “egoidade”; Ichtung,

em alemão) já era reconhecível em seus cadernos desde jovem. Em 1813, o próprio autor já

era capaz de reconhecer que um pensamento coeso e uniforme estava em processo de

10

O grande pai fundador da doutrina Sufi, o místico espanhol Ibn Arabi (1165-1240) merece destaque por esse

fato. (APP, 2014, p. 132) 11

Palavra em sânscrito que designa as palavras das escrituras sagradas. 12

Alegoria contada ao antropólogo François Bernier, em algum momento entre 1656 e 1657, por um dos

indianos membros da equipe de tradução das Upanishads do Príncipe Dara. Cf.: APP, 2014, p. 131.

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elaboração. Mesmo que ainda não pudesse antecipar ainda a conclusão de todo o sistema, ele

tinha certeza de que estava no caminho certo. Isto fica evidente nas seguintes notas:

“Sob as minhas mãos, ou melhor, em minha mente, uma filosofia, que

será ética e metafísica em uma, está se desenvolvendo. Até o momento, elas

foram tão falsamente separadas quanto foi o homem em corpo e alma. A obra

se expande, e as partes tomam forma devagar e gradativamente como uma

criança no útero: eu não sei qual se desenvolveu primeiro e qual por último, tal

qual acontece com a criança no útero da mãe.” (#92) [1]

“Estou me tornando consciente de um membro, de um vaso sanguíneo, de

uma parte após a outra, quer dizer, eu anoto as coisas sem me preocupar em

como elas vão encaixar em um todo, porque eu sei que tudo nasceu de uma

única fundação. Assim é que um todo orgânico é formado, e apenas tal [todo

orgânico] pode viver.” (#92) [1]

Contudo, como já vimos acima, em 1818, Schopenhauer admitiu que a essência de sua

linha de raciocínio já existia quatro anos antes de forma esboçada. Ora, mas o que teria

ocorrido em apenas um ano para que o que era apenas um feto em desenvolvimento em 1813

já fosse no ano seguinte considerado um ente formado, com essência definida, que necessitava

apenas de um suficiente desdobramento que tornasse tal concepção “completamente clara”

para a pessoa que a concebeu, por meio de ensaios e outros estudos? Bom, já pudemos

perceber que a Oupnek’hat sem dúvida foi o evento mais relevante que aconteceu na vida de

Schopenhauer nesse meio tempo. Quanto à “criança no útero” descrita pelo jovem doutor em

filosofia, vimos também que na verdade podemos, ainda, remontar seu processo de formação

até um estágio mais embrionário. Em 1808 ou até antes, Schopenhauer se encantava com a

noção de esquecimento do “eu” através da arte e da religião que atravessou a obra de

Zacharias Werner e de dois outros escritores ainda não mencionados que o influenciaram

consideravelmente quando muito jovem: Wackenroder e Tieck. É possível especular também

que, desde ainda mais cedo, ele já tivesse alguma familiaridade com a obra de Jacob Böhme.

Chegamos então a um ponto em que podemos, enfim, introduzir a metáfora central presente

no livro do suíço Urs App: a “bússola”.

Baseado no estudo histórico da obra de Schopenhauer, Urs App propõe que o interesse

de Schopenhauer pela Filosofia respeita, desde o início, a direção apontada por uma espécie

de bússola interna. Como toda bússola, ela aponta para um “norte” e para um “sul”, que

representam os dois polos do pensamento de Schopenhauer: o “eu” e seu egoísmo intrínseco

são o “sul” do qual Schopenhauer quer se afastar, por entender que neles está a fonte do

sofrimento; o “norte”, por sua vez, é representado pela abolição do ego, que aponta para a

salvação (Erlösung) ou bem-aventurança (Seeligkeit). Todavia, embora ambos os polos

estivessem há tempos bem marcados no pensamento de Schopenhauer, o mecanismo de

funcionamento da bússola – aquilo que a fundamenta ontologicamente – permaneceu

incompreendido até 1814. Obviamente, o mecanismo em questão é o conceito de vontade

enquanto essência do mundo. Essa “descoberta” respondeu, finalmente, a pergunta mais

fundamental de sua filosofia, isto é, ‘qual é a origem última do sofrimento e por que me

parece que a única escapatória para ele é a negação temporária ou permanente da minha

individualidade?’.

Schopenhauer e os idealistas

Imediatamente antes que o conceito de “vontade” em Schopenhauer estivesse esculpido

da maneira como conhecemos e estudamos hoje, e ao mesmo tempo antes que a influência

indiana se cristalizasse em seus manuscritos, sua filosofia se limitava a diagnosticar e

descrever dois tipos de consciência. Havia a noção de “consciência empírica” (empirischen

Bewußtseyn), importada de Fichte, utilizada para descrever a consciência ordinária do sujeito

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amarrado aos objetos por seus desejos e inclinações. A outra é a “boa consciência” (beßre

Bewußtseyn), experimentada pessoalmente Schopenhauer em vivências de êxtase

contemplativo na natureza e na arte. Nestes momentos extraordinários, o autor diz que foi

elevado a “um mundo onde não há personalidade nem causalidade, nem sujeito nem objeto”

(# 81) [1]. Além disso, é claro, esse tipo de consciência é descrito também de uma forma ou

de outra por autores que influenciaram Schopenhauer, por exemplo, Platão (na formulação da

metáfora do sol e da alegoria da caverna13

), Kant (na explicação das experiências do belo e do

sublime14

), místicos cristãos como Böhme (na “iluminação”) e Madame Guyon (na “completa

abnegação”), escritores como Wackenroder, Tieck e Werner (em seus ideais de superação do

ego pela religião e pela arte) e, embora com muitas ressalvas, idealistas como o próprio Fichte

(em seu “conhecimento elevado”, höhere Wissen), e também Schelling (em sua “intuição

intelectual” intellektuale Anschauung). Apesar das duras críticas de Schopenhauer ao conceito

de um “Absoluto” intuível e atingível intelectualmente utilizado pelos filósofos idealistas

contemporâneos, a ideia de uma unidade fundamental e de sua contemplação como o objetivo

mais alto sem sombra de dúvida os aproxima do filósofo pessimista, como fica evidente em

passagens como as seguintes de Schelling, em cujo pensamento o querer, ou a vontade,

também são centrais:

“O eu, diz Fichte, é seu próprio ato [That], e a consciência se

autoestabelece – mas o eu não é algo diferente disto, mas na verdade consiste

precisamente no autoestabelecimento de si mesmo [Selbstsetzen]. Mas essa

consciência, na medida em que é concebida apenas como uma apreensão ou

cognição do eu, não é aquilo que é primário, pois já pressupõe, como todo

mero conhecimento, Ser em seu sentido mais próprio. Mas esse Ser que é

suposto como anterior ao conhecimento, um querer básico e original [Ur- und

Grundwollen] que se transforma em algo e constitui o fundamento e a base de

qualquer entidade essencial [Wesenheit].” (pp. 467-8)

“Na instância última e mais alta instância não há absolutamente outro ser

além do querer [Wollen]. O querer é o ser original [Urseyn], e a ele apenas se

aplicam todos os predicados que o caracterizam: ausência de fundamento

[Grundlosigkeit], eternidade [Ewigkeit], independência do tempo

[Unabhängigkeit von der Zeit], autoafirmação [Selbstbejahung]. A filosofia

como um todo visa nada mais que encontrar essa suprema expressão.” (p. 419)

Contudo, mesmo nessa época de formação de seu pensamento, Schopenhauer já

enxergava diferenças fundamentais entre os modos como ele próprio e como Schelling

compreendiam a possibilidade de conhecer essa vontade originária. Reconhecendo de algum

modo os méritos filosóficos deste, ele se esforçava para expressar de modo mais claro e

positivo sua própria visão.

“Eu nego uma intuição intelectual que, enquanto tal, dependa da vontade

empírica e da cultivação da mente. Mas isto não implica que eu nego – tal qual

Schelling – o que os entusiastas chamaram de ‘iluminação superior’ e Platão

(Res publica VII) de ‘elevação ao sol espiritual’. [Tal iluminação] não é nem

condicionada pela vontade empírica (apesar de ser uma com a vontade pura)

nem pelo cultivo da mente, que, em comparação com aquela, parece totalmente

insignificante; é a essência íntima do gênio.” (p. 311-2) [16] / “A intuição

intelectual de Schelling é, pois, algo diferente da boa consciência que eu

atribuo ao homem.” (pp. 326) [16]

Em sua tese de doutorado, Schopenhauer tenta fornecer uma explicação da condição

necessária de determinação da vontade empírica pela vontade básica que é seu fundamento

13

República, livros VI e VII. 14

Crítica à Faculdade do Juízo (1890).

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essencial. Para isso ele recorre a um conceito que permanece usando em O mundo como

vontade e representação.

“Talvez eu explique o que eu quero dizer melhor, ainda que mais

metaforicamente, se eu chamar isto de um ato atemporal e universal da

vontade, do qual todo ato temporal é apenas a emergência ou aparência. Kant

chamou isto de caráter inteligível. [...] Eu considero essa discussão uma das

mais admiráveis e inigualáveis obras-primas da profundidade humana. No

primeiro volume de seus escritos, pp. 465-473, Schelling nos deu uma

apresentação e uma explicação muito valiosa disto.” (p. 301-2) [16]

Vemos, pois, que a proto-filosofia de Schopenhauer – embora manifeste

expressamente o anseio de autodeterminação, de maneira a escapar dos problemas que

enxergava nas formulações de seus professores idealistas – não é ainda capaz de dar uma

resposta positiva satisfatória às suas questões mais urgentes. Em sua tese de doutorado Sobre

a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente, ele faz uma análise que esgota a

experiência comum da “consciência empírica”, o que foi fundamental para abrir caminho para

a compreensão da “boa consciência”, o norte de sua bússola, que carecia ainda de

fundamentação. Porém:

“O que é a essência íntima do artista e do santo, e se elas poderiam talvez

ser idênticas, são questões que não podem ser discutidas aqui, já que isto iria

contra minha intenção de não tocar em questões da Ética e da Estética neste

tratado. Contudo, isto é capaz de em algum ponto possivelmente se tornar uma

obra maior, cujo conteúdo, quando comparado a este presente, seria como a

vigília quando comparada a um sonho.” (vol. 7, p. 91) [17]

A leitura de seus manuscritos e a confirmação de passagens contidas no texto original

de sua tese de doutorado nos mostraram também que a vontade do sujeito já se encontrava sob

os holofotes de seu pensamento, e que o conceito de “caráter inteligível” enquanto “ato

atemporal e universal da vontade”, do qual as ações temporais particulares são mero reflexo,

também já era algo concebido. No entanto, a vontade antes de 1814 não significava

exatamente a mesma coisa do que o que foi o caso a partir deste ano. O conceito de vontade

permanecia atrelado ao seu sentido estritamente psicológico, o que por certo podia ser

creditado ao legado kantiano de uma metafísica a priori dentro dos limites formais da

experiência, na qual o pensamento sobre a coisa-em-si estava totalmente interditado. Pensar

em uma vontade que, por analogia, se aplicasse à coisa-em-si certamente soaria bem

anacrônico para um idealista no começo do século XIX. Parece sutil, mas vejamos, por

exemplo, a maneira como o próprio Kant formula a noção de caráter inteligível (intelligiblen

Karakter) em uma passagem extraída das páginas da Crítica da razão pura (A 560-586) que

Schopenhauer cita em sua tese (vol. 7, p.76-7) [17]:

O princípio regulador da razão é, pois, relativamente ao nosso

problema, que tudo no mundo sensível tem existência empiricamente

condicionada, e que em parte alguma há nele, em relação a qualquer

propriedade, uma necessidade incondicionada; que não existe nenhum membro

da série de condições de que se não possa sempre esperar e investigar, até onde

for possível, a condição empírica numa experiência possível; e que nada nos

autoriza a derivar uma existência qualquer de uma condição exterior à série

empírica ou considerá-la, na própria série, absolutamente independente e

autônoma, sem que por isso se ponha em dúvida que a série inteira possa

fundar-se em qualquer ser inteligível (por conseguinte livre de toda a condição

empírica e sobretudo contendo o fundamento da possibilidade de todos os

fenômenos).

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Não há nisto, porém, a intenção de provar a existência

incondicionadamente necessária de um ser, nem também a de sobre ele fundar

a possibilidade de uma condição simplesmente inteligível da existência dos

fenômenos do mundo sensível, mas tão-só o propósito de, tal como limitamos a

razão para que não abandone o fio das condições sensíveis e não se extravie em

princípios de explicação transcendentes e insusceptíveis de qualquer

representação in concreto, também por outro lado limitarmos a lei do uso

simplesmente empírico do entendimento, de modo que este não decida da

possibilidade das coisas em geral e, apesar de o inteligível não nos poder servir

para a explicação dos fenômenos, não o declare por isso impossível. Apenas

nos limitamos a mostrar que a contingência universal de todas as coisas

naturais e de todas as suas condições (empíricas) pode muito bem coexistir

com o pressuposto arbitrário de uma condição necessária, embora puramente

inteligível; ou seja, que se não encontra verdadeira contradição entre estas

afirmações e que, por conseguinte, ambas poderá, cada uma por seu lado, ser

verdadeiras. Que um tal ser inteligível, absolutamente necessário, seja

impossível em si, é o que não se pode de modo algum concluir, nem a partir da

contingência universal de tudo o que pertence ao mundo dos sentidos, nem a

partir do princípio que nos impede tanto de nos determos em qualquer termo

particular deste mundo, na medida em que é contingente, como de invocar uma

causa exterior ao mundo. A razão segue o seu caminho no uso empírico e o seu

caminho particular no uso transcendental. (pp. 492-3) [18]

Neste trecho, Kant evoca a noção de que, embora não se possa de modo algum

estabelecer um vínculo causal de uma cadeia de fenômenos com um ser necessário qualquer

que não faz empiricamente parte desse mesmo processo, nada nos interdita a possibilidade de

pensar em um ser meramente inteligível que, fora das determinações empíricas do espaço e do

tempo, fundamente essa série de fenômenos enquanto sua essência imutável, não

condicionada pela sensibilidade. O filósofo de Königsberg, portanto, admite a possibilidade

de um ser inteligível, acima do mundo sensível, apenas enquanto pura ideia que explique a

contingência particular de uma determinada cadeia de fenômenos. O ser inteligível de modo

algum poderia receber um status ontológico, relativo à coisa-em-si e para além de sua

dependência transcendental da razão. Entretanto, foi exatamente assim que Schopenhauer

começou a pensar a partir de 1814. O que houve foi uma mudança fundamental em sua forma

de enxergar o problema: de uma proto-filosofia baseada no diagnóstico de duas versões da

natureza psicológica da consciência – a “consciência empírica” e a “boa consciência” –, surge

uma filosofia baseada na compreensão da existência de dois pontos de vista da realidade

metafísica do mundo – a saber, representação e vontade.

Ainda que o insight contido na compreensão da identidade do sujeito do conhecimento

com o sujeito da vontade tenha sido fundamental para que Schopenhauer pudesse conceber

um tal salto teórico, ela sozinha não autoriza a aplicação do conceito de vontade como

fundamento ontológico da natureza do reino mineral ao reino animal, nem identificação da

ideia platônica como sua objetidade adequada, nem tampouco permite que daí se erga uma

ética baseada na compreensão de que todo ser em essência é expressão da mesma vontade e

que, por isso, a compaixão seja o princípio que deve orientar a ação virtuosa. É a Oupnek’hat,

por sua vez, que prepara o terreno para o florescimento de todas essas noções que formam o

núcleo da filosofia de Schopenhauer. Há de se admitir que não seja incorreto que muito do

que filósofo já pensava tenha sido meramente confirmado pela obra, caso contrário,

convenhamos, seria improvável que mobilizasse tão profundamente os seus interesses. Porém,

a expressão particular ali contida carregada de interpretações sufistas da doutrina esotérica

védica – tão distante, mas de algum modo tão próxima em essência de diversas visões da

tradição metafísica ocidental, por motivos que já foram expostos – possuía os ingredientes

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que faltavam para a definição precisa da “linha de raciocínio” que Schopenhauer vinha

perseguindo há tempos sem obter o sucesso esperado. A Oupnek’hat não nega o ponto

fundamental do Idealismo Transcendental de que só podemos produzir discurso sobre as

aparências e nunca sobre as coisas em si mesmas, sendo o que chamamos de mundo

dependente da forma como ele nos aparece a priori; ao mesmo tempo a reflexão sobre o

modo pelo qual as aparências e em particular o sujeito, enquanto partes de um todo que

escapam à consciência, têm sua natureza radicada nesse mesmo todo é algo que teria instigado

Schopenhauer a procurar outras maneiras possíveis de pensar o Idealismo.

Brahman e māyā

Maïa existe, em seres particulares – isto é, nessas aparências, formas – [e

aparece como] o desejo de criação, o amor, a estima, o gosto por seres

particulares, da mesma maneira como ocorre em Brahm. O erro do homem

consiste em acreditar – porque ele engendra, produz, e vê produção,

nascimento, e começo – que na natureza existe algo mais além de Brahm e

diferente de Brahm. Com seus olhos ele vê apenas formas; e em virtude de

Maïa ele as toma como substâncias separadas. Ele deveria ver em tudo a

substância universal, a única e verdadeira substância. Ainda que ele nomeie

apenas seres particulares, ou melhor, aparências, sem realidade. Esse é o

homem que, quando vê uma corda no chão, confunde com uma cobra, e,

quando vê uma cobra, confunde com uma corda.15

Neste trecho da explicação de Anquetil-Duperron do conceito de māyā16

contida em sua

primeira tradução da obra do Príncipe Dara – a princípio não para o latim, mas para o francês

–, o autor aponta o caráter ontológico, e não meramente ideal, desse conceito. Māyā é o

desejo de Brahman de ser conhecido, interpretação que foge um pouco daquela transmitida

pela tradição do Vedānta, mas que, por sua vez, está em consonância com um conhecido

verso da tradição profética islâmica Hadith, que influenciou bastante o misticismo Sufi, no

qual Allah diz: “Eu era um tesouro oculto, e desejei ser conhecido. Então, Eu criei criaturas e

assim Me fiz conhecido a elas”17

. O desejo, pois, não tem origem em nós mesmos enquanto

indivíduos, mas em Brahman, que é o princípio de tudo, e nós indivíduos, por sermos

idênticos a Ele, também desejamos. Nessa interpretação, māyā é utilizado em sentido idêntico

à palavra persa ishq, que significa justamente esse amor divino pelas criaturas, mas o fato é

que Dara tinha consciência dessa equivalência. Em verdade, para o príncipe herdeiro do

império Mughal, as diferenças entre o Sufismo e a doutrina “monoteísta” indiana eram apenas

de ordem terminológica, ou seja, para ele ambos em essência expressavam exatamente a

mesma verdade.

15

ANQUETIL-DUPERRON, Abraham Hyacinthe. Oupnek’hat, traduit littéralement du person, mêlé du

samskrétam. In: Bibliothèque Nationale: Nouvelles acquisitions françaises NAF 8857. França (Paris): Fond

Anquetil-Duperron, 1787. (pp. 305-6) 16

As grafias são muitas nessas traduções antigas, mas a transliteração correta do termo segundo os padrões

atuais é mesmo māyā. 17

Mais detalhes em APP, 2014, pp.135-6

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Enfim, a ideia de māyā como causadora do erro do indivíduo e expressão de um desejo

originário e anterior à existência desse mesmo indivíduo teria influenciado muito

Schopenhauer. Embora contrário à concepção divina desse desejo, o filósofo era simpático à

sua existência não meramente ideal, mas como coisa-em-si, eterna e indeterminada. Outra

evidência disto (ver imagem acima18

:) é a definição, naquele mesmo glossário da Oupnek’hat

já citado, de māyā (Maïa): voluntas æterna; quod causa ostensi sine fuit (existentid) est

(“vontade eterna, a razão da manifestação daquilo que não possui realidade (existência)”). Em

tal definição, curiosamente, Brahman não é mencionado, se encaixando perfeitamente com a

noção de vontade que aparecerá na obra de Schopenhauer. Para este, Brahman não poderia

significar nada mais do que a “vontade cega” que em essência é o motivo pelo qual todo o

mundo da representação é o que é.

A superação dessa vontade pode ocorrer justamente por meio da contemplação nos seres

particulares dessa vontade eterna universal, contemplação essa que será mediada pelas ideias

platônicas enquanto um meio termo entre os objetos particulares, atados ao princípio de razão

suficiente devido à sua relação com nossa vontade, e a vontade eterna, que em si não tem

forma, mas é apenas um esforço cego que visa apenas à perpetuação de si mesmo. Através da

contemplação das ideias na natureza, desde as forças mais básicas que comandam o mundo

inorgânico, até os princípios que regem a vida das plantas, depois de cada espécie de animal, e

finalmente a humanidade, seria possível contemplar que tudo é manifestação de uma mesma

vontade.

De acordo, então, com esse caminho aberto pela Oupnek’hat em que o conceito de

vontade torna-se aplicável a toda e qualquer coisa no mundo, Schopenhauer passa a entender

que a solução de seus antigos problemas deve passar pela demonstração da “identidade do que

é aparentemente diferente” (Identität des verschieden Scheinenden) (# 280) [1]:

Assim, se apenas nós ganhássemos o ponto de vista certo, o mundo

inteiro gradualmente apareceria como um, e este aqui como apenas a

visibilidade da vontade. Essa demonstração da identidade do que é

aparentemente diferente deveria substituir a derivação de uma coisa diferente

da outra baseada no princípio de razão suficiente.

Conclusão

Neste ano, tomamos consciência do modo como, efetivamente, Schopenhauer absorveu

a princípio a doutrina das Upanishads de modo a utilizá-la na construção de seu próprio

sistema filosófico. Vimos que sua principal influência foi a tradução latina Oupnek’hat de A.

H. Anquetil-Duperron e mencionamos a interferências e adições no texto original que

escaparam ao conhecimento do francês ao realizar seu trabalho. Comentamos que tais

“deturpações” podem ter sido responsáveis pela recepção mais entusiástica de Schopenhauer,

sobretudo se considerarmos o toque neoplatônico que o Sufismo do Príncipe Dara deixava

transparecer. Entendemos, ainda, por que há uma série de razões para crermos que, sem a

Oupnek’hat, Schopenhauer não teria tido à época recursos já para elevar o conceito de

vontade a um patamar tão alto e nuclear do ponto de vista de sua metafísica. Guiado pelo

princípio de que a natureza última de todas as coisas é uma e única vontade, o filósofo

pessimista, enfim, realiza seu projeto de conceber uma metafísica que fosse também uma

ética, como vimos na nota # 92. Com isso, a miséria da “egoidade” do sujeito comum e a sua

negação temporária ou permanente realizada respectivamente pelos artistas e pelos santos são,

enfim, ontologicamente estabelecidos às bases da fórmula “afirmação ou negação da

vontade”.

A pesquisa detalhada exposta no livro Schopenhauer’s Compass, de Urs App [19], foi a

grande benção desse ano de pesquisa. Sem ele não teríamos tido acesso à grande maioria das

18

Marcações do próprio Schopenhauer.

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referências trazidas neste relatório. Este é um tipo de pesquisa que requer o acesso, por

exemplo, a fontes históricas indisponíveis para nós aqui no Brasil. A principal delas é a cópia

da Oupnek’hat que Schopenhauer possuía, que Urs App consultou em Frankfurt. Entretanto,

como o próprio autor suíço sugere, a Oupnek’hat poderia muito bem já estar digitalizada,

dado o seu alto grau de interesse para a pesquisa em Schopenhauer. Em outro sentido, outra

fonte primordial, os manuscritos de Schopenhauer, traduzidos e publicados em múltiplos

volumes em inglês sob o título Manuscript Remains (1988), também é de difícil acesso

devido ao seu custo exorbitante. Mas, enfim, de modo geral, temos agora uma noção

extremamente mais clara da influência das Upanishads em Schopenhauer. E não apenas a

temos como um fato, mas sabemos de que modo isso provavelmente ocorreu. Para que isso

acontecesse, foi preciso que nos rendêssemos ao método de estudo baseado em fontes

históricas, de modo a sair do terreno da mera especulação teórica para entrar no campo das

evidências concretas.

É urgente um estudo de Schopenhauer que não apenas se atenha a sua influência

tradicional via Kant e Platão, mas que, de maneira honesta e comprometida, investigue

também outros ingredientes importantes para a origem do seu pensamento. O que defendemos

aqui é que um melhor conhecimento da Oupnek’hat é crucial se quisermos compreender e

discutir O Mundo Como Vontade e Como Representação e toda a obra schopenhaueriana

posterior com real profundidade. De todo modo, é indispensável, antes de julgarmos o valor

de uma filosofia, que saibamos sobre que bases se apoiaram suas teses. E que evidências

robustas como as encontradas na presente pesquisa sejam ainda academicamente pouco

divulgadas só pode ser, além do mais, efeito de graves problemas metodológicos, e talvez

sinalize um sintoma patológico da realidade prática da pesquisa acadêmica, i.e., a preguiça

intelectual de se desapegar dos paradigmas de estudo tradicionalmente estabelecidos.

Finalmente, há uma última conclusão decisiva para os rumos desta pesquisa: a análise

da relação entre Schopenhauer e Vedānta não pode ser feita pelo mero cruzamento entre

traduções contemporâneas das Upanishads – ainda que, talvez, mais fieis aos originais – e os

escritos daquele. Havemos de, em vez disso, levar em consideração as traduções a que

Schopenhauer teve efetivamente acesso, a fim evitar conclusões precipitadas. Logo, em tal

tarefa, um mergulho no Orientalismo do século XIX e em suas raízes será por certo inevitável.

Referências

1- SCHOPENHAUER, Arthur. Manuscript Remains in Four Volumes, Volume 1: Early

Manuscripts (1804-1818). Trad. E. F. J. Payne. Oxford / Nova Iorque / Hamburgo: Berg,

1988.

2 - ANQUETIL-DUPERRON, A. H. (trad.). Oupnek’hat: id est, Secretum Tegendum (2

volumes). Argentorati: Levrault, 1801-1802.

3 - SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga and Paralipomena (2 vols). Trad. E. F. J. Payne.

Oxford: Claredom Press, 1974.

4 - _________. On The Fourfold Root of the Principle of Sufficient Reason. Trad. E. F. J.

Payne. 7 ed. La Salle, Illinois: Open Court Publishing Company, 1997.

5 - SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, 1º tomo.

Trad. Jair Barboza. 2.ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

6 - GWINNER, Wilhelm. Arthur Schopenhauer aus persönlichem Umgange dargestellt.

Ein Blick auf sein Leben, seinen Charakter und seine Lehre. Leipzig: F. A. Brockhaus,

1862.

7 - SCHOPENHAUER, Arthur; HÜBSCHER, A. (ed.). Gesammelte Briefe. Bonn: Bouvier,

1987.

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8 - VOLTAIRE (François-Marie Arouet). Essai sur les moeurs et l’esprit des nations (1756).

In: Œuvres complètes de Voltaire. França (Paris): Garnierfrères, 1879.

9 - APP, Urs. The Birth of Orientalism. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,

2010.

10 - STEIGGER, Robert. Goethes Leben von Tag zu Tag, Vol. V: 1803-1813. Zurique /

Munique: Artemis Verlag, 1988.

11 - KLAPROTH, H. Julius (ed). Das Asiatisches Magazin (2 volumes). Weimar: Verlage

des Landes-Industrie-Comptoirs, 1802.

12 - ATWELL, John. Schopenhauer on the Character of the World: The Metaphysics of

the Will. Califórnia: University of California Press, 1995.

13 - SCHOPENHAUER, Arthur; HÜBSCHER, A. (ed.). Gespräche. Stuttgard: Friedrich

Frommann Verlag (Günther Holzboog), 1971.

14 - BEIERWALTES, Werner. Platonismus und Idealismus. Frankfurt am Main: Vittorio

Klostermann, 2004.

15 - SCHELLING, F. W. J. F. W. J. Schelling’s philosophische Schriften, erster Band.

Landshut: Philipp Krüll, 1809.

16 - SCHOPENHAUER, Arthur. Manuscript Remains in Four Volumes, Volume 2:

Critical Debates (1809-1818). Trad. E. F. J. Payne. Oxford / Nova Iorque / Hamburgo: Berg,

1988.

17 - SCHOPENHAUER, Arthur; HÜBSCHER, A. Sämtliche Werke. Mannheim:

Brockhaus, 1988.

18 - KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto Dos Santos e Alexandre

Fradique Morujão. Portugal (Lisboa): Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

19 - APP, Urs. Schopenhauer’s Compass: An introduction to Schopenhauer’s Philosophy

and its Origins. Wil: University Media, 2014.