saude mental na atencao basica

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1 JULIO CESAR SILVEIRA GOMES PINTO A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA MACAÉ 2004

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JULIO CESAR SILVEIRA GOMES PINTO

A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

MACAÉ 2004

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JULIO CESAR SILVEIRA GOMES PINTO

A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

Monografia apresentada à Universidade Estácio de Sá, no Curso de Pós Graduação em Saúde Pública (Macaé).

Aprovada em

Banca Examinadora:

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Dedico esta monografia às

Agentes Comunitárias de Saúde

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AGRADECIMENTOS

A todos que, através do diálogo, do trabalho e da amizade, colaboraram para a minha atual

compreensão do campo da Saúde Mental.

À Equipe do Programa de Saúde Mental de Macaé, em especial às Coordenadoras de Equipes

Josemarlen Gonçalves Carvalho Silva, Maria Luiza Vaccari Quaresma, Naly Soares de

Almeida e Telma Auxiliadora Alves Ferreira Lobo, e a Paulo de Tarso de Castro Peixoto.

À Equipe do Programa de Saúde da Família de Macaé, em especial a sua Coordenadora,

Miriam Cristina Ribeiro Benjamin Franco Pacheco, a Cristina Albuquerque Cadinelli,

Elizabeth Silveira Ferolla, Raquel Miguel Rodrigues, e ao médico de família Henrique

Pazzini.

Ao Dr Pedro Reis, Secretário de Saúde de Macaé durante a aproximação entre a Saúde

Mental e o Programa de Saúde da Família.

A Hugo Fagundes, Coordenador do Programa de Saúde Mental do Município do Rio de

Janeiro.

À Equipe da Assessoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio

de Janeiro, a suas ex-coordenadoras Paula Cerqueira e Cristina Loyola, a Leila Vianna e

Carlos Eduardo Honorato.

A Mauricio Schneider.

A Sandra Fortes.

A Domingos Sávio.

Aos Professores do curso, em especial a Ann Mary Machado Tinoco Feitosa Rosas, André

Luis Toríbio Dantas, Gloria Michele e Jairo Luís Jacques da Matta.

Aos colegas do curso, especialmente à colega e secretária do curso, Christiane Oliveira dos

Santos.

Um agradecimento especial às Agentes Comunitárias de Saúde, que trazem as formas mais

criativas de lidar com os problemas da Saúde Mental.

A Taísa Alves Torres, por sua ajuda na formatação do texto.

A Norberto Bacelar Correia, pela ajuda na formatação e pelas cópias.

À Professora Celita Aguiar Ribeiro, pela revisão.

A Analúcia, Luisa e Clarice, pela paciência.

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“Que fazemos, os que escrevemos? Nada mais que contar histórias. Contamos histórias os romancistas, contamos histórias os dramaturgos, contamos também histórias os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não virão a ser nunca, poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são já uma história.” José Saramago

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RESUMO A presente monografia pesquisou como está acontecendo a entrada das ações de Saúde Mental nos Programas de Atenção Básica (Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e Programa de Saúde da Família (PSF)), no Brasil, e em especial no Estado do Rio de Janeiro. Foi utilizada a metodologia de pesquisa qualitativa, com referências bibliográficas nacionais e estrangeiras. A experiência do autor da monografia, na área, foi mencionada. Pretende-se que, com as ações de Saúde Mental na Atenção Básica, as práticas da Reforma Psiquiátrica sejam potencializadas e campo de capacitação seja aberto para profissionais e população. Para a compreensão do tema central da monografia, foram estudados os conceitos e práticas da Reforma Psiquiátrica e dos Programas de Atenção Básica, com as respectivas origens e diretrizes atuais. A monografia percorreu a história das mudanças de paradigma na abordagem ao sofrimento mental, saindo da exclusão para tomar o caminho da inclusão. Foi dada atenção especial para: a tensão entre controle/transformação; as ações das Equipes de Saúde Mental na Atenção Básica, junto ao PSF e ao PACS, com os possíveis modos de articulação e capacitação; as diretrizes e documentos oficiais, portarias, relatórios de Conferências Nacionais; as orientações da Organização Mundial da Saúde; a participação da população na organização das ações de saúde; trabalhos de autores com prática na área e os conceitos que formam a base do trabalho da Saúde Mental na Atenção Básica. Têm destaque os conceitos de rede, território e responsabilidade. Foram estudadas a mudança do Modelo Assistencial em Saúde Mental e a estratégia de mudança do Modelo Assistencial que o PSF representa. É problematizado o papel dos profissionais de Saúde, em particular o dos Profissionais de Saúde Mental e dos Agentes Comunitários de Saúde. Foi evidenciada a necessidade de capacitação em dois planos: para que os profissionais de Saúde Mental conheçam as bases dos Programas de Atenção Básica e sua importância para a Saúde Mental e para que os profissionais da Atenção Básica incorporem conceitos e ações de Saúde Mental, tendo como resultantes as ações em conjunto. Foram examinadas algumas possibilidades de Capacitação, com exemplos práticos e atuais, e também alguns possíveis entraves para a entrada das ações de Saúde Mental na Atenção Básica. A importância das ações de Saúde Mental na Atenção Básica foi evidenciada: na descoberta de grande faixa de desassistência, fora do conhecimento dos dispositivos de Saúde Mental; na possibilidade de romper a dicotomia mente/corpo; no questionamento da exclusão da loucura; na adoção, pelas Equipes na Atenção Básica, de práticas individuais e grupais que dêem resposta à demanda motivada por sofrimento mental, que aparece na Atenção Básica em número elevado; na ajuda às Equipes da Atenção Básica para trabalhar seus problemas institucionais e seus sentimentos despertados pelo contato com a realidade das pessoas e comunidades; para inserir ações de cunho comunitário e participativo nas práticas diárias. Foi ressaltado o papel fundamental do Agente Comunitário de Saúde para as práticas da Saúde Mental na Atenção Básica. Aspectos de financiamento das ações, criação de indicadores e Capacitação em larga escala foram analisados . Palavras chave: Atenção Básica, Saúde Mental, Reforma Psiquiátrica.

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ABSTRACT The present monography reports the research of how the input of Mental Health Action within the Primary Care Programs (Program of Health Community Agents (PACS in Brazil)) and Family Health Program (PSF in Brazil)), is taking place, with special regards in the State of Rio de Janeiro. The methodology of qualitative research has been used, with national and foreign bibliographical references. The monography author's experience, in the field, has been mentioned. It is intended though, with the actions of Mental Health in Primary Care, that the practices of the Psychiatric Reform are boosted together with the opening of training fields for professionals and population. For the understanding of the core theme of this monography, the concepts and practices of the Psychiatric Reform and Primary Care Programs have been studied, with the respective origins and current guidelines. The monography has gone through the history of the paradigm changes in the approach to mental suffering, leaving the exclusion aside so as to take the road of inclusion. Special attention was given to: the tension between control/transformation; the actions of the Mental Health Teams in Primary Care, together with PSF and PACS, with possible articulation modes and training; the guidelines and official documents, laws, National Conferences reports; the orientations of the World Health Organization; the participation of the population in the organization of the health actions; works of authors with practice in the area and the concepts that form the work base of the Mental Health in Primary Care. Network concepts, territory and responsibility have been highlighted. The change of the Assistance Model in Mental Health and the change strategy of Assistance Model that PSF represents have been studied. The role of health professionals is problematized, in particular the Mental Health Professionals and Health Community Agents. The training need was evidenced in two scopes: so that the professionals of Mental Health get to know the bases of the Primary Care Programs and their importance to the Mental Health as well as the professionals of the Primary Care incorporate concepts and actions of Mental Health, having group-action as a result. Some possibilities of Training, with practical and up-to-date examples, and also some possible hindrances for the input of Mental Health actions in Primary Care were examined. The importance of the actions of Mental Health in Primary Care was evidenced: in the discovery of a large rate of lack of assistance, out of the knowledge of the Mental Health departments; within the possibility to break the mind/body dichotomy; in the inquiry of madness exclusion; in the adoption, for the Teams in Primary Care, of individual and group practices that throw light to the demand motivated by mental suffering, which appears in Primary Care at high figures; within the help to Primary Care Teams to work out their institutional problems and their feelings wakened up by the contact with the people and communities’ reality; to insert community-related and participation actions in the daily practices. The Community Health Agent's fundamental role has been pointed out for the practices of the Mental Health in the Primary Care. Aspects of financing of the actions, creation of indicators and Training in wide scale have been analyzed.

Key Words: Primary Care, Mental Health, Psychiatric Reform.

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LISTA DE SIGLAS

ABP: Associação Brasileira de Psiquiatria ACS: Agente Comunitário de Saúde AIH: Autorização de Internação Hospitalar CAPS: Centro de Atenção Psicossocial CONASP: Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária ESF: Equipe de Saúde da Família

MS: Ministério da Saúde

MTSM: Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

NAPS: Núcleo de Atenção Psicossocial

OMS: Organização Mundial da Saúde OPAS: Organização Pan-americana da Saúde PACS: Programa de Agentes Comunitários de Saúde PSF: Programa de Saúde da Família SES-RJ: Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro SIAB: Sistema de Informação da Atenção Básica SUS: Sistema Único de Saúde

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SUMÁRIO

Cap. 1 - Considerações Iniciais ...................................................................................10

Cap. 2 - Metodologia ...................................................................................................13

Cap. 3 - A Reforma Psiquiátrica ..................................................................................15

3.1 Os antecedentes históricos ................................................................15

3.1.1 Antecedentes históricos estrangeiros .......................................16

3.1.2 Antecedentes históricos brasileiros ..........................................33

3.2 A Reforma Psiquiátrica Brasileira.....................................................36

Cap. 4 - Os Programas de Atenção Básica no Brasil ...................................................77

Cap. 5 - A Saúde Mental na Atenção Básica ..............................................................92

5.1 Precursores estrangeiros e críticas ...................................................92

5.2 Precursores brasileiros ...................................................................109

5.3 Trabalhos atuais .............................................................................118

5.4 O ano de 2001: mudanças e diretrizes ...........................................137

Cap. 6 - Considerações Finais ...................................................................................188

Referências Bibliográficas .........................................................................................204

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CAPÍTULO 1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A presente monografia tem como objetivo pesquisar, através de levantamento

bibliográfico, como está acontecendo a entrada das ações de Saúde Mental na Atenção Básica,

no Brasil, com especial atenção para o Estado do Rio de Janeiro.

A inserção de ações de Saúde Mental na Atenção Básica traz consigo potencialidades,

críticas e problemas, que serão estudados.

Para atingir o que pretendemos e situar corretamente a questão, vamos estudar as duas

vertentes que estão se encontrando nas ações da Saúde Mental na Atenção Básica: a Reforma

Psiquiátrica, de um lado, e os Programas de Saúde da Família e de Agentes Comunitários de

Saúde, de outro. Logo após, investigaremos a seqüência de textos e acontecimentos que estão

levando às comunidades as ações de Saúde Mental.

Considerando que tanto a Reforma Psiquiátrica como os Programas de Saúde da

Família e de Agentes Comunitários de Saúde têm diversos pontos em comum, que serão

explicitados ao longo do texto, podemos supor que a articulação desses dois modos de

compreender o campo da Saúde pode ter como resultados avanços na assistência, redução dos

custos para o Sistema de Saúde, promoção das condições de vida e de saúde e maior

organização das comunidades.

Para os profissionais de Saúde em geral e para os profissionais de Saúde Mental, o

resultado da entrada da Saúde Mental na Atenção Básica poderá ser a quebra da dicotomia

mente/corpo na abordagem do ser humano. A compreensão deverá evoluir para um enfoque

global, com inclusão também dos aspectos sociais na determinação dos problemas de saúde e

nas suas soluções. A inclusão dos campos psíquico e social no trabalho diário da Atenção à

Saúde deverá fazer parte do questionamento da exclusão da loucura e da possível mudança de

atitude da sociedade, em relação a esse fenômeno humano.

Atenção especial deve ser dada para o aspecto de campo de capacitação e pesquisa que

o trabalho de Saúde Mental na Atenção Básica abre, com incidência em profissionais de

Saúde Mental, profissionais de Saúde em geral e comunidade.

A escolha do tema desta monografia está ligada à minha experiência na Saúde Mental.

Comecei a prática na área num Hospital Psiquiátrico Público, universitário, tradicional. Na

ocasião, tive a percepção da premência das mudanças. Por artes do acaso e da necessidade,

naquela época, uma equipe da qual fiz parte saiu, por momentos, do isolamento do Hospital e

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realizou uma Visita Domiciliar. O efeito da visão da realidade concreta da vida da pessoa

assistida provocou em mim a compreensão de que apenas incidindo na família e na

comunidade, poderíamos ter uma prática efetivamente transformadora. Anos depois pude

começar a agir além dos muros dos Hospícios e das salas dos ambulatórios, entrando na vida

concreta das famílias e comunidades. Portanto, esta monografia traz, a partir de certo ponto,

relatos e trabalhos relativos à minha atuação na área, que dura até hoje.

Para a história da Reforma Psiquiátrica, partiremos dos autores estrangeiros que a

influenciaram com textos e ações, sempre com atenção ao que deixaram de pistas para as

práticas com as comunidades.

Os movimentos questionadores da internação psiquiátrica enquanto instrumento de

exclusão e encobrimento da realidade social e psíquica, ou mesmo como uma forma pouco

cientifica de tratamento, serão revisados e comentados.

Foi dada especial atenção aos textos de Michel Foucault e aos textos e práticas da

Antipsiquiatria inglesa e da Psiquiatria Democrática italiana. Foucault nos fornece as bases

para a compreensão da crise dos saberes articulados em estratégias de poder. Ronald Laing e

David Cooper, na Inglaterra, radicalizaram a aproximação com a loucura, deixando elementos

para importantes e atuais reflexões. A influência de Franco Basaglia e de outros italianos,

decisiva para a Reforma Psiquiátrica Brasileira, será registrada tanto com observações a

respeito de seus trabalhos na Itália, como nas intervenções no Brasil.

Em Gilles Deleuze e Felix Guattari vamos encontrar o estímulo para a procura de

ações que, ao questionar as centralizações, percorram caminhos potencializadores da

singularidade e da coletividade.

Pretendi observar algo a respeito da gênese do pensamento crítico que, no Brasil, após

o aparecimento de um movimento contestador, organizado por profissionais de Saúde Mental,

chegou à Reforma Psiquiátrica. Vamos, então, lembrar Ulysses Pernambucano, Luiz da Rocha

Cerqueira e Nise da Silveira, com suas propostas de uma psiquiatria sem segregação.

A crise do Modelo Assistencial baseado no complexo hospitalar, correspondente à

crise de financiamento do Setor Saúde, ao lado do processo de abertura política, favoreceu a

entrada do movimento de renovação em Saúde Mental no aparelho do Estado. Essa etapa será

observada, no texto, com detalhes e com citação de autores que a pesquisaram.

Serão abordados e detalhados alguns conceitos que norteiam as ações da Reforma

Psiquiátrica no Brasil, como, por exemplo, desinstitucionalização, rede, território,

responsabilidade.

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A progressiva adoção, pelos órgãos Federais, Estaduais e Municipais, das propostas e

práticas da Reforma Psiquiátrica será acompanhada, com destaque para as resoluções de

Encontros e Conferências e para acontecimentos que determinaram avanços. Em todo relato,

o foco estará voltado para a evolução das propostas de inserção das ações de Saúde Mental na

Atenção Básica.

Para um estudo a respeito de como surgiu a estratégia dos Programas de Saúde da

Família e de Agentes Comunitários de Saúde, serão pesquisados documentos internacionais

que orientam a mudança do Modelo Assistencial, textos de autores nacionais e documentos

oficiais norteadores do processo que será descrito.

Para chegar a compreender o que hoje está sendo praticado como Saúde Mental na

Atenção Básica, também recorreremos às origens internacionais, passaremos pelas propostas

e críticas iniciais ao trabalho nas comunidades, chegando aos dias de hoje com citação de

conclusões de Fóruns e Conferências, documentos oficiais, trabalhos atuais e resumo da

minha experiência.

Será dada atenção aos resultados que já têm sido relatados em termos de assistência e

de mudanças na atitude das Equipes de Saúde Mental e dos Programas da Atenção Básica, em

relação ao trabalho com Saúde Mental nas comunidades.

Será dado particular destaque para o repertório de ações de Saúde Mental que estão

sendo praticadas na Atenção Básica, em diversos trabalhos em andamento no Brasil, com o

interesse centrado nas atribuições das Equipes de Saúde Mental, do Programa de Saúde da

Família e de Agentes Comunitários de Saúde e suas necessidades de Capacitação.

O conflito entre controle e transformação está presente nas ações de Saúde Mental na

comunidade e é objeto de interesse na presente monografia.

É mantida a postura de análise crítica em relação aos textos e documentos

pesquisados, com atenção especial para os aspectos controladores das intervenções estatais

em Saúde. Por outro lado, a potencialidade mobilizadora das ações de Saúde, em particular as

da Saúde Mental, terá tratamento constante no texto.

Serão registradas as dificuldades que podem estar causando obstáculo ao mais rápido

desenvolvimento da entrada das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, e avaliadas as

ações que a estimulam.

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CAPÍTULO 2

METODOLOGIA

A Metodologia utilizada para a realização desta monografia foi a da “Pesquisa

Qualitativa”. (Cf. MINAYO, 2003). Segundo esta autora, o campo da Saúde está inserido em

outro maior, o das Ciências Sociais. (Cf. MINAYO, 1992). Justificando a sua afirmação, a

autora citada diz que “[...] a saúde não institui nem uma disciplina nem um campo separado

das outras instâncias da realidade social” (MINAYO, 1992, p. 13). Como uma das

conseqüências, a metodologia para a pesquisa em Saúde estará “[...] submetida às mesmas

vicissitudes, avanços, recuos, interrogações e perspectivas da totalidade sociológica da qual

faz parte” (MINAYO, 1992, p. 13).

Minayo (Cf. MINAYO, 1992) interroga-se e decide por não fugir ao desafio, se é

possível “[...] tratarmos de uma realidade da qual nós próprios, enquanto seres humanos,

somos agentes” (MINAYO, 2003, p. 11). Tomando o princípio de que “O objeto das Ciências

Sociais é histórico” (MINAYO, 2003, p. 13, grifo da autora), a autora afirma que “O nível de

consciência histórica das Ciências Sociais está referenciado ao nível de consciência histórica

social” (MINAYO, 2003, p. 14). Sendo o pesquisador parte integrante do campo pesquisado,

não há a intenção de fazer ciência neutra. A autora diz mesmo que “Na investigação social, a

relação entre o pesquisador e seu campo de estudo se estabelecem definitivamente”

(MINAYO, 2003, p. 14). A autora cita Lévi-Strauss para ilustrar a sua argumentação: “Numa

ciência, onde o observador é da mesma natureza que o objeto, o observador, ele mesmo, é

uma parte de sua observação” (MINAYO, 2003, p. 14).

A Pesquisa Qualitativa, segundo Minayo,

[...] se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (MINAYO, 2003, p. 21).

Para a autora que vem sendo citada, não há oposição entre dados quantitativos e

qualitativos, mas complementariedade. (Cf. MINAYO, 2003). Enquanto as pesquisas que

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[...] trabalham com estatísticas apreendem dos fenômenos apenas a região ‘visível, ecológica, morfológica e concreta’, a abordagem qualitativa aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas (MINAYO, 2003, p. 22).

Para a realização da presente monografia, foram utilizados 42 livros; 4 textos

“mimeografados”; 3 trabalhos publicados em anais de Simpósios, Encontros, Congressos; 5

Relatórios de Conferências, Encontros, Simpósios; 21 documentos oficiais do Ministério da

Saúde; 32 trabalhos publicados em livros; 30 textos obtidos na Internet; um trabalho incluído

em publicação do Ministério da Saúde; 3 trabalhos publicados em Revistas Científicas; 2 teses

de doutorado; uma dissertação de mestrado; uma publicação de programa institucional de

saúde; 2 documentos oficiais de instâncias oficiais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro; um

texto cedido diretamente pelo autor; 2 palestras e um trabalho apresentado em congresso.

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CAPÍTULO 3

A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL

3.1 Os antecedentes históricos.

Durante séculos, a forma de lidar com a loucura, radical ameaça à Razão, foi a

exclusão. Do barco que vagava pelo Mediterrâneo lotado de seres humanos indesejáveis (Cf.

FOUCAULT, 1978), passando pela depositação comum com delinqüentes e rejeitados de

todo tipo, chegamos à organização dos Hospitais Psiquiátricos. O Estado, no Brasil, desde o

Império, também isolou aqueles que a ciência ou o senso comum assim o determinava. Das

sucessivas crises desse sistema surgiram, no século XX, as tentativas de mudança de um

aparelho destruidor que se propunha terapêutico.

Segundo Amarante (1995, p. 21), citando Joel Birman e Jurandir Freire Costa,

existiram dois momentos importantes, quando a psiquiatria tentou a renovação, mas ainda

mantendo-se como preponderante. O primeiro tinha a pretensão de melhorar o funcionamento

organizacional do Hospício, com a intenção de tornar terapêutico esse ambiente. Com isso

afirmava, ainda, a internação psiquiátrica como terapêutica e o Hospital Psiquiátrico como o

lugar de práticas curativas. Os exemplos dessas tentativas, segundo o texto citado, são as

Comunidades Terapêuticas, na Inglaterra e Estados Unidos e a Psicoterapia Institucional

Francesa. O segundo momento foi quando a psiquiatria pretendeu ampliar seus domínios,

saindo do Hospício para a comunidade. Prevenir e promover a saúde mental, dentro dos

marcos da adaptação social, foram as intenções da Psiquiatria de Setor na Franca e da

Psiquiatria Comunitária e Preventiva nos EUA, segundo os autores citados por Amarante (Cf.

AMARANTE, 1995, p. 22).

Importante para nós é a critica da entrada inicial da saúde mental na comunidade, que

se deu, conforme acima, numa tentativa de modernização da psiquiatria, sem questionar seus

princípios segregadores, sem a participação efetiva de outros saberes e sem a crítica política

que pudesse observar as implicações sociais dessas práticas.

Amarante (1995, p. 22), chama a atenção para o fato de que, ao contrário das

tentativas anteriores de “[...] meras reformas do modelo psiquiátrico [...]”, “[...] a

antipsiquiatria [...]” (Laing e Cooper, Inglaterra) e a “[...] psiquiatria na tradição basagliana

[...]” (Franco Basaglia, Itália), caminham no sentido de uma ruptura. Trata-se de matéria da

maior importância determinar os parâmetros dessa ruptura e suas conseqüências práticas no

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momento em que, hoje, estamos querendo observar, avaliar e praticar as ações de saúde

mental nas comunidades. Veremos a seguir, então, alguma das mais importantes raízes

históricas, de autores estrangeiros, que fundamentaram a Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Nesse resumo estão tanto aqueles movimentos que, segundo o texto de Paulo Amarante,

tentaram mudar a realidade da assistência psiquiátrica sem que o principal fosse tocado

(Comunidades Terapêuticas e Psicoterapia Institucional), como aqueles que foram mais longe

(Antipsiquiatrias e a Psiquiatria Democrática Italiana de Franco Basaglia e seus colegas).

Também faremos referência a Foucault, com sua aguda observação a respeito dos Poderes e

suas artimanhas.

3.1.1 Antecedentes históricos estrangeiros.

Segundo Amarante (1995, p. 32) o termo “psicoterapia institucional” foi uma

denominação dada posteriormente, para designar o trabalho iniciado por François Tosquelles,

no Hospital Saint-Albain, durante a II Grande Guerra Mundial. O trabalho de Tosquelles

revestiu-se de tons dramáticos, visto que tinha que salvar pacientes da morte, devido às

condições que encontrou no hospício em meio à guerra e, ao mesmo tempo, resistir ao

nazismo. A Psicoterapia Institucional supunha que um Hospital Psiquiátrico “tratado”, isto é,

com todos os seus habitantes (direção, funcionários, técnicos e internados) participando de

uma estrutura coletiva de desvendamento do mal que as relações institucionais, interpessoais e

intergrupais podem causar, poderia se tornar um ambiente terapêutico. Dessa forma, mantinha

a internação psiquiátrica como um instrumento válido. Por outro lado, o movimento que se

formou por inspiração da Psicoterapia Institucional aponta para a necessidade da constante

transformação institucional na área da Saúde Mental como condição básica para o

funcionamento de dispositivos que estejam a serviço das pessoas atendidas.

Laing e Cooper pretenderam questionar o saber psiquiátrico e psicológico, criticando-

os como instrumentos de alienação e dominação. Levaram à prática seus questionamentos e

deixaram importantes e emocionados relatos sobre o que fizeram. (Cf. Cooper, D. :

“Psiquiatria y Antipsiquiatria”, Buenos Aires, Editorial Paidos, 1974 e Laing, R. D.: “A

Política da Família”, Martins Fontes, São Paulo e “O Eu Dividido”, Editora Vozes, Petrópolis,

1973).

No texto de apresentação do livro “Los Crímenes de la Paz” (BASAGLIA &

BASAGLIA, 1977 b) , Franco e Franca Basaglia resumem muito claramente a diferença e a

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pretendida complementariedade dos trabalhos que desenvolviam, em relação ao que fazia

Ronald Laing. Dizem eles que

La práctica y la teoría de Laing tienden a enfocar y a privilegiar – si bien manteniendo presentes los otros planos del discurso – el momento de la trasformación subjetiva; así como nosotros tendemos a privilegiar, si bien manteniendo presentes los otros planos del discurso, el de la trasformación social (BASAGLIA & BASAGLIA, 1977 b, p. 68).

O texto citado é exemplar, na medida em que define com precisão, não só a prática

basagliana, mas também o caminho que o ramo das chamadas antipsiquiatrias (Laing rejeitava

o termo) representada, aqui, por Laing, tomou. Podemos, também, fazer uma leitura do texto

que nos permite ver uma advertência quanto a tomar como “principal” um dos lados da

questão: o social/político ou o subjetivo. Tomando como principal o social/político e sua

transformação, poderá ser deixada de lado a pesquisa e a clínica da loucura, com todo o

desafio humano que representa. A tendência, nesse caso, é a burocratização dos trabalhos,

atrelado que ficaria ao movimento político e suas contingências. Caso o privilégio recaia

sobre o subjetivo, iludindo o social e o político, a queda na exaltação da loucura e sua

romantização são um caminho no qual a alienação passa a ser compartilhada entre

“terapeutas” e “pacientes”. Por isso, os autores apontam para uma necessária não exclusão

dos dois planos em jogo, mas marcando bem qual a atenção principal que tinham os dois

grupos, na época. O tempo passou e já quase trinta anos nos separam do texto citado. Já é

hora, portanto, de uma prática que não estabeleça privilégios na abordagem à loucura. Um dos

desafios colocados para nós é abordar com uma prática integradora os chamados “transtornos

mentais graves”, denominação atual para a loucura, que é o fenômeno humano de base.

Abordagem que ao mesmo tempo se aproxime da loucura, a investigue, acolha, “trate” e a

questione como produção psíquica e também traga toda a complexidade social e política

envolvida, com mobilização dos diversos atores da cena.

No diálogo entre Basaglia e Laing, no livro “Los Crímenes de la Paz”, este defende

sua posição de não mais trabalhar dentro de instituições estatais. Mesmo advertido por

Basaglia de que não existe um “fora do sistema”, Laing relata que, após dez anos de tentativas

de mudanças institucionais, percebeu que levaria a vida toda tentando, sem conseguir. Partiu,

então, para seus projetos de convivência direta com os ditos “pacientes”. Laing e seus amigos

fundaram, em Londres, a Philadelphia Association, base organizacional que mantinha casas

onde estudantes e profissionais de saúde mental e de outras áreas moravam com pessoas

diagnosticadas de esquizofrenia, sem que houvesse ali uma relação tradicional

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terapeuta/paciente. As pessoas diagnosticadas faziam seus tratamentos com outros

profissionais que não os que moravam na casa. Essa estratégia visava a fugir do ataque das

leis, que seriam manipuladas por aqueles a quem a experiência certamente incomodou.

Foucault (1993) define esta forma de lidar com os Poderes, a qual Laing tentou, como o “[...]

estabelecimento de um local privilegiado onde eles devam ser suspensos ou rechaçados no

caso de se reconstituírem” (FOUCAULT, 1993, p. 127). O objetivo desse instrumento foi

“investigar as causas da doença mental, bem como sua prevenção, ajudar financeiramente os

doentes mentais e promover a formação daqueles que se interessavam pela nova concepção de

doença mental” (Cf. MARQUES PINTO). Como podemos ver, esses são, hoje, partes

importantes dos objetivos dos nossos novos dispositivos de saúde mental, mostrando a

atualidade do trabalho de Laing. Mais ainda veremos essa atualidade, se observarmos que sua

prática direta com pessoas diagnosticadas, organizando em conjunto novas formas de viver,

deu pistas para a teoria e prática do Acompanhante Terapêutico, potente instrumento de

atuação em Saúde Mental que está presente nos Centros de Atenção Psicossocial, na Atenção

Básica, nas Oficinas Terapêuticas, nos Lares Abrigados e até mesmo nos ambulatórios e

atendimentos particulares.

No texto que se segue ao debate com Laing, Franco e Franca Basaglia apontam um

detalhe de importância para as nossas atuais discussões. Dizem os autores que Laing

replantea [...] la formación de un ‘asilo’que responda – fuera de cualquier

burocracia organizativa e institucional – a la necesidad de reparación, de protección, de tutela de quien vive una experiencia “diferente”. Un lugar donde el diferente pueda expresarse sin limitaciones y donde se aprenda a convivir con él (BASAGLIA & BASAGLIA, 1977 b, p.77).

Encontramos essa defesa de um “direito de asilo” também nos italianos.

De acordo com Foucault, o trabalho de David Cooper se propôs, enquanto modo de

lidar com os Poderes do campo das práticas da psiquiatria, a “[...] balizá-los um por um e

destruí-los progressivamente, no interior de uma instituição de tipo clássico”. (FOUCAULT,

1993, p. 127).

Um dos livros de maior importância de Cooper é “Psiquiatria e Antipsiquiatria” (Cf.

COOPER, 1974), do qual apresento um resumo. Nessa obra, Cooper

— Explicitou a semelhança de origem e de métodos entre a violência da família, da escola e da psiquiatria, enquanto produtoras de alienação. — Utilizando o conceito de Alienação (Hegel, Marx e Sartre), descobriu, nas famílias de esquizofrênicos, um padrão constante de “estranhamento” nas relações, que leva à eclosão de psicose em um dos seus membros.

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— Observou a melhora no padrão de relacionamento de esquizofrênicos, quando estes freqüentavam grupos, durante a internação, onde as relações interpessoais eram analisadas e não repetiam os modos alienados da família e da sociedade. — Abordou a esquizofrenia, não como uma entidade nosológica, mas como um ‘ conjunto de pautas de interação pessoal’. — Atacou as bases pouco críticas das Comunidades Terapêuticas. — Preferiu atividades que desmistificassem os papéis envolvidos na atribuição de esquizofrenia a uma pessoa, a grupos terapêuticos interpretativos. — Postulou que a esquizofrenia seria um dos aspectos da nossa necessidade de fragmentação e posterior unificação. (Laing também compreendia assim). — Após explorar os “limites de mudança possível dentro do hospital psiquiátrico”, propôs a criação de unidades pequenas, fora do contexto institucional psiquiátrico, como forma de atender psicóticos. — Estabeleceu que o ponto central da organização do trabalho alternativo de atendimento a psicóticos deve ser a elaboração, pela equipe, das fantasias e preconceitos a respeito da loucura. — Criticou as Terapias Ocupacionais alienantes, desvinculadas da realidade dos pacientes, levando a um progressivo questionamento de todos os papéis estereotipados na instituição: paciente, doença, tratar, enfermeiro, médico, terapeuta ocupacional. — Iniciou a experiência dos lares protegidos. — Criticou radicalmente a psiquiatria clássica organicista enquanto teoria que, a favor do “status quo”, tenta encontrar uma causa comum para a sua suposta “doença mental”, igualando as pessoas que, pelo contrário, têm sofrimentos diversos e singulares. Esta mesma crítica deve-se fazer hoje, em relação às buscas por um gen que seria a “causa” da esquizofrenia ou de outros distúrbios. — Criticou a tendência, naquele momento, de colocar enfermarias psiquiátricas em Hospitais Gerais, dizendo que este fato incrementaria a noção de doença mental, como se disséssemos às pessoas: “Você não pode estar realmente sentindo isso, trata-se só de que você está doente”. — Treinou pessoas para a função que denominou de terapeutas sociais, inclusive pacientes. Entre nós, são os hoje chamados Acompanhantes Terapêuticos (PINTO, 1998, p. 24).

Cooper também partiu, como Laing, de uma base filosófica Humanista – Existencial

para mover suas críticas à psiquiatria. A prática inicial de Cooper foi dentro de um hospital

psiquiátrico, na década de 60, onde estabeleceu uma pequena comunidade, a “Vila 21”. Os

marcos institucionais da época suportaram durante pouco tempo a contestação resultante da

tomada da palavra pelos pacientes, e a experiência foi interrompida. A visão crítica e política

de Cooper tornou-se acentuada, tendo o Marxismo como fundamento. Estendeu a crítica à

psiquiatria, ao que chamou de psico-tecnologia que, no seu modo de ver, consiste num

problema mais amplo que o da repressão das instituições psiquiátricas. Dentro dessa psico-

tecnologia Cooper enquadrava, além da psiquiatria, a psicologia, a psicanálise, as terapias

alternativas, a mídia, as prisões, o militarismo, os tribunais. Sua função é manter a ordem

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estabelecida iludindo, distraindo, prendendo, mistificando de acordo com local e necessidade.

(Cf. COOPER, 1979). No capítulo “A Invenção da não-psiquiatria”, do Livro “A Linguagem da Loucura”,

publicado na Inglaterra em 1978 e acrescido de material de um artigo que saiu na Itália em

1975, Cooper diz que foi infeliz ao criar o termo “antipsiquiatria”, sujeito que foi a muitas

distorções, e que, na época, não “[...] havia consciência coletiva da necessidade de

envolvimento político”, já que ele e seus colegas estavam “isolados nos contextos nacionais

de trabalho” (COOPER, 1979, p. 124). Cooper define “não-psiquiatria” como o

desenvolvimento de ações “contra e para além do poder médico, que conduzem à

recuperação-ganho social da loucura como parte da cultura do povo, como parte de uma

subversão mais total do espírito burguês” (COOPER, 1979, p. 141).

Cooper fez sua definição política no sentido do marxismo, até mesmo de forma

bastante dogmática, mas apontando para a necessidade de uma revolução social, mais do que

a política, como campo de mudanças no qual a loucura poderia ser questionada e ter seu

destino mudado de alienação para libertação. Deste modo, define “antipsiquiatria” como “[...]

uma ação sistemática contra a repressão psiquiátrica dentro da estrutura estatal da psiquiatria,

e cujas vítimas são predominantemente da classe operária” (COOPER, 1979, p. 127).

Interessante para nós, hoje, é acompanhar a seqüência de acontecimentos que Cooper

descreve na sua trajetória. Na fase institucional, Cooper, além de trabalhar com a

transformação de hospitais psiquiátricos, chamou a atenção para a necessidade da psiquiatria

de setor. Porém, sentiu que havia um limite para a sua atuação transformadora dentro das

instituições, semelhante ao que acima está citado de Laing, e partiu para “dentro da

comunidade”. Cita experiências que se assemelham ao que hoje tem sido tentado, entre nós,

nos CAPS, Lares Abrigados, Oficinas Terapêuticas e comunidades, como “comunidades fora

do sistema hospitalar”, com o objetivo de “[...] produzir na comunidade um contexto em que

as pessoas pudessem viver situações críticas das suas vidas sem que o processo de mudança

fosse impedido pela habitual invalidação psiquiátrica [...]” (COOPER, 1979, p. 128).

Cooper faz um importante apanhado do que havia, no momento em que escreveu o

texto que está sendo citado por último, 1978, de movimentos e grupamentos em luta contra a

psiquiatria oficial e em busca de alternativas. Fala de trabalhos na França, Itália, Bélgica,

EUA, Espanha, Portugal, Suíça, Alemanha Ocidental, além da própria Inglaterra. Relata o

aparecimento da “Rede Internacional Alternativas para a Psiquiatria”, então nascente, que

depois, em 1982, fez uma reunião no Brasil, em Belo Horizonte. O relato de Cooper, além

dos ensinamentos históricos, é importante para que tenhamos a dimensão do que estava

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ocorrendo no mundo, em comparação ao que acontecia no Brasil na época. A ênfase em todos

os trabalhos citados por Cooper é o da criação de redes sociais que escapem à captura pelo

sistema tradicional de transcrição de acontecimentos de determinação política em fatos

psicopatológicos. Exemplo dessa posição é o seguinte trecho:

O problema pessoal é visto no contexto das contradições políticas que ele encarna. Depois surge outro problema e forma-se outra rede, e dá-se uma sobreposição de redes que são mantidas como focos autogestores de educação política nesse bairro, e depois noutros bairros da cidade (COOPER, 1979, p. 140).

Cooper, procurando resumir o que estava pensando na época, diz que um dos trabalhos

viáveis naquele momento seria uma ação com os “dissidentes”, loucos e profissionais, no

sentido de “sensibilizar a comunidade para a possibilidade de usar os seus próprios recursos

naturais humanos, a fim de procederem a uma autogestão desprofissionalizada não-médica da

sua loucura e ‘problema afetivos’” (COOPER, 1979, p. 149). Cooper falava do trabalho no

Setor, modelo Francês, mas não sem a importante advertência de que o Setor poderia criar os

“asilos familiares por meio da injeção neuroléptica de ação prolongada” (COOPER, 1979, p.

149). Note-se, mais uma vez, a atualidade do que dizia Cooper. Aqui, está apontado o rumo e

os perigos dos trabalhos com a comunidade. Ao mesmo tempo podemos ler nas suas palavras

algo muito semelhante a Basaglia, isto é, sem a crítica política constante, todo e qualquer

dispositivo de Saúde Mental, por maior que sejam as eternas boas intenções, cairá na lógica

da disciplina ou do controle.

Concluindo esse esboço da obra de Cooper, deixamos a seguinte citação:

A loucura é uma propriedade social comum que nos foi roubada, como a realidade dos sonhos e das nossas mortes: temos que recuperar politicamente estas coisas, de modo que se tornem criatividade e espontaneidade numa sociedade transformada (COOPER, 1979, p. 12).

Franco Basaglia tem uma participação fundamental na história da Reforma

Psiquiátrica Brasileira. Com suas visitas ao Brasil pôde, com a clareza que lhe era própria,

demonstrar o absurdo dos hospitais psiquiátricos, ao lado de explicitar em nome de que

estavam organizados: da repressão às classes dominadas. A colocação em debate do ambiente

hospitalar, nos seus mínimos detalhes, com o lema “crear condiciones para permitir aflorar las

necessidades reales de los usuarios del servicio [...]” (BASAGLIA & BASAGLIA 1977 b),

foi a marca histórica do trabalho de Basaglia.

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Franco Basaglia mostrou, com sua articulação entre as práticas de Saúde Mental e a

política, que a psiquiatria sempre esteve a serviço dos poderes dominantes. Pretendeu revelar

que o campo da saúde mental é eminentemente político. Esse desvelamento tornou-se fator

básico para os avanços, sem o qual o risco permanente de estarmos a serviço das forças da

alienação não pode ser criticado.

Basaglia colocou os direitos da cidadania como pedra fundamental para as práticas em

Saúde Mental. (Cf. Basaglia, F.: "A Instituição Negada - Relato de um hospital Psiquiátrico",

Edições Graal, Rio de Janeiro, 1985. Basaglia, F.: “Qué es la Psiquiatria?”, Editorial Labor,

Madrid,1977. Basaglia, F.: “A Psiquiatria Alternativa: Contra o Pessimismo da Razão, o

Otimismo da Prática”, Ed. Brasil Debates, São Paulo,1982. Basaglia, F. & Basaglia, O. F.

(org.): “Los Crímenes de la Paz”, Siglo Veintiuno Editores, México, 1977).

No prólogo do livro “Qué es la Psiquiatria?” (Cf. BASAGLIA, 1977 a), Mario

Tommasini mostra a direção política do trabalho italiano em Saúde Mental, ao descrever o

início das contestações do asilo psiquiátrico. Diz ele que

La ocupación del Hospital Psiquiátrico Provincial por parte de los estudiantes de la Facultad de Medicina, de los enfermeros y de los trabajadores en febrero de 1969 tenía el objetivo de denunciar la realidad del manicomio, en Parma como en todo nuestro país, de afirmar la necesidad de que las instituciones democráticas se responsabilizaran de una transformación radical en las estructuras asistenciales y de incidir en la conciencia y en la cultura de la población de nuestra provincia (BASAGLIA, 1977 a, p. 9).

Apontando o caminho que a mudança no modo de organizar os sistemas de saúde

deveriam tomar, é ainda o autor do prólogo que ressalta que

las unidades locales de los servicios sanitarios y sociales tienen que ser nuevos órganos de gestión democrática y de lucha, para convertirse también en instrumentos de liberación del hombre oprimido (BASAGLIA, 1977 a, p. 10).

Aqui, Mario Tommasini adianta o percurso que tomou Basaglia no sentido de politizar

a discussão em Saúde em geral e em Saúde Mental em particular. Isto é, tornar explícita a

dimensão política envolvida em cada ação e instituição de saúde, já que, mesmo quando esse

aspecto não está claro e sendo discutido, não deixa de estar presente e produzindo efeitos.

No livro citado, Basaglia mostra que a psiquiatra, até então, só havia proposto

soluções negativas para o problema do sofrimento mental. Recortando um aspecto do homem

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que sofre, reduzindo toda a complexidade da vida a dados psicopatológicos, a psiquiatria

tornou-se parte do aparelho de exclusão. Ao ter essa função, a psiquiatria se incumbia de

escamotear as contradições sociais que produzem as injustiças, o sofrimento, a miséria. Ao

propor as mudanças, Basaglia adverte para um perigo: o de cairmos num humanitarismo que

também estaria impedindo as transformações. Chamando de “literatura” a tendência da

psiquiatria de apenas descrever os fenômenos psicopatológicos, afastados da vida concreta

das pessoas, diz Basaglia:

Por el contrario, rechazando tanto la estéril “literatura” psiquiátrica como la estéril relación puramente humanitaria, se siente la exigencia de una psiquiatría que quiera constantemente verificar su validez en la realidad y que encuentre en la realidad los elementos de discusión para discutirse a si misma (BASAGLIA, 1977 a, p 20, grifo do autor).

Adverte, também, que o trabalho deve ter os dois aspectos: o científico e o político.

Pretendendo chamar a atenção para o fato de que o problema da Saúde Mental é muito mais

amplo do que a mera criação de novos “serviços”, atingindo a discussão da forma como se

organiza toda a sociedade, Basaglia diz que

sólo teniendo presente la extrema ambigüedad de la situación que estamos viviendo, podremos evitar la edificación de una nueva ideología: la del hospital abierto, de las comunidades terapéuticas, propuestas como solución al problema del enfermo mental. (BASAGLIA, 1977 a, p. 21).

Transportando para os nossos dias, o que Basaglia diz é que não há “soluções”

definitivas em Saúde Mental, mas sim mudanças nas práticas que levam, cada vez mais, a

lançar a discussão e as ações na direção da vida concreta das pessoas envolvidas. E, também,

que a sociedade seja provocada a se colocar a mesma questão: o que é o sofrimento mental?

Quem são as pessoas que sofrem? Quais as condições sociais que favorecem a saúde mental e

as que a prejudicam?

Curioso e instrutivo é acompanhar a evolução do trabalho de Basaglia. Nos seus

escritos iniciais, como em “La liberdad comunitaria como alternativa a la regresión

institucional” (em “Qui es la psiquiatria”), lamentava que na França e na Inglaterra já existiam

experiências consolidadas de transformação do tratamento psiquiátrico, enquanto na Itália

havia muita dificuldade. (Cf. BASAGLIA, 1977 a, p. 27) Cita, como exemplo de que a

liberdade como base do tratamento não é nenhuma novidade, o trabalho de Conolly, em 1838,

na Inglaterra, que desenvolveu um esboço de comunidade terapêutica. Basaglia, ao assinalar

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que Maxwell Jones descobriu a Comunidade Terapêutica em 1952, diz que a base do trabalho

de transformação institucional é a forma de trabalhar que tem como princípio o de “uma

comunidad organizada de forma que pueda permitir el movimiento de dinámicas

interpersonales entre los grupos que la constituyen y que presenta las características de

cualquiera otra comunidad de hombres libres” (BASAGLIA, 1977 a, p. 29). Note-se que a

crítica de Basaglia ao movimento da Comunidade Terapêutica é ao seu apoliticismo e à sua

tentativa de dar como resolvida a questão da psiquiatria com essa prática. Para Basaglia a

Comunidade Terapêutica é instrumento e não fim. Como fundamento assinala:

Tiene que partir, por lo tanto, de las exigencias del enfermo y desde ellas intentar adaptar a su alrededor el espacio vital que necesita para extender y actuar aquello que es la cuestión primera de la comunidade terapéutica: la potencia terapéutica que cada uno de los miembros de la comunidad emana hacia el otro (BASAGLIA, 1977 a, p 29).

Contrariando um ideal romântico que pode surgir da idéia de Comunidade

Terapêutica, Basaglia dizia que as contradições são uma base definitiva do trabalho, em todas

as suas formas de apresentação e entre todos os envolvidos: pacientes, funcionários de nível

superior, demais funcionários, etc. A organização de uma estrutura de reuniões comunitárias,

em que todos os que freqüentam a instituição devem participar, cria uma referência

psicológica protetora ao redor da qual os internados podem sair de seus papéis rígidos,

atribuídos pela sociedade e mantidos pela psiquiatria. Basaglia chama a atenção para a

reunião comunitária diária que, segundo ele, é o eixo ao redor do qual gira a vida

institucional. Note-se que esse preceito para uma transformação da realidade institucional dos

hospícios foi intensamente desenvolvido no Brasil e agora norteia o funcionamento dos

Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e de muitos outros serviços de Saúde Mental.

Passaram, mesmo, as instituições que adotaram a forma de Comunidade Terapêutica, a serem

referências para o trabalho na área e campo importante de capacitação no início das ações da

Reforma Psiquiátrica, o que se mantém até os dias de hoje.

Basaglia destaca a colocação em questão do papel do médico e do enfermeiro na

Comunidade Terapêutica. Também instrutivo para a situação atual que vivemos, vemos

Basaglia mostrar muito claramente que a sociedade dá ao psiquiatra dois papéis que se

opõem: o de tratar e o de excluir. Aos enfermeiros, é requerida mais claramente a função de

vigilância. Com entrada em atividade da estrutura de decisão e funcionamento tipo

Comunidade Terapêutica, as contradições são reveladas e a possibilidade de mudança se

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estabelece. Passa a haver história viva onde existia apenas a apatia e a rotina mortificadora.

Hoje, recomenda-se que essa discussão se dê em todos os locais de trabalho em Saúde Mental,

com as diversas categorias profissionais reagindo a seu modo quanto a questionar posturas

tradicionais.

Para esclarecer mais uma vez a posição crítica de Basaglia a respeito das

Comunidades Terapêuticas, lemos em “Los Crimenes de la Paz”, que ele considerava a

Comunidade Terapêutica de Maxwell Jones e o XIII Arrondissement (França) “aparadores

psiquiátricos en los cuales exponer el nuevo producto listo para el consumo” (BASAGLIA,

1977 b, p. 41), e que sua proposta não se resumia a mais uma modificação técnica. Ao lado de

tornar claro que Basaglia adotava a estrutura da Comunidade Terapêutica como estratégia,

vemos, de passagem, a crítica à Psiquiatria de Setor da França. Essa crítica ao Setor pode ser

um dos motivos para as propostas atuais de entrada da Saúde Mental na Atenção Básica não

estarem se desenvolvendo no ritmo que seus resultados sugeririam. Encontramos, mais

adiante, uma advertência de Basaglia que temos que levar sempre em consideração, sem que

nos paralise:

Las consignas más actuales y modernas son ahora la medicina preventiva, el mantenimiento de la salud, la lucha en la comunidad que frecuentemente se reducen en la práctica a coartadas, apenas útiles para cubrir la realidad que continúa inalterada a sus espaldas: porque se conservan inalteradas la estructura y el modelo de las delegaciones del poder sobre las cuales se fundamenta (BASAGLIA, 1977 b, p. 57).

Ainda em “A Instituição Negada”, Franca Basaglia afirma que as propostas da

Comunidade Terapêutica inglesa e a de Gorizia são diferentes na medida em que aquela, a

exemplo das “reformas de tipo setorial”, [...] "não vão além de promover o aperfeiçoamento

da assistência psiquiátrica, tendendo, no máximo, à ‘solução ideológica’ dos conflitos sociais”

(BASAGLIA, 1985, p. 96). De modo algum Basaglia pretende que a abertura do Hospital

Psiquiátrico de Gorizia limite-se a uma mudança apenas de alcance institucional. O desafio

que se colocava, e que é da maior importância para a Reforma Psiquiátrica Brasileira e suas

práticas, está bem resumido na seguinte passagem:

O problema de Gorizia será, então, o de decidir em que medida sua atitude de negação pode se voltar para o mundo externo, visto que o objetivo, desta vez, é a estrutura social e não mais uma instituição particular. (BASAGLIA, 1985, p. 97).

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Basaglia resume muito bem a sua orientação política aliada à técnica nas seguintes

linhas:

La experiencia de Gorizia, partiendo de la psiquiatría y del manicomio como situaciones emblemáticas, proponía una problemática política y social que no deseaba limitarse a la trasformación humanitaria del hospital – aunque la efectuara – sino que consideraba ésta como una ocasión para poner práticamente en discusión la finalidad de la existencia del manicomio y de las modalidades de su existencia, en la relación con nuestra estructura social (BASAGLIA, 1977 b, p. 41).

A influência de Basaglia demonstra-se no fato de que as tentativas de transformação

democrática dos Hospitais Psiquiátricos públicos foram, nas décadas de 70 e 80, no Brasil, a

maior e mais importante frente de luta pelas mudanças na Saúde Mental, a que gerou a maior

parte das discussões, e serviu como instrumento privilegiado para a formação de pessoal

questionador.

Basaglia, numa de suas estadas no Brasil em 1979, disse o seguinte: “O problema é

que quando se fala em destruição do manicômio, a terra treme sob os pés do profissional, ele

perde sua identidade e entra numa situação anômala, não sabendo mais quem ele é”

(BASAGLIA, 1982, p. 36).

No momento em que vivemos, podemos transpor a fala de Basaglia, para tentar captar

o que se passa com muitos dos profissionais de Saúde Mental, quando lhes é apresentada a

proposta de trabalhos com a comunidade. Já estabelecidos nos ambulatórios, depois dos

avanços iniciais da Reforma Psiquiátrica, os profissionais têm, em geral, uma visão muito

distante do que seja trabalhar diretamente nos Postos de Saúde, nas casas, nas praças e nas

ruas. A demora em se aproximar dessas ações e a adotar essas práticas pode vir, como diz

Basaglia, da ameaça de perda da identidade conquistada nos anos de formação tradicional e

nos anos de prática repetitiva nos ambulatórios de especialidades.

Notemos que os CAPS são muito mais rapidamente aceitos pelos profissionais que os

trabalhos na comunidade, apesar de serem muito mais intensos e exigentes que os

ambulatórios. Por que essa diferença? Matéria para pesquisa de campo, podemos ter como

hipótese, que a ausência das paredes institucionais e o confronto com a realidade social

gerariam o mesmo fenômeno que Basaglia detectou na ameaça da perda dos marcos históricos

dos hospícios.

Em “Psiquiatria Alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática”

(Cf. BASAGLIA, 1982), que traz algumas conferências de Basaglia no Brasil, há um resumo

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27

de seu percurso na abertura dos hospitais psiquiátricos. Após abandonar a carreira

universitária, que no seu modo de ver reproduzia a violência institucionalizada da psiquiatria,

Basaglia foi dirigir o Hospital Psiquiátrico de Gorizia, em 1961, já tendo conhecimento da

Comunidade Terapêutica de Maxwell Jones. A base de seu trabalho foi dar voz aos pacientes,

numa organização de reuniões que confrontavam os diversos grupos da instituição.

Em 1968, o trabalho em Gorizia chega ao impasse e a partir de 1971 Basaglia e equipe

dirigem o Hospital Psiquiátrico Regional de Trieste. Como conseqüência dessa atuação, o

número de internados diminui e, com o apoio de forças políticas e culturais, organiza Centros

de Saúde Mental para o acolhimento das pessoas anteriormente internadas, com o trabalho

voltado para a comunidade. Partindo de um Hospital de 1101 leitos, organizou um local de

atendimento com quarenta vagas para quadros agudos. Eram realizadas internações curtas

(duas semanas), com as pessoas sendo depois atendidas nos Centros de Saúde Mental.

O livro citado (BASAGLIA, 1982) transcreve as conferências de Basaglia no Brasil,

no ano de 1979, quando houve uma virada na história do movimento pela transformação das

condições de atendimento à Saúde Mental no país. Essas conferências resumem muito bem a

importância de Franco Basaglia para a Reforma Psiquiátrica Brasileira e há um registro que

mostra claramente o clima de efervescência política que existia naquele momento. A

sociedade brasileira tentava acordar de anos de regime de exceção e, na área de Saúde,

tomavam força as articulações para dotar o país de uma Política de Saúde voltada para os

interesses da população.

Na transcrição do debate que se seguiu à palestra de Basaglia no Hospital das Clínicas

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1979, aparece a fala de um

participante da platéia, não identificado, que, manifestando-se em nome do “movimento dos

profissionais do Rio” (BASAGLIA, 1982, p. 121), traça o quadro em que se encontrava a luta

naquele momento e anuncia os seus próximos passos. Denuncia o modelo assistencial

cronificador, hospitalocêntrico. Relata a realização, durante o V Congresso Brasileiro de

Psiquiatria, em Camboriú, de uma Assembléia de Profissionais de Saúde Mental do Brasil,

onde foram condenadas as péssimas condições de trabalho e também o modelo assistencial.

Finalizando, cita as decisões de caráter organizativo que saíram de Camboriú, que foram a

criação de um banco de dados a respeito dos acontecimentos na área, e a realização do

Encontro Nacional de Profissionais de Saúde Mental, em São Paulo.

Estavam sendo dados, desta forma, alguns passos do movimento que teria fundamental

importância para a Saúde Mental no Brasil.

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O trabalho de Basaglia e a mobilização que provocou fez surgir uma lei que passou a

orientar o trabalho em Saúde Mental na Itália. Trata-se da Lei 180, de 13 de maio de 1978,

que ficou conhecida como “Lei Basaglia”. O texto da lei estabelece critérios para a internação

involuntária, que na Itália recebe o nome de “tratamento sanitário obrigatório”. Os

procedimentos devem ser comunicados à autoridade jurídica em 48 horas. A lei determina que

o tratamento em Saúde Mental será feito prioritariamente em ambiente extra-hospitalar.

A obra de Michel Foucault é uma influência determinante, no Brasil, para a crítica à

psiquiatria reducionista e suas práticas de exclusão. Por isso, tornou-se de grande importância

para a Reforma Psiquiátrica. Em 1975 Foucault esteve no Brasil para uma série de

conferências e “influencia até hoje os rumos da implementação das novas formas de cuidar

em psiquiatria” (SÁVIO, 2003, p. 4). De interesse maior para nós é o livro “História da

Loucura na Idade Clássica” (Cf. FOUCAULT, 1978). Nele, Foucault, depois de descrever “as

condições que possibilitaram a constituição do saber sobre a loucura, sua submissão à razão

[...]” (AMARANTE, 1995, p. 23), chega ao século XVIII, quando se instituiu o conceito de

doença mental, numa coroação do processo histórico de controle social dos desviantes. Em “A

Casa dos Loucos” (Cf. FOUCAULT, 1993), Foucault descreve o percurso da submissão da

loucura ao conhecimento, ao historiar como se deu a constituição dos saberes e sua

dominação sobre os objetos a serem conhecidos. Para Foucault, a

grande transformação dos procedimentos de saber acompanha as mutações essenciais das sociedades ocidentais: emergência de um poder político sob a forma do Estado, expansão das relações mercantis à escala do globo, estabelecimento das grandes técnicas de produção (FOUCAULT, 1993, p. 117).

Articularam-se, então, “formas de poder-e-de-saber, de poder-saber que funcionam e

se efetivam no nível da infra-estrutura” e que dão lugar à “relação de conhecimento sujeito-

objeto como nome do saber” (FOUCAULT, 1993, p. 117). Trata-se de uma norma

historicamente importante, segundo Foucault, porque vai tentar ser aplicada a tudo na

sociedade mercantilista e sob o poder estatal. O que escapa é definido como “doença, crime,

loucura” (FOUCAULT, 1993, p. 118). Estão em crise, no nosso tempo, segundo Foucault, os

ramos do saber encarregados do que foi definido negativamente: a medicina, a psiquiatria, a

justiça penal e a criminologia. Essa crise

coloca em questão o conhecimento, a forma de conhecimento, a norma sujeito-objeto. Interroga as relações entre as estruturas econômicas e políticas de nossa sociedade e o conhecimento, não em seus conteúdos falsos

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ou verdadeiros, mas em suas funções de poder-saber. Crise por conseqüência histórico política (FOUCAULT, 1993, p 118).

Vemos, aqui, uma indicação de por onde as propostas da Reforma Psiquiátrica

encontraram substrato socioeconômico para evoluir. Além da crise de financiamento do setor

saúde, inviabilizando a assistência em bases hospitalares dispendiosas, também a crise nos

modelos teóricos antes hegemônicos.

Foucault diz que a função científica nascente, primordial, do Hospital, foi a de um

lugar onde a doença podia e devia se manifestar de modo livre e claro para, então, ser

compreendida e talvez tratada. Depois que Pasteur descobriu a contaminação levada pelas

mãos dos médicos, essa função do Hospital decaiu. Mas não nos Hospitais Psiquiátricos:

no Hospital de Pasteur, a função 'produzir a verdade da doença' não parou de se atenuar. O médico produtor de verdade desaparece numa estrutura de conhecimento. De forma inversa, no hospital de Esquirol ou de Charcot, a função 'produção da verdade' se hipertrofia, se exalta em torno do personagem médico. E isso num jogo onde o que está em questão é o sobre-poder do médico (FOUCAULT, 1993, p. 122).

A hipótese de Foucault é que a crise da Psiquiatria começou quando ficou

demonstrado que Charcot “provocava” as crises histéricas que descrevia, à semelhança dos

médicos que Pasteur apontou como “transmissores das doenças que deviam curar”

(FOUCAULT, 1993, p. 123). Para Foucault, o ponto principal das crises da psiquiatria está no

questionamento do poder do psiquiatra: “Todas as grandes reformas, não só da prática

psiquiátrica mas do pensamento psiquiátrico, se situam em torno desta relação de poder; são

tentativas de deslocar a relação, mascará-la, eliminá-la e anulá-la” (FOUCAULT, 1993, p.

124).

Tentando perceber o que a antipsiquiatria trouxe de questionamento ao poder médico-

psiquiátrico, Foucault estabelece que “é precisamente a instituição como lugar, forma de

distribuição e mecanismo destas relações de poder, que a antipsiquiatria ataca” (FOUCAULT,

1993, p. 126). Especificando mais ainda o seu estudo a respeito das teorias e práticas que

tiveram como objetivo mudar radicalmente o panorama em vigor da psiquiatria no século XX,

Foucault subdivide o que chama de “diferentes formas da antipsiquiatria segundo sua

estratégia em relação a estes jogos do poder institucional” (FOUCAULT, 1993, p. 127):

-Szasz: escapar a eles segundo a forma de um contrato dual, livremente consentido por ambas

as partes.

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30

-Kingsley Hall: estabelecimento de um local privilegiado onde eles devam ser suspensos ou

rechaçados no caso de se reconstituírem.

-Cooper, no pavilhão 21: balizá-los um por um e destruí-los progressivamente, no interior de

uma instituição de tipo clássico.

-Basaglia, em Gorizia: ligá-los a outras relações de poder que, do exterior do asilo já puderam

determinar a segregação de um indivíduo como doente mental.

Esta classificação de Foucault é bastante instrutiva quando podemos pensá-la, hoje,

em termos do que está sendo feito na Rede de Atenção Psicossocial que tecemos. Desde o

questionamento dos Hospícios, passando pelos Ambulatórios, os CAPS e a Saúde Mental na

Atenção Básica, podemos perceber a influência, nas nossas práticas, que a subdivisão de

Foucault contempla. Balizamento de poderes, sua colocação em questão de modo permanente,

a discussão do poder da psiquiatria e a queda da sua hegemonia são temas do nosso cotidiano.

Mas, quando Foucault diz que a relação de poder é o dado primordial na prática psiquiátrica,

devemos estar atentos, para perceber que essa relação não se desfaz apenas com a entrada em

ação das diversas categorias profissionais da Saúde Mental.

A relação de poder (disciplina, controle, exclusão) está sempre sendo requisitada ao

aparelho de atendimento em Saúde Mental, e a crítica diária é a tarefa básica, para evitar a

repetição de velhas submissões ou a criação de novas. E qualquer profissional de saúde pode

exercer o papel repressor.

Foucault descreve com clareza o jogo de poder estabelecido na relação

ciência/loucura, para depois lançar um desafio que, segundo ele, as antipsiquiatrias tomaram

para si:

Sua loucura, nossa ciência permite que a chamemos doença e daí em diante, nós médicos estamos qualificados para intervir e diagnosticar uma loucura que lhe impede de ser um doente como os outros: você será então um doente mental (FOUCAULT, 1993, p. 127).

O desafio é: “[...] é possível que a produção da verdade da loucura possa efetuar-se em

formas que não são aquelas da relação de conhecimento?” (FOUCAULT, 1993, p. 128). Uma

interpretação possível para essas palavras de Foucault é que devemos procurar uma

abordagem da loucura sem os preconceitos de qualquer conhecimento prévio, estando abertos

para o devir-louco (Deleuze). Tarefa desafiadora, mas necessária.

Para que possamos ter uma avaliação clara do alcance e pretensão do que está

colocado como metas e diretrizes atuais da Reforma Psiquiátrica no Brasil, bem como do

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31

ponto de questionamento que alcançam as práticas comunitárias, vejamos o texto de Paulo

Amarante a respeito de Foucault:

O objeto de estudo de Foucault em História da Loucura é precisamente a rede de relações entre práticas, saberes e discursos que vêm fundar a psiquiatria. Os dispositivos disciplinares da prática médica psiquiátrica permitem um mascaramento da experiência trágica e cósmica da loucura, através de uma consciência crítica. Esta obra aponta para uma desnaturalização e desconstrução do caminho aprisionador da modernidade sobre a loucura, qual seja, aquele que submeteu a experiência radicalmente singular do enlouquecer a classificações e terapêuticas ditas científicas: submissão da singularidade à norma da razão e da verdade do olhar psiquiátrico, rede de biopoderes e disciplinas que conformam o controle social do louco (AMARANTE, 1995, p. 24).

O texto mostra o que está sendo tocado com as práticas de desinstitucionalização e as

ações comunitárias de Saúde Mental: estamos mexendo no imaginário a respeito do louco,

com séculos de duração. De saída, estamos tentando transgredir a lógica das relações de poder

que imperam na área da Saúde. Estamos, também, querendo devolver a experiência da

loucura para o campo do trágico, cujo conceito Nietzsche tão bem definiu, além de apontar a

vivência de horror que desperta nos menos habituados. Com isso, podemos compreender as

resistências que as práticas citadas despertam e a potencialidade de transformação social que

representam.

Para uma aproximação a respeito de como e em que medida Gilles Deleuze e Felix

Guattari influenciaram os profissionais de Saúde Mental no Brasil, no sentido de motivá-los

às práticas inovadoras, é preciso, sobretudo, partir da acirrada crítica que esses autores

desenvolveram a todo tipo de centralização. Desde a crítica da teoria de Édipo como

organizador do psiquismo humano, estão em questão todas as formações sociais que se

orientam pela referência identitária.

A abordagem da esquizofrenia como um limite alcançado nos capitalismos, a

compreensão do delírio como social-histórico e não pessoal-familiar, a dura crítica ao

familialismo da psicanálise e das técnicas de terapia familiar acomodadoras, tudo isso, e

muito mais, compõe um quadro teórico-prático estimulante. (Cf. DELEUZE, & GUATTARI,

1976). A instigação é para a procura de “linhas de fuga” coletivas a partir de cada

acontecimento-sintoma. Jamais o sintoma reduzido à sanha explicatória individualizante,

edipianizante, mas lançado no sentido do fenômeno social inerente e só invisível para quem

está com a visão encoberta por teorias reducionistas, suporte de ideologia. Portanto, Deleuze

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32

e Guattari abriram caminho para as ações de caráter coletivo onde, antes, na mesma situações,

existiam práticas apaziguadoras e sem alcance social.

Muitos profissionais de Saúde Mental tiveram suas possibilidades de prática com as

pessoas com diagnóstico psiquiátrico de psicose expandidas pelos textos de Deleuze e

Guattari. Não mais aceitar a captura por modelos teóricos adaptadores, mas estimular a

singularização e a problematização cada vez mais ampla do emergente: família, serviços de

saúde, redes de vizinhança, movimentos sociais - invenção de possibilidades. A prática da

Clínica Ampliada tem nas concepções de Deleuze e Guattari uma de suas bases.

A clínica “La Borde”, nos arredores de Paris, ainda existente, fundada, dentre outros,

por Guattari, teve importante influência em profissionais de Saúde Mental que, ou receberam

seus relatos ou lá fizeram estágio. Trata-se de um lugar de experimentação de práticas

terapêuticas e institucionais que durante muito tempo foram supervisionadas por Guattari.

A crítica aos centralismos levou Guattari a renegar os movimentos que se pretendem

revolucionários, mas apenas repetem as estruturas que dizem combater. Investiu, então, nos

movimentos horizontalizantes, criativos, disparadores de ações contagiantes, sem controle

central. ”Instaurar ligações laterais”, segundo Deleuze. (Cf. CARRILHO, 1976, p. 21). Com

isso, inspirou, por exemplo, as rádios livres na França, um exemplo de ação molecular

transformadora. O molecular - campo da singularidade, dos movimentos do desejo e da

diferença – opõe-se ao molar, das instituições, das formações hierarquizadas. Mas a ação

molecular não exclui o trabalho no campo molar. Apenas que é exigido, sempre, o olhar que

procura a fratura, a fenda, a contradição exposta em acontecimento gerador de transformação.

(Cf. GUATTARI & ROLNICK, 1986, p. 127).

Guattari também colaborou com a Rede Alternativas à Psiquiatria, da qual dá sua

visão num artigo do livro “A Revolução Molecular” (Cf. GUATTARI, 1981). Nele, reafirma

o caráter político e não apenas técnico das mudanças realmente necessárias no campo da

Saúde Mental. Adverte que as inovações técnicas “despolitizadas” levam a novas formas de

controle. Por isso, a proposta da Rede foi de que os profissionais de Saúde Mental se

colocassem como estimuladores e assessores dos movimentos populares de busca de novos

caminhos na área. Guattari cita o exemplo da Itália, com Basaglia, Giovanni Jervis e outros,

como práticas mais conseqüentes, visto que enraizadas no movimento popular. Referindo-se

ao trabalho que Jervis desenvolvia em Reggio Emilia, Guattari diz que:

não são mais apenas os muros do asilo que se tenta destruir, mas igualmente os muros do profissionalismo: a medicina mental aqui é feita diretamente com os membros do gueto, com os trabalhadores das fábricas, nos vilarejos,

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33

apoiando-se sobre “paraprofissionais” formados na prática (GUATTARI, 1981, p. 125).

Em nota, a tradutora do texto esclarece o termo “paraprofissionais”, cujo caráter

provisório as aspas anunciam: “Os paraprofissionais são membros da comunidade, ao lado

dos quais trabalham certas equipes de ‘saúde mental’ no sentido de reconhecer o poder

potencial da população, para autogerir a resolução de seus problemas” (GUATTARI, 1981, p.

127). Temos, mais uma vez, pistas para os trabalhos com Agentes Comunitários de Saúde e

com voluntários, que hoje estão sendo desenvolvidos no Brasil.

O conceito de Micropolítica (Cf. GUATTARI, & ROLNICK, 1986) desenvolvido por

Guattari, tem a grande utilidade de nos mostrar que, em cada ponto em que estejamos

situados, existe a possibilidade de atuação transformadora. Não há que esperar condições

favoráveis, nem sonhar com uma grande mudança que cada vez mais é adiada. Se o Poder se

instala e opera em cada desvão da sociedade, das relações interpessoais, familiares,

institucionais, todos esses são, portanto, locais de ação. Colocada no campo da Saúde Mental,

essa concepção ajuda a retirar o profissional da inércia, do adiamento ou da espera por dias

melhores, para agir num incitamento às ações afirmativas e alegres no dia de hoje. O termo

“Esquizoanálise” indica o trabalho de procurar de que modo funciona o nível molar, para

instalar máquinas de mudança. (Cf. CARRILHO, 1976, p 49).

Mesmo estando além das possibilidades de aprofundamento, aqui, é importante

assinalar a influência que tiveram entre nós os trabalhos de Erving Goffman, que especifica

os mecanismos de invalidação e mortificação das Instituições Totais e de Thomas Szasz, com

a crítica ao modelo psiquiátrico tradicional. Em Enrique Pichon-Rivière temos uma criativa

tentativa de articulação entre a psicanálise e o marxismo e uma união entre teoria e prática de

trabalhos com grupos. Deixou, juntamente com seus continuadores que vieram para o Brasil,

uma grande colaboração para a prática institucional em Saúde Mental.

3.1.2 Antecedentes históricos brasileiros.

De acordo com Heitor Resende, o aparecimento do louco enquanto problema de

desordem, portanto necessitando de providências repressivas, de acordo com a época, deu-se

de modo diferente na Europa e no Brasil. (Cf. RESENDE, 1987, p. 29). Na Europa, a

evolução do capitalismo, quebrando a ordem feudal, trouxe a necessidade de segregar as

pessoas que não se enquadravam no ideal daquele modo de produção. No Brasil, mesmo

numa sociedade ainda rural, modos de isolar os indesejáveis já estavam sendo articulados,

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34

após um longo período no qual os loucos podiam vagar a esmo, recebendo ajuda eventual da

caridade pública, desde que não violentos. Para esses, a força policial era o remédio. Depois

da abolição da escravatura, surgiu um contingente de desempregados aos quais o olhar do

controle administrativo associou os loucos e os delinqüentes.

Socialmente ignorada por quase trezentos anos, a loucura acorda, indisfarçavelmente notória, e vem engrossar as levas de vadios e desordeiros nas cidades, e será arrastada na rede comum da repressão à desordem, à mendicância, à ociosidade (RESENDE, 1987, p. 35).

Estava criada, no Brasil, situação semelhante que, na Europa, séculos antes, levou à

grande onda de internações. Portanto, a base da exclusão estava dada e se materializou com a

criação dos Hospícios, com a ciência emergente tomando para si a tarefa de segregar.

Em 1852, o Imperador D. Pedro II inaugurou, no Rio de Janeiro, o primeiro hospício

do Brasil, que tomou seu nome: Hospício de Pedro II. Nos cem anos que se seguiram à

fundação do primeiro hospício no Brasil, nota-se a proliferação de muitos outros,

predominantemente nas capitais dos estados. Também surgiram as Colônias, nada mais que

hospícios situados em áreas rurais, seguindo a tendência de que a natureza por si só faria bem

às pessoas internadas, além do trabalho agrícola. Ao mesmo tempo, serviam para escoar os

inúmeros pacientes “crônicos” excedentes dos hospícios. No Rio de Janeiro foram construídas

duas Colônias, uma para mulheres, no Engenho de Dentro e outra para homens, em

Jacarepaguá. Posteriormente a denominação “Hospício de Pedro II” ficou com a instituição do

Engenho de Dentro.

A psiquiatria dominante, na época, era a de origem francesa, toda ela marcada pelo

organicismo, com forte acento na interpretação dos problemas mentais como decorrentes de

degenerações. Útil para o recolhimento de indesejáveis, o “diagnóstico” de “degenerado

atípico” constava em 90% das descrições dos internados. (RESENDE, 1987, p. 44).

Com a sua história brevemente resumida acima, a Internação Psiquiátrica no Brasil

produziu seus efeitos: no fim da década de 50, os Hospícios estão com lotação muito acima da

sua capacidade, como por exemplo, o Juqueri, em São Paulo, com quase 15 mil pessoas, ou o

São Pedro, em Porto Alegre, com 3.200 internos, quando as vagas eram 1.700. (RESENDE,

1987, p 54). Propostas de “[...] organização assistencial abrangente, ambulatórios, hospitais

abertos e atenção aos egressos [...]” (RESENDE, 1987, p. 54), como a de Ulysses

Pernambucano, na década de 30, eram isoladas e não aceitas.

Foi no quadro descrito acima que, em 1944, foi trabalhar no então chamado Centro

Psiquiátrico Nacional do Rio de Janeiro, a psiquiatra Nise da Silveira. Encontrou como

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35

práticas dominantes o eletrochoque, o coma insulínico e a lobotomia. (Cf. MUSEU DE

IMAGENS DO INCONSCIENTE, internet 1). Nise da Silveira conhecia a obra de Carl

Gustav Jung, o que proporcionou que levantasse questões incômodas para a época e ainda

para os dias em que vivemos: os sintomas e as produções do inconsciente das pessoas com

diagnósticos de psicose fazem sentido, caso se queira prestar atenção. De posse dessa

compreensão e de um profundo interesse pela pessoa a ser tratada, Nise organizou, em 1946,

o Serviço de Terapêutica Ocupacional no referido Hospício.

Utilizando técnicas de pintura, modelagem e xilogravura, Nise proporcionou aos

internos um oásis de humanidade e criatividade em meio à destruição do ambiente hospitalar.

Mostrou, com repercussão internacional, tendo como base as obras que os pacientes criavam,

que os métodos tradicionais da psiquiatria caracterizavam uma violência aniquiladora. Em

meio à incompreensão e falta de recursos, continuou com seu trabalho, já um verdadeiro

movimento, com diversos colaboradores. Viu surgir, dentre os internados, artistas cujas obras

estão entre as mais importantes do século XX no Brasil, como as de Fernando Diniz e Carlos

Pertuis.

São dela as palavras:

Sem a pintura seria pouco provável descobrir-se que no íntimo daquele homem de aspecto humilde e face à primeira vista impassível permanecessem guardadas secretas ambições nem que no seu mundo interno tivesse raízes uma árvore de intensas emoções (SILVEIRA, Internet 2).

Nise da Silveira não teve, no seu tempo de atuação, ação no sentido de mudanças

amplas na organização da Assistência à Saúde Mental. A época estava ainda longe disso. Mas,

com seu trabalho que indica a aproximação pessoal e artística com as pessoas com

diagnósticos de psicose, revolucionou, pelo exemplo, pelas publicações e pela organização do

Museu de Imagens do Inconsciente, a face da Saúde Mental no Brasil. Hoje, o antigo

“Hospício de Pedro II” tem o nome de “Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da

Silveira”.

O psiquiatra alagoano Luiz da Rocha Cerqueira, que teve sua formação médica e

psiquiátrica no Recife, na década de 30 (Cf. CERQUEIRA, 1984), é, pela sua obra e

tenacidade, um capítulo à parte na história da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Inconformado

com o que via lutando em períodos de grande dificuldade política, produziu textos que

abriram caminho para o atual pensamento a respeito da Saúde Mental, suas determinações

sociais e sua assistência. Ao mesmo tempo em que criticava o mercantilismo na área da

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36

Saúde, com textos políticos, mostrava, com minuciosas pesquisas, por exemplo, os dados

relativos a gastos com internações psiquiátricas, com o sistema ambulatorial, com o auxílio

doença. Pensou a formação de profissionais de saúde mental, as prioridades do atendimento, a

Terapia Ocupacional, as Emergências Psiquiátricas, a psiquiatria no Hospital Geral, dentre

muitos outros temas. Voltaremos ao trabalho de Luiz Cerqueira quando falarmos dos

primórdios da Saúde Mental Coletiva no Brasil.

Além das figuras públicas aqui nomeadas como precursores do movimento que

resultou na Reforma Psiquiátrica Brasileira, temos que destacar a importância de todos os

profissionais de Saúde Mental que, durante os tempos mais difíceis, ofereceram sua dedicação

e esforços no sentido de resistir ao autoritarismo político e institucional, ao lado de propor

mudanças no trabalho diário. Foram inúmeras as demissões e perseguições de profissionais

que não compactuavam com o que estava estabelecido. O somatório desses pontos de não

aceitação e proposição formou a massa crítica para o que veio a ser o movimento pela

mudança nos rumos da Assistência à Saúde Mental no país e a forma de conceber o que é

Saúde Mental.

3. 2 A Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Os autores consultados para a composição da cena em que se deu o início da Reforma

Psiquiátrica coincidem em localizar, no final da década de 70 e início da de 80, o período em

que os acontecimentos de precipitaram. É importante assinalar que o ambiente político era de

ditadura militar, com as liberdades democráticas não garantidas. A participação política,

portanto, era restrita ou impedida. O autoritarismo político se transferia para todas as

instituições, com dificuldade ou impossibilidade de debate. Este quadro facilitou a

implantação da chamada “indústria da loucura”, hospitais psiquiátricos particulares

conveniados com o poder público que atuavam praticamente sem barreiras. Sem eleições

diretas para Governadores dos Estados, os Hospitais Psiquiátricos Estaduais mantinham-se

com suas direções distantes da discussão política. Do mesmo modo, os Hospitais Psiquiátricos

Federais eram dirigidos por indicação superior, sem a participação das bases. Nas

Universidades, o quadro era semelhante: autoritarismo e resistência. Mas a insatisfação

fermentava na sociedade e nas Instituições de Saúde.

Paulo Amarante situa o “Início do movimento da reforma psiquiátrica” entre os anos

de 1978 e 1980. No seu modo de ver, “[...] o movimento da reforma psiquiátrica brasileira

tem como estopim o episódio que fica conhecido como a 'Crise da DINSAM'” (Divisão

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Nacional de Saúde Mental). (AMARANTE, 1995, p. 51). Em abril de 1978, um episódio de

denúncia de falta de condições humanas e de trabalho, no então já denominado Centro

Psiquiátrico Pedro II, o velho hospício do Engenho de Dentro, resultou em apoios políticos e

notícias na imprensa. Os principais pontos de denúncia e reivindicação eram: péssimas

condições de trabalho, falta de garantias trabalhistas, ameaças a profissionais e pacientes,

agressões, estupros, trabalho escravo.

O movimento associativo na área médica estava renascendo, e a situação culminou

numa greve, em abril de 1978, e na demissão de estagiários e profissionais. Ao invés de

enfraquecer o movimento, a greve foi um estímulo e logo estariam acontecendo reuniões em

diversos serviços e entidades de classe. Assembléias reuniam profissionais de diversas

categorias e representantes das entidades da área de saúde. Com essa mobilização surgiu o

Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), com a função de ser:

um espaço de luta não institucional [...] que aglutina informações, organiza encontros, reúne trabalhadores em saúde, associações de classe, bem como entidades e setores mais amplos da sociedade (AMARANTE, 1995, p. 52).

Aconteceu, então, um inédito estímulo à organização dos profissionais de Saúde

Mental no país, com repercussão nos serviços, entidades de classe, universidades.

Paulo Amarante resume os principais pontos de reivindicação e denúncias nos

diversos documentos elaborados pelo MTSM durante o ano de 1978: salariais, formação de

recursos humanos, relações entre instituição, clientela e profissionais, modelo médico-

assistencial e condições de atendimento. (Cf. AMARANTE, 1995, p. 53). Note-se que as

condições eram dramáticas no que diz respeito a todos os pontos, na época, mas a pauta ainda

é atual.

Como um precedente oficial, crítico às internações psiquiátricas, Pedro Gabriel

Delgado (Cf. DELGADO, 1987) se refere ao “Manual de Serviço para Assistência

Psiquiátrica”, do antigo INPS, de 1973 (O.S. 304.3/73). Assinalemos, também, que a chamada

“Lei Basaglia”, que deu sustentação legal ao trabalho da Psiquiatria Democrática Italiana, foi

aprovada em maio de 1978. (Cf. AMARANTE, 1995).

As condições (ou a falta de) da assistência à Saúde Mental eram semelhantes em todo

o país. Com a mobilização no Rio de Janeiro, confluíram para o V Congresso Brasileiro de

Psiquiatria, em Camboriú, em outubro de 1978, os movimentos que já estavam em andamento

em diversos estados. Realizado pela conservadora Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP),

o Congresso teve seu desenvolvimento politizado pela presença dos militantes do MTSM que,

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38

através da federada baiana da ABP, a Associação Psiquiátrica da Bahia, conseguiram marcar

posição na plenária final e aprovar resoluções que foram tiradas nas reuniões paralelas ao

evento. A privatização na área da saúde é denunciada, bem como a ausência de discussão

pública a respeito dos rumos da assistência à saúde. A universidade é criticada pela sua

adesão à lógica do mercado. A prática psiquiátrica em vigor é apontada como instrumento “de

controle e reprodução das desigualdades sociais” (AMARANTE, 1995, p. 54). No campo

político amplo, a plenária também se manifestou, com a bandeira de luta pela Anistia Ampla,

Geral e Irrestrita.

Numa demonstração da fertilidade do momento, ainda em outubro de 1978 realizou-

se, no Rio de Janeiro, o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições, que

lançava a instituição de formação em psicanálise, terapia de grupo e analistas institucionais, o

Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (IBRAPSI). Nele estiveram presentes

Basaglia, Guattari, Robert Castel, Goffman e outros nomes representantes do pensamento

crítico da área. (Cf. AMARANTE, 1995, p. 55). Revestido de uma aura de grande produção, o

Congresso movimentou ainda mais o ambiente.

Logo a seguir, em janeiro de 1979, acontece em São Paulo o I Encontro Nacional dos

Trabalhadores em Saúde Mental. É o movimento tomando corpo, aprofundando suas

discussões, organizando-se de modo autônomo. Nessa altura dos acontecimentos, o que estava

sendo colocado pelo MTSM, em resumo, era:

-A crítica ao modelo asilar em psiquiatria. -Pressão por solução política para a questão da orientação da assistência à saúde mental. -O movimento faz parte dos setores da sociedade que lutam pelas liberdades democráticas, pela Anistia, pela livre organização de trabalhadores e estudantes (AMARANTE, 1995, p. 55).

Apesar da grande repercussão, entre os profissionais de Saúde Mental, do que estava

acontecendo com a mobilização em torno no MTSM, a grande imprensa mantinha-se, em

geral, distante do que havia por detrás dos muros dos hospícios.

A censura à imprensa permanecia em vigor e era difícil vencer a barreira do silêncio.

Este quadro mudou durante e após o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, realizado em Belo

Horizonte, em novembro de 1979. O Congresso foi organizado pela Associação Mineira de

Psiquiatria, que já se colocava em adesão ao MTSM. (Cf. AMARANTE, 1995, p. 55).

Durante o evento, Basaglia foi visitar o grande hospício de Barbacena, sobre os quais recaíam

denúncias assustadoras de maus tratos, inclusive a respeito de venda de cadáveres de

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pacientes para faculdades de medicina. O relato emocionado de Basaglia, em palestra do

Congresso, repercutiu na imprensa e durante muitos dias foi para os grandes jornais do país a

situação dos hospitais psiquiátricos. Foi preciso um visitante estrangeiro, para romper o

bloqueio e expor o que estava escondido pelos muros dos hospícios, pela censura e pela

conivência.

Em 1980, em Salvador, realiza-se, paralelo ao VI Congresso Brasileiro de Psiquiatria,

o II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. A fragilidade da aproximação

entre a ABP e o MTSM, ocorrida em Camboriú, fica exposta nesse momento em que as

propostas do MTSM excedem em muito a posição mais que moderada da ABP. Continuam

em discussão no movimento os temas presentes nos encontros anteriores, com ênfase na

crítica ao “modelo assistencial como ineficiente, cronificador e estigmatizante”.

(AMARANTE, 1995, p. 56).

Paulo Amarante, ao especificar as características do Movimento dos Profissionais em

Saúde Mental, impulsionador importante da Reforma Psiquiátrica, no período que relatamos

aqui, diz que a forma de organização que tomou dispensava a institucionalização. Desse

modo, evitava-se a burocratização e mantinha-se a autonomia. Esta postura foi coerente com a

proposta de desinstitucionalização da assistência, um importante conceito do movimento. (Cf.

AMARANTE, 1995).

O MTSM cresceu, expandindo-se através das entidades das categorias profissionais

envolvidas, mas também em entidades fora da área médica. Teve adesão, por outro lado, de

usuários do sistema se saúde e seus familiares. Posteriormente, surge o Movimento da Luta

Antimanicomial, com as postulações do MTSM, porém coloca, mais claramente, a

perspectiva da abolição dos hospitais psiquiátricos. Devemos estar atentos para essa

possibilidade de trabalhar com a perspectiva de abolição total dos hospitais psiquiátricos. À

época, a bandeira de luta era tida como radical, mas hoje já está nas metas do Ministério da

Saúde. Porém, abolir os Hospitais Psiquiátricos não significa acabar com o procedimento

Internação Psiquiátrica, que pode sobreviver de outras formas, como por exemplo, nos

Hospitais Gerais. Voltaremos ao assunto, central em toda a discussão, mas, no horizonte,

temos que ter o fim da Internação Psiquiátrica, que se dará no momento em que a comunidade

souber lidar com os emergentes que até aqui foram excluídos.

Com o avanço da Abertura Democrática, no início da década de 80, “[...] o Estado

passa a incorporar os setores críticos da saúde mental [...]” e “os movimentos de trabalhadores

de saúde mental decidem, estrategicamente, atuar na ocupação do espaço que se apresenta nas

instituições públicas [...]” (AMARANTE, 1995, p. 58), com as propostas de criação de

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40

dispositivos de saúde mental extra-hospitalares, gestão democrática e trabalho em equipes

multidisciplinares. Mantinha-se a perspectiva de abolir os hospícios e a crítica ao lucro

extraído das ações de saúde.

A ocupação de cargos e funções no aparelho do Estado sempre foi um dilema para os

movimentos sociais e seus integrantes. Nas décadas de 80 e 90 surgiram as oportunidades de

tentar mudar, de dentro do aparelho estatal, a realidade da Assistência à Saúde Mental no

Brasil, e postos de direção foram preenchidos por integrantes do início do movimento ou que

receberam suas influências. Paulo Amarante define bem a situação:

A questão da estratégia de ocupação de cargos em órgãos estatais, como tática de mudança 'por dentro', ou indicador de cooptação das lideranças e do projeto de MTSM pelo Estado, a partir do advento da 'co-gestão', chega a dividir o movimento em duas facções, embora projetos como os da Colônia Juliano Moreira ou do Centro Psiquiátrico Pedro II tenham procurado equilibrar a direção e a militância das bases (AMARANTE, 1995, p. 58).

Equilibrar direção com militância nas bases, eis a questão.

O modelo de assistência implantado no Brasil, então, era curativista e privatizante.

Organizado pelos setores que se beneficiavam do regime de exceção, o modelo acabou por

levar os cofres públicos à penúria. E não por algum mau funcionamento do sistema, mas pelas

próprias características de um modelo que comprava serviços de particulares, pagando por

procedimento realizado com dinheiro público, e onde a fiscalização era ineficiente. Deu-se a

chamada “Crise da Previdência”, não apenas financeira, mas ética e de modelo de saúde. (Cf.

AMARANTE, 1995).

No início da década de 80 surge, para tentar aplacar a crise no setor, a “Co-gestão”, na

qual o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) passa a participar com custeio,

planejamento e avaliação das unidades hospitalares do Ministério da Saúde. A Co-gestão foi

uma oportunidade para a implantação de “uma política de saúde que tem como bases o

sistema público de prestação de serviços, a cooperação interinstitucional, a descentralização e

a regionalização, propostas defendidas pelos movimentos das reformas sanitária e

psiquiátrica” (AMARANTE, 1995, p. 58). Note-se que estamos nos primórdios da construção

do Sistema Único de Saúde. Com a Co-gestão, o MPAS deixa de comprar serviços ao

Ministério da Saúde, o pagamento por produção, e passa a atender de forma universalizada,

que será um dos princípios do SUS. Desta forma, há redirecionamento de recursos públicos

que estavam sendo usados, para pagar serviços prestados pelo setor privado.

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41

Os empresários da área de saúde, representados pela Federação Brasileira de Hospitais

(FBH), preocupados com a perda de receita que viria da evolução do que estava proposto na

Co-gestão, colocaram-se contra as novas diretrizes. Maurício Lougon, citado por Paulo

Amarante, diz que

o debate FBH versus Co-gestão traduz uma disputa de modelos de assistência: é a substituição de um modelo essencialmente privativista, pautado na relação atendimento/produção/lucro, por um modelo assistencial público eficiente (AMARANTE, 1995, p. 65).

O que estava acontecendo, naquele momento, no setor saúde, no Brasil, condizia com

a tendência global de reforma dos sistemas nacionais de saúde. Vemos numa nota do trabalho

“Estudo sobre o processo de reforma em saúde no Brasil”:

As reformas dos sistemas de saúde decorrem de uma conjuntura que produz custos crescentes [...] frente a uma redução da capacidade financeira dos estados nacionais e a quebra das bases de solidariedade criadas para a cobertura dos riscos clássicos, como a doença, por exemplo (VIANA, 1998 p. 6).

O município do Rio de Janeiro tem a característica de ter herdado, além do primeiro

hospício do Brasil, outras unidades psiquiátricas que vieram a fazer parte do Ministério da

Saúde. Com isso, a crise da DINSAM e a Co-gestão tiveram uma enorme incidência nesse

contexto. Por isso, quando a articulação entre os Ministérios da Saúde e da Previdência e

Assistência Social se efetivou em ações de gerenciamento e reorganização dos hospitais

psiquiátricos situados no Rio, técnicos que participavam do MTSM, ou que recebiam sua

influência, puderam participar desse momento de colocação em prática do que estava sendo

proposto pelo movimento.

A crise financeira do Estado e da Previdência se agrava e, em 1981, é criado o

Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), ligado ao

MPAS, que será o “primeiro plano de assistência médico-hospitalar a ser discutido mais

amplamente” (AMARANTE, 1995, p. 66). O chamado “Plano do CONASP” tem como

função reverter o modelo médico assistencial privatizante da Previdência e tem uma parte

dedicada à assistência psiquiátrica, o “Programa de Reorientação da Assistência Psiquiátrica

no âmbito da Previdência Social” (MPAS/CONASP), de 1982. Nessa altura dos

acontecimentos, influenciaram as resoluções do CONASP a experiência da Co-gestão e

algumas outras, realizadas em municípios e que seguiam os “princípios de integração,

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42

hierarquização, regionalização e descentralização do sistema de saúde” (AMARANTE, 1995,

p. 65).

Citando o “Programa de Reorientação da Assistência Psiquiátrica no âmbito da

Previdência Social”, de 1982, acima apontado, Pedro Gabriel mostra que desse texto constam

as seguintes diretrizes para um novo modelo assistencial:

a- ser predominantemente extra-hospitalar, b- ser exercida por equipe multidisciplinar, c- deve incluir-se numa estratégia de atenção primaria de saúde, ou seja:

1- ser regionalizada. 2- integrar-se a rede de serviços básicos de saúde da área programática. 3- integrar ao sistema ‘[...] recursos não estritamente psiquiátricos’ (generalistas treinados, por exemplo). 4- promover ações de prevenção e promoção de saúde mental.

5- ‘[...] disciplinar os mecanismos de encaminhamento, em uma estratégia global que se pode definir como a de evitar que o caos ou problemas sociais sejam erroneamente rotulados e tratados como doenças mentais’.

d- utilizar recursos ‘[...] intermediários entre o ambulatório e a internação integral’, como hospital-dia, hospital-noite, pré-internação, pensão e oficina protegidas. e- restringir a internação aos casos estritamente necessários. f- promover a implantação progressiva de pequenas unidades psiquiátricas em hospitais gerais (DELGADO 1987, p. 182).

Podemos observar que nesses seis itens está contida grande parte das orientações que

norteiam a Reforma Psiquiátrica até hoje. Existe uma ênfase na atuação da Saúde Mental nos

serviços básicos de saúde, apenas sendo necessário que se note, mais uma vez, ainda no

registro restrito da psiquiatria. Mas está colocada a diretriz: “incluir-se numa estratégia de

atenção primária de saúde”.

Curioso notar, a título de revisão histórica, que ao dizer que se deve “restringir a

internação aos casos estritamente necessários”, o relatório do CONASP ainda mantém um

lugar para a internação psiquiátrica, isto é, afirma o procedimento.

Politicamente, a FBH continuava articulando contra as mudanças, por demais

estatizantes para seu gosto. Também se colocavam críticos os setores organicistas da

psiquiatria, a ABP, setores universitários e os grupos com posturas psicologizantes.

A entrada de profissionais, ligados ou influenciados pelo MTSM, na administração

pública, principalmente nas funções de direção, continuou criando polêmica. De acordo com

Paulo Amarante, nessa altura dos fatos, o MTSM “[...] acaba por assumir um papel que se

pode definir como não mais que modernizante, ou tecnicista, ou ainda reformista, no sentido

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de operar reformas sem objetivar mudanças estruturais” (AMARANTE, 1995, p. 65). Trata-se

do velho problema, já apontado: equilibrar direção com militância nas bases. Permanecer no

movimento ou entrar para as instituições oficiais? Gostaria de ver essa discussão com suas

vertentes de necessidade de sobrevivência (política e pessoal) e de vaidades claramente

colocadas.

É interessante o resumo que Paulo Amarante faz das divergências que se clarificaram

na época. Uma “linha”, a chamada “institucional”, pretende proceder às reformas propostas

pelo movimento através da participação na administração pública. Outra, a “sindical”, atua

nas organizações dos trabalhadores. Paulo Amarante opina que a opção institucional “acaba

por confundir-se com o próprio Estado” [...] “comprometendo, assim, as suas próprias

bandeiras e projetos de origem” (AMARANTE, 1995, p 68). Já a linha sindical “também perde

os objetivos de uma real transformação da natureza da instituição psiquiátrica” (AMARANTE,

1995, p. 68), por passar a ver a luta dentro delas apenas como parte da luta mais geral pela

democratização do país, perdendo a especificidade do campo. Estamos, aqui, na eterna e ainda

não resolvida questão da unidade das forças que lutam por mudanças. Devemos aprender com

a História que, estando de acordo com os rumos principais, jamais podemos repetir divisões,

com base em detalhes secundários, que só nos enfraquecem.

A volta das eleições para Governadores dos estados foi mais um fator propiciante para

que, no meio da década de 80, muitos postos de direção em instituições, antes conduzidas por

representantes do conservadorismo, estivessem ocupados por militantes ligados ao MTSM. Já

na condição de participantes do poder público, organizam, em setembro de 1985, o “I

Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste”, em Vitória, no Espírito

Santo, já então discutindo as estratégias para “o desenvolvimento e fortalecimento das ações

no campo da saúde mental” (AMARANTE, 1995, p. 71). É traçado um diagnóstico mais claro

a respeito das condições da assistência à saúde mental, mas com a reafirmação do que havia

antes sido colocado pelo movimento: as internações psiquiátricas em hospitais privados

consomem a maior parte do dinheiro público gasto na área; a carência de recursos humanos

capacitados é patente; a desarticulação dos atores institucionais leva à ineficiência e gastos

sem controle.

Como estratégia, o movimento coloca em primeiro plano a redução do número de

leitos psiquiátricos (meta que continua hoje), com a sua substituição por dispositivos extra-

hospitalares. Quanto a esses dispositivos, naquele momento o que estava posto era: hospital-

dia, hospital-noite, pré-internações, lares abrigados, núcleos autogestionários. Propunha-se,

também, a internação em Hospitais Gerais. (AMARANTE, 1995, p. 71).

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Notemos que cada um desses recursos está, hoje, em atividade, com nomes mudados e

concepção mais articulada. O hospital-dia perdeu esse nome, por sua identidade com a

instituição a ser desmontada, e aí estão os Centros de Atenção Psicossocial. Os hospitais

psiquiátricos públicos adotam as enfermarias abertas, que abrigam as pessoas que lá viveram

longos períodos e não têm para onde ir. É o antigo hospital-noite. Os hospitais psiquiátricos

interessados em diminuir o tempo de permanência (número de dias de internação), organizam

as pré-internações. Os lares abrigados estão funcionando com o nome de Serviço Residencial

Terapêutico, com portaria e financiamento do Ministério da Saúde. E como “núcleos

autogestionários” podemos entender as diversas criações conjuntas de profissionais, usuários

e familiares, que são as cooperativas sociais, os clubes, as associações de usuários e

familiares, e muitas outras.

Chama a atenção o fato de estar fora das estratégias daquele momento o trabalho nas

comunidades, que entram não como local de possíveis ações de Saúde Mental, mas como um

dos atores na participação social na condução das políticas públicas de saúde. Assim, os

fatores considerados básicos, no “I Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região

Sudeste”, para o “fortalecimento efetivo do setor” são: “[...] os mecanismos de integração, de

participação comunitária, de unificação interinstitucional, de descentralização [...]”, “[...] de

controle, avaliação e informação” (AMARANTE, 1995, p. 72).

Em março de 1986, acontece a Oitava Conferência Nacional de Saúde, o passo

decisivo para as mudanças na área da Saúde no país. Além de reafirmar os princípios para um

sistema de saúde público, universal, equânime, descentralizado e com controle da sociedade, a

sua organização trouxe para a cena a discussão e decisão institucional sobre a necessidade de

participação, na formulação e avaliação das políticas de saúde, dos movimentos populares,

sindicatos, associações de moradores e de usuários, as igrejas, as associações profissionais,

enfim, a sociedade organizada. (AMARANTE, 1995, p 70).

Dando partida para a efetivação de uma das decisões da Oitava Conferência Nacional

de Saúde, a realização de conferências específicas, dentre as quais a de Saúde Mental, a

diretoria do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro toma a

iniciativa de organizar o I Encontro de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro, que se

realiza em outubro de 1986, uma espécie de pré-conferência estadual.

A I Conferência Estadual de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro ocorreu em

março de 1987, já com a participação de delegações do movimento social e de entidades de

profissionais. A convocação dessa conferência deu-se sem o aval do Ministério da Saúde, que

adiava a decisão de realizar a Conferência Nacional de Saúde Mental temendo o avanço da

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45

renovação que julgava radical. Nota-se uma luta de posições, com o movimento pressionando

agora com eventos amplos, de repercussão nacional, inclusive Conferências Estaduais e

Municipais.

O tema central da I Conferência Estadual de Saúde Mental do Estado do Rio de

Janeiro foi “a política nacional de saúde mental na reforma sanitária” (AMARANTE, 1995, p.

73), repercutindo, assim, no setor, o que estava em pauta após a Oitava Conferência Nacional

de Saúde. Houve grande participação de usuários e familiares, com alguns sendo eleitos como

delegados à Conferência Nacional de Saúde Mental.

As conclusões da I Conferência Estadual de Saúde Mental do Estado do Rio de

Janeiro reconhecem que “[...] a doença mental é fruto do processo de marginalização e

exclusão social”. (AMARANTE, 1995, p. 73). Polêmica em todos os sentidos, essa afirmação

é positiva por um lado, pois aponta para as determinações sociais do sofrimento mental,

politizando a questão. Por outro lado, reafirma o duvidoso conceito de “doença mental” e

pode sugerir que, ao serem resolvidas a exclusão e a marginalização, a tal “doença mental”

desapareceria. Mas as conclusões que a Conferência tira do tema são pertinentes e atuais,

como a necessidade do “resgate da cidadania”.

A Conferência segue em suas conclusões, apontando para o direito do cidadão ao

acesso irrestrito a todos os recursos para tratamento disponíveis, o que hoje está como uma

das prioridades da orientação na área. Novamente o movimento insere os temas das equipes

multidisciplinares, das condições de trabalho para as equipes, a necessidade de participação

da comunidade e da sociedade organizada na elaboração e controle das políticas públicas. (Cf.

AMARANTE, 1995, p. 74).

Na área mais ampla, da Política Nacional de Saúde Mental, as conclusões são as

seguintes:

[...] considera-se que a saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho não alienado, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra, e acesso a serviços de saúde. Reforça-se a necessidade de inserção, nos programas informativo-pedagógicos, de medidas que visem a promoção da saúde em geral. Quanto ao modelo assistencial, pretende-se a reversão da tendência hospitalocêntrica, por meio de atendimentos alternativos em saúde mental, tais como leitos psiquiátricos em hospitais gerais, hospital-dia, hospital-noite, pré-internações, lares protegidos, etc. Propõe-se ainda, a redução progressiva dos leitos manicomiais públicos e o não credenciamento de leitos privados, a hierarquização da rede assistencial e a expansão da rede ambulatorial, descentralizando e melhor capacitando tecnicamente, objetivando, assim, um poder de resolutividade mais eficiente (AMARANTE, 1995, p. 74).

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O documento mostra a continuidade do movimento de mudanças na Saúde Mental e a

crescente ampliação do leque de propostas, já então com responsabilidades de organização

dos serviços. Notamos que ainda não aparece nada em relação aos trabalhos que inserem

ações de saúde mental na comunidade.

Após a avaliação regional e nacional do movimento ter sido realizada em abril de

1987, no II Encontro de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste, em Barbacena,

Minas Gerais, acontece a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em junho de 1987, com a

participação de 176 delegados eleitos nas pré-conferências estaduais. (AMARANTE, 1995, p.

75). É interessante acompanhar o aumento do número de delegados nas próximas

Conferências, indicativo da crescente representatividade.

A I Conferência Nacional de Saúde Mental realiza-se em clima de aberto conflito

político, pois a Divisão Nacional de Saúde Mental, órgão do Ministério da Saúde encarregado

da Política de Saúde Mental e a Associação Brasileira de Psiquiatria - suposta representante

dos psiquiatras - organizadoras do evento, ameaçam abandoná-lo ao verem rejeitada pela

plenária inicial o regulamento da Conferência, visto que este a pretendia um encontro

meramente técnico. (Cf. AMARANTE, 1995, p. 80). Nesse momento, as correntes em disputa

dentro do movimento de transformação da Saúde Mental unem-se, tendo estado em atrito

devido à referida diferença de posição quanto ao modo de encaminhar as mudanças,

principalmente no que tange à ocupação do Aparelho de Estado.

Segundo Paulo Amarante, são as seguintes as principais recomendações da I

Conferência Nacional de Saúde Mental:

[...] a orientação de que os trabalhadores de saúde mental realizem esforços em conjunto com a sociedade civil, com o intuito não só de redirecionar as suas práticas (de lutar por melhores condições institucionais), mas também de combater a psiquiatrização do social, democratizando instituições e unidades de saúde; [...] a necessidade de participação da população, tanto na elaboração e implementação, quanto no nível decisório das políticas de saúde mental, e que o Estado reconheça os espaços não profissionais criados pelas comunidades visando a promoção da saúde mental; [...] a priorização de investimentos nos serviços extra-hospitalates e multiprofissionais como oposição à tendência hospitalocêntrica (AMARANTE, 1995, p. 75).

Já aparece, então, na I Conferência Nacional de Saúde Mental, uma referência a

trabalhos ou ações de saúde mental na comunidade, com a recomendação de que “[...] o

Estado reconheça os espaços não profissionais criados pelas comunidades visando à

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47

promoção da saúde mental” (AMARANTE, 1995, p. 75). Para além do fato de ser

contraditório pedir que o Estado reconheça espaços que se pretendem autônomos, ressalte-se

que algo já surge em uma reunião importante, de caráter nacional e de formulação de Políticas

de Saúde Mental, que aponta para a comunidade como sede de transformações.

Quanto aos fatos políticos do movimento, Paulo Amarante descreve como histórico

esse momento, devido a três fatores, além da aliança entre novos e antigos militantes:

-A renovação teórica e política do MTSM, -O início de um processo de distanciamento entre o Movimento e o Estado, -A aproximação do MTSM com as entidades de usuários e familiares (AMARANTE, 1995, p. 80).

Dentro da discussão acima, o MTSM avalia, durante a I Conferência Nacional de

Saúde Mental, que é preciso ter como estratégia principal “o desatrelamento do aparelho do

Estado, buscando formas independentes de organização e voltando-se [...] para a intervenção

na sociedade” (AMARANTE, 1995, p. 80). Assim, o lema “Por uma Sociedade sem

Manicômios” aponta para uma intervenção/provocação no âmbito sócio-cultural, ao colocar

no horizonte possível uma “utopia que pode demarcar um campo para a crítica das propostas

assistenciais em voga” (AMARANTE, 1995, p. 80).

No modo de ver de Paulo Amarante, a Reforma Psiquiátrica Brasileira toma, com as

novas decisões, o rumo da desinstitucionalização. Alcança, também, um patamar mais amplo

com as mudanças operadas nos campos técnico-assistencial, político-jurídico, teórico-

conceitual e sociocultural. A influência basagliana torna-se predominante agora, com a

“desinstitucionalização em sua dimensão mais propriamente antimanicomial” (AMARANTE,

1995, p. 76 e 79).

Domingos Sávio, ao listar os “[...] marcos iniciais paradigmáticos da Reforma

Psiquiátrica no Brasil”, aponta, como os dois primeiros, a “I Conferência Nacional de Saúde

Mental” e o “Encontro Nacional do Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental” (SÁVIO,

2003, p. 1), citado por Paulo Amarante como “II Congresso Nacional do MTSM”.

O II Congresso Nacional do MTSM aconteceu em Bauru, Estado de São Paulo, em

dezembro de 1987, com grande participação de técnicos, usuários e familiares, já com a tarefa

de “[...] construir opinião pública favorável à luta antimanicomial” (AMARANTE, 1995, p.

81). Nele, afirma-se a posição do movimento de que este deve ultrapassar as propostas de

transformação institucional, a limitação da crítica à psiquiatria, a aliança com o Estado, e

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48

partir para expandir para a sociedade a discussão da loucura, da exclusão, das condições de

vida. Com essa compreensão, o conceito de desinstitucionalização passa a primeiro plano.

Outro fator da maior importância no momento descrito é a entrada em cena das

associações de familiares e usuários, abrindo a perspectiva de ações conjuntas e multiplicando

o questionamento a respeito dos métodos criticados e das alternativas.

Com o movimento em franca expansão e com pessoas ligadas a ele ocupando postos

de direção em diversas instâncias governamentais, aumentam em número e em qualidade os

dispositivos alternativos à internação psiquiátrica.

A instalação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do país, em São

Paulo, em 1987, é um momento marcante na história da transformação da assistência à Saúde

Mental no Brasil. Esse CAPS leva o nome de “Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz

da Rocha Cerqueira”.

Constatada a falência do Hospital Psiquiátrico, enquanto instrumento de tratamento, as

atenções voltaram-se para o ambulatório de Saúde Mental, que logo mostraram sua pouca

eficácia quanto à abordagem dos quadros graves, na sua maioria psicoses. Rotineiro,

repetidor, não integrado à comunidade, burocrático, ainda centrado no modelo médico, pouco

interdisciplinar, não questionador da exclusão, o ambulatório não dava respostas à enorme

tarefa de substituir a internação psiquiátrica.

Em São Paulo, com a eleição direta para Governador de Estado, surgiu a oportunidade

de implantar um Programa de Saúde Mental de acordo com o que havia de avançado na

época, e com a proposta de substituir internações por outros procedimentos. Com a

regionalização da assistência, as pessoas que precisavam de atendimento em Saúde Mental

procuravam o que então se considerava o mais simples, os Centros de Saúde. Caso fosse

necessário, haveria o encaminhamento para os Ambulatórios especializados de Saúde Mental,

que já contavam com o ingresso de diversas categorias profissionais além da psiquiatria

(Psicologia, Serviço Social, Terapia Ocupacional). (Cf.GOLDBERG, 1996, p. 103). Mesmo

reconhecendo os avanços conseguidos, Jairo Goldberg vê, no que foi implantado, um sistema

que não rompe com a “figura cronificada de 'paciente'” (GOLDBERG, 1996, p. 105).

Começa a surgir, dada a não efetividade das consultas especializadas no atendimento à

psicose, e às resistências a lidar com a questão, o que depois veio a ser chamado de

ambulatório ampliado com oficinas terapêuticas. Isto é, uma modalidade de atendimento

intensivo, multidisciplinar, grupal, praticado no espaço físico do ambulatório ou Centro de

Saúde, lembrando o já conhecido hospital-dia.

A percepção da necessidade de um espaço próprio para a abordagem da psicose fez

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49

surgir o documento “O Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira –

Projeto Docente-Assistencial Multicêntrico”, que se propõe a “lidar com a psicose e suas

determinações de marginalização e cronificação nas vertentes de assistência, investigação e

formação de recursos humanos para a rede de prestadores de serviços de saúde”

(GOLDBERG, 1996, p. 111). O Projeto tomou corpo com a instalação, numa casa, de um

dispositivo que acolhia de modo diferenciado, com estímulo às relações interpessoais e

grupais e com “instâncias de escuta, de expressão verbal e não-verbal” (GOLDBERG, 1996,

p. 113).

O CAPS Luiz Cerqueira iniciou seu funcionamento em junho de 1987, no que foi o

disparador de um processo de multiplicação dessa modalidade de atendimento num ritmo que

mostra a adesão de profissionais e instâncias de governo, mas que ainda está aquém do

necessário para dar conta da demanda. Em 1997 já havia 176 CAPS e Núcleos de Atenção

Psicossocial (NAPS) no Brasil, chegando a 295 em 2001. (Cf. SÁVIO, 2003, p. 8).

Outro momento expressivo da Reforma Psiquiátrica no Brasil foi a intervenção da

Secretaria de Saúde do Município de Santos, São Paulo, numa instituição privada conveniada,

a Casa de Saúde Anchieta, em maio de 1989. Devido ao inédito da ação, à vontade política

implicada, aos confrontos jurídicos, às denúncias de maus tratos e aos desdobramentos em

termos de articulação de um Programa de Saúde Mental que se propunha totalmente

substitutivo ao modelo manicomial, o fato teve demorada repercussão nacional. Mesmo não

sendo modelo para repetições mecânicas, a intervenção em Santos mostrou-se como exemplo

de determinação política e de resultados.

Os NAPS, em Santos, foram os instrumentos de substituição das internações,

complementando o trabalho de transformação feito dentro do hospício. Os NAPS têm uma

estrutura diferenciada dos CAPS, por exemplo, por oferecer atendimento nas 24 horas.

Assemelha-se mais ao que foi implantado na Itália.

O ano de 1989 também foi marcado pelo início da tramitação no Congresso Nacional

do Projeto de Lei do Deputado Federal por Minas Gerais, Paulo Delgado, que estabelecia os

direitos dos pacientes psiquiátricos e postulava a extinção progressiva dos hospitais

psiquiátricos. Apesar do longo tempo que levou para ser aprovado, ou até mesmo por isso, o

Projeto motivou uma discussão inédita a respeito da loucura, do preconceito, dos métodos de

tratamento e suas alternativas. Fez surgir, também, diversas associações de usuários e

familiares e leis estaduais com o mesmo sentido do Projeto federal. (Cf. AMARANTE, 1995, p.

84).

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50

Domingos Sávio destaca como fatos importantes para a Reforma Psiquiátrica

Brasileira, na época que estamos percorrendo, fim da década de 80 e início da de 90, a

intervenção na Casa de Saúde Anchieta, em Santos, e a apresentação do Projeto do Deputado

Paulo Delgado, os dois fatos em 89, e a Declaração de Caracas, em 1990. (SÁVIO, 2003, p.

1).

Após os avanços políticos e de organização conseguidos na década de 80, no Brasil,

na área da Saúde Mental, acontece em Caracas, na Venezuela, em novembro de 1990, a

"Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica dentro dos Sistemas

Locais de Saúde". Essa reunião produziu um documento que resume o que era o

entendimento, naquele momento, a respeito de como deveriam ser conduzidas as Ações de

Saúde Mental. Trata-se de um documento com a chancela da Organização Mundial da Saúde e

da Organização Panamericana da Saúde. No preâmbulo, o texto final aprovado na

Conferência, que veio a ser conhecido como "Declaração de Caracas", critica a internação

psiquiátrica e a assistência psiquiátrica convencional. Numa afirmação decisiva para a área da

Saúde Mental, lembra, nas considerações, que

O Atendimento Primário de Saúde é a estratégia adotada pela Organização Mundial de Saúde e pela Organização Pan-Americana de Saúde e referendada pelos países membros para alcançar a meta de Saúde para Todos, no Ano 2000 (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 11).

Ressaltando que os Sistemas Locais de Saúde são os instrumentos para a efetivação da

meta de oferecer "[...] melhores condições para desenvolver programas baseados nas

necessidades da população de forma descentralizada, participativa e preventiva", a Declaração

recomenda que “[...] os Programas de Saúde Mental e Psiquiatria devem adaptar-se aos

princípios e orientações que fundamentam essas estratégias e os modelos de organização de

assistência à saúde" (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 11).

A parte do documento reservada às recomendações finais, sob a forma de declaração,

além de propor a quebra da hegemonia do hospital psiquiátrico como recurso preferencial e de

chamar a atenção para a necessidade de garantir os direitos humanos das pessoas assistidas

tem como seu primeiro ponto a recomendação de que

a reestruturação da atenção psiquiátrica ligada ao Atendimento Primário de Saúde e no quadro dos Sistemas Locais de Saúde, permite a promoção de modelos alternativos, centrados na comunidade e dentro de suas redes sociais (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 12).

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A Declaração de Caracas, ao lado de representar um avanço da OMS, é um documento

que aponta com clareza o trabalho nas comunidades e nos sistemas locais de saúde como o

campo onde as ações preferenciais de Saúde Mental devem ser executadas.

A substituição do Modelo Assistencial em Saúde Mental estava, no seu início, no que

diz respeito às práticas do dia a dia, centrado na transformação dos hospícios e na implantação

de equipes multidisciplinares ambulatoriais. Depois, como vimos acima, a introdução dos

NAPS e CAPS representou um passo decisivo na concepção e prática da atenção intensiva.

Outros dispositivos, alguns já praticados de modo não sistemático, foram incorporados ao

cotidiano de profissionais, usuários e familiares (lares abrigados, emergências psiquiátricas

em hospital geral, oficinas terapêuticas em ambulatórios ampliados, clubes e associações

autônomas).

Porém, o trabalho nas comunidades permaneceu, durante anos, afastado do centro das

discussões, apesar da recomendação explícita da OPAS e da OMS na Declaração de Caracas.

Faz parte dos objetivos dessa monografia, levantar a seqüência das práticas de Saúde Mental

ligadas à Atenção Básica, no Brasil, tentando perceber o que facilita e o que dificulta a sua

compreensão e execução, bem como seus resultados.

Em 1991, começaram a ser editadas, pelo Ministério da Saúde, portarias que

concretizavam, oficialmente, as mudanças que estavam em andamento nos serviços de Saúde

Mental. Estas portarias foram elaboradas já com a participação de pessoas ligadas ao

movimento de transformação da Saúde Mental, que nessa altura estavam em postos no

Ministério da Saúde.

A Portaria 189, de 19 de novembro de 1991, do Secretário Nacional de Assistência à

Saúde do Ministério da Saúde, define o financiamento para ações de Saúde Mental que já

estavam sendo praticadas sem esse incentivo. Além de alterar a normatização da Autorização

de Internação Hospitalar, inclui no Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA/SUS) os

seguintes procedimentos: atendimento em grupo, atendimento em CAPS e NAPS em um e

dois turnos, atendimento em Oficinas Terapêuticas, Visita Domiciliar e Psicodiagnóstico. A

importância desta e das outras portarias está no fato de alterar o financiamento em Saúde

Mental, de forma a adequá-lo à realidade da transformação em andamento. Conforme o

próprio comentário da publicação do Ministério da Saúde onde está a Portaria 189, “Política

pública de faz conhecer quando se define o seu financiamento” (BRASIL, MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2002, p. 55).

Nas diretrizes contidas no preâmbulo da histórica Portaria 224, de 29 de janeiro de

1992, nota-se a orientação do movimento de mudanças, presente na Coordenação de Saúde

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Mental do Departamento de Programas de Saúde da Secretaria Nacional de Assistência à

Saúde do Ministério da Saúde:

organização de serviços baseada nos princípios de universalidade, hierarquização; regionalização e integralidade das ações; diversidade de métodos e técnicas terapêuticas nos vários níveis de complexidade assistencial; multiprofissionalidade na prestação de serviços; ênfase na participação social desde a formulação das políticas de saúde mental até o controle de sua execução; definição dos órgãos gestores locais como responsáveis pela complementação da presente portaria normativa e pelo controle e avaliação dos serviços prestados (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 56).

A Portaria 224 “[...] regulamenta o funcionamento de todos os serviços de saúde

mental” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 64), e teve a grande importância de

definir, em linhas gerais, as ações dos CAPS e NAPS. Tentou, também, traçar normas para os

Hospitais Psiquiátricos, sempre de difícil fiscalização, e proibir práticas restritivas típicas

desses locais. O comentário à portaria chama a atenção para o fato político que ela

representou, ao “[...] ter sido aprovada pelo conjunto dos coordenadores/assessores de saúde

mental dos estados, para que, entendida como 'regra mínima', pudesse ser cumprida em todas

as regiões do País” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 64).

É importante assinalar que o que foi chamado de Movimento dos Trabalhadores em

Saúde Mental, no seu início, no fim da década de 70, já não pode mais ser, no fim da década

de 80 e início da de 90, visto como homogêneo, o que de fato nunca foi. Nem era essa a

pretensão. Em 1991, o movimento, isto é, o conjunto de profissionais, usuários e familiares

que postulavam e praticavam novas concepções a respeito do que se entende por “sofrimento

mental” e sua abordagem terapêutica, já é um conjunto complexo com várias tendências

políticas e linhas teóricas. Um dos méritos desse movimento foi encontrar a unidade na

prática. Cada linha teórica, seja do campo da psicologia, da psicanálise, seja das diversas

formas de compreender e trabalhar o social e o político, encontra meios de participar do

movimento em razão dos objetivos comuns.

A II Conferência Nacional de Saúde Mental acontece em Brasília, de 1 a 4 de

dezembro de 1992, após mobilização que contou com 150 conferências municipais ou

regionais e 24 Conferências Estaduais. A Conferência teve na sua Comissão Organizadora,

representantes das “[...] associações de usuários e familiares, conselhos da área de saúde,

prestadores de serviço, governos e entidades da sociedade civil” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,

1994, p. 7). Foram cerca de 20 mil pessoas envolvidas nas diversas etapas. O amplo debate

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prévio materializou-se, durante a Conferência, com a participação de usuários em todas as

atividades.

Segundo o Relatório Final, a Conferência teve como temas centrais a Rede de Atenção

em Saúde Mental, a transformação e cumprimento das leis e o direito à atenção e à cidadania.

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 9). Como poderemos perceber, mesmo tendo, na sua

Apresentação, uma marcada citação da Declaração de Caracas, apontada como sendo uma

“[...] referência fundamental para o processo de transformação do modelo de atenção à saúde

mental que se desenvolve no país” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 7), é esparsa e

mínima a alusão à entrada da Saúde Mental na Atenção Básica e nas comunidades. O termo

“Atenção Básica” não aparece no relatório.

A Conferência, dentro da sua posição política, afirma a necessidade da “[...]

democratização do Estado com controle da sociedade civil” [...] como “[...] fundamento do

direito à cidadania e da transformação da legislação de saúde mental” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 1994, p. 11).

A Conferência reafirma todos os postulados do movimento de transformação da Saúde

Mental dos últimos anos e traça diretrizes para a sua efetivação na prática. Veremos, a seguir,

dentro de um resumo das conclusões da Conferência, quais os pontos aprovados que têm

relação com o trabalho da Saúde Mental na Atenção Básica, deixando pistas, traçando rumos

ou marcando omissões, e alguns conceitos básicos que aparecem no texto do Relatório Final.

Nos “Marcos Conceituais”, estão indicados os conceitos que nortearam a Conferência:

Atenção Integral e Cidadania.

Define-se “Atenção Integral” como a concepção de atenção à saúde dentro dos

princípios da 8a. Conferência Nacional de Saúde, da Declaração de Caracas e da I

Conferência Nacional de Saúde Mental: visão integrada da complexidade da vida social,

dispositivos sanitários e socioculturais, universalidade, integralidade, eqüidade,

descentralização e participação. Aponta para a “[...] inserção da saúde mental nas ações gerais

de saúde” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 13). Ao citar os dispositivos da rede de

atenção que substituirá o modelo hospitalocêntrico, relaciona:

unidades de saúde mental em hospital geral, emergência psiquiátrica em pronto-socorro geral, unidades de atenção intensiva em saúde mental em regime de hospital-dia, centros de atenção psicossocial, serviços territoriais que funcionem 24 horas, pensões protegidas, lares abrigados, centros de convivência, cooperativas de trabalho e outros serviços que tenham como princípio a integralidade do cidadão (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 13).

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54

Note-se que não há menção de trabalhos diretos com as comunidades.

Um conceito que tem forte presença no Relatório Final é o de “desinstitucionalização”.

Em artigo publicado em 1986, Franco Rotelli e outros esboçam a definição de

desinstitucionalização como:

o processo social complexo que tende a mobilizar como atores os sujeitos sociais envolvidos, que tende a transformar as relações de poder entre os pacientes e as instituições, que tende a produzir estruturas de Saúde Mental que substituam inteiramente a internação no Hospital Psiquiátrico [...] (ROTELLI, 2001, p. 18).

Rotelli adverte para a distinção entre desinstitucionalização e desospitalização. Esta,

apenas retira as pessoas de dentro dos Hospitais Psiquiátricos, sem proporcionar uma rede de

atenção que os substitua e sem criar uma alteração na forma da sociedade lidar com o

“problema mental”. Para situar precisamente o que seu grupo italiano pratica como

desinstitucionalização, Rotelli diz que esta não se limita à desospitalização nem ao “intento de

renovar a capacidade terapêutica da Psiquiatria, liberando-a das suas funções arcaicas de

controle social, coação e segregação” (ROTELLI, 2001, p. 19). Igualmente não se destina ao

que “[...] para os grupos de técnicos e políticos radicais [...] simbolizava a perspectiva de

abolição de todas as instituições de controle social” (ROTELLI, 2001, p. 19), nem com um

“programa de racionalização financeira e administrativa, sinônimo de redução de leitos

hospitalares e uma das primeiras operações conseqüentes da crise fiscal” (ROTELLI, 2001, p.

19).

Rotelli afirma que a psiquiatria tradicional parte de uma concepção que a leva a

encarar o seu campo, sempre referido ao conceito de doença, dentro do esquema simplificador

problema-solução. O problema é a doença mental, a solução é o tratamento segregador.

Rotelli pretende trazer para a discussão e para a prática toda a complexidade, antes ocultada.

Ao não entrar na discussão teórica de etiologia dos transtornos mentais, quer, de saída, “[...]

desmontar a solução institucional existente para desmontar (e remontar) o problema”

(ROTELLI, 2001, p. 29). Então,

a terapia não é mais entendida como a perseguição da solução-cura, mas como um conjunto complexo, e também cotidiano e elementar, de estratégias indiretas e mediatas que enfrentam o problema em questão através de um percurso crítico sobre os modos de ser do próprio tratamento (ROTELLI, 2001, p. 29).

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Marcando mais ainda sua posição a respeito de uma outra forma de encarar o

fenômeno do sofrimento mental, Rotelli diz que:

se o objeto ao invés de ser 'a doença' torna-se 'a existência sofrimento dos pacientes', e sua relação com o corpo social, então desinstitucionalização será o processo crítico-prático para a reorientação de todos os elementos constitutivos da instituição para este objeto bastante diferente do anterior (ROTELLI, 2001, p. 30).

Ressaltando o papel do técnico em Saúde Mental no processo de

desinstitucionalização, Rotelli mostra que estes “[...] ativam toda a rede de relações que

estruturam o sistema de ação institucional e dinamizam as competências, os poderes, os

interesses, as demandas sociais etc [...]” (ROTELLI, 2001, p. 31). Esta postura do técnico é

muito diferente da criticada no artigo, em que Rotelli diz que:

os diversos tipos codificados de 'terapia' (médica, psicológica, psicoterapêutica, psicofarmacológica, social, etc...) são considerados como momentos também importantes, mas redutivos e parciais, sobretudo se isolados e codificados. Por isso trata-se de demolir a compartimentalização entre estas tipologias de intervenção (ROTELLI, 2001, p. 46).

Mais adiante, Rotelli diz que a abordagem, que tem como ponto central a “doença”, vê

hospitais e ambulatórios como referência (Cf. ROTELLI, 2001). Ao mudar o paradigma para

a desinstitucionalização, a relação passa a ser como território, outro conceito que aparece no

texto do Relatório Final na II Conferência Nacional de Saúde Mental, como veremos mais

adiante.

Nota-se, no texto de Rotelli, uma preocupação constante em conseguir um novo

estatuto para a psiquiatria, desta vez com inserção no movimento social, e assumindo

integralmente sua função política. No bojo dessa intenção, Rotelli constrói uma articulação

estreita entre teoria e prática da maior importância para nós. (ROTELLI, 2001).

No Relatório Final da II Conferência, é marcante a importância que é dada aos

movimentos sociais, enquanto protagonistas dos avanços que se pretende na abordagem à

questão do sofrimento mental, tanto na sua determinação quanto na articulação da rede de

atenção.(Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE).

Em “Da Cidadania”, a Conferência se posiciona, mais uma vez, politicamente,

assinalando que:

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a luta pela cidadania das pessoas com transtornos mentais, ou assim consideradas, não deve estar desvinculada do conjunto de esforços desenvolvidos pelo povo brasileiro na luta por sua cidadania, envolvendo todas as instituições sociais, unindo os profissionais, usuários e familiares (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 19).

No mesmo capítulo, as conclusões apontam para trabalho nas comunidades:

O trabalho de saúde mental na comunidade deve ser voltado para o envolvimento das pessoas, num processo de organização crescente, de modo a que possam, cada vez mais, influir diretamente nas questões que lhes digam respeito (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 19).

Notamos, no trecho acima, que há uma preocupação da Conferência com a

participação da comunidade, tanto no que se refere a estimular a participação e luta pela

cidadania, quanto pelo aspecto de controle do Sistema de Saúde e definição de seus rumos. O

que ainda não aparece é a comunidade como local de intervenção em Saúde Mental. O item

citado a seguir é um exemplo dessa postura: “Estimular a organização dos cidadãos em

associações comunitárias, onde serão debatidos os problemas de saúde mental e

encaminhadas as propostas aos conselhos municipais de saúde” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,

1994, p. 19). Ao lado de mostrar a importância da participação da comunidade, não há diretriz

que a defina como local de intervenção direta, contrastando com a proposta de

desinstitucionalização. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE).

Na Segunda Parte do relatório, que trata das “Recomendações Gerais” a respeito da

“Atenção à Saúde Mental e Municipalização”, há a indicação de “Adotar os conceitos de

território e responsabilidade, como forma de dar à distritalização em saúde mental um caráter

de ruptura com o modelo hospitalocêntrico [...]” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 22).

Os conceitos de território e de responsabilidade são importantes para os dispositivos

que a Reforma Psiquiátrica está implantando e podem mesmo ser parâmetros de aferição da

propriedade ou impropriedade das ações.

André Luis Duval Milagres, numa nota de seu artigo sobre os “Serviços Residenciais

Terapêuticos”, cita Pedro Gabriel, o qual diz que “[...] território não é o bairro de domicílio do

sujeito, mas o conjunto de referências sócio-culturais e econômicas que desenham a moldura

de seu cotidiano, de seu projeto de vida, de sua inserção no mundo”. (MILAGRES, 2003, p.

122).

O conceito de responsabilidade vem da tradução do italiano presa in carico, por vezes

também traduzida por “tomar encargo”, segundo a nota da tradutora do artigo de Franco

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Rotelli “Desinstitucionalização, uma outra via. A Reforma Psiquiátrica Italiana no Contexto

da Europa Ocidental e dos Países Avançados”, que esclarece:

cabe ressaltar que esta expressão se constitui numa premissa fundamental na organização dos serviços territoriais e significa 'fazer-se responsável', isto é, a impossibilidade de delegar a uma outra estrutura a assistência à população da região de referência (ROTELLI, 2001, p. 34).

No capítulo “Financiamento”, já aparece a preocupação de redirecionar recursos das

internações psiquiátricas para a rede extra-hospitalar. Ao relacionar os componentes desta

rede, aparece uma referência à “saúde mental na rede geral de saúde pública, com unidades

básicas de saúde/centros de saúde; centros de convivência, oficinas terapêuticas e

cooperativas [...]” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 28), dentre os outros dispositivos que

vêm sendo citados.

No capítulo “Gerenciamento”, aparece uma indicação de “Constituir equipes

itinerantes que atuem na comunidade, nas áreas urbana e rural, como alternativa para a

organização de serviços municipais”. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 32). Esta parece

ser a indicação mais clara de um caminho para o trabalho junto às comunidades, com a

característica de não localização e de organização.

No capítulo que trata “Dos Trabalhadores de Saúde, da Organização do Trabalho e da

Pesquisa”, surgem algumas indicações para o investimento em capacitação para as ações nas

comunidades. Assim, destacam-se os itens:

Enfatizar temas de saúde e trabalho e de atenção em saúde da criança, para as equipes de saúde dos sistemas locais. Dar prioridade à capacitação do médico generalista para atenção em saúde mental, principalmente em regiões onde a ampliação da equipe não seja viável a curto prazo. Recomendar à Universidade e demais órgãos formadores: a) processar profundas mudanças nas agências formadoras de trabalhadores de saúde, introduzindo temas de saúde mental sob a ótica de saúde coletiva [...] c) desenvolver programas de pós-graduação em saúde mental na perspectiva da saúde coletiva [...] d) criar projetos de extensão que possibilitem a formação de agentes comunitários urbanos e rurais. Formar e contratar agentes comunitários em saúde [...] (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 37 e 38).

Na parte dedicada aos “Direitos dos Usuários”, está recomendado

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58

Formar conselhos comunitários, com a cooperação do Ministério Público, que terão por função principal assistir, auxiliar e orientar as famílias, de modo a garantir a integração social e familiar dos usuários (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994, p. 55).

As conclusões da II Conferência Nacional de Saúde Mental tornaram-se as diretrizes

que passaram a nortear a luta pelas efetivas mudanças na área da Saúde Mental, tendo servido,

também, como um documento de persuasão nos municípios para que assumissem suas

responsabilidades.

A década de 90 foi marcada pela atuação institucional, nos níveis federal, estadual e

municipal, de milhares de profissionais de Saúde Mental que adotaram o ideário da Reforma

Psiquiátrica. Os profissionais, usuários e familiares, nos estados e municípios, fizeram surgir e

se firmar os Programas de Saúde Mental. Os concursos públicos, aos poucos, passaram a

inserir temas da Reforma Psiquiátrica, tendo, com isso, começado a afetar a formação,

divulgado os conceitos e levado, para a prática, profissionais ao menos informados a respeito

do que se pretende de avanço na área. A criatividade nos serviços tem produzido

diversificação e multiplicação das ações em Saúde Mental.

Uma mostra da atração que tem exercido a Reforma Psiquiátrica é a importante

produção acadêmica sobre o tema, não só de textos sobre a Reforma em si, mas muitos

abordando a clínica, a política e uma grande diversidade de aspectos singulares. Por outro

lado, a tendência à repetição do modelo que se quer substituir está sempre presente, com

alguns serviços burocratizando-se e perdendo a potencialidade transformadora.

A Reforma Psiquiátrica começou como um movimento e pretende continuar a sê-lo.

Quando fazemos um apanhado histórico, como aqui, vemos que a evolução dos

acontecimentos é favorável. Mas, no dia a dia, as tentativas de mudança esbarram com

problemas que tornam lentas as modificações. Os entraves são de diversas ordens: falta de

politização e de capacitação de profissionais, com adesão consciente ou não ao modelo

manicomial; choque com interesses políticos locais; inércia administrativo-burocrática; baixa

capacitação dos novos gestores; falta de compreensão das administrações para a questão da

Saúde Mental; dificuldades nas políticas públicas necessariamente parceiras da Saúde Mental

e, talvez, principalmente, os problemas ligados ao financiamento do Sistema Único de Saúde.

No plano da legislação, durante a década de 90, alguns estados editaram suas leis da

Reforma Psiquiátrica, adiantando-se à legislação nacional, em lenta tramitação. No Ministério

da Saúde, as portarias contemplaram a eterna e difícil tarefa de regulamentar e fiscalizar os

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Hospitais Psiquiátricos, a assistência farmacêutica, o financiamento do Serviço Residencial

Terapêutico, este último já no ano 2000.

Em abril de 1999, Pedro Gabriel Delgado assumiu a Assessoria de Saúde Mental da

Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, junto com uma Equipe que, ao

lado dos Coordenadores Municipais de Saúde Mental, deram um impulso até então inédito na

organização da Assistência à Saúde Mental no estado. O diagnóstico da situação encontrada,

as prioridades e o início das ações da nova Assessoria estão no trabalho “A política de saúde

mental do estado do Rio de Janeiro: uma descrição preliminar”, de Pedro Gabriel Godinho

Delgado e Maria Paula Cerqueira Gomes. (Cf. DELGADO & GOMES, 2000).

Definindo a Política Estadual de Saúde Mental como de “[...] reorientação do modelo

assistencial hospitalocêntrico, criando uma rede de serviços de pequena e média

complexidade para atendimento psicossocial com base territorial” (DELGADO & GOMES,

2000, p. 18), o trabalho citado acima lista os

[...] dispositivos estratégicos para a Reforma Psiquiátrica [...] Serviços de Atenção Diária (Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, Núcleos de Atenção Psicossocial – NAPS, Hospital-Dia, HD), Unidades Psiquiátricas em Hospital Geral (UPHG), ambulatórios, serviços residenciais terapêuticos, trabalho protegido, programas de lazer, ações de apoio social e promoção de direitos (DELGADO & GOMES, 2000, p. 18).

Chama a atenção a falta, nessa lista, das ações de Saúde Mental na Atenção Básica,

que, na época, já contava com alguns trabalhos em andamento no país.

Num gráfico a respeito da “Saúde Mental no Território”, na página 22 do trabalho

citado de Pedro Gabriel e Paula Cerqueira, aparece, aí sim, a “Rede Básica de Saúde – PSF”,

entre os dispositivos citados acima. O gráfico tem o “Serviço-Dia” como centro. (Cf.

DELGADO & GOMES, 2000). Desta forma, as ações de Saúde Mental na Atenção Básica

são listadas como possibilidade, mas sem prioridade estratégica. Prioridade é decisão política,

com os objetivos podendo ser alcançados através de diversos caminhos. A eleição dos CAPS

como prioridade é válida mas, se outros caminhos não são apontados com firmeza, traz um

problema: a necessidade de convencimento dos gestores municipais de que devem investir em

uma casa, material para colocá-la em funcionamento, pessoal, antes que a remuneração

comece. Temos visto municípios esperando o CAPS, como se só com a sua colocação em

funcionamento, teria início um bom trabalho em Saúde Mental. Quanto ao trabalho com a

Atenção Básica, não há necessidade de construção, aluguel, instalação. Além da Equipe de

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Saúde Mental, a base de que precisamos para o trabalho já está alocada: a equipe do Programa

de Saúde da Família e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde.

Como ações estratégicas de trabalho, a Assessoria implantou o Colegiado de

Coordenadores Municipais de Saúde Mental, que se reúne mensalmente para troca de

informações e discussão geral. Foi também tomada a decisão, pela Secretaria de Estado de

Saúde e pela Comissão Intergestores Bipartite, de reorientação dos recursos das AIHs para o

sistema ambulatorial. (CIB 54). Como linhas de ação, foram eleitas: Padronização de

informações, Implantação dos CAPS, Programa de Educação Continuada para atendimento

psicossocial, Política de Medicamentos, Implantação dos Serviços Residenciais Terapêuticos,

Programa de Saúde Mental para crianças a adolescentes, Política intersetorial para

atendimento do usuário de drogas, Programa de atenção à população em situação de rua. (Cf.

DELGADO & GOMES, 2000, p. 19).

O diagnóstico da situação encontrada, relatada no trabalho que está sendo citado,

constatou que “[...] a assistência psiquiátrica pública no Estado do Rio de Janeiro ainda tem

como característica a hegemonia do dispositivo hospitalar e das longas internações”

(DELGADO & GOMES, 2000, p. 20). Constatou-se a falta de acompanhamento dos egressos

de internações e falhas na rede ambulatorial e na atenção diária. Naquele momento existiam

25 CAPS no estado, sendo 15 na Região Metropolitana e 10 no Interior. O trabalho coloca o

CAPS, como “[...] dispositivo estratégico, capaz de funcionar como centro articulador, em

uma lógica de rede, das instâncias de cuidados básicos em saúde [...]” (DELGADO &

GOMES, 2000, p. 21), o que é visto graficamente com a presença desse dispositivo no centro

dos recursos da rede de atenção psicossocial. O problema dessa definição do CAPS como

pólo articulador, repetimos, está em que ele só pode exercer tal função caso exista. O CAPS é

realmente estratégico, mas também o é prescindir dele, enquanto não se torna realidade,

praticando, então, as ações de atenção diária onde e como for possível.

Em maio de 2000, o Conselho Federal de Psicologia organizou, em Brasília, o Fórum

Nacional “Como Anda a Reforma Psiquiátrica Brasileira? Avaliação, Perspectivas e

Prioridades”. (Cf. VÁRIOS AUTORES, 2000). Reunindo uma significativa representação de

profissionais ligados desde o início à Reforma Psiquiátrica, novos militantes, familiares e

usuários dos serviços, representou um balanço importante e um momento para rearticulações.

Um consenso entre os participantes do Fórum foi o de que a Reforma Psiquiátrica

passava por um período de dificuldades quanto à velocidade das ações. Foi assinalado que

“[...] há praticamente três anos, não conseguimos descer do patamar dos sessenta mil leitos

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psiquiátricos no Brasil” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 15). Como fatores que impedem um

ritmo maior de queda dos leitos psiquiátricos, destacou-se a ação do “sindicato de

empresários”, organizados na Federação Brasileira de Hospitais e as “[...] forças corporativas

e profissionais reativas e reacionárias a um projeto de horizontalização das relações entre os

assistidos e os que assistem” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 15).

O Fórum estava sob o impacto da edição da Portaria 106, de 11/2/2000, que instituía o

Serviço Residencial Terapêutico. As críticas eram a respeito da não inclusão de pessoas que

têm família, mas são abandonados por elas, e pela demora da regulamentação da Portaria, que

só viria em 7/11/2000. (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 94). As respostas a

essas críticas mostravam que cabe aos Municípios partir para as ações práticas em Saúde

Mental, sem esperar pelo Ministério da Saúde.

Alfredo Schechtman, do Ministério da Saúde, após assinalar a fertilidade da primeira

metade da década de 90, quando a área de Saúde Mental do Ministério da Saúde era

coordenada por Domingos Sávio, lembra, dentre outras análises, que já existe em andamento

proposta de introdução da Saúde Mental no Programa de Saúde da Família e no Programa de

Agentes Comunitários de Saúde, por parte do Ministério.

David Capistrano Filho define a base da ação política em Saúde, citando a sua

experiência: “solidez dos apoios” [...] e “[...] amplitude das alianças [...]” (VÁRIOS

AUTORES, 2000, p. 23), sem que com isso deixe de ter claro que é necessário o conflito:

“Quando falo de falta de audácia de certos gestores progressistas é porque eles, na minha

opinião, evitam o conflito. Querem, a todo custo, ser algodão entre cristais. Não podem. Tem

que haver conflito” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 27).

Segundo David, há “dois grandes inimigos” da Reforma Psiquiátrica: “[...] o sindicato

dos donos de hospitais [...]” e “[...] um pensamento acadêmico, biologicista, reducionista [...]”

(VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 24). Mas, aponta “[...] problemas do nosso lado” [...] “uma

incompreensão ou uma idéia de não entender a reforma psiquiátrica como uma parte da

reforma sanitária” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 24). David também sugere que os

profissionais de Saúde Mental tenham menos timidez em abrir a discussão com a sociedade e

diz:

[...] quando mergulhamos a reforma psiquiátrica no caldo da reforma sanitária, temos que pensar a mudança de estratégia e de modelo assistencial que é o chamado Programa de Saúde da Família. Hoje em dia há mais de sete mil equipes de saúde da família no país. Essas sete mil equipes se responsabilizam por cerca de sete milhões de famílias, ou seja, mais ou menos trinta milhões de pessoas no país. Isso está avançando aceleradamente

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e chegando às regiões metropolitanas. Temos que introduzir os elementos de construção dos sistemas alternativos nos Programas de Saúde da Família (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 26).

Diversos participantes mostraram a necessidade de maior participação dos militantes

da Reforma Psiquiátrica nos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde e na fiscalização dos

hospitais psiquiátricos.

O Deputado Paulo Delgado diz que a Reforma Psiquiátrica não parou, apenas está

mais lenta, e que levaria a reivindicação de maior ação ao então Ministro da Saúde José Serra.

(Cf. VÁRIOS AUTORES, 2000).

Pedro Gabriel Delgado, naquele momento, ainda Assessor de Saúde Mental da

Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, antes de coordenar a Saúde

Mental do Ministério da Saúde, reconheceu que “[...] o movimento da reforma psiquiátrica no

Brasil vive um período de estagnação [...]” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 37), com “[...]

avanços localizados em alguns lugares, retrocessos extraordinários em lugares que haviam

avançado e existe uma desarticulação muito grande”. (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 37).

Pedro Gabriel informa que, no Estado do Rio de Janeiro, foi aprovada pela Comissão

Integestores Bipartite uma resolução que redireciona recursos das Interações Psiquiátricas

para a rede extra-hospitalar. Trata-se da Deliberação CIB-RJ N. º 54, de 14/03/2000, que

resolve:

Determinar que os recursos financeiros correspondentes à AIH tipo 5, dos pacientes que tiverem alta para encaminhamento aos Serviços Residenciais definidos nos termos da Portaria MS/GM nº 106, de 11 de fevereiro de 2000, sejam integralmente utilizados nos Serviços Residenciais Terapêuticos do município onde se localize o Hospital Psiquiátrico em que o paciente está internado, ou nos municípios de domicílio original do paciente de longa permanência. [...] Aprovar a utilização dos recursos dos tetos financeiros de Internação em Hospital Psiquiátrico para custear a implantação e funcionamento de Centros de Atenção Psicossocial e Oficinas Terapêuticas, definidos pela Portaria MS nº 224, de 29 de janeiro de 1992, segundo os limites financeiros e o cronograma de implantação e funcionamento discriminados no ANEXO II (Serviços Psiquiátricos Extra-hospitalares de Implantação e/ou Consolidação Prioritárias, até dezembro de 2000), e no ANEXO III (Serviços Integrantes da Rede Pública de Atendimento Psicossocial do Estado do Rio de Janeiro, a serem implantados até dezembro de 2001, por município e por custo) (COMISSÃO INTERGESTORES BIPARTITE, 2000).

A deliberação citada inaugura, na prática, o redirecionamento do dinheiro gasto com

internações psiquiátricas para a rede de atenção psicossocial, além de fechar os leitos que se

comprovarem ociosos.

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Pedro Gabriel adverte que, para que se intitular um dispositivo substitutivo às

internações psiquiátricas, um serviço ou ação de Saúde Mental deve proporcionar atenção

diária, com base no território:

Tem que ser um serviço de atenção diária ancorado no território. Acho que essa é uma questão teórica que temos que enfrentar. Através desse serviço de atenção diária, são articuladas propostas interessantes – é fundamental que entrem na agenda do movimento – relativas ao PSF – Programa de Saúde da Família (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 39).

Pedro Gabriel conclui sua fala dizendo que “[...] a relativa paralisia da reforma deve-

se, também, a uma forma que me parece pouco eficaz do movimento social que sustenta a

reforma [...]” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 39) e que “[...] talvez nós tenhamos que modificar

a nossa estratégia de lidar com o Estado” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 40).

Muitos participantes se manifestaram para afirmar a necessidade de estados e,

principalmente, os municípios, assumirem as suas responsabilidades com as ações da Reforma

Psiquiátrica. (Cf. VÁRIOS AUTORES).

Outras intervenções apontaram para o trabalho na Atenção Básica, como a de

Fernando da Cunha Ramos, que disse da “[...] importância de se utilizar, entre outras coisas,

recursos previstos e disponíveis no SUS, como os Programas de Saúde da Família e de

Agentes Comunitários de Saúde” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 45) e a de Gisele Bahia, que

opina que

Se consideramos que, hoje, o Ministério da Saúde propõe a saúde da família como um eixo estruturante para a reformulação do modelo e que na proposta da saúde da família todos os moradores de uma região são cadastrados, visitados e acompanhados, e essas equipes se responsabilizam por esse território, parece-me que a integração de saúde mental com o projeto de saúde da família pode nos ajudar a conhecer a clientela, a impedir novas internações, a tratar dessas pessoas e, mais do que isso, a evitar o abandono do tratamento (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 53).

Isabel Cristina Lopes, da Associação SOS Saúde Mental, mandou um texto onde

informa que essa Associação promove a “[...] formação popular de agentes comunitários de

saúde mental” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p 68) e no qual afirma que “[...] a unidade básica

de saúde, como preconizada pela VIII Conferência Nacional de Saúde, carece ser recuperada

como espaço privilegiado para se fazer saúde mental” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 67).

Fernanda Nicácio toca num aspecto básico, que é o financiamento das ações em Saúde

Mental. Citando a máxima de Benedetto Saraceno, “o dinheiro segue o paciente”, pergunta:

Page 64: Saude mental na atencao basica

64

“[...] como podemos, efetivamente, enfrentar a questão de como uma parte dos recursos

destinados à AIH, hoje, passe para a mão dos usuários?” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 77).

Uma das críticas que se faz às Reformas na Saúde adverte que o principal, para elas, é

fazer economia dos custos do setor. De fato, o que foi feito do dinheiro que pagava

mensalmente, há anos, os trinta mil leitos que foram fechados? Se, antes, não estávamos

atentos para isso, agora não é mais possível perder essa fonte de financiamento.

O Deputado Marcos Rolim anuncia que, de 15 a 25 do mês seguinte ao Fórum,

portanto quinze dias depois deste, estará sendo realizada a Primeira Caravana de Direitos

Humanos, com ida aos Hospitais Psiquiátricos com mais denúncias, em oito estados. A

Caravana pretende “[...] que haja retomada do debate público a respeito das condições de

privação de liberdade no Brasil, na área psiquiátrica [...]” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p. 81).

O Deputado defende a idéia de “[...] abrir denúncias e acusações por tortura mental em alguns

manicômios e instituições psiquiátricas para se abrir uma nova disputa, que é processar

criminalmente os que submetem outros a sofrimento mental” (VÁRIOS AUTORES, 2000, p.

81).

A Primeira Caravana Nacional dos Direitos Humanos foi composta por Deputados

Federais, que, nos estados, nas visitas, se faziam acompanhar, de acordo com a ocasião, por

representantes de Conselhos e Sindicatos das categorias profissionais da área de saúde,

membros dos Conselhos Municipais de Saúde, Associações de usuários, Fóruns regionais de

Saúde Mental, Deputados Estaduais, Vereadores, representantes do Movimento da Luta

Antimanicomial, representantes da OAB, usuários do sistema, profissionais de Saúde Mental,

Promotores de Justiça, Coordenadores Municipais de Saúde Mental, ONGs. (Cf. PRIMEIRA

CARAVANA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS).

Iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a Caravana

teve como resultado apresentar uma amostra do que ainda acontece nos hospitais psiquiátricos

no país, criar o fato político e apresentar recomendações ao Ministério da Saúde. Foram

encontrados casos de clínicas que realizam psicocirurgia regularmente, uso generalizado de

eletrochoque, um número grande de pacientes cronificados, contenção mecânica fora das

recomendações técnicas, falta de Programa de Saúde Mental estadual e de rede de atenção

psicossocial, superlotação, abandono, relatos de violência, celas fortes, banho coletivo,

depositação de pacientes neurológicos.

A visita à Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, Estado do Rio de Janeiro, detectou

o seguinte quadro de tempo de internação: “até cinco meses - 203 pacientes, de 06 a 1 ano -

83 pacientes, de 01 a 05 anos - 474 pacientes, de 05 a 10 anos - 257 pacientes, mais de 10

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65

anos - 485 pacientes” (PRIMEIRA CARAVANA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS).

Este é o retrato dos resultados da psiquiatria organicista e do modelo manicomial. A Casa de

Saúde Dr. Eiras de Paracambi, hoje, está descredenciada do SUS, com seus pacientes sendo

encaminhados aos municípios pelo trabalho feito pela Assessoria de Saúde Mental do Estado

do Rio de Janeiro.

Nas recomendações ao Ministério da Saúde, a Caravana propõe, dentre outras

medidas, que seja acelerada a dinâmica da Reforma Psiquiátrica, com investimento da rede

substitutiva à internação, que seja convocada a III Conferência Nacional de Saúde Mental,

que seja restringido o uso do eletrochoque e abolida a psicocirurgia, que alguns hospitais

sejam descredenciados, que seja enfrentada a situação dos manicômios judiciários, que 50%

do valor que é pago nas Autorizações de Internação Hospitalar seja repassado aos pacientes e

famílias quando da alta. (Cf. PRIMEIRA CARAVANA NACIONAL DE DIREITOS

HUMANOS).

O ano de 2001 trouxe avanços políticos significativos para a Reforma Psiquiátrica

Brasileira e também na cena mundial da Saúde Mental. A Organização Mundial da Saúde

decidiu chamar a atenção para as condições de Saúde Mental e sua assistência durante o ano

2001: ao mesmo tempo em que lançava o lema “Não à exclusão, sim aos cuidados”,

determinou que o Dia Mundial da Saúde, naquele ano, seria dedicado à Saúde Mental. A

OMS levou à sua Assembléia Mundial da Saúde, em maio de 2001, o problema da Saúde

Mental, sob o ângulo “[...] da pobreza, da discriminação, dos problemas específicos de cada

sexo e dos direitos humanos” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2001). Nesse

momento, quem está na direção do Programa de Saúde Mental da OMS é Benedetto

Saraceno, que diz: “Nós sabemos o que não vai bem e temos as soluções. É nossa

responsabilidade insistir pelas mudanças de política e de atitude. É o nosso objetivo e o

atingiremos nos próximos anos” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2001).

Fato político marcante, em 2001, foi a aprovação pelo Congresso Nacional e a sanção,

pelo Presidente da República, da lei 10.216, a chamada “Lei Paulo Delgado”. Mostrando a

importância da pressão internacional, a Lei foi sancionada pelo Presidente em 6 de abril, um

dia antes do Dia Mundial da Saúde da OMS, dedicado à Saúde Mental. A lei, na sua

definição, “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos

mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” (BRASIL, MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2002, p. 15). Como bem assinala o “Comentário” do Ministério da Saúde, a respeito

da Lei, esta “[...] reflete o consenso possível sobre uma lei nacional para a reforma

psiquiátrica no Brasil” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 18). Este consenso foi

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66

conseguido após 12 anos de tramitação do Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado, de

Minas Gerais. Ao longo desse percurso, o projeto passou por mudanças e, se reflete o

momento em que vivemos, mostra que avançamos muito e que precisamos avançar mais,

muito mais.

A Lei 10.216 define uma série de diretos das pessoas portadoras de transtorno mental,

dentre eles o de “[...] ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde

mental” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 15). Como, no artigo 4, a Lei indica

que “A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos

extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002,

p. 16), depreende-se que o Poder Público está instado a dotar o SUS de meios para que a Lei

se cumpra: as pessoas têm o direito de terem tratamento em serviços comunitários e não em

internações psiquiátricas. Um avanço seria essa interpretação ser colocada de modo

absolutamente explícito.

A Lei 10.216 proíbe a internação em lugares de características asilares, determina que

deve ser desenvolvido programa de alta e reabilitação psicossocial para as pessoas há longo

tempo internadas, define e diferencia internações voluntárias, involuntárias e compulsórias.

Para as internações involuntárias, a Lei exige que, no prazo de setenta e duas horas, a mesma

seja comunicada ao Ministério Público Estadual, bem como as altas. (Cf. BRASIL,

MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).

A III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em Brasília, de 11 a 15 de

dezembro de 2001, aconteceu após intensa mobilização, que fez realizar 163 Conferências

Municipais, 173 Micro-regionais e Regionais, em todos os 27 estados da federação, com cerca

de 30 mil pessoas envolvidas. (Cf. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 15).

O material de divulgação da III Conferência Nacional de Saúde Mental traz um

pequeno texto definidor cuja primeira parte, “Cuidar, sim, excluir, não”, é o lema da

Organização Mundial da Saúde para o ano 2001. Na segunda parte, o texto resume os

propósitos atuais da Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde: “Efetivando a Reforma

Psiquiátrica com acesso, qualidade, humanização e controle social”. Com essa orientação, os

sub-temas da Conferência foram: financiamento, recursos humanos, controle social e

acessibilidade, direitos e cidadania.

A Conferência teve, como tema de um de seus Painéis, “Saúde Mental na Atenção

Básica”, revelando a maior importância que o assunto estava adquirindo.

No “Caderno de Textos” da Conferência (Cf. BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE,

2001 b.), a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica é citada em várias passagens e num

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item específico, com relatos de trabalhos em andamento. No capítulo III faremos referência a

esses textos.

Percorreremos, no Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental, os

“Princípios e Diretrizes” de cada subtema e citaremos os itens aprovados que têm relação com

as ações de Saúde Mental na Atenção Básica.

Sob o título de “Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde Mental”, a

Conferência reafirma os princípios do SUS e recomenda que “[...] as políticas de saúde

mental devem ter como pressupostos básicos a inclusão social e a habilitação da sociedade

para conviver com a diferença” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 23). Para isso,

indica que “[...] os municípios desenvolvam [...] políticas de saúde mental mediante a

implementação de uma rede de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, territorializados

e integrados à rede de saúde [...]” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 24). Assinale-se

com ênfase, que na “Apresentação” do Relatório Final, está colocado que a Conferência

elaborou “[...] propostas e estratégias para efetivar e consolidar um modelo de atenção em

saúde mental totalmente substitutivo ao manicomial” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002,

p. 19). Esta é uma definição que não deixa margem a dúvidas: estamos no caminho, agora

fazendo parte do discurso oficial, da extinção dos hospitais psiquiátricos. Mas, como vimos

em Foucault, os poderes têm artes sutis com efeitos violentos. Entendemos, assim, que não

basta acabar com a organização hospital psiquiátrico, mas também com a internação e a

exclusão em todas as suas formas. Estamos no ambiente da cultura e do imaginário social,

campos importantes de enfrentamento da questão. A definição oficial mostra o avanço que foi

obtido e uma posição definida.

A III Conferência Nacional de Saúde Mental progride significativamente, em relação à

II, quanto ao conteúdo das propostas que focalizam a Atenção Básica.

Dos itens aprovados no título “Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde

Mental” que tratam da Atenção Básica temos os que citaremos a seguir. Os números referem-

se à seqüência em que aparecem no Relatório Final.

12- Exigir que o Ministério da Saúde, governos estaduais e municipais incluam a saúde mental na NOAS como prioridade na atenção básica [...] 27- Garantir espaços de promoção de saúde mental, estimulando a criação de grupos de convivência e oficinas terapêuticas na comunidade... 84- Articular as ações de assistência, promoção, prevenção e reabilitação psicossocial mediante o desenvolvimento da atenção básica associada ao Programa de Saúde da Família, implementando uma rede de serviços territoriais de saúde mental, [...]

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89- Desenvolver a prática de cuidado domiciliar, em substituição ao cuidado hospitalar, como estratégia de enfrentamento das situações de crise dos portadores de sofrimento psíquico e seus familiares. 126- Estabelecer como porta de entrada da rede de saúde mental as Unidades Básicas de Saúde, preferencialmente por meio da estratégia do Programa de Saúde da Família (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 48).

Ainda dentro do título “Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde Mental”,

mostrando a importância que a Atenção Básica assumiu na III Conferência, há um item

específico para ela. O texto introdutório desse item, “Atenção Básica”, reafirma as

recomendações da Oitava Conferência Nacional de Saúde “[...] que indica a responsabilidade

da unidade básica por 80% das necessidades de saúde da população, incluindo atenção em

saúde mental” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 48). Dentro dessa ótica, para atender

ao Princípio da Integralidade, “[...] é necessário incluir a atenção aos portadores de sofrimento

psíquico nas ações básicas de saúde e, também, incorporar as ações de saúde mental no

Programa de Saúde da Família” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 48).

Podemos destacar os seguintes itens aprovados:

128- Defender a inclusão das ações de saúde mental no nível básico da atenção à saúde, no elenco de Ações e Programas exigidos pela NOAS/2001, para que os municípios sejam habilitados ao nível de gestão PAB Ampliado, de modo que sejam cumpridas as metas da OMS, quando, em sua recente Assembléia Mundial, em maio de 2001, deliberou pela ampliação dos cuidados em saúde mental na Atenção Básica à Saúde. 132- Introduzir o atendimento domiciliar na Rede de Assistência Básica. 134- Incluir, nas agendas municipais de saúde, a atenção à saúde mental, definindo elementos para compor o pacto de criação de indicadores da atenção básica. 135- Garantir maior resolubilidade e capacidade da Rede Básica de Atenção, com capacitação em saúde mental das equipes mínimas do PSF, garantindo a integralidade da atenção, dimensionando equipes especializadas de referência (para atendimento e assessoria) que podem ser específicas, ou aquelas dos serviços de saúde mental especializados já existentes. 136- Garantir a incorporação das ações de saúde mental no Programa de Saúde da Família, mediante oferta de ações mais locais por parte dos profissionais de Saúde da Família, tais como: visita domiciliar, potencialização de recursos comunitários, atendimentos em grupo e individuais, em articulação com os profissionais de saúde mental. 137- Garantir que cada município conte com atendimento e integração da assistência à saúde mental na rede básica (PACS/PSF/Centros de Saúde comunitários). 138- As equipes multiprofissionais de saúde mental que trabalham junto ao PSF atenderão prioritariamente aos casos graves e observarão a seguinte proporção para sua constituição: um profissional de saúde mental para cada duas equipes de Saúde da Família. 139- Promover a prevenção em saúde mental por meio da oferta de atividades para este fim (por exemplo: esportes comunitários, grupos de

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mães, oficinas de arte e de ofícios, grupos de apoio, lazer e outros), desenvolvidas preferencialmente por recursos comunitários, Saúde, PACS, PSF e comunidade. 140- Criar equipes volantes de saúde mental, capacitadas nos princípios da Reforma Psiquiátrica, que funcionem como referência às equipes do PSF e das Unidades Básicas de Saúde, de acordo com a necessidade epidemiológica de cada localidade ou para cada grupo de cinco equipes. 141- Garantir supervisão continuada no desenvolvimento do trabalho conjunto das equipes PACS/ PSF e Saúde Mental e, também, avaliar as ações de saúde mental executadas pelas equipes de Saúde da Família visto que o Programa é recente. 142- Implantar serviços de atendimento/internação domiciliar em saúde mental realizados por equipes itinerantes ou equipes do PACS/PSF. 143. Criar a ficha “B” de Saúde Mental no Sistema de Informação da Atenção Básica – SIAB, como forma de coletar dados para acompanhar, monitorar e avaliar os usuários portadores de transtornos mentais atendidos pela Equipe de Saúde da Família. E o grupo “Atenção à Saúde Mental” do sistema de informações ambulatoriais do SUS na designação “atendimento a grupos específicos” da tabela de procedimentos (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 51).

Os itens aprovados e citados acima revelam que diversos participantes da III

Conferência compareceram com o propósito de apresentar as ações de Saúde Mental na

Atenção Básica em andamento, colocar suas sugestões em discussão e aprová-las como

orientações para o âmbito nacional. Os itens mostram a diversidade de modos de compreender

a Saúde Mental na Atenção Básica e a fertilidade do momento. O conteúdo das propostas será

comentado adiante, quando tratarmos da "Oficina de Inclusão de Ações de Saúde Mental no

Programa Saúde da Família”, que aconteceu em Brasília, em março de 2001, que discutiu,

com detalhes, muitos pontos que apareceram como proposições na III Conferência.

No título “Recursos Humanos”, a III Conferência determina a qualificação continuada,

a remuneração justa, a garantia de condições de trabalho, a “[...] democratização das relações

e das discussões em todos os níveis de gestão, contemplando os momentos de planejamento,

implantação e avaliação” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 67). As orientações no

sentido de rompimento com os “especialismos” são explícitas, para a “[...] construção de um

novo trabalhador em saúde mental” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 68).

Importante definição é a que se segue, que tem incidência direta nas ações da Atenção

Básica:

[...] a política de recursos humanos deve estimular a dissolução do “manicômio mental” implícito no saber científico convencional, que discrimina o saber popular, por meio da maior valorização da experiência de familiares e usuários, garantindo desta forma a integração e o diálogo com os saberes populares (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 68).

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Dentro do título “Recursos Humanos” há uma subdivisão que trata da “Capacitação em

saúde mental para a rede básica de saúde (PACS e PSF)” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE,

2002, p. 76).

Foram aprovados os itens:

239. Integração do programa municipal de saúde mental com o PACS/PCF, garantindo o papel da equipe multidisciplinar de saúde mental na condição de assessoria, capacitação, consultoria, atendimento e supervisão das equipes dos referidos programas. Quando não houver competência das equipes do PACS/PCF, os casos deverão ser referenciados para serviços mais complexos. 240. Normatizar e realizar programas de capacitação em saúde mental para todas as equipes do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do Programa de Saúde da Família (PSF), em parceria das universidades com os órgãos do SUS, de forma a garantir o desenvolvimento de uma prática de saúde com integralidade e a incorporação destas equipes à rede de saúde mental. Esta capacitação deverá contemplar tanto aspectos técnicos (relativos à promoção da saúde, assistência e reabilitação social), e relativos à humanização das práticas, quanto aqueles relacionados à mudança de concepção da comunidade acerca do sofrimento psíquico. 241. Capacitar os médicos generalistas que atuam na atenção básica, por meio de protocolos assistenciais, para o uso de medicamentos essenciais nas patologias de maior prevalência (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, pp 76 e 77).

O título “Financiamento” reafirma um princípio que, nos próximos anos e décadas

deveremos ter como básico e orientador para a luta diária:

A lógica fundamental da estrutura de financiamento exigida é de que os recursos financeiros devem acompanhar o usuário nos diferentes espaços de reprodução social e ser viabilizadores de processos emancipatórios. Assim, os recursos devem ser centrados nas pessoas e não nos serviços (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 85. Grifo do autor).

Também foi enfatizada a necessidade de reorientar os recursos das AIHs para a rede

de atenção psicossocial. A Saúde Mental na Atenção Básica surge como um dos alvos do

redirecionamento financeiro.

O subtítulo “Financiamento das ações de saúde mental na Atenção Básica” tem o

seguinte preâmbulo:

Uma política de saúde mental baseada no princípio da integralidade requer a garantia de financiamento para as ações básicas de saúde mental desenvolvidas em Unidades Básicas de Saúde (UBS), Programa de Saúde de

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Família (PSF) e Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), com garantia de contratação de recursos humanos, com financiamento pelo Piso de Atenção Básica (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, pp 85 e 86).

Foram aprovados, nesse subtítulo, os seguintes itens:

325. Financiar ações de saúde mental desenvolvidas em unidades básicas de saúde, PSF, PACS e viabilizar recursos financeiros para a contratação de profissionais de saúde mental. 326. Garantir o financiamento de ações substitutivas no campo da Saúde Mental, com especial ênfase às ações no âmbito da atenção básica, incluídas e incentivadas no PAB, tanto na parte fixa como na variável. 327. Incluir a atenção básica em saúde mental como ação prioritária e critério para cadastramento dos municípios no PAB ampliado, com garantia de financiamento pelo Ministério da Saúde. 328. Exigir que o Ministério da Saúde crie incentivo mensal para equipes do Programa de Saúde da Família - como acontece na saúde bucal do PSF - para os municípios que desenvolvem programas de saúde mental. Esse repasse será realizado sem prejuízo dos outros recursos federais destinados à saúde mental. 329. Reajustar a tabela PAB (Piso de Atenção Básica), revendo os valores defasados destinados para os municípios (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 95).

No subtítulo “Implementação e regulamentação do financiamento de novas iniciativas,

ações e procedimentos em saúde mental”, está dito que:

O aprofundamento da Reforma Psiquiátrica requer a implementação de novos mecanismos para viabilizar o financiamento de ações inovadoras visando à ampliação do campo de possibilidades das práticas desenvolvidas pela rede de serviços substitutivos. Tais proposições incluem a ampliação das modalidades de serviços residenciais, a implementação de novas modalidades de assistência domiciliar, o desenvolvimento de formas de apoio financeiro aos usuários, familiares e cuidadores e o financiamento de programas de geração de renda e cooperativas de trabalho (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 97).

Dentro deste princípio, foi aprovada, com algumas modificações, a proposta que

levamos, representando o Estado do Rio de Janeiro, que determina:

335. Criar dispositivo de financiamento destinado às ações de atendimento e/ou acompanhamento e/ou internação domiciliar/comunitária aos usuários de todos os programas da rede de atenção em saúde mental, que inclua aquisição e manutenção de veículo utilizado para a realização das visitas e/ou transporte de usuários (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 97).

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Destina-se, essa proposição, a incrementar a abertura de possibilidades de prestar

atendimento às crises, atualmente ainda denominadas de modo reducionista de “emergências

psiquiátricas”, totalmente com recursos comunitários e familiares, articulados à rede de

atenção psicossocial com ênfase nas ações de Saúde Mental na Atenção Básica.

Ainda no mesmo subtítulo, destacam-se os itens:

339. Que os governos federal, estadual e municipal desenvolvam iniciativas visando destinar recursos financeiros ao cuidador (familiar ou membro da comunidade) responsável pela desospitalização de usuário morador em hospital psiquiátrico e responsabilizem o serviço de saúde mental de referência pelo acompanhamento contínuo desse processo. 340. Garantir que as instâncias federal, estadual e municipal aprovem e destinem recursos para a criação de bolsa incentivo aos programas de desinstitucionalização às famílias ou diretamente aos usuários, para promover a reinserção familiar ou a autonomia da pessoa nos serviços residenciais, sob responsabilidade e acompanhamento do serviço territorial de referência e controle dos conselhos de saúde. 341. Garantir que uma porcentagem do valor das AIHs referentes aos leitos psiquiátricos desativados seja destinada à criação de bolsa de auxílio aos familiares ou aos usuários ex-moradores de hospitais psiquiátricos (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 98).

O título “Acessibilidade” reafirma um dos princípios do SUS, de garantir eqüidade de

acesso a todos os serviços para as pessoas que dele necessitem. No “Caderno Informativo”,

lançado na III Conferência pelo Ministério da Saúde, cujo texto já circulava antes da

Conferência, o tema é desenvolvido. Afirma que é necessário ampliar a rede de CAPS e de

ambulatórios e:

[...] garantir a implantação de serviços comunitários de saúde mental integrados aos programas de atenção básica e à rede geral de serviços, utilizando-se das estratégias mais adequadas a cada região/território no intuito de superar o modelo tradicional (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 2001, p 39).

O texto do “Relatório Final” refere-se à “Acessibilidade” também em termos de acesso

a bens e serviços da sociedade: “[...] trabalho, creches, profissionalização, educação, lazer,

escolas, moradia decente com um mínimo de privacidade, transporte, segurança pública,

saneamento básico” (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 107). Trata, ainda, da garantia

de acesso às informações a respeito dos dados, finanças e portarias do SUS e acesso ao

prontuário, que deve ser garantido ao usuário. (Cf. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002).

O título “Direitos e Cidadania” abre com uma importante definição:

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Foi ressaltada a priorização, no âmbito da assistência em saúde mental, de políticas que fomentem a autonomia dos portadores de transtornos mentais, incentivando deste modo o exercício de cidadania plena, no lugar de iniciativas tutelares (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 121).

Aqui, são incentivadas as ações de geração de renda e de inclusão dos portadores de

transtornos mentais no mundo do trabalho, da educação, do lazer, da cultura. Exige-se a

imediata colocação em ação dos princípios dispostos na lei Paulo Delgado (Lei 10.216/01) e a

regulamentação das internações voluntárias e involuntárias, com o usuário podendo recorrer

judicialmente quanto às últimas.

No título “Controle Social”, a Conferência propõe:

[...] garantir a continuidade da política de substituição do modelo hospitalocêntrico, independente das mudanças do poder executivo, através de mecanismos de controle social já existentes (por exemplo, os Conselhos) e outros que se façam necessários: as Comissões de Saúde Mental, as Conferências, a organização da sociedade civil e dos movimentos sociais, o espaço legislativo, etc. (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 141).

Importante definição é a que se segue, dentro do mesmo item, “Controle Social”:

A ação da sociedade civil e dos movimentos sociais é ressaltada, visando a garantir que os programas municipais de saúde mental não sofram descontinuidade por ocasião de mudanças de gestão administrativa e/ou política. Deve-se propiciar a participação dos usuários, familiares e trabalhadores de saúde mental na elaboração das políticas públicas de saúde e no acompanhamento das ações de saúde mental. Propõe-se incentivar e apoiar as ações dos núcleos estaduais da luta antimanicomial, na fiscalização das práticas de saúde mental. Também neste sentido, urge criar estratégias para viabilização de maior envolvimento dos diferentes atores sociais com as questões de saúde mental: usuários, familiares, ONGs, sindicatos, instituições religiosas, poder público, grandes e pequenos empresários, setor informal, movimentos sociais e outros (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 142).

Nas “Moções” da Conferência, destaca-se a que repudia a utilização do eletrochoque:

Moção de repúdio à utilização da Eletroconvulsoterapia (ECT): Determinar a abolição em definitivo do uso do eletrochoque no cuidado em Saúde Mental, assim como exigir a retirada do Projeto de Lei (hoje em tramitação) que regulamenta o seu uso (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 161).

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Como uma advertência para o que temos pela frente em termos de financiamento, além

de ser uma cobrança, temos a “Moção de repúdio ao Governo Federal e ao Ministério da

Saúde”, que diz:

Repúdio às atitudes de falta de transparência do Governo Federal e do Ministério da Saúde que não explicaram o destino dos recursos financeiros que “desapareceram” com a extinção de mais de 30.000 leitos psiquiátricos nos últimos anos, como conseqüência direta do Movimento da Reforma Psiquiátrica. Que estes recursos retornem como investimento na Rede de Serviços Substitutivos, resgatando a dívida social com as vítimas do modelo manicomial (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, 2002, p. 161).

Para uma avaliação da importância do que consta dessa Moção, em dinheiro e valores

de hoje, a retirada desses leitos economizam um total de 21 milhões de reais por mês, ou 252

milhões de reais por ano. Esse montante deixou de ser gasto pelo Ministério da Saúde por

obra dos profissionais de Saúde Mental, associados a usuários e familiares na luta diária da

Reforma Psiquiátrica e não foi reinvestido no sistema. Com os instrumentos de

redirecionamento hoje existentes tal distorção começa a ser corrigida, mas fica a dívida que a

Moção cobra.

A III Conferência Nacional de Saúde Mental tem grande importância por reafirmar os

princípios da Reforma Psiquiátrica, propondo avanços, e por ter proporcionado, em todo o

país, o debate sobre os rumos das transformações que queremos. No aspecto específico da

Saúde Mental na Atenção Básica, o tema surge com uma força que não existiu nas

Conferências anteriores e vimos o lançamento do “Relatório Sobre a Saúde no Mundo 2001.

Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”, da Organização Mundial da Saúde, que

sugere que a Saúde Mental deve ser abordada preferencialmente na rede primária. Voltaremos

a essa publicação no Capítulo IV.

Depois da III Conferência, o Ministério da Saúde editou Portarias que redefinem

alguns procedimentos. A Portaria 251, de 31/01/2002, estabelece normas para a assistência

em hospitais psiquiátricos, estimulando a “[...] substituição progressiva dos macro-hospitais”

(BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 105). A Portaria 336, de 19/02/2002, atualiza

a Portaria 224, de 1992, definindo normas e diretrizes para os CAPS de adultos, infantil e para

o problema do álcool e outras drogas. A Portaria 336 também tem o mérito de criar “[...]

mecanismo de financiamento próprio, para além dos tetos financeiros municipais, para a rede

CAPS” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 120).

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Domingos Sávio, em palestra, em novembro de 2003, no lançamento do “Fórum Inter-

Institucional da Rede de Atenção Psicossocial Extra-Hospitalar do Estado do Rio de Janeiro”,

representando o Coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel

Godinho Delgado, dá como diagnóstico e diretrizes do Ministério da Saúde, a respeito da área

de Saúde Mental, os seguintes pontos:

-Grupo de transtornos de alta e crescente prevalência e baixa cobertura assistencial. -Modelo Assistencial em transição do hospitalar para o comunitário, ainda refletindo as graves distorções do modelo asilar. -Política pública necessariamente intersetorial, com interfaces fundamentais com áreas de assistência social, direitos humanos, justiça, trabalho, habitação, etc. (SÁVIO, 2003).

De modo bastante instrutivo, Domingos adverte para o fato de que a Reforma

Psiquiátrica, no momento, tem hegemonia da política e não hegemonia da assistência. Isso

significa que os principais postos de Poder na área de Saúde Mental e a organização e prática

da assistência estão a cargo do movimento pela transformação da área, mas que o modelo que

ainda vigora é o manicomial. Domingos lista as diretrizes do Ministério da Saúde para 2003 e

2004, na Saúde Mental:

-Redução progressiva dos leitos psiquiátricos (desinstitucionalização). -Expansão dos CAPS. -Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica. -Implantação do Programa 'De volta pra casa'. -Expansão das Residências Terapêuticas. -Formação e qualificação de Recursos Humanos. -Promoção de direitos dos usuários e familiares e incentivo à participação no cuidado. -Reorientação dos Manicômios Judiciários. -Qualificação do atendimento hospitalar e ambulatorial. (SÁVIO, 2003).

Em 20 de janeiro de 2004, O Ministério da Saúde editou uma Portaria que define o

"Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no SUS – 2004". A

Portaria 52, acrescida da Portaria 53, da mesma data, estabelece uma progressão no valor das

diárias pagas aos Hospitais Psiquiátricos que diminuírem a quantidade de leitos. Com a

Portaria, os Hospitais Psiquiátricos têm um incentivo para a redução das suas vagas e os

Estados e Municípios estão, mais ainda, desafiados a aumentar as suas capacidades de

ampliação da Rede de Atenção Psicossocial.

Deve ser destacado o “Anexo” da Portaria 52, que contém definições para o momento

em que vivemos. Dele consta que “O processo de mudança do modelo assistencial deve ser

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conduzido de modo a garantir uma transição segura, onde a redução dos leitos hospitalares

possa ser planificada e acompanhada da construção concomitante de alternativas de atenção

no modelo comunitário”. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, c.). Numa afirmação da política

de Saúde Mental do Ministério da Saúde, nos últimos anos, diz a Portaria 52:

Este Programa Anual - 2004 é parte integrante da política de saúde mental do SUS, cujo objetivo é a consolidação do processo de reforma psiquiátrica. Ele trata do componente hospitalar especializado, de sua reestruturação, das mudanças de seu financiamento, do redirecionamento dos recursos financeiros para atenção extra-hospitalar, da construção de planos municipais, micro-regionais estaduais de desinstitucionalização e de implantação de rede de atenção comunitária. O Programa articula-se com outras áreas da reforma psiquiátrica, especialmente: atenção em saúde mental no hospital geral, saúde mental na atenção básica, urgência e emergência em saúde mental, consolidação da rede de CAPS I, II, III, i e AD, programa De Volta para Casa, expansão das residências terapêuticas e outros, que são objeto de normas e documentos específicos. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, c.).

Em 16 de setembro de 2004, o Ministério da Saúde editou uma Portaria que representa

uma mudança na forma de financiar ações de Saúde Mental (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE,

2004, f). Pela Portaria, os CAPS passam a receber o incentivo financeiro, inicial, logo após o

Gestor Municipal se comprometer a colocá-lo em funcionamento em três meses. Antes, este

incentivo só era recebido após o longo processo de credenciamento. Agora, o Governo

Federal adianta-se e, desta forma, estimula, com dinheiro novo, a expansão da rede de

assistência extra-hospitalar, o que foi uma reivindicação da III Conferência Nacional de Saúde

Mental.

Escrever sobre a Reforma Psiquiátrica é um trabalho interessante em muitos aspectos,

dentre eles o fato de ser um processo vivo. Pretendemos que, com os avanços, o próprio termo

“Reforma Psiquiátrica” já mostre o seu caráter provisório, visto que não se trata apenas de

uma mudança na psiquiatria. E é preciso algo mais do que “Reforma”. Deixo o relato nesse

ponto, aguardando e provocando novos acontecimentos.

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77

CAPÍTULO 4

OS PROGRAMAS DE ATENÇÃO BÁSICA NO BRASIL

Neste capítulo veremos algo a respeito das origens das orientações para o trabalho na

Atenção Básica, os Programas que surgiram no Brasil e algumas críticas às Reformas na área

de Saúde.

A Declaração de Alma-Ata, de 1978, resultado da “Conferência Internacional sobre

Cuidados Primários de Saúde”, teve por objetivo expressar a

[...] necessidade de ação urgente de todos os governos, de todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade mundial para promover a saúde de todos os povos do mundo [...] (DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA).

A Declaração de Alma-Ata tornou-se uma referência central para todos os que pensam

a saúde coletiva, e seus princípios estão presentes nos projetos de saúde que trabalham com o

coletivo.

Num de seus primeiros itens, a Declaração diz: “É direito e dever dos povos participar

individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde”

(DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA). Trata-se de uma definição simples e de profunda

significação. Hoje existe uma tentativa de incorpora-la no modo de agir dos que planejam e

executam as ações de saúde, mas ainda foi alcançada a sua plena potência.

A Declaração dá total ênfase ao que chama de “cuidados primários em saúde” e muitos

dos seus principais itens são voltados para esse conceito, assinalando que esses cuidados

seriam a chave, para que a meta de saúde para todos no ano 2000 fosse atingida.

A Declaração define:

Os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentados e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e automedicação. Fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da

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família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde as pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde (DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA).

Como poderemos ver, o que consta dessa citação estará presente nas práticas do

Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), do Programa de Saúde da Família e

nas ações da Saúde Mental na Atenção Básica.

A Declaração trata de esmiuçar a definição e o alcance dos cuidados primários de

saúde. Num dos pontos, diz que os cuidados primários de saúde: “Têm em vista os principais

problemas de saúde da comunidade, proporcionando serviços de proteção, cura e reabilitação,

conforme as necessidades” (DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA).

Coerente com a visão ampla a respeito do que é saúde, a Declaração recomenda a

educação para a saúde, o controle do meio ambiente e da água, o saneamento básico. Aponta

para a política intersetorial, principalmente no aspecto de produção de alimentos, habitação,

educação e comunicação.

Uma definição preciosa para os propósitos da Saúde Mental nas comunidades diz que

os cuidados primários de saúde:

Requerem e promovem a máxima autoconfiança e participação comunitária e individual no planejamento, organização, operação e controle dos cuidados primários de saúde, fazendo o mais pleno uso possível de recursos disponíveis, locais, nacionais e outros, e para esse fim desenvolvem, através da educação apropriada, a capacidade de participação das comunidades (DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA).

Possui grande implicação para as práticas atuais um dos itens que define os cuidados

básicos em saúde:

Baseiam-se, nos níveis locais e de encaminhamento, nos que trabalham no campo da saúde, inclusive médicos, enfermeiros, parteiras, auxiliares e agentes comunitários, conforme seja aplicável, assim como em praticantes tradicionais, conforme seja necessário, convenientemente treinados para trabalhar, social e tecnicamente, ao lado da equipe de saúde e responder às necessidades expressas de saúde da comunidade (DECLARAÇÃO DE ALMA-ATA).

Concluindo, a Declaração “[...] concita à ação internacional e nacional urgente e

eficaz, para que os cuidados primários de saúde sejam desenvolvidos e aplicados em todo o

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mundo e, particularmente, nos países em desenvolvimento [...]” (DECLARAÇÃO DE

ALMA-ATA).

As orientações internacionais, adotadas criticamente ou não, influenciaram textos e

trabalhos no Brasil.

Num artigo muito citado na literatura a respeito do Programa de Saúde da Família,

Hesio Cordeiro situa o PSF como uma “[...] estratégia para a mudança do modelo assistencial

do SUS” (CORDEIRO, 1996, p. 10). Para iniciar sua argumentação, Hesio afirma que

As crises cíclicas do Estado brasileiro, as políticas de ajuste econômico e o déficit público contribuíram para dificultar que os princípios da Constituição-Cidadã saíssem do papel para que inspirassem leis, normas e, principalmente, orçamentos que viabilizassem o pleno desenvolvimento da reforma sanitária (CORDEIRO, 1996, p. 10).

A tarefa de então, segundo Hesio, seria “[...] a mudança do modelo assistencial

esboçada nos projetos de criação dos distritos sanitários ou dos sistemas locais de saúde”

(CORDEIRO, 1996, p. 10), mas com atenção para “[...] a lógica da incorporação das

inovações nas práticas de saúde” (CORDEIRO, 1996, p. 10).

Em afirmações que nos permitem fazer imediata correspondência com o que ocorre no

sub setor da Saúde Mental, Hesio critica “[...] o chamado ‘modelo hospitalocêntrico’, caro, de

caráter essencialmente curativo, e controlado pelo setor privado” (CORDEIRO, 1996, p. 10) e

também a não resolubilidade dos ambulatórios, que não incorporaram práticas que “[...]

assegurem a continuidade da relação médico-paciente ou da equipe de saúde com as famílias”

(CORDEIRO, 1996, p. 11).

Hesio defende que a mudança do modelo assistencial tem no Programa de Saúde da

Família a sua principal estratégia no campo das ações de saúde. (Cf. CORDEIRO, 1996) e dá

como princípios do mesmo os seguintes pontos:

O reconhecimento da saúde como um direito de cidadania e que expressa a qualidade de vida; A eleição da família e de seu espaço social como núcleo básico de abordagem no atendimento à saúde; A democratização do conhecimento do processo saúde/doença, da organização dos serviços e da produção da saúde; A intervenção sobre os fatores de risco aos quais a população está exposta; A prestação de atenção integral, contínua e de boa qualidade nas especialidades básicas de saúde à população adscrita, no domicilio, no ambulatório e no hospital; A humanização das práticas de saúde e a busca da satisfação do usuário através do estreito relacionamento da equipe de saúde da comunidade;

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O estímulo à organização da comunidade para o efetivo exercício do controle social; O estabelecimento de parcerias buscando desenvolver ações intersetoriais (CORDEIRO, 1996, p. 11).

Hesio chama a atenção para o fato de que o modelo proposto se propõe a algo muito

maior do que “[...] um apelo às tecnologias simplificadas, inspiradas em Alma-Ata, visando

apenas à redução de custos e, muito menos, representando uma proposta de ‘medicina pobre

para pobres’” (CORDEIRO, 1996, p. 12).

Hesio recorre à crítica à divisão do trabalho, no caso, na área da saúde, para dizer que

o complexo médico-empresarial, dominante, com base nas relações sociais que predominam

na sociedade, impõe a fragmentação em especialidades valorizadas e a “[...] parcialização e

fragmentação do cuidado médico entre diversos profissionais que exercem trabalhos múltiplos

sobre múltiplos ‘objetos’ de trabalho – o corpo do usuário subdividido pelo olhar das várias

especialidades médicas” (CORDEIRO, 1996, p. 12). Podemos compreender, com base nas

linhas acima, que a divisão mente/corpo, histórica, está nas origens do aparecimento de

profissionais exclusivamente preparados para tratar dos corpos e de outros que se dedicam

apenas às mentes, numa seqüência de empobrecimento da compreensão global do ser humano

que ainda dará muito trabalho para reverter.

Dentro do contexto das declarações internacionais e da necessidade de avanços na área

de saúde no Brasil, coloca-se, portanto, o problema da mudança do Modelo Assistencial.

Segundo TEIXEIRA (1998, p. 8):

[...] o sistema de saúde brasileiro é, hoje, [...] palco de disputa entre modelos assistenciais diversos, com a tendência de reprodução conflitiva dos modelos hegemônicos, ou seja, o modelo médico-assistencial privatista (ênfase na assistência médico-hospitalar e nos serviços de apoio diagnóstico e terapêutico) e o modelo assistencial sanitarista (campanhas, programas especiais e ações de vigilância epidemiológica e sanitária), ao lado dos esforços de construção de ‘modelos’ alternativos (TEIXEIRA, 1998, p. 8).

De acordo com o trabalho citado, a “Vigilância da Saúde” pode ser “[...] entendida

como eixo de um processo de reorientação do(s) modelo(s) assistencial(ais) do SUS”

(TEIXEIRA, 1998, p. 9). O trabalho define a Vigilância da Saúde como um Modelo

Assistencial que tem como “Sujeito a Equipe de Saúde e a População (cidadãos)”

(TEIXEIRA, 1998, p. 18), como “Objeto os danos, riscos, necessidades e determinantes dos

modos de vida e saúde (condições de vida e trabalho)” (TEIXEIRA, 1998, p. 18), como “[...]

meios de trabalho as tecnologias de comunicação social, de planejamento e programação local

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situacional e tecnologias médico-sanitárias” (TEIXEIRA, 1998, p. 18) e como “Forma de

organização as Políticas públicas saudáveis, as ações intersetoriais, as intervenções

específicas (promoção, prevenção, recuperação) e as operações sobre problemas e grupos

populacionais” (TEIXEIRA, 1998, p. 18).

O tema do Território aparece no trabalho citado de forma incisiva, na medida em que

os autores dizem que

O ponto de partida para o desencadeamento do processo de planejamento da vigilância à saúde é a Territorialização do sistema municipal de saúde, isto é, o reconhecimento e o esquadrinhamento do território do município segundo a lógica das relações entre condições de vida, saúde e acesso às ações e serviços de saúde (TEIXEIRA, 1998, p. 18).

Qual a origem das Reformas na Saúde? Necessidade da população expressa através da

suas organizações em conjunto com os profissionais de saúde? Necessidades de ajuste das

finanças públicas? Orientações internacionais com interesses diversos? Vejamos algo a

respeito dessa discussão.

Discorrendo a respeito das Reformas na área da Saúde, VIANA & POZ (1998, p. 4)

dizem que elas podem ser de dois tipos: big bang e incremental. As do primeiro tipo “[...] são

as que introduzem modificações expressivas e significativas no funcionamento do sistema de

saúde, de forma rápida (em curto espaço de tempo) e pontual” (VIANA & POZ 1998, p. 4).

Assim foi, segundo os autores, o início da reforma brasileira, com a criação do SUS:

Esse novo modelo, inscrito na própria Constituição brasileira de 1988, definiu o princípio do universalismo para as ações de saúde, a descentralização municipalizante e um novo formato organizativo (para os serviços) sob a lógica da integralidade, da regionalização e da hierarquização, com definição de porta de entrada (VIANA & POZ 1998, p. 4).

Com a evolução da crise na área da Saúde, de demanda e de oferta (Cf VIANA &

POZ 1998, p. 5), deu-se início ao que os autores chamam de “reforma da reforma da saúde

no Brasil, ou, do processo de reforma incremental do sistema público de saúde” (VIANA &

POZ 1998, p 5).

Exemplificando o modo como a reforma incremental se deu e quais as suas estratégias,

Viana & Poz destacam a importância do Programa de Agentes Comunitários de Saúde e o

Programa de Saúde da Família. Desta forma, destacam:

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No caso brasileiro, considera-se que as mudanças no modelo assistencial que vêm se operando dentro do SUS, por conta de dois novos programas (Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PACS e Programa de Saúde da Família - PSF), estão provocando alterações tanto no padrão de financiamento da política, quanto na forma de organização dos serviços. Dessa forma, o PSF se constitui em uma estratégia de reforma incremental do sistema de saúde no Brasil, tendo em vista que o programa aponta para mudanças importantes na forma de financiamento do sistema de saúde (superação da exclusividade do pagamento por procedimentos), nas práticas assistenciais e no processo mesmo de descentralização (VIANA & POZ 1998, p. 7).

Definidas algumas origens das orientações para a mudança do modelo assistencial e

características da Reforma da Saúde no Brasil, passamos a especificar com mais detalhes os

conceitos ligados à Atenção Básica.

Ressalvadas as discussões a respeito das possíveis diferenças conceituais entre

“cuidados primários de saúde”, “atenção primária” e “atenção básica”, que não faremos aqui,

vemos que o Ministério da Saúde define Atenção Básica como:

[...] um conjunto de ações, de caráter individual ou coletivo, situadas no primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção da saúde, a prevenção de agravos, o tratamento e a reabilitação. [...] A ampliação desse conceito se torna necessária para avançar na direção de um sistema de saúde centrado na qualidade de vida das pessoas e de seu meio ambiente (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999, p. 9).

Podemos perceber que a definição do Ministério da Saúde é muito semelhante ao que

consta da Declaração de Alma-Ata. Toda a luta para a valorização da Atenção Básica é parte

da mudança do Modelo Assistencial.

Na publicação citada, do Ministério da Saúde, de 1999, algo a respeito de Saúde

Mental aparece apenas numa das “Ações de Atenção Básica Dirigidas a Grupos Específicos

da População”: “Incentivo aos grupos de auto-ajuda, prioritariamente na população maior de

60 anos”, visando à “Redução das internações por depressão” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,

1999, p 23). Nos “Indicadores para avaliação da Atenção Básica nos Municípios Habilitados

conforme a NOB-SUS 01/96”, não há referência à Saúde Mental. (Cf. MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 1999, p. 37).

Dando conseqüência às conclusões da Oitava Conferência Nacional de Saúde, ao que

consta na Constituição do país, nas Leis do Sistema Único de Saúde e nas recomendações

internacionais sobre Atenção Básica, começaram a surgir (ou ressurgir?), no Brasil, de modo

organizado, experiências de mudança do modelo assistencial a partir da Atenção Básica.

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O Ministério da Saúde, hoje, historiando os inícios dos Programas de Atenção Básica,

diz que

A estratégia do PSF foi iniciada em junho de 1991, com a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Em janeiro de 1994, foram formadas as primeiras equipes de Saúde da Família, incorporando e ampliando a atuação dos agentes comunitários (cada equipe do PSF tem de quatro a seis ACS; este número varia de acordo com o tamanho do grupo sob a responsabilidade da equipe, numa proporção média de um agente para 575 pessoas acompanhadas) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a).

Como princípios básicos do PSF, o Ministério da Saúde define:

A estratégia do PSF incorpora e reafirma os princípios básicos do Sistema Único de Saúde (SUS) - universalização, descentralização, integralidade e participação da comunidade - e está estruturada a partir da Unidade Básica de Saúde da Família, que trabalha com base nos seguintes princípios: Integralidade e hierarquização [...], Territorialização e cadastramento da clientela [...], Equipe multiprofissional. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a).

Aparece, aqui, o conceito de “Territorialização”, citado no Capítulo II como um dos

pilares da Reforma Psiquiátrica. São as semelhanças de origem, influências e propósitos que

aparecem e que estamos balizando, entre a Atenção Básica e a Saúde Mental.

Dentro do aspecto do cadastramento, na definição acima, temos um ponto sensível e

que envolverá discussões ainda não resolvidas: o quantitativo de população que uma Equipe

de PSF pode atender de modo efetivo. O debate a respeito desse número ideal está sendo

travado, também, em relação ao trabalho das Equipes de Saúde Mental na Atenção Básica. O

texto do Ministério da Saúde recomenda que “[...] uma equipe (de PSF) seja responsável por,

no máximo, 4.500 pessoas” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a). A prática mostra que, com

esse número, as Equipes ficam “presas” ao Posto, com dificuldades de exercer as atividades

comunitárias. Para a Saúde Mental, a discussão desse número terá a importância de

determinar a população que uma Equipe pode trabalhar de modo a efetivamente mudar o

Modelo Assistencial.

No aspecto da composição da Equipe do PSF, está estabelecido que:

Cada equipe do PSF é composta, no mínimo, por um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitários de saúde (ACS). Outros profissionais - a exemplo de dentistas, assistentes sociais e psicólogos - poderão ser incorporados às equipes ou formar equipes de apoio, de acordo com as necessidades e possibilidades locais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a).

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Essa definição já abre a possibilidade da entrada da Saúde Mental nas Equipes do PSF,

ou sob a forma de profissionais incorporados às Equipes de PSF, ou como “equipes de

apoio”.

Na definição das atribuições de cada membro da Equipe do PSF, destacamos as do

Agente Comunitário de Saúde, pela importância que tem, não só para o trabalho em geral,

mas em especial para as pretensões da Saúde Mental:

Faz a ligação entre as famílias e o serviço de saúde, visitando cada domicílio pelo menos uma vez por mês; realiza o mapeamento de cada área, o cadastramento das famílias e estimula a comunidade (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a).

A expressão “faz a ligação entre as famílias e o serviço de saúde”, junto com a

obrigação de ser pessoa moradora na área de atuação da Equipe, coloca o Agente Comunitário

numa posição peculiar e de grande potencial para a prática transformadora que pretendemos.

Mostrando a importância que esse profissional tem alcançado, há um decreto, de 1999, da

Presidência da Republica que “Fixa diretrizes para o exercício da atividade de Agente

Comunitário de Saúde (ACS), e dá outras providências” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004

b). Nesse decreto está determinado que o Agente Comunitário de Saúde deve residir na

comunidade e desenvolver atividades de educação para a saúde, estímulo à participação na

formulação das políticas públicas, dentre outras atividades específicas.

O Ministério da Saúde define que as Equipes do PSF devem estar capacitadas a:

-conhecer a realidade das famílias pelas quais é responsável, por meio de cadastramento e diagnóstico de suas características sociais, demográficas e epidemiológicas; -identificar os principais problemas de saúde e situações de risco aos quais a população que ela atende está exposta; -elaborar, com a participação da comunidade, um plano local para enfrentar os determinantes do processo saúde/doença; -prestar assistência integral, respondendo de forma contínua e racionalizada à demanda, organizada ou espontânea, na Unidade de Saúde da Família, na comunidade, no domicílio e no acompanhamento ao atendimento nos serviços de referência ambulatorial ou hospitalar; -desenvolver ações educativas e intersetoriais para enfrentar os problemas de saúde identificados (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 a).

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O texto acima pretende estabelecer as atribuições de um trabalho que realize os

objetivos da Atenção Básica. No que diz respeito à Saúde Mental, adiantamos que as Equipes

de PACS e de PSF, consoante as formações das diversas categorias profissionais, não se

encontram, em geral, capacitadas a reconhecer, com detalhes operativos, os problemas de

Saúde Mental das pessoas, famílias e comunidade, bem como prestar assistência. O item

“elaborar, com a participação da comunidade, um plano local, para enfrentar os determinantes

do processo saúde/doença”, referido à Saúde Mental, leva-nos a uma instigante tarefa: discutir

com a população o que a faz sofrer psiquicamente e o que fazer para mudar a situação.

Uma Portaria do Ministério da Saúde, de 1997, traça as normas e diretrizes para o

Programa de Agentes Comunitários de Saúde e para o Programa de Saúde da Família. Na

Portaria, o Ministério da Saúde define como sua responsabilidade: “[...] contribuir para a

reorientação do modelo assistencial através do estímulo à adoção da estratégia de agentes

comunitários de saúde pelos serviços municipais de saúde [...]” e “[...] da estratégia de saúde

da família [...]” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, c). Está definido, na Portaria citada, que

o ACS deve trabalhar com, no máximo, 150 famílias ou 750 pessoas. Nas atribuições do

ACS, a Portaria indica muito pouco em relação ao trabalho em Saúde Mental. O item 8.14.27

dá como atribuição do ACS a “[...] identificação dos portadores de deficiência psicofísica

com orientação aos familiares para o apoio necessário no próprio domicílio” (MINISTÉRIO

DA SAÚDE, 2004, c). Salvo pela indefinida “deficiência psicofísica”, há uma preocupação

do legislador em apontar o domicílio como local de intervenção terapêutica/reabilitadora, que

continua com a indicação de “incentivo à comunidade na aceitação e inserção social dos

portadores de deficiência psicofísica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, c). Observaremos

como vão evoluir as atribuições do PACS e PSF em relação à Saúde Mental.

Um importante instrumento de gestão é o “Pacto de Indicadores da Atenção Básica”,

que

[...] constitui-se em um instrumento formal de negociação entre gestores das três instâncias de governo (municipal, estadual e federal) tomando como objeto de negociação as metas a serem alcançadas em relação a indicadores de saúde previamente acordados (PACTO DE INDICADORES DA ATENÇÃO BÁSICA, 2003).

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Existem os Indicadores Principais e os Complementares, sendo que em nenhum deles

constam indicadores ligados à Saúde Mental. Com a evolução dos acontecimentos, o

indicador “Taxa de internação por transtornos mentais”, ou semelhante, deverá se impor.

De acordo com o Ministério da Saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004 d), em

janeiro de 2004 existiam 184.934 Agentes Comunitários de Saúde, no Brasil e 19.182

Equipes de Saúde da Família. A cobertura alcançada com essas Equipes chega aos números

de 94.665.805 pessoas para os ACS e 62.685.065 para as Equipes de Saúde da Família. Trata-

se de um expressivo contingente populacional coberto. Com a entrada das ações de Saúde

Mental na Atenção Básica, o impacto em números e qualidade de vida deverá ser expressivo.

De acordo com Maria Fátima de Sousa (SOUSA, 2001)

O Programa de Agentes Comunitários de Saúde teve início no estado da Paraíba, com a visita do assessor técnico do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF da região Nordeste, no dia 27 de junho de 1991 (SOUSA, 2001, p. 85).

O assessor citado, segundo Maria de Fátima, apresentou estudo que mostrava os bons

resultados do trabalho de 4 mil Agentes Comunitários de Saúde no Ceará. Antes disso,

segundo a mesma autora, já havia movimentação, em Brasília, para transformar as ações dos

ACS num Programa nacional. (Cf SOUSA, 2001). Segundo a autora citada:

[...] o compromisso social assumido pelo PACS sem nenhuma discriminação era: melhorar, através dos Agentes Comunitários de Saúde a capacidade da população de cuidar da sua saúde, em um processo de educação mútua, em que os ACS exerceriam o papel de interlocutor privilegiado entre as famílias/comunidade e os serviços de saúde locais (SOUSA, 2001, p. 55).

No texto citado acima existem algumas características que serão preciosas para o

trabalho com a Saúde Mental: o compromisso social, o estímulo ao autocuidado, a educação

mútua, a interlocução entre comunidade e serviços de saúde.

Os ACS podem ter influência na mudança da mentalidade tanto da população, quanto

dos profissionais de saúde, no estímulo aos cuidados com a saúde e no incremento da

participação ativa do cidadão na discussão a respeito dos condicionantes da saúde e das

doenças. Maria de Fátima assinala:

[...] verificou-se estrategicamente que a inserção dos Agentes Comunitários de Saúde nos municípios [...] seria instrumento tático para contribuir para enriquecer os debates em torno de questões cruciais no processo de organização dos serviços locais de saúde, ou seja, um choque de povo, na

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construção de uma nova agenda positiva para a saúde, em que a população de fato estivesse presente (SOUSA, 2001, p. 120).

Tentando esboçar uma análise em termos de que tipo de proposta política está contida

nas mudanças praticadas na área de Saúde, e o PACS é um exemplo, a autora que vem sendo

citada diz que o decorrer dos acontecimentos nas últimas décadas fez com que

os representantes do movimento sanitário entendessem que [...] transformações ocorreriam por meio de reformas parciais, setoriais, institucionais e ou conjunturais, desde que se criassem condições para uma efetiva transformação global (SOUSA, 2001, p. 144).

Mesmo ainda na expectativa de uma transformação global, temos, na lida diária,

necessidade de orientar nossas ações e forjar ferramentas operativas. Mais uma vez

reforçando o papel do ACS, SOUSA (2001), diz:

[...] o norte desses instrumentos encontrava-se: no exercício progressivo do poder local onde o responsável pela saúde tivesse nome e endereço; no reorientar das práticas sanitárias, em que a vigilância à saúde, a multicausalidade, a intersetorialidade, a integralidade, o coletivo e a participação popular fossem entendidos pelos profissionais locais e outras forças sociais em constante construção e reconstrução, cujo interlocutor poderia ser um deles: o Agente Comunitário de Saúde (SOUSA, 2001, p. 144).

No aspecto da capacitação dos ACS, Maria de Fátima assinala que “[...] o custo de um

agente bem treinado é insignificante, quando comparado à formação de qualquer outro

profissional” (SOUSA, 2001, p. 56). Voltaremos, adiante, muitas vezes, ao tema da

capacitação dos ACS, dentro e além do detalhe da economia de recursos.

No “Guia Prático do Programa de Saúde da Família”, do Ministério da Saúde, 2001,

existem as atribuições de cada componente da Equipe de Saúde da Família (ESF). Dentre as

atribuições do Agente Comunitário de Saúde destacam-se algumas que são da maior

importância para o trabalho em Saúde Mental (ressalvando-se que todas elas formam um

conjunto que, na sua harmonia, colabora para a assistência e promoção da saúde):

[...] – identificar indivíduos e famílias expostos a situações de risco; [...] – realizar, por meio da visita domiciliar, acompanhamento mensal de todas as famílias sob sua responsabilidade; [...] – estar sempre bem informado, e informar aos demais membros da equipe, sobre a situação das famílias acompanhadas, particularmente aquelas em situações de risco; [...] – traduzir para a ESF a dinâmica social da comunidade, suas necessidades, potencialidade e limites; [...] (BRASIL, 2001, p. 78).

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Flávio Goulart, em tese de Doutorado de 2002, argumenta que o Programa de Saúde

da Família, na sua complexidade, pode ser alvo de análises contraditórias. Assim: [...] poderia ser considerado, por exemplo, mais uma política racionalizadora, de caráter focal, nos moldes preconizados pelos organismos internacionais financiadores de programas sociais no terceiro mundo. Ao mesmo tempo, poderia ser entendido como uma intervenção coerente com os princípios de equidade, integralidade e universalidade, conforme as disposições da Constituição Federal brasileira de 1988 (GOULART, 2002, p. 25).

O autor da tese, no entanto, prefere fugir dos maniqueísmos e avaliar o que de positivo

o Programa de Saúde da Família traz para a mudança da abordagem aos problemas de saúde

no Brasil e para a promoção de melhores condições de vida. Deste modo, sugere que

O que pode transformá-lo nisso ou naquilo é o modo como está sendo implementado; a capacidade formuladora e crítica de seus atores; as circunstâncias que o rodeiam; as tradições políticas e institucionais; a história; a força da ação política e das tradições comunitárias (GOULART, 2002, p. 90).

Ao tentar historiar as práticas de saúde da família, Goulart recorre à Declaração de

Alma-Ata, trazendo o conceito de “Atenção Primária à Saúde”, visto acima como “cuidados

primários em saúde”. A “Atenção Primária à Saúde” seria “a base do sistema de saúde e um

enfoque que determinaria o modo de atuar dos níveis restantes do sistema”

(GOULART, 2002, p. 50).

Citando Vuori, Goulart diz que a “Atenção Primária à Saúde” vem praticar a:

[...] mudança no sistema tradicional, ancorado em objetivos como: a cura de doenças; o conteúdo baseado em terapias e atenção episódica referente a problemas específicos; a organização baseada em médicos e especialistas envolvidos com o trabalho individual e, finalmente, a responsabilidade centrada de forma restrita no próprio setor saúde, com predomínio técnico-profissional nos cuidados de saúde (GOULART, 2002, p. 50).

A crítica que a citação traz coincide em tudo com a necessidade de mudança do

Modelo Assistencial em Saúde Mental, sendo, mesmo, a descrição do tradicional Ambulatório

de Especialidades em Saúde Mental, atualmente questionado quando comparado com as

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89

práticas que compreendem as ações de saúde como necessariamente interdisciplinares e

comunitárias.

Citando a publicação do Ministério da Saúde “Saúde da Família: Uma estratégia para a

organização da atenção básica”, de 2001, Goulart diz que

[...] podem ser encontradas várias das categorias-chave que contribuem para a definição ora procurada, como por exemplo: (a) ser a porta de entrada de um sistema regionalizado e hierarquizado de saúde; (b) ter um território definido com uma população delimitada sob sua responsabilidade; (c) ter como centro de atenção a família, inserida em seu meio social; (d) intervir sobre os fatores de risco aos quais a comunidade está exposta; (e) prestar assistência integral, permanente e de qualidade; (f) realizar atividades de educação e de promoção da saúde; (g) estabelecer vínculos de compromisso e de co-responsabilidade entre o serviço de saúde e a população; (h) estimular a organização das comunidades para exercer o efetivo controle social das ações e serviços de saúde; (i) utilizar os sistemas de informação para o monitoramento das ações e para a tomada de decisões (GOULART, 2002, p. 51).

Goulart sintetiza, no seguinte trecho, a aproximação entre os conceitos de Atenção

Primária à Saúde e Saúde da Família de modo esclarecedor e fértil para as intenções da Saúde

Mental na Atenção Básica. Segundo o autor, são pontos de união entre os conceitos de

Atenção Primária à Saúde e Saúde da Família:

As práticas de saúde como objeto da intervenção do Estado, o que as caracterizaria como partes de um corpo de políticas sociais; O processo de trabalho tendo como resultado a intervenção do médico e de outros profissionais dentro de um âmbito generalista, ou seja, fora do caráter especializado que recorta e separa o objeto das práticas em saúde em faixas de idade, gênero, sistemas e órgãos, ou mesmo de tipos de doenças; Os modos de pensar e de praticar os cuidados à saúde baseados na ampliação e superação dos conceitos tradicionais antinômicos entre individual e coletivo; prevenção e cura; biológico e social; humano e ambiental; oficial e não-oficial; A proteção voltada não apenas para indivíduos-singulares, mas para coletivos (famílias, grupos, comunidades), resultando em um novo tipo de práticas sociais de saúde; O desenvolvimento de vínculos entre clientela e os prestadores de serviços, de natureza administrativa, geográfica, cultural ou mesmo ética (GOULART, 2002, p. 52).

Para uma compreensão histórica dos sistemas de saúde, o autor citado adverte, citando

Rosen, que

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90

[...] em toda a história das sociedades humanas, os problemas de saúde enfrentados tiveram, em sua origem, uma relação com a vida em comunidade e, embora com ênfases diferentes, com as variadas maneiras com que tais sociedades procuraram resolvê-los (GOULART, 2002, p. 52).

Valiosa para os nossos tempos, a citação nos permite refletir a respeito de que modo a

atual sociedade procura resolver os problemas de Saúde Mental. Até há pouco predominou a

exclusão. Estamos exercitando meios efetivos que tentam mudar a forma da sociedade

resolver os problemas da Saúde Mental?

A história novamente nos traz ensinamentos e nos abre os olhos para as origens e as

intenções iniciais do que estamos praticando hoje. Já no século XVII, na Inglaterra, foram

criadas as workhouses, instituições descentralizadas que tentavam recuperar pelo trabalho.

(Cf. GOULART, 2002, p. 60). Posteriormente, no século XVIII, os cuidados a domicílio

também apareceram na Inglaterra, com atendimento a crianças e em obstetrícia. (Cf.

GOULART, 2002, p. 61).

O autor situa a década de 60 como o tempo em que os acontecimentos e as idéias

colaboraram para o aparecimento do Programa de Saúde da Família no Brasil. Diz ele que,

através de uma luta contra-hegemônica e

[...] mediante seus componentes de saber, ideologia e ação política, teria ocorrido o deslocamento de uma ênfase centrada meramente nos serviços para as condições de saúde e seus determinantes, com práticas de saúde imbuídas de caráter social e dimensões simultaneamente técnicas, políticas e ideológicas (GOULART, 2002, p. 92).

Insistindo no polêmico tema da importação de propostas para a área de saúde, com

toda a conotação de suas possíveis intenções controladoras e apaziguadoras, o autor cita os

conceitos de “[...] campo da saúde de origem canadense, da promoção da saúde (OPAS/OMS)

e da vigilância à saúde, capazes de conferir novos sentidos para as questões formuladas pelo

movimento sanitário em décadas passadas” (GOULART, 2002, p. 92). O autor chama a

atenção, nesse contexto de absorção de idéias estrangeiras, para o paradigma da Medicina

Comunitária, importado na década de 60, com raízes que

[...] estão vinculadas tanto à crise do capitalismo como ao impacto dos resultados da implementação dos welfare states na Europa ou ainda à formação do National Health System no Reino Unido, entre outras (GOULART, 2002, p. 93).

A Medicina Comunitária, conseqüência também da Declaração de Alma Ata, seria o

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91

[...] substrato teórico, político e ideológico [...] da [...] política externa norte-americana dos anos 60, voltada para os países pobres da América Latina, também conhecida como Aliança para o Progresso, que difundiu nos países-alvo sua proposta de saúde, com o apoio das agências internacionais (GOULART, 2002, p. 93).

O autor comenta que as críticas à importação de modelos de saúde, de que estes teriam

a intenção de mero controle das camadas pobres da população, eram fortes na década de 70,

mas diminuíram de intensidade na década de 90, com o detalhe:

[...] as citadas energias intelectuais vão se concentrar em encontrar soluções, não mais apenas em demolir as propostas colocadas em campo, vistas como eram sob uma ótica fortemente ideológica e, até certo ponto, conspiratória (GOULART, 2002, p. 94).

Toma força, então, nesse movimento de suavização da crítica, a importância das

[...] concepções fundamentais relativas à determinação social do processo saúde-doença, bem como na dinâmica do processo de trabalho em saúde e, dessa forma, passaria a orientar as propostas democratizadoras e de reforma do sistema vigentes na década de 80 (GOULART, 2002, p. 95).

O autor sugere que, com a redemocratização do país e a possibilidade de ação política

[...] quem agora estava com a palavra e a vez não eram apenas as academias, nem os organismos internacionais, nem mesmo os órgãos centrais dos governos federal e estaduais. Havia simplesmente novos atores no jogo, os quais passaram também a formular e colocar em prática novas propostas no cenário – os municípios – como de resto o fizeram em relação a todo um conjunto de políticas públicas a partir dos anos 90 (GOULART, 2002, p. 97).

Com a evolução dos fatos, de acordo com Goulart, na década de 80 começam a surgir

as experiências do Programa de Agentes Comunitários de Saúde, no Nordeste. Ainda na

década de 70, “[...] destacam-se as experiências pioneiras realizadas em Porto Alegre (Vila de

São José do Murialdo) [...] e no Estado de São Paulo” (GOULART, 2002, p. 97). O autor

também cita Niterói, Campinas e Londrina como exemplo de municípios que tiveram

experiências pioneiras de reorientação do modelo assistencial “[...] com extensão de

cobertura, participação social, integração docente assistencial, etc.” (GOULART, 2002, p.

100).

Page 92: Saude mental na atencao basica

92

CAPÍTULO 5

A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

5.1 Precursores estrangeiros e críticas.

Para chegar ao que hoje está sendo praticado como Saúde Mental na Atenção Básica,

percorreremos, inicialmente, alguns precursores. Depois, chegaremos aos textos e trabalhos

atuais e ao que está sendo colocado nos textos oficiais.

Forçoso é partir de algum momento e autor. Comecemos, então, com a chamada

“Psiquiatria de Setor”, francesa, que provocou tanta discussão e ainda permanece em debate.

Um exemplo típico dessa corrente é Jacques Hochmann, com seu livro “Hacia uma

psiquiatria comunitária”, escrito entre 1965 e 1968. Antes mesmo de qualquer tentativa de

crítica a esse livro (ou ao “setor”), é necessário observar a lista de autores em que Hochmann

se baseia: Bachelard, Balint, Bastide, Bion, Cooper, Foucault, Freud, Goffman, Jones,

Marcuse, Marx e Engels, Sartre, Saussure, Spinoza, Szasz, entre outros.

Hochmann retoma a discussão a respeito do “tratamento” do hospital psiquiátrico, a

psicoterapia institucional, para introduzir a questão do seu livro, que é o tratamento dos

conjuntos humanos: instituição, família, bairro. (Cf. HOCHMANN, 1972). Criticando a

filosofia dualista, que influencia a psiquiatria na sua divisão estanque entre social e individual,

Hochmann ataca violentamente a nosografia, que chama de “[...] coraza ideológica, uma

categorización de los enfermos, que poco a poco se organizó como un catálogo de

enfermidades mentales […]” (HOCHMANN, 1972, p. 15) e vai propor o conceito de

“sociopatia”, enquanto “[...] una enfermedad del lazo que une los hombres entre si”

(HOCHMANN, 1972, p 24). A todo o momento Hochmann aponta para a necessidade de

desenvolver novos conceitos, para “[...] que rompan de manera radical con los antiguos

marcos de referencia” (HOCHMANN, 1972, p. 17).

Como exemplo de mudança, Hochmann define “o setor” e explica, numa nota

instrutiva:

Se designa con este nombre una nueva corriente de la psiquiatría, preconizada por la circular ministerial del 15 de marzo de 1960. Esta circular prevé que todos los servicios de psiquiatría pública deberán relacionarse con un sector geográfico determinado. Este sector será su zona de reclutamiento de los enfermos de ambos os sexos, y en él deberán

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93

desarrollarse instituciones extrahospitalarias de cuidado y prevención, para permitir que los enfermos sean atendidos, durante toda su evolución intra y extrahospitalaria, por el mismo equipo médico-social y de enfermería [...] (HOCHMANN, 1972, p. 18).

Podemos observar, no texto citado, os sinais de avanço e o que, hoje, podemos notar

como repetição sob nova roupagem: Hochmann já fala em serviços extra-hospitalares, mas

ainda sob a forma de instituições; depois de criticar a nosografia, refere-se às pessoas a serem

abordadas como “enfermos”; naquela época, como podemos notar, os avanços ainda eram

“uma nova corrente da psiquiatria”. Mas traz o que praticamos, agora, no PACS/PSF: um

setor geográfico restrito para o trabalho de cada equipe.

Defendendo a sua proposta diante das resistências, e compreendendo-as, Hochmann,

no seguinte trecho, é bastante avançado para a época:

Por primera vez desde la edad clásica, el lugar ideal para realizar el tratamiento ya no es más la institución especializada, que vigila al loco y previene el contagio, sino el medio de vida del enfermo, su familia, su casa, su barrio, su lugar de trabajo. Se asocian al psiquiatra, considerado durante mucho tiempo el agente terapéutico específico, los demás trabajadores de la salud mental (enfermeros psiquiátricos, asistentes sociales, psicólogos o educadores especializados), y también los trabajadores sociales de la comunidad, los médicos clínicos y, por último, todos que se vinculan con el enfermo, en particular su familia y amigos. Sobre todo, al dejar de estar aislado en el asilo, el proceso patológico ya no impregna solo al enfermo, único beneficiado de la intervención terapéutica, sino que engloba a su medio y a la comunidad toda, considerada ‘enferma’ de sus locos y objeto nuevo de un tratamiento original, la terapia comunitaria (HOCHMANN, 1972, p. 18).

Ao usar o termo “trabalhadores da saúde mental”, ao negar o privilégio terapêutico ao

psiquiatra, citando outras categorias, ao valorizar os trabalhadores sociais da comunidade,

médicos clínicos, parentes e amigos, Hochmann aponta o caminho das redes de atenção

psicossocial que hoje estamos tecendo.

No seguinte trecho, Hochmann oferece a sua visão a respeito da mudança de foco no

trabalho em Saúde Mental, saindo do indivíduo em direção ao coletivo:

Una vez que se rompe con la localización arquitectónica del paciente en el interior del asilo, desaparece la localización exclusiva de la enfermedad en el individuo. El mal se ubica en un sistema en el que se articulan el enfermo, sus parientes, la estructura social subyacente y el conjunto de quienes pretenden curarlos. El sistema completo soporta la patología y se transforma en objeto del tratamiento (HOCHMANN, 1972, p. 19).

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94

Os méritos do texto acima são: situar aqueles que tratam no mesmo sistema ao qual

pertencem as pessoas a serem tratadas e apontar que a estrutura social precisa estar em

questão, visto também ser parte do “mal”.

Hochmann discute o papel do profissional de Saúde Mental com bastante avanço para

a época em que escreveu. Ao negar os enfoques que colocam os profissionais com o saber,

seja interpretação, conselho ou remédio (Cf. HOCHMANN, 1972), a respeito do que acontece

com as pessoas que estão sendo tratadas, o autor diz que: “El centro del interés del profesional

lo constituye uma red de interacciones evolutivas en la que él se compromete personalmente”

(HOCHMANN, 1972, p. 25).

Hochmann entra na discussão do possível desaparecimento dos desviantes em

sociedades futuras negando essa possibilidade. Mas aponta muito claramente que a mudança

radical dar-se-á na forma como a sociedade poderá se organizar e, conseqüentemente, lidar

com seus “diferentes”:

Creo, simplesmente, que em todo momento el desviado expressa lo más opressivo, alienante y destructor de uma cultura (de toda cultura). Estimo que se ha querido acallar esta voz, esta negación. A mi juicio, nos encaminamos hacia una civilización en la que ella no desaparecerá, sino que será atendida en todo momento y encarada en forma constructiva, continuamente ‘autoterapéutica’, por un grupo social que considere al cambio como ley (HOCHMANN, 1972, p. 23).

Podemos ver, no texto acima, uma seta apontada para um futuro em que a exclusão

terá sido elaborada pela Humanidade, as manifestações hoje abordadas com métodos

reducionistas compreendidas no conjunto social e a função terapêutica espalhada pelos

membros das comunidades?

Para chegar a uma sociedade que integre suas diferenças de modo radical, a função

atual do terapeuta, trabalhando com a consciência de que opera num sistema do qual faz parte

é: “[...] contribuir a que en el interior de este sistema, al que pertence, se libere el discurso

reprimido” (HOCHMANN, 1972, p. 25).

Hochmann utiliza, para os capítulos do seu livro que tratam da prática da psiquiatria

comunitária, a experiência, que então durava quatro anos, nas cidades de Bron, Villeurbanne e

Vaulx-en-Velin, na França. Trabalharam com ele médicos, assistentes sociais, psicólogos,

enfermeiras e uma socióloga. (Cf. HOCHMANN, 1972)

Hochmann, ao descrever o que então conceituava como “atenção extrahospitalar”,

descreve as ações do “[...] dispensário de higiene mental” (Hochmann, 1972, p. 193),

Page 95: Saude mental na atencao basica

95

semelhante aos nossos Ambulatórios, mas com algumas diferenças no sentido da ação na

comunidade. Já, então, afirmando que psicóticos e alcoólatras necessitam de atendimento de

Equipes e não se beneficiam de abordagens com apenas um profissional, Hochmann relata

que os dispensários de higiene mental se encarregavam dos egressos das internações e que os

médicos e a Equipe que atendiam os pacientes nos hospitais psiquiátricos, freqüentemente

eram os mesmos que o faziam nos dispensários. Isso, segundo o autor, facilitava uma

mudança na relação dos pacientes com seus problemas, ao poderem conviver com os

membros dos hospitais num outro tipo de relação, não carcerária. (Cf. HOCHMANN, 1972).

É interessante o registro histórico que faz Hochmann, ao citar o psiquiatra Sassolas,

como o primeiro, no contexto francês, que utilizou a “[...] consulta grupal” (HOCHMANN,

1972, p. 195). Este psiquiatra se colocava à disposição de um grupo de pacientes por um

período de três horas semanais, com freqüência livre e possibilidade de consulta individual.

Aos poucos, esse grupo recebeu pacientes que nunca estiveram internados e outros

profissionais, transformando-se “[...] em una especie de foro, en un club, pero com clara

orientación terapêutica” (HOCHMANN, 1972, p. 196), inclusive com pacientes assumindo

papéis de cuidadores. Note-se a semelhança do que está descrito com o que praticamos, agora,

nos Ambulatórios Ampliados.

Criticando as práticas profissionais isoladas, ainda freqüentes entre nós, atualmente,

Hochmann reforça a necessidade de intervenção de uma Equipe e diz:

Por lo tanto, el tratamiento siempre se emprende bajo una determinada presión social, en un clima coercitivo que se adapta mal a las reglas de la práctica liberal. El dispensario es una herramienta de inestimable valor para permitir la intervención de muchos ( HOCHMANN, 1972, p. 188).

Exemplificando o tipo de abordagem que praticava, Hochmann relata um caso que é

instrutivo para seguirmos os passos da Saúde Mental nas comunidades:

X. se encerró en su casa desde hace ocho días, rechaza a todos y se deja morir de hambre lentamente. En este caso el psiquiatra privado podría desempeñar su papel con gran dificultad. El del dispensario puede venir a hablar con el enfermo, con los vecinos, la asistente social y el médico del barrio, desarticular la ansiedad y animosidad que aumentan y, por último, ver el enfermo, hacerle aceptar la visita de una enfermera psiquiátrica a domicilio y emprender un tratamiento (HOCHMANN, 1972, p. 197).

Page 96: Saude mental na atencao basica

96

Mesmo ainda estabelecendo a prática muito centrada no psiquiatra, Hochmann já

mostra, claramente, o trabalho em Equipe, em rede e associado à Saúde em geral. É

interessante notar, no exemplo citado acima, que o paciente só é visto após muitas outras

ações da Equipe, que já são terapêuticas para o conjunto.

A respeito da assistência a domicilio, Hochmann diz que na França ela estava pouco

desenvolvida, mas que já estava em uso nos Estados Unidos e Canadá (Cf. Hochmann, 1972).

Hochmann fala mesmo da “[...] hospitalización a domicilio” (HOCHMANN, 1972, p. 199),

onde “El enfermo recibe cuidados de um equipo de enfermeras y médicos que van a verlo a su

casa todos os dias” (HOCHMANN, 1972, p. 199).

Sempre reforçando a necessidade básica de a Equipe questionar seus métodos, afinar

seus conceitos e perceber o contexto social em que atua, Hochmann diz que “[...] el

dispensario es un lugar de desalienación para el equipo de higiene mental” (HOCHMANN,

1972, p. 197). Os membros da equipe, ao saírem do asilo, questionam as hierarquias, entram

em contato com a vida real das comunidades e procedem ao trabalho de desalienação, que, é

claro, não termina nunca, pois, “[...] el asilo se reconstruye rapidamente” (HOCHMANN,

1972, p. 198). Desta forma, Hochmann traz uma mensagem muito atual para nós:

Por desgracia, pareciera que, en cuanto sale del asilo, el psiquiatra tiende a reconstituir, con a complicidad del cuerpo social, una fortaleza, una baronía. Le es necesaria una vigilancia particular para evitar un nuevo encierro en algún Centro de Salud. La visita a domicilio es un elemento indispensable para la higiene mental de los propios asistentes. Es el virus antijerárquico y antiinstitucional más poderoso que conocemos (HOCHMANN, 1972, p. 200).

Hochmann percorre, na descrição de seu trabalho prático, toda a série de dispositivos

então em uso e que não diferem muito dos que utilizamos hoje: hospital-dia, hospital-noite,

lar de pós-cura, enfermaria psiquiátrica de bairro, oficina terapêutica, oficina protegida. (Cf.

HOCHMANN, 1972). Hochmann avança muito em relação ao que praticamos, há vários

anos, ao questionar se “[...] el mejor taller protegido no es la fábrica, en la que, con la ayuda

del equipo de higiene mental y el médico laboral, el enfermo puede encontrar una tarea

adecuada a él y un grupo de sostén en sus compañeros” (HOCHMANN, 1972, p. 202). Com

o exposto, Hochmann diz que os equipamentos já existentes na comunidade são os lugares a

serem ocupados e onde a exclusão será questionada e, talvez, revertida.

Dentro da sua linha de aproveitar os recursos das comunidades e de

desinstitucionalizar a abordagem, Hochmann cria uma regra que vai aparecer nos trabalhos

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97

atuais de Saúde Mental na Atenção Básica e que requer muita atenção: “En la llamada

psiquiatría de ‘setor’, no debe crearse ninguna institución especializada antes que hayan sido

investigadas y utilizadas todas las posibilidades terapéuticas de la comunidad”

(HOCHMANN, 1972, p. 204). Mais adiante vamos ver esse conceito surgir, entre nós, com o

termo “recursos ocultos da comunidade”.

Hochmann afirma o caráter desinstitucionalizador do seu trabalho, a valorização dos

espaços e recursos comunitários e tenta frear os impulsos de abordagens especializadas dos

profissionais da Saúde Mental.

Seguindo a regra citada acima, Hochmann diz que se

Impide una fácil reconstitución del asilo fuera de sus limites, es decir, de un nuevo espacio especializado, percibido de inmediato como hostil y rápidamente excluido, en el que personas especiales (los psiquiatras) curen a otras personas especiales (los locos) (HOCHMANN, 1972, p. 204).

Dentro de sua conceituação, que utiliza o termo “sociopatia”, conforme vimos acima,

e ainda coloca o trabalho que faz como uma modificação da psiquiatria, Hochmann chama de

“[...] acción sociopsiquiátrica” (HOCHMANN, 1972, p. 204) a prática que desenvolveu.

Como exemplo dela, Hochmann cita as ações junto às instituições que existem na

comunidade, como, por exemplo, a Escola, os Centros Médicos e Sociais, os abrigos para

jovens, os grupos de ex-alcoólatras, as associações de pacientes mentais (Cf. HOCHMANN,

1972). A “Equipe Psiquiátrica” estabelece colaboração com as Equipes das instituições, num

trabalho conjunto, que Hochmann exemplifica com a Escola, onde professores, psiquiatra do

setor, assistente social e psicólogo educacional funcionam juntos, para resolver os problemas

de modo coletivo (Cf. HOCHMANN, 1972).

Hochmann enfatiza a necessidade de que a Equipe se integre verdadeiramente à

comunidade, mantendo contato e trabalhando junto com as estruturas políticas e

administrativas. De alguma forma o trabalho político-administrativo deve ser organizado, com

assembléias, campanhas de esclarecimento, contatos com as instâncias policiais e políticas e o

grande público. (Cf. HOCHMANN, 1972). Hochmann diz que

El objetivo de estas discusiones es aumentar la tolerancia a la enfermedad mental, desmitificando la locura y a los que la atienden, también llamar la atención hacia los problemas de equipamiento y reclutamiento de personal, en resumen, de dinero (HOCHMANN, 1972, p. 206).

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Hochmann discute o papel do médico clínico na psiquiatria de setor, com alguns

pontos de contato com o que vemos hoje no Brasil. Criticando a especialização excessiva na

medicina, assinala o que, entre nós, é corriqueiro: o paciente perdido entre diversos

especialistas e sem que seja ouvido em sua integralidade (Cf. HOCHMANN, 1972).

Hochmann trabalhava nos “dispensários de higiene mental”, estrutura distinta daquelas que,

na região, atendiam os pacientes clínicos. Desta forma, tratava de trabalhar em conjunto com

os médicos clínicos, daí a ter podido fazer suas propostas para que a medicina pudesse ter

uma visão melhor da população, com “[...] la creación de uma opción ‘clínica’, con formación

psicológica y sociológica profundizada em el programa de los estúdios de medicina [...]”

(HOCHMANN, 1972, p. 208). Hochmann trabalhava na lógica que, entre nós, chamamos de

referência e contra-referência, que discutiremos adiante.

Hochmann valorizava de modo especial o trabalho dos Assistentes Sociais, chamados

por ele de “polivalentes” (Cf. HOCHMANN, 1972) na medida em que visitavam os

domicílios, faziam a ligação entre as famílias, os setores dos serviços de saúde, as diversas

instituições da comunidade e da cidade. Era o profissional que tinha mais conhecimento e

contato com a comunidade. (Cf. HOCHMANN, 1972).

Sempre atento às ameaças do reaparecimento dos vícios institucionais paralisantes,

Hochmann ressalta a importância das reuniões de pequenas equipes, centradas na discussão e

encaminhamento da abordagem de um paciente ou família. Dessas discussões participam

todos os envolvidos na situação, não importando a que instituição pertençam ou, até mesmo,

se pertencem a alguma. Momento de organização do atendimento, da troca de experiências a

respeito do que está sendo vivido, campo de capacitação, essas equipes, segundo Hochmann:

[...] solo se unen en razón del caso tratado (y no por una organización jerárquica o la pertenencia a determinado servicio), que se realizan entre servicios y son interdisciplinarios, se organizan y desaparecen según la demanda y, de esta manera, están mejor protegidos contra los peligros de la esclerosis institucional (HOCHMANN, 1972, p. 210).

Hochmann aponta que essas reunioes de equipe devem servir para o desenvolvimento

do que chamou de “[...] sustitutos terapéuticos” (HOCHMANN, 1972, p. 210), que são

membros da comunidade que já eram importantes na vida das pessoas e famílias atendidas e

que podem se transformar em importantes formadores de opinião e ajudantes terapêuticos.

Hochmann se dispõe a discutir as críticas que já então surgiam a respeito da psiquiatria

de setor, que seria uma forma especializada, mais “leve”, de controlar os indesejáveis. De um

modo um tanto conformista, Hochmann diz que “La psiquiatría que hagamos (sea hospitalaria

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99

o extrahospitalaria), será a imagen y semejanza de la sociedad y del lugar que esta reserve a la

locura” (HOCHMANN, 1972, p. 222). Desta forma, foge da crítica ao postular que o que faz,

de qualquer modo, é produto da sociedade. Bem como a crítica, poderia completar. Assim,

isenta-se de afirmar que propõe mudanças na sociedade e de valorizar o caráter transformador

que sua própria prática contém, postura esta que não coincide com sua crítica social e com a

até violenta crítica à psiquiatria organicista e à nosografia. Concluindo sua resposta a

possíveis questionamentos, Hochmann diz que

De hecho, el ‘sector’ es, ante todo, un instrumento, y no un fin. La psiquiatría comunitaria representa una etapa técnica en la evolución de la psiquiatría (etapa que quizá sea franqueada con rapidez y que puede desembocar en una decadencia de la propia psiquiatría). Si se evita convertir al ‘sector’ o a la ‘comunidad’ en objeto ideal, especie de dios al que conviene ofrecer sacrificios, si se lo considera, con más modestia, un medio entre otros para asistir a los enfermos mentales - o a algunos -, entonces pierden su razón de ser muchas críticas. Solo se puede cuestionar teóricamente a la ideología comunitaria; la práctica de sector, en cambio, debe ser juzgada por sus resultados (HOCHMANN, 1972, p. 225).

Vemos, no trecho citado, diversos detalhes que ao longo do presente capítulo serão

retomados, pois fazem parte da atual discussão a respeito da Saúde Mental na Atenção Básica.

Hochmann se refere ao setor como um instrumento e não como um fim. Perguntamos: para

que fim?

Hochmann responde, de modo novamente contraditório com o seu próprio discurso

crítico, que o fim é assistir enfermos mentais. Ao negar-se a dar conseqüência social e política

à sua prática, repleta delas, Hochmann recai na razão nosográfica, que tanto abomina. Mais

uma vez, também, Hochmann mostra que vê o seu trabalho como uma evolução da psiquiatria

e não, como agora podemos colocar, como resultante das mudanças sociais, políticas e

econômicas, que levaram a psiquiatria a ser apenas mais uma dentre várias formas de

compreender e agir em relação aos denominados “problemas mentais”. E a quais resultados

Hochmann se refere? Assistir enfermos mentais de modo avançado, é um resultado

necessário, mas acanhado em face dos muitos outros possíveis resultados que o próprio

Hochmann aponta: mudar a forma da sociedade encarar a loucura, questionar a exclusão,

fazer a sociedade criticar e mudar as suas formas doentias de relacionamento e produção,

tornar a comunidade mais autônoma em relação aos poderes estabelecidos.

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Nas conclusões do seu livro, Hochmann volta a dar conseqüência social e política às

suas proposições e ações. O título do capítulo já é significativo: “Hacia uma política de salud

mental” (HOCHMANN, 1972, p. 226). Nele, Hochmann diz

En efecto, si no se esbozaran profundos cambios en las relaciones entre enfermo mental y sociedad (y, por lo tanto, en la misión que asigna al psiquiatra y sus colaboradores), si las instancias sociales no evolucionaran en este sentido, el hecho de afirmar que el psiquiatra desea tratar a conjuntos y considerar al enfermo como testimonio de una patología más global, y de invocar su condena de una nosografia objetivante, a fin de predisponerlo a nuevas perspectivas y cambios institucionales, solo tendría interés anecdótico. Hay que redefinir la misión de la psiquiatría con ayuda de instrumentos de trabajo radicalmente nuevos (HOCHMANN, 1972, p. 226).

Hochmann, nas suas conclusões, também aponta as dificuldades que o financiamento

do Setor Saúde impõe à prática integrada em Saúde Mental, que englobe, ou faça perder seus

limites, a assistência e a promoção da Saúde Mental (Hochmann fala em prevenção).

Mantendo a sua atualidade, para nós, já que estamos vivendo o problema, Hochmann propõe

um ganho, por Equipe, constante, e não o pagamento por “[...] precio diario” (HOCHMANN,

1972, p. 231). De acordo com Hochmann,

[...] la noción de precio diario surge directamente de la remuneración inmediata que es común en las profesiones liberales. Esta forma de financiación nos transforma en una empresa de producción de un servicio individualizado y nos obliga a reforzar cada vez más nuestro poder de especialistas, los únicos capaces de curar. (HOCHMANN, 1972, p. 231).

Em termos de organização dos serviços, Hochmann propõe:

[...] pequeñas unidades asistenciales polivalentes, diseminadas em la comunidad, que puedan funcionar como lugar de cura, hogar, hospital diurno y enfermaria psiquiátrica barrial. Estas pequeñas estructuras podrían ser independientes o adscribirse a un hospital general cercano. Formarían parte del dispositivo sectorial, y no tendrían en él carácter central alguno, ya que representarían solo a uno de los elementos, sin ninguna función de control por sobre los demás (HOCHMANN, 1972, p. 237).

Com essa proposta, Hochmann pretendia tornar unificadas as ações de assistência,

prevenção e organização/administração do sistema. (Cf. HOCHMANN, 1972). Quanto à

administração do sistema citado, Hochmann, coerente com sua postura de distribuir pela

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comunidade as funções que tradicionalmente são precípuas dos aparelhos governamentais,

afirma que

Toda la orientación de nuestro trabajo conduce naturalmente a afirmar que, bajo el control de los organismos presupuestarios públicos, los usuarios del servicio, los asistentes, los pacientes, los habitantes de la comunidad, son los únicos habilitados para orientar y dirigir con eficacia la política de salud mental (HOCHMANN, 1972, p. 238).

Hochmann valoriza as Associações comunitárias, que, no caso francês, seriam sem

fins lucrativos e com captação de fundos públicos (Cf. HOCHMANN, 1972). Sugerindo o

tipo de composição e de funcionamento dessas Associações, Hochmann diz:

La representación de funcionarios municipales, miembros de asociaciones barriales, familias de enfermos, de estos mismos enfermos y de quienes están a cargo de la asistencia o prevención de sus problemas, la transforma en una verdadera comunidad terapéutica (HOCHMANN, 1972, p. 238).

Ao longo de todo o livro citado, Hochmann propõe a discussão coletiva a respeito do

que acontece com aqueles que são apontados como pacientes mentais, nas relações com suas

famílias e sua comunidade. Conseqüente com sua orientação teórica, sugere a diluição e

potencialização, nas comunidades, da função terapêutica e de cuidados, com aprendizado

conjunto. Nas últimas páginas do seu capítulo de conclusão, deixa assinalada uma advertência

que estamos, agora, vivenciando e que voltaremos a comentar:

Pero esta inmersión en la corriente comunitaria, esta difusión del trabajo y la pérdida de la protección que representa una identidad profesional, señalada por la pertenencia a un cuerpo rígido (el espíritu de cuerpo), puede provocar angustia; por lo tanto, es importante que el equipo de higiene mental se transforme en un grupo de sostén enriquecedor y reparador (HOCHMANN, 1972, p. 238).

Em 1979, Paulo Rocha, psiquiatra do Rio Grande do Norte, apresentou uma

Dissertação de Mestrado, no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, que teve como propósito, discutir os programas de psiquiatria comunitária na

América Latina. (Cf. ROCHA, 1979). O autor justifica a delimitação da pesquisa à América

Latina, devido à necessidade de observar trabalhos próximos de nós e com a característica de

Page 102: Saude mental na atencao basica

102

países subdesenvolvidos, chamando a atenção para o perigo da importação de modelos. (Cf.

ROCHA, 1979). Apesar do título da dissertação fazer referência, ainda, apenas à psiquiatria, a

proposta do autor é “[...] contribuir a uma discussão que aperfeiçoe a direção orgânica do

movimento em torno da saúde mental” (ROCHA, 1979, p. 5).

Paulo Rocha situa as práticas do trabalho comunitário em Saúde dentro do “modelo

desenvolvimentista”, sob orientação de organismos internacionais, como a Organização das

Nações Unidas e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, e que teve, nos Estados

Unidos, na década de 60, um impulso com os Programas de Ação Comunitária. (Cf. ROCHA,

1979). A intenção desses programas era que, através da participação popular e de

oportunidades sociais, “[...] os problemas sociais, com suas lutas e tensões, seriam minorados

e superados” (ROCHA, 1979, p. 7).

Tentando situar politicamente as práticas comunitárias em Saúde, Paulo Rocha,

fazendo referência a trabalho de Donnangelo, diz:

[...] a alternativa da medicina comunitária surge [...] como uma tentativa de preencher os ‘vazios’ na estrutura de produção dos serviços médicos, com extensão do consumo desse produto, simplificação de recursos (barateamento de custos) e, ao mesmo tempo, fundamentalmente, com ampliação de suas funções ideológicas e políticas, hegemonicamente, no processo de ‘medicalização’ da sociedade (ROCHA, 1979, p 8).

O autor da dissertação, ao procurar definir as determinações que fizeram emergir a

“alternativa comunitária” em psiquiatria, situa importantes influências da “[...] série de

transformações sócio-econômicas-políticas, a partir da 2a. Guerra mundial, que repercutiram

diretamente nas formas organizacionais da Medicina [...]” (ROCHA, 1979, p. 9).

Na Inglaterra, em 1959, e nos Estados Unidos, em 1963, são editadas leis que

mudaram a forma de tratar em psiquiatria. As preocupações, nos dois casos, eram a

precariedade da assistência e a necessidade de cortar gastos. (Cf. ROCHA, 1979). Nos

Estados Unidos ganha força a proposta de

[...] aplicação dos princípios preventivistas em Psiquiatria com atuação na comunidade, através dos centros comunitários de saúde mental. Estavam lançadas as bases oficiais para a ampla extensão dessa política de saúde mental, nos EUA e, conseqüentemente, a importação desse modelo, pela dependência econômico-social, para a América Latina ao final da década passada (ROCHA, 1979, p. 10).

Page 103: Saude mental na atencao basica

103

De acordo com o autor que vem sendo citado, a sociedade americana passava por uma

crise, na época das propostas descritas acima, com incidência na forma de lidar com os “[...]

conflitos e tensões sociais resultantes de determinantes mais profundos e estruturais na sua

formação social” (ROCHA, 1979, p. 11). Característico da forma de os Estados Unidos

lidarem com seus problemas, predominava, com abordagem dos mesmos, a “[...] concepção

funcionalista que entende os problemas sociais, como resultantes de um ‘desvio’ ou

‘desajuste’ de uma pressuposta e dada sociedade equilibrada, estável, funcionando

harmonicamente [...]” (ROCHA, 1979, p. 11). Surgem as propostas de atacar os focos de

problemas, como, por exemplo, a pobreza, dentro dessa visão funcionalista.

A pobreza, então, não teria sua resolução com base nas origens da desigualdade, mas

“[...] dando ‘oportunidade’ de participação social: acesso a escolas, acesso a habitações,

acesso à assistência médica, acesso a centros comunitários para melhoria da saúde mental

[...]” (ROCHA, 1979, p. 11). A América Latina absorve, como conseqüência da dependência,

segundo Paulo Rocha, “[...] essas práticas de saúde, [...] a partir de 1960, com grande ajuda

dos organismos internacionais – OMS/OPAS” (ROCHA, 1979, p. 12), com os problemas

decorrentes da importação de modelos de Saúde.

Talvez tentando encontrar trabalhos que fugissem da lógica de repetição de modelos, o

autor da dissertação cita Lubchansky, argentino, que desenvolveu um trabalho comunitário a

respeito do qual saiu uma publicação em 1972. Lubchansky, segundo Paulo Rocha, dizia que

[...] é a prevenção primária, ao considerar a saúde como uma variável dependente, a que colocaria mais em xeque, conflitivamente, o trabalho dos profissionais na área, pois o situa face a face, dentro do esquema proposto de evitar/controlar os fatores causais, com as questões estruturais da sociedade – modelo econômico/político vigente [...] (ROCHA, 1979, p. 21).

Estamos vendo, na dissertação de Paulo Rocha, o nosso recorrente tema do aspecto de

controle que tem as ações de Saúde Mental na comunidade e as possibilidades de escapar

desse destino, mesmo enquanto agentes ligados ao serviço público.

Paulo Rocha, ao destacar os autores brasileiros que fundaram a psiquiatria social

lembra de Ulysses Pernambucano como o precursor. (Cf. ROCHA, 1979).

O autor da dissertação cita um trabalho de Lucena, de 1978, no qual este autor dá

como características da psiquiatria brasileira, na época:

Page 104: Saude mental na atencao basica

104

- difusão nacional do importante esforço de mudança do estilo do hospital psiquiátrico (de custodial para terapêutico); - demonstração da miséria da assistência ao doente mental no Brasil; - diretrizes de orientação comunitária, social e preventiva (se forem seguidas) no âmbito da assistência psiquiátrica da Previdência Social; - reconhecimento da significação das ciências sociais como uma das bases das ações da ação do psiquiatra. (ROCHA, 1979, p. 21).

Sempre situando o problema da assistência psiquiátrica no campo político, Paulo

Rocha cita Leme Lopes que, em 1972, dizia da importância do “[...] trabalho psiquiátrico

como agente de transformação social [...]” (ROCHA, 1979, p. 26).

O autor da dissertação situa a importação dos modelos de saúde comunitária dentro da

necessidade, que será questionada, de dar conta da questão da marginalidade. (Cf. ROCHA,

1979). O primeiro modo de ver a marginalidade, que o autor descreve, é o funcionalista, que a

compreende como uma disfunção que se resolverá pela integração dos marginalizados ao

sistema social colocado como modelo a ser incorporado. (Cf. ROCHA, 1979). Por outro lado,

há o que Paulo Rocha descreve como “[...] uma visão estrutural, histórica, que busca

apreender o fenômeno da marginalidade como decorrente de formas de inserção num sistema

produtivo, ao nível das relações sociais de produção” (ROCHA, 1979, p. 29).

As diferentes formas de conceber a marginalidade resultará em diferentes modos de

propor e praticar a participação, tema básico para as propostas de saúde comunitária. A

participação será instrumento de modernização conservadora ou será a base mesmo do

trabalho comunitário, aberto a mudanças não previstas. Segundo Paulo Rocha, de acordo com

a pesquisa bibliográfica que realizou, os trabalhos de saúde comunitária são em geral

funcionalistas, com alguns esforços para que transitem para o enfoque estrutural. (Cf.

ROCHA, 1979).

Paulo Rocha depreende, da sua análise dos programas comunitários de Saúde Mental

na América Latina, que a participação popular neles tem aspectos mistificadores, ideológicos,

manipuladores. A participação é, então, citando Ulloa, uma “[...] forma de

pseudoparticipação, organização da pobreza no sentido adaptativo de diminuir as tensões

sociais” (ROCHA, 1979, p. 47).

Paulo Rocha, no terceiro capítulo da sua dissertação, discorre a respeito da

organização de programas de psiquiatria comunitária e de seus embasamentos teóricos. Para

isso, analisa alguns Programas de Psiquiatria Comunitária e de Saúde Mental em alguns

países da América Latina.

Page 105: Saude mental na atencao basica

105

Ao citar as transformações na Saúde Mental no Chile, o autor da dissertação reafirma

a influência decisiva do momento histórico do país na determinação dos rumos dos programas

de Saúde. (Cf. ROCHA, 1979). Paulo Rocha cita Marconi, que se interroga, em trabalho de

1973, se seria necessária uma etapa intermediária entre o mundo feudal do asilo e a “[...]

solução nacional, maciça, intracomunitária.[...]” (ROCHA, 1979, p. 52). Da etapa

intermediária constariam os serviços de psiquiatria nos hospitais gerais e as unidades de saúde

mental. O autor que Paulo Rocha cita deixa uma interrogação muito atual: “Vivemos uma

revolução em saúde mental, porém... revolução tecnocrática ou revolução cultural?”

(ROCHA, 1979, p. 52).

Ainda o mesmo autor, Marconi, segundo Paulo Rocha, assinalava como princípios

gerais para “[...] projetos de programas integrais em saúde mental [...]” (ROCHA, 1979, p.

54) que “[...] o ponto de partida segue sendo a cultura popular; o diálogo criativo

comunidade-técnico é o motor central das mudanças [...]”, e que “[...] em nossos programas

partimos dos recursos existentes na área e não dos que deveriam existir, para iniciar a ação

[...]” (ROCHA, 1979, p. 54). Além desses princípios, a troca de informações e saberes com a

comunidade é ponto prioritário. (Cf. ROCHA, 1979).

Ao criticar o Programa de Saúde Mental implantado em Cáli, na Colômbia, Paulo

Rocha, numa discussão muito atual, diz que ele é

talvez o melhor exemplo da visão funcionalista na análise da realidade social latino-americana e, especificamente, na área de saúde mental, trazendo como conseqüência dessa orientação, concepção e propostas de programas de psiquiatria comunitária de caráter eminentemente profissional-burocrático, buscando solução, não pela participação ativa e decisória da comunidade, mas através de melhor assistência pela racionalização de recursos, ênfase no treinamento de técnicos-profissionais especializados, etc, etc. (ROCHA, 1979, p. 63).

Ao chegar, na sua pesquisa e análise, ao Brasil, Paulo Rocha começa por situar a “[...]

Campanha Nacional de Saúde Mental esboçada a partir de 1964” (ROCHA, 1979, p. 67)

como representante direta das “[...] proposições norte-americanas sobre assistência aos

doentes mentais (Kennedy, no Congresso em 1963), bem como da nossa situação político-

econômica vigente pela implementação do novo governo militar” (ROCHA, 1979, p. 67).

Mesmo com um discurso onde aparece a intenção de desenvolver a “psiquiatria preventiva”, a

Campanha Nacional de Saúde Mental “[...] constituiu-se basicamente num plano hospitalar-

psiquiátrico, privilegiando as instituições hospitalares no sentido de internações, reforçando a

Page 106: Saude mental na atencao basica

106

velha prática assistencial asilar” (ROCHA, 1979, p. 68). Em contraposição ao estabelecido,

Paulo Rocha cita os trabalhos de Luiz Cerqueira, (Cf. ROCHA, 1979) uma voz ativa em um

período especialmente difícil, como vimos páginas acima.

Paulo Rocha considera que foi com a “[...] elaboração de um projeto de serviço de

saúde mental comunitária no Centro Médico São José do Murialdo, nos arredores de Porto

Alegre [...]” (ROCHA, 1979, p. 71), que, no Brasil,

lançavam-se bases concretas de programas comunitários em Psiquiatria, nos moldes dos programas anteriormente descritos do México, Cáli, entre outros, de unidades de saúde mental integradas em serviços de saúde pública (ROCHA, 1979, p. 71).

Paulo Rocha, a exemplo de Luiz Cerqueira, cita a tese de Ellis Busnello, “Integração

da Saúde Mental num Sistema de Saúde Comunitária” como de grande importância para a

compreensão dos inícios da Saúde Mental Comunitária, fazendo da tese, talvez, o ponto

central de seu estudo. (Cf. ROCHA, 1979).

A dissertação de Paulo Rocha, sempre com a atenção voltada para os conceitos que

embasam os trabalhos no que eles têm de ruptura com as formas alienantes de tratamento ou

sua repetição, é bastante crítica em relação ao trabalho de Busnello, desde o início das suas

observações. Por exemplo, detecta que Busnello ainda estava utilizando o antiquado binômio

saúde/doença e, além disso, “[...] colocado dentro de um prisma dos mais criticados

ultimamente: a adaptação” (ROCHA, 1979, p. 73).

Paulo Rocha percebe que Busnello, ao iniciar as ações de psiquiatria na comunidade,

o fez, seguindo “[...] os princípios gerais de implantação dos centros comunitários de saúde

mental conforme desenvolvidos nos EUA, na década de 60, estudando possibilidades de

adaptação dos mesmos ao nosso contexto sócio-cultural” (ROCHA, 1979, p. 76). Busnello

recai em repetições de modelo e em reforço do conceito de doença mental mesmo com as

boas intenções que demonstra ao criticar o modelo assistencial dominante na época, que

privilegiava as internações. (Cf. ROCHA, 1979).

Observando as bases conceituais de Busnello e sua prática e, mais uma vez mostrando

o que parece ser um dos focos principais de atenção da dissertação, o grau de participação da

comunidade nos Programas de Saúde Mental que se propõem comunitários, Paulo Rocha diz

que “Chama nitidamente a atenção nesses fundamentos a ausência da comunidade como

agente principal nesse trabalho, no sentido de participação ativa e decisória em todos os

níveis” (ROCHA, 1979, p. 77).

Page 107: Saude mental na atencao basica

107

Apesar de já haver uma preocupação, no trabalho de Busnello, em treinar líderes

comunitários, segundo Paulo Rocha é ao ambulatório que cabe, nele, a função principal. O

acento, portanto, é na equipe, e no trabalho prioritário na esfera mental. (Cf. ROCHA, 1979).

Paulo Rocha, em diversas passagens de seu texto, critica a ênfase exclusiva que

Programas de Saúde Comunitária dão ao campo psicológico, enquanto entraves e soluções

para os problemas. Desta forma, Paulo diz que a colocação da solução dos problemas na

mudança psicológica, seja da população, seja dos profissionais, deixa de levar em conta as

“[...] preocupações com a análise e articulação de estudos dessas situações com as estruturas

sociais e políticas e seus determinantes econômicos vigentes” (ROCHA, 1979, p. 82).

Para concluir sua observação a respeito do trabalho no Sistema Comunitário de Saúde

da Unidade Sanitária Murialdo, Paulo Rocha diz que “[...] o papel das comunidades nesse

modelo de programa nos parece passivo e receptivo” (ROCHA, 1979, p. 82).

Paulo Rocha define como o “objetivo maior” de sua dissertação, “[...] traçar

coordenadas gerais, críticas, a partir dos estudos mais pormenorizados de cada programa

modelo, sobre as formas organizacionais desses programas na América Latina” (ROCHA,

1979, p. 84). Para dar conseqüência a essa proposta, Paulo cita Marconi, que diz que “[...]

existem três modelos teóricos básicos: asilo-hospital psiquiátrico, unidade de saúde mental e

programa integral de saúde mental” (ROCHA, 1979, p. 84). Esses modelos acompanhariam a

“[...] estrutura sócio econômica de uma sociedade determinada” (ROCHA, 1979, p. 84). A

cada um desses modelos corresponde uma concepção do Homem, da sociedade e da

participação da comunidade nos serviços de Saúde. Apenas o último modelo define que a

comunidade deve gerir o serviço de Saúde, que é seu. (Cf. ROCHA, 1979). É freqüente que

convivam os três modelos em situações de transição.

Paulo Rocha cita mais uma vez Marconi, que opinava, já em 1976, que ao invés de

instalar “[...] unidades de saúde mental, com recursos institucionais tecnificados e em mãos

de profissionais de saúde mental” (ROCHA, 1979, p. 87), deveria ser desenvolvido “[...]

programa de baixo custo, de acelerada difusão, de dinâmica interna alta, que utilize recursos

locais” (ROCHA, 1979, p. 88). As discussões que despertam as últimas citações estão no

nosso cotidiano: instalar como prioridade estruturas pesadas e que requerem alto investimento

ou aproveitar, também, o que já existe na Atenção Básica, potencializando-a para o trabalho

em Saúde Mental?

Paulo Rocha traça, já nos seus Comentários Finais, um interessante paralelo entre as

ações da Saúde Pública e as táticas de guerra, mais uma vez com a intenção de verificar o

quanto de dominação está sendo estabelecido pelos serviços de Saúde. Desta forma, entre

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108

1930 e 1950 “[...] emerge o conceito de controle [...]” (ROCHA, 1979, p. 97) e entre as

décadas de 50 e 70 “[...] surge marcadamente o novo conceito: vigilância” (ROCHA, 1979, p.

98). Esta forma de situar o problema das ações de Saúde serve de base para que o autor da

dissertação entre no estudo das implicações político-ideológicas das práticas de psiquiatria

comunitária.

O primeiro autor que Paulo Rocha estuda é Caplan, de quem retira como bases para o

trabalho em prevenção primária, a psicologia do Eu e estudos de adaptação realizados no

exército americano, ambas conduzindo ao controle dos desvios. (Cf. ROCHA, 1979). A

prevenção para Caplan, segundo Paulo Rocha, é evitar o aparecimento de casos novos. Para

esse fim, inclusive, deveriam ser utilizadas técnicas de eugenia.

Caplan, de acordo com Paulo Rocha, coloca a situação sócio-econômica das pessoas

ao lado de características como sexo, idade e raça, portanto sem possibilidade de mudança.

Para concluir o que percebe em Caplan, Paulo Rocha diz:

É marcante a concepção funcionalista, ao colocar a Psiquiatria como realizadora do ‘equilíbrio social’ que encontra-se desajustado, ‘desviado’, por comportamentos ‘inadaptados’ dos indivíduos numa sociedade (ROCHA, 1979, p. 103).

Paulo Rocha, ao estudar o que Blaya publicou, na década de 70, destaca que esse autor

fez uma comparação entre a psiquiatria que queria ver comunitária com a psiquiatria que foi

praticada na Segunda Guerra Mundial, já com os ensinamentos obtidos durante a Primeira

Guerra Mundial. (Cf. ROCHA, 1979). Também adaptativa, a psiquiatria comunitária que

Blaya sustentava não esconde a sua condição de mantenedora da ordem. Paulo Rocha cita

palavras muito significativas de Blaya: “[...] os princípios de organização são os mesmos

experimentados na guerra, com uma adaptação às condições sociais que desejamos servir”

(ROCHA, 1979, p. 104).

Paulo Rocha, apresentando o que percebeu em Hochmann, critica-o por observar que,

ao situar nas relações interpessoais o problema da saúde mental e suas dificuldades, poderia

estar isolando essas relações da dinâmica da sociedade e reduzindo “[...] a problemática da

loucura nesse nível de ‘interpessoalidade’ com um caráter de nítida psicologização,

escamoteando, evidentemente, outros determinantes” (ROCHA, 1979, p. 107). Os serviços

psiquiátricos organizados com base nessa concepção de Hochmann seriam, então, mais do

que qualquer outra coisa, uma “[...] rede ideológica” (ROCHA, 1979, p. 107).

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109

Paulo Rocha recorre a Basaglia para continuar a situar o problema do desvio e seu

controle no campo econômico. As instituições psiquiátricas seriam, para Basaglia, segundo

Paulo, correlatas ao tipo de desenvolvimento do capitalismo, a cada momento dado. (Cf.

ROCHA, 1979). Na linha de pensamento de Basaglia, ao descrever como as ações

comunitárias lidam com o “social”, Paulo Rocha afirma:

Se nos limitarmos a considerá-lo como um simples conjunto de interações psicológicas manipuláveis segundo uma técnica particular e não como um conjunto das relações sociais de produção, se acaba por esquecer o jogo em cujo interior continuaremos seguindo: a nova técnica psiquiátrico-social surgida em oposição à rígida gestão institucional de enfermidade mental, se converte na realidade em uma nova forma de manipulação que encobre, sob a máscara da técnica, seu profundo significado de controle social (ROCHA, 1979, p. 112).

Ao concluir sua monografia, Paulo Rocha não fecha completamente as possibilidades

de que os programas da então chamada Psiquiatria Comunitária possam trazer mudanças que

sejam de interesse das populações. Apesar de suas pertinentes críticas às suas bases

ideológicas controladoras da Psiquiatria Comunitária, Paulo afirma que “[...] esses programas

de psiquiatria comunitária trazem necessariamente, no seu bojo, questões novas como a

participação e organização da população em torno de suas questões de saúde, abrindo

possíveis canais de reivindicação popular [...]” (ROCHA, 1979, p. 118). O autor da

monografia também reconhece que a Psiquiatria Comunitária traz avanços em relação ao asilo

e à organização da assistência como meio de lucro. (Cf. ROCHA, 1979).

Da sua extensa pesquisa, Paulo Rocha conclui que, na América Latina, naquele

momento, os programas estavam “[...] longe ainda de perspectivas ditas intracomunitárias,

integrativas, com real organização e participação da população” (ROCHA, 1979, p. 119).

Com essas palavras, Paulo mostra a sua expectativa e indica as características que devem ter

as ações de Saúde Mental praticadas em benefício das populações assistidas: “[...]

intracomunitárias, integrativas, com real organização e participação da população” (ROCHA,

1979, p. 119).

5.2 Precursores Brasileiros.

Com as origens das propostas de aproximação da Saúde Mental com as comunidades

esboçadas, passemos às práticas e idéias brasileiras.

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110

Podemos destacar, no Brasil, o psiquiatra Luiz Cerqueira como um dos primeiros

profissionais de Saúde Mental que conceituou, propôs e tentou colocar em prática algo

diverso da psiquiatria organicista: uma prática social em Saúde Mental. No seu artigo “Raízes

e Tendências da Psiquiatria Social no Brasil”, de 1978, republicado no seu livro de coletânea

“Psiquiatria Social – Problemas Brasileiros de Saúde Mental”, de 1984, Cerqueira cita seu

mestre Ulysses Pernambucano, que, segundo ele, foi o precursor, no Brasil, das proposições

de uma psiquiatria social. Como ilustração, nesse artigo, Cerqueira cita as palavras do mestre:

O que desejam os neuro-higienistas é que os homens de governo se capacitem de que a política de internar doentes, augmentar hospitais, desenvolver colonias sem cuidar de prevenir doenças mentaes, de combater as causas de psycopatias é tão errônea quanto o seria a que construisse hospitaes para doenças contagiosas e não tratasse de evitá-las (CERQUEIRA, 1984, p. 24).

Notam-se, no texto, a crítica à internação e o chamamento para que a psiquiatria se

interesse pelo mundo que rodeia o chamado doente mental. Ressalvas podem ser feitas ao

texto, mas o que ficou, segundo Cerqueira, foi o exemplo de Ulysses Pernambucano como

“[...] um psiquiatra com alma de sanitarista, descompromissado com o modelo médico-

privado-curativo exclusivo” (CERQUEIRA, 1984, p. 25). Ao fazer o elogio de seu professor,

Cerqueira o vê como profético, mas também o é, quando diz:

Vemos também nestas palavras algo de profético em que serão reduzidas, um dia, todas as tendências da psiquiatra social, integrando saúde mental em saúde pública, através dos centros comunitários de saúde mental ou coisa que o valham, como, por exemplo, trabalhadores psiquiátricos em todos os centros de saúde (CERQUEIRA, 1984, p. 25).

Apesar de ainda oscilar para a designação “trabalhadores psiquiátricos”, Cerqueira vê

a Saúde Mental integrada à Saúde Pública. O valor dessas palavras também está na sua

abertura, ao não fechar sua visão privilegiada numa só proposta, quando diz “através dos

centros comunitários de saúde mental ou coisa que os valha”. Com esse “ou coisa que os

valha”, Cerqueira mostra que olhava para o horizonte, sabia que lá existiriam novas ações em

Saúde Mental, mas não sabia exatamente quais seriam, nem se arvorava a isso. Deixava o

caminho aberto para as invenções, a criatividade e a surpresa.

Como raízes da psiquiatria social, Cerqueira lista a Sociedade de Higiene Mental de

Connecticut, EEUU, a psicobiologia, a fenomenologia, a psicologia não comprometida com

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111

condicionamentos para controles sociais, a sociologia e a psicanálise, principalmente as suas

contribuições para o trabalho com grupos. (Cf. CERQUEIRA, 1984).

No modo de ver de Luiz Cerqueira, a psiquiatria aproximou-se da Saúde Pública

depois que “[...] os sanitaristas reformularam seus conceitos estanques de profilaxia,

terapêutica e reabilitação, integrando-os dinamicamente em prevenção primária, secundária e

terciária” (CERQUEIRA, 1984, p. 26). Interessante observar o que pensava Cerqueira, a

respeito do futuro da psiquiatra comunitária, enquanto ideal dos psiquiatras sociais: “A

assistência psiquiátrica absorvendo e identificando-se tanto com os aspectos sociais, que não

mais seria possível falar em psiquiatria social” (CERQUEIRA, 1984, p 27). Novamente, aqui,

a visão de futuro em aberto e que traria mudanças profundas, mas ainda não vislumbradas.

O que fazemos hoje, na Saúde Mental na Atenção Básica, está claro para nós, não é

psiquiatria comunitária, bem como não são ações praticadas exclusivamente pelos

profissionais de Saúde Mental. A diluição potencializadora, prevista por Cerqueira, está em

andamento, e o seu mérito também é o de - atitude corajosa - prever a transformação da sua

própria identidade profissional.

Cerqueira especula a respeito da demora da integração psiquiatria/saúde pública e vê

na dicotomia clínica/higiene, dos inícios da saúde pública, um dos seus determinantes. Até

hoje essa divisão está presente, embora de forma menos intensa. Por exemplo, na Saúde

Mental, a maioria dos profissionais da rede pública ainda foi formada apenas para a clínica.

Continuando a prestar homenagem a Ulysses Pernambucano, Cerqueira diz que em

1939, viu em Barreiros, Pernambuco, organizados pelo mestre

alguns pacientes se auto dirigindo como parte do programa da Colônia: na periferia da fazenda, visitados pelo médico, em casas como as que eles construíam em sua terra, cultivando suas roças, pescando no rio, cozinhando os próprios mantimentos e os que iam buscar na sede (CERQUEIRA, 1984, p. 28).

Salvo o fato de estar nos terrenos de uma Colônia, o que está colocado acima é o que

hoje estamos organizando sob o nome de “Serviço Residencial Terapêutico”.

Ulysses Pernambucano implantou, em 1931, o Serviço Aberto - uma forma de evitar a

internação psiquiátrica, que retirava os direitos civis das pessoas - abriu o primeiro

Ambulatório de Psiquiatria do Brasil e organizou a primeira equipe multiprofissional e uma

“[...] ação comunitária extra-hospitalar” (CERQUEIRA, 1984, p. 29).

Como tendências da psiquiatria social, Cerqueira aponta a psiquiatria de setor

(Lebovicci, Paumelle, Ajuriaguerra), a psiquiatria democrática (Basaglia), a psiquiatria

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112

preventiva (Kaplan), a psiquiatria administrativa (Clark), a psiquiatria compreensiva e a

psiquiatria comunitária “[...] de muitos, de toda parte, sem se preocuparem com definições

acadêmicas” (CERQUEIRA, 1984, p. 29). Para Cerqueira, o mais importante autor, porém, é

Maxwell Jones, que recusava definições para a psiquiatria social.

Cerqueira aponta o que existe de comum nas correntes citadas, num resumo atual e até

mesmo um guia de estudo:

[...] ideologicamente, sem reducionismos, todas concebem etiologias e terapêuticas biopsicossociais; advogam prevenção, amarrada nos 3 níveis – primário, secundário e terciário – preocupando-se, como os sanitaristas, com cobertura da demanda não satisfeita; organicamente aceitam centralização normativa e descentralização executiva, em decorrência dos princípios de regionalização, coordenação e integração, com vistas aos fins e não aos meios; consagram a equipe multiprofissional; realizam tanto atendimentos individuais como grupais; adotam da psicanálise a teoria do inconsciente com os mecanismos de defesa da personalidade para a compreensão da conduta, normal ou patológica, numa visão psicodinâmica; tentam nova abordagem da comunidade, sem onipotências; enfim, rasgam o modelo médico-clínico-excusivo – na verdade, para nós, enriquecendo-o com uma consciência social (CERQUEIRA, 1984, p. 30).

Do Brasil, Cerqueira cita Ellis Busnelo, que produziu a tese “A Integração da Saúde

Mental num sistema de saúde comunitário”, em 1976, na Universidade Federal do Rio Grande

do Sul, baseada na experiência de Murialdo. (Cf. CERQUEIRA, 1984).

Em termos de análise do que estava ocorrendo na organização da assistência à Saúde

Mental no país (lembremos, o texto é de 1978), Cerqueira aponta o que os poderes

dominantes ainda tentavam esconder: a privatização da assistência, isto é, o que chamou de

“indústria da loucura”, levaria os cofres públicos à insolvência e à destruição de muitas vidas:

“Não mais de 10 anos e a empresa de saúde terá comido a galinha dos ovos de ouro, que é a

Previdência Social. O colapso virá” (CERQUEIRA, 1984, p. 32). Cerqueira percebe que, com

o que já se gasta com internações psiquiátricas, “[...] já podíamos ter um funcionamento

harmonioso, em moldes de vasos comunicantes, todo um sistema hospitalar conjugado com

um extra-hospitalar” (CERQUEIRA, 1984, p. 32).

Luiz Cerqueira apresentou, no V Congresso Mundial de Psiquiatria, no México, em

1971, um artigo que consta de seu livro de 1984. Trata-se de “Resistências às Práticas

Comunitárias”. (CERQUEIRA, 1984). Nele, Cerqueira vai buscar em Hipócrates “[...] as

resistências às práticas comunitárias [...]”, já que “[...] o caráter individualista da profissão

médica ainda hoje é ensinado aos psiquiatras, ensejando uma série de racionalizações, para

postergar o advento das socioterapias” (CERQUEIRA, 1984, p. 106).

Page 113: Saude mental na atencao basica

113

Luiz Cerqueira diz que os obstáculos colocados pelos interesses da indústria da loucura

já não são novidade, preferindo analisar outras resistências, “[...] como a de certos sanitaristas,

esmagados com as endemias, a se recusarem, de modo geral, a admitir saúde mental em suas

preocupações” (CERQUEIRA, 1984, p. 107) e, “[...] a mais grave das resistências [...] a

generalizada dificuldade dos psiquiatras em considerar saúde mental como um problema de

saúde pública” (CERQUEIRA, 1984, p. 107).

Luiz Cerqueira tem um artigo, publicado no livro que está sendo citado, que é um

relatório que apresentou ao “Simpósio de Psiquiatria Comunitária”, que aconteceu em junho

de 1975, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Cf. CERQUEIRA, 1984). Nele,

Cerqueira dá notícia do que estava sendo desenvolvido em São Paulo: uma integração

docente-assistencial, envolvendo Universidade e Coordenadoria Estadual de Saúde Mental,

com a criação de “[...] uma prática de uma psiquiatria setorizada, pré-requisito para o centro

comunitário [...]” e “A possibilidade de aplicação de técnicas de saúde pública com vistas,

principalmente, à prevenção primária” (CERQUEIRA, 1984, p. 258).

Ellis Busnello, em palestra com debates no I Simpósio de Alternativas no Espaço Psi,

que aconteceu em Porto Alegre, em 1981 (Cf. I SIMPÓSIO DE ALTERNATIVAS NO

ESPAÇO PSI, 1982), apresenta a sua participação na experiência pioneira de Murialdo, Rio

Grande do Sul, que começou em 1966, e que integrou a Saúde Mental na saúde comunitária.

Busnello coloca-se como “psiquiatra de comunidade” e diz que “Eu vim falar sobre saúde

comunitária e sobre a integração da saúde mental em serviços comunitários de saúde”

(BUSNELLO, 1982, p 371).

Busnello inicia sua palestra diferenciando medicina tradicional, aquela das práticas

populares, da medicina convencional, dita científica, que atende por demanda, e da saúde

comunitária, que

procura ser abrangente fazendo prevenção, evitando doenças, tratando os doentes e reabilitando-os. Os três níveis de prevenção clássicos da saúde pública são atendidos dentro da comunidade. Não só a demanda é atendida, mas a necessidade total. (BUSNELLO, 1982, p. 374).

Acentuando o conceito de população definida para as ações da saúde comunitária,

Busnello define “[...] necessidade [...]” como “[...] todos os problemas de saúde do grupo [...]”

e “[...] o total de serviços de saúde que a população precisa” (BUSNELLO, 1982, p. 374).

Continuando a marcar a diferença entre o atendimento por demanda e a saúde

comunitária, Busnello diz que “[...] a tradicional postura de um profissional com um paciente

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114

deve ser substituída por um ou vários profissionais para alguns milhares de pacientes, para

atender populações e não apenas indivíduos” (BUSNELLO, 1982, p. 375). Recomendava que

“[...] deve-se atender, na saúde comunitária, com técnicas grupais e com auxílio e participação

dos doentes e das comunidades” (BUSNELLO, 1982, p. 375).

Busnello cita pesquisas, então em andamento no Brasil e em outros países, que

adiantavam o que hoje se constatou: “[...] um percentual muito grande de pessoas que vão à

consulta em Postos de Saúde tem definido problema de saúde mental. Esta percentagem varia

de país para país, de cerca de 20% a quase 50%” (BUSNELLO, 1982, p. 376).

Novamente tentando definir saúde comunitária, Busnello diz que “[...] é aquela que

atende uma população definida, de forma integral, continuada, personalizada e participativa”

(BUSNELLO, 1982, p. 377). Chama a atenção para a semelhança com o que está

estabelecido, hoje, para o Programa de Saúde da Família e para o Programa de Agentes

Comunitários de Saúde, semelhança que se estende ao quantitativo populacional para cada

posto de saúde. Desta forma, Busnello advoga que

A organização sistêmica de um serviço de saúde comunitário inclui a organização de postos de saúde que atendem, dentro deles mesmos e através de visitação domiciliar, grupos de cerca de 5.000 pessoas, ou 1.000 famílias (BUSNELLO, 1982, p. 377).

Busnello diz que o trabalho em Saúde Mental deve ser uma prioridade e, para isso,

argumenta com as estatísticas que mostram o grande número de pessoas necessitando de

atendimento e com o fato de que, muitas vezes, os profissionais de saúde não reconhecem os

problemas ligados à Saúde Mental. (Cf. BUSNELLO, 1982, p. 378).

Busnello chama a atenção, ainda, para a necessidade de atendimento às famílias das

pessoas com diagnósticos mentais, para a urgente saída da postura tradicional das profissões

do espaço psi, para a viabilidade da capacitação do pessoal médico e leigo para o trabalho na

comunidade e para as possibilidades que se abrem com o trabalho em conjunto com os

curandeiros. (Cf. BUSNELLO, 1982).

No mesmo Simpósio em que Busnello proferiu a palestra citada acima, Joel Birman

apresentou um trabalho em que pretendeu equacionar e analisar o que estava sendo colocado

como mais uma reforma da psiquiatria. A explanação de Birman nos interessa muito, na

medida em que retoma o mote em relação às propostas de mudança na Assistência à Saúde

Mental: transformação ou conservação? Senão vejamos:

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115

A psiquiatria preventiva e comunitária pretende ser a ruptura com o hospital psiquiátrico, na medida em que atuando diretamente no espaço social no conjunto de relações inter-humanas que o estruturam, com o objetivo de promover a saúde mental e impedir, assim, a organização futura de enfermidades mentais. [...] A emergência da psiquiatria social como saber e como prática técnica, foi inclusive assinalada como uma nova era na história da sociedade ocidental nas suas formas de lidar com a problemática da doença mental. Assim, a constituição da psiquiatria preventiva e comunitária foi saudada como sendo a terceira revolução psiquiátrica, que teria se seguido à liberação mítica dos loucos por Pinel na virada do século XVIII para o século XIX e à revolução freudiana na aurora do século XX [...] (BIRMAN, 1982, p. 158).

Consoante com seu rigor conceitual, Birman, para a análise mais aproximada da

questão que está colocada pela psiquiatria preventiva e comunitária, pretende responder a

algumas indagações que considera da maior importância: “[...] de que psiquiatria se fala nisso

tudo, quais são as suas pretensões? E centrada em que forma de sociedade se coloca tudo

isso?” (BIRMAN, 1982, p. 160).

Birman diz que, após uma linha de pesquisa e ação que não questionava a psiquiatria

enquanto instituição, apenas acrescentando etiologias sociais ao que deveria ter resposta pela

psiquiatria estabelecida, surge “[...] um novo limiar na reflexão das relações da psiquiatria

com a sociedade, a partir dos meados dos sessenta [...] sobretudo as implicações da psiquiatria

como prática social até então inquestionável” (BIRMAN, 1982, p. 163). Remontado ao

trabalho de transformação dos Hospitais Psiquiátricos, Birman alude a que a psicoterapia

institucional francesa, nascida revolucionária, “[...] ficou reduzida a uma experiência

reformista de melhorias das condições hospitalares” (BIRMAN, 1982, p. 166), ao contrário da

prática de Franco Basaglia, que questiona o conceito de doença mental. Ao se referir ao

trabalho de Basaglia, Birman diz que

[...] não cabe apenas pensar a relação com a loucura em termos de cura, pois isso seria continuar no mesmo campo ideológico tradicional que identificou-a com a doença mental, mas procurar transformar a relação da sociedade ocidental com a loucura que está cristalizada no asilo e na exclusão social, já que constituem elementos fundamentais de controle da marginalidade social e de suas implicações políticas (BIRMAN, 1982, p. 166).

Birman faz essa crítica histórica, para dizer que o mesmo rigor deve recair sobre as

práticas da psiquiatria preventiva e comunitária no que “[...] estas pensam a saída do hospital

psiquiátrico meramente como um problema técnico, sem colocar em questão o conjunto de

Page 116: Saude mental na atencao basica

116

contradições sociais cristalizadas na solução asilar” (BIRMAN, 1982, p. 167). A advertência

de Birman é que se não estivermos atentos para a crítica que aponta, poderá acontecer

[...] o asilamento do espaço social, com as novas intervenções preventivistas, que tendem a serem produtoras de demanda psiquiátrica e a constituir um sistema que tende a reduzir ao psicológico e ao psicopatológico o conjunto dos comportamentos desviantes e socialmente anômalos (BIRMAN, 1982, p. 167).

Para chegar ao cerne de suas observações, Birman refere-se às “antipsiquiatrias” e

esclarece que, se Sartre é uma referência comum tanto para Laing e Cooper, quanto para

Basaglia, este, por sua vez, articula-se “[...] ao pensamento marxista na sua tradição italiana,

isto é, na interpretação realizada por Gramsci e na maneira pela qual pensou especificamente

o fenômeno político” (BIRMAN, 1982, p. 168). O que pretende Birman é afirmar a

necessidade da “[...] interrogação sobre a dimensão histórica da instituição psiquiátrica [...]”,

(BIRMAN, 1982, p. 168, grifo do autor), porque com ela “[...] se atinge um novo limiar para

a reflexão das relações entre psiquiatria e sociedade” (BIRMAN, 1982, p. 168).

De Foucault, Birman vai resgatar a compreensão de que

[...] a história da psiquiatria é um momento contemporâneo da história da loucura. Conseqüência necessária deste enfoque metodológico é que a doença mental é um momento determinado na história da loucura, e que se positivou como tal num momento preciso da história ocidental, baseada num conjunto de razões de ordem política, econômica e social (BIRMAN, 1982, p. 168).

Se “[...] instituição e saber são dimensões do mesmo problema” (BIRMAN, 1982, p.

169), Birman vai ponderar que, se a crítica serve para o asilo, também deve servir para a

possibilidade de controle social através da psiquiatria preventiva e comunitária. (Cf.

BIRMAN, 1982).

Remontando às origens da medicina moderna, de meados do século XVIII ao início do

século XIX (Cf. BIRMAN, 1982), Birman afirma que a psiquiatria já nasceu com ares

preventivistas, enquanto encarregada de manter a ordem nas populações marginalizadas,

[...] que seriam enlouquecidas com mais facilidade, caso não existissem medidas corretivas adequadas. [...] Foi em relação a esses bolsões de miséria urbana, produto da própria sociedade capitalista na sua primeira Revolução Industrial, seja para controlá-los, seja para discipliná-lo e retirar seu capital explosivo, que a idéia de prevenção se organizou em psiquiatria (BIRMAN, 1982, p. 172).

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117

No Brasil, segundo Birman, o mesmo aconteceu com a psiquiatria, ocupando o papel

de controle daqueles que os poderes dominantes precisavam manter inofensivos. O discurso

preventivista da psiquiatria brasileira vem desde duas origens, com uma função de amortecer

os problemas gerados pelo desemprego. Diz Birman: “Essa massa tinha que ser mantida no

seu lugar, convencida da validade de sua miséria humana e social, disciplinada enfim, para

que não ameaçasse a ordem recente” (BIRMAN, 1982, p 172).

Sem meias palavras, Birman utiliza a sua argumentação foucaultiana, para dizer que

“É na procura das razões políticas e ideológicas, na disciplina de populações marginais que

possam apresentar algum caráter explosivo e que devem se conformar com a miséria humana

e social, que devemos entender o que é prevenção em saúde mental” (BIRMAN, 1982, p.

172).

No texto de Birman, de todos os modos absolutamente necessário, se existe a crítica

pertinente, que adverte para as estratégias do poder e do controle, abrindo possíveis inocentes

olhos para a importância ideológica, social e política das práticas em Saúde Mental, também

existe o que pode ser interpretado como uma crítica paralisante. De uma certa leitura de

Foucault nada escapa, e qualquer tentativa de mudança pode ser vista como nova roupagem

do controle. A respeito desse perigo de uma crítica paralisante, mais típica de alguns ditos

foucaultianos do que propriamente de Foucault, certamente não incluído aí Birman, John

Holloway adverte, após ressaltar a validade das análises de Foucault a respeito das relações

de poder, que

Não há movimento na sociedade que Foucault analisa: muda de uma fotografia fixa a outra, mas não há movimento. Não pode haver, a menos que o foco esteja no fazer e na sua existência antagônica (HOLLOWAY, 2003, p. 66).

Voltaremos, mais adiante, a esse aspecto dos efeitos limitadores da crítica inicial às

tentativas de ações de Saúde Mental nas comunidades.

Mostrando a riqueza do I Simpósio de Alternativas no Espaço Psi, de 1981, de cuja

publicação citei os últimos dois trabalhos, existe, também, uma apresentação de um grupo de

voluntários, o GUSP – Grupo Unido de Saúde Pública que, desde 1978, realizava um trabalho

comunitário numa região periférica de Viamão, RS. O trabalho apresentado pelo grupo faz

contraponto, ao mesmo tempo, com as críticas de Birman e com a prática de Murialdo. Desta

forma, define-se como um trabalho que busca “[...] uma mudança social, partindo para uma

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118

sociedade mais democrática, mais justa.” (GUSP, 1982, p. 340). Uma de suas referências era

Paulo Freire, como instrumento para elaborar a relação dominador/dominado dentro da

Equipe e com a comunidade (Cf. GUSP, 1982). O grupo definia que “Dentro da área de saúde

mental, o que a gente tem como prioridade é a promoção da saúde mental, num nível de

prevenção primária de saúde” (GUSP, 1982, p. 342), referindo-se a “[...] um novo enfoque de

atuar em saúde, lançado pela Organização Mundial de Saúde, em 1978” (GUSP, 1982, p.

346).

O grupo citado define sua concepção de promoção de saúde mental: “[...] seria um

estímulo à crença da pessoa na sua capacidade de trabalhar pelas suas coisas, dentro de si, no

seu meio ambiente, para tornar este meio mais favorável à sua evolução” (GUSP, 1982, p.

342).

Portanto, temos um grupo politizado, atualizado em relação aos documentos

internacionais, atuando em uma área pobre, fazendo a crítica constante do próprio trabalho e

percebendo a dimensão política do mesmo. E isso tudo num momento difícil da vida nacional.

Em relação à experiência de Murialdo, numa reposta específica quanto às diferenças de

enfoque, a resposta que o representante do GUSP deu foi:

O trabalho de Murialdo partiu de um modelo norte-americano que utiliza basicamente a medicina simplificada, quer dizer, é a medicalização das doenças. O nosso modelo parte de uma busca de alternativas apropriadas. Se nós temos uma tecnologia que se poderia chamar de imprópria àquela comunidade, porque lá tem uma outra cultura, uma outra série de símbolos e de relacionamentos que diferem da nossa, então nós buscamos criar uma tecnologia apropriada à nossa vida e à Vila (GUSP, 1982, p. 346).

5.3 Trabalhos atuais.

Iniciando a aproximação com textos e práticas mais atuais, temos um esclarecedor

artigo de Antonio Lancetti, escrito entre 1987 e 1988, em que ele se propõe a “[...]

problematizar a prevenção que incide e insiste nas nossas práticas psicoafins” (LANCETTI,

1989, p. 76).

Para iniciar sua argumentação, Lancetti cita Gerald Caplan, que, no seu livro

“Princípios de Psiquiatria Preventiva”, define a psiquiatria preventiva como caracterizada por:

1-Programas para reduzir (não curar), numa comunidade, os transtornos mentais (Prevenção Primária);

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119

2-Programas para reduzir a duração dos transtornos mentais (Prevenção Secundária); 3-Programas para reduzir a deterioração que resulta dos transtornos mentais (Prevenção terciária) (LANCETTI, 1989, p. 77).

Para fazer incidir com mais nitidez sua crítica, Lancetti tenta perceber qual o conceito

de transtorno mental com que trabalha Caplan e cita o autor norte americano: “[...]

inadaptação ou desajustes aos princípios sociais e aos valores da cultura” (LANCETTI, 1989,

p. 77). Deste modo, Caplan se insere na linha da psiquiatria tradicional, que ignora qualquer

determinação do sofrimento mental que possa questionar as estruturas sociais. Lancetti

também considera a Declaração de Alma Ata na mesma linha, que supõe a “[...] comunidade

harmônica” (LANCETTI, 1989, p. 78).

Surge, portanto, o preventivismo como o fantasma teórico do qual temos que nos

afastar, caso a opção seja por uma prática que pretenda gerar movimentos autônomos nas

comunidades, afirmar diferenças, respeitar as culturas locais.

Lancetti desenvolve, no texto, ácida crítica ao preventivismo, do que temos o seguinte

exemplo:

A promiscuidade conceitual do preventivismo gera um objeto primordial que visa à neutralização do conceito de classe social, a despolitização dos movimentos comunitários, sua intencionalidade e eficácia consiste na captura dos movimentos autogestivos e a produção de sujeitos carenciados (LANCETTI, 1989, p. 84).

Tornando positivo o que está negado no trecho acima, podemos traçar algumas

diretrizes para nossas ações de Saúde Mental na comunidade. Ficaríamos com: reconhecer o

conceito de classe social, estimular a politização dos movimentos comunitários e

autogestivos, eximindo-nos de conduzi-los. Por último, estabelecer dispositivos de produção

de sujeitos potentes.

Diante de tantas críticas e, ao mesmo tempo, tantas propostas de trabalho em Saúde

Mental, temos que fazer perguntas que de certo não terão respostas imediatas, mas que devem

nortear nosso trabalho diário: quais são os parâmetros que nos informam a respeito de se

estamos ou não controlando a comunidade? Quais os indicadores que evidenciam que as

nossas ações estão colaborando para a emancipação da comunidade? Indicadores existem

diversos: número de internações, número de suicídios, ocorrências de violência, prevalências

e incidências várias. Mas, como avaliar se estamos sufocando os protestos inconscientes ou

levando-os a produzir mudanças?

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120

Algumas visitas domiciliares realizadas, em 1976, por um pequeno número de

estudantes e residentes da Universidade Federal Fluminense, do qual fiz parte, impressionou a

todos. Trabalhávamos numa das enfermarias que eram base para o ensino na Universidade e

ficamos todos marcados pela experiência que mostrou que, de dentro do Hospital Psiquiátrico

onde trabalhávamos, não conseguíamos nem a mínima visão a respeito do que estava

acontecendo com os pacientes. (Cf. Pinto, 1998). Porém, a equipe não pôde dar conseqüência

ao que percebeu.

Em 1977, formou-se um grupo de estudos para elaborar o primeiro Programa de Saúde

Mental de Niterói. Na ocasião, discutimos a entrada de profissionais de Saúde Mental nos

Postos de Saúde, principalmente Psicólogos. O Programa, no entanto, se desenvolveu por

outros caminhos.

De 1991 a 1994, trabalhei com a Equipe do Internato Rural da Universidade do Estado

do Rio de Janeiro, na região rural de Resende, Estado do Rio de Janeiro, na condição de

Preceptor de Medicina, na área de Saúde Mental, com vínculo externo à Universidade. (Cf.

INTERNATO RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994).

Das intenções do Internato Rural da UERJ constavam “[...] a integração real entre

Universidade e comunidade, procurando o binômio teoria/prática, estimulando a existência de

uma sociedade mais democrática e igualitária” (INTERNATO RURAL DA

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994). Até 1992 o Internato recebia

estudantes do último ano de medicina e, depois, também os de nutrição e enfermagem. Os

estudantes faziam o atendimento à população da região serrana de Resende, supervisionados

pelos preceptores. A Equipe do Internato Rural articulava-se com a Secretaria Municipal de

Saúde de Resende para um trabalho integrado.

Na “Justificativa” do Internato Rural encontramos a intenção de “[...] uma política

universitária cada vez mais comprometida com a demanda social e com a realidade histórica

[...]” (INTERNATO RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO,

1994, p. 12), levada à prática com o trabalho interdisciplinar.

Da proposta prática do Internato Rural constava o contato estreito dos estudantes e

preceptores com a comunidade, com destaque para as visitas domiciliares:

A humanização do atendimento a que nos referimos nos objetivos do presente documento, é consubstanciada pelo uso intensivo da visita domiciliar às famílias das comunidades da área abrangida. Tal prática foi em muito potencializada, devido à inserção dos estudantes na vida comunitária, através da moradia e da participação interativa de ambas as

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121

partes (INTERNATO RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994, p. 12, grifo do texto original).

Dentre os “Objetivos” do Internato Rural, destacamos os seguintes:

Garantir aos estudantes o contato e a possibilidade de integração com as diversas formações das comunidades atendidas, a fim de que lhes sejam dados a conhecer os determinantes sociais do processo saúde/doença; [...] Oferecer aos educandos as condições para a realização de ações de saúde de cunho biológico, individual e coletivo; [...] Dar condições aos alunos de exercerem uma atuação social mais ampla, através do cumprimento de projetos de pesquisa do Internato Rural (históricos, epistemológicos, clínicos e de saúde comunitária) (INTERNATO RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994, p. 13).

Das metas do Internato Rural constavam, dentre muitas outras, as de “Criar cursos de

Agentes de Saúde”, e “Realizar projeto de pesquisa sobre alcoolismo e uso de

benzodiazepínicos” (INTERNATO RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO

DE JANEIRO, 1994, p. 14).

A prática do Internato Rural desenvolvia-se, desde 1986, como um verdadeiro

precursor do que mais tarde veio a se constituir como o Programa de Saúde da Família.

Depois que me integrei à Equipe, surgiu a prática da Saúde Mental, desde o início com a

tentativa de questionamento da divisão mente/corpo e seus especialistas.

A respeito da integração do Internato Rural com os Programas do Município de

Resende, na parte dedicada à Saúde Mental há referência à “desospitalização”, à

“desmedicalização”, à abordagem familiar e coletiva do alcoolismo e do uso de

benzodiazepínicos e que o estudo desses temas “[...] tem propiciado com os internos

importantes reflexões que transcendem em muito os limites convencionais da terapêutica,

extrapolando para o campo filosófico e sócio-politico” (INTERNATO RURAL DA

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994, p. 14).

Os temas referidos acima, alcoolismo e uso abusivo de benzodiazepínicos, eram

levantados pela comunidade como suas prioridades.

Do programa do Internato Rural constam as “Atividades com Abordagem

Interdisciplinar”, onde inseri o “Estudo e Prática do Trabalho com Grupos”, o “Estudo e

supervisão da relação profissional de saúde/paciente”, a “Abordagem multidisciplinar do

alcoolismo” e a abordagem à “Dependência de benzodiazepínicos”. (Cf. INTERNATO

RURAL DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1994, p. 27).

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122

Ao dar início a essa etapa da minha vida profissional, a bagagem teórica que trazia era

a psicanálise, as teorias psicanalíticas de grupo (principalmente Pichon-Riviére e os

argentinos), Basaglia, Foucault, Goffman (Cf. PINTO, 1998) e um estudo de Filosofia que

chegou em Deleuze e Guattari. Alguns desses autores, dentre outros, como Laing e Cooper,

possibilitaram referências para tentativas de transformação dos hospícios e de modificação do

trabalho ambulatorial, dos quais participei, bem como para a atuação num grupo para a

criação de um Programa Municipal de Saúde Mental (Niterói). Tinha, também, conhecimento

da Declaração de Caracas, com sua recomendação para a atuação no nível primário.

No Internato Rural encontrei, no seu Coordenador em Resende, o Dr. Maurício

Schneider, um companheiro de trabalho com quem pude dialogar e produzir com grande

prazer e criatividade. Maurício vinha de lutas da categoria médica e pretendia levar à prática

uma assistência efetivamente enraizada na comunidade e discutir conceitos e visões de mundo

com os estudantes a respeito da transformação social.

Estava criado, então, um campo de trabalho muito fértil em relação às possibilidades

de praticar uma assistência à saúde com estreito vínculo com a comunidade e com a

colocação em discussão, com a população, dos temas ligados às suas condições de saúde e de

vida.

Observando o que seria possível fazer na área da Saúde Mental, sempre unida às ações

gerais de saúde (as supervisões dos dois preceptores de medicina eram feitas em conjunto),

logo surgiu o estudo, supervisão e modificação da relação profissional de saúde/paciente, com

repercussões tanto do lado da população, quanto do lado dos estudantes.

No trabalho que apresentei no Seminário “Subjetividade e Serviço Público”, na

Faculdade de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, em 1994, “Uma crítica à

Formação na Área de Saúde; uma experiência de ensino no Internato Rural da UERJ”, relato

o modo de atuar do conjunto preceptores/alunos, com as mudanças ocorridas ao longo da

experiência. (Cf. PINTO, 1998). Partindo da modificação da relação profissional de

saúde/paciente, no sentido de uma crítica ao modelo médico curativo estrito, com a rígida

divisão mente/corpo, os estudantes puderam abrir suas percepções para a vida afetiva e social

das pessoas atendidas, passando a observar esses componentes na determinação dos

problemas de saúde. Com a prática constante da visita domiciliar, que teve sua função e

modos de realizar bastante discutidos, a realização de grupos de discussão sobre saúde, nos

Postos, e visitas às lideranças comunitárias, após pouco tempo surgiram, em todas as

localidades onde os estudantes atuavam, fóruns comunitários de saúde. (Cf. PINTO, 1998).

Page 123: Saude mental na atencao basica

123

No caso do alcoolismo, prioridade para a comunidade, foi desenvolvido um trabalho

de articulação que envolveu os estudantes, auxiliares de enfermagem, famílias e comunidade.

Neste aspecto do trabalho, bem como em outros, os estudantes alternavam os papéis de

profissionais que atendem nos Postos com o de visitadores domiciliares, o que potencializava

a sua possibilidade de visão do conjunto. (Cf. PINTO, 1998).

Em relação ao alcoolismo, apresentei um trabalho, em 1992, para a Equipe do

Internato Rural, como forma de colocar em discussão o que estávamos fazendo, do ponto de

vista da prática e da teoria, desta vez já com influência de Deleuze e Guattari. Partindo de um

pedido da comunidade, para que algo fosse feito em relação ao alcoolismo, interrogo:

Como instalar um dispositivo que, ao lado de promover o tratamento individual e dar resolutividade aos casos, possa também abrir espaços de criatividade, de circulação de relações e de encontros (Singularização), e que possa tornar-se independente de quem o disparou? Esta é a tarefa teórica e prática (Cf. PINTO, 1998, p. 136).

Com a proposta acima, pudemos articular os atores da cena social e familiar

envolvidos com o alcoolismo, evitando internações, tratando das pessoas e colocando o

assunto em discussão.

Trabalhando no Internato Rural da UERJ, tive a oportunidade de levar à prática uma

articulação entre a teoria e a prática da Saúde Mental, compreendida como parte integrante

das ações gerais de saúde, e aprofundar a visão da importância do trabalho comunitário. Ao

mesmo tempo em que desenvolvia o trabalho no Internato Rural, pude acompanhar algumas

discussões, em Niterói, a respeito da implantação do Programa Médico de Família, que se deu

em 1991, o que tornava o momento bastante instrutivo.

A partir de dezembro de 1994, passei a trabalhar no município de Quissamã, Estado

do Rio de Janeiro, onde se desenvolvia a implantação do “Programa de Saúde Familiar”,

municipal, cujas linhas gerais estavam colocadas no texto “O modelo de saúde familiar de

Quissamã”. Da proposta constava a lotação de médicos e enfermeiros com 40 horas nos

Postos de Saúde, que também contavam com Auxiliares de Enfermagem e Agentes

Comunitários de Saúde. Tratava-se de um modelo similar ao Programa de Saúde da Família.

Quissamã, na época, tinha cerca de 12 mil habitantes.

Em janeiro de 1995 decidimos capacitar, em Saúde Mental, as Equipes do Pronto

Socorro e as Equipes dos Postos de Saúde, com ênfase para os Agentes Comunitários de

Saúde. Todos os momentos da capacitação tiveram como base os casos concretos da vivência

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124

diária dos profissionais. Existia um programa para a capacitação, mas todo ele era percorrido

com base em situações do trabalho de cada profissional ou equipe. Os assuntos e casos eram

trazidos pelos membros da Equipe, discutidos, relacionados com o conteúdo do programa e as

novas intervenções eram decididas em conjunto.

Estabeleci, então, uma capacitação para todo o pessoal que atuava na Atenção Básica:

cinco médicos, quatro enfermeiros e 12 Agentes Comunitários de Saúde. (Cf. PINTO, 1997).

A freqüência da capacitação com os Agentes Comunitários de Saúde era quinzenal, com

reuniões de duas horas e meia de duração. De acordo com a minha compreensão, na época,

esta capacitação se deu devido à “[...] necessidade de melhorar o atendimento ambulatorial

em psiquiatria, que encontrei ao iniciar o atendimento no Centro de Saúde” (PINTO, 1997, p.

166). O que estava colocado como intenção era a

[...] transformação do modo de ver o sofrimento psíquico de importantes formadores de opinião, os Agentes de Saúde. A possibilidade de contar com Visitas Domiciliares e futuros Acompanhantes Terapêuticos são outros fatores importantes (PINTO, 1997, p. 166).

Com o desenvolvimento do trabalho, foram aparecendo as situações que eram

desconhecidas do ambulatório: pessoas presas em casa, as fantasias da comunidade em

relação às pessoas psiquiatrizadas, a possibilidade de uma nova inserção dos pacientes na vida

comunitária.

As Equipes passaram a reconhecer melhor e a tratar as situações ligadas à Saúde

Mental, como as queixas vagas, o uso de benzodiazepínicos, o alcoolismo e até alguns casos

agudos. Todas essas situações eram objeto de constante discussão com as Equipes.

Um fato logo chamou a minha atenção, fato que se repetiu, depois, em outros

municípios: a rapidez com que os Agentes Comunitários de Saúde aprendem o conteúdo da

capacitação, mudam suas atitudes e passam a criar e a trazer questões da maior importância

para a vida das pessoas atendidas, das famílias e das comunidades.

Um exemplo significativo da afirmação acima, foi a mudança de atitude da

comunidade em relação a uma pessoa que era constantemente internada em Hospitais

Psiquiátricos, e que não mais se internou após a abordagem realizada. Partindo da elaboração,

pela equipe, através de discussões e de visitas domiciliares com a minha presença, da aura de

perigo que cerca o paciente psiquiátrico, os Agentes Comunitários de Saúde passaram a sair

pelas ruas com a paciente, num processo de reinserção social que envolveu a família, os

vizinhos e o sistema de saúde.

Page 125: Saude mental na atencao basica

125

Como avaliação, naquele momento, indiquei que

O presente trabalho mostra como, com economia de recursos, é possível potencializar a capacidade de resolução da Rede de Assistência e ao mesmo tempo levantar temas importantes a respeito da Saúde Coletiva. [...] Insere-se também esse trabalho na criação de recursos assistenciais e comunitários, que criem alternativas às Internações Psiquiátricas (PINTO, 1997, p. 169).

De fato, as internações psiquiátricas diminuíram muito após o início do trabalho, e a

forma como a comunidade via os pacientes psiquiátricos começou a mudar.

Como uma das conclusões do trabalho, está a afirmação de que

O modelo adotado aqui proporciona um campo de ações no qual, ao mesmo tempo em que são aperfeiçoados os atendimentos, é estabelecida uma discussão, que tende a se ampliar, a respeito do sofrimento psíquico, da sua exclusão e dos modos de reincorporá-lo à vida das comunidades (PINTO, 1997, p. 169).

O trabalho desenvolvido em Quissamã foi um dos semifinalistas do Ciclo de

Premiação 1998, da Fundação Getúlio Vargas. (Cf. CADERNOS GESTÃO PÚBLICA E

CIDADANIA, 1998).

Em 1998, iniciei atendimento ambulatorial no município de Carapebus, então com

pouco mais de 14 mil habitantes, vizinho a Quissamã. Logo dei início ao trabalho com os

Agentes Comunitários de Saúde, que faziam parte do PACS. O trabalho seguia os moldes do

realizado em Quissamã, mas com participação de toda a Equipe do Programa Municipal de

Saúde Mental, que ajudei a organizar. Deste consta, na parte de “Treinamento”, em relação

aos Agentes de Saúde:

Treinamento com o objetivo de capacitar os Agentes de Saúde a atuarem no Programa, onde terão como tarefas: Visitas Domiciliares, Acompanhamento Terapêutico, Recurso Comunitário nas crises, Membros da comunidade com conhecimento dos recursos da Rede de Assistência, Participação nas discussões, com a comunidade, a respeito do sofrimento psíquico, suas origens e soluções, Atuação junto às Escolas e familiares, nos casos de distúrbios de aprendizagem e de comportamento em crianças (PROGRAMA DE SAÚDE MENTAL DE CARAPEBUS, 1998).

Page 126: Saude mental na atencao basica

126

Após umas poucas semanas de trabalho com os Agentes Comunitários, tanto em

Quissamã quanto em Carapebus, cada ACS ficou responsável, dentro da sua área, pelas

pessoas com diagnósticos de transtornos mentais graves, principalmente. Também os casos de

alcoolismo eram abordados, juntamente com suas famílias, e os ACS passaram a ser

referência de Saúde Mental nas suas localidades, além de acompanhar pacientes em crises no

Pronto Socorro, colaborando para a mudança de atitude dos plantões em relação a essas

pessoas atendidas. Com a divisão dos ACS pelas suas microáreas de atuação, geralmente

perto de suas residências, cada um desses profissionais passou a ter sob sua responsabilidade

cerca de quatro “pacientes graves”. Esses pacientes eram acompanhados de perto,

semanalmente, pelo menos, resultando em mudanças nas suas inserções familiares e sociais.

Os resultados e limitações das experiências de Quissamã e Carapebus serão

comentados mais adiante.

Depois de abril de 1999, com a atuação da nova gestão da Assessoria de Saúde Mental

da Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, passaram a ser realizados, em

conjunto com os Municípios, os Fóruns Regionais de Saúde Mental, sendo que o primeiro foi

realizado em Carapebus. Nesta ocasião, foi destacada a atuação dos Agentes Comunitários de

Saúde na Saúde Mental dos municípios de Quissamã e Carapebus, com um depoimento

emocionado de umas das Agentes de Saúde de Quissamã a respeito do trabalho que estava

desenvolvendo na Saúde Mental.

Após esse Fórum, enviei à Assessoria de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro

um fax avaliando o encontro e sugerindo que, ao lado da prioridade para os CAPS, fossem

também motivos de muita atenção a melhoria das Emergências Psiquiátricas e o investimento

no trabalho com os Agentes Comunitários de Saúde, o qual “[...] produz resultados rápidos,

no que diz respeito ao melhor atendimento de casos graves, controle de altas hospitalares,

reconhecimento da população, formação de multiplicadores de opinião, etc.”

Nessa mesma época apresentei, numa reunião mensal dos Coordenadores Municipais

de Saúde Mental da Assessoria de Saúde Mental do RJ, o trabalho que estava sendo realizado

com os Agentes Comunitários de Saúde nos municípios citados, chamando atenção para a

potencialidade das ações, a grande velocidade de mudança na compreensão e nas ações dos

Agentes de Saúde e a rapidez dos resultados.

No ano de 2000, na condição de Gerente do Programa de Saúde Mental de Macaé,

estabeleci contato com o nível central do Programa de Saúde da Família do município, com a

Page 127: Saude mental na atencao basica

127

intenção de estabelecer a aproximação dos dois Programas. Também iniciei, junto ao

Secretário Municipal de Saúde, os debates a respeito das ações conjuntas Atenção

Básica/Saúde Mental. Na época, não existiam profissionais de Saúde Mental disponíveis para

o trabalho na Atenção Básica, estando todos atarefados nos ambulatórios. Mas algo já poderia

ser feito. Como primeiras atividades junto às Equipes de PSF, então num total de 12 módulos,

coordenei reuniões de capacitação, para, de um lado, Agentes Comunitários de Saúde e, de

outro, profissionais de nível superior, que tiveram como objetivo informar a respeito do

Programa de Saúde Mental e da rede de assistência, esclarecer os modos de encaminhamento

e a discussão de alguns assuntos de Saúde Mental de escolha das equipes. Esta era uma forma

inicial, ainda precária, de aproximação, mas que foi formando a base do trabalho que se deu a

seguir.

Posteriormente, nesse mesmo ano, tentando suprir a dificuldade de encaminhamento e

de comunicação dos PSF com os ambulatórios, abri um horário de atendimento grupal, junto

com a Assistente Social Maria Luiza Vaccari Quaresma, num dos ambulatórios, para receber

a demanda de pacientes graves do PSF. Recebíamos essa clientela juntamente com os ACS e

familiares, ocasião em que era estabelecida uma discussão, entre todos os presentes, a respeito

das situações de cada família e membro identificado como “paciente”, feita a regularização da

medicação e estudada as possibilidades de mobilização do posto de PSF e comunidade para

atuar em cada situação. Com isso, os ACS estavam sendo capacitados na prática, mas sem

continuidade e acompanhamento constante. Tudo o que era decidido era comunicado, por

ficha de contra-referência, para as Equipes de nível superior dos módulos, e algumas

situações foram discutidas nas suas reuniões de capacitação.

No ano 2000, é lançado o livro “SaúdeLoucura 7, Saúde Mental e Saúde da Família”,

organizado por Antonio Lancetti, que escreve o artigo inicial.

O livro citado teve um papel muito importante na caminhada para o novo papel da

Saúde Mental, que é a sua inserção na Atenção Básica. Foi uma espécie de ponto de encontro

de experiências que se desenvolviam, na época, sem que tivessem uma organização ampla e

até sem conhecimento maior umas das outras. Vamos, então, abaixo, percorrer o artigo de

abertura e alguns outros trabalhos.

No artigo que abre o livro, Lancetti expõe os inícios da aproximação da Saúde Mental

da Atenção Básica, que promoveu no Projeto Qualis/PSF, do Governo do Estado de São

Paulo, a partir de 1998. Depois de descrever os princípios básicos do PSF, Lancetti diz que

“Logo percebemos que essa trama tecida pela organização sanitária era a esteira fundamental

de onde deveria emanar um processo que viesse a produzir saúde mental” (LANCETTI, 2000

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128

b, p. 18). Note-se que Lancetti havia sido convidado para “[...] inventar um Programa de

Saúde Mental para o Projeto Qualis/PSF” (LANCETTI, 2000 b, p. 11), tendo optado pela

aproximação com o PSF, após notar as suas características, pela necessidade de “[...] criar

um dispositivo articulado à rede tecida pela organização de saúde [...]” e para “[...] radicalizar

na desinstitucionalização” (LANCETTI, 2000 b, p. 19). Com essa compreensão, utilizou as

“[...] equipes volantes de saúde mental” (LANCETTI, 2000 b, p. 19).

Lancetti e seu grupo decidiram que

[...] não iríamos utilizar nenhum dos dispositivos conhecidos, como consulta psiquiátrica, psicológica ou visita domiciliar. Esta opção tinha o intuito de evitar, de raiz, o processo de tratamento da demanda que acaba na cronificação dos pacientes e dos próprios dispositivos de atenção. Começaríamos capacitando as equipes de saúde mental e de saúde da família intervindo nas famílias em maior dificuldade. A responsabilidade pelo andamento do processo terapêutico recairia em ambas as equipes. Começamos propositalmente sem psiquiatra. A idéia era cortar pela raiz o processo de geração de demanda, que começa na consulta e termina no hospício. (LANCETTI, 2000 b, p. 20).

Como estratégia, a equipe de Lancetti começou a capacitação pelos Agentes

Comunitários de Saúde e a realizar intervenções nas famílias através destes profissionais.

Num primeiro encontro de capacitação era feito um sociodrama, com distribuição de um guia

de saúde mental. (Cf. LANCETI, 2000 b). Havia a intenção de capacitar os ACS como “[...]

amigos qualificados” (LANCETTI, 2000 b, p. 21), segundo Lancetti o “[...] conceito [...] que

deu origem à profissão de acompanhante terapêutico” (LANCETTI, 2000 b, p. 20). No

segundo encontro eram revisadas as cenas do primeiro, com correlação com o texto e, no

terceiro, “[...] os agentes apresentavam as famílias que consideravam mais problemáticas.

Posteriormente, escolhíamos quais seriam as primeiras nas quais iríamos intervir”

(LANCETTI, 2000 b, p. 21).

Note-se a estratégia de entrar na Atenção Básica através dos Agentes de Saúde, que

são os profissionais que moram na comunidade e a conhecem. Ressalte-se também, que,

quando, acima, Lancetti diz que não faria visitas domiciliares, referia-se a que a Equipe de

Saúde Mental não lançaria mão desse instrumento como uma ação só sua, mas que as

primeiras ações no território seriam praticadas pelos ACS. Mais adiante, com o

desenvolvimento da capacitação e o inicio do conhecimento da comunidade, as Visitas

Domiciliares foram realizadas (Cf. LANCETTI, 2000 b)

Page 129: Saude mental na atencao basica

129

Consta do “Guia de Saúde Mental do Agente Comunitário de Saúde” as seguintes

diretrizes:

-[...] tratar o grupo familiar para que este possa lidar de maneira mais salutar com seu membro mais doente. [...] -[...] a responsabilidade pelo cuidado pelo cuidado dessas famílias é da equipe de saúde da família e da equipe de saúde mental. [...] -[...] será dada prioridade às famílias que se encontram em maior dificuldade. [...] -[...] quando a equipe de saúde mental intervém, elabora um programa para cada família. Este programa é monitorado [...] -[...] as famílias serão atendidas preferencialmente na hora em que todos ou a maioria dos familiares estejam em casa. Em muitas oportunidades vamos ao encontro de surpresa. A estratégia de aproximação será sempre decidida previamente pelas equipes de saúde da família e de saúde mental, mesmo nos casos de emergência (LANCETTI, 2000 b, p. 22, grifo do autor).

Destaque-se uma estratégia e um modo de operar, que já foi aludido, mas, que pela

sua importância, merece destaque:

A equipe de saúde mental é volante, não está locada em nenhuma das unidades do Projeto Qualis e sempre atua em parceira com as equipes de Saúde da família. Não está prevista consulta psiquiátrica nem consulta psicológica (LANCETTI, 2000 b, p. 22).

Considero que essa é uma decisão fundamental para a entrada da Saúde Mental na

Atenção Básica. Desta forma, fica logo claro para todos que não mais se repetirão os

encaminhamentos que, de fato, diminuem a responsabilização, marcando, também, que a

atuação com as pessoas e a comunidade é de responsabilidade conjunta. Esse fato potencializa

a capacitação, une as equipes, impede jogos de empurra, enfim, torna o trabalho

verdadeiramente de equipe, estimulando a integração, quebrando os especialismos. Mostra

para a comunidade, por outro lado, que a Saúde Mental está integrada aos demais cuidados

em saúde.

Especificando mais o seu trabalho e teorizando sobre ele, Lancetti situa todo o grupo

familiar como o paciente do Programa de Saúde Mental e que escutá-lo era “[...] conhecer a

estrutura ou sistema que organiza a vida desses grupos antropológicos e os seus interlocutores

invisíveis” (LANCETTI, 2000 b, p. 36). Como instrumento de ação, o autor citado, na linha

de Deleuze e Guattari, propõe uma “[...] clínica cartográfica” (LANCETTI, 2000 b, p. 37),

onde “Era premente produzir agenciamentos que conectassem as pessoas com as redes

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130

trançadas pela organização sanitária, e com o que Benedetto Saraceno chama de recursos

escondidos da comunidade” (LANCETTI, 2000 b, p. 37).

No final de seu artigo, Lancetti sugere que, para cada duas equipes de saúde da

família, deve existir um técnico de saúde mental, para que o trabalho que organizou seja

desenvolvido a contento (Cf. LANCETTI, 2000). Voltaremos ao assunto, mas desde já

adiantamos que chegamos a números diferentes, que apontam para a necessidade de mais

profissionais de Saúde Mental por Equipe de Saúde da Família.

Quanto ao importante tema dos indicadores, Lancetti propõe que, para a avaliação do

Programa de Saúde Mental sejam levados em consideração “[...] a redução de internações

psiquiátricas, de suicídios, de violência familiar e comunitária e do uso abusivo de drogas”

(LANCETTI, 2000 b, p. 51).

Solange Mattos, uma Agente Comunitária de Saúde, relata, em um artigo do livro

organizado por Lancetti, a sua marcante experiência com uma pessoa, um homem de 57 anos.

A descrição dos acontecimentos é importante, tanto em termos do relato em si, como pelo

exemplo de mudança nas relações dos profissionais de saúde com a população que o trabalho

com a Saúde Mental pode proporcionar. Partindo de uma situação em que não sabia muito o

que fazer, para ajudar o paciente, que vivia isolado da família e da comunidade, surgem, após

discussão da situação com a Equipe de Saúde Mental, novas perspectivas, onde o papel da

Agente Comunitária de Saúde é determinante. (Cf. MATTOS, 2000).

Walter Augusto Bahia Pereira, psiquiatra, no início de seu artigo no livro que vem

sendo citado, traz uma definição importante a respeito do trabalho no Projeto Qualis:

Do modo como o Projeto foi concebido, a saúde, a loucura e as ações não são restritas a espaços físicos predeterminados. Dessa forma, a equipe e eu, como membro, também não ocupamos espaços físicos delimitados. Somos ‘volantes’. (PEREIRA, 2000, p. 96).

Esta é a introdução que Walter faz, para refletir a respeito da nova posição do

psiquiatra na Equipe de Saúde Mental e também introduz o tema do trabalho em Saúde, sem

as referências tranqüilizadoras e limitadoras das instituições conhecidas. Walter ressalta a

mudança que ocorre, em vários níveis, com a nova situação do profissional:

[...] rompe os muros e as paredes institucionais, confronta o poder médico estabelecido; implode os cofres da loucura e da imposição de lugares, em que ela posa existir e se manifestar; propicia diversidade; [...] coloca-se como instrumento para uma possibilidade de mudança, movimento, transformação (PEREIRA, 2000, p. 97).

Page 131: Saude mental na atencao basica

131

A impotência, sentimento que assola os profissionais de saúde, mas que é disfarçado

nos diversos mecanismos de defesa que o instituído permite, é exposta por Walter de modo

muito claro. (Cf. PEREIRA, 2000). O psiquiatra descreve o caminho que segue a abordagem

aos emergentes tidos como problemas de Saúde Mental: quase sempre a partir de situações

conhecidas pelos Agentes Comunitários de Saúde, passando pela discussão em Equipe e com

a intervenção sendo aí decidida (Cf. PEREIRA, 2000).

Walter resume num trecho uma decisiva discussão a respeito da psiquiatria, seu papel

nas Equipes de Saúde Mental e na sociedade: “O psiquiatra, neste projeto, tem de suportar a

fragilidade da psiquiatria neste contexto e, ao rever sua função, tem também a possibilidade

de existir e intervir de uma outra forma” (PEREIRA, 2000, p. 100).

Frágil, parcial, a psiquiatria revestiu-se de corpo todo poderoso de saberes, mas para

isso precisou ignorar a realidade das vidas das pessoas atendidas, das suas famílias e das suas

comunidades. Operação encobridora em vários sentidos, do pessoal ao ideológico, tem

desfeito seu véu, para que possa tentar uma nova concepção e uma nova prática.

O autor citado fala do encontro entre as expectativas de profissionais de saúde e

moradores como a base do trabalho que está sendo criado: “É um encontro entre as duas

expectativas. O que há em comum entras duas expectativas e o que poderá se transformar em

trocas?” (PEREIRA, 2000, p. 101).

Falando em uma “clínica cartográfica”, cara a Deleuze e Guattari, Walter diz que o

novo psiquiatra

[...] tecerá pontes entre os profissionais [...]; entre os membros e os moradores atendidos; entre os moradores e as atividades que falam e intensificam a vida; entre os diversos níveis institucionais (outras instâncias da saúde, justiça, educação, igreja, etc.), aos quais um sujeito poderia ser remetido ou mesmo estar submetido. Trata-se, portanto, de funcionar como potencializador e fertilizador de agentes e de pessoas na promoção da saúde e da vida (PEREIRA, 2000, p. 101).

Vânia Casé descreve, num artigo do livro organizado por Lancetti, a experiência de

aproximação da Saúde Mental com o Programa de Saúde da Família realizada no município

pernambucano de Camaragibe. A partir de demandas da comunidade por consultas

psiquiátricas e psicológicas, a equipe de Saúde Mental decidiu-se pela aproximação com o

Programa de Saúde da Família, em 1995, por características deste, que a autora descreve:

-[...] contava com uma equipe mais bem estruturada quantitativa e qualitativamente;

Page 132: Saude mental na atencao basica

132

-trabalhava com responsabilidade por um território definido envolvendo ações básicas de saúde; -dirigia a atenção à saúde, não só à cura e à prevenção de doenças mas, sobretudo, para promover a qualidade de vida e a valorização do papel dos indivíduos, no cuidado com sua saúde, de sua família e de sua comunidade (CASÉ, 2000, p. 123).

É importante assinalar a procura por ligação com o PSF, quando da necessidade de

estruturar um Programa de Saúde Mental. Ao invés de organizar dispositivos já consagrados

em Saúde Mental, a autora e sua Equipe foram para a Atenção Básica, pelos motivos citados,

dos quais os dois últimos são um resumo do porquê da potencialidade dessa articulação.

A autora encontrou o que se repete em todas as experiências de trabalho da Saúde

Mental na Atenção Básica: um número muito maior do que o imaginado de problemas de

Saúde Mental e pessoal sem preparo para reconhecê-los e abordá-los. (Cf. CASÉ, 2000). A

decisão foi, então, começar a capacitação com os Agentes Comunitários de Saúde, que se deu

sob a forma de Oficinas e que se estenderam para os demais funcionários. (Cf. CASÉ, 2000).

Com a evolução do trabalho, durante 1996 e 1997, a Equipe de Saúde Mental se reuniu com

todas as Equipes de Saúde da Família, com a intenção de capacitação e de “[...] discutir uma

proposta de saúde mental para o município” (CASÉ, 2000, p. 125).

Num ponto do seu relato, Vânia se refere a um pedido, sempre encontrado nas

aproximações da Saúde Mental com o PSF, de “[...] apoio às equipes do PSF, tendo em vista

o nível de conflitos vividos na comunidade e a angústia em lidar com eles” (CASÉ, 2000, p.

125). Aparentemente, a Equipe de Vânia não cumpriu esse papel. Porém, o que percebemos é

que as Equipes de Saúde da Família, em geral, estruturam-se como equipes clássicas de

saúde, isto é, reúnem-se para discutir as tarefas sem atenção para os aspectos institucionais e

emocionais das mesmas. Freqüentemente, não têm um espaço próprio para a elaboração do

que é mobilizado em cada um e no grupo a partir das condições que enfrentam. As

capacitações são vistas, muitas vezes, como um “cumpra-se”, sem discussão das implicações

do que estará sendo feito. Com a entrada da Saúde Mental, com a prática de discussão

constante dos aspectos institucionais e emocionais, as Equipes de Saúde Mental são vistas

como uma chance de abrir o diálogo, ventilar e elaborar os conflitos pessoais e grupais.

O trabalho em Camaragibe desenvolveu-se com as Oficinas de Capacitação e, para

deixar claro que a estratégia de entrada da Atenção Básica precedeu os outros dispositivos de

Saúde Mental, note-se que o NAPS e o Ambulatório de Psiquiatria foram inaugurados bem

depois. (Cf. CASÉ, 2000). Explicando essa orientação, a autora diz que

Page 133: Saude mental na atencao basica

133

A estratégia de iniciar as ações de saúde mental no Programa de Saúde da Família, antes de investir na criação de serviços especializados como NAPS, CAPS ou Lares Abrigados, reverte uma lógica. O foco da atuação de saúde mental em Camaragibe prioriza o lugar e o momento em que surgem as primeiras dificuldades e necessidade de cuidados: a comunidade e a família (CASÉ, 2000, p. 133).

Bárbara Cabral e suas colegas do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, partem,

para argumentar a favor da “[...] estratégia de trabalhar a saúde mental na atenção básica,

integrando-se ao Programa de Saúde da Família (PSF)” (CABRAL et. al., 2000, p. 139), das

postulações da Reforma Psiquiátrica, que

[...] reconhece a doença mental também como fruto do processo de marginalização e exclusão social, fundamentando sua luta política e prática clínica na construção da cidadania do sujeito em sofrimento psíquico e na promoção da saúde mental (CABRAL et. al. , 2000, p. 139).Situado o campo desta forma, o trabalho em Saúde Mental ganha outra dimensão, e [...] resigna-se o objetivo da proposta terapêutica, que passa a comprometer-se em construir diversas estratégias possibilitadoras de autonomia das pessoas, mediante uma combinação de técnicas de apoio individual com outras mais sócio-culturais (CABRAL et. al., 2000, p. 139).

Com a associação ao PSF, as autoras vêem a perspectiva de mudança nas práticas de

saúde e definem que “O ato de cuidar exige dos profissionais uma postura técnico-política

constante, mediante a criação e mobilização dos diversos espaços coletivos no seio da

comunidade” (CABRAL et. al., 2000, p. 140).

O Programa de Saúde Mental do Cabo de Santo Agostinho já contava com NAPS,

Ambulatório de Psiquiatria e Emergência quando, em 1998, a Equipe do Programa de Saúde

Mental iniciou as ações junto ao PSF, com a capacitação das 23 equipes do Programa Saúde

em Casa, nome local do PSF. As reações a essa capacitação foram muito características: “[...]

os agentes comunitários de saúde demonstraram preocupação com a abordagem da pessoa em

crise, destacando-se o medo de lidar com essa situação, [...] bem como indicaram a

necessidade de prestar apoio às famílias” (CABRAL et. al., 2000, p. 145) e “Os médicos e

enfermeiros [...] apresentaram um discurso marcado pela lógica do especialista, mostrando-se

resistentes a assumir esse cuidado como mais uma atribuição”. (CABRAL et. al., 2000, p.

145).

A reação à capacitação assinalada acima é freqüente. Os ACS assumem com muito

mais rapidez os conceitos da Saúde Mental e as suas ações, do que os profissionais de nível

superior. Uma reflexão sobre esse ponto é necessária, para que enganos e injustiças não sejam

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134

cometidos. Os ACS já vivem perto dos problemas de Saúde Mental da comunidade,

freqüentam casas com pacientes identificados e seu medo é mais histórico do que teórico. Já

os profissionais de nível superior estão mais contaminados pela “ciência oficial”, veiculada

nas faculdades, que lhes forneceram uma idéia já ultrapassada do campo da Saúde Mental.

Além desses aspectos, há o fato de verem a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica,

como mais trabalho que irá se somar ao seu dia já atribulado. Não é possível iludir esse fato:

estamos levando mais trabalho para Equipes de Saúde da Família que, em geral, tem um

contingente populacional sob suas responsabilidades acima das suas capacidades.

Mil famílias representam uma quantidade de problemas de assistência, de promoção

de saúde, de atividades comunitárias, de articulações com os recursos de saúde, mais as

capacitações e relatórios, que acabam por dificultar alguma dessas tarefas. Não podemos,

portanto, entrar na ilusão de dizer para as Equipes de PSF que elas terão menos trabalho, já

que, por exemplo, chamar a ambulância e mandar uma pessoa para a Emergência e daí para o

distante Hospício dá muito pouco trabalho. A diferença não virá de menos ou mais trabalho, e

sim da satisfação de entrar em outra compreensão e atuação em Saúde e em Saúde Mental,

em ver as pessoas, famílias e comunidades atendidas e tendo sua cidadania desenvolvida.

Depois da capacitação inicial, a Equipe de Saúde Mental do Cabo de Santo Agostinho

promoveu “[...] encontros sistemáticos com cada uma das equipes (de PSF)” (CABRAL et.

al., 2000, p. 145), com a proposta de regularidade mensal. A Equipe de Saúde Mental

percebeu a importância de um estreitamento dos laços políticos com a coordenação do PSF,

para dar maior “[...] legitimidade para as ações desenvolvidas” (CABRAL et. al., 2000, p.

147). Foi percebida a necessidade de maior número de reuniões de capacitação, o que não

estava sendo possível devido à pequena Equipe de Saúde Mental para uma grande quantidade

de Equipes de PSF. (CABRAL et. al., 2000, p. 147). Foi, então, deduzido o número de

Equipes de PSF supervisionadas, ficando a proporção de um técnico de Saúde Mental para

cada quatro Equipes de PSF, com freqüência mensal de supervisão. Esta é uma opção

encontrada também em outros municípios e será objeto de discussão mais adiante.

Um tema da maior importância, levantado pelo trabalho que está sendo citado é o da

precariedade de indicadores de Saúde Mental na Atenção Básica. As Equipes decidiram, para

suprir essa carência, “[...] construir um instrumento de notificação de saúde mental que

permitisse delinear o perfil epidemiológico diagnóstico de cada área [...]” (CABRAL et. al.,

2000, p. 149).

As autoras encerram o trabalho com a afirmação da nova forma de trabalhar em Saúde

Mental e dizem: “A força deste novo paradigma está no encontro com as pessoas que fazem o

Page 135: Saude mental na atencao basica

135

lugar, a fim de construir algo por meio de um dialogo verdadeiro” (CABRAL et. al. , 2000, p

152). Citamos, também, o poema chinês que fecha o texto:

Vá ao povo

Viva com ele Ame-o Comece com o que ele sabe Construa com o que ele tem... (CABRAL, 2000, p. 152).

Araçuaí é um município de 36 mil habitantes, no Vale do Jequitinhonha, MG. No

meio da seca e da miséria, tornou-se sede administrativa de um Consórcio Intermunicipal de

Saúde, em 1995. Este consórcio iniciou um Programa de Saúde Mental (Cf. SILVA et al.,

2000).

Uma definição simples, e por isso mesmo repleta de significado, inicia a

argumentação das autoras do trabalho: “Depois da promulgação da Constituição Federal de

1988 e com a criação do SUS, a saúde passou a ser compreendida como questão coletiva, de

natureza social e política” (SILVA et al., 2000, p. 158).

As autoras do trabalho, incumbidas de mudar a orientação do atendimento à Saúde

Mental, encontraram-no organizado apenas com atendimento ambulatorial-medicamentoso,

sob a responsabilidade de um clínico. Foi, então, criado um serviço de Saúde Mental que “[...]

priorizava, entre as demandas sociais, a saúde preventiva, descartando o aspecto

eminentemente curativo” (SILVA et al., 2000, p. 159). Foram visitadas as famílias com

membros identificados como portadores de sofrimento mental, com o aumento da capacidade

de tratamento. (Cf. SILVA et al., 2000). Também foi criada uma “moradia assistida”,

retirando das ruas pessoas sem tratamento nem abrigo. O que ficou estabelecido foi um

trabalho de Atenção Básica, organizado a partir do Consórcio Intermunicipal e um NAPS,

com a abrangência de 105.500 habitantes. (Cf. SILVA et al., 2000). Depois da plena

instalação do PSF, o trabalho continuou na forma de “[...] intercâmbio entre o profissional

especializado em saúde mental e a equipe do PSF, que visa a procurar a melhor forma de

conduzir o tratamento” (SILVA et al., 2000, p. 165).

Esta forma de atuar enquadra-se na articulação entre os dois programas, Saúde Mental

e PSF, mantendo os encaminhamentos e as especialidades. Comentaremos adiante os avanços

e entraves dessa abordagem.

José Jackson Sampaio e Carlos Magno Barroso, do Ceará, definem o artigo final do

livro SaúdeLoucura número 7: “Os elementos postos em ralação no presente texto são o PSF

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136

e os CAPS, com base numa perspectiva de uma política municipal de saúde mental e das

estratégias de atenção primária” (SAMPAIO & BARROSO, 2000, p. 168).

Trata-se, portanto, de matéria da maior importância, que já foi tocada ao longo do

texto desta monografia e que voltará mais adiante.

O primeiro CAPS do Ceará foi inaugurado em 1991, num processo que evoluiu para

mais oito em 1999 e estava previsto que, no final de 2000, estariam em funcionamento 16

CAPS. O PSF já aparecia como parceiro privilegiado do trabalho do CAPS. (Cf. SAMPAIO

& BARROSO, 2000).

Os autores vão situar o trabalho na experiência de Sobral, município de 150 mil

habitantes

Que teve fechado seu hospital psiquiátrico clássico, de 25 anos de idade, e monta uma reforma psiquiátrica complexa, baseada na construção de uma rede composta por emergência e internação psiquiátrica em hospital geral, um hospital-dia, duas residências terapêuticas, um pequeno ambulatório de pronto-atendimento para referência aos municípios que ainda não têm políticas de saúde mental, e um CAPS para cobertura municipal, bem entrosado com as 42 equipes de PSF já instaladas (SAMPAIO & BARROSO, 2000, p. 171).

Os autores definem de modo muito determinado o que pensam a respeito da relação

CAPS/PSF: “Os CAPS, instrumentos práticos da reforma psiquiátrica, adquirem impulso,

operacionalidade, logística e sustentabilidade com a expansão do PSF. CAPS e PSF

interdeterminam-se, interpotenciam-se e interdependem-se” (SAMPAIO & BARROSO,

2000, p. 168).

Os autores argumentam que, ajudando a acabar a era do confinamento, os CAPS têm,

necessariamente, que promover os encontros na cidade e não apenas dentro das suas paredes.

Desta forma, dizem que “As ações precisam estar onde as pessoas estão experimentando seus

estilos de vida e suas escolhas, na trama das possibilidades, condições de existência, funções,

papéis, trabalhos, lazeres, crenças” (SAMPAIO & BARROSO, 2000, p. 173). A todo tempo

os autores lembram que é no campo comunitário que a Saúde Mental, agora, precisa ser

pensada e praticada. Desta forma apontam que

Na Saúde Mental, as mais complexas atividades, seja o diagnóstico diferencial entre sintoma negativo, sintoma positivo, padrão cultural ou escolha capaz de afirmar autonomia, seja a contenção de uma crise psicótica aguda, tudo pode e deve ser feito na comunidade (SAMPAIO & BARROSO, 2000, p. 173).

Page 137: Saude mental na atencao basica

137

Consoante com a prática de virar “para fora” as ações, os autores dizem que “[...] o

CAPS de Quixadá tem optado, estrategicamente, pelo reforço dos vínculos diretamente com a

sociedade organizada, como as associações e federações de bairro” (SAMPAIO &

BARROSO, 2000, p. 175).

Os autores dizem que, a partir do inicio dos trabalhos do PSF, em 1994:

Formulou-se uma diretriz inicial: os problemas de sofrimento psíquico e doença mental na Área Descentralizada de Saúde – ADS adstrita a cada equipe, como os outros problemas sanitários, [...] seriam de inteira responsabilidade das equipes, e que o município ofereceria o CAPS como referência, retaguarda, vanguarda e centro de treinamento, assessoria e consultoria. A diretriz traduz um princípio: não é necessário dispor de um especialista para que o conhecimento sobre saúde mental seja introjetado na atenção básica (SAMPAIO & BARROSO, 2000, p. 173).

Trata-se de mais uma forma de a Saúde Mental atuar na Atenção Básica, desta vez

com o CAPS, mantendo-se, principalmente, como retaguarda e fonte de supervisão. Já vimos

o Projeto Qualis, onde os especialistas freqüentam a comunidade, para desfazer as

especialidades, já vimos os especialistas atuarem como supervisores das Equipes de PSF, mas

sem pertenceram aos CAPS, até porque na maioria dos municípios não há CAPS e, nesse

último trabalho, temos a definição acima.

Como um dos resultados, os autores citam a enorme queda na quantidade de

benzodiazepínicos receitadas. (Cf. SAMPAIO & BARROSO, 2000).

Outro dado significativo foi a queda de oito por semana, para seis por ano, no número

de pessoas enviadas para hospitais psiquiátricos, já que as internações passaram a ser feitas no

Hospital Geral. Neste, a circulação de visitas e agentes de saúde colaboraram para mudar a

forma da população encarar as crises. (Cf. SAMPAIO & BARROSO, 2000).

5.4 O ano de 2001: mudanças e diretrizes.

Em março de 2001, a Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde

convocou uma reunião, em Brasília, intitulada “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano

Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”. Como documento base

para o encontro, a Área Técnica de Saúde Mental e o Departamento de Atenção Básica

lançaram o documento “Proposta Preliminar. Plano de Inclusão de Ações de Saúde Mental na

Atenção Básica”.

O documento citado diz, em relação ao PSF e ao PACS:

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138

Um novo modelo de atenção centrado na lógica da vigilância à saúde e qualidade de vida, dirigido à família e à comunidade, que inclui desde a proteção e promoção à saúde até o diagnóstico e tratamento das doenças, começa a ser gerado (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 4).

Com base na constatação de que é necessário ampliar as ações do PSF e do PACS,

com a entrada da Saúde Mental, o texto diz que

[...] o Ministério da Saúde, através da Secretarias de Políticas e da Área Técnica de Saúde Mental, decide pela elaboração e implantação de um Plano Nacional de Intervenção para incorporação de ações de Saúde Mental no conjunto de ações que compõem o cuidado integral à saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 4).

Esta é uma declaração da maior importância, visto partir do Ministério da Saúde,

responsável por induzir políticas públicas e sustentá-las com financiamento.

Nas “Justificativas” do Plano, o documento diz que com ele se estará “[...] rompendo

com o clássico modelo voltado para o indivíduo doente e iniciando um novo olhar aos grupos

humanos, ou seja, indivíduos, famílias e redes sociais” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p.

5).

O texto aponta para a necessidade de identificar recursos na comunidade, até então

“[...] invisíveis e conseqüentemente imobilizados [...]” e a incluir nesses recursos as “[...]

riquezas culturais comunitárias” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 5).

O texto refere-se à situação, já aludida acima, de que, naquele momento,

“Experiências de inserção de ações de saúde mental nos PSF têm acontecido em diversas

regiões com resultados importantes, porém de forma isolada e assistemática” (MINISTÉRIO

DA SAÚDE, 2001, p. 5).

Como forma e meio de chegar ao objetivo de inserir a Saúde Mental no PSF, o texto

começa a delinear ações de capacitação:

A ampliação do conhecimento sobre as ações de saúde mental para as equipes que assistem as famílias [...] a realização de um conjunto de ações que se encarregue de construir as pistas necessárias à transferência dos conhecimentos do campo da saúde mental, de forma democrática e participativa com a presença dos profissionais que já vêm agindo no âmbito das comunidades (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p 6).

O “Objetivo Geral”, para o documento, é “Oferecer às equipes de saúde da família

condições para cuidar de cidadãos portadores de transtornos mentais no seu contexto familiar

Page 139: Saude mental na atencao basica

139

e comunitário” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 7). Note-se que, da forma como está

colocado, o Objetivo Geral limita-se à capacitação, não apontando para ações que envolvam

diretamente profissionais de Saúde Mental na comunidade, como já vimos em algumas

experiências relatadas.

Dos “Objetivos Específicos” consta a construção regional de planejamento e metas

para a implantação das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, o desenvolvimento de

capacitação para as Equipes de PSF, o enfrentamento dos problemas de uso de álcool e

drogas, a atenção a grupos familiares de risco. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 7).

Também nos objetivos específicos estão os seguintes pontos muito importantes:

-Desenvolver uma base de dados específica para a Saúde Mental, incluindo-a no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB); -Construir coletivamente mecanismos públicos de participação, avaliação e controle para as ações que estejam sendo implantadas no território, proporcionando uma maior articulação das Redes Sociais com a mobilização de recursos governamentais, ONGs, grupos de auto ajuda, associação de bairro, conselho tutelar, entre outros. -Regulamentação da equipe de Saúde Mental que vai se integrar ao PSF para suporte especializado (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 7).

Desta forma, está apontado o caminho para a avaliação pública das ações de Saúde

Mental e sua inserção nas Redes Sociais, balizando o caráter participativo da proposta, o que

é uma definição política.

O documento coloca “Metas” para 2001 e para 2002, que, pelas informações que

tenho, não foram cumpridas integralmente, em sua maioria.

Para o ano 2001, além da realização da “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano

Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, as demais metas

ficaram por conta das iniciativas municipais, sem incentivo federal. Constavam das metas:

definir 40 municípios, para iniciar a implantação da Saúde Mental no PSF, criação e

capacitação de Equipes de Saúde Mental para apoio as equipes dos PSF, capacitação dos

recursos humanos dos PSF pelas equipes de Saúde Mental para implementação das ações,

Inclusão dos cuidados de Saúde Mental nos módulos básicos de treinamento para novas

equipes de saúde da família e oficinas regionais de acompanhamento e avaliação da

implantação do Plano Nacional. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001). Mesmo não tendo

sido possível realizar todas as metas, o documento deixou as indicações do que deveria ser

feito e, como já foi ressaltado, as iniciativas cabem aos municípios, apesar da dependência de

financiamento federal.

Page 140: Saude mental na atencao basica

140

Para 2002, o texto propunha a “Implantação de ações de Saúde Mental nos municípios

de mais de 100.000 habitantes” e “Oficinas de acompanhamento e avaliação para as equipes

com programas em andamento” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 8).

Note-se que, ao descrever as ações de Saúde Mental no PSF, o documento fala em

capacitação das Equipes de PSF e não de atuação conjunta, com o profissional de Saúde

Mental na comunidade. Este detalhe, da maior importância, foi objeto de debates na “Oficina”

e sofreu mudanças de enfoque, inclusive em documentos posteriores do Ministério.

Na parte inicial do documento reservada às “Etapas para Incorporação da Saúde

Mental na Atenção Básica”, está sugerido “Elaborar o plano municipal de inclusão da Saúde

Mental no PSF, [...] definir o fluxo de referência e contra-referência” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2001, p. 9). Também o tema da referência e contra-referência foi objeto de

acalorados debates na “Oficina”, com novas propostas.

No aspecto institucional, o documento sugere “Apresentar o Plano de Inclusão da

Saúde Mental ao Conselho Municipal de Saúde” e “Pactuar na Comissão Intergestores

Bipartite (CIB) a adesão da saúde mental à estratégia do PSF” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,

2001, p. 9).

Como será notado abaixo, na descrição das atividades dos “[...] profissionais do

PSF/PACS com supervisão da equipe de Saúde Mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001,

p. 9), as ações no território estão, até esse momento, propostas para serem todas realizadas

pelas equipes de PSF/PACS:

-realização de diagnóstico da comunidade buscando identificar os principais problemas de saúde mental e os recursos institucionais e comunitários existentes com potencialidade de mobilização -planejamento e programação de ações com base no diagnóstico e na mobilização dos diversos setores envolvidos -implantação de um sistema de informação que deverá compor o SIAB -acompanhamento e avaliação das ações. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 9).

No capítulo “Equipe de Saúde Mental e Atenção Básica”, o documento critica o

estado atual dos Ambulatórios de Saúde Mental: “[...] encontram-se, na sua maioria, isolados

com pouca mobilidade de articulação tanto em relação aos PSF, quanto aos serviços de maior

complexidade como os NAPS/CAPS, hospitais gerais e especializados” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2001, p. 10). Como definição de princípios e reforçando importante diretriz, o texto

recomenda que, para operar a mudança do quadro criticado, “[...] é necessário consolidar um

Modelo de Atenção, baseado na integralidade e territorialização das ações com serviços

Page 141: Saude mental na atencao basica

141

diversificados, articulados dentro da rede geral de saúde e voltado para a atenção integral”

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 10). Percebem-se, no trecho citado, os dois conceitos

que vêm aparecendo como pilares do trabalho da Saúde Mental nos dias de hoje, tempos de

desinstitucionalização e mobilização social: rede e território. Além disso, aparece um dos

preceitos do SUS: a integralidade.

Para efetuar a proposta, os autores do documento do Ministério da Saúde recomendam

[...] a criação de uma equipe de saúde mental que se vincule diretamente como suporte técnico especializado para atenção básica. Os profissionais que vão integrar as equipes de saúde mental devem assumir o acompanhamento do PSF, sendo uma referência para auxiliar no diagnóstico e planejamento das ações, como também na capacitação, treinamento e avaliação dos resultados com supervisão técnica continuada (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 10).

Chegamos às “Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, item 6 do documento que

vem sendo examinado. Lembremos que as ações, listadas a seguir, estavam pensadas para

serem integralmente executadas pelos profissionais das Equipes de PSF. São elas:

-Sensibilização para a escuta e compreensão da dinâmica familiar e das relações sociais envolvidas -Sensibilização para a compreensão e identificação dos pontos de vulnerabilidade que possam provocar uma quebra ou uma má qualidade dos vínculos familiares e sociais -Incorporar a saúde mental nas ações voltadas para: hipertensão, diabete, saúde da mulher, criança e adolescente, idoso, alcoolismo e outras drogas, violência urbana entre outros -Acompanhamento de usuários egressos de internações psiquiátricas, egressos dos NAPS e de outros recursos ambulatoriais especializados -Construções de intervenções terapêuticas de forma individualizada, respeitando a realidade específica local e voltada para a inclusão social -Mobilização de recursos comunitários estabelecendo articulações com grupos de auto ajuda, associações de bairros, conselho tutelar, entre outras organizações populares -Promoção de palestras, debates, atividades artísticas e de grupos de uma maneira geral com temáticas específicas de acordo com a realidade de cada comunidade -Buscar construir novos espaços de reabilitação psicossocial dentro da comunidade como oficinas comunitárias e outros que venham a ser criados pela mobilização social. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 11).

Assinale-se a clara orientação pela mobilização social como base do trabalho

proposto, a procura por recursos já existentes na comunidade e o estímulo à criação de outros.

Será de grande interesse comparar a lista de ações acima com as que resultaram da “Oficina”

e da que consta do documento “Saúde Mental e Atenção Básica. O Vínculo e o Diálogo

Page 142: Saude mental na atencao basica

142

Necessários. Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, de 2004. (Cf.

MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004), o que faremos adiante.

O documento propõe-se a definir as “Responsabilidades Institucionais”, começando

por aquelas definidas para o Ministério da Saúde. Salvo melhor juízo, nenhuma delas foi

executada até o momento. Faziam parte desse rol a facilitação regional de planejamento para

a inserção das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, a implantação de capacitação e

supervisão técnica no tema, a elaboração de material didático, a avaliação com os estados a

respeito do que estaria sendo praticado e a inclusão de base de dados no Sistema de

Informação da Atenção Básica (SIAB).

Quanto às “Responsabilidades das Secretarias Estaduais de Saúde”, a ênfase está

colocada em fornecer capacitação, em parcerias com as Secretarias Municipais de Saúde,

elaboração de material didático, criar de indicadores para avaliação das ações e trabalhar os

dados existentes no SIAB. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001).

No Estado do Rio de Janeiro, na Assessoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado

de Saúde, foi criado, no segundo semestre de 2001, um núcleo para encaminhar as propostas

de aproximação Saúde Mental/PSF, tendo como responsáveis Leila Vianna e Carlos Eduardo

de Moraes Honorato.

As “Responsabilidades das Secretarias Municipais de Saúde” são aquelas que

efetivamente aproximam os Programas Municipais de Saúde Mental da Atenção Básica. São

as seguintes:

-Elaboração do plano municipal para inclusão das ações de Saúde Mental na Atenção Básica com objetivos e metas definidas; -Sensibilizar para a necessária prioridade de direcionar as ações para os grupos familiares mais vulneráveis e estabelecer os mecanismos adequados para acompanhamento e avaliação dos resultados esperados; -Assegurar o acesso progressivo de todas as famílias beneficiadas com o PSF às ações de promoção da Saúde Mental e prevenção de seus agravos; -Garantir a infra-estrutura de funcionamento da unidade de saúde para o trabalho; -Incorporar no treinamento do ACS os conteúdos de Saúde Mental; -Disponibilizar meios para capacitação técnica e educação permanente dos profissionais de Saúde Mental, em articulação com a SES por intermédio dos Pólos de Capacitação, Formação e Educação Permanente e outras instituições de ensino; -Elaboração de material didático para as atividades de educação continuada; -Supervisionar o trabalho dos profissionais das equipes de Saúde Mental, em conjunto com a SES; -Participar de avaliação do trabalho das equipes de saúde da família, juntamente com a SES;

Page 143: Saude mental na atencao basica

143

-Alimentar o SIAB com os dados necessários para avaliação das ações desenvolvidas . (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 13).

Como não se efetivaram integralmente as Responsabilidades nos níveis Federal e

Estadual, a iniciativa ficou quase apenas na dependência das ações municipais. Porém, o valor

das orientações acima permanece, enquanto um roteiro para a inserção das ações de Saúde

Mental na Atenção Básica.

O texto chama a atenção para a “Avaliação” das ações de saúde que estão sendo

implantadas e, no item “Avaliação da estrutura”, diz que “Em relação à Saúde Mental não há

necessidade de acrescentar nada à estrutura pré-existente na unidade de saúde”

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 14). Apesar de estar em contradição com um dos itens

da lista de “Responsabilidades das Secretarias Municipais de Saúde”, acima, aqui está uma

das características que torna a entrada da Saúde Mental no PSF uma estratégia plenamente

exeqüível em curto prazo: não há o que construir, adequar, alugar. Trata-se de capacitar

recursos humanos e organizar o sistema.

O documento aponta a necessidade da avaliação quanto ao processo e quanto aos

resultados. Este último “[...] abordará o desenvolvimento da integração das ações de saúde

mental ao PSF, bem como os indicadores de eficácia e efetividade” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2001, p. 14).

Depois de historiar os pontos de identificação entre o PSF e o “[...] novo modelo de

atenção descentralizado e de base comunitária” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 1), da

Saúde Mental, que já temos detalhado nessas páginas, o texto da “Proposta Preliminar”

aponta como “Objetivos” da Oficina:

- Aprofundar, entre os participantes da oficina, a discussão acerca da inclusão de ações de saúde mental no Saúde da Família, com vistas a obter subsídios para conclusão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental no PSF; - Aproveitar as experiências vivenciadas pelos participantes da Oficina, para subsidiar a conclusão do Plano Nacional de Inclusão da Saúde Mental no Saúde da Família; - Identificar estratégias específicas para o enfrentamento da concentração de leitos psiquiátricos e problemas decorrentes do uso do álcool e outras drogas e outros transtornos mentais de maior prevalência. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 2)

Realizou-se, então, em março de 2001, em Brasília, a “Oficina de Trabalho para

Discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”. O

Page 144: Saude mental na atencao basica

144

encontro representou a retomada, em níveis amplos, da discussão da atuação da Saúde Mental

nas comunidades.

Foram apresentadas as experiências desenvolvidas nos municípios de Curitiba/PR,

Quixadá/CE, Sobral/CE, Cabo de Santo Agostinho/PE, Recife/PE, Camaragibe/PE,

Araçuaí/MG, Natal/RN, Aracaju/SE e no Projeto Qualis da Secretaria Estadual de Saúde de

São Paulo. Comparecei na qualidade de “Especialista convidado” e fui relator de um dos

Grupos de Trabalho.

As mesas redondas e a mesa inicial serviram de subsídios e aquecimento para os

trabalhos em grupo, que apresentaram as suas conclusões na Discussão Ampliada, momento

final da Oficina. O que será citado, daqui por diante, referido ao documento que saiu da

Oficina, é o que foi aprovado na Discussão Ampliada final.

Em termos gerais, os relatórios dos grupos reconhecem a semelhança de propósitos

que unem os Programas em questão e dizem que

As diretrizes do PSF e as diretrizes da reforma psiquiátrica constituem hoje um conjunto de princípios que são fundamentais para o diálogo, a articulação e a implementação de ações de saúde mental no PSF (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 15).

Os relatórios advertem, também, que as

[...] ações só terão eficiência e eficácia se estiverem inseridas e articuladas com uma rede de cuidados e ações de saúde mental (emergência, hospital geral, pronto atendimento, NAPS, CAPS, residências terapêuticas, etc.) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 10).

Os grupos de trabalho dedicaram-se, para iniciar a discussão prática, a levantar,

segundo suas experiências e orientados pela coordenação do evento, os “[...] problemas de

saúde mental, e as situações de risco e vulnerabilidade que mais freqüentemente ameaçam e

comprometem os vínculos familiares e sociais” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 7).

Resultou dessa discussão uma extensa lista de problemas que, muitas vezes, não chegam aos

dispositivos já consagrados em Saúde Mental. São os seguintes os problemas e situações de

risco e vulnerabilidade, colocados aqui sem ordem de importância ou estatística: alcoolismo e

outras dependências (com suas conseqüências: violência doméstica e no trânsito, delitos,

tentativas de suicídio), psicoses e demais transtornos mentais graves, prostituição infantil,

doença clínica grave, exclusão social (pacientes cronificados em hospitais psiquiátricos,

prisão domiciliar, população em situação de rua, idoso abandonado, crianças e adolescentes

Page 145: Saude mental na atencao basica

145

em situações de risco), violência (domiciliar, comunitária), suicídios e suas tentativas, abuso

de benzodiazepínicos, transtornos do humor e retardo mental (Cf. MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2001 b).

Os participantes dedicaram-se, então, a trocar experiências e, a partir delas, a pensar

“Que ações devem ser desenvolvidas pela equipe de saúde mental em articulação com o PSF?

Qual sua composição e a quantas equipes de saúde da família deverá dar suporte?”

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 7). Trata-se, então, de um dos temas centrais da

discussão a respeito da Saúde Mental na Atenção Básica: as ações e as equipes.

Foco de muita polêmica, a inserção de profissionais de Saúde Mental diretamente no

campo, na comunidade, atuando junto com os membros das Equipes de PSF e PACS, foi a

posição que predominou amplamente na Oficina, tanto que consta de todos os relatórios dos

grupos. Este deve ser um tema de debate constante: o que deve fazer o profissional de Saúde

Mental na comunidade? Durante a Oficina foi destacado que, antes de ver o que deve ser

feito, há uma pequena e importante lista do que não é para ser feito: atuar como especialista

(pelo contrário, a tarefa é inverter o discurso das especialidades), fornecer capacitação, para

que as Equipes de PSF e PACS assumam sozinhas a função de “tratar” e receber

encaminhamentos (a Equipe de Saúde Mental), numa repetição do modelo dos ambulatórios.

Exemplificando o que foi aprovado nos relatórios, no tema acima, temos:

“Intervenção conjunta em consultas e visitas domiciliares, responsabilidade territorial [...]”

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p 9), “Atuar junto ao PSF para capacitação e educação

continuada, discussão de caso, planejamento local, intervenção conjunta, mobilização e

integração com recursos existentes nas comunidades [...]” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001

b, p. 12), “Intervenções familiares comunitárias conjuntas (PSF + ESM), como instrumento

de capacitação [...], Criação de Oficinas Terapêuticas na comunidade” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2001 b, p. 21).

A alternativa à entrada direta dos profissionais de Saúde Mental nas comunidades,

junto às Equipes de PACS e PSF é a opção por manter um trabalho de supervisão, praticado

em alguns municípios. Deste modo, organiza-se melhor a rede de assistência à Saúde Mental,

com esclarecimentos a respeito de encaminhamentos, discussão de casos e capacitação em

temas específicos. Tenta-se, também, que as Equipes de PACS e PSF atuem em situações de

Saúde Mental sem a presença dos profissionais de Saúde Mental. Consideramos que, devido à

magnitude dos problemas da Saúde Mental, ao intricado de temas de capacitação, à

sobrecarga de trabalho das Equipes de PACS e PSF e à necessidade de agilizar as mudanças,

é preferível a presença de profissionais de Saúde Mental junto às Equipes de PACS e PSF,

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146

conforme recomendou a Oficina, com funções de capacitação, organização conjunta do

trabalho e para a condução conjunta das situações que se apresentam.

As ações citadas acima são a base para muitas outras, como o estímulo à organização

de redes sociais, a mobilização de recursos comunitários, a incorporação da Saúde Mental na

atenção aos problemas de saúde em geral, o enfrentamento da questão da violência urbana e

doméstica, a atenção ao idoso e ao adolescente. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b).

A capacitação é uma das ações que se tornaram consenso, com a recomendação de

que deve ser continuada e mútua, isto é, as Equipes trocam experiências e saberes. Em

conseqüência da metodologia de educação continuada, sempre a partir das realidades locais, a

Oficina não se limitou a traçar um programa mínimo de capacitação, mas estendeu

amplamente o campo de conhecimento que as Equipes da Atenção Básica podem adquirir, a

partir do contato com as Equipes de Saúde Mental. Foram citados desde conhecimentos de

psicofarmacologia e psicopatologia até a história das abordagens ao desvio e à loucura,

noções de dinâmicas de grupo, de Reforma Psiquiátrica, de Programas de Saúde Mental. (Cf.

MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b).

Um tema polêmico e importante, pois decisivo para o suporte das ações, é o da relação

quantitativa entre Equipes de Saúde Mental e Equipes de PSF. A pergunta inicial da Oficina,

em relação às funções das Equipes de Saúde Mental foi: “[...] a quantas equipes de saúde da

família deverá dar suporte?” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 7). Os relatórios dos

grupos de trabalho indicam entre 8 e 10 Equipes de PSF para cada Equipe de Saúde Mental,

sendo esta composta, em média, por quatro profissionais. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE,

2001 b). Esta proporção não condiz com a prática, no meu modo de ver e com base na

observação da prática que tenho realizado.

Considerando que cada Equipe de Saúde da Família atende até mil famílias, num total

de cerca de quatro mil pessoas, oito Equipes de PSF atendem uma população de quase trinta e

duas mil pessoas. Se o Ministério da Saúde reconhece que 3% da população necessita de

cuidados contínuos, por apresentar transtornos mentais severos e persistentes (MINISTÉRIO

DA SAÚDE, 2004, p. 2), só neste contingente estão cerca de novecentas e sessenta pessoas.

Articular assistência e promoção de cidadania para essas pessoas, além de todas as demais

ações recomendadas pela Oficina, é tarefa extensa demais para uma só Equipe de Saúde

Mental, por mais que saibamos que terá atuação conjunta com as Equipes locais de PACS e

PSF e o movimento comunitário disparado potencializará as ações. Voltaremos ao tema mais

adiante, ao discutir a implantação efetiva das ações de Saúde Mental na Atenção Básica em

Macaé.

Page 147: Saude mental na atencao basica

147

Um item da maior importância é o que uma das perguntas da equipe de coordenação

do evento colocou: “Em que casos a pessoa com problemas de saúde mental deve ser

referenciada e qual o fluxo de referência e contra-referência ?” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,

2001 b, p. 7). Quando a opção de trabalho é apenas pela supervisão das Equipes de PSF, é

estabelecido um melhor relacionamento entre o PSF e a rede de assistência à Saúde Mental,

com organização do fluxo de referência e contra-referência, o que é muito útil. Mas, se a

opção for por tentar, progressivamente, a abordagem efetiva da Saúde Mental na Atenção

Básica, as referências vão perdendo em volume e importância. Um dos grupos de trabalho

respondeu à pergunta acima com: “Mudança da denominação conceitual de referência/contra-

referência para co-responsabilidade e trabalho em rede de complementaridade”

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 23). Isso significa que, ao lado de tentar abordar os

problemas da Saúde Mental na comunidade, num trabalho de co-responsabilidade entre

Equipes de Saúde Mental e PSF, a tradicional referência e contra-referência, que muitas vezes

perde a pessoa encaminhada de vista, passa a ser encarada como parte de uma rede de

complementaridade, trabalho verdadeiramente conjunto, integrado e em que todos os

envolvidos continuam responsáveis e em contato com as pessoas atendidas.

O tema “Financiamento” não esteve na relação de perguntas oferecidas pelo

Ministério da Saúde, mas preocupou e ocupou os participantes da Oficina, que produziram

propostas. Um dos grupos sugeriu e

[...] a plenária recomendou que seja destinado um incentivo por parte do Ministério da Saúde para os municípios que incluírem ações de saúde mental nos programas de saúde da família, dentro das diretrizes propostas pelo Plano Nacional de Inclusão. A manutenção ou suspensão deste incentivo serão balizadas pelos indicadores de avaliação também propostos no Plano (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b, p. 14).

Também foi discutida, mas não consta do Relatório Final, a sobrecarga de trabalho das

Equipes do PSF. Com a entrada da Saúde Mental, mais trabalho é acrescentado, mesmo que,

depois de implantadas as ações, os problemas não resolvidos possam diminuir. Foi, então,

ventilada a possibilidade de diminuir a quantidade de famílias a serem atendidas pelas

Equipes de PSF que tenham ações de Saúde Mental.

Escrevo no segundo semestre de 2004 e até então nenhum incentivo de financiamento

à entrada da Saúde Mental na Atenção Básica foi regulamentado, por parte do Ministério da

Saúde. Está estabelecida uma definição de investimento em capacitação, como consta no

texto “Saúde Mental e Atenção Básica. O Vínculo e o Diálogo Necessários. Inclusão das

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Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, que diz que existem possibilidades de financiar a

Formação Profissional através do Programa Permanente de Formação para a Reforma

Psiquiátrica, da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, em articulação com os

Pólos de Educação Permanente em Saúde e com os gestores estaduais de municipais (Cf.

MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b).

Foram discutidos e sugeridos indicadores para a avaliação das ações de Saúde Mental

na Atenção Básica. O indicador mais presente nas sugestões foi o número de internações

psiquiátricas, que deveria fazer parte do SIAB. Um dos grupos sugeriu “[...] indicadores que

identifiquem a ampliação de trabalhos comunitários e territoriais” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2001 b, p. 19). Redução da violência na comunidade também foi um dos indicadores

mais citados (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b).

Em resumo, a Oficina de 2001 produziu um relatório que é um roteiro para a

implantação da Saúde Mental na Atenção Básica com diretrizes, conteúdo conceitual e de

capacitação, sugestão de ações, indicadores e financiamento.

Durante a 54a. Assembléia Mundial da Saúde, da Organização Mundial da Saúde,

realizada em maio de 2001, ocorreram quatro mesas redondas de Ministros da Saúde dos

países membros, que resultaram no relatório “Mesas redondas: salud mental. Informe de la

secretaria”. Nele está contida a afirmação:

Todos los ministros coincidieron en que los problemas de salud mental representan un componente importante de la carga de morbilidad a nivel mundial, tienen enormes costos económicos y sociales, y provocan sufrimiento humano. El hecho de que los países deban abordar otros problemas sanitarios y que sus presupuestos de salud sean limitados ya no puede aducirse como justificación para no adoptar medidas. La evolución reciente indica con claridad que es posible hallar soluciones eficientes en todos los contextos (ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 2001, p. 1).

Apontando para a necessidade de financiamento do setor de Saúde Mental, dada a sua

importância epidemiológica e social, a OMS indica os meios para se chegar a uma assistência

e promoção, na área, que seja compatível com os conhecimentos atuais, iniciando com o

chamamento para o combate à estigmatização. (Cf. ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA

SALUD, 2001, p. 2).

A Assembléia reconhece a importância dos fatores sociais para os problemas de Saúde

Mental e assinala que

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Los ministros destacaron la importancia de situar el tema de la salud mental en el contexto social pertinente, puesto que en ella inciden factores que varían en los diferentes países. En gran parte del mundo se asiste a una aceleración de las reformas económicas y los cambios sociales, incluida la transición económica; esta evolución trae aparejadas unas tasas alarmantes de desempleo, la desintegración de la familia, la inseguridad personal y la desigualdad de ingresos (ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 2001, p. 1).

Resta saber a que transição econômica se refere o texto, que chama de “evolução” um

processo que leva ao caos social, isto é, a globalização geradora de mais desigualdade.

Já no campo das ações de saúde, o texto, no capítulo “Mejora de las Políticas y los

Servicios de Salud Mental”, aconselha a “Adopción de la atención basada en la comunidad e

integración de la salud mental en los sistemas nacionales de atención primaria de salud”

(ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 2001, p. 3).

No dia 11 de dezembro de 2001, Benedetto Saraceno, Coordenador do Departamento

de Saúde Mental e Abuso de Drogas da Organização Mundial da Saúde (OMS), proferiu a

Conferência de Abertura da III Conferência Nacional de Saúde Mental. A palestra, intitulada

“Saúde Mental, Cidadania e Direito do Cidadão”, foi um resumo, com referências ao Brasil,

da publicação, que então estava sendo lançada, o “Relatório Sobre a Saúde no Mundo 2001.

Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”.

Inicialmente, o documento lançado chama a atenção para a dimensão dos problemas de

Saúde Mental dizendo:

A OMS está fazendo uma declaração muito simples: a saúde mental – negligenciada por demasiado tempo – é essencial para o bem-estar das pessoas, das sociedades e dos países, e deve ser universalmente encarada sob uma nova luz (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 13).

Com o objetivo de dar a sua orientação atual para a Saúde Mental no mundo, a OMS

utilizou centros de pesquisa em dezenas de países, em todos os continentes, e chegou a dez

recomendações gerais. Ao observar o teor das recomendações, vemos que a primeira delas

situa na Atenção Básica as ações preferenciais da Saúde Mental. São os seguintes os títulos

das recomendações:

1-Proporcionar tratamento na atenção primária. 2-Garantir acesso aos medicamentos psicotrópicos. 3-Garantir atenção na comunidade. 4-Educação em saúde para a população. 5-Envolver as comunidades, as famílias e os usuários.

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6-Estabelecer políticas, programas e legislação nacionais. 7-Formar recursos humanos. 8-Criar vínculos com outros setores. 9-Monitorizar a Saúde Mental na comunidade. 10-Dar mais apoio à pesquisa. (Cf. RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001).

Naquele momento, a Organização Mundial da Saúde apontava um caminho, com

clareza, que mostra, certamente, uma mudança significativa nos rumos das práticas em Saúde

Mental. A Diretora Geral da OMS, Gro Brudtland, na mensagem que abre o documento,

lembra três princípios adotados pela Organização das Nações Unidas há uma década:

O primeiro desses princípios é o de que não deverá existir discriminação em virtude de doenças mentais. Outro é o que, na medida do possível, deve-se conceder a todo paciente o direito de ser tratado e atendido na sua própria comunidade. E o terceiro é o de que todo paciente deverá ter o direito de ser tratado num ambiente o menos restritivo, com o tratamento menos restritivo ou intrusivo (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 13).

Notemos que o que consta dessa declaração também está na Lei 10.216, a Lei Paulo

Delgado, de 2001. Cabe forçar as limitações desse “na medida do possível”.

A Dra Gro faz uma séria acusação, em relação às medidas tomadas para a assistência à

Saúde Mental: “Os governos têm-se mostrado desidiosos, tanto como a comunidade da saúde

pública” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 14). O Dicionário Aurélio

Eletrônico dá os seguintes significados de “desídia” : preguiça, indolência, inércia,

negligência, desleixo, descaso, incúria. Assim fica mais claro.

Num tom de exortação, a Dra Gro encerra o seu texto com as seguintes palavras:

Como a principal instituição mundial de saúde pública, a OMS tem uma e apenas uma opção: assegurar que a nossa geração seja a última a permitir que a vergonha e o estigma tomem a frente da ciência e da razão (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 14).

Na particularização do que está exposto nas recomendações do documento que

apontam para a Atenção Básica, lemos logo no primeiro: “Proporcionar tratamento na

Atenção Primária”. Diz o texto: “O manejo e tratamento de transtornos mentais no contexto

da atenção primária é um passo fundamental que possibilita ao maior número possível de

pessoas ter acesso mais fácil e mais rápido aos serviços [...]” (RELATÓRIO SOBRE A

SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 15).

No item 3, “Garantir Atenção na Comunidade”, a OMS afirma:

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A atenção baseada na comunidade tem melhor efeito sobre o resultado e a qualidade da vida das pessoas com transtornos mentais crônicos do que o tratamento institucional. A transferência de pacientes dos hospitais psiquiátricos para a comunidade é também efetiva em relação ao custo e respeita os direitos humanos. Assim, os serviços de saúde mental devem ser prestados na comunidade, fazendo uso de todos os recursos disponíveis. Os serviços de base comunitária podem levar a intervenções precoces e limitar o estigma associado com o tratamento. Os grandes hospitais psiquiátricos de tipo carcerário devem ser substituídos por serviços de atenção na comunidade, apoiados por leitos psiquiátricos em hospitais gerais e atenção domiciliar que atenda a todas as necessidades dos doentes que eram de responsabilidade daqueles hospitais. Essa mudança para a atenção comunitária requer a disponibilidade de trabalhadores em saúde e serviços de reabilitação no nível da comunidade, juntamente com a provisão de apoio em face de crises e proteção na moradia e no emprego (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 16).

Notemos que o item começa focalizando o paciente crônico, mas vai evoluindo até

propor intervenções precoces e apoio em crises, ampliando as ações que o início do texto

poderia sugerir como restritas. Desta forma, a atenção aos problemas graves de Saúde Mental

passa a ser integral.

O item quatro contempla uma das prioridades, segundo a OMS: a luta contra o estigma

e o preconceito. Deste modo sugere que, ao lado de divulgar as opções de tratamento, “Uma

bem planejada campanha de sensibilização e educação do público pode reduzir a

estigmatização e a discriminação, fomentar o uso dos serviços de saúde mental e lograr uma

aproximação maior entre saúde mental e saúde física” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO

MUNDO, 2001, p. 16).

O item cinco é uma tomada de posição quanto ao controle social das ações de Saúde

Mental, no seu planejamento e execução. Com o título de “Envolver as comunidades, as

famílias e os usuários”, diz que

As comunidades, as famílias e os usuários devem ser incluídos na formulação e na tomada de decisões sobre políticas, programas e serviços. Isso deve resultar num dimensionamento melhor dos serviços às necessidades da população e na sua melhor utilização. Ademais, as intervenções devem levar em conta a idade, o sexo, a cultura e as condições sociais, a fim de atender às necessidades das pessoas com transtornos mentais e suas famílias. (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 16).

O item “Formar recursos humanos” traz detalhes importantes, que nunca é demais

repetir e ver colocado em palavras claras e por uma entidade da importância da OMS. Diz ele

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que “A maioria dos países em desenvolvimento precisa aumentar e aprimorar a formação de

profissionais para a saúde mental, que darão atenção especializada e apoiarão programas de

atenção primária em saúde” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p 17).

Mais adiante, no mesmo item, está colocada mais uma vez a definição da OMS:

Embora a atenção primária ofereça o contexto mais vantajoso para a atenção inicial, há necessidade de especialistas para prover toda uma série de serviços. Em condições ideais, as equipes especializadas em atenção em saúde mental deveriam incluir profissionais médicos e não médicos, tais como psiquiatras, psicólogos clínicos, enfermeiros psiquiátricos, assistentes sociais psiquiátricos e terapeutas ocupacionais, que podem trabalhar juntos com vistas à atenção e à integração total dos pacientes na comunidade (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 17).

Deste modo, a OMS define que a Atenção Básica é o nível privilegiado para a

abordagem à Saúde Mental, não prescindindo, porém, de outros recursos. Destacamos, no

texto a expressão “[...] atenção e [...] integração total dos pacientes na comunidade”

(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 17), o que parece indicar a

tentativa de tentar não referir o paciente e sua família para outros serviços, se isso for

possível. Voltamos, então, mais uma vez, à definição de que as pessoas devem ser tratadas

com os recursos comunitários sempre que isso for possível.

O item “Monitorizar a Saúde Mental na comunidade” reforça o que entre nós já vem

sendo repetido e proposto: a inclusão de indicadores de Saúde Mental no sistema de

informação da Atenção Básica. O texto diz:

A saúde mental das comunidades deve ser monitorizada mediante a inclusão de indicadores de saúde mental nos sistemas de informação e notificação sobre saúde. Os indicadores devem incluir, tanto o número de indivíduos com transtornos mentais e a qualidade da atenção que recebem, como algumas medidas mais gerais de saúde mental das comunidades. Essa monitorização ajuda a determinar tendências e detectará mudanças na saúde mental em resultado de eventos externos, tais como catástrofes. A monitorização é necessária para verificar a efetividade dos programas de prevenção e tratamento de saúde mental, e fortalece, ademais, os argumentos em favor da provisão de mais recursos. São necessários novos indicadores para a saúde mental das comunidades (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 16).

O Relatório da OMS traz um estudo a respeito da prevalência dos transtornos mentais

no contingente populacional que procura a atenção básica, indicando que “[...] os diagnósticos

mais comuns são depressão, ansiedade e transtorno por uso de substâncias” (RELATÓRIO

SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p 51). Citando um estudo transcultural de Üstün e

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Sartorius 1995 e de Goldberg e Lecrubier 1995, aponta números que, para o Rio de Janeiro

são: 15,8% para depressão atual, 22,6% para ansiedade generalizada e 4,1% para dependência

do álcool. (Cf. RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001). Com esses números

significativos, a OMS chama a atenção para o impacto causado pelos transtornos mentais nas

pessoas, famílias e comunidades. Como “[...] uma em quatro famílias tem, pelo menos, um

membro que sofre atualmente um transtorno mental ou comportamental” (RELATÓRIO

SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 51), é grande o número de lares onde ocorrem

perdas econômicas, necessidade de deslocar pessoas da atividade produtiva para o cuidado

com os membros afetados, além dos gastos com o tratamento e do sofrimento geral causado

pelo estigma e discriminação.

Confirmando a alta prevalência de transtornos mentais na população, Sandra Fortes,

em tese de doutorado de 2004, chegou aos seguintes números, pesquisando em unidades do

Programa de Saúde da Família em Petrópolis, RJ:

Detectou-se uma prevalência média de 56% de Transtornos Mentais Comuns nos pacientes atendidos, sendo que 33% eram de quadros graves. Constituía-se principalmente de Transtornos Depressivos e Ansiosos, destacando-se também os Transtornos Somatoformes e Dissociativos (FORTES, 2004, p. 5).

O Capítulo 3 do Relatório é dedicado à abordagem da Resolução de Problemas de

Saúde Mental, isto é, aos modos eficazes de tratamento. A OMS considera que três fatores

contribuíram para a mudança de paradigma da atenção à saúde mental: os avanços da

psicofarmacologia, o movimento em favor dos direitos humanos e a incorporação, na

definição de saúde, pela própria OMS, dos aspectos sociais e mentais. (Cf.RELATÓRIO

SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001). Podemos comentar que esse trio de avanços custa a

chegar às comunidades, ou mesmo contribuem para o seu controle, como por exemplo a

psicofarmacologia que, se é positiva, quando acoplada aos outros dois avanços, é meio de

controle, quando utilizada como único instrumento ou ao fornecer base para teorias

reducionistas de explicação do sofrimento mental. O movimento em favor dos direitos

humanos, como a própria denominação indica, movimento, está ao sabor das vontades

políticas cambiantes e das pressões pela manutenção do encobrimento das mazelas sociais.

A definição da OMS, que diz que saúde é o bem estar físico, mental e social, também

não tem amplo alcance, a começar pela formação dos profissionais de saúde que, em grande

maioria, é feita apenas em bases biológicas. A afirmação do Relatório é importante como

mais uma convocação à coerência entre os conceitos estabelecidos na teoria e a prática.

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O Capítulo 3 resume, de forma drástica, a crítica aos hospitais psiquiátricos,

concluindo que “[...] as condições de vida em todos os hospitais psiquiátricos do mundo são

deficientes, resultando em violações dos direitos humanos e em cronicidade” (RELATÓRIO

SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 80). Este é um dos pontos da argumentação para

justificar a atenção à Saúde Mental na comunidade. Interessante observar que a OMS define

que a atenção comunitária à Saúde Mental tem como função, dentre outras, “[...] garantir que

certas funções protetoras dos asilos sejam proporcionadas integralmente na comunidade e que

os aspectos negativos das instituições não sejam perpetuados” (RELATÓRIO SOBRE A

SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 80). Esta orientação faz lembrar o que disse Domingos Sávio

numa palestra (SÁVIO, 2003), em 2003, já citada no capítulo III: que o hospital psiquiátrico

fornece casa e comida, elementos que as propostas de transformação da assistência à Saúde

Mental não pode negligenciar. Está apontada a tarefa, em toda a sua grandiosidade e

importância.

Como detalhes da atenção à Saúde Mental na comunidade, o Relatório define:

-serviços que estão próximos ao lar, incluindo o hospital geral para admissão de casos agudos e dependências residenciais de longo prazo na comunidade; -intervenções relacionadas tanto com as incapacidades como com os sintomas; -tratamento e atenção específicos para o diagnóstico e as necessidades de cada pessoa. -uma ampla gama de serviços que atendam às necessidades das pessoas com transtornos mentais e comportamentais; -serviços que são coordenados entre profissionais de saúde mental e organismos da comunidade; -serviços mais ambulatoriais do que fixos, inclusive os que podem oferecer tratamento em casa; -parceria com os provedores de atenção e atendimento das suas necessidades; -legislação em apoio dos aspectos da atenção mencionados. (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 16).

Com o que está estabelecido acima, o Relatório chega ao tema da

desinstitucionalização e lança importantes advertências. Uma frase, deste ponto da

argumentação, deveria ficar à vista em todos os nossos estabelecimentos de Saúde Mental:

“Fechar hospitais mentais sem alternativas comunitárias é tão perigoso como criar alternativas

comunitárias sem fechar hospitais psiquiátricos” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO

MUNDO, 2001, p. 80). Fechar hospitais psiquiátricos sem alternativas comunitárias é a

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desassistência, e criar alternativas comunitárias sem fechar hospitais psiquiátricos é manter o

caminho da exclusão aberto, numa mensagem de que ela ainda é um caminho viável e aceito.

Como componentes do processo de desinstitucionalização, o Relatório indica:

-Prevenção de admissões errôneas em hospitais psiquiátricos mediante a provisão de serviços comunitários; -Alta para a comunidade de pacientes internados há longo tempo em instituições e que tenham recebido preparação adequada; -Estabelecimento e manutenção de sistemas de apoio na comunidade para pacientes não institucionalizados. (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 81).

As linhas a seguir se encaixam perfeitamente ao caso do Brasil e devem servir de base

para preocupação e organização de profissionais e usuários do sistema de saúde. Nelas, o

Relatório aponta que

A desinstitucionalização não tem constituído um êxito sem reservas, e a atenção comunitária ainda enfrenta muitos problemas operacionais. Entre as razões da falta de melhores resultados estão o fato de que os governos não consignaram à atenção na comunidade os recursos poupados com o fechamento de hospitais (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 81).

Lembremos os 30 mil leitos de Hospitais Psiquiátricos fechados no Brasil de 1990 até

hoje, com o dinheiro economizado tendo tomado outras vias que não a da Saúde Mental e,

também, no momento atual, a dificuldade que é extrair dos cofres públicos o que está

estabelecido em legislação como direitos dos usuários do sistema.

Os outros fatores para a demora de resultados da desinstitucionalização que o

Relatório aponta, são a falta de preparo dos funcionários para a mudança de seus papéis e a

manutenção do estigma que recai sobre as pessoas que passam por transtornos mentais.

(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p 81). Ambos devem ser alvo do

trabalho diário dos Programas Municipais de Saúde Mental.

Comentando o lento desenvolvimento das ações de Saúde Mental na atenção primária,

o Relatório adverte:

Mesmo em paises onde foi demonstrado em programas piloto o valor da integração da atenção em saúde mental na atenção primária (por exemplo, na África do Sul, Brasil, China, Colômbia, Filipinas, Índia, Paquistão, República Islâmica do Irã, Senegal e Sudão), esse enfoque não foi ampliado para cobrir todo o país (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 84).

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Em algumas linhas, antes do trecho citado acima, está uma das razões para a citada

falta de velocidade na expansão das ações de Saúde Mental nas bases da sociedade:

O enfoque baseado na utilização de todos os recursos disponíveis na comunidade tem o atrativo de emancipar o indivíduo, a família e a comunidade para incluir a saúde mental na agenda do público, e não na dos profissionais (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 84).

Dentro desse importante Capítulo 3, o Relatório apresenta os “Princípios da Atenção”,

onde discorre a respeito do que a pesquisa em todo o mundo qualificou como útil e exeqüível.

Uma definição logo de início chama a atenção, mostrando a importância das diretrizes da

OMS em relação ao assunto: “A idéia de atenção em saúde mental baseada na comunidade

constitui mais um enfoque global do que uma solução organizacional” (RELATÓRIO

SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 85). Podemos compreender que não se trata

apenas de uma forma a mais de administrar Programas de Saúde Mental, mas de uma

mudança de direção definida.

O Relatório, chamando a atenção para a organização e utilização dos “recursos

ocultos” que existem na comunidade, aponta também para “princípios orientadores básicos”

para a atenção em Saúde Mental: “[...] diagnóstico, intervenção precoce, participação do

usuário, parceria com a família, envolvimento da comunidade local e integração na atenção

primária de saúde” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 86).

O Capítulo 4 do Relatório é dedicado a analisar a situação mundial dos investimentos

em Saúde Mental e as possibilidades de ação, mesmo em situações de dificuldade financeira.

Grande parte do capítulo é voltada para as mudanças no tratamento dos chamados

“transtornos mentais graves”. Como orientações, a OMS aponta: “A primeira é retirar a

atenção dos hospitais psiquiátricos; a segunda, desenvolver serviços comunitários; e a

terceira, integrar os serviços de saúde mental na atenção de saúde geral” (RELATÓRIO

SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 121).

O Relatório indica quais os itens que devem ser desenvolvidos, para que a

transferência das pessoas internadas para as comunidades seja realizada com sucesso:

Em condições ideais, os serviços deveriam abranger nutrição, provisão para admissão de casos agudos em hospitais gerais, atenção ambulatorial, centros comunitários, serviços periféricos, lares residenciais, substitutivos para as folgas de familiares e cuidadores, apoio ocupacional, vocacional e

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de reabilitação, e necessidades básicas tais como abrigo e vestuário (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 123).

A lista de itens acima citada pode ser comparada com o que estamos realizando no

Brasil. Todos os pontos estão sendo praticados, em diversos lugares, com bons resultados.

Mas é interessante vê-los reunidos, e com a recomendação da OMS, para que a avaliação da

sua importância seja mais bem considerada. O que estamos tocando são as condições para que

a desinstitucionalização funcione. Para que não haja risco para pacientes, famílias,

comunidade e para as propostas da Reforma Psiquiátrica.

A OMS faz, então, três recomendações para o financiamento das ações de Saúde

Mental na sua nova fase e paradigma: “A primeira é liberar recursos para o desenvolvimento

de serviços comunitários mediante o fechamento parcial de hospitais” (RELATÓRIO SOBRE

A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 123).

Já foi mencionada, no capítulo II desta monografia, a Deliberação 54 da Comissão

Integestores Bipartite da Secretaria de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, que

transfere recursos das Internações Psiquiátricas que estão deixando de serem feitas, para os

Serviços Residenciais Terapêuticos, CAPS e Oficinas Terapêuticas. Instrumento útil, mas que

não contempla a Atenção Básica.

“A segunda é usar financiamento transitório para investimento inicial em novos

serviços, a fim de facilitar a passagem dos hospitais para a comunidade” (RELATÓRIO

SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 123). É grave o problema do financiamento inicial

de dispositivos de Saúde Mental entre nós. Os serviços, como CAPS, Residências

Terapêuticas, Emergências Psiquiátricas, que requerem instalações físicas e gastos iniciais,

devem ser bancados inicialmente pelos municípios, o que muitas vezes atrasa o

desenvolvimento dos Programas Municipais de Saúde Mental. A remuneração dos

procedimentos e serviços só começa a ser recebida após o pleno funcionamento e

cadastramento. O incentivo financeiro para municípios que tenham a Saúde Mental na

Atenção Básica é uma medida adequada, aprovada na “Oficina” de 2001, em Brasília, a qual

ainda não se efetivou.

Concluindo as recomendações, o Relatório traz a terceira: “[...] manter financiamento

paralelo para continuar a cobertura financeira de certo nível de atenção institucional depois de

estabelecidos os serviços baseados na comunidade” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO

MUNDO, 2001, p. 123). Este item revela claramente a preocupação com a possível

desassistência que poderá ocorrer em determinados momentos, mesmo após os avanços

conseguidos.

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O sempre controvertido tema da “Promoção da Saúde Mental” é enfrentado no

Relatório com sugestões simples e que já se mostraram eficazes em outros paises. Mas,

mesmo assim, existe a advertência: “O ponto de partida mais apropriado para a promoção da

saúde mental dependerá tanto das necessidades como do contexto social e cultural”

(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 133). Dito isso, há três

recomendações. A primeira se intitula “Intervenções orientadas para os fatores que

determinam ou mantém a saúde debilitada” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO,

2001, p. 134). Sob esse título estão as ações capazes de fortalecer e qualificar as relações que

“[...] podem melhorar substancialmente o desenvolvimento emocional, social, cognitivo e

físico das crianças” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 134). A

segunda recomendação trata de “Intervenções orientadas para grupos de população”

(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 134), onde o exemplo é a faixa

populacional acima de 60 anos. No item “Intervenções orientadas para determinados

contextos” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 134), é ressaltado o

papel das Escolas para o desenvolvimento da saúde mental individual e coletiva, com um

chamamento para a ação nessa área.

O Relatório da OMS chama a atenção, em diferentes passagens, para o problema do

estigma e da discriminação que recaem sobre as pessoas que precisam de tratamento para

problemas mentais. A orientação é ocupar os meios de comunicação de massa e agir de todas

as maneiras possíveis, nas comunidades, para tentar quebrar o preconceito.

A Internet é citada como um recurso de vasta utilidade, podendo ser utilizada como

[...] meio de informar pacientes, estudantes, profissionais de saúde, grupos de usuários, organizações não-governamentais e a população em geral sobre saúde mental; para promover encontros de ajuda mútua e grupos de discussão; e para proporcionar atenção clínica (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 135).

O Relatório da OMS chega ao fim com um interessante estudo a respeito de “Como

utilizar bem os recursos disponíveis” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001,

p. 150). São traçados três cenários que descrevem as situações que ocorrem nos países:

recursos escassos, nível médio de recursos e alto nível de recursos. (Cf. RELATÓRIO

SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001). O lembrete do texto, cujo conteúdo nos transporta

para o que podemos observar no Brasil, no Estado do Rio de Janeiro e até mesmo dentro dos

municípios, é que os três níveis podem conviver numa mesma conjuntura. Deste modo, o

panorama de um país pobre, onde não há nem profissionais de saúde em número mínimo,

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nem remédios sempre disponíveis, acontece num país que tem, em outras áreas, níveis médios

ou até altos de recursos. Para cada cenário há uma lista de recomendações, cuja consulta pode

trazer avanços.

Para a Atenção Primária, as recomendações para o cenário de recursos escassos são:

Reconhecer a saúde mental como componente da atenção primária de saúde [...] Incluir o reconhecimento e tratamento de transtornos mentais comuns nos currículos de formação de todo o pessoal de saúde e [...] Proporcionar treinamento de atualização a médicos da atenção primária (pelo menos 50% de cobertura em 5 anos) (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 153).

Quando passamos para o cenário de nível médio de recursos, para a Atenção Primária

é recomendado “Elaborar material de treinamento com relevância local e [...] Proporcionar

treinamento de atualização a médicos da atenção primária (100% de cobertura em 5 anos)”

(RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001, p. 153). No nível alto de recursos,

temos: “Melhorar a eficiência no manejo de transtornos na atenção primária de saúde e [...]

Melhorar os padrões de encaminhamento” (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO,

2001, p. 153).

No final do ano de 2001, foi realizado, em Macaé, um concurso público que

possibilitou a entrada de vários profissionais no Programa de Saúde Mental. Não existiam,

naquela altura, no município, nem CAPS nem um trabalho de Saúde Mental efetivamente na

comunidade. O planejamento do Programa de Saúde Mental aguardava o Concurso Público

para levar à prática o que foi implantado, então, em abril de 2002, com apoio da Secretaria

Municipal de Saúde: além da entrada de profissionais de Saúde Mental nos ambulatórios e

emergência psiquiátrica, duas equipes foram criadas, uma para formar o embrião do futuro

CAPS, organizando, num dos ambulatórios, o atendimento sob a forma de Oficinas

Terapêuticas e, outra, para concretizar a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica em

novos termos. Note-se que, em 2000, na IV Conferência Municipal de Saúde, já havíamos

aprovado a mudança do Modelo Assistencial em Saúde Mental. Na ocasião, o trabalho com

os Programas de Atenção Básica foi apontado como um caminho a ser seguido.

Foi formada, portanto, uma Equipe para atuar na Atenção Básica. Contou com uma

Psicóloga, uma Terapeuta Ocupacional, uma Assistente Social e uma Psiquiatra. Esta última,

refletindo a falta de profissionais da psiquiatria, dividia seu tempo entre as Oficinas

Terapêuticas e a Atenção Básica. Além desses profissionais, uma psiquiatra, Naly Soares de

Page 160: Saude mental na atencao basica

160

Almeida, que tinha formação sistêmica e visão comunitária, incorporou-se ao trabalho na

condição de Supervisora, sendo a minha função, a de capacitar todos esses profissionais para

o início do trabalho e, depois, a de Consultor.

A Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica freqüentou o mesmo curso que foi

oferecido aos novos profissionais, que se chamou “A Mudança do Modelo Assistencial em

Saúde Mental”, que teve como temas a história da exclusão da loucura, a Reforma

Psiquiátrica, os textos prévios à III Conferência Nacional de Saúde Mental, o Relatório da

OMS de 2001, sobre Saúde Mental, noções de rede e território. Depois desse curso, tive

reuniões com a Equipe de Saúde Mental, que estava indo para a Atenção Básica, de estudo e

discussão a respeito do que estava planejado para ter início. Foram estudados os textos

recentes a respeito de Saúde Mental na Atenção Básica. Esta Equipe de Saúde Mental recebeu

capacitação teórica, fornecida pelo nível central do PSF, a respeito do trabalho na Atenção

Básica e continuou essa capacitação em visitas ao Módulo que foi escolhido para o início do

trabalho. A escolha do Módulo foi feita pela Coordenação do PSF.

A forma de entrar na comunidade, que defendi e que a Equipe aceitou, bem como as

Coordenações dos outros serviços de Saúde Mental, o Secretário de Saúde e a Coordenação

do PSF, foi lotar a Equipe em apenas um Módulo de PSF. Essa entrada em apenas um

Módulo teve os propósitos de continuar a capacitação inicial da Equipe de Saúde Mental

(reconhecendo que nenhum de seus membros tinha experiência prática na área), capacitar a

Equipe na prática do trabalho do PSF, estabelecer discussões iniciais a respeito do que iria

surgir de demanda, examiná-la e decidir o inicio das ações. Em resumo, um início lento, para

que cada passo pudesse ser examinado. Destaquei, desde o início, a minha orientação, para

que a expansão do trabalho para outros Módulos de PSF fosse feita de modo cuidadoso e

discutido, para que pudéssemos determinar qual seria o limite para uma Equipe de Saúde

Mental trabalhar na Atenção Básica, avaliando, na prática, o que foi alvo de debates na

Oficina de Brasília em 2001.

Um ponto de importância fundamental, dentro de toda a discussão, que se deu no

momento que está sendo descrito, é o que define que nenhuma ação seria praticada, na

comunidade, apenas por membros da Equipe de Saúde Mental. Sempre deveria estar pelo

menos um membro do PSF, de preferência com a presença do Agente Comunitário.

Acreditamos que essa é a pedra de toque de todo trabalho na Atenção Básica. É essa prática

que vai realizar a capacitação permanente e mútua, que vai ajudar a introduzir a Equipe de

Saúde Mental na comunidade, que vai responder, com o tempo e a insistência, à demanda da

Equipe de PSF e da comunidade por atuação de especialistas, que a Equipe de Saúde Mental

Page 161: Saude mental na atencao basica

161

recusará, mas de modo a tornar a situação produtiva, visto que a cada recusa cria-se campo de

capacitação e ação conjunta.

É com a atuação conjunta que a abordagem do sofrimento individual poderá ser

potencializado, de modo a provocar movimentos de mudança nas famílias e na comunidade.

Seguimos, então, as conclusões da “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano Nacional de

Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, de Brasília, 2001. (Cf.

MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001 b).

Foram realizadas reuniões com a Equipe completa do Módulo de PSF, para

apresentações pessoais, discussão a respeito das propostas, estudo dos textos que foram

trabalhados pela Equipe de Saúde Mental na sua capacitação inicial e princípio dos debates a

respeito das ações a serem praticadas.

As primeiras ações com a participação dos profissionais de Saúde Mental foram: “[...]

grupos de sala de espera, Visitas Domiciliares, encontro com os ACS e participação nos

grupos já existentes” (PINTO et al, 2003, p. 5). Também foi realizado um grupo para acolher

pessoas com “sofrimento mental grave” e seus familiares, que foi o início das Oficinas

Terapêuticas que estão em atividade.

Em agosto de 2003 foi realizada uma avaliação, pela Equipe de Saúde Mental na

Atenção Básica, a pedido do nível central do PSF municipal, para efeitos de justificativa de

financiamento junto ao Ministério da Saúde (o Projeto de Apoio à Expansão do Programa de

Saúde da Família (PROESF)). Deste documento tirei a última citação, acima, e dele também

utilizo as seguintes.

A Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica reconheceu que a capacitação que

recebeu provocou mudanças, “[...] com plena integração dos profissionais nas ações na

comunidade e na formulação de propostas” (PINTO et al, 2003, p. 5).

Em relação à capacitação das Equipes de PSF, foi estabelecida uma rotina de reunioes

regulares com a Equipe completa do Módulo, para discussão dos casos e das situações

familiares e comunitárias, com as possíveis intervenções conjuntas. Ocorrem também as

reuniões de pequenas equipes, que se formam para intervir em situações que aparecem e que

não podem esperar por reuniões regulares. São praticadas as interconsultas, com o médico do

módulo e outros profissionais da base trocando idéias com a Equipe de Saúde Mental a

respeito de uma situação clínica, examinando a maior parte das informações possíveis.

A capacitação dos ACS está descrita da seguinte forma:

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162

Os ACS da comunidade foram capacitados logo de inicio, pela Equipe de Saúde Mental, em reuniões semanais das duas Equipes (PSF E SM) e capacitação em serviço, usando as Visitas Domiciliares, Oficinas Terapêuticas, Grupos de Diabéticos e Hipertensos, Terapia Comunitária e a discussão de casos como base (PINTO et al, 2003, p. 5).

A avaliação dos resultados dessa capacitação foi a seguinte:

O resultado da Capacitação dos ACS foi o aparecimento de um novo olhar a respeito da saúde mental, com desmistificação da loucura e do sofrimento mental. Houve integração total ao trabalho, com participação em todas as atividades da saúde mental e atenção em relação aos problemas na comunidade (PINTO et al, 2003, p. 5).

Em relação à capacitação geral, a avaliação de 2003 relata que

Durante o desenvolvimento do trabalho, foi decidido e passou a ser realizada uma reunião mensal com todos os profissionais de nível superior do PSF do Município. Foi criado, então, um espaço para a discussão dos problemas ligados ao trabalho em geral e para a capacitação técnica. Com isso, a entrada da Saúde Mental no PSF está se dando em dois níveis: um, com as ações nos Módulos e outro, com a capacitação técnica dos profissionais de nível superior de todos os Módulos (PINTO et al, 2003, p. 6).

Havia dificuldade em relação à participação, nas reuniões de capacitação, dos

profissionais de nível superior do módulo onde as ações foram inicialmente implantadas. As

justificativas eram sempre ligadas à pressão do trabalho diário. Mas, após alguns meses, o

assunto foi trabalhado e a presença desses profissionais tornou-se freqüente, com o resultado

de que

[...] mudou o olhar dos profissionais a respeito dos problemas da saúde mental, com postura ativa em relação a todas as atividades da saúde mental. Houve mudança na relação profissional de saúde/paciente, com maior resolutividade na abordagem à hipertensão, por exemplo. Houve adesão dos profissionais de nível superior ao trabalho com grupos (PINTO et al, 2003, p. 6).

Com o esquema de capacitação organizado, a Saúde Mental na Atenção Básica

tornou-se campo de estágio.

Eram as seguintes as ações de Saúde Mental realizadas em agosto de 2003, quando da

avaliação que está sendo citada: Oficina terapêutica para adultos, Terapia Comunitária,

Oficina de Geração de Renda, Grupos de Hipertensos e Diabéticos, Visitas Domiciliares,

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163

Reuniões das Equipes com a comunidade, Eventos de Saúde na praça, Grupo de

Adolescentes. Todas essas ações são praticadas sempre em conjunto com a Equipe do PSF.

Da forma como está descrito acima, o trabalho do Programa de Saúde Mental junto ao

PSF está se dando, em Macaé, em dois planos: uma Equipe de Saúde Mental atuando junto a

Equipes de Módulos de PSF, na base, da forma descrita acima, e capacitação para os

profissionais de nível superior, mensal, para todas as Equipes de PSF (no momento são 24

Equipes de PSF). O programa desta capacitação é elaborado num acordo resultante das

necessidades das Equipes de PSF e das sugestões dos responsáveis pela capacitação.

Ao capacitar todas as Equipes de PSF, estamos cumprindo parte das diretrizes da

Oficina de Brasília 2001 e da OMS, mas não estamos diretamente na comunidade. São

diversos os ganhos com essa capacitação: esclarecimento a respeito do funcionamento na rede

de atendimento em Saúde Mental e do Programa de Saúde Mental, melhor estruturação de

encaminhamentos, estudo de assuntos específicos de Saúde Mental e Psiquiatria, criação de

espaço para os profissionais do PSF, para discussão de aspectos emocionais que surgem no

trabalho (também um espaço para discutir os conflitos naturais de equipe e problemas de

organização enquanto profissionais), melhor conhecimento dos capacitadores a respeito da

realidade do PSF e da demanda de assistência e promoção em Saúde Mental. E, muito

importante, preparação para a chegada das Equipes de Saúde Mental nos Módulos, de acordo

com o planejamento dos dois Programas (Saúde Mental e Saúde da Família), que é de colocar

a Saúde Mental em todos os Módulos.

Notamos, a exemplo de outras experiências de entrada da Saúde Mental no PSF, que

nos tornamos facilitadores de discussões que antes não se davam, ou estavam bloqueadas,

entre os membros das Equipes dos Módulos.

A prática de reuniões de equipe e decisões em conjunto, difundidas amplamente na

Saúde Mental, não é corrente na Saúde em geral, o que provoca todos os efeitos de uma

instituição/organização que não se discute e onde não há espaço para ventilar e trabalhar os

conflitos. Com a percepção de que a Equipe de Saúde Mental funciona de modo que os

assuntos são discutidos constantemente, com Reuniões de Equipe semanais, e também devido

à própria demanda, em relação aos psi, para “resolver problemas”, começam a aparecer os

pedidos para ajuda em reuniões das Equipes de PSF, ou elas são sugeridas pela Equipe de

Saúde Mental como instrumento de trabalho, com a conseqüência de fazer aparecer os

problemas latentes.

Os profissionais de Saúde Mental são também solicitados a suprir a falta de espaço,

onde possam ser expostos as angústias e o sofrimento por que passam as Equipes de PSF

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164

diante da enorme carga de trabalho, das cobranças de produção e relatórios, da violência nas

comunidades, miséria, dificuldades do Sistema de Saúde, remuneração não condizente com as

responsabilidades. Acreditamos que podemos cumprir a tarefa de abrir espaços coletivos, para

que esses assuntos sejam abordados e encaminhados de modo produtivo.

Logo após o início do trabalho da Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica, o

número de internações psiquiátricas e de idas ao Pronto Socorro de pessoas com diagnósticos

de transtornos mentais graves diminuiu sensivelmente. Trata-se de uma decorrência da

organização inicial da assistência a pacientes que estavam, de um lado, com freqüência

irregular aos Ambulatórios de Saúde Mental e, de outro, sem serem vistos adequadamente

pelo Módulo do PSF. À época, eram vinte e três as pessoas com diagnósticos de transtornos

mentais graves em acompanhamento na comunidade. A situação de uma pessoa com quatorze

anos de internação psiquiátrica, quase contínua, começou a ser trabalhada com a chegada da

Equipe de Saúde Mental.

Abre-se, nesse ponto, um importante campo para pesquisa a respeito da efetividade

das ações de Saúde Mental na Atenção Básica. Devemos examinar os indicadores de Saúde

Mental numa comunidade, mesmo que sejam ainda precários, antes da entrada das ações de

Saúde Mental e compará-los com os obtidos, por exemplo, seis meses, um ano e dois anos

depois.

Após um ano de trabalho no primeiro Módulo de PSF, a Equipe decidiu entrar em

mais dois Módulos com as seguintes ações: “Reuniões de Equipe, Capacitação de toda a

Equipe dos Postos, Grupo de Sala de Espera, Visita Domiciliar, Terapia Comunitária, Oficina

Terapêutica e Interconsulta” (PINTO et al, 2003, p. 8).

O Município de Macaé tem uma região serrana, distante da sede. Para uma dessas

localidades, o Sana, foi pensado um tipo de entrada da Saúde Mental, com poucos recursos

humanos, e que pode servir de método de trabalho para os muitos Municípios do país que não

possuem mão de obra de Saúde Mental disponível com facilidade. Diz a avaliação que está

sendo citada:

[...] foi iniciado um trabalho em um Módulo do PSF (localidade do Sana), com Terapia Comunitária, Visitas Domiciliares e da capacitação de Equipe, a cargo da Supervisora. Esta é uma tentativa de expansão do trabalho utilizando poucos recursos humanos. Os resultados são: grande freqüência na Terapia Comunitária, integração entre a equipe do Modulo e a Supervisora, resolução de alguns casos de transtorno mental grave e reunioes das Equipes com a comunidade (PINTO et al, 2003, p. 8).

Page 165: Saude mental na atencao basica

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Como dificuldades encontradas para o trabalho que vem sendo realizado, a avaliação

de 2003 detectou: a falta de transporte, a falta de espaço para armazenamento de materiais de

trabalho, a dificuldade de encontrar psiquiatras para o trabalho e a violência nas comunidades.

(Cf. PINTO et al, 2003).

Uma das ações de Saúde Mental que aparecem acima, na descrição da situação em

Macaé, é a Terapia Comunitária. Trata-se de uma prática grupal-comunitária que rompe com

os conceitos de terapia, enquanto tratamento individual, para tentar alcançar o coletivo e a

promoção ou a criação de redes de solidariedade e de ação social. A base teórica da Terapia

Comunitária, segundo seu criador, Adalberto Barreto, está articulada em torno da Teoria

Geral dos Sistemas, a Teoria da Comunicação, a Antropologia Cultural e a Resiliência. (Cf.

BARRETO, 2000). O último termo citado, segundo o Dicionário Aurélio Eletrônico é a “[...]

propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida, quando

cessa a tensão causadora de uma deformação elástica” ou “[...] resistência ao choque”. Para

uma explicação do termo, Adalberto Barreto apresenta uma definição que também pode ser

uma das intenções da Terapia Comunitária:

Não buscamos identificar as fraquezas e as carências, não tentamos diagnosticar os problemas, nem os meios de compensa-los, pelo contrário, a meta fundamental da terapia comunitária é identificar e suscitar as forças e as capacidades dos indivíduos, das famílias e das comunidades, para que, através desses recursos, possam encontrar as suas próprias soluções e superar as dificuldades impostas pelo meio e pela sociedade (BARRETO, 2003, p. 12).

Segundo Adalberto Barreto, o Terapeuta Comunitário deve ser escolhido pela

comunidade, estar engajado em trabalhos comunitários, dentre outras características e, fato

instigante, “Não é exigida nenhuma capacitação anterior” (Cf. BARRETO, 2003, p. 17).

A Terapia Comunitária foi introduzida em Macaé pela Dra Naly Soares de Almeida e

está sendo praticada nas comunidades e também em reuniões com os profissionais do PSF.

Um dos desdobramentos da prática da Terapia Comunitária foi o surgimento de uma

reunião, agora constante, das Equipes com a Comunidade. Diz a avaliação de 2003:

Como resultado do grupo da Terapia Comunitaria surgiu a necessidade de incluir a comunidade nas iniciativas da promocao da saude e da assistencia. Iniciaram-se reunioes da comunidade com as duas Equipes (Saude Mental e PSF). Na primeira reunião, ficou decidido que seria trabalhado o assunto “Alcoolismo”, por ser um problema altamente prevalente. Estão sendo realizadas reunioes em parceria com o “AA” e Oficinas com o tema “A Bebida e a Família” (PINTO et al, 2003, p. 6).

Page 166: Saude mental na atencao basica

166

Em 15 e 16 de abril de 2002, realizou-se em Itaipava, RJ, a “I Oficina de Capacitação

de Supervisores em Saúde Mental para o Programa de Saúde da Família”, uma iniciativa do

Pólo de Capacitação em Saúde da Família do Estado do Rio de Janeiro, com a coordenação

de Sandra Fortes e a colaboração da Assessoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado de

Saúde do Estado do Rio de Janeiro (SES-RJ). O objetivo do encontro foi reunir pessoas que já

tinham alguma prática de Saúde Mental na Atenção Básica com Coordenadores Municipais

de Saúde Mental, profissionais ligados à Atenção Básica, profissionais e professores que

pensam a rede de assistência e um convidado estrangeiro, com a intenção de estimular as

ações de Saúde Mental na Atenção Básica. Foi, também, uma oportunidade para aproximar as

duas importantes instâncias para o desenvolvimento da Saúde Mental no PSF: o Pólo de

Capacitação do PSF e a Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ.

Foram, na ocasião, reforçadas todas as diretrizes dos últimos textos e documentos

nacionais e de orientação da OMS, resumidos acima. A Oficina serviu para a troca de idéias e

de experiências e como estímulo para que os Coordenadores Municipais de Saúde Mental

tentassem se aproximar da Atenção Básica.

Na ocasião, a Coordenadora Estadual de Saúde Mental, Paula Cerqueira, na sua

palestra, reafirmou que os conceitos de território e rede são capitais para o trabalho da Saúde

Mental na Atenção Básica.

Para uma aproximação ao conceito de Rede, temos uma interessante incursão de Ana

Pitta, que faz uma correlação entre Rede e teia, dando como suas características a

metamorfose, a heterogeneidade, a fractalidade, a vizinhança e a multicentralidade. (Cf.

PITTA, 2001). A metamorfose faz da Rede um instrumento em constante mutação,

adaptando-se às tarefas e onde a “[...] estabilidade temporária será sempre fruto de algum

pacto ou negociação coletiva” (PITTA, 2001, p. 20). A heterogeneidade zela pelas conexões

múltiplas, plurais. A fractalidade responde pela característica de que

Cada conexão da teia/rede se vista de perto reproduz uma nova rede em si, e, examinando ainda seus atores constitutivos, com suas raízes e influências observa-se que um tecido rizomático os organiza (PITTA, 2001, p. 20).

Em “vizinhanças”, está dito que não podemos trabalhar com os conceitos rígidos de

hierarquia de serviços e sim com o acompanhamento dos acontecimentos ditados por “[...]

percursos ou atalhos regidos pela topologia e conhecimento ora de usuários, ora de

profissionais, ora de vizinhos” (PITTA, 2001, p. 20). A multicentralidade indica que os

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167

centros organizadores das ações são provisórios, mobilizados “[...] na dependência da

importância que cada qual assuma na resolução de um problema” (PITTA, 2001, p. 20).

A Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ me convidou para apresentar, na Oficina de

Itaipava, numa mesa redonda, o tema “Transtornos mentais na atenção básica”, o que motivou

a redação do trabalho “A Abordagem aos Transtornos Mentais na Atenção Básica” (Cf.

PINTO, 2002). Nele, como uma espécie de declaração de princípios, digo que

As ações de saúde mental na atenção básica podem representar uma mudança qualitativa no modo como tratamos os atualmente chamados transtornos mentais graves e como a comunidade vê o que está enclausurado no conceito de doença mental. Podemos, efetivamente, trocar os conhecimentos que temos, questionando-os, com os conhecimentos próprios das comunidades a respeito do sofrimento mental, suas determinações e soluções. Devemos estar atentos, por outro lado, para o imenso mecanismo de controle que estamos levando aos capilares da sociedade. Se, em troca desse controle, não desenvolvermos ações que estimulem a cidadania e a participação, estaremos apenas cumprindo o triste destino apontado por Deleuze, de espraiar os tentáculos do Hospício por toda parte. (PINTO, 2002, p. 2).

A advertência que encerra a citação acima refere-se ao que Gilles Deleuze diz em seu

artigo “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle”, de 1990, em que examina a passagem

da sociedade disciplinar, onde o domínio era exercido por instituições fechadas (prisões,

hospícios), para a sociedade de controle, atual, onde o domínio é desempenhado pela mídia,

principalmente. Deleuze diz que “O marketing é agora o instrumento de controle social”

(DELEUZE, 1992, p. 224), e que

[...] o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão do gueto e favelas (DELEUZE, 1992, p. 224).

Mas, para Deleuze, não há motivos para recuar. Diz ele:

[...] na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas (DELEUZE, 1992, p. 224).

No trabalho que apresentei em Itaipava, faço uma avaliação das experiências que tive

nos municípios de Quissamã e Carapebus, para chegar ao que então estava sendo iniciado em

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168

Macaé. A ênfase foi na abordagem aos transtornos mentais graves, mas também na incidência

das ações na mudança do modelo assistencial. Destaco dois aspectos na avaliação das

experiências de Carapebus e de Quissamã. Em primeiro lugar, teve grande avanço a

abordagem aos transtornos mentais graves depois da capacitação constante e em serviço dos

ACS e das Equipes de PSF. O número de internações psiquiátricas caiu a quase zero, os

pacientes passaram a ter outra inserção na comunidade, saindo do isolamento, o tema da

loucura e a forma de a sociedade vê-la passou a ser discutido, as Equipes de PSF passaram a

ajudar nos tratamentos e as situações de crises, que necessitavam de idas ao Pronto Socorro,

eram acompanhadas pelos ACS, dando um novo aspecto à presença dos pacientes no Hospital

Geral. (Cf. PINTO, 2002).

Mas, em decorrência de avaliação posterior à Oficina de Brasília de 2001, da

publicação da OMS de 2001 (RELATÓRIO SOBRE A SAÚDE NO MUNDO, 2001) e das

compreensões e discussões que se deram nesses últimos dois anos, chamei a atenção para as

limitações que tem o tipo de trabalho de supervisão com manutenção da referência para o

ambulatório. Não estaríamos, dessa forma, no caminho de uma efetiva mudança do modelo

assistencial, mas sim melhorando o modelo existente, de ambulatório de especialidades, no

caso, apoiado por um trabalho na Atenção Básica. (Cf. PINTO, 2002).

Tentei, no trabalho, discutir algo a respeito das dificuldades para a entrada mais rápida

da Saúde Mental na Atenção Básica e sugeri que

O passo para o trabalho direto nas comunidades ainda não havia sido dado, em parte devido à pressão da demanda ambulatorial tradicional, em parte fruto da manutenção interna do papel profissional. Esses dois fatores, pressão da demanda ambulatorial tradicional e manutenção de papéis profissionais, devem ser objeto de aprofundada elaboração, agora, quando estamos em vias de avançar na introdução das ações de saúde mental na atenção básica. (PINTO, 2002, p. 2).

Por “demanda ambulatorial tradicional” compreenda-se ambulatórios cheios, com

demanda crescente e que não permitem ao profissional mudar de prática. Mas os

questionamentos são necessários: será que o problema não está no próprio profissional, que

não quer ver questionado seu papel profissional e sua formação? E quando achamos que não

há possibilidades de entrar mais determinadamente na Atenção Básica, estamos nos referindo

a limitações externas ou à falta de clareza e de vontade política nossa mesmo?

Para uma efetiva entrada da Saúde Mental na Atenção Básica, o trabalho apresentado

resume as recomendações da Oficina de Brasília 2001, anunciando o que estava sendo

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169

implantado em Macaé: uma equipe de Saúde Mental exclusiva para a Atenção Básica. (Cf.

PINTO, 2002).

Como instrumentos para uma atenção aos transtornos mentais graves na Atenção

Básica, indiquei, naquele momento:

a- Agentes Comunitários de Saúde como elementos de ligação entre as equipes de Saúde Mental, do PSF, as famílias e a comunidade. Atuação como Acompanhantes Terapêuticos. b- Oficinas Terapêuticas Comunitárias. c- Intervenções familiares. d- Ações de promoção da saúde e de apoio social. e- Ações contra a discriminação. f- Articulação com os CAPS e os Serviços Residenciais Terapêuticos. g- Suporte constante entre Equipe de Saúde Mental e Equipe do PSF. h- Contato estreito com o Pronto Socorro, para o atendimento das situações de crise, e com a instituição de internação (hospital psiquiátrico ou hospital geral). i- Atendimento nas crises. (PINTO, 2002, p. 7).

No final de 2002, sob a coordenação de Sandra Fortes, formou-se o Grupo de

Trabalho de Saúde Mental do Pólo de Capacitação/Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro,

com a finalidade inicial de dar aulas em cursos de Pós Graduação em Saúde da Família e,

depois, de produzir uma proposta, para promover a entrada da Saúde Mental na Atenção

Básica nos municípios do Estado do Rio de Janeiro. O Grupo contou com a participação de

profissionais de nove municípios, que já tinham alguma forma de trabalho de Saúde Mental

na Atenção Básica, alguns membros do nível central do PSF do Estado e de dois membros da

Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ que se dedicavam ao tema: Leila Vianna e Carlos

Eduardo Honorato, o Cadu, além de Sandra Fortes e Luiz Fernando Chazam, professor da

UERJ.

Depois de algumas reuniões, em que o Grupo discutiu como os seus membros estavam

praticando e compreendendo a Saúde Mental na Atenção Básica, fomos dar as aulas, sempre

em dupla e utilizando a Pedagogia da Problematização, para a qual o Grupo teve capacitação.

(Cf. REFLEXÃO PEDAGÓGICA, 2000).

A experiência de dar as aulas foi interessante, na medida em que foi possível observar

as vivências e expectativas de um grande número de profissionais de PSF, de diversos

municípios do Estado do Rio de Janeiro. Confirmamos o quadro que já percebíamos em

outras observações: os profissionais dos PSF não possuem quase nenhuma informação a

respeito de Programas de Saúde Mental, as cadeiras específicas nos cursos de formação

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foram, na sua quase totalidade, dadas no modelo organicista, as ações de Saúde Mental são

revestidas de uma aura de mistério para esses profissionais e, talvez o detalhe mais

importante, do ponto de vista das intenções de introduzir a Saúde Mental na Atenção Básica,

existe o medo de que a entrada da Saúde Mental represente mais um fardo no cansativo dia a

dia do trabalho.

Notamos a sensação de esgotamento das Equipes, no seu trabalho diário, bem como a

má disposição em relação às capacitações que, em geral, representam mais trabalho sem

muita discussão, uma espécie de “cumpra-se”. Esses dados reforçam a nossa conduta em

relação às capacitações em Saúde Mental na Atenção Básica de que temos participado: não há

como negar que a entrada da Saúde Mental representa mais trabalho para as Equipes.

Se lembrarmos o que foi dito na Oficina de Brasília 2001, que “o PSF convive com o modelo

manicomial”, representando essa opinião o fato de que, formadas no modo organicista e

participantes do imaginário geral da sociedade, excludente, percebemos que as Equipes não

têm condições, por si mesmas, de reverter os dispositivos de exclusão.

Podemos compreender que não dá maior trabalho chamar uma ambulância e mandar

uma pessoa para o Pronto Socorro e daí para os hospícios. Perder essa pessoa de vista, não

saber onde está internada Repetir receitas de benzodiazepínicos dá muito menos trabalho, do

que questionar o porquê do uso, abrindo perspectivas que não se sabe em que resultarão.

Portanto, nas capacitações, a verdade precisa ser dita: é mais trabalho. O que podemos e

devemos fazer é abrir espaço para discutir a carga de trabalho e as angústias decorrentes e

apontar para a satisfação profissional que virá da nova prática. É possível que, depois da

capacitação adiantada, das ações de Saúde Mental implantadas, dos resultados aparecendo,

das novas formas de trabalho em Equipe surgindo, a carga de trabalho se amenize pelos

efeitos que a correção dos procedimentos produz, bem como com a função do cuidado já

tendo sido espalhada pelas Equipes e comunidade.

Depois do final da tarefa de dar as aulas, o Grupo de Trabalho produziu uma proposta

de capacitação de Coordenadores Municipais de PSF e de Saúde Mental, de modo a estimular

a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica. Foi sugerida a divisão do Estado em três

grupos de municípios, com um total de cerca de 30 municípios por grupo (o Estado do Rio de

Janeiro tem 92 municípios). Os municípios enviariam os Coordenadores de PSF e de Saúde

Mental, para um trabalho de capacitação, conduzido pelo Grupo de Trabalho, que se

desdobraria em outras reuniões, após alguns meses, para avaliação do que estivesse sendo

realizado nas práticas que surgissem. Até agora essa proposta não foi efetivada.

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171

Em agosto de 2003, no “Pré-congresso” do VII Congresso Brasileiro de Saúde

Coletiva – ABRASCO, em Brasília, realizou-se a “Oficina de Saúde Mental: Desafios da

Integração com a Rede Básica”, em Brasília. O evento foi organizado pelo Departamento de

Ações Programáticas Estratégicas e pela Coordenação Geral de Saúde Mental, do Ministério

da Saúde. O Objetivo da Oficina foi “Promover a discussão de questões que representam

hoje, desafios na integração das ações de saúde mental na atenção básica” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2003, p. 2), com ênfase na

[...] questão do modelo de funcionamento da integração da área de saúde mental com o PSF, desafios da formação de pessoal para o atendimento comunitário em saúde mental, bem como na relação saúde mental e violência urbana [...] (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 2).

Esperava-se do encontro, que contou com a participação de 63 pessoas de vários

Estados, a “Consolidação de consenso sobre diretrizes, modelo organizacional e clínico e

ações específicas sobre saúde mental na atenção básica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003,

p. 2).

A Oficina em questão representa mais um avanço na integração, promovido pelas

áreas federais de Saúde Mental e de Atenção Básica, cujos dirigentes apresentaram uma fala

inicial, situando as questões do momento. Foi solicitado a cada grupo de trabalho que se

dedicassem a três questões:

Qual o papel da atenção básica na atenção em saúde mental? Qual o desenho organizacional que possibilita a execução das ações/atividades de atenção à saúde mental na atenção básica de forma integrada? Qual as ações/atividades que devem ser desenvolvidas e as prioridades de atendimento, na assunção de responsabilidades entre a atenção básica, caps/rede ambulatorial? (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 2).

Os participantes da Oficina reafirmaram as diretrizes de todos os textos até aqui

citados em relação à atuação da Saúde Mental na Atenção Básica, no que diz respeito à

confluência de modos de ver a Assistência e a Promoção da Saúde, na sua ligação estreita

com o território. Desse modo, reforçam as conclusões da Oficina de Brasília de 2001 e as

orientações da OMS, também de 2001. Um exemplo é o seguinte trecho:

É fundamental a possibilidade de que a atenção básica exerça ação resolutiva no âmbito de suas ações que envolvem a saúde mental, pois a

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172

lógica da referência para o nível de maior complexidade não responde muitas vezes ao melhor cuidado, já que em diversos aspectos, há pertinência dos problemas apresentados com o campo da comunidade, de família e seus espaços de trocas sociais. Que podem sim, estes, serem abordados, potencializados e olhados como o lugar e a esfera da realização do cuidado. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 3).

O texto faz interessante paralelo entre os cuidados prestados nos dispositivos

substitutivos da Saúde Mental e os proporcionados na Atenção Básica, que devem ter as

mesmas características de “[...] foco no território e no vínculo” (MINISTÉRIO DA SAÚDE,

2003, p. 3).

Mais uma vez aparece o chamamento para a definição de indicadores de Saúde Mental

na Atenção Básica, mas não há especificação de quais seriam. (Cf. MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2003).

Foi advertido, também mais uma vez, que a “[...] efetiva implantação da rede de

atenção” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 4) é fundamental para o sucesso das ações de

Saúde Mental na Atenção Básica.

A parte do relatório dedicada aos “Princípios e Ações de Saúde Mental no PSF” inicia

com a recomendação de constituição

[...] de uma equipe de Saúde mental de referência, ou como apoio matricial, do PSF para cada 9 equipes do PSF (de forma que esta esteja referenciada em um serviço Caps ou de referência de saúde mental). Podendo ainda alguns técnicos destes serviços ambulatoriais de referência e dos Caps, estar compondo ações de supervisão as equipes do PSF na área de saúde mental.Visando a discutir e compartilhar casos, elaborar projetos de cuidado e intervenção social, elaborar junto com a equipe planejamento coletivo das ações em saúde mental local, apoio técnico caracterizado como capacitação continuada (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 6).

Voltamos, portanto, à questão da relação entre o número de Equipes de Saúde Mental

dedicadas à Atenção Básica e o de Equipes de PSF e também a ligação que essas Equipes de

Saúde Mental têm com os serviços de referência da rede de Saúde Mental. Consideremos:

uma Equipe de PSF é responsável por uma população entre 600 e 1.000 famílias, o que dá um

total entre 2.400 e 4.000 pessoas. Multiplicado por nove, temos entre 21.600 e 36.000

pessoas. Sabemos que a tendência é de os números de famílias adscritas nos Módulos de PSF

serem próximos do limite superior e não do inferior. A questão é: o que se quer e o que se

planeja para as ações das Equipes de Saúde Mental? Se for para retornar à proposta de apenas

supervisão, pode ser que a relação proposta pela Oficina, que está sendo citada, seja viável,

Page 173: Saude mental na atencao basica

173

mas se for para a Equipe de Saúde Mental atuar nas comunidades, a proporção inviabiliza a

proposta, de acordo com o que observo na prática.

Senão, vejamos. Pelos cálculos da OMS e do Ministério da Saúde, 3% da população

necessitam de cuidados constantes e prolongados em Saúde Mental. Apenas esse número

representa um total entre 648 e 1.080 pessoas. Estão nesses números apenas as pessoas

chamadas de “pacientes graves”, que teriam que receber o tipo de assistência qualificada

proposta, com ações de inserção social, geração de renda, articulação de condições de vida.

Tarefa difícil de ser realizada apenas pelas Equipes de PSF. Para apenas uma Equipe de

Saúde Mental, o número é excessivo, considerando que muitas outras ações estão previstas e

propostas. O Relatório que está sendo citado, na sua “Consolidação dos Trabalhos de Grupo”,

não deixa explícita a opção pela presença dos profissionais de Saúde Mental diretamente na

comunidade, mas fala em “Atuação e sensibilização para a escuta e compreensão da dinâmica

familiar e das relações sociais envolvidas;”, em “Acompanhamento/Acolhimento de usuários

egressos de internações psiquiátricas, egressos dos NAPS e outros recursos ambulatoriais

especializados” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 6, grifos meus), que indicam a

presença na base, diretamente. E, depois, relaciona todas as ações já propostas na Oficina de

Brasília 2001.

Quanto à ligação que essas Equipes de Saúde Mental têm com os serviços de

referência da rede de Saúde Mental, parece-me que a forma mais correta de situa-la é no

Programa de Saúde Mental, este sim, organizador do sistema e não o NAPS, CAPS ou outro

dispositivo. A articulação deve ser entre todos os serviços, organizada no Programa de Saúde

Mental. Do contrário, condiciona-se a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica e até

mesmo a melhor organização da rede de assistência à existência de CAPS. O que pode ser

destacado dessa discussão é que o que importa é o CAPS como conceito, como sempre

assinala Domingos Sávio, e não apenas como estrutura física ou serviço. CAPS enquanto

conceito que envolve integralidade, continuidade de atenção, clínica ampliada, inserção e

articulação familiar e comunitária, cidadania.

Dos relatórios apresentados pelos Grupos de Trabalho, citarei apenas os itens que não

repetem o que foi descrito a respeito da Oficina de Brasília 2001 e aqueles que são mais

prioritários, a meu ver.

A criação de indicadores de Saúde Mental na Atenção Básica foi mais uma vez

lembrada nesse encontro, com o destaque para a utilização de indicadores que já podem ser

incorporados no trabalho diário: “[...] diminuição de prescrição de medicamentos; diminuição

Page 174: Saude mental na atencao basica

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de internação psiquiátrica; diminuição de suicídios e homicídios [...]” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2003, p. 8).

A questão do nível de participação dos profissionais de Saúde Mental na Atenção

Básica foi discutida, e foi assinalado que deve ser sob a forma de “Suporte ‘in locus’ do

especialista – ‘fazer junto’” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 8) e “[...] apoio matricial as

equipes de PSF (discutir e compartilhar casos, elaborar projetos, ir junto no domicílio etc)”

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 10). Com essas afirmativas está, mais uma vez,

reforçada a idéia de que a inserção do profissional de Saúde Mental na Atenção Básica não se

esgota em Supervisões, mas requer a participação junto à comunidade.

Uma preocupante advertência, porque muito real, é a que fez um dos Grupos de

Trabalho: “Hoje, enfrentam-se 2 problemas que devem ser lembrados: equipe de CAPS não

sensibilizada para novas tecnologias e equipe de PSF sem perfil ou qualificação mínimas”

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 10). Podemos entender que essas “novas tecnologias”,

que as aludidas equipes dos CAPS não incorporam, são as que indicam o trabalho em rede e a

assistência enquanto disparadora de movimentos sociais, caindo num movimento voltado

apenas para as pessoas identificadas como pacientes e para dentro dos limites institucionais. E

por “equipe de PSF sem perfil ou qualificação mínimas”, compreendemos o que resulta das

formações da área de Saúde voltadas para o corpo, sem nenhuma ênfase no social e no

emocional: um enfoque curativo e sem incidência de promoção de cidadania.

Em agosto de 2003, Leila Vianna e Carlos Eduardo Honorato apresentaram, no XXI

Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Goiânia, o trabalho “Integração entre os Programas

de Saúde Mental e de Saúde da Família no Estado do Rio de Janeiro” (Cf. VIANNA &

HONORATO, 2003).

No trabalho, os autores mostram os resultados de pesquisa feita com os 92 municípios

do Estado, para quantificar as ações de Saúde Mental na Atenção Básica em curso. Dos 72%

de municípios que responderam ao questionário, 80% declaram que têm alguma articulação

com o PSF, mas em apenas em 46% deles as ações são regulares (cerca de 24 municípios).

Dez municípios têm reuniões regulares entre o Programa de Saúde Mental e o PSF, e cerca de

12% dos municípios, que responderam, têm as seguintes ações: discussão de casos clínicos,

supervisões regulares, articulação em rede e identificação de casos de transtornos mentais

pelas equipes do PACS/PSF. Com mais freqüência temos as visitas domiciliares em conjunto

e as capacitações, com 16% e o acompanhamento medicamentoso pelo PSF, com 19%. Note-

se que não são os mesmos municípios que têm as mesmas ações, de acordo com informação

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175

dos autores. Pesquisa, Oficinas Terapêuticas e Terapia Comunitária aparecem em 1% dos

municípios, sendo as duas últimas em Macaé.

É interessante observar a curva que mostra a época de início das ações de Saúde

Mental na Atenção Básica nos municípios pesquisados. Partindo de cerca de dois antes de

1999, três em 1999, aparece um significativo aumento durante o ano de 2000, quando quinze

municípios tomaram a iniciativa. Durante os anos de 2001 e 2002 a curva acentua o

crescimento, subindo um pouco menos pronunciadamente do meio de 2002 até o meio de

2003. Os autores prometem para breve mais dados, já que continuam a linha de pesquisa.

No final do ano de 2003, foi lançada a “Carta de Princípios das Ações de Saúde

Mental na Atenção Básica”, de responsabilidade da Assessoria de Saúde Mental da Secretaria

de Estado de Saúde do Estado do Rio de Janeiro e da Coordenação Estadual do Programa

Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, da mesma Secretaria.

O texto tem início com a lembrança das “[...] semelhanças de diretrizes na condução

dos dois programas” (SES-RJ, 2003, p. 1) e a afirmação dos conceitos de base para o tema:

território e rede. O texto afirma que o Programa de Saúde Mental

Defende igualmente que aqueles que são chamados a cuidar devam preencher as redes e relações produzindo atos de saúde que multipliquem a vida e, conseqüentemente, o acesso aos equipamentos sociais distribuídos, muitas vezes, de forma não equânime nos territórios (SES-RJ, 2003, p. 1).

O texto, citando o Ministério da Saúde, a Organização Pan-americana da Saúde

(OPAS) e a OMS, lembra a diretriz de “[...] mudança do modelo assistencial em saúde

mental” (SES-RJ, 2003, p. 2), que se dará com a construção da “[...] rede de serviços

territoriais de atenção psicossocial” (SES-RJ, 2003, p. 2). O texto lembra que de 80 a 85% da

demanda de saúde de uma comunidade podem ter resolubilidade na Atenção Básica, sendo de

Saúde Mental grande parte dessa demanda. Portanto, diz o texto: “[...] a proposta de

estruturação de uma ação conjunta do Programa de Saúde Mental e do Programa de Saúde da

Família mostra-se estratégica para ambos os Programas” (SES-RJ, 2003, p. 2).

Ressaltando a importância do acesso à atenção à Saúde Mental, dificultada muitas

vezes por falta de percepção do problema pelo meio ou por falta de informação e recursos

para procurar tratamento fora da comunidade, a Carta de Princípios ressalta que

[...] o trabalho efetivo com as famílias em seu local de residência permite identificar diversas formas de sofrimento, de desassistência, de processos que podem transformar as diferenças em desigualdade e exclusão (SES-RJ, 2003, p. 2).

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176

O texto da Carta destaca que, além dos transtornos mentais mais graves, existem as

diversas formas de sofrimento mental que têm na Atenção Básica seu primeiro recurso de

atendimento: as ansiedades, os “distúrbios nurovegetativos”, as tentativas de suicídio, a

violência. (Cf. SES-RJ, 2003).

A Carta tem como objetivos “Estabelecer o conjunto de princípios e diretrizes [...]”

(SES-RJ, 2003, p. 2), para “[...] o desenho das ações de saúde mental na atenção básica dos

92 municípios do Estado do Rio de Janeiro” (SES-RJ, 2003, p. 2), afirmando o papel da SES-

RJ na “[...] integração das políticas de Saúde Mental e de Saúde da Família no âmbito do

Estado do Rio de Janeiro” (SES-RJ, 2003, p. 3).

Dentro dos Objetivos Específicos, a Carta reafirma a orientação de mudança do

modelo hospitalocêntrico, a reversão dos especialismos, a ação da Saúde Mental para além da

remissão dos sintomas. (Cf. SES-RJ, 2003). A Carta sugere a ampliação dos “[...] espaços

tradicionalmente reconhecidos como lugares de atendimento: além do consultório e sala de

procedimentos, o domicílio, a escola, o bairro, a rua, etc.” (SES-RJ, 2003, p. 3). Como meio

de chegar a esses Objetivos, a Carta indica a capacitação das Equipes de PSF na atenção à

Saúde Mental, na forma de mútuo aprendizado. (Cf. SES-RJ, 2003). Um importante

pronunciamento é o que diz que “É fundamental que o(s) profissional(is) de Saúde Mental

que atua(m) no PSF esteja(m) ligado(s) ao Programa Municipal de Saúde Mental” (SES-RJ,

2003, p. 3).

Mais uma vez é sugerido, dentro dos Objetivos Específicos, que o Sistema de

Informação em Saúde Mental se articule com o Sistema de Informação da Atenção Básica

(SIAB), “[...] possibilitando a criação de indicadores de acesso e impacto bem como o

acompanhamento e monitoramento das ações em curso” (SES-RJ, 2003, p. 3).

Como estratégias, a Carta recomenda a capacitação das Equipes de Saúde da Família,

a inclusão da Saúde Mental no Treinamento Introdutório das Equipes de PSF e a realização

de “[...] oficinas regionais de acompanhamento e avaliação da integração dos Programas de

Saúde Mental e Saúde da Família” (SES-RJ, 2003, p. 3).

A Carta não entra na questão da inserção de Equipes de Saúde Mental na comunidade,

limitando-se a sugerir a integração entre os Programas Municipais de Saúde Mental e de

Saúde da Família. Esta integração deve se dar com o conhecimento mútuo, o estabelecimento

de contato entre os Programas, a definição do fluxo de pacientes, dos encaminhamentos. (Cf.

SES-RJ, 2003).

Page 177: Saude mental na atencao basica

177

Em novembro de 2003, o Ministério da Saúde, através da Coordenação de Gestão da

Atenção Básica e da agora chamada Coordenação Geral de Saúde Mental, lançou o texto

“Saúde Mental e Atenção Básica. O Vínculo e o Diálogo Necessários. Inclusão das Ações de

Saúde Mental na Atenção Básica”. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b.).

O texto começa por situar a estratégia Saúde da Família e os novos dispositivos

substitutivos em Saúde Mental como avanços na política do SUS nos últimos anos. (Cf.

MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b.). O documento reafirma que “Os CAPS, dentro da atual

política de saúde mental do MS, são considerados dispositivos estratégicos para a organização

da rede de atenção em saúde mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 2), mas com a

observação de que “Deve ser um serviço que resgate as potencialidades dos recursos

comunitários à sua volta, pois todos esses recursos devem ser incluídos nos cuidados em

saúde mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 2).

O documento define que “[...] a atenção em saúde mental deve ser feita dentro de uma

rede de cuidados. Estão incluídos nesta rede: a atenção básica, as residências terapêuticas, os

ambulatórios, os centros de convivência, os clubes de lazer, entre outros”. (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2003 b, p. 2, grifo do texto original).

Ao lado de lembrar que 3% da população necessitam de cuidados contínuos em saude

mental, visto que diagnosticados de portadores de transtornos mentais graves, o texto diz que

muitas situações de transtornos mentais menos graves já estão sendo atendidos na atenção

básica, concluindo que “Por sua proximidade com famílias e comunidades, as equipes da

atenção básica são um recurso estratégico para o enfrentamento de agravos vinculados ao uso

abusivo de álcool, drogas e diversas formas de sofrimento psíquico” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2003 b, p 3). Outro motivo que o texto apresenta para a articulação da Saúde Mental

com a Atenção Básica é o fato de que “[...] todo problema de saúde é também – e sempre –

mental, e que toda saúde mental é também – e sempre – produção de saúde” (MINISTÉRIO

DA SAÚDE, 2003 b, p. 3).

Argumentado com a complexidade que representa “[...] atender pessoas com

problemas de saúde mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 3), o texto diz que “[...]

a falta de recursos de pessoal e a falta de capacitação acabam por prejudicar o

desenvolvimento de uma ação integral pelas equipes” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p

3). Diríamos que falta capacitação às Equipes de PSF para a melhor compreensão da Saúde

Mental e falta capacitação às Equipes de Saúde Mental para melhor compreensão do que é a

Atenção Básica e sua potencialidade em relação à Saúde Mental.

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178

O texto traz uma declaração importante, já que vinda do Ministério da Saúde, que

reforça os documentos já produzidos: “[...] urge estimular ativamente, nas políticas de

expansão, formulação e avaliação da atenção básica, diretrizes que incluam a dimensão

subjetiva dos usuários e os problemas mais graves de saúde mental” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2003 b, p. 3).

Ressaltando que as ações de Saúde Mental na Atenção Básica “[...] devem estar

fundamentadas nos princípios de SUS e nos princípios da Reforma Psiquiátrica”

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p 3), o documento sintetiza esses princípios

fundamentais, o que ajuda a fornecer uma base para a capacitação das Equipes:

Noção de território Organização da atenção à saúde mental em rede Intersetorialidade Reabilitação psicossocial Multiprofissionalidade/interdisciplinaridade Desinstitucionalização Promoção da cidadania dos usuários Construção da autonomia possível de usuários e familiares. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 3).

Para produzir as suas diretrizes, o documento toma por base a Oficina de Brasília de

2001, o “Seminário Internacional sobre Saúde Mental na Atenção Básica”, realizado por

parceria entre o Ministério da Saúde, a OPAS, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a

Universidade de Harvard, em 2002, e a “Oficina de Saúde Mental no VII Congresso

Brasileiro de Saúde Coletiva”. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 4).

O documento tem início com a definição do “Apoio Matricial da Saúde Mental às

Equipes da Atenção Básica”:

O apoio matricial constitui um arranjo organizacional que visa a outorgar suporte técnico em áreas específicas às equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações básicas de saúde para a população. Nesse arranjo, a equipe por ele responsável, compartilha alguns casos com a equipe de saúde local (no caso, as equipes da atenção básica responsáveis pelas famílias de um dado território). Esse compartilhamento se produz em forma de co-reponsabilização pelos casos, que pode se efetivar através de discussões conjuntas de caso, intervenções conjuntas junto às famílias e comunidade ou em atendimentos conjuntos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 4).

Aqui, dentro da nossa questão a respeito da inserção do profissional de Saúde Mental

na comunidade, aparece uma importante definição do Ministério da Saúde: os profissionais

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179

responsáveis pela capacitação e supervisão, definida como Apoio Matricial, estão presentes

nas Equipes e nas ações na comunidade, presença essa que serve de exemplo, demonstração,

responsabilização compartilhada, base mesmo para o Apoio Matricial. O texto aponta

possibilidade de, aos poucos, essa presença ir tornando-se desnecessária:

A responsabilização compartilhada dos casos exclui a lógica do encaminhamento, pois visa a aumentar a capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe local. Assim, ao longo do tempo e gradativamente, também estimula a interdisciplinaridade e a ampliação da clínica na equipe. A ampliação da clínica significa o resgate e a valorização de outras dimensões, que não somente a biológica e a dos sintomas, na análise singular de cada caso. Assim, riscos como os sociais e outros se incorporam à avaliação clínica (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 4).

Excluindo a lógica dos encaminhamentos e apontando para a resolução das situações

de Saúde Mental, em número crescente, na própria comunidade, estão criados a base e o

caminho para a mudança do Modelo Assistencial. Mas a questão da inserção do profissional

de Saúde Mental persiste, desta vez, com uma importante orientação vinda do MS.

Imaginemos uma Equipe de PSF sem capacitação em Saúde Mental e trabalhando na lógica

manicomial, isto é, não há prioridade a respeito das pessoas em risco psicossocial e as

situações de maior gravidade são atendidas pelo que está estabelecido tradicionalmente no

município. Não há abordagem especial a transtornos mentais graves. Esta é a realidade que

temos constatado. Trata-se de Equipes em geral esgotadas na sua capacidade de atendimento,

muitas vezes deixando de realizar ações comunitárias devido à sobrecarga de trabalho, às

cobranças de números ou à deficiência na supervisão. Chega, então, a Equipe de Saúde

Mental para o Apoio Matricial, Equipe que estará presente no território, até que a Equipe

local de PSF absorva todas as ações necessárias à atenção em Saúde Mental.

A orientação do MS é interessante, mas, talvez só com mudanças ainda não

vislumbradas na estrutura do PSF poderá a Equipe de Saúde Mental sair do território. Com o

número de famílias a serem atendidas, no momento, não vejo como viável a absorção de

todas as ações de Saúde Mental pela Equipe de PSF. Mas, fica a orientação do MS como um

indicativo do caminho a seguir. Orientação coerente com a mudança do modelo assistencial,

com os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica e com a tentativa de dotar a área de

Saúde de ações que integrem os aspectos biológicos, emocionais e sociais.

No item “Como Organizar as Ações de Apoio Matricial”, o texto recomenda:

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Onde houver Caps, Oficinas e/ou outros equipamentos de Saúde Mental: os diversos membros dessas equipes de saúde mental farão o apoio matricial às diferentes equipes da atenção básica, programando sua carga horária para encontros semanais, e formas de contato para demandas inesperadas e intercorrências (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 4).

Também aqui, a orientação do MS é coerente quanto aos princípios e diretrizes da

Reforma Psiquiátrica e das Portarias, por exemplo, a 336, mas está aquém da urgência que se

apresenta. Sabemos que as Equipes dos CAPS estão sobrecarregadas. Pela orientação do MS,

teríamos Equipes de Saúde Mental sobrecarregadas, capacitando e supervisionando Equipes

de PSF igualmente sobrecarregadas. E não estamos num daqueles cenários descritos pela

OMS, de carência absoluta de mão de obra de profissionais de Saúde Mental. Pelo contrario,

o número de inscritos nos Concursos Públicos nos mostra a quantidade de profissionais à

espera de trabalho. E a quantidade de pessoas desassistidas, que só com o trabalho

comunitário podem ser descobertas, é imenso.

Para suprir a aparente escassez de recursos humanos, que a orientação acima deixa

transparecer, precisamos estar organizados, para que se obtenha o que está na proposta da

Coordenação de Saúde Mental do MS, para 2004, de acordo com o que consta da página da

Internet do MS, como um dos “desafios”: “Aumentar recursos do orçamento anual do SUS

para a Saúde Mental” (MINISTÉRIO DA SAÚDE e). Além disso, é importante sinalizar para

os municípios que é necessário investir em Saúde Mental, sendo o investimento principal o de

recursos humanos. O que propomos é a constituição de Equipes de Saúde Mental exclusivas

para a atuação na Atenção Básica. Essas Equipes devem estar estreitamente ligadas aos

CAPS, bem como a toda a rede de assistência à Saúde Mental, à Saúde em geral e a todos os

recursos da comunidade, inclusive os intersetoriais.

Para locais onde não existem serviços de Saúde Mental em número suficiente para

fornecer o Apoio Matricial, o texto propõe a

Criação de equipes de apoio matricial compostas, no mínimo, por um médico psiquiatra (ou generalista com capacitação em saúde mental), dois técnicos de nível superior (psicólogo, terapeuta ocupacional, assistente social, enfermeiro, etc.) e auxiliares de enfermagem, para no mínimo 6 e no máximo 9 equipes de PSF ou para grupos populacionais entre 15 a 10 mil habitantes (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 4).

A Coordenação de Saúde Mental do MS não recomenda CAPS para municípios de

menos de 20 habitantes, em grande número no país. Para estes, a orientação é trabalhar na

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lógica de Apoio Matricial descrita na última citação. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003

b).

No capítulo “Responsabilidades Compartilhadas entre as Equipes Matriciais de Saúde

Mental e da Atenção Básica”, vemos uma declaração de princípios que resume o que já foi

dito: “As equipes de saúde mental de apoio à atenção básica incorporam ações de supervisão,

atendimento em conjunto e atendimento específico, alem de participar das iniciativas de

capacitação” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 5). Não fica claro, porém, o que é

“atendimento específico”. Além das ações acima, o documento reafirma as ações a serem

desenvolvidas em conjunto pelas Equipes e que já foram descritas anteriormente, quando da

exposição da Oficina de Brasília 2001 e da Oficina de Saúde Mental no VII Congresso

Brasileiro de Saúde Coletiva. São elas, resumidamente: ações conjuntas priorizando casos de

transtornos mentais graves, de uso abusivo de álcool e outras drogas, egressos de hospitais

psiquiátricos, pacientes de CAPS, tentativas de suicídio e vítimas de violência doméstica.

Discussão de casos que envolvam o aspecto emocional. Reverter a medicalização. Ações

contra o preconceito e a segregação da loucura. Mobilização de recursos comunitários.

Desenvolver práticas grupais e coletivas. Desenvolver estratégia de redução de danos no

consumo de álcool e outras drogas. Trabalhar o vínculo com as famílias e articular redes de

apoio. (Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b). A lista de ações dá a dimensão da enorme

tarefa que as Equipes tem diante de si.

No penúltimo capítulo do texto, o Ministério da Saúde traz recomendações para a

formação de pessoal, com o título “Formação como Estratégia Prioritária para a Inclusão da

Saúde Mental na Atenção Básica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 5). O documento

reconhece que

Os pólos de Saúde da Família, bem como os pólos de saúde mental, já vinham desenvolvendo capacitações específicas em suas áreas, porém, de forma desarticulada. Na atual gestão, esses pólos deverão se adequar às novas diretrizes da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, por meio dos Pólos de Educação Permanente em Saúde, discutindo propostas conjuntas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6).

Segundo o texto, haverá, da parte da Coordenação de Saúde Mental (do MS), a

implantação de “[...] Núcleos Regionais de Capacitação e Produção de Conhecimento no

interior dos Pólos de Educação Permanente em Saúde” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b,

p. 5). Núcleos esses que “[...] estão se constituindo com representantes de SMS, SES,

unidades acadêmicas envolvidas, etc.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6). De acordo

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182

com o texto, esses são “[...] instrumentos de apoio/cooperação para os municípios que

estiverem realizando ações de saúde mental na atenção básica no sentido de qualificar a rede

e o cuidado, e de repensar as estratégias de formação” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b,

p. 6). Devemos supor que a determinação de apoio para a Formação, que está sendo descrita,

também englobe os municípios que querem investir na Saúde Mental na Atenção Básica e

mesmo uma divulgação ampla do que já é possível realizar.

A Formação que o MS se propõe a proporcionar consta de cursos a serem oferecidos

ao pessoal da rede básica, e “[...] suporte e orientação técnica aos núcleos em formação e aos

gestores locais” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6).

Para concluir o capítulo sobre Formação, uma importante observação:

Visando ao estímulo para a formação permanente e não somente para capacitações pontuais, a estratégia de capacitação a ser desenvolvida pelos núcleos se entrelaça com a da implantação das equipes de apoio matricial, pois essas podem trabalhar na linha da formação continuada e em serviço, discutindo casos e textos junto às equipes da atenção básica (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6).

Estão lançadas, portanto, mais uma vez, as diretrizes em nível nacional para a Saúde

Mental na Atenção Básica. O que dá maior importância ao texto citado é que, desta vez,

existe a proposta de financiamento da capacitação, com divisão de tarefas entre as três

instâncias de gestão do SUS.

O documento diz que o financiamento da Formação/Capacitação proposta terá as

seguintes fontes:

[...] recursos do Projeto de Apoio à Expansão do Programa de Saúde da Família (PROESF), de recursos da Secretaria de Gestão do Trabalho e de Educação na Saúde (SEGTES) para os Pólos de Educação Permanente em Saúde, de recursos específicos da Coordenação Geral de Saúde Mental, e das parcerias entre gestores locais e estaduais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6).

O último capítulo do texto trata da “Inclusão da Saúde Mental no Sistema de

Informações da Atenção Básica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p. 6), anunciando que

“Está em discussão a introdução, no SIAB, de indicadores de monitoramento baseados no

conceito de território, problema e responsabilidade sanitária [...]” (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2003 b, p 6). Quanto à incorporação de indicadores da Saúde Mental nos Sistemas

de Informação da Atenção Básica, o texto indica que estão propostos indicadores que retratam

percentuais de pessoas acompanhadas pela rede básica que tenham problemas com álcool e

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183

outras drogas, número de pessoas com transtornos mentais graves, percentual de pessoas

egressas de internações psiquiátricas e prevalência das epilepsias. (Cf. MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2003 b). Estão, ainda, sugeridos indicadores que revelem o “Número de pessoas que

utilizam benzodiazepínicos atendidas pela rede básica [...]” e o “Percentual de pessoas com

tentativa de suicídio acompanhadas pela rede básica” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003 b, p

6).

A redação desta monografia, nos seus momentos finais, toma o aspecto de uma

reportagem, tendo em vista a dinâmica dos acontecimentos. Mas uma reportagem onde o

repórter está em ação no campo reportado. Assim sendo, prossigamos.

Em abril de 2004, a Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ promoveu, numa das suas

reuniões bimensais com os Coordenadores Municipais de Saúde Mental, como forma de

estimular a que os Coordenadores Municipais insiram ações de Saúde Mental na Atenção

Básica, uma apresentação do já citado trabalho de Leila Vianna e Carlos Eduardo Honorato

(Cf. VIANNA & HONORATO, 2003), a respeito da “Integração entre os Programas de

Saúde Mental e de Saúde da Família no Estado do Rio de Janeiro”. Logo após a esta

apresentação, coube-me expor o que está sendo praticado em Macaé, com uma introdução

teórica, e um exemplo de ação da Equipe em torno de uma pessoa com diagnóstico de

transtorno mental grave. Nos debates, foram explorados os temas de integração Saúde Mental

na Atenção Básica com os CAPS, a diversidade de práticas da Equipe, detalhes das

capacitações, a rapidez dos resultados das ações implantadas, a mudança do tipo de prática

que o profissional de Saúde Mental está sendo instigado a fazer.

Em julho de 2004, com a saída de Leila Vianna da Assessoria de Saúde Mental da

SES-RJ, fui convidado para colaborar, junto a Carlos Eduardo Honorato, na referida

Assessoria, nas tarefas de continuar a estruturar a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica

nos Municípios do Estado do Rio de Janeiro.

Em julho de 2004, a Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica de Macaé realizou

seu Primeiro Fórum Interno de Saúde Mental na Atenção Básica. Os temas foram:

Infraestrutura e realidade no trabalho dos profissionais de Saúde Mental na Atenção Básica;

Oficinas Terapêuticas na Atenção Básica e no CAPS (discussão com a presença de um

Terapeuta Ocupacional do CAPS); Abordagem de pessoas com diagnósticos de transtornos

mentais graves; Visita Domiciliar e Interconsulta: quando fazer?; Expansão e Capacitação de

novos profissionais.

Neste momento a Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica estava composta por:

Naly Soares de Almeida, Psiquiatra, Supervisora; Débora Oliveira B. Jeovani e Maria do

Page 184: Saude mental na atencao basica

184

Carmo Húbner Stróglio, Terapeutas Ocupacionais; Regina Helena Monerat, Psicóloga;

Rosemary Gonçalves de Souza, Assistente Social e Stephan Malta Oliveira, Psiquiatra.

A discussão do tema “Infraestrutura” não se prendeu apenas a detalhes do registro dos

procedimentos da necessidade de transporte e de material de consumo, mas entrou no assunto

da infraestrutura pessoal necessária para o trabalho com as comunidades. Está claro para

todos os membros da Equipe, a essa altura, que são duas as demandas que as Equipes de

Saúde Mental na Atenção Básica tem que atender: as da população e as das Equipes de PACS

e PSF. As demandas da população são, em certo sentido, mais fáceis de atender, visto que são

mais claras e o pedido de ajuda mais evidente. Mas, os pedidos das Equipes são mais

complexos, variando de uma atitude de negação da presença dos profissionais de Saúde

Mental, de modo mais ou menos sutil, situação em que parece que não há nada a ser realizado

em termos de Saúde Mental, até o outro extremo, onde toda a tarefa da assistência à Saúde

Mental tende a ser “empurrada” para a Equipe de Saúde Mental.

As reações das Equipes da Atenção Básica, citadas acima, foram compreendidas como

resultantes do fenômeno da exclusão, e como tal deve ser trabalhado. O sentimento dos

profissionais de Saúde Mental, que foi detectado no Fórum, despertado pelas formas diversas

com que são recebidos, às vezes, foi o de solidão. Elaborar esse sentimento, com a ajuda da

Equipe, nas suas reuniões, ajuda a que cada membro não se deixe identificar com o papel de

excluído, podendo, então, trabalhar a situação junto às Equipes da Atenção Básica. A

paciência foi a principal virtude apontada para a compreensão das necessidades das Equipes

da Atenção Básica.

No Fórum, foram estabelecidas comparações entre as Oficinas Terapêuticas realizadas

no CAPS e na Atenção Básica. Desta última podem beneficiar-se pessoas cujo

comprometimento mental é grave e que a rede de suporte social e familiar não é suficiente

nem para conduzi-lo ao CAPS. O CAPS seria mais atrativo, mesmo que momentaneamente,

para situações de carência de um suporte institucional mais estabelecido, ou em casos em que

a rede de apoio social ainda não foi possível de ser tecida. O diálogo entre CAPS Básica

prosseguirá, com a criação de mecanismos de integração. Ficamos, nessa discussão, com a

advertência de que as Oficinas Terapêuticas nas comunidades devem ser estabelecidas dentro

da evolução do trabalho geral da Saúde Mental, e não antes.

Foi avaliado o andamento do trabalho numa região de serra do município (Sana),

afastada do centro, onde a entrada da Saúde Mental se deu, inicialmente, com uma Supervisão

de Equipe semanal e uma Terapia Comunitária quinzenal, a cargo da Supervisora da Equipe

de Saúde Mental. Recentemente, começou a trabalhar na localidade a Terapeuta Ocupacional

Page 185: Saude mental na atencao basica

185

Maria do Carmo, que iniciou sua atuação oferecendo-se para Visitas Domiciliares, junto com

ACS, para situações de pedido de intervenção à Saúde, que partem da Escola. Depois das

primeiras Visitas, a comunidade mobilizou-se e surgiram solicitações para atendimento de

pessoas graves, alguns acamados, outros com diagnóstico de psicose, sem tratamento, alguns

confinados em casa. Nesta localidade, está em atuação regular uma Reunião de Saúde

Comunitária, que surgiu do trabalho do Módulo do PSF com a Saúde Mental.

Foram discutidos, no Fórum, casos de abordagem a pessoas com transtornos mentais

graves. Em todas as situações estudadas, as pessoas não estavam em tratamento regular e

tinham histórias de longo curso do problema e/ou de diversas internações psiquiátricas. As

abordagens seguem a forma de trabalhar já descrita, de individualização do atendimento (cada

caso é um caso...) e máxima expansão, familiar e social, do alcance das ações.

A discussão a respeito de Visitas Domiciliares e Interconsulta levou a algumas

conclusões: a Visita Domiciliar é pouco discutida no PSF, muitas vezes sendo realizada

apenas visando os sintomas. O tema já foi assunto de capacitação da Saúde Mental e deve

voltar a ser mais discutido, portanto. Foi decidido tornar a Visita Domiciliar mais “precisa”,

isto é, mais importante, na medida em que discute-se previamente com mais intensidade os

seus motivos e a história do que está sendo abordado e, depois da Visita, cria-se um campo

mais efetivo de capacitação e de conclusões para as ações.

A Interconsulta ainda não está completamente absorvida no dia a dia do profissional

dos módulos, notando-se alguns bons resultados e, também, situações de adiamentos e

impedimentos. Foi decidida uma reunião que terá como participantes os médicos de áreas

onde já esteja em atuação a Equipe de Saúde Mental, a Supervisora, o Psiquiatra e o autor

dessa monografia.

Quanto à Capacitação dos novos profissionais de nível superior que estão para serem

integrados à Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica, através de Concurso Público,

decide-se que passarão por observação do trabalho que está sendo realizado, estudo de textos.

Uma Equipe completa entrará em dois Módulos de PSF, inicialmente, com as ações de

Capacitação, Visita Domiciliar e Interconsulta.

Um fato que considero como um dos resultados mais positivos do trabalho implantado

em Macaé foi a solicitação, feita pela Coordenadora do PSF, para que a Equipe de Saúde

Mental atuasse com mais determinação, isto é, que fosse mais adiante, na ajuda às Equipes

dos Módulos de PSF na resolução de seus conflitos internos e na ajuda para que essas Equipes

realizem trabalhos comunitários.

Page 186: Saude mental na atencao basica

186

Em 18 de agosto de 2004, o Centro de Estudos do Instituto Municipal Philippe Pinel,

no Rio de Janeiro, promoveu um dia de debates a respeito da Saúde Mental na Atenção

Básica, sob a denominação de “Integração dos Programas de Saúde Mental e Saúde da

Família no Estado do Rio de Janeiro”. O evento teve a coordenação de Mário Barreira

Campos, Sandra Fortes e Marta Zappa. Na ocasião, foram reafirmadas as necessidades de

integração entre a Saúde Mental e os Programas de Atenção Básica, com os palestrantes

ressaltando a afinidade de conceitos entre as estratégias do PSF e da Reforma Psiquiátrica. O

tema da violência nas comunidades, tanto a violência doméstica quanto a urbana, foi um

ponto marcante nos debates.

Em 16 de setembro de 2004, aconteceu, no Rio de Janeiro, o “I Encontro Estadual de

Integração das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, uma iniciativa da Coordenação

Estadual do Programa Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, com apoio da

Assessoria de Saúde Mental da SES-RJ. O Encontro foi dividido em duas partes: durante a

manhã, tivemos uma mesa redonda com a participação de Maria do Socorro Matos,

Coordenadora de Gestão da Atenção Básica do Ministério da Saúde, e de Maria Amélia

Alves, consultora de Saúde Mental do Departamento de Atenção Básica do MS. À tarde,

houve a apresentação de experiências de Saúde Mental na Atenção Básica de três municípios

do Estado do Rio de Janeiro: Petrópolis, Niterói e Macaé.

A representante do Ministério da Saúde, Maria do Socorro Matos, reafirmou a

necessidade estratégica das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, ressaltando a

importância das ações coletivas para a abordagem dos problemas de Saúde Mental. Maria do

Socorro informou, depois de questionada a respeito da demora do estímulo de financiamento

para as ações de Saúde Mental na Atenção Básica, que está em fase final de aprovação a

criação de “Núcleos de Saúde Integral”, que terão a presença de supervisores das diversas

áreas da Saúde que estão atuando no PSF, como por exemplo, a Odontologia, a Fisioterapia e

a Saúde Mental. Para esses Núcleos, que atuarão junto às Coordenações Municipais de PSF,

haverá estímulo financeiro. Note-se que não há aceno de financiamento para as ações, e sim

para Supervisão. A representante do Ministério da Saúde informou, também, que está em

estudo a reformulação global do SIAB, o que ensejará a introdução de indicadores próprios da

Saúde Mental.

A Coordenadora de Saúde Mental da SES-RJ, Cristina Loyola, na sua fala, ressaltou

que, da pesquisa realizada por Leila Vianna e Carlos Honorato, já citada nesta monografia,

depreende-se que, apesar da intenção de os Coordenadores Municipais de Saúde Mental

Page 187: Saude mental na atencao basica

187

promoverem ações junto à Atenção Básica, é pequeno o número de municípios que as têm

realizado de modo efetivo.

Coube-me coordenar a mesa de apresentação dos trabalhos dos municípios, que se

revelaram singulares, diferentes e unidos pelas diretrizes dos últimos textos e encontros a

respeito do tema. Foi sugerido que os apresentadores ressaltassem as ações que estão

produzindo bons resultados, os pontos de impasse e as possíveis modalidades de capacitação

que podem ser úteis. Esta solicitação, aos apresentadores, deveu-se à intenção dos

organizadores do Encontro de que um debate, ao final do mesmo, aprovasse meios de

estimular as ações de Saúde Mental na Atenção Básica.

No debate final foram aprovados os seguintes itens:

- continuar a discussão a respeito da inclusão de ações de Saúde Mental na Atenção

Básica, nos Fóruns Regionais de Coordenadores de Saúde Mental, com atenção para

cada município. Utilizar os Fóruns, também, para debater a respeito dos Núcleos de

Saúde Integral.

- realizar pesquisa, em algum município a ser escolhido, antes e depois de capacitação

em Saúde Mental na Atenção Básica;

- realizar um Fórum de Agentes Comunitários de Saúde, em que eles mostrem o que

têm para ensinar e as suas experiências;

- discutir, em Seminário, a articulação entre Serviços Residenciais Terapêuticos, PSF,

desospitalização e o “Programa de Volta pra Casa”;

- realizar Supervisão de Saúde Mental na Atenção Básica integrada e por Regiões de

Saúde;

- discutir, regionalmente, as ações de Saúde Mental na Atenção Básica, tomando como

estimuladores as experiências apresentadas, pelos municípios, no Encontro;

- divulgar amplamente as conclusões do Encontro.

O Encontro renovou, portanto, as diretrizes e as intenções dos textos e eventos da

área, até o momento. Ficou destacada a necessidade de incrementar a aproximação entre a

Saúde Mental e a Atenção Básica, utilizando os espaços de discussão já existentes, mas com a

sinalização de que será preciso criar novos campos, específicos para a realização da tarefa.

Page 188: Saude mental na atencao basica

188

CAPÍTULO 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente monografia, para chegar ao seu objetivo principal - observar como está

acontecendo, hoje, a entrada das ações da Saúde Mental na Atenção Básica - percorreu a

história da exclusão praticada pela ciência oficial em nome do encobrimento e do controle de

emergentes sociais indesejáveis. Podemos dizer que os conteúdos da exclusão são o

inconsciente, as diferenças de classe e a miséria.

Ao pesquisar como alguns autores e programas lidaram com tentativas de reverter o

quadro de práticas de exclusão, pudemos perceber que as histórias da Reforma Psiquiátrica e

dos Programas de Atenção Básica são marcadas pela luta constante entre controle e

transformação social.

A história da abordagem ao que chamamos hoje de sofrimento psíquico, termo geral

que contém o conceito questionável de “doença mental”, nos mostra uma imensa variedade de

enfoques.

Os emergentes pessoais, que denotam algum funcionamento fora dos padrões da

normalidade eventual, têm diferenças consideráveis de tratamento, quando variam os lugares,

épocas e culturas. Exaltação, idolatria, execração, torturas, alvo de caridade, assassinato,

curiosidade científica e fonte de lucro são alguns dos destinos daqueles que, por seu

comportamento ou modo de pensar, não se incluem na maioria.

A ciência médica em ascensão organizou, em conformidade com as determinações

políticas e econômicas, a Grande Exclusão, sob a forma dos hospícios, com mais desenvoltura

no século XVIII.

Depois de dois séculos do isolamento que tentava proteger a sociedade de suas

próprias contradições, e da tentativa de expulsão do trágico da existência, a ciência oficial

entra em crise. A visão do horror dos campos de concentração nazistas e a perda das ilusões a

respeito da excelência da sociedade ocidental, com seus modos de produção e de exclusão,

colaboraram para o questionamento do que estava sendo feito com seres humanos nos

hospícios, sob a justificativa de tratá-los.

Page 189: Saude mental na atencao basica

189

A ciência oficial psiquiátrica, excludente, segregadora, já atacada por novos

conhecimentos, inclusive da psicanálise, aprofunda a sua crise com o avanço da

psicofarmacologia, o que possibilitou o aumento do número de altas dos Hospitais

Psiquiátricos, a partir da década de 50 do século XX. Os textos e trabalhos práticos de

contestação da instituição psiquiátrica de segregação apareceram mais acentuadamente na

Europa, nas décadas de 60 e 70, mas têm precursores, que, nas suas épocas, não tiveram maior

repercussão.

A contestação política dos anos 60 e 70, não sendo coincidência a contemporaneidade

das práticas alternativas da Saúde Mental com os movimentos de questionamento dos poderes

daquela altura do século XX, produziu não apenas propostas teóricas, mas ações efetivas de

desinstitucionalização no trato com o diferente. Politizado, o movimento de renovação na

Saúde Mental mostrou que a individualização dos problemas de sofrimento mental encobria

realidades familiares e sociais que precisavam ser explicitadas.

Inicialmente trabalhando na democratização das instituições asilares, o movimento de

transformação na Saúde Mental criou dispositivos extra-hospitalares para a abordagem ao

sofrimento mental. Com o avanço do questionamento do Poder Médico, outras profissões da

área entraram em campo, formando os múltiplos olhares a respeito do sujeito a ser tratado e

ajudando a lançar, para além do indivíduo, a percepção da determinação e da solução dos

problemas.

Nota-se que a cada tentativa de mudança, no modo de abordar o sofrimento mental,

correspondem críticas, que podem ter funções estimulantes ou paralisantes. A dúvida que

permanece é a que traz o constante questionamento: estamos praticando meras reformas que

mantém o conteúdo controlador das ações de Saúde ou estamos colaborando para mudanças

efetivas?

As tentativas de abordar o sofrimento mental diretamente nas comunidades, em

contato com os bairros, ruas e famílias, também tiveram um impulso inicial na Europa e nos

Estados Unidos. De início repetindo o objetivo controlador, as ações de Saúde Mental na

comunidade mostraram que podem ter efeitos transformadores para pessoas, famílias e

população. As críticas que são feitas às tentativas iniciais de inserção de ações de Saúde

Mental, nas comunidades, apontam para a falta de participação da população na discussão e

organização em todas as fases do processo de mudanças que os profissionais pretendem

implantar. Os programas de Saúde Mental comunitária surgiram em meio a tentativas de

controlar populações que ameaçavam sair do domínio do poder estabelecido, portanto sua

implantação não levava em conta as reais necessidades dos “assistidos”.

Page 190: Saude mental na atencao basica

190

Das tentativas iniciais de abordar a Saúde Mental na comunidade, tanto nos trabalhos

nacionais como nos estrangeiros, ficaram: as propostas de integração entre as Equipes

Clínicas e de Saúde Mental; a noção de população adscrita; o questionamento da divisão entre

profissionais do corpo/profissionais da mente; a necessidade de trocar conhecimentos com a

população; a entrada em campo de diversas categorias profissionais; a correlação entre

sofrimento mental e organização da sociedade; a perspectiva de mudar a forma da sociedade

lidar com o diferente; a percepção das diferentes formas com que a loucura é encarada ao

longo da história.

Os Programas de Atenção Básica, no Brasil, tiveram influência de orientações

internacionais. Mesmo criticada por alguns autores, a Declaração de Alma-Ata ainda é um dos

marcos de orientação para que as políticas públicas de Saúde definam-se pelas ações

comunitárias e incluam a população na condução dos programas. O que se pretende é

ultrapassar as definições de Alma-Ata, com o Programa de Saúde da Família como estratégia

para a mudança do Modelo Assistencial.

A mudança do Modelo Assistencial em Saúde, que tem no PACS e no PSF as suas

bases, possui diversos pontos de semelhança com o que tem sido proposto pela Reforma

Psiquiátrica, principalmente nos últimos anos. Os conceitos de território, rede,

responsabilidade e de integralidade, são comuns à Reforma Psiquiátrica e ao PSF/PACS,

assim como a orientação geral de que o trabalho de promoção da Saúde, a discussão a respeito

das condições de vida e o estímulo à organização das comunidades são partes inerentes do

trabalho.

A proposta do PSF como estratégia para a mudança do Modelo Assistencial tem

recebido atenção especial de Profissionais de Saúde, população, gestores da área da Saúde e

autores ligados, ou não, à Universidade. Porém, existem dois graves fatores de limitação das

possibilidades de efetiva mudança na forma de atuar dos serviços de Saúde, através do PSF: a

definição de um quantitativo populacional excessivo, para cada Módulo de PSF, para a tarefa

proposta, e a falta de capacitação de muitos profissionais para o trabalho de mobilização das

comunidades. Desta forma, o risco é a proposta de mudança resumir-se a uma expansão de

ambulatórios, melhorados, pelas comunidades, sem que as condições de vida e de saúde sejam

discutidas e transformadas.

De forma semelhante às críticas que recebem as tentativas de mudança na área da

Saúde Mental, que seriam meras formas renovadas de controle, também os Programas de

Atenção Básica são alvos de questionamento. A prática de cada Equipe responderá, bem

como o farão os resultados, em termos sociais, ao dilema controle/transformação.

Page 191: Saude mental na atencao basica

191

No Brasil, a Reforma Psiquiátrica teve o grande impulso na transformação dos

Hospícios, formando o pessoal e a consciência crítica que ocupou os cargos no Aparelho do

Estado, a partir do fim da década de 70 e início da de 80. O Movimento dos Trabalhadores em

Saúde Mental teve papel decisivo na fase de contestação e, depois, na de propostas e

reorientação da condução da Política de Saúde Mental no Brasil.

A Reforma Psiquiátrica ganhou força, no Brasil, no bojo da crise de financiamento do

Setor Saúde, que tentava sustentar um Modelo Assistencial curativo fadado à falência.

Desde o início, o movimento pela transformação do campo da Saúde Mental teve forte

cunho político, refletindo as suas origens principalmente basaglianas.

Os Encontros de Profissionais de Saúde Mental, de fins da década de 70 e em toda a

década de 80, aprofundaram a discussão sobre a necessidade de mudança do Modelo

Assistencial em Saúde Mental, inserindo o que estava sendo pensado e praticado como

mudanças, na área, no campo maior da Reforma Sanitária e da Política.

O Hospital Psiquiátrico e a Internação Psiquiátrica eram o alvo preferencial das

críticas, ao lado do Poder Médico, da direção autoritária das instituições, da falta de condições

de trabalho, da escassez de recursos humanos e do gasto de quase todo o orçamento da Saúde

Mental com a exclusão.

Mesmo no início das formulações das mudanças na assistência à Saúde Mental já

aparecem, em documentos oficiais, orientações no sentido de incluir a Saúde Mental nos

cuidados básicos de saúde. Alguns anos teriam que se passar, para que a prática tivesse

correspondência com o que estava proposto.

No final da década de 80, os encontros do movimento de transformação da Saúde

Mental já acontecem com caráter oficial, como as Conferências Estaduais e a I Conferência

Nacional de Saúde Mental. Além da reafirmação dos princípios da Reforma Psiquiátrica,

esses eventos passam a ter o caráter de organização do que estava sendo praticado na

assistência e a contar, cada vez mais, com a participação da população, com a presença de

usuários do Sistema Único de Saúde e seus familiares. É ainda tímida, mas já se fazem notar,

nesses fóruns, as indicações de que a comunidade é um dos caminhos para as mudanças em

Saúde Mental.

Os dispositivos extra-hospitalares surgiram, então, com grande força, de início com a

multiplicação dos Ambulatórios de Saúde Mental, já com Equipes Multidisciplinares.

Ultrapassando o Ambulatório em acolhimento e em efetividade no cuidado das

pessoas com grave comprometimento mental, surgem os CAPS. O primeiro Centro de

Atenção Psicossocial foi inaugurado em 1987, em São Paulo, revelando-se de grande

Page 192: Saude mental na atencao basica

192

utilidade para reduzir o número de internações psiquiátricas e proporcionar melhores

condições de vida para pessoas em risco de serem internadas. Caso sejam bem conduzidos, os

CAPS promovem o questionamento da cultura da exclusão.

Ao praticar uma assistência em Saúde Mental que não mais isolava as pessoas a serem

tratadas, a Reforma Psiquiátrica assume a tarefa de tentar mudar os conteúdos imaginários

seculares de rejeição da loucura. Não mais isolada no gueto da Psiquiatria Organicista, a

loucura passa a freqüentar as ruas, permanecer nas casas, fazer-se visível, a forçar a Medicina

a mudar seu discurso excludente, a provocar olhares e aproximações de diversas categorias

profissionais.

A Declaração de Caracas, de 1990, coloca os Sistemas Locais de Saúde como campo

privilegiado de ação da assistência da área mental, numa afirmação que ficou como

importante orientação para os anos que se seguiram.

A década de 90 assistiu à progressiva diminuição do número de leitos psiquiátricos, à

proliferação de CAPS e NAPS e ao desenvolvimento de diversos dispositivos criativos de

assistência, desde então já definidos em Portarias no Ministério da Saúde, onde já estavam

membros do movimento de renovação da Saúde Mental. As ações de Saúde Mental na

comunidade eram, então, incipientes, isoladas, sem definição de financiamento e não atraíam

a atenção dos profissionais da área. Uma espécie de “caminho natural” dos profissionais era o

Hospital Psiquiátrico em transformação, os ambulatórios de consultas e os CAPS e NAPS.

A II Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1992, mesmo citando a

Declaração de Caracas, no seu Relatório Final, como uma diretriz a ser seguida, pouco avança

em relação a apontar a necessidade de práticas de Saúde Mental diretamente na comunidade.

Podemos supor que a relutância em tomar o caminho dos trabalhos com as comunidades, até

esse ponto da Reforma Psiquiátrica, devia-se à crítica ao preventivismo ter ficado muito

marcada, tornando as práticas comunitárias mais suspeitas de controle do que aquelas dos

Ambulatórios, CAPS e NAPS. Pode ter contribuído para essa relutância, o fato de que as

principais influências estrangeiras da Reforma Psiquiátrica Brasileira não terem sido ligadas a

trabalhos diretamente nas comunidades. Trabalhava-se com a comunidade fechada dos

Hospícios, transformando-os em Comunidades Terapêuticas, que deram a base de

organização dos CAPS e NAPS.

A II Conferência Nacional de Saúde Mental, de 1992, por outro lado, já traz conceitos

que serão base para a aproximação da Saúde Mental da comunidade, como a

desinstitucionalização e a reafirmação dos princípios da 8.a Conferência Nacional de Saúde:

universalidade, integralidade, eqüidade, descentralização e participação. Aparecem também,

Page 193: Saude mental na atencao basica

193

com importância, os conceitos de território e responsabilidade, fundamentos das ações de

Saúde Mental na Atenção Básica e indicações para a constituição de “Equipes Itinerantes” e

para a capacitação de Agentes Comunitários de Saúde.

A década de 90 caracterizou-se pela expansão dos dispositivos propostos pela Reforma

Psiquiátrica, que avançou no período, mesmo contra toda as dificuldades, sendo as maiores

delas o enorme gasto com internações psiquiátricas e o próprio financiamento do SUS.

Na década de 90 surgiram e se desenvolveram os Programas de Atenção Básica no

Brasil, em parte reciclando experiências já estabelecidas no país e no exterior, mas com

aspectos novos. Os Programas de Atenção Básica, primeiro o PACS, e depois o PSF, tiveram

influência de diretrizes internacionais, sendo um exemplo marcante a Declaração de Alma-

Ata, de 1978. Mesmo criticada por alguns autores, em Alma-Ata estão indicadas importantes

orientações para o trabalho na Atenção Básica, como por exemplo, a afirmação do direito das

populações de participar do planejamento e controle das ações de saúde.

A implantação dos Programas de Atenção Básica torna-se, então, uma estratégia para a

mudança do Modelo Assistencial. As postulações dessa estratégia e dessa mudança de Modelo

Assistencial coincidem com os fundamentos e as práticas da Reforma Psiquiátrica, visto que

ambas têm suas bases em conceitos comuns: a visão da Saúde como um campo

eminentemente político e os princípios da Reforma Sanitária e do SUS.

A compreensão da Saúde como um direito de cidadania, o reconhecimento da

determinação social dos problemas de saúde, a necessidade da participação popular para a

transformação do campo da Saúde, o princípio da integralidade, são alguns dos muitos pontos

em comum entre a Reforma Psiquiátrica e a estratégia do PACS/PSF.

Com a implantação do PACS, surge, na figura do Agente Comunitário de Saúde, uma

possibilidade de ação comunitária inédita em Saúde Mental. Enraizado na comunidade, visto

que nela morador, o ACS é, ao mesmo tempo, o membro do Sistema de Saúde mais próximo

da realidade dos fatos da saúde da população. O ACS tem, então, devido à sua inserção, a

possibilidade de promover mudanças que realmente sejam duradouras.

Constatamos, então, que, na década de 90, surgem, em diversos estados do país, ações

de Saúde Mental ligadas ao PACS/PSF. Trabalhos consultados revelam a rapidez de resultados

e a potencialidade para a adoção de práticas de Saúde Mental pela Atenção Básica,

principalmente pelos ACS. Ao conhecer de perto a realidade das vidas das comunidades e ao

poder articular redes de apoio e inserção social, os profissionais envolvidos podem, ao lado de

assistir pessoas e famílias, estimular a participação da população na reflexão a respeito de

suas condições de saúde.

Page 194: Saude mental na atencao basica

194

O trabalho do ACS, na articulação entre Saúde Mental e Atenção Básica, é um dos

fatores de maior importância e de estímulo. Nas capacitações que são fornecidas pelas

Equipes de Saúde Mental, é a categoria profissional que mais rapidamente sai da lógica da

exclusão e que compreende, de modo criativo e inovador, as propostas de inclusão. Com a

sensibilidade vinda do contato constante com a população e do conhecimento da cultura local

e da dinâmica das famílias e da comunidade, passam a ter o papel de referência para as

situações que envolvem a Saúde Mental. Em diversas situações são os ACS que fornecem as

soluções para os problemas enfrentados.

Um fato da maior importância para as práticas da Reforma Psiquiátrica é que, quando é

iniciado um trabalho de Saúde Mental nas comunidades, ligado ao PACS/PSF, constata-se

uma realidade que, muitas vezes, não chega nem aos ambulatórios nem aos CAPS: uma

imensa faixa de desassistência. São pessoas em cárcere privado, trancadas em cômodos,

isoladas em partes das casas ou terrenos onde moram as famílias ou mesmo perambulando a

esmo pelas comunidades. Estas situações em geral não são abordadas pelos Programas de

Atenção Básica, que estão, freqüentemente, na lógica da exclusão, por mais que os seus

conceitos de base indiquem a responsabilidade integral pela saúde da população.

Percebemos que, por um lado, permanecem os Profissionais de Saúde Mental sem

contato com pessoas que circulam entre casa, emergências e hospícios, ou que ficam nas

comunidades, mas com péssima qualidade de vida. Por outro lado, temos os Profissionais da

Atenção Básica que não possuem habilidades para perceber e reverter o quadro de exclusão

em que vivem pessoas com problemas de Saúde Mental da sua população. Estamos, porém,

apenas tocando no aspecto dos “transtornos mentais graves”, sem entrar, ainda, na área mais

geral da integração entre o que ficou dividido entre saúde física e saúde mental.

Criou-se, com a confluência entre a Reforma Psiquiátrica e os Programa de Atenção

Básica, com suas bases teóricas, conceitos e práticas, a possibilidade de a inserção da Saúde

Mental nas comunidades sair das meras tentativas de modificação da assistência psiquiátrica,

como aparecia no preventivismo e em trabalhos nacionais e estrangeiros.

Um ponto comum entre Equipes de Saúde Mental, que trabalharam nas comunidades

durante a década de 90 e no início do novo século, e a definição do CAPS como centro

organizador da Rede de Atenção Psicossocial, é o que coloca nos conceitos de território e rede

a base para as ações. Conceitos comuns e intenções comuns poderão fazer da articulação entre

os CAPS e a Atenção Básica, bem como entre toda a rede de assistência, a sustentação dos

avanços num novo patamar. A definição dos CAPS como prioridade estratégica deve ser

Page 195: Saude mental na atencao basica

195

acompanhada de uma atenção especial para as possibilidades imediatas de ações de Saúde

Mental ligadas aos Programas de Atenção Básica.

Continuando a estabelecer as bases conceituais para a atuação da Saúde Mental, junto

aos Programas de Atenção Básica, consideramos que uma diretriz é determinante para os

rumos dos trabalhos: a que postula que, nas ações praticadas, deve estar sempre presente pelo

menos um membro da Equipe de Saúde da Família ou do PACS, além de um membro da

Equipe de Saúde Mental. Com essa prática estimulamos o princípio da integralidade,

tornamos as ações campo permanente de capacitação mútua, eliminamos a referência entre os

Programas (fonte de possível perda da responsabilização e manutenção da exclusão) e

investimos num trabalho realmente de Equipe, com múltiplas visões e colaborações.

Nas avaliações da Reforma Psiquiátrica, no ano 2000, o tema da urgência da entrada

da Saúde Mental na Atenção Básica já estava colocado com ênfase, o Ministério da Saúde já

percebia a necessidade de estimular essa inserção, e os apelos por estímulos de financiamento

já se faziam ouvir.

Com diversos trabalhos de Saúde Mental na Atenção Básica já em andamento,

produzindo resultados, o assunto financiamento passa a ter lugar de destaque. Foram feitas

solicitações, ainda não atendidas, de estímulo de financiamento para a introdução da Saúde

Mental na Atenção Básica.

Nos anos de 2000 e de 2001, o tema da Saúde Mental na Atenção Básica teve decisivo

impulso.

A publicação do livro “Saúdeloucura 7”, organizado por Antonio Lancetti, em 2000,

mostrou a criatividade e os resultados de muitos trabalhos de introdução da Saúde Mental nas

comunidades. No livro, já está colocado o conceito que define que as ações de Saúde Mental

na Atenção Básica devem ser praticadas, sempre, com a participação de pelo menos um

membro de cada Equipe: Saúde Mental e PACS/PSF. Em artigo de abertura do livro, Lancetti

sugere que para cada duas Equipes de PSF seja destinado um profissional de Saúde Mental,

iniciando uma longa discussão ainda longe do consenso. Na nossa experiência, essa

quantidade de profissionais de Saúde Mental é insuficiente em relação à quantidade de ações

a serem desenvolvidas.

No início de 2001, o Ministério da Saúde lançou um documento intitulado “Proposta

Preliminar. Plano de Inclusão de Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, preparatório

para a “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de

Saúde Mental na Atenção Básica”, que se realizou, em março de 2001, em Brasília. Da

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196

Oficina saíram diretrizes básicas para a condução dos trabalhos da Saúde Mental na Atenção

Básica.

Foi aprovada, ainda em 2001, pelo Congresso Nacional, a lei 10.216, que “Dispõe

sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o

modelo assistencial em saúde mental”. Na Lei, é exigido que o poder público organize modos

comunitários de tratamento dos pacientes com transtornos mentais e coloca a internação

psiquiátrica como exceção.

A Organização Mundial da Saúde elege o tema “Não à exclusão, sim aos cuidados”,

para o Dia Mundial da Saúde, dedicado, em 2001, à Saúde Mental.

Foi realizada, em Brasília, em dezembro de 2001, a III Conferência Nacional de Saúde

Mental, repleta de itens aprovados que indicam a importância estratégica das ações de Saúde

Mental na comunidade. Durante a III Conferência, a OMS lança o documento “Relatório

Sobre a Saúde no Mundo 2001. Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”,

significativo estímulo para as ações comunitárias em Saúde Mental.

A Lei, os documentos e os encontros citados, de profissionais e usuários, convergem

para a definição da mudança do Modelo Assistencial em Saúde Mental.

A III Conferência, que teve uma das suas mesas dedicadas à Saúde Mental na Atenção

Básica, recomenda que a implantação da rede de serviços em Saúde Mental substitua

totalmente o Hospital Psiquiátrico, numa afirmação inédita para textos oficiais.

A III Conferência reforça o conceito de uma rede de assistência em Saúde Mental com

base territorial e ligada à rede geral de Saúde. Além dessa definição, a Plenária Final da III

Conferência aprovou diversos itens que reforçam a necessidade das ações de Saúde Mental na

Atenção Básica, mostrando que foi grande, no evento, a atenção para o tema.

De acordo com os itens aprovados, a atenção ao sofrimento mental nas ações básicas

de saúde garante o princípio da Integralidade, e a estratégia, para alcançar esse fim, é a

articulação da Saúde Mental com o PSF.

A III Conferência reforça a exigência de repasse financeiro para a Saúde Mental,

redirecionando a verba alocada nas Internações Psiquiátricas para as ações que a substituem.

Pela primeira vez, numa Conferência Nacional de Saúde Mental, a Saúde Mental na Atenção

Básica é citada, com destaque, como uma das modalidades de trabalho a serem contempladas

com o financiamento. Por exemplo, é sugerido que Municípios que tenham a Saúde Mental na

Atenção Básica recebam incentivo mensal, sem redução de outras dotações da Saúde Mental.

O documento do Ministério da Saúde, “Proposta Preliminar. Plano de Inclusão de

Ações de Saúde Mental na Atenção Básica”, base de discussão para a “Oficina de Trabalho

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197

para Discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção

Básica”, é uma importante declaração de intenções da esfera Federal do SUS, trazendo

definições básicas.

A opção pela mudança do Modelo Assistencial é reforçada, estando presentes os

conceitos de território, rede e integralidade como pilares da mudança.

O texto da “Proposta Preliminar” define como função da Equipe de Saúde Mental na

Atenção Básica fornecer supervisão às Equipes de PACS e PSF. Nas discussões e conclusões

da “Oficina” esta diretriz foi ampliada, mudando significativamente o teor das tarefas a serem

desenvolvidas. Não apenas supervisão, mas trabalho conjunto, responsabilidade mútua. Na

prática, o que temos visto são trabalhos que optam por uma ou outra forma de agir e outros

que associam as duas possibilidades. Na nossa experiência, o trabalho conjunto deve ser a

meta a ser alcançada logo que possível.

No trabalho conjunto Saúde Mental/PACS-PSF, com as ações sendo praticadas pelos

dois grupos de profissionais, fica estabelecido que a entrada da Saúde Mental na Atenção

Básica nem é uma prática de supervisão, para que os profissionais da base executem melhor

as tarefas, nem é um posto avançado, comunitário, do Ambulatório de Saúde Mental. Esta é

uma fértil conclusão da “Oficina”: o trabalho deve ser conjunto.

As etapas que faziam parte do cronograma firmado na “Proposta Preliminar” não

foram totalmente concretizadas, ficando a iniciativa da inserção da Saúde Mental na Atenção

Básica por conta do empreendimento dos municípios. Tal fato causa dificuldades e atrasos,

levando-se em consideração o ineditismo da proposta para a maioria dos profissionais de

Saúde Mental e a falta de informação dos Coordenadores Municipais de Saúde Mental e de

PACS/PSF a respeito do assunto. Portanto, as ações do Ministério da Saúde e das Secretarias

Estaduais de Saúde são fundamentais e urgentes, para induzir práticas de saúde que

apresentam resultados rápidos, com impacto nos indicadores.

A questão dos resultados das ações de Saúde Mental na Atenção Básica abre um

interessante campo de pesquisa. Poderá ser pesquisado, por exemplo, um conjunto de

indicadores numa região onde já exista o PSF, de preferência já há algum tempo, mas que

ainda não tenha ações de Saúde Mental da forma que estamos desenvolvendo. Depois da

implantação das ações de Saúde Mental, a coleta dos dados deverá ser repetida, mais de uma

vez, ao longo do tempo, com comparação para efeitos de avaliar os resultados.

A “Oficina de Trabalho para Discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de

Saúde Mental na Atenção Básica” chegou a conclusões em relação à prática das ações da

Saúde Mental na Atenção Básica que passaram à condição de diretrizes. Dentre elas

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198

destacamos: a necessidade do trabalho conjunto entre as Equipes de Saúde Mental e de

PACS/PSF, com substituição da referência/contra-referência por co-responsabilidade e

trabalho em rede; a quebra dos especialismos; a necessidade de inserir o trabalho da Saúde

Mental na Atenção Básica em toda a rede articulada de cuidados em Saúde e em Saúde

Mental; a capacitação mútua como base do trabalho; a mobilização de recursos da

comunidade até então não ativados pelos serviços de saúde; a mobilização da comunidade

para a discussão dos problemas de Saúde Mental e seu enfrentamento; a abordagem ao

adolescente e ao idoso; a necessidade de aproximação e possível intervenção no problema da

violência urbana e doméstica.

A Oficina dedicou-se ao controvertido tema da proporção entre o número de

profissionais de Saúde Mental e Equipes da Atenção Básica. Os Grupos de Trabalho

recomendaram que cada Equipe de Saúde Mental, composta de quatro profissionais, trabalhe

com um número entre 8 e 10 Equipes de PSF. Em 2003, o Ministério da Saúde já abaixou

essa proporção para de 6 a 9 Equipes de PSF para cada Equipe de Saúde Mental. Na nossa

experiência, essas proporções são excessivas, podendo comprometer os resultados que

pretendemos alcançar.

Não se trata apenas de capacitar as Equipes de PSF, para que “ajudem” o Programa de

Saúde Mental a cumprir as suas funções. Trata-se de mudar toda uma visão a respeito do

lugar do “mental”, mudar o Modelo Assistencial em Saúde Mental, fomentar a discussão e a

articulação comunitária a respeito do sofrimento mental, apoiar as Equipes de Saúde da

Família e PACS nas suas dificuldades institucionais e relacionais, acompanhar as pessoas

com transtornos mentais graves, promovendo os seus direitos e cidadania, atuar em Escolas e

outras instituições da comunidade, que em geral encaminham situações para a Saúde Mental.

Na nossa experiência, não devem passar de cinco os Módulos de PSF que uma Equipe

de Saúde Mental de quatro membros pode assumir. Chegamos a esse número, na prática, ao

alocar em apenas um Módulo toda uma Equipe de Saúde Mental e procedendo a uma lenta e

estudada expansão, na medida em que o território e as ações estavam sendo conhecidos e

compreendidos e que crescia a habilidade da Equipe de Saúde Mental para o trabalho.

A Oficina de Brasília entrou no tema do Financiamento e sugeriu que fosse destinado

um incentivo aos municípios que tivessem ações de Saúde Mental na Atenção Básica. Os

resultados seriam acompanhados por indicadores, que condicionariam os incentivos.

Como o próprio Ministério da Saúde define, as políticas públicas se materializam de

acordo com a decisão governamental de destinação de financiamento. Até o momento, a área

federal da Saúde não destinou verba própria para a Saúde Mental na Atenção Básica,

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199

conforme está proposto em documentos oficiais e do que consta de decisões de Conferências,

Oficinas e Encontros. Assim sendo, a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica tem ficado

por conta da iniciativa dos municípios que, na atual conjuntura, colocam-se na dependência

de verbas federais para novos serviços. A OMS aponta, como uma das causas da lentidão no

avanço dos trabalhos de Saúde Mental nas comunidades, a falta de repasse, para essas

práticas, do que está sendo economizado com o fechamento de leitos psiquiátricos.

A OMS recomenda que incentivos de financiamento sejam dirigidos para estimular o

surgimento de ações de Saúde Mental nas comunidades e que, mesmo depois que essas ações

estejam produzindo resultados, não sejam retirados todos os investimentos em trabalhos

institucionalizados. Nota-se, com essa orientação, a preocupação em investir “dinheiro novo”

nos Programas de Saúde Mental e com a possível desassistência em determinados momentos.

Temos, então, uma situação na qual ações de Saúde Mental com grande potencial de

resolubilidade e impacto sobre os indicadores, embasados por um conjunto de conceitos e

diretrizes que postos em prática, validam as expectativas positivas. Torna-se fundamental

incentivo financeiro mais efetivo. É necessário, também, maior divulgação do assunto entre

os próprios Profissionais de Saúde Mental e de PSF. As conclusões dos Encontros a respeito

do tema poderiam ser mais divulgadas, visto que o campo de atuação na Atenção Básica é

novidade para a maioria dos profissionais de Saúde Mental e os profissionais do PSF não

estão formados para a atuação nessa área. Concluímos, do exposto, que reuniões de

esclarecimento e capacitação que sensibilizem e instrumentem Coordenadores Municipais de

Saúde Mental e de PSF/PACS, a respeito do trabalho da Saúde Mental na Atenção Básica, é

estratégia essencial no momento.

Todos os encontros de profissionais de Saúde Mental que têm por objetivo discutir e

decidir a respeito das ações de Saúde Mental na Atenção Básica, bem como textos oficiais e

outros escritos, são unânimes em apontar a urgência de definir um conjunto de indicadores

que sirvam de pesquisa e balizamento para os nossos novos tempos. O número de internações

psiquiátricas, o número de ocorrências de violência, a quantidade de pessoas em uso de

benzodiazepínicos, o número de tentativas de suicídio, o número de pessoas usuárias de

álcool e outras drogas, são alguns dos dados que devem ser trabalhados para servir de base

para a criação de indicadores da Saúde Mental na Atenção Básica. Da Oficina de Brasília

surgiu uma interessante proposição, que é a de criar indicadores que informem a respeito da

criação e manutenção de trabalhos comunitários, territoriais.

A OMS, em 2001, apresentou, no seu “Relatório Sobre a Saúde no Mundo 2001.

Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”, justificativas epidemiológicas para a

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200

atenção especial que a questão da Saúde Mental deve ter. Estudos internacionais e também

nacionais, recentes, demonstram que cerca de 50% das pessoas que são atendidas em

unidades de Saúde, nas comunidades, apresentam alguma forma diagnosticável de transtorno

mental. Esse grande número de pessoas freqüentemente não tem seu problema reconhecido,

devido à falta de capacitação do pessoal que as atende, ou são encaminhadas a ambulatórios

de Saúde Mental abarrotados e onde, em geral, não vão ter as dimensões familiares e sociais

do sofrimento abordadas. Os problemas de Saúde Mental que não os considerados mais

graves, são a maioria nos atendimentos na Atenção Básica e constituem-se em importante

campo para capacitação e interconsulta, resultando em nova visão dos profissionais a respeito

do sofrimento mental.

A OMS, na publicação indicada acima, define que os problemas de Saúde Mental

devem ser abordados, preferencialmente, nas comunidades, onde deverão ser feitos o

atendimento às crises, o acompanhamento dos tratamentos e a reabilitação. Para esse fim, a

capacitação é citada como estratégia fundamental.

A OMS dá destaque especial à luta contra o preconceito e o estigma em relação às

pessoas que necessitam de tratamentos mentais, o que pode ser feito com o trabalho de

inserção na vida das comunidades das pessoas que apresentam essas necessidades.

A OMS afirma a necessidade de participação das pessoas assistidas, seus familiares e

população em geral, em todas as etapas da organização dos Programas de Saúde Mental na

comunidade. Trata-se de importante manifestação de intenções e uma diretriz. Mas apenas a

prática dirá de que forma essa participação é estimulada, visto que a população pode ser

chamada a participar de forma ativa ou passiva. O fator “participação popular” é um tema

constante de trabalhos que se dedicam a avaliar as ações de Saúde Mental na Atenção Básica,

cujo enfoque inicial teve aspecto eminentemente controlador. Como o controle é uma das

funções precípuas do Estado, devemos sempre ter presente o questionamento a respeito do

que predomina nas nossas ações: o controle ou a mobilização das comunidades?

O Relatório da OMS, ao levantar as possíveis causas da demora de os países adotarem

as ações de Saúde Mental nos cuidados primários de Saúde, adverte que essas práticas

colocam a Saúde Mental na agenda da população e não mais, apenas, na dos profissionais de

Saúde Mental. É uma grave afirmação.

Podemos, então, listar alguns dos motivos que fomos encontrando, ao longo da nossa

pesquisa, que podem explicar o adiamento que vem sendo observado na efetiva entrada da

Saúde Mental na Atenção Básica. Para cada um deles deve haver uma forma de solução, que

faça adiantar o processo de mudanças.

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1- O preventivismo foi a primeira proposta de prática coletiva de Saúde Mental no

Brasil, ainda apenas no campo da psiquiatria.

2- A formação dos quadros iniciais da reforma psiquiátrica se deu na transformação dos

hospícios, sendo os CAPS a sua seqüência lógica e não a comunidade.

3- A prioridade para os CAPS, em si mesma justificável, encobriu a visão de que práticas

mais simples e de mais rápida implantação, sem a necessidade de investimentos em

imóveis, mobiliário e material de consumo, podem trazer rápido impacto na

assistência e na mobilização social.

4- A formação dos profissionais de Saúde Mental para terapias individuais ou, no

máximo grupais, voltadas para a modificação individual, os impede de ver os

trabalhos comunitários como transformadores e como campo de trabalho.

5- Falhas nas formações dos Profissionais de Saúde Mental em política, sociologia,

antropologia, economia.

6- A falta de programas de Atenção Básica enraizados adiou a entrada da Saúde Mental

nas comunidades, nos inícios da Reforma Psiquiátrica.

7- Dificuldade dos profissionais de Saúde Mental em encarar a miséria e as difíceis

situações de vida da população.

8- Dificuldade dos profissionais de Saúde Mental para o trabalho em ambiente sem a

proteção institucional.

9- A falta de um movimento social forte e organizado.

10- A falta de definição de financiamento a partir do Ministério da Saúde.

11- Dificuldades no investimento próprio, em Saúde, dos Municípios.

Os diversos relatos de experiências de introdução de ações de Saúde Mental na

Atenção Básica têm alguns pontos em comum, que coincidem com a nossa prática. Depois de

superada, pelos profissionais da Atenção Básica, a primeira fase de preocupação com a

perspectiva de mais trabalho, há uma progressiva adesão, principalmente por parte dos ACS.

Com o desenrolar das ações conjuntas e a percepção de que, com intervenções simples

podemos obter respostas favoráveis, a adesão e o interesse aumentam. Ocorre, também, uma

percepção de que os profissionais de Saúde Mental podem ajudar a: resolver conflitos das

Equipes; acolher, discutir e tentar resolver dificuldades em relação à mobilização emocional

que surge com o contato com a dura realidade da população; auxiliar nas dificuldades no

relacionamento com a comunidade e na criação de espaços de discussão com os níveis

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202

superiores do PSF. Desde que esses temas sejam trabalhados e bem elaborados pela Equipe

de Saúde Mental, estas ações podem ser de utilidade numa parceria constante.

Com as repostas à capacitação das Equipes de Saúde Mental para atuar na Atenção

Básica apresentando bons resultados, com a adesão das Equipes de PACS/PSF às ações de

Saúde Mental (com repercussões na assistência, mobilização comunitária e relacionamento de

Equipes), ficamos com a tarefa urgente de pensar e executar a capacitação em larga escala.

Textos recentes do Ministério da Saúde estimulam a formação de Equipes de Saúde Mental

para capacitação e ação conjunta com as Equipes de PACS/PSF.

Encontramos, na prática, algumas variações na forma de praticar a capacitação em

larga escala e, conseqüentemente, a introdução das ações de Saúde Mental na Atenção Básica.

O momento nos exige união de esforços, e que cada forma de praticar as capacitações e ações

possa dialogar com as outras.

O que está proposto é a mudança do Modelo Assistencial em Saúde e em Saúde

Mental. Dentro dessa concepção, e de acordo com diversos argumentos ao longo desta

monografia, não estamos tratando de capacitar Equipes da Atenção Básica para “ajudar” a

assistência à Saúde Mental. A pretensão é muito mais ambiciosa. Trata-se de mudar a forma

de lidar com o que historicamente foi abordado de modo dividido: corpo, mente e mundo

social. Trata-se, também, de uma aproximação com a loucura e outros fenômenos humanos

ditos “mentais” radicalmente oposta à exclusão. Portanto, a forma de capacitação que pode

produzir resultados mais consistentes é aquela que tem as características de ser em serviço,

constante e fornecida por Equipe responsável pela atuação conjunta na base.

As capacitações que são praticadas sem essas características ajudam, em muito, o

avanço das ações da Saúde Mental na Atenção Básica e a integração com seus Programas,

mas me parecem etapas preparatórias para a efetiva entrada das ações conjuntas.

Temos, de um lado, Coordenadores Municipais de Saúde Mental que, em grande

parte, ainda não despertaram para a potencialidade das ações de Saúde Mental na Atenção

Básica e não conhecem com detalhes a filosofia do PACS e do PSF. Por outro lado, temos os

Coordenadores dos Programas de Atenção Básica que, na sua maioria, não tem suficientes

esclarecimentos a respeito da Reforma Psiquiátrica, suas práticas e suas propostas atuais. Essa

desinformação permanece nas bases, nos profissionais dos dois lados que pretendemos

aproximar.

Uma forma de potencializar a entrada das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica

é a proposta, feita do início de 2003, pelo Grupo de Trabalho de Saúde Mental do Pólo de

Capacitação/Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro. De acordo com esse texto, o estímulo às

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203

ações começaria pela reunião, principalmente, de Coordenadores Municipais de Saúde Mental

e de PACS/PSF (e seus supervisores), com a Equipe de Capacitação, divididos por regiões do

Estado. Os desdobramentos desse primeiro momento seriam reuniões periódicas de avaliação

das ações desenvolvidas nos municípios, onde os Coordenadores e Supervisores

desenvolveriam as tarefas necessárias para a entrada da Saúde Mental na Atenção Básica. A

comunicação por correio eletrônico, nos intervalos entre os encontros, daria continuidade ao

trabalho, com a Equipe de Capacitação ficando disponível para consultas.

Do diálogo entre as várias formas de trabalhar, todas frutíferas, que pesquisamos ao

longo da monografia, sairão os consensos necessários às urgentes tarefas com que nos

deparamos na atual situação da Saúde no país.

Partindo de trabalhos dispersos, em alguns Estados, chegamos a um conjunto de

conceitos, diretrizes e experiências bem sucedidas que formam uma base para as capacitações

e ações da Saúde Mental na Atenção Básica.

Enquanto definição oficial, temos a inclusão das ações de Saúde Mental na Atenção

Básica, em terceiro lugar, na lista de diretrizes do Ministério da Saúde para 2004, logo a

seguir da redução do número de leitos psiquiátricos e a expansão dos CAPS. Trata-se se

importante manifestação de prioridade.

Percorremos, ao longo desta monografia, experiências recentes de introdução da

Saúde Mental na Atenção Básica, suas origens, seus conceitos, textos oficiais, resultados e

questionamentos. O que foi encontrado na pesquisa reforça as bases para ações de Saúde

Mental que, para além da assistência, sejam práticas de mobilização social.

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362.22 PINTO, Julio Cesar Silveira Gomes

P 659 s A saúde mental na atenção básica./ Julio Cesar Silveira Gomes

Pinto – Macaé: Universidade Estácio de Sá, 2004.

210 f.

Bibliografia . 204-10

Monografia do curso de Pós Graduação em Saúde Pública.

Universidade Estácio de Sá/Macaé; 2004.

1- Psiquiatria 2- Saúde mental 3- Programa de Saúde da Família