sartre-apresentação de "les temps modernes"

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Todos os escritores de origem burguesa conheceram a tentação da irresponsabilidade: há um século ela é tradição na carreira literária. O autor raramente estabelece uma ligação entre suas obras e a remuneração em dinheiro. De um lado, ele escreve, canta, suspira; de outro, dão-lhe dinheiro. Eis dois fatos sem relação aparente; o melhor que se pode dizer é que lhe é dada uma pensão para que suspire. Ele se julga mais parecido com um estudante a quem é atribuída uma bolsa, do que com um traba- lhador que recebe o preço de seu trabalho. Os teóricos da Arte pela Arte e ~ealismo vieram ancorá-lo nessa opinião. Nota-se que eles têm o mes- ""'I mo objetivo e a mesma origem? O autor que segue os ensinamentos dos ,v<\'1;.1 primeiros tem como preocupação principal fazer obras que não sirvam )..- I para nada: se forem gratuitas, isentas de raizes, estarão mais próximas de #- /Ç>' serem por eles consideradas como belas. Ele se coloca assim à margem da I ~de; ou, melhor, ele só consente em p~encer a esta como mero con- sumidor: precisamente, como um bolsista. O Realis@.,por sua vez, conso- me à vontade. Quanto a produzir, é outro caso: disseram-lhe que a ciência [ não tinha necessidade de ser útil e ele visa a imparcialidade infecunda do C; ~. Já se disse várias vezes que ele "ie inclinava" sobre os meios que queria descrever. Ele se inclinava! Onde estava ele? No ar? A verdade é que, sem saber qual é sua posição social, demasiado comportado para se levantar contra a burguesia que o paga, demasiado lúcido para aceitá-Ia sem reservas, escolheu julgar seu século e se convenceu assim que se en- contrava exterior a este, assim como o experimentador é exterior ao siste- ma experimental. Assim, o desinteresse da ciência ~ura junta-se à gra- tuidade da Arte pela Arte. Não é por acaso q~ub~ja ao mesmo tempo...puro estilista, amante uro da forma e ~tur~lismo·J).ão é por acaso que os Goncourl se vangloriam de saber, ao mesmo tempo, ob- servar e de ter escrita de artista. internacional Jean-PaulSartre APRESENTAÇÃO DE "LES TEMPS MODERNES"* * Tradução de Oto Araújo Vale. 117

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Texto de apresentaçãoao primeiro número da revista Les Temps Modernes. Traduzido e publicado na Revista Praga. REfer~encia na última página do texto.

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Page 1: Sartre-Apresentação de "Les Temps Modernes"

Todos os escritores de origem burguesa conheceram a tentação dairresponsabilidade: há um século ela é tradição na carreira literária. Oautor raramente estabelece uma ligação entre suas obras e a remuneraçãoem dinheiro. De um lado, ele escreve, canta, suspira; de outro, dão-lhedinheiro. Eis dois fatos sem relação aparente; o melhor que se pode dizer éque lhe é dada uma pensão para que suspire. Ele se julga mais parecidocom um estudante a quem é atribuída uma bolsa, do que com um traba-lhador que recebe o preço de seu trabalho. Os teóricos da Arte pela Arte e~ealismo vieram ancorá-lo nessa opinião. Nota-se que eles têm o mes- ""'Imo objetivo e a mesma origem? O autor que segue os ensinamentos dos ,v<\'1;.1primeiros tem como preocupação principal fazer obras que não sirvam )..- Ipara nada: se forem gratuitas, isentas de raizes, estarão mais próximas de #- /Ç>'serem por eles consideradas comobelas. Ele se coloca assim à margem da I

~de; ou, melhor, ele só consente em p~encer a esta comomero con-sumidor: precisamente, como um bolsista. O Realis@.,por sua vez, conso-me à vontade. Quanto a produzir, é outro caso: disseram-lhe que a ciência [não tinha necessidade de ser útil e ele visa a imparcialidade infecunda do C;

~. Já se disse várias vezes que ele "ie inclinava" sobre os meios quequeria descrever. Ele se inclinava! Onde estava ele? No ar? A verdade éque, sem saber qual é sua posição social, demasiado comportado para selevantar contra a burguesia que o paga, demasiado lúcido para aceitá-Iasem reservas, escolheu julgar seu século e se convenceu assim que se en-contrava exterior a este, assim comoo experimentador é exterior ao siste-ma experimental. Assim, o desinteresse da ciência ~ura junta-se à gra-tuidade da Arte pela Arte. Não é por acaso q~ub~ja ao mesmotempo...puro estilista, amante uro da forma e ~tur~lismo·J).ão épor acaso que os Goncourl se vangloriam de saber, ao mesmo tempo, ob-servar e de ter escrita de artista.

internacional

Jean-PaulSartre

APRESENTAÇÃO DE"LES TEMPS MODERNES"*

* Tradução de Oto Araújo Vale.

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Esta herança de irresponsabilidade perturbou muitas mentes~

(~á consciência literária e não sabem b~.mse e~rev~r_ é.J..admiráv~ oujrrQiesco. Outrora o poeta se julgava um pro eta, era honroso; em seguida,tornou-se pária e maldito, ainda passava. Mas hoje, ele se encontra notime dos especialistas e não é sem certo desconforto que menciona nos re-gistros de hotel a profissão "homem de letras" após seu nome. Homem deletras: essa seqüência de palavras, em si mesma, tem algo que tira a von-tade de escrever; pensa-se num Ariel, numa Vestal, num enfant terrible etambém num maníaco inofensivo aparentado aos halterofílistas ou aosnumismatas. Tudo isso é bem ridículo. O homem de letras escreve quandose luta; num dia ele se orgulha, sente-se sacerdote e guardião dos valoresideais; no outro ele se envergonha, acha que a literatura se parece com umtipo de afetação especial. Junto aos burgueses que o lêem, tem a consciên-cia de sua dignidade; mas diante dos operári ue não o lêem, sofre deum complexode inferioridade, comose viu e 1936 a Maison de Ia Culture.É certamente esse complexo que se encontr' a origem do qu<p~íh}@)nomeia terrorismo, foi isso que levou os surre alistas a desprezarem aliteratura de que viviam. Depois da outra guerra, foi o momento de umlirismo particular; os melhores escritores, os mais puros, confessavampublicamente aquilo que mais os humilhava e se mostravam satisfeitosquando atraíam sobre si a reprovação burguesa: haviam produzido umaescrita que, por suas conseqüências, lembrava um pouco um ato. Essastentativas isoladas não puderam impedir as palavras de se depreciar acada dia. Houve uma crise da retórica e, em seguida, uma crise da lingua-gem. ÀB vésperas desta guerra, a maior parte dos literatos se resignavama ser apenas rouxinóis. Houve até autores que levaram ao extremo seuasco de produzir: aumentando a aposta de seus precursores, julgaram queaqueles tinham feito muito pouco ao publicar um livro simplesmente inú-til, sustentaram que o objetivo secreto de toda literatura era a destrui-ção da linguagem e que, para atingi-lo, bastava falar para não dizer nada.Este silêncio inesgotável esteve na moda durante algum tempo e asMessageries Hachette distribuíram nas bibliotecas de estações de tremos comprimidos desse silêncio sob a forma de romances volumosos. Hoje,

~ O ~ as coisas chegaram ao ponto em que se viu escritores, repreendidos ou\? punidos por terem alugado suas plumas aos alemães, demonstrarem umar surpresa dolorosa: "O quê?", dizem eles, "então a gente se engaja com o~ (). que escreve?"~~ Não queremos ter vergonha de escrever e não temos vontade de falar, para não dizer nada. E, aliás, se o quiséssemos, não conseguiríamos: nin-

\

guém consegue. Th ue é escrito ossui um se tido mo se ssesentido é~stante diverso-ª. uele ue o au~~a. Para nós, comefeito, o escritor não é nem Vestal nem Ariel: ele está, de qualquer manei-

}ra, envolvido, marcado, comprometido até o dia fmal de sua aposentado-fria. Se, em certa época, ele utiliza sua-arte para forjar bibelôs insípidos,isto é em si um signo de que há uma crise nas letras e, sem dúvida, na so-ciedade, ou de que as classes dirigentes o orientaram, sem que ele descon-

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APRESENTAÇÃO DE (eLES TEMPS MODERNES"

sob amarras. Não fazemo ue ueremos ~ no entanto somos re~~s2-veis por aquilo ue somos: eis o fato; o homem que se explica simultanea-mente or t s c US.J3,S W-e-- i o o único a su ortar o eso~imesmo. Nesse sentido, a liberdade oderia passar por maldi ão, elaé umaID:ãraiêão.Mas é também a-única fontéde:'irãiídeza humana. Os marxistasestarão de acordo conosco,pô~ '~ão se priv;~:que eu saiba, de apre-sentar condenações morais. Falta explicá-Ia: mas isso é problema dos filó-sofos, não nosso. Notaremos somente ue a soc'edade faz a essoa,-aessoa, por uma reviravolta análoga àquela qu Au sto Comt denomi- ~f(?t

nava passagem para a subjetividade, faz a sociedade. Se~'seu futuro, uma 'ti""sociedade não passa de um amontoado de materiãT, mas seu futuro não énada mais do que o projeto que de si próprios fazem, além do estado decoisas presente, os milhões de homens que a compõem. O homem é apenasuma situação: um operário não é livre de pensar ou de sentir como uurguês; mas para que essa situação seja um homem, um homem comple- ---:'

to, é necessário que ela seja vivida e superada por meio de um objetivo bespecífico. Ela permanece, em si mesma, indiferente já que a liberdade, .r(;JAjhumana não a dota de sentido: ela não é nem tolerável nem insuportável 'J'I'já que à liberdade não se resigna, nem se rebela contra ela, tanto que umhomem não se escolhe nela, ao escolher sua significação. EÉó ep.t~q,nointerior ~l?s~liyr~_e~SQ.Iha,que ela seJ- deteq;!!ina...~ieporgue e~-bredeterminada. Não, um operário não pode viver como burguês; é ne-cessário,-nã organização social de hoje, que ele suporte até o fim sua con-dição de assalariado; nenhuma evasão é possível, não há recurso contraisso. Mas um homem não existe da mesma maneira que uma árvore ouuma p-edra":-é-precisoque ele se faça operário. Total!!lente condicionado

-por sua classe, seu salário, a natureza de seu trabalho, condicionado atémesmo em seus sentimentos, até em seus pensamentos, é ele que decideo sentido de sua condição e da de seus camaradas, é ele que, livremente,dá ao roletariado um futuro de humilhação sem trégua ou de conquistae de vitória, segundo ele escolha ser resignado ou revolucionário. E é p-or

~ escolha que ele é respo sável. Não é livre ara não escolher: ele estáengajado, é preciso apostar, a abstenção é uma escolha. Mas livre P...êIaescolher num mesmo movimentc..seu de~stingJ_o.d.est@_de todos os ho-me~ õ valor queépreciso atribuir à humanidade. Assim, ele se escolheao mesmo tempo operário e homem, atribuindo uma significação ao pro-letariado. Tal é o homem que nós concebemos: homem total. Totalmenteen ajado e totalmente livre. É entretanto esse homem Ilvre que é necessá-rio libertar, arganaõsúás possibilidades de escolha. Em certas situa ões,só . lu ar para uma alternat'vã~ u dos termos é a morte. É precisofazer de tal sorte que ohomemJ?o a:;êm qualquer circunstância, escolhera vida. . ~ r

'Nossa revista se dedicará a defender a autonomia e os direitos da pes-soa. Nós a consideramos antes de tudo como um órgão de pesquisas: asidéias que acabo de expor nos servirão de tema diretor no estudo dos pro-blemas concretos da atualidade. Nós todos abordamos o estudo desses pro-

1- nfbJ.é>______') ~ --v.>' I

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Jean-paul Sartre

blemas num espírito comum; mas não temos ro ama olítico ou social;cada artigo exp~omente a o in.lli2J1~~~ua~!2~e~~oS'ãP;nasazer so ressmr, a longo prazo, uma linha geral. Ao mesmo tempo, recor-

remos a todos os gêneros literários para familiarizar o leitor com nossasconcepções: um poema, um romance de imaginação, se for inspirado nelas,poderão, mais que um escrito teórico, criar o clima favorável a seu desen-volvimento. Mas este conteúdo ideológicoe suas novas intenções correm orisco de reagir sobre a prória forma e os procedimentos das produções ro-manescas: nossos ensaios críticos tentarão definir em suas grandes linhasas técnicas literárias - novas ou antigas - que melhor se adaptarão aosnossos propósitos. Nós nos esforçaremos em apoiar o exame das questõesatuais, publicando tão freqüentemente quanto pudermos, em estudos his-tóricos que, como os trabalhos de Marc Bloch ou de Pirenne sobre a IdadeMédia, apliquem espontaneamente esses princípios e o método que delesresulta aos séculos passados, isto é quando renunciarem à divisão arbitrá-ria da história em histórias (política, econômica, ideológica, história dasinstituições, história dos indivíduos) para tentar restituir uma época desa-parecida como uma totalidade e que considerarão ao mesmo tempo que aépoca se expressa nas e pelas pessoas e que as pessoas se escolhem na epela sua época. Nossas crônicas tentarão considerar nosso próprio tempocomouma síntese significante e para tanto vislumbrarão num espírito sin-tético as diversas manifestações da atualidade, os modos e os processoscriminais assim como os fatos políticos e as obras do espírito, buscandoantes descobrir os sentidos comuns do que analisá-Ias individualmente.

~or essa razão, ao contrário do costumeiro, não hesitaremos em ficar em

lSilênCiOsobre um livro excelente mas que, do ponto de vista em que noscolocamos, não acrescenta nada de novo sobre nossa época, enquanto quenos debruçaremos sobre um livro medíocre que nos parecerá, em sua pró-pria mediocridade, revelador. A esses estudos acrescentaremos todos osmeses documentos brutos que escolheremos tão variados quanto possívelcom a única exigência de que demonstrem com clareza a im lica:,ão recí-proca do coletivo e da pessoa. Reforçaremos esses documentos por pesqui-sas e reportagens. Parece-nos, efetivamente, que a reportagem faz partedos gêneros literários e que pode.se tornar um dos mais importantes. A

(

capacidade de perceber intuitiva e instantaneamente as significações, ahabilidade de agrupá-Ias para oferecer ao leitor conjuntos sintéticos ime-diatamente decifráveis são as qualidades mais necessárias ao repórter;são aquelas que pedimos a todos os nossos colaboradores. Sabemos queentre as raras obras de nossa época que deverão durar, encontram-se vá-rias reportagens como "Os dez dias que abalaram o mU)là~bretudo oadmirável "Testamento espanhol" ... Enfim, em nossq~ônica.S>daremos

I lugar aos estudos psiquiátricos desde que sejam ~scritas nãPêrSpectivaque nos interessa. Vê-se que nosso projeto é ambicioso: não poderemoslevá-lo a cabo sozinhos. Somos uma pequena equipe no início, teremos fra-cassado se, em um ano, ela não tiver crescido consideravelmente. Concla-mamos as pessoas bem intencionadas; todos os manuscritos serão aceitos,

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APRESENTAÇÃO DE "LES TEMPS MODERNES"

de onde quer que venham, desde que se inspirem em preocupações que sejuntem às nossas e que apresentem, além disso, um valor literário. Re-lembro, com efeito, que na "literatura engajada" o engajamento nã9.ª~ve,- ~~em nenhum caso, fazer '9J$!ues:.e.r.aJj,Je'I;J,;f.tyrae 9J::,enõSsãpreocu a ão deve~ -....-.s. ,,__ ~_.-_ I~.

ser a e servir a~literatura, infundindo-lhe um sangue novo, assim como;ervir à cõiêtiVicràâertenfáil"dodar-lhe a literatura que lhe convém.

praga 8 1999 129

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estudos 'marxistas 8

praga

EDITORA HUCITECSão Paulo, 1999

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APRESENTAÇÃO DE "LES TEMPS MODERNES"

fiasse, para uma atividade de luxo, temendo que ele fosse engrossar astropas revolucionária~ ~Janto raguejou c.o!l~.bu.IK~eSeS Ie que se acre't a à arte da máwna ~ial, seria"p~~ n.ós~.~,2,&~~_d?~ ..11m_US.llI:ári9.ilg...§.g!l~ento?E sua arte minuciosa não pressupõe oconforto de Croisset, a solicitude de uma mãe e de uma sobrinha, um regi-me de ordem, um comércio próspero, uma renda regular? São necessáriospoucos anos para que um livro se torne um fato social que se examinacomo uma instituição ou que comece a aparecer nas estatísticas; é neces-sário certo distanciamento para que ele se confunda com os móveis de umaépoca, com suas roupas, seus chapéus, seus meios de transporte e sua ali-mentação. O historiador dirá de nós: "Eles comiam isso, liam aquilo, ves-tiam-se assim". As primeiras ferrovias, o cólera, a revolta dos Canuts, osromances de Balzac, o progresso da indústria, concorrem igualmente paracaracterizar a Monarquia de Julho. Tudo isto foi dito e repetido, desdeHegel: queremos tirar disso conclusões práticas. J~ escritor não tem \nenhum meio de fugir, queremos que ele abrace inteiramente sua época; (el~e: ela se fez para e e e e e é feifô para ela ..Lamenta"..mos a indiferen a d alz diante...d9sac~~~, a incom reen-são ~tada de aubert diante da Comuna; lamenJIDn.oS-...poeles:for~oisàs gue eles p.erder~~-~~e.-Nãoque;;~os perder nadade nosso tempo: t~z haja tempos mais bonitos, mas este é o noss~; só { :;temos esta vida para viver, no meio desta guerrE-, desta revolu ão talY.ez. r;Mas não se conclua daí que este}ãmos pregando algum tipo de populismo:é justamente o contrário. O populismo é um filho de velhos, o triste reben-to dos.últimos realistas; é outra tentativa de tirar o corpo fora. Estamos,ao contrário, convencidos de que não se pode tirar o corpo fora. Se fôsse..mos quietos e mudos como as pedras, nossa própria passividade seria umaação.A abstenção daquele que dedica sua vida a fazer romances sobre OSIhititas é, em si, uma tomada de posição. O,-~critor está em situaçi(ío na s\la tiépoca; c~a palavra tem ressonância. Cada silêncio também. ConsideroFlaubert e Goncourt como responsáveis pela repressão que se seguiu àComuna porque não escreveram sequer uma linha para impedi-Ia. Nãoera problema deles, dirão. Mas oprocesso de Calas era problema de Voltaire?\A condenação de Dreyfus era problema de Zola? A administração do Congo]era problema de Gide? Cada u sses autores, em uma circunstância \particular de sua vida, teve a medida de sua res onsabiÍidade e eScritor.~ -- ~. ~----- - ---A ocupação alemã ensinou-nos a nossa. Já que agimos sobre nosso tempoepor nossa própria existência, eCldimosque esta ação será voluntária. Éainda necessário deixar claro: não é raro que um escritor se preocupe, porsua modesta parte, de garantir seu futuro. Mas há um futuro vago e con-ceitual que diz respeito à humanidade inteira e sobre o qual não temos ne ..nhuma luz: a história terá um fim? O sol se apagará? Qual será a condiçãodo homem no regime socialista do ano 3000? Deixemos esses devaneiospara os escritores de ficção científica: é o futuro de nossa época 9.l!edeve \ser objeto de nossas atenções: um futuro limitado que dificilmente ..Qjk jti~e, pois uma época, com9.J!!!!-howemi..-ªllles .~tudo ul!Lfutur<2.Ele é

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Jean-Paul Sartre

Ifeito de suas obras, seus em reendim~ntQê, se~ projetos a médio ou longoE!:..-azo,de~~s revolta§, de s~p combates d~~~~.§pêranças: quandoterminará a guerra? Como se reequipará o país? como se organizarão asrelações internacionais? quais serão as reformas sociais? as forças da rea-ção triunfarão? haverá uma revolução e como será-ela? Esse futuro, nós ofazemos nosso, não queremos ter outro. Sem dúvida, certos autores têmpreocupações menos atuais e visão mais curta. Passam no nosso meio comoausentes. Onde estão eles? Com seus afilhados, eles se voltam para julgaressa era extinta que foi a nossa e da qual eles são os únicos sobreviventes.Mas calculam mal: a glória póstuma funda-se sempre sobre um mal-en-

~ J tendido. Que sabem eles desses afilhados que virão pescá-los entre nós!, A imortalidade é um álibi terrível: n~o.é fácil vive~_c~}.:!m é no túmulo e

~~(Q a. Como tratar das tarefas correntes quando elas são vistas detão longe! Como se apaixonar por um combate, como gozar uma vitória!Tudo é equivalente. Eles nos olham sem nos ver: aos seus olhosjá estamosmortos - e s~ra o Om_~ ue escrevem para homen~uenunca verão. Deixaram sUJly!ªª..§~_rouba.dª-Ilç!a im.Q.~cJe. N~s-

-v crevemos ata U,Q:,?&Qs f<m:....tillP. orâ~s, não queremos olhar nosso mundocom olhos futuros, seria a maneira mais segura de matá-Ia, mas com nos-sos olhos de carne, com nossos olhos que a terra há de comer. Não dese-jamos ganhar nosso processo em apelação e não temos nada par-a fazer--;..com uma reabilitação póstuma: é aqui mesmo e em nossa vida que os pro-cessos são ganhos ou perdidos.

Não sonhamos, entretanto, em instaurar um relativismo literário. Te-mos pouco gosto pelo história pura. Aliás, existe história pura além do

:j:- manuais d SeigIlobos C~a ép~~?_S0,!~.~.1!ID.aê-.p~tQ.dacondi00 hu-

l~a, a2_<llLt}PQÇJlo ho~e.:.;nJ~J~§fºlhe~eIll(ace de ou~r~!ll,do amor da~ !ll0rp!!,do !p-~do; e quando os partidos se enfrentam sobre o desarmamen-

to das F.F.!. ou da ajuda a ser fornecida aos republicanos espanhóis, é estaescolha metafísica, este projeto singular e absoluto que está em jogo,.As-

~sim, ao_tomar p_~~~inJUlli!rid.ad~,"cle_m)s~~E.0cal ati!!girg~s_fin~-r mente o eterno e é nossa tarefa de/escritor fazer entrever os valores daf et~r:.J;lid;êle_qüeê~Tmp.li~a~~s ;es;;;; d-ebates '~~iai; ou poIÍti~o;- Mas

não nos preocupamos em ir buscá-Ias em um céu inteligível: eles só apre-sentam interesse em seu invólucro atual. Longe de_ sermos relativistas,af marn'o...§Jilllalto e b!?msom que? !"l..9Il!em.é uIJl7h§oluto.· Mllê ele õ é em

Üua hor n seu meio na slJa t~rr-ª. O 9.lliUUll>..~.oluto,o que I)Úlanos _de

história não.podem.destruir, é~decisão insubstituív~l, ~ncompar.á-vel ue~e ...t.2~ ne~ m.o~~!.~.?~PXQ.l?ósitod~~s._cir.c~JâUÇ.i.as; o ab-soluto ~ o homem que nos escapa porque está morto, que viveuem sua época, que a pensou no dia-a-dia com os meios ue . ha, que for-mou sua doutrina a partir de cerfõ"~stado das ciências, que conheceu\~~::t;terU» M~e, que em sua infância amou uma moça sus-peita, que guerreou, que engravidou uma criada, que atacou não apenaso princípio de autoridade em geral, mas precisamente a autoridade deAristóteles, e que se postou em sua época, desarmado mas não vencido,

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como um marco; o que é relativo é c.cartee ianismQ, essa filosofia portátilqu~sseia~século em século e na qual cada um encontra o ue uer.Não é correndo atrás da imort ldadeque nos .furiiãreiííõ;l~ortai.s:~l /seremos absoluto or ter refletido em nossas obras alguns princípios de- ( -1).sencarna .08,suficientemente vazios e nulos p.ara passar de um SéCU.10aJi/outr0fo.~ ...p-QglJ~.c.pm.b.ate.mJ~§.."çgm.~ em_~,~.§!léJ2o,~a,.J2..0!...9..':!.e~.~re-mos..?~~~?Odela ~p~ixonad~entg.~~uolq1}~ !~,P~!llQ~açeitaJiQp~c:.eLin-teiros~e a.

Em resumo, n?~ ir:!.ensão~_p-rQI~!,~i.~ a roduç.ão...de.certa Ul.u-d:;nça~..E.ª_~~~~:.<!asle4uenos,.e.DY21ye.Não queremos dizer com isso umamudança nas almas: deixamos a direção das almas aos autores que têmuma clientela especializada. Para nós queJ~eri?lisi~ nun-ca.dístinauímos.a.alma.dc cor o e..!luesó conhecemos uma realidade inde-cpmpon!.v!:l:a realidade humana, colo~~~~s a;--lado'da~eles que que-rem mudar ao mesmo tempo a condição social dohomem e a concepção queele tem de si mesmo. Nossa revista também tomará posição, em cada caso,-=:------~ ...."'-"...' ..... :r ••.

~ os acontecimento~_IiõlitíCQ.S~_§QÇ~qp.,..g,.Yir.ão.Ela nãq Q. far,a IJf}li-ticamente, isto é, não servirá a nenhum partido; mas se esforçará paradepre@der a concepção de homem de que se inspirarão as teses presentese dará seu parecer conforme sua própria concepção, Se pudermos mantero que prometemos, se pudermos compartilhar nossas visões com algunsleitores, não conceberemos um orgulho exagerado; nós nos felicitaremossimplesmente por ter achado uma boa consciência profissional e que, pelomenos para nós,,~teratura tenha yo~o a ser o ue e!~.n~?:a devia terde' do de serxuma função social. l

JLql!i:lU, p~;g{.i:Õtãrãà~éssa cÕncepçãode homem que pretendem des-cobrir para nós? Respq~deremos que ela está nas ruas e que não preten-demos descobri-Ia, mas s:Gnpi;snÍenteàjudar a torná-la'ffiãis precisa, EstacOnCépção,eúã denominarei totalitária. Mas comõ~apaIa'\rra'podê' parecerinfeliz, já que nos últimos anos não serviu para designar a pessoa huma-na, mas um tipo de Estado opressivo e antidemocrático, convém dar algu-mas explicações.

A classe burguesa, me parece, pode ser definida intelectualmente pelouso que faz do espírito analítico, cujo postulado inicial consiste em que oscomponentes devem necessariamente se reduzir a um arranjo de elemen-tos simples. Em suas mãos, esse postulado constituiu-se numa arma ofen-siva que lhe serviu para desmantelar os bastiões do Antigo Regime. Tudofoi analisado: reduziu-se num mesmo movimento o ar e a água a seus ele-mentos, a mente à soma das impressões que a compõem, a sociedade àsoma dos indivíduos que a fazem. Os conjuntos se apagaram: eram apenassomas abstratas ao acaso das combinações. A realidade se refugiou nostermos finais da decomposição. Estes, efetivamente - é o segundo pos-tulado da análise - guardam inalteradas suas propriedades essenciais,quer pertençam a um composto, quer existam em estado livre. Existiuuma natureza imutável do oxigênio, do hidrogênio, do azoto, das impres-sões elementares que compõem nossa mente, existiu uma natureza imutá-

APRESENTAÇÃO DE "LES TEMPS MODERNES"

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Jean-paul Sartre

vel do homem. O homem era o homem comoo círculo era o círculo: de umavez por todas; o indivíduo, quer tenha sido transportado para o trono, quertenha mergulhado na miséria, permanecia profundamente igual a si pró-prio, pois era concebido sobre o modelo do átomo de oxigênio, que pode secombinar com o hidrogênio para fazer a água, com o azoto para fazer o ar,sem que sua estrutura interna seja mudada. Esses princípios presidirama Declaração dos Direitos Humanos. Na sociedade ue concebe o espíritoanalítico, o indivíduo, partícula sólida é indecom onível, veículo dãiJ.atu-

- - _.- >-' -------"-------.. -. ~-------- ••.••.•••

, reza humana, reside como uma ervilha numa lata de ervilhas: redondo,~ _._ ~ ~..........c. __ •..•• •• ---......

fec ado e~si mes~o, incomu~el. T~~ho.m.ep __ 9,gjgY..a : é pr~ci-so entender ue todos a!~~~~~~.s!o_l:!.9mem. o 0E-0sho~nss - Lrmãos· af aternidade é um ligação passiva entre moléculas distintas,qu o lugar de uma solidariedade de ação ou de classe que o espíritoanalítico sequer pode conceber. É uma relação somente exterior e pura-mente sentimental que mascara a simple ·ustaposição dos indivíduos nasociedade analítica. Todos os homen -Sãolivre : livres de serem homens,nem é preciso dizer. Isso significa que a ação do políticó deve ser toda--'ne-~vã: nã~ d;ve tratar da natureza humana; é necessário excluir os obs-táculos que poderiam impedir-lhe de desenvolver. Assim, desejosa de des-truir o direito divino, o direito do nascimento e do sangue, o direito doprimogênito, todos esses direitos que se fundavam sobre a idéia de que hádiferenças naturais entre os homens, a burguesia confundiu sua causacom o universal. Ao contrário dos revolucionários contemporâneos, ela sópôde realizar suas reivindicações ao abdicar de sua consciência de classe:os membros do Terceiro Estado na Constituinte eram burgueses porque seconsideravam simplesmente comohomens.

Após cento e cinqüenta anos, o es írit analttiço continua §end<Uldou-trin~ da demoEr~ciab'E:~esa, mas tornou-se uma arma defensiva.A burguesia tem todo interesse em se omitir a respeito das classes comooutrora sobre a realidade sintética do Antigo Regime. Ela insiste em verapenas homens, em proclamar a identidade da natureza humana atravésde todas as variedades de situação: mas é contra o proletariado que elaproclama isso. Um operário, para ela, é antes de mais nada um homem-um homem como os outros. Se a Constituição concede a este homem odireito de voto e a liberdade de opinião, ele manifesta sua natureza huma-na como burguês. Uma literatura polêmica muitas vezes representou oburguês como um calculista e desgostoso cuja única preocupação é defen-der seus privilégios. De fato, alguém! constitui-se bur uêslao escolher, deuma vez o toda§, certa visão e mun ;;-ãii-;lí.tlc-ª_qu~ntaim or a 0doos homens e ue exclui a erce ao das realidades coletivas. Assim, a defe-- ---. .•.--~sa burguesa é, em certo sentido, permanente e se confunde com a própriaburguesia; mas ela não se manifesta por cálculos; no interior do mundoque ela construiu para si, há lugar para virtudes de desprendimento, al-truísmo e mesmo de generosidade; apenas as boas ações burguesas sãoatos individuais que se dirigem à natureza humana universal, personifi-cada no indivíduo. Neste sentido, elas têm tanta eficácia quanto uma boa

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propaganda, pois o titular das boas ações é coagido a recebê-Ias como elaslhe são propostas, isto é, como uma criatura humana isolada diante deoutra. A caridade burguesa entretém o mito da fraternidade.

Mas há outra propaganda que nos interessa mais particularmente aqui,uma vez que somos escritores e que os escritores são seus agentes incons-cientes. Essa lenda da irresponsabilidade do poeta, que denunciávamos hápouco, tem sua origem no espírito analítico. Uma vez que os autores bur-gueses se consideram a si próprios comoervilhas numa lata, a solidarieda-de que os une aos outros homens lhes parece estritamente mecânica, istoé, simples justaposição. Mesmo que tenham um sentido elevado de suamissão literária, pensam ter feito o bastante ao descrever sua própria na-tureza e a de seus amigos: já que todos os homens são do mesmo jeito, elesservem a todos iluminando a si próprios. E como o postulado do qual par-tem é o da análise, parece-lhes simples utilizar o método analítico para seconhecerem a si ró rios. Tal é a ori em da sicologia intelectualista da~ br:... d_ PrQ!!st s oferecem o e~~~is ~pleto. Pederasta,Proust acreditou poder valer-se de sua expenência homossexual quandoquis descrever o amor de Swann por Odette; burguês, ele apresenta o sen-timento de um burguês rico e ociosopor uma mulher que ele mantém comoo protótipo do amor: acredita na existência das paixões universais cujomecanismo não variaria sensivelmente quando se modificasse o carátersexual, a condição social, a nação ou a época dos indivíduos que as sentem.Após ter "isolado" assim esses afetos imutáveis, ele poderá começar a re-duzi-los, por sua vez, em partículas elementares. Fiel aos postulados doespírito analítico, ele sequer imagina que possa haver uma dialética dossentimentos, mas somente um mecanismo. Assim, o atomismo social, po-sição de recuo da burguesia contemporânea, acarreta o atomismo psico-lógico.Proustescolheu-se burguês e tornou-se cúmplice da propaganda bur- bguesa, já que sua obra contribui para irradiação do mito da natureza hu- ~mana.

Estamos persuadidos de que o espírito analítico sobreviveu e que seuúnico ofício hoje é o de turvar a consciência revolucionária e isolar os ho-mens em proveito das classes privilegiadas. Não acreditamos mais na pSi-1 'cologia intelectualista de Proust e a consideramos nefasta. Uma vez que ,escolhemos como exemplo sua análise do amor-paixão, esclarecemos semdúvida o leitor ao mencionar os pontos essenciais sobre os quais recusa-mos qual uer entendimento com ele. I

E nmeIr lugar, não aceitamos a priori a idéia de que o amor-pai-xão seja afeto constitutivo da natureza humana. Poderia ser, comosugeriu Denis de Rougemont, que houvesse uma origem histórica em cor-relação com a ideologia cristã. De uma maneira geral, esJin:!.amosque um) Ir(vseI).timento é sempre a expressão de certo modo de vida e de certa concep- 1J.\oção de mundo ue são comuns a toda uma classe ou a toda uma 'é oça, e ~.Jque sua evolução;;ãóé o efeito'de sáb~~mecanismo interior, mas r\ldesses fatores históricos e sociais.

Em egun o ugar, não podemos admitir que um afeto seja composto

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de elementos moleculares que se justapõem sem se modificar uns aos ou-tros. Nós o consideramos não comouma máquina bem acertada, mas comouma forma organizada. Não concebemos a possibilidade de fazer a análisedo amor porque o desenvolvimento desse sentimento, como o de todos osoutros, é dialético,

Em €rc~ recusamo-nos a acreditar que o amor de um homossexualapresente as mesmas características que o de um heterossexual. A carac-terística secreta, proibida do primeiro, seu aspecto de missa negra, a exis-tência de uma maçonaria homossexual, e essa maldição na qual ele temconsciência de arrastar consigo seu parceiro: tantos fatos que nos pareceminfluenciar o sentimento inteiro e mesmo os detalhes de sua evolução. Afir-mamos que os diversos sentimentos de uma pessoa não são justaposiçõesmas que há uma unidade sintética da afetividade e que cada indivíduo semove num mundo afetivo que lhe é próprio.

Em ~~: negamos que a origem, a classe, a nação do indivíduo se-jam simp~oncomitantes de sua vida sentimental. Estimamos ao con-trário que cada afeto, como toda outra forma de sua vida pSíquica,· ma-nifesta sua situação social. Esse operário que recebe um salário, que nãotem os instrumentos de seu ofício,isolado pelo seu trabalho diante da ma-téria e que se defende da opressão tomando consciência de sua classe, nãopoderia em nenhuma circunstância sentir como esse burguês, de espíritoanalítico, cuja profissão o coloca em relação de polidez com outros bur-gueses.

Assim, contra o espírito analítico, recorremos a uma concepção sintéti-ca da realidade cujo princípio é que um todo, qualquer que seja, é diferente

~por natureza da soma de suas partes. Para nós, o u~ ~D~, Co:ID..um...não' UI.P.ª tureza é uma condi.Çãometafísica: entendemos as-

sim o~njuJ!.t()_~:10:~_stn.~~~~_~~~Tt'am -;;;i.iori, 'a n~s~e __çl~s-) cer e de morrer, a de ser finito e de existir no mundo em meio a outros

ho-meil8.Pãrã õiés'tü;"êlescônstltuem totalidàd~~-i~cómpolúveis, cujasidéiag:-humores e atos são estruturas secundárias e dependentes, e cujacaracterística é a de estarem situadas e eles diferem entre si como suassituações diferem entre elas. ~nidade desses to~gnific.allk.~ é~-

Itido que eles manifestam. Quer escreva, quer trabalhe na linha de ro-"""""---.... -... -~ --- .._---dução, quer escolha uma mulher ou uma gravata, o homem manifesta

..•.. . ._~...- - ...,,---- •....•- -'-'~"""-'- -, -".. -- - -- --- - ~_.sem ..r~:ele ,~'!]'lfest!l elLIIlJllO ~.~!t su,ªiamília,...s.u..a~~e,ji-Ina~~!:te1--S..2..mo~~!u~g.2~em_~~~~!9_::9.E1yn~~~ é o mundo in-telro.queehuuapjj! sta. Um homem é toda a terra. Está presente em todosos lugares, age em todos eles, é responsável po; tudo. É em todos os luga-res, Paris, Postdam, Vladivostok, que seu destino está em jogo. Aderimosa esta visão porque elas nos parecem verdadeiras, porque nos parecemso ialmente ' t . ente, e porque a maior parte das pes-soas nos parecem pressenti-Ias ê reivindicá-Ias. Nossa revista gostaria decontribuir, por sua modesta parte, para a constituição de uma antropolo-gia sintética. Mas não se trata somente, repitamos, de preparar um pro-gresso no domínio do conhecimento puro: a meta longínqua a que visamos

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é uma libertação. Já que ohomem é uma totalidade, não basta apenas dar-lhe o direito de voto, sem tocar nos outros fator~<m_E;l_o_.Ç.O.Dª.t~tuem:é ne-ce ário u~,,~~~al~.:~!e, ist2.-'~ uê se faa., outrod;agindotanto sobre sua constituição biõ'iógIcaquanto sobre seu conmcionamentoeconômico, sobre seus complexos sexuais e sobre os dados políticos de suasituação.

Entretanto, esta visão sintética apresenta um ~ave ri~o: se o indiví-duo é uma seleção arbitrária operada pelo espírito analítico, não nos arris-caríamos de substituir, ao renunciar às concepções, o reino da consciênciacoletiva pelo reino da pessoa? Não se faz a parte do espírito sintético: ohomem-totalidade, entrevisto a custo, vai desaparecer, tragado pela clas-se; somente a classe existe, e é apenas a ela que é necessário libertar. Mas,dirão, ao livrar a classe, não se liberta os homens que ela contém? Nãonecessariamente: o triunfo da Alemanha hitlerista terá sido o triunfo decada alemão? Além do mais, onde termina a síntese? Amanhã, virão nosdizer que a classe é uma estrutura secundária, dependente de um conjuntomais vasto do que será, por exemplo, a nação. A grande sedução que o na-zismo exerceu sobre certas mentes da esquerda vem, sem nenhuma dúvi-da, do fato de ter levado a concepção autoritária ao absoluto: seus teóricostambém denunciavam os malefícios da análise, o caráter abstrato das li-berdades democráticas, sua propaganda também prometia forjar um ho-mem novo, ela conservava as palavras Revolução e Libertação: mas nolugar doproletariado de classe colocava-se oproletariado das nações. Redu-ziam-se os indivíduos apenas a funções dependentes da classe, as classesapenas a funções da nação, as nações apenas a funções do continente euro-peu. Se, nos países ocupados, a classe trabalhadora levantou-se inteir~-mente contra o invasor, é sem dúvida porque ela se sentia ferida em suasaspirações revolucionárias, mas ela também tinha uma repugnância inven-cível contra a dissolu2ão da pes~a coletiyi~e.

Assim, a consciência contemporânea parece despedaçada por uma~tinomt!. Os que prezam acima de tudo a dignidade da pessoa humana,sua liberdade, seus direitos imprescritíveis, tendem, por isso mesmo, apensar segundo o espírito analítico que concebe os indivíduos fora de suascondições reais de existência, que os dota de uma natureza imutável eabstrata, que os isola e fecha os olhos sobre sua solidariedàde. Aqueles quecompreenderam que o homem é enraizado na coletividade e que queremafirmar a importância dos fatores econômicos, técnicos e históricos, se ati-ram sobre o espírito sintético que, não enxergando as pessoas, só tem olhospara os grupos. Essa antinomia pode ser demonstrada, por exemplo, nacrença de que o socialismo se encontra no extremo oposto da liberdadeindividual. Assim, aqueles que rezaro-ª..Sl.Jll;o.!lQmiadª-pess.oa gª-tari1!ffiel1furralados ..!llli!!...li.beralisI!!Q...Eait~l!sta cujas ~onseqÜências nefastasconhecemos; os qu~ or&..~.J9.Ç_ªº...§..ociali§Hldeveriam re-clamá-0 §l_sa~e~~t~...9~ayt.?ri!.~riS!ll9 Jotalitário. O desconforto atualprovém do fato de que ninguém pode aceitar as conseqüências extremasdesses princípios: há um componente "sintético" nos democratas de boa

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vontade; há um componente analítico nos socialistas. Basta lembrar, porexemplo, o que foi na França o partido radical. Um de seus teóricos publi-cou uma obra que se intitulava: "O cidadão contra os poderes". Este títuloindica bem como ele concebia a política: tudo funcionaria melhor se o ci-dadão isolado, representante molecular da natureza humana, controlasseseus representantes eleitos e, caso necessário, exercesse contra eles seulivre julgamento. Mas, precisamente, os radicais não puderam deixar dereconhecer seu fracasso; esse grande partido não tinha mais, em 1939,nem vontade, nem programa, nem ideologia; ele se afundou no oportunis-mo: quis resolver politicamente problemas que não admitiam soluções po-líticas. As melhores cabeças se mostravam atônitas: se o homem é um ani-mal político, como pode acontecer que, ao lhe ser dada a liberdade política,seu destino não tenha sido acertado de uma vez por todas? Por que ojogoaberto das instituições parlamentares não conseguiu suprimir a miséria, odesemprego e a opressão dos trustes? Como pode acontecer que encontre-mos a luta de classes acima das oposições fraternais entre os partidos?Não foi necessário ir muito longe para entrever os limites do espírito ana-lítico. O fato de que o radicalismo buscasse constantemente a aliança dospartidos de esquerda mostra claramente a via através da qual se encami-nhavam suas simpatias e suas aspirações desordenadas, mas faltava-lhe atécnica intelectual que lhe teria permitido não só resolver, mas até mesmoformular os problemas que ele pressentia confusamente.

No outro campo, as dificuldades não são menores. A classe operária sefez herdeira das tradições democráticas. É em nome da democracia queela reivindica sua alforria. Ora, como vimos, o ideal d~ocr@co-se-ªPre-senta historicamente sob a forma de um co o.socia entre indivíduoslivr-;s.Assim, as reivindicaçõesanãBhCãsãi õus êà interferem freqüen-temente nas consciências com as reivindicações sintéticas do marxismo.Aliás, a formação técnica do operário desenvolve nele o espírito analítico.Semelhante ao cientista, é pela análise que ele deve resolver os problemasda matéria. Se ele se volta para as pessoas, tende a, para compreendê-Ias,fazer uso dos raciocínios que lhe servem em seu trabalho; ele aplica assimàs condutas humanas uma psicologia de análise semelhante àquela do sé-culo XVII francês.

A existência simultânea desses dois tipos de explicação revela certa

jhesitação; esse perpétuo recurso ao "como se..." mostra bem que o marxis-mo não dispõe ainda de uma psicologia de síntese apropriada à sua con-cepção totalitária de classe.

No que nos diz respeito, nós nos recusamos a ficar divididos entre atese e a antítese. Conce s sem dificuldade ue Ul!} homem, ainda.Jlue------sua situaç~.Q ~cio~1otal~..nt oss!- .?~rum ce~ro Qe i!!..deter.mi-na ão..ir.r.dutível. sse seto im revisibilidade que se destaca no cam-po social é oque denom~~s liberdade, e a pessoa:-não ' 7d~além do-~........ ---q~hberdããé. ss _ . erdÇldenão eve ser confundida co~ um podermetafísico da "natureza" umana, nem é permissão para se fazer o que sequiser, ou tampouco algum refúgio interior que nos restaria até mesmo

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