sartre ontologia e historicidade

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    Partamos do concreto. O concreto, dir Sartre, o homem no mundocom esta unio especfica do homem ao mundo que Heidegger, por exemplo,chama ser-no-mundo. Interrogar a experincia, como Kant, sobre suas con-dies de possibilidade ou efetuar uma reduo fenomenolgica, como Husserl,que reduzir o mundo ao estado de correlato noemtico da conscincia, comear deliberadamente pelo abstrato1 . A afirmao, com que se abre aprimeira parte de O Ser e o Nada, nos lana, de imediato, numa vertente dafilosofia que sublinha a porosidade da relao homem-mundo.

    Sartre, Heidegger e por que no? Nietzsche. Em Nietzsche, a tentativa deacabar com a primazia da subjetividade conduz naturalizao do homem.Se o mundo no uma criao divina e o homem no foi feito imagem esemelhana de Deus, a relao entre eles tem de mudar: o que se passa nohomem e o que se passa no mundo no pode ser incomensurvel. EmHeidegger, a crtica da metafsica da presena exige uma transformao radi-cal da relao sujeito-objeto. A analtica da constituio do Dasein interroga

    essa familiaridade imediata ao mundo, essa pr-compreenso de si e do mundo.Em Sartre, contra as construes abstratas da teoria do conhecimento, consti-tui-se a filosofia do concreto. Todos eles, de uma forma ou de outra, acabampor se haver com a pergunta kantiana: Was ist der Mensch?De uma forma oude outra, todos eles recusam o primado do conhecimento.

    ScarlettMa

    rton*

    Sartre: ontologia e historicidade

    * Professora Titular do Departamento de Filosofia da USP.1 Sartre. Ltre et le Nant. Paris: Gallimard, 1973, p.38; em portugus, O Ser e o Nada. Trad. Paulo

    Perdigo. Petrpolis: Vozes, 5a ed., 1997, p.43-4. Neste caso, e em todos os demais, de minha

    responsabilidade a traduo das citaes. Em outra passagem, Sartre esclarece: Compreendamesse ser-em no sentido de movimento. Ser explodir no mundo, partir de um nada demundo e de conscincia para de repente se-explodir-conscincia-no-mundo (Une idefondamentale de la phnomnologie de Husserl: lintentionnalit. In: Situations I. Paris: Gallimard,1947, p.31).

    o que nos faz pensar n021, maio de 2007

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    bem verdade que Kant contribuiu para desvencilhar a metafsicacartesiana do substancialismo herdado de uma larga tradio. Ao tratar dapsicologia racional, ateve-se ao fato de Descartes deduzir do eu penso asubstancialidade da alma, sua unidade e espiritualidade. E, contra ele, sus-tentou ser impossvel concluir dessa proposio que o eu existe como objetoreal. No seu entender, o eu penso era um ato de espontaneidade que prece-dia todos os atos do conhecimento, uma apercepo pura e originria queacompanhava todas as representaes empricas. Nele se exprimia a unidadeda conscincia do eu, unidade que se podia chamar de transcendental porque

    possibilitava o conhecimento. bem verdade que Husserl concorreu paralanar a conscincia no mundo. Ao tratar do psicologismo, ressaltou o fato deele identificar sujeito psicolgico e sujeito do conhecimento. Transpondo paraa eidtica uma idia central da psicologia de Brentano, entendeu que todoobjeto s objeto para uma conscincia. A intencionalidade, com suas estru-turas notico-noemticas, apresentava o mundo enquanto correlato dasvivncias puras do eu. Ao descartar a atitude natural que punha espontanea-mente a existncia do objeto, a reduo fenomenolgica revelava o objetoenquanto visado e convertia assim todo dado em fenmeno.

    Na via por eles aberta, o pensamento moderno reduziu o existente s suasaparies, substituindo pelo monismo do fenmeno diversos dualismos,como os de interior e exterior, essncia e aparncia, ato e potncia. Ao tratarda supresso do primeiro deles, ao mostrar que as aparies que manifestamo existente remetem to-somente a outras aparies, Sartre exemplifica: Afora, por exemplo, no um conatus metafsico e de espcie desconhecidaque se mascararia atrs de seus efeitos (aceleraes, desvios, etc.): ela oconjunto desses efeitos2 . E eis que na primeira pgina de O Ser e o Nadasurge o mesmo exemplo que se encontra na Genealogia da Moral3 . Nessestextos, os autores ressaltam a impossibilidade de distinguir a fora e seusefeitos. No tem sentido dizer que ela repousa em algo que lhe permite mani-festar-se nem que se desencadeia a partir de algo que a impulsiona. A foranada mais do que um efetivar-se. Para atacar a coisa-em-si, Sartre lana mo

    2 Ltre et le Nant, p.11; em portugus, O Ser e o Nada, p.15.3 Cf. Werke. Kritische Studienausgabe, edio organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari.

    Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1967/ 1978. V.5, Genealogia da Moral, Primeira Dissertao,

    13, onde se l: Um quantum de fora corresponde ao mesmo quantum de impulso, vontade,efetivao, ou melhor, nada mais do que precisamente esse impulso, essa vontade, essa efetivaoe s pode parecer de outro modo por causa da seduo da linguagem (e dos erros fundamentaisda razo nela sedimentados), que compreende equivocando-se toda efetivao como con-dicionada por algo que se efetiva, por um sujeito.

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    Entendido como um todo independente, unitrio e idntico a si mesmo, o euno passa de embuste.Tanto quanto Nietzsche, Sartre se distancia do cogito cartesiano e do sujei-

    to fundador da analtica da finitude. Nem identidade sob as diferenas queDescartes exprimia na evidncia do cogito dele fazendo uma coisa pensante.Nem unidade formal de um sujeito transcendental, que se imporia a todocontedo emprico. Mas tampouco se trata, para Sartre, do eu transcendentalda fenomenologia ou do inconsciente da psicanlise. Nem um sujeito unit-rio original, plo unificador das vivncias. Nem um sujeito enquanto lugar de

    conflito de foras. Pois, tanto o inconsciente freudiano quanto o eutranscendental de Husserl no poderiam pertencer ao domnio do para-si;assim concebidos, eles seriam muito mais um em-si. E que se diga entre pa-rnteses: se de Nietzsche se tratasse, Sartre poderia muito bem dirigir crticade igual teor teoria dos impulsos. Em que pese a opo de seu autor pelaenergtica, no haveria nela restos de um coisismo, resqucios da ilusosubstancialista?

    Da perspectiva sartriana, os filsofos tradicionais da conscincia e os quedescentram o sujeito a partir das estruturas do inconsciente trapaceiam de

    forma igual e simtrica. Se uns substancializam a conscincia, outros reificamo inconsciente. Rejeitando a coisificao psquica, em todas as suas formas,Sartre entende que a conscincia no pode nunca apreender-se, porque notem ser para apreender. Tanto que ao teatro psicolgico contrape o teatrode situaes. Em vez de trabalhar com personagens complexos mas inteiros,que agem e reagem uns em relao aos outros, pe em cena personagens quenada mais so do que as escolhas que fazem, as sadas que inventam para simesmos. E assim nos desvencilha da vida interior.

    No se trata, pois, nem de identificar conscincia e conhecimento nem dereduzir o campo de conscincia conscincia reflexiva. No primeiro caso, naconscincia se reintroduziria o dualismo sujeito-objeto; no ltimo, dela seexpulsaria o no-racional. Ao afirmar a irredutibilidade do existir ao conhecer,Sartre torna a existncia cmplice das figuras do inconcebvel: a contingn-cia, o acaso, o injustificvel, o absurdo. E ao afirmar a primazia da conscinciano-reflexiva sobre a reflexo, atribui ao cogito uma dimenso existencial quese d num plano pr-reflexivo. Nem conhecimento nem reflexividade, a cons-cincia antes de mais nada aberta ao mundo, pois, sem o mundo, ela no

    passaria de realidade evanescente.Na introduo a O Ser e o Nada, Sartre traz cena o que constitui, a seu

    ver, a pedra angular de seu sistema: a prova ontolgica. A conscincia cons-

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    cincia de alguma coisa: isso significa que a transcendncia estruturaconstitutiva da conscincia; quer dizer que a conscincia nasce voltada paraum ser que no ela. isso que chamamos de prova ontolgica6. Por recu-sar-se a ser substncia, a conscincia sempre visada de algo. Por no existirem estado puro, ela precisa lanar-se no mundo para produzir-se. Por aparecer asi mesma nesse projetar-se, para-si. Porque s existe na medida em queaparece a si prpria, levada num movimento em direo ao que no . Porquese constitui como transcendncia, implica em seu ser um ser no consciente.Porque se define em relao a um ser que no ela, exige um ser transfenomenal

    que seja em si.Plenitude de ser, identidade perfeita, realidade macia e opaca, assim o

    em-si. em face do em-si que se define o para-si. Tudo se passa como se oem-si se degradasse e uma fissura impalpvel se intrometesse no ser. Por serpresena a si, o para-si no inteiramente si. Por estar sempre separado de si,no pode coincidir com si mesmo. nessa distncia em relao a si que opara-si lanado no mundo. Desamparado e abandonado, ele se descobrefacticidade, pura contingncia. Inteiramente gratuito, sabe tre de trop. Namedida em que no o em-si, o para-si se determina como falta de ser. Uma

    vez que se acha imediatamente ligado com o ser que lhe falta, capta-se a siprprio como fracasso. busca incansvel de unidade com o em-si; buscapermanente de perfeita coincidncia com si mesmo. Transcendncia, o para-si se lana em direo aos possveis que ele . Os possveis no so purapresena ao para-si, mas uma presena-ausncia; enquanto tal, comportamum grau de nadificao e, por conseguinte, trazem o mundo como correlatoem-si do nada. Na relao com os seus possveis, o para-si desvela o ser comomundo e o mundo aparece como possibilidade que ele no pode realizar.Com o circuito da ipseidade, a relao original da conscincia e do ser efetua-se sob o signo da diviso.

    Assim o ser da conscincia se define como no sendo o que e sendo oque no . Ele no o que , por transcender seu passado que no o presen-te; ao mesmo tempo ele o que no , por ser um futuro indeterminado queno o presente. No ser o que e ser o que no constituem uma negaointerna, que se exprime como processo de nadificao. Desempenhando pa-pel estratgico, a anlise da m-f tem por objetivo mostrar que o para-si no jamais o que ele . Supondo a unidade de uma conscincia que se faz outra

    disso estando ciente, a m-f tem por ato primeiro o de fugir daquilo de que

    6 Ltre et le Nant, p.28; em portugus, O Ser e o Nada, p.34.

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    fenda, dilaceramento e exploso. Numa palavra, uma conscincia aberta aomundo e s suas prprias contradies. Ontologia da no-coincidncia aontologia sartriana; ela no cessa de sublinhar a estranheza, a fundamentalinadequao do homem ao mundo.

    A condio do homem: ontologia e historicidade. Historicidade que, seentendida como histria, poderia ser a do prprio sujeito. Sujeito declaradomorto nos anos 60/70. Opondo-se fenomenologia e filosofia do concreto,o estruturalismo vem imprimir s cincias humanas sofisticada metodologiatomada de emprstimo lingstica. Vem substituir o sentido a ser constitudo

    pela idia de um sentido produzido. Vem insistir nos cdigos que, indepen-dentes dos emissores, precedem as mensagens. Recorrendo a cortes e recortes,gramticas e signos, procura escapar do que julga serem as iluses infantis dovivido8 . E assim privilegia o sistema s expensas do sujeito, a estrutura emprejuzo da histria, a antropologia em detrimento da filosofia.

    vaga estruturalista, Sartre responde que colocar-se do ponto de vista daestrutura pr-se sempre na exterioridade. Ao buscar apreender o inerte e ofixo, ao procurar ter acesso ao j constitudo, a anlise estrutural ignora ahistria que produz as estruturas. Mas justamente a histria que deve estar

    em primeiro plano; ela o cimento que liga as disciplinas auxiliares (sociolo-gia, psicanlise e, indiretamente, etnologia), depurando-as de seu positivismoconstitutivo. Entendendo que, embora distintos, o histrico e o estrutural seconjugam, Sartre prope-se a constituir uma antropologia que integra o es-truturalismo como um momento analtico do processo dialtico. Desse pontode vista, ele ultrapassa, de modo imediato e radical, a proposta estruturalista9 . E,nessa proposta, denuncia antes de mais nada a recusa da histria e, para almdela, a recusa do marxismo10 .

    Sujeito ainda desaparecido nos anos 70/80. Afastando-se de modo decidi-do do estruturalismo, que, ao reivindicar a objetividade, permanecerapositivista, as chamadas filosofias do desejo afirmam que este no provm dafalta, mas potncia positiva, criadora; no se dirige a um objeto particular

    8 Sobre a cena intelectual francesa nos anos 60, cf. Gutman, Claude. Lavant-mai desphilosophes. In: Brochier, J.J. et allii. Les Dieux dans la cuisine. Paris: Aubier, 1978, p.23-32.

    9 Cf. a propsito Grisoni, Dominique. Sartre: de la structure lhistoire. In: Grisoni, Dominique(org.). Politiques de la Philosophie. Paris: Grasset, 1976, p.187-199.

    10 Perguntado sobre o que pensa do estruturalismo, Sartre responde: Para l da histria, bem

    entendido, o marxismo que visado. Trata-se de constituir uma ideologia nova, a ltimabarragem que a burguesia pode ainda erguer contra Marx. E, logo adiante, esclarece: a estru-tura s se nos impe na medida em que feita por outros. Para compreender como ela se faz, h,pois, que reintroduzir a praxis enquantoprocessus totalizador. A anlise estrutural deveria cul-minar numa compreenso dialtica (Coelho, Eduardo Prado (org.). Estruturalismo. Antologia de

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    nem visa a algo preciso, mas, desorientado, agencia singularidades para pro-duzir novas singularidades, sem se preocupar em satisfazer algum ou preen-cher um vazio11 . dialtica e s figuras do negativo, tais filosofias opem umpensamento afirmativo. E, se criticam a fenomenologia e o existencialismo,no por eles tudo vincularem ao vivido, mas sim por privilegiarem um vivi-do culpado, sofredor, miservel. Assim que angstia sartriana contrapemas paixes alegres, pois no se trata apenas de desfazer-se da conscincia; preciso ainda livrar-se da culpa e da m conscincia. E, nessa empreitada, queseja dito em adendo, celebram em Nietzsche o filsofo da afirmao jubilosa12 ,

    esquecendo talvez que o amor fati antes de mais nada a aceitao incondici-onal do sofrimento como parte integrante da existncia.

    s filosofias do desejo, Sartre responderia que, pouco importa sedescentrado ou no, se mquina desejante ou lugar de conflito de foras, osujeito se pe a partir do momento em que se pe o esforo para ultrapassaruma situao determinada. Destarte, o sujeito ou a subjetividade, se se prefe-rir, aparece como um empreendimento que ao mesmo tempo remete para simesmo e se define atravs de suapraxis. o homem enquanto sujeito de umapraxis, o homem concreto, o homem que age e vive que est por trs da hist-

    ria, de sorte que o descrdito do sujeito , em ltima anlise, o descrdito dahistria13 .

    Sujeito que passa a ser resgatado nos anos 80/90. Agora, ele parece ressus-citar junto com um certo humanismo; o direito e a tica, em nome da cons-truo da pessoa ou da responsabilidade, exigem que reaparea. A correnteque apregoa o retorno ao sujeito surge, ao mesmo tempo, como reao aopensamento sartriano e retomada pr-kojeviana do neo-kantismo. Na esteirada leitura de Kojve, que nos anos 30 sublinhava que, no pensamentohegeliano, a razo passava pela brutalidade e no pela discusso, Sartre fez daviolncia uma potncia libertadora. Ao idealismo universitrio do incio do

    textos tericos. Lisboa: Portuglia, [s.d.], respectivamente p.126 e p.128).11 Cf. a respeito Grisoni, Dominique. Les onomatopes du dsir. In: Brochier, J.J. et allii. Les

    Dieux dans la cuisine. Paris: Aubier, 1978, p.137-150.12 Cf. Pinto, Louis. Les Neveux de Zarathoustra. La rception de Nietzsche en France. Paris: Seuil,

    1995, em particular p.158-176; Le Rider, Jacques. Nietzsche en France de la fin du XIXe. Sicle autemps prsent. Paris: Presses universitaires de France, 1999, em particular p.212-213; e o meuprprio Deleuze et son ombre. In: Alliez, ric (org.). Gilles Deleuze, une vie philosophique. Paris

    Le Plessis Robinson: Institut Synthlabo, 1998, p.233-242.13 Trata-se sempre de pensar a favor ou contra a histria, declara Sartre na entrevista acimamencionada. Se se admite, como eu, que o movimento histrico uma totalizao perptua,que cada homem a todo momento totalizador e totalizado, a filosofia representa o esforo dohomem para se apoderar do sentido da totalizao (Coelho, Eduardo Prado (org.). Estruturalis-

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    sculo XX, que, mergulhado na abstrao, ignorava a diferena irredutvelentre o mundo do soberano bem conforme razo e o mundo real avesso srazes, ele contraps a filosofia do concreto14. Tendo no horizonte a questodos direitos humanos, trata-se agora de abraar o modelo de uma sociedadedas naes e sustentar que tudo deve convergir para uma espcie de harmo-nia final15 .

    Ao novo humanismo com o seu retorno ao sujeito, Sartre poderia muitobem responder que, em nosso tempo, no h como permanecer atrelado ra-zo analtica e afirmar, de forma taxativa como faz na Crtica da Razo Dialtica,

    que o Homem no existe: h pessoas que se definem inteiramente pela socie-dade a que pertencem e pelo movimento histrico que as arrebata16 . Ou ainda,situando essa afirmao, poderia dizer que o democrata no um bom aliadodos judeus contra o antisemitismo, porque funda seu respeito na homogeneidadeda idia de homem. Sem levar em conta as diferenas, essa concepo, produtoda burguesia, no passa de um pseudo-universal.

    No confronto com as sucessivas vagas, sempre histria que Sartre re-corre ou, ao menos, poderia recorrer para delas demarcar-se. Mas no poreste caminho, o das desventuras do sujeito, que enveredo.

    Historicidade, que, se ainda vista enquanto histria, poderia ser a das po-sies filosficas do prprio Sartre. corrente sustentar que elas no passampor alteraes substanciais entre 1934 e 1943, mas sofrem profundas mudan-as entre 1943 e 1960. Se O Ser e o Nada viria aprofundar posies tomadasemA Transcendncia do Ego, por exemplo, ele seria em grande parte descreditadopela Crtica da Razo Dialtica. que em 1943 se estaria diante de uma con-cepo existencialista do homem, que faz do indivduo o senhor do seu pr-prio destino, enquanto em 1960 se testemunharia a superioridade da visomarxista do homem. Mas h quem argumente que lhomme historique no apenas o produto de determinaes histricas, mas tambm o agente livre,partcipe e criador da histria.

    mo. Antologia de textos tericos, p.136).14 Cf. a respeito Descombes, Vincent. Le mme et lautre. Paris: Minuit, 1979, em particular

    p.28-33.15 Cf. por exemplo Renault, Alain. Sartre. Le dernier philosophe. Paris: Grasset, 1993. Num

    livro anterior, Renault e Ferry declaram: Se no podemos hoje (isto evidente, mas preciso insistir, tanto que a crtica previsvel) simplesmente retornar aos valores dafilosofia das Luzes, igualmente impossvel no nos referir a eles e fazer, como tenta o

    pensamento 68, tabula rasa desta tradio (Ferry, Luc e Renault, Alain. Pensamento 68.Trad. Roberto Markenson e Nelci Gonalves. So Paulo: Ensaio, 1988, p.22). A citaodesta passagem tem sua razo de ser. Nela os autores reconhecem que lhes importa ovnculo com o iderio iluminista; bem mais, desqualificam a crtica (que, alis, julgamprevisvel) a essa atitude. Contudo, no por mostrar-se anacrnica que a atitude seria

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    um trabalho, que viria alinhavar, articular e expor seqencialmente seus prin-cipais conceitos? Retraar o seu percurso intelectual e as etapas de elaboraode suas idias talvez s pudesse ganhar pleno sentido, se levasse em conta otempo em que se desenvolvem as noes e aquilo de que elas tratam19 . Masno , por certo, por este caminho, o das aventuras do pensamento sartriano,que me arrisco.

    Outra a via que tomo. Pois, a historicidade no ainda a histria. Entend-la enquanto histria implica, num certo sentido, conceber o tempo de maneiraexterior e objetiva, ou seja, como um continuum em que o ser humano se

    acharia inserido e pelo qual se veria condicionado. Assim se falsificaria o para-si, convertendo-o num em-si. S resta uma alternativa: a de conceber o tempocomo temporalidade. A Temporalidade no um tempo universal que con-tenha todos os seres e, em particular, as realidades humanas, afirma Sartre.No tampouco uma lei de desenvolvimento que se imponha de fora ao ser.Tambm no o ser, mas sim a intra-estrutura de ser que sua prprianadificao, ou seja, o modo de serprprio ao ser-para-si. O para-si o ser quetem-de-ser seu ser na forma diasprica da temporalidade20 . A descriofenomenolgica do passado, do presente e do futuro revela que as trs dimen-

    ses temporais so estruturas secundrias da temporalidade e que esta aestrutura totalitria que as organiza. Portanto, enquanto modo de ser datemporalidade, a historicidade integra a estrutura da existncia humana e,nesse sentido, possibilita a histria.

    Toda ao humana intencional, assim como intencional o para-si emseu ser mesmo. Ao e conscincia desvelam o nada. pelo homem que onada vem ao mundo; ser para o para-si nadificar o em-si que ele . A liber-dade nada mais do que essa nadificao. No se trata de livrar-se das paixesgraas a um suposto poder emancipador da razo nem de libertar-se da aoinexorvel do destino. No se trata tampouco de primeiro ser para ser livreem seguida. Uma vez que o nada constitui o para-si, este no pode ser; eletem de fazer-se sem cessar. Absolutamente indeterminado, o para-si em seuser liberdade. Agir livremente no consiste, pois, em decidir conforme m-veis ou motivos, mesmo porque entre os motivos, os mveis e o ato sempre seinsinua o nada, marcando uma ruptura entre eles e uma descontinuidade natemporalidade. Dando-se para alm de todas as razes, o ato livre absurdo.

    Pittsburg: Duquesne University Press, 1980, p.225).18 LIdiot de la Famille. Paris: Gallimard, 1971, v.II, p.1811.19 A exemplo de O Idiota da Famlia. Gustave Flaubert de 1821 a 1857, viria a lume, ento,

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    Nem liberdade formal e abstrata nem reduo a condies de existncia.S h liberdade em situao e s h situao pela liberdade. Enquanto ser-em-situao, o para-si se escolhe no no seu ser mas na sua maneira de ser. impossvel, pois, considerar uma situao desde fora. Nem subjetiva nemobjetiva, ela , nas palavras de Sartre, as prprias coisas e eu mesmo entre ascoisas ou, se se quiser, uma relao de serentre um para-si e o em-si por elenadificado21 . A um s tempo, a situao exprime o condicionamento e a suanadificao graas contingncia, as condies de existncia e a capacidadede romper com elas graas liberdade. Se o para-si nada mais do que sua

    situao, da resulta que o ser-em-situao define a realidade-humana, dandoconta tanto de seu ser-acomo de seu ser-para-alm. A realidade humana ,com efeito, o ser que sempre para-alm de seu ser-a. E a situao a totalidadeorganizada do ser-a interpretada e vivida no e pelo ser-para-alm22 . E, umavez que o para-si no persegue fins fundamentais abstratos e universais, asituao apresenta-se como eminentemente concreta. No existe ponto devista privilegiado que permita comparar situaes diferentes; cada um s podeviver uma situao: a sua.

    Mas por que no fazer a noo de situao voltar-se sobre a prpria filoso-

    fia sartriana e nela operar? justamente o que, num lance genial, propeGilles Deleuze. A unidade e originalidade do pensamento de Sartre devem-se ao funcionamento dos conceitos, cuja dinmica, qualquer que seja o dom-nio explorado, no se separa da situao: nessa relao interna que eles tmum sentido23 . Postos em situao, os conceitos convertem-se em noes.No por acaso que, dentre as noes, a de situao privilegiada. Elementoque tudo transforma, ela permite que as outras noes ganhem sentido, pondo mostra o seu funcionamento. Se as noes sartrianas surgem como enuncia-dos de situaes, so as situaes que propiciam o agenciamento das noes.

    Noes e situaes encontram-se numa relao dinmica, que uma fala deSartre poderia vir a ilustrar: No tento proteger minha vida aprs coup comminha filosofia, o que seria covarde, nem conformar minha vida minhafilosofia, o que seria pedante, mas vraiment vie et philo ne font plus quun25 .

    um Jean-Paul Sartre de 1934 a 1960.20 Ltre et le Nant, p.188; em portugus, O Ser e o Nada, p.199.21 Ltre et le Nant, p.633-34; em portugus, O Ser e o Nada, p.672.22 Ltre et le Nant, p.634; em portugus, O Ser e o Nada, p.673.23 Colombel, Jeannette. Sartre ou le Parti de vivre. Paris: Grasset, 1981, p.17; Colombel, Jeannette.

    Jean-Paul Sartre. Un homme en situations. Paris: Librairie Gnrale Franaise, 1985, p.12). Apassagem citada encontra-se em ambos os livros. No primeiro deles, faz parte do corpo dotexto, sem qualquer referncia a Deleuze; no ltimo, aparece enquanto citao, que vem prece-dida destas linhas: Gilles Deleuze exprime o alcance dessa problemtica nesse belo texto queme ofereceu para o meu livro Sartre ou le Parti de vivre (p.12).

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    Esta frase, bem livremente, eu traduziria por outra: reflexo filosfica e vivnciaso indissociveis.Em seus ltimos escritos, Sartre promete elaborar uma teoria da vivncia,

    mas no chega a faz-lo25 . Nem por isso a noo de vivido deixa de ter podereficiente. Talvez seja justamente por seu trabalho sofrer interrupes, mos-trar-se incompleto, permanecer inconcluso26 que seu pensar seja to contun-dente. Pois, em situao, ele escreve para a sua poca, no para permanecernela encerrado ou passivamente refletir sobre ela, mas para super-la. Quantomais se entranha na densidade carnal da prpria poca, assim acredita, mais

    se faz coincidir o presente concreto e o futuro vivo. E 1943 no 1972, apoca de O Ser e o Nada no certamente a de O Idiota da Famlia.

    Entre o final dos anos 60 e o incio dos 70, a noo de vivido vem incor-porar, de maneira feliz a meu ver, a de conscincia. O que chamo de vivido,afirma Sartre, precisamente o conjunto do processo dialtico da vida ps-quica, um processo que permanece necessariamente opaco a si mesmo, porque uma constante totalizao, e uma totalizao que no pode ser conscientedaquilo que ela . Pode-se, com efeito, ser consciente de uma totalizao ex-terior, mas no de uma totalizao que totaliza igualmente a conscincia. Nes-

    se sentido, o vivido sempre suscetvel de compreenso, jamais de conheci-mento27 . Enlameando a conscincia, transparente e lcida, em suas guasobscuras, o vivido leva a reconhecer que ela se rarefaz; em sua opacidade,induz a notar que h algo aqum dela e a ela irredutvel. Sublinha, de formaparadoxal, a impossibilidade de o sujeito ser plenamente auto-consciente e,de igual modo, a de conhecer-se por inteiro. Pois, o vivido, dir Sartre, nodesigna nem os refgios do pr-consciente, nem o inconsciente, nem o cons-ciente, mas o terreno em que o indivduo constantemente submergido porsi mesmo, por suas prprias riquezas28 .

    24 Lettres au Castor et quelques autres. Paris: Gallimard, 1983, v.II, p.39. Em outra parte, aotratar do universal-singular, retomando uma passagem de Alphonse de Waelhens, Sartreescreve: Waelhens diz muito bem: Deixando de ser uma explicao distncia, a filosofia(com Kierkegaard, Nietzsche e Bergson) pretende doravante ser una com a prpria expe-rincia; no contente em lanar luz sobre o homem e sua vida, ela aspira a tornar-se essavida que chegou perfeita conscincia de si. Parece que essa ambio acarretou para ofilsofo a obrigao de renunciar ao ideal da filosofia como cincia rigorosa, j que emsuas bases esse ideal inseparvel da idia de um espectador ... no engajado (Sartre,

    Jean-Paul et allii. Kierkegaard vivant. Paris: Gallimard, 1966, p.29).25 Situations X. Paris: Gallimard, 1976, p.111, onde se l: essa noo de vivido uma

    ferramenta de que me sirvo mas que ainda no teorizei. Farei isso logo.26 Penso aqui nas promessas no cumpridas: a grande moral anunciada em O Ser e o Nada, o quartovolume dos Caminhos da Liberdade, o segundo tomo da Crtica da Razo Dialtica, a seqncia deAs Palavras, o ltimo volume de O Idiota da Famlia, que deveria tratar exclusivamente de MadameBovary.

    Sartre: ontologia e historicidade

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    Concebido como constante totalizao, o vivido pela lei do crculohermenutico no tem como incluir seu prprio processo totalizante natotalizao que efetua. Constante totalizao do processo dialtico da vidapsquica, ele implica um jogo de contrrios que se pressupem e se totalizam.

    Assim que, em O Idiota da Famlia,Sartre traz cena, na interpretao deFlaubert, o que chama de constituio e de personalizao como momentosdo processo de totalizao. Constituio a proto-histria do indivduo, seucrculo familiar e tudo o que ele comporta; as estruturas da faticidade dacriana que no podem ser erradicadas formam as bases do desenvolvimento

    e das transformaes individuais. Nelas ancorada, pe-se em curso apersonalizao; ainda que atrelado s bases assentadas pela constituio, ohomem constri a si mesmo, ultrapassando no concreto o que dele se fez.Estes dois momentos perfazem uma totalizao, que, longe de resultar emsimples totalidade, apresenta-se como um processo dialtico. E, nesse proces-so, viver a contingncia original super-la: o homem, irremedivel singula-ridade, o ser por meio do qual o universal vem ao mundo e o acasoconstitutivo, a partir do momento em que vivido, toma a figura de necessi-dade29 . Em outras palavras, o essencial no o que se fez do homem, mas o

    que ele faz do que fizeram dele30 .No obstante, agora Sartre ressalta determinantes histricas e se aproxima

    de teses freudianas, ainda que permanea refratrio idia de inconsciente31 . bem verdade que, atento aos reducionismos, alerta contra o que chama deceticismo analtico e marxismo ctico. No se trata de tomar o homem pormero efeito de acasos originais ou simples resultado do condicionamentooperado pelo meio. Longe de serem doutrinas auto-suficientes, marxismo epsicanlise apresentam-se como contribuies para elucidar a condio dohomem. Mas agora o sujeito ou, se se quiser, a subjetividade se constitui, a

    partir de uma base que lhe anterior, num processo permanente deinteriorizao e reexteriorizao. E a liberdade, de absoluta passa a pequenomovimento nesse processo. Esta a definio que eu daria hoje de liberdade,declara Sartre: esse pequeno movimento que faz de um ser social totalmente

    27 Sartre par Sartre. In: Situations IX. Paris: Gallimard, 1972, p.111.28Idem, ibidem, p.108.29 Kierkegaard vivant, p.46.30 E Sartre continua: O que fizeram do homem so as estruturas, os conjuntos significantes

    que as cincias humanas estudam. O que ele faz a prpria histria, a superao real

    dessas estruturas numa praxis totalizadora (Coelho, Eduardo Prado (org.). Estruturalismo.Antologia de textos tericos, p.136).31 H quem sustente, de maneira desmedida a meu ver, que a aliana com Marx e Freud provocou

    a eroso do sujeito sartriano. Cf. por exemplo Howells, Christina. Sartre and the deconstructionof the subject. In: Howells, Christina (org.). The Cambridge Companion to Sartre. Cambridge:

    Scarlett Marton

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    condicionado uma pessoa que no restitui a totalidade daquilo que recebeude seu condicionamento32 .

    Com a noo de vivido, a subjetividade sartriana sofre as determinaesdas foras opacas do destino familiar e do processo histrico. Mas Sartre vemlembrar que eu me fao continuamente na medida mesma em que sou feitapela situao e pelos impulsos, paixes ou desejos. s na minha experinciavivida, enquanto encarnao que feita e que se faz, que o mundo pode tersentido. Pois, o homem o ser que transforma seu ser em sentido, o ser pormeio do qual sentido vem ao mundo. O sentido o universal singular33 .

    E, se me fosse dado, guisa de concluso, trazer a esta cena ainda umapersonagem, no traria Roquentin, que no entender de Gerd Bornheimencarna o mtodo, pois em suas andanas, pondo sob suspeita o prpriosentido da existncia humana, acaba por apreender um primeiro princpioexistencial34 . Nem Mathieu Delarue, protagonista da Idade da Razo, romanceem que Frderic Jameson nota efeitos de fragmentao comparveis s tcni-cas do cinema35 . Tampouco Garcin ou Goetz, que Francis Jeanson coloca aolado de outros como figuras do bastardo36 . No traria Ibbieta, Canoris,Hoederer. Nem Lucien da Infncia de um Chefe, conto que dizem ser to

    nietzschiano. E menos ainda Jean-Paul deAs Palavras, que parece mais escon-der-se do que revelar-se. Traria isto sim Orestes.

    Representada em plena guerra, numa Paris ocupada, As Moscas pe emcena a resistncia que expulsa os usurpadores e os colaboracionistas, pararestituir ao povo o seu poder de autodeterminao. Filho de Agammnon eClitemnestra, Orestes mata Egisto, que assassinara seu pai e tomara por amantesua me, e depois mata a prpria me. Opondo-se ao catolicismo de Ptain eao mea culpa de Vichy, liberta sua cidade natal do peso do remorso. Ao publi-car a pea em 1943, Sartre inclui na pgina inicial: Orestes livre para o

    crime e para alm do crime; eu o mostrei atormentado pela liberdade, comodipo atormentado pelo seu destino. (...) Pois, a liberdade no qualquerpoder abstrato de sobrevoar a condio humana: o engajamento mais absur-do e mais inexorvel. Orestes seguir o seu caminho, injustificvel, sem des-culpa, sem recurso, s. Como um heri. Como qualquer um37 . Reivindican-do com orgulho o seu ato, ele deixa Argos, levando consigo as ernias. Mas,com esse ato, funda a sua existncia e d sentido a toda uma vida.

    University Press, 1992, p.318-52, onde se l: A Crtica da Razo Dialtica, As Palavras e O

    Idiota da Famlia ampliam as implicaes da desconstruo do sujeito em Sartre (p.337).32 Sartre par Sartre. In: Situations IX, p.101-02.33 Kierkegaard vivant, p.50.34 Bornheim, Gerd. Sartre. Metafsica e Existencialismo. So Paulo: Perspectiva, 3a. ed., 2003, p.16.35 Jameson, Frderic. Sartre. The Origins of a Style. Nova York: Columbia University Press, 1984.36 Jeanson, Francis. Sartre par lui-mme. Paris: Seuil, 1959.37 Contat, M. e Rybalka, M. Les crits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970, p.88. Cf. tambm Sartre.

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